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Interview with Fabrizio Boscaglia (Blog Um Fernando Pessoa, 28/12/2012)
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Blog Um Fernando Pessoa – Entrevista com Fabrizio Boscaglia p. 1/5
Blog Um Fernando Pessoa – 28 de Dezembro de 2012
Entrevista com Fabrizio Boscaglia
1. Fabrizio, antes que tudo, uma pergunta básica: como conheceu Fernando Pessoa?
Conheci Fernando Pessoa através de Lisboa, sobretudo de Lisboa, principalmente
mergulhando nas páginas do Livro do Desasocego. O acontecimento anterior, como muitas
vezes acontece, tinha sido um jantar entre amigos. Um jantar “muito original”, no sentido em
que deu lugar à “origem” do meu interesse pela obra pessoana. Apareceu à mesa um
indivíduo, desconhecido até à altura, que começou a falar com entusiasmo da obra de Pessoa.
Fiquei curioso e, no dia seguinte, fui encomendar uma cópia do Livro.
Logo desde as primeiras leituras, o que mais me tem atraído em Pessoa não é a
fragmentariedade e a multiplicidade que se encontram na sua obra, mas sim, talvez
paradoxalmente, a subtil intenção sintética que anima muita desta obra. Esta intenção está
claramente presente no sensacionismo, que considero o projeto cultural mais representativo
do pensamento pessoano e que pretende gerar uma síntese cultural que seja original e que, ao
mesmo tempo, inclua a tradição. Estou a falar, não duma síntese filosófica sistemática e
rigorosa, mas sim da tentativa de interseccionar, através da linguagem, a experiência (real ou
imaginada) de diferentes planos de realidade, de diferentes estilos e sensibilidades, e até de
diferentes perspetivas filosóficas.
2. O seu campo de investigação centra-se na influência árabe e persa no pensamento e na
obra de Fernando Pessoa, porque escolheu este tema em particular?
A ideia nasceu em 2009, durante a minha participação no projeto de digitalização da
biblioteca particular de Pessoa, guardada em grande parte na Casa Fernando Pessoa (o projeto
era coordenado por Jerónimo Pizarro, Patricio Ferrari e Antonio Cardiello). Nesse ano saiu a
edição crítica das Rubaiyat de Pessoa inspiradas por Omar Khayyām, editadas por Maria Aliete
Galhoz. Interessei-me logo por esta edição e, ao fotografar os livros que pertenceram a Pessoa,
comecei então a tomar nota dos sublinhados e dos marginalia deixados por Pessoa em textos
sobre a civilização arábico-islâmica, que mostravam rastos do percurso biobibliográfico que
tinha levado Pessoa a interessar-se tanto por Khayyām como pela própria civilização arábico-
islâmica. O meu interesse sobre esta civilização já se tinha manifestado durante os meus
estudos sobre Pessoa e a imaginação, quando comecei a incluir a obra de Henry Corbin
(estudioso de filosofia islâmica e Sufismo) nas referências dos meus ensaios sobre Pessoa.
Achei portanto interessante aprofundar esta área de estudos e, pouco a pouco, comecei a
procurar mais, tanto no espólio como na biblioteca particular de Pessoa, para afinal decidir
dedicar-me a uma investigação mais abrangente sobre a presença arábico-islâmica em Pessoa.
3. Provavelmente a vertente da obra Pessoana mais facilmente identificada com uma
influência árabe seriam as Rubaiyat por Omar Khayyām. Que outras obras de Pessoa
sofreram esta influência e qual é, na sua perspetiva, a influência global na obra de Pessoa, se
é que ela existe? Fala-se de influência de Omar Khayyām em Reis.
A influência «árabe» – ou melhor, arábico-islâmica – no pensamento e na obra de Fernando
Pessoa existe em virtude do facto de ter sido o próprio Pessoa a defendê-la e a estudá-la com
Blog Um Fernando Pessoa – Entrevista com Fabrizio Boscaglia p. 2/5
alguma atenção, como se pode ver tanto em textos ortónimos como em escritos atribuíveis à
personalidade literária de António Mora.
Abrindo um pequeno parêntese terminológico, acho oportuno notar que Pessoa falou
sobretudo de «árabes» e «maometanos», sendo influenciado pela cultura orientalista, mas
provavelmente estava a abranger dentro destas expressões uma inteira civilização que
chamarei, conforme os critérios científicos, de islâmica (ou arábico-islâmica), e que inclui os
persas como Khayyām e Avicena, cujo papel na transmissão do pensamento de Aristóteles ao
Ocidente medieval era conhecido por Pessoa.
Pessoa escreveu, num texto pertencente ao corpus neo-pagão: «Não ha profundo movimento
portuguez que não seja um movimento arabe, porque a alma arabe é o fundo da alma
portugueza» (Sensacionismo e outros ismos: 229). A obra pessoana contém várias afirmações
deste tipo em que Pessoa afirmou claramente a presença do elemento «árabe» tanto na alma
portuguesa como na própria obra dele. De facto, os movimentos profundamente portugueses
a que Pessoa aqui se refere são sobretudo o sensacionismo e o neo-paganismo, ou seja, dois
dos principais ismos pessoanos.
Com efeito, o interesse de Pessoa pela civilização arábico-islâmica parece manifestar-se de
forma significativa por volta de 1916, sendo este interesse integrado na elaboração do
sensacionismo, do neo-paganismo e dos textos de Pessoa sobre a Ibéria. Devido à importância
global que estes temas têm no pensamento e obra pessoana, esta «emergencia do spirito
arabe» (ib.: 225) que Mora reconhece nos ismos pessoanos torna-se, a meu ver, no evento que
orienta todo o estudo da presença arábico-islâmica na obra pessoana, incluindo as Rubaiyat.
É através de António Mora que Pessoa afirmou a completa identidade entre sensacionismo e
«arabismo». Este «arabismo» seria o elemento psíquico e civilizacional arábico-islâmico,
composto por um aspeto subjetivista (introspetivo e sonhador) próprio do «espírito árabe», e
por outro aspeto, objetivista (observador e cientista), derivado da influência grega no
psiquismo «árabe».
Mora de facto escreveu que «o sensacionismo é puramente arabe» (ib.: 222) e defendeu que
as principais características do sensacionismo (o subjetivismo, a maneira como a imaginação é
utilizada, a atitude sintética, etc.) são na realidade características do psiquismo «árabe».
Falando ainda desta atitude sintética – típica da alma e do povo português, segundo Pessoa –
Mora indicou que esta seria na realidade uma característica dos «árabes» que estava a
reemergir, ainda segundo Mora, nos próprios ismos pessoanos depois de ter caracterizado a
cultura ibérica durante a Idade Média.
Paralelamente, Mora estudou o papel dos «árabes» enquanto transmissores da sabedoria
grega para a Europa durante a Idade Média, sendo este tema ligado à elaboração do neo-
paganismo português, acabando por escrever que «os arabes trouxeram o spirito grego até a
Europa» (ib.: 223). Por esta razão o poeta andaluz Al-Mu'tamid encontra-se homenageado
num texto sobre paganismo e sebastianismo assinado por Augusto Ferreira Gomes, em cuja
produção a direta intervenção de Pessoa é particularmente notória segundo Jorge Uribe e
Pedro Sepúlveda, editores de Sebastianismo e Quinto Império. Ainda na prosa sensacionista do
ortónimo encontram-se várias referências e elogios à civilização arábico-islâmica e ao papel
desta na transmissão da cultura grega para o ocidente, sendo este papel confirmado em livros
lidos por Pessoa e ainda em obras de vários historiadores da ciência e da filosofia.
Vê-se claramente, tanto nas palavras do ortónimo como nas afirmações de Mora, que a
presença da cultura arábico-islâmica teve um lugar próprio e específico na elaboração do
sensacionismo e do neo-paganismo de Pessoa.
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Outro ciclo de textos em que a presença da civilização arábico-islâmica emerge é composto
pelos escritos de Pessoa sobre a Ibéria, reunidos e publicados pela Ática na edição de Jerónimo
Pizarro e Pablo Javier Pérez López (2012). Aqui Pessoa afirmou a importância de reconhecer o
elemento civilizacional «árabe» (arábico-islâmico) como sendo o elemento que distinguiria o
grupo civilizacional ibérico do resto da Europa. Pessoa declara, nestes textos, a vontade de se
identificar com a atitude tolerante e sintética realizada, segundo ele, no Al-Andalus (a
península ibérica arabizada-islamizada na Idade Média). Pessoa fala na «nossa grande tradição
arabe – de tolerancia e de livre civilização. E é na proporção em que formos os mantenedores
do spirito arabe na Europa que teremos uma individualidade àparte» (Ibéria: 71).
Publiquei em Abril de 2012 (p. 40) um fragmento que até hoje é o único documento publicado
em que Pessoa menciona a palavra Islam, falando do fundo psíquico-civilizacional da alma
ibérica: «Na Iberia o fundo desappareceu ante a christianisação. Quando chegou o Islam, esse
fundo emergiu». O autor parece aqui trabalhar na ideia de que o fundo psíquico-civilizacional
comum aos povos ibéricos – cuja redescoberta seria da maior importância para a atuação
duma «confederação espiritual» ibérica – encontrou as condições para reaparecer apenas pelo
surgir do Islão na península, depois do domínio católico que tinha causado uma
«despersonalização da Ibéria», ou seja uma perda de sentido de identidade (Ibéria: 17, 56).
Acho estas considerações de Pessoa muito relevantes: um autor ocidental, moderno e de
cultura cristã (se bem que não-católico) afirma a familiaridade duma parte da Europa com a
civilização islâmica e elogia a tolerância, a liberdade e a riqueza intelectual que esta civilização
trouxe para a Europa. A atualidade e a profundidade destes fragmentos são desarmantes,
como muitas vezes acontece em Pessoa. De facto, refletirmos sobre estas afirmações podia,
quiçá, favorecer uma maior consciência coletiva das profundas ligações culturais e humanas
que têm caracterizado as relações entre a Europa e a Civilização Islâmica, relações que
infelizmente costumam ser representadas univocamente como conflituais, embora não o
tenham sido totalmente. Neste sentido, a obra de Pessoa dialoga com as obras de Nietzsche,
Goethe e outros poetas e pensadores ocidentais que admiraram aspetos da cultura islâmica
e/ou que tentaram elaborar e incluir estes aspetos nas suas obras.
No que diz respeito ao interesse de Pessoa por Khayyām, este parece manifestar-se na escrita
pessoana a partir de 1926, mas na realidade a presença do persa foi constante durante grande
parte da vida intelectual de Pessoa, como evidenciam esboços de projetos guardados no
espólio e ainda várias leituras feitas pelo autor já nos anos anteriores. Por isso, a presença de
Khayyām dialoga, implicitamente ou explicitamente, com vários ciclos textuais da obra
pessoana (Livro do Desasocego, poesia ortónima, odes de Ricardo Reis, etc.).
Dum ponto de vista estético-literário, a figura literária do vinho, o tema da mulher, a presença
constante do Fado e um certo epicurismo acercam as Rubaiyat de Pessoa aos poemas de Reis
mais do que ao resto da produção poética pessoana. Talvez não falasse duma influência
unívoca de Khayyām em Reis, mas sim duma presença de temas e dum tom estético por vezes
comum aos dois ciclos textuais pessoanos, que poderão ter tido recíproca influência entre
eles. No que diz respeito à(s) filosofia(s) intrínseca(s) às Rubaiyat pessoanas, acho que esta(s)
dialoga(m) mais com o Livro do Desasocego do que com as odes de Reis.
4. Sabemos do interesse de Pessoa pelo esoterismo - e sabemos também que grande parte
dos textos esotéricos ainda se encontra inédita. O Fabrizio encontrou influências esotéricas
orientais no espólio que ainda não sejam conhecidas? Em continuidade: em que medida foi
Pessoa marcado pelo espiritualismo/esoterismo oriental, por correntes como o sufismo?
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Abordar o tema do “esoterismo” em Fernando Pessoa não é simples. Acho que quem
trabalhar este argumento teria sempre que distinguir os conceitos de esoterismo e de
ocultismo – conceitos que Pessoa parece globalmente utilizar como sinónimos, embora não o
sejam – e ainda de espiritual, espiritualista e psíquico. Não é esta a sede para fazermos isto,
mas acho pelo menos oportuno distinguir entre um corpus pessoano mais ocultista, isto é,
mais ligado a ideias e práticas astrológicas, mágicas, mediúnicas e “obscuras”, um corpus
pessoano de escritos sobre esoterismo, ou seja sobre o ensinamento interior das tradições
religiosas e espirituais, e ainda outro corpus, que eu chamaria de quase-místico, contendo
textos mais caracterizados pela tensão amorosa e luminosa para o Absoluto (preces, poemas
devocionais, etc.). No Livro do Desasocego (p. 307) lê-se: «Estou quasi mystico, com eles [os
místicos], ao fallar d’elles, mas seria incapaz de ser mais que estas palavras escriptas ao sabor
da minha inclinação occasional». Faltando ainda uma edição crítica e um estudo rigoroso que
fixe os critérios mais objetivos para tratarmos destes assuntos, vou utilizar aqui o adjetivo
“esotérico” sempre entre aspas, em relação a Pessoa, até porque ele próprio parece ter
utilizado mais a palavra ocultismo do que a palavra esoterismo.
Agora, falando de Oriente no contexto deste discurso sobre Pessoa e o “esoterismo”, junta-se
mais um aspeto de complexidade que a crítica teria que considerar, tal como fazem Rui Lopo e
Duarte Braga. Trata-se do papel do orientalismo (a representação europeia e imperialista do
oriente, segundo Edward W. Said) na formação biobibliográfica e na obra de Pessoa, neste
caso em relação aos escritos sobre religião e espiritualidade. Tomando por exemplo um caso
extremo, como tentei mostrar num artigo sobre Pessoa leitor de Theodor Nöldeke, a visão
pessoana do Sufismo e do Hinduísmo foi marcada, em algumas fases da obra, pela leitura de
ensaios orientalistas que veicularam interpretações muito pouco rigorosas sobre estas
tradições, por razões culturais e políticas. Apesar disto, provavelmente uma mensagem Sufi
mais autêntica chegou a Pessoa através da leitura de algumas traduções inglesas da poesia
persa.
Existem várias páginas lidas e sublinhadas por Pessoa na Biblioteca particular dele, que
testemunham algum interesse de Pessoa sobre o Sufismo (o esoterismo e misticismo islâmico)
no contexto dos estudos do autor sobre Khayyām (que admirava o Sufismo) e sobre a
civilização islâmica, estudos muitas vezes dirigidos à produção de Rubaiyat e ainda à realização
de projetos textuais sobre o persa, sobre o sensacionismo, o neo-paganismo e a Ibéria. Pessoa
leu poemas de Rūmī tal como de outros Sufis, sobretudo persas tal como Hāfiz e Sa'dī, cujos
nomes são mencionados também em documentos do espólio pessoano, e julgo que haja um
eco de sabedoria Sufi pelo menos nalgumas Rubaiyat de Pessoa inspiradas pela poesia Sufi e
pelas Rubaiyat de Khayyām traduzidas por FitzGerald (onde parece-me manter-se uma voz Sufi
apesar do tom orientalista, junto a outras diferentes vozes, às vezes contraditórias entre elas).
Refiro-me a Rubaiyat pessoanas como esta: «São velhas as estrellas, ellas são / Grandes. Velho
e pequeno é o coração, / E contém mais do que as estrellas todas, / Sendo, sem spaço, mais
que a immensidão» (Rubaiyat: 44). Aqui ecoa a mensagem dum dito tradicional Sufi sobre o
facto que o coração do verdadeiro crente (o místico) pode “conter” o Divino – ou seja o
Infinito, o Absoluto – mais do que podem o céu e a terra, sendo este um tema que inspira
frequentemente a poesia Sufi, cuja mensagem chegou a Pessoa também através de Khayyām,
quando este afirma: «O Hearth [...] The Throne of God is thy seat» (CFP, 8-662 MN: 50).
Além disso, é lícito supor que, se houver uma «emergencia do spirito arabe» no pensamento e
na obra pessoanos, então haverá uma emergência (direta ou indireta) de aspetos da
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espiritualidade islâmica e do Sufismo no pensamento e no corpus quase-místico de Pessoa.
Este Pessoa quase-místico foi autor de escritos que manifestam uma aspiração espiritual, que
imagino tenha sido por vezes sincera e não meramente ficcional. Estas páginas podem ser
estudadas numa ótica comparatista com alguma produção Sufi, sobretudo considerado o facto
que Pessoa se interessou pela literatura e pela espiritualidade islâmica.
Tentei abordar um aspeto desta possível comparação num estudo dedicado às relações entre
imaginação e misticismo em Pessoa e Corbin, figuras que já tinham sido acercadas por outros
investigadores (por exemplo, por Dalila Pereira da Costa), mas nunca a partir dum estudo
preliminar, esclarecedor da presença arábico-islâmica em Pessoa, no espólio e na biblioteca
particular. Há uma semelhança entre algumas considerações de Pessoa e de Corbin sobre as
implicações gnosiológicas e místico-esotéricas da utilização das faculdades imaginativas no
contexto da espiritualidade. A insistência com que Pessoa inclui o elemento sonhador e
imaginativo «árabe» na íntima constituição da alma portuguesa, a presença de Ibn Qasyī
(personalidade muçulmana do Gharb al-Andalus, hoje território português) nos textos do Sufi
andaluz Ibn 'Arabī e de Corbin sobre o mundus imaginalis, e ainda outros elementos histórico-
culturais, tudo isto justifica uma abordagem deste tipo e deixa supor que a espiritualidade
islâmica-andaluz, sendo uma das presenças da história religiosa de Portugal, tenha influído
indiretamente na alma e na cultura, não só do país, mas também de Pessoa.
Para finalizar, talvez não seja ainda possível indicar a medida certa da presença do Sufismo em
Pessoa. Todavia existem razões suficientes para afirmar que, apesar do orientalismo e de
outros fatores de complexidade, há uma presença da sabedoria Sufi no conjunto das
influências histórico-culturais, religioso-espirituais e biobibliográficas que vivem no
pensamento e na obra de Fernando Pessoa.
5. Sei que a sua investigação está muito ligada também às leituras efetuadas por Pessoa
neste âmbito. O que leu ele a este respeito e que relação direta ou indireta existe entre as
leituras e a sua produção literária?
As leituras de Pessoa sobre a civilização arábico-islâmica foram relativamente poucas, se
comparadas com o número total dos livros lidos pelo autor, mas algumas foram muito
significativas no que diz respeito à presença direta destas no espólio e na obra editada. É
suficiente pensar nas Rubaiyat de Khayyām traduzidas por Fitzgerald – cuja cópia guardada na
CFP foi um dos livros mais lidos, anotados e traduzidos por Pessoa – e ainda num volume do
orientalista alemão Theodor Nöldeke, cuja presença na obra pessoana estudei num artigo
publicado na revista Pessoa Plural. Em ambos os casos a relação entre espólio e biblioteca
particular é direta e bem documentável, constituindo apenas um pequeno exemplo das
importantes ligações entre estas duas “arcas” de Pessoa.
Voltando ao tema das relações entre cultura europeia e cultura islâmica e falando apenas de
estudos que já publiquei, acho importante mencionar a relação indireta entre a obra pessoana
e livros de autores como Dante Alighieri e Thomas Carlyle. Trata-se de volumes em que Pessoa
sublinhou comentários sobre temas da cultura e da espiritualidade islâmica, temas que Pessoa
elaborou em textos sobre os «árabes». Estou a falar da presença da cultura islâmica na Europa
medieval, tema presente nos ismos pessoanos, e ainda de algumas características da doutrina
islâmica, tal como a submissão do humano a Deus, que tiveram um lugar na elaboração do
tema do fatalismo em vários ciclos textuais pessoanos. © Fabrizio Boscaglia, Lisboa, 2012.