20
1 - A entrevista a Ana Mascarenhas em Torre de Gente t o r r E d e g e n t e A ENTREVISTA Diego Martínez Lora - [email protected] Ana Mascarenhas 01 Março 2011

Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Entrevista, fotos e excertos dos livros Louca Sensatez e Em Carne Viva de Ana Mascarenhas.

Citation preview

Page 1: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

1 -

A e

ntrevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

t

o

r

r

E

d

e

g

e

n

t

e

A ENTREVISTADiego Martínez Lora - [email protected]

Ana Mascarenhas

01 M

arç

o 2

011

Page 2: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

2 -

A e

ntrevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

Page 3: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

3 -

A e

ntrevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

Como se refl ectem os teus estudos de Literatura na tua escrita. Sentes que estás a evoluir?

Sem dúvida. Aliás, o regresso aos estudos será um regresso permanente. Ao contrário do que se costuma dizer, o saber ocupa sim, um lugar, a mais que não seja, o lugar da ignorância. Os estudos têm-me permitido uma melhor refl exão com e na escrita, tenho aprendido a desenvolver e a clarifi car melhor as minhas ideias e os meus ideais de vida.

Como actua a autocrítica em ti?

Cada vez pior… ou melhor, não sei!Sou cada vez mais exigente, não consigo escrever apenas um único tema, tenho obrigatoriamente que variar, escrevo temas amorosos e desastrosos, reais e irreais, verídicos e fi ctícios, mas são sempre temas que requerem alguma refl exão.A minha exigência pautou-se essencialmente com o que chamo “dar tempo à escrita”… não escrevo por escrever, escrevo quando sinto essa necessidade e dela nasce algo que, de uma forma ou de outra, me obriga a refl ectir sobre o que quero, de facto, escrever, coisa que não acontecia… há muito…

Quais são os comentários que gostavas ouvir dos outros?

Sinceramente, sinceramente… não me agrada ouvir apenas o “gosto” ou o “simplesmente belo”, gostava que me lessem com gosto de ler, que me criticassem de forma construtiva, como é óbvio, mas gostava de ouvir algo que não fosse apenas, o “adoro”… gostaria de ouvir algo como uma refl exão sobre determinado texto, enfi m… algo com que eu também me identifi casse ou aprendesse, ensinando, igualmente…

Qual é o teu sonho de (como) escritora?

Gostaria… sem sombra de dúvida de ser reconhecida como tal. Não, ser reconhecida para ser conhecida, mas, antes de mais, ser reconhecida pelo mérito, se é que o tenho… não sei, apenas os leitores o podem avaliar e para isso, é preciso lerem-me, estudarem-me, compreenderem-me, isso para mim era o sufi ciente, era mágico, era o reconhecimento do “esforço” de um trabalho pelo qual faço com gosto e por gosto.

Quais são as tuas principais motivações para escrever?

São várias, aliás, penso que já tive oportunidade de o dizer, mas, acima de tudo, é a vida. O que se passa entre nós, humanos, os sentimentos que nos percorrem, quer sejam justos ou injustos, mas é o sentido deste mundo que se inclui num universo que desconhecemos, mas

Ana Mascarenhas nasceu em Lisboa em 1969.Actualmente frequenta a Licenciatura em Estudos Portugueses e Lusófonos.Publicou Louca Sensatez (Editorial 100, 2009) e Em carne viva (Torre de Gente, 2010)

Page 4: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

4 -

A e

ntrevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

teimamos em julgar, que tão bem o conhecemos…

Quais são os prós e os contras duma rede social como o FB para um escritor?

São os mesmos que temos na nossa vida, afi nal, o que é uma rede social? É a nossa vida que, pode ser vivida socialmente palpável ou socialmente virtual… ambas são espelhos de ambas…

Os mal entendidos existem, os falsos amigos também, ele há igualmente os verdadeiros e, também, os esclarecimentos, as aprendizagens, o ensinamento… não passa de uma ferramenta de nova geração, a da comunicação, mas não é ela, a comunicação já o meio mais antigo e utilizado para uma boa plataforma de entendimento…?! O que muda? Apenas o meio…

O teu prazer de escrever é o mesmo que o de ler?

São prazeres distintos. O prazer sendo um sentimento não pode ser medido, quantifi cado, logo, é apenas sentido, logo é um prazer sentido mas distinto.

O que exiges dum escritor para poderes gostar do que escreve? Ética e estética:

Exijo acima de tudo conteúdo, através do conteúdo posso sentir a ética, a Alma…se escreve com ou sem Alma… ou, pelo menos,

se escreve com Alma de quem sente… a estética apenas se for e, como disse, através de uma beleza interior que transparece nas letras que solta…

Entre um poema e um romance: duas inteligências diferentes?

Sim… duas inteligências diferentes que se podem ou não cruzar dentro do mesmo autor, da mesma Alma, da mesma pessoa… no entanto, e, caso apenas uma se dê, apenas e só numa pessoa, não é por isso que essa pessoa seja ou não, mais ou menos inteligente, é apenas uma questão de alargar ou não horizontes…

Sentes que a autocensura diminuiu em ti?

De todo, aliás, está cada vez mais presente, pois, sinto que estou cada vez mais exigente comigo própria, logo, a autocensura acaba por ser uma consequência dessa exigência.

Estás ciente dos recursos literários que utilizas?

Perfeitamente. Tenho plena consciência que escrevo na 1ª pessoa, independentemente de se tratar de uma pessoa, terra, objecto ou outro… no momento em que escrevo, sou o que escrevo e descrevo. Uso muito a assonância, o paralelismo, os analogismos, a personifi cação e até a inversão, entre outros, claro.

Curiosamente, aqui há tempos pediram-me que escrevesse algo sobre a minha pessoa e, por incrível que pareça e,

Page 5: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

5 -

A e

ntrevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

pese embora escreva sempre na 1ª pessoa, não consegui escrever na 1ª pessoa mas sim na 3ª pessoa, talvez por se tratar de mim, não sei. Porque será?

Entre o espontâneo e o programado, entre a inspiração e o trabalho literário…

O que é espontâneo é natural, é a nossa Alma a pedir que se solte, é a aliança perfeita entre a inspiração e o trabalho literário. Não consigo escrever de forma programada. Aliás, estou a escrever um romance que me está a dar um especial gozo, porque não o escrevo seguido, de forma programada, escrevo-o quando a espontaneidade e a inspiração estão dentro de mim, chamam por mim…invocam a minha criação literária como se dela elas precisassem…para respirar, para viver…

Pensas que até agora “Louca

Sensatez” foi o teu melhor livro?

Não direi o melhor, mas direi diferente, único, singular, até porque por ser o primeiro, retrata temas delicadamente «chocantes» para mentalidades menos sensatas.

Quais são os teus escritores preferidos?

Póstumo é Fernando Pessoa. Gosto de o estudar de perceber a sua mente… foi um escritor complexo, inovador, criativo, raro até…

Recentemente póstumo e, como não

Page 6: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

6 -

A e

ntrevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

podia deixar de ser, Saramago. Foi um escritor polémico, algo que até hoje a igreja não entendeu, pois e, pese embora se tenha intitulado ateu, o facto de se questionar, de escrever sobre Cristo, a sua polémica… não deixa de ser um acto de acreditar em algo… algo que a igreja nunca quis ver… acho que, acreditava mais do que muitos padres, sacerdotes e pessoas que se intitulam crentes…

Obras menos complexas mas que nos fazem igualmente pensar, são as de José Rodrigues dos Santos, gosto do que escreve, da sua postura literária, da sua dedicação e investigação…

Estaria aqui uma eternidade a citar escritores da época clássica, romântica, modernista e até,

obviamente, contemporânea… são muitos…

Entre Saramago e Lobo Antunes?

São escritores diferentes. Enquanto Lobo Antunes dedicou mais as suas obras entre a Liberdade de Expressão (Antigo Regime) e o actual regime, Saramago escreveu sobre variadíssimos temas, desde temas históricos, como Cristãos vs Pagãos, como Filosófi cos e muitos outros…talvez pela sua natureza de origem humilde, sempre reivindicou a justiça social de uma forma ou de outra, nas suas obras literárias…

Existe uma escrita feminina?

Penso que já tinha respondido a esta

Page 7: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

7 -

A e

ntrevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

questão…e, citando o que respondi anteriormente, digo:“Não acho que as literaturas tenham

que ser femininas ou masculinas,

até porque a literatura não tem sexo,

mas existe uma clara tendência

para determinadas leituras serem

absorvidas por seres femininos e

outras por seres masculinos, no

entanto, e no meu ponto de vista,

toda e qualquer literatura é e deve

ser absorvida por seres de ambos

os sexos, como disse, a literatura

não tem sexo.”

A escrita é proporcional à insatisfação ou é o reforço da felicidade?

Ambas. A escrita é um acto solitário, biográfi co e narrativo. Revela-nos, acusa-nos e delata-nos. Mas, acima de tudo, a escrita é a arte de comunicar, revela a insatisfação e a felicidade alheia, mas igualmente nossa…

Como escolhes os livros quando estás com vontade de ler? Quais são os teus hábitos de leitura?

Actualmente e, devido à Faculdade escolho livros que me fazem pensar menos, pois, sinto a cabeça algo esgotada, mas o meu hábito de leitura é diário. Actualmente estou a ler “Memórias de Adriano” de Marguerite Yourcenar. Foi o que comecei a ler antes de começar o segundo semestre e espero terminá-lo em breve.

O que é o que mais te desanima na tua actividade de escritora?

A falta de aposta na Cultura… Todos os sucessivos Governos nunca apostaram na Cultura do nosso país, nem tão pouco as editoras, pois são meros ofícios de gerador de dinheiro, deveriam, ambos, entre outras instituições literárias, apostar mais nos novos escritores, na potencialidade que existe no nosso país, é um caminho difícil, penoso até, mas quando se escreve por gosto, tudo se torna ultrapassável…

Já escreves respeitando as pautas do novo acordo ortográfi co?

Confesso que não. Não porque esteja contra ou a favor, mas é mais fácil criar um novo hábito, do que tirar um, já criado.

Page 8: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

8 -

A e

ntrevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

Page 9: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

9 -

A e

ntrevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

Louca

Sensatez

Ana Mascarenhas

Editorial 100

Page 10: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

10

- A

en

trevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

SOU TUA, DESFRUTA-ME

Numa rotunda qualquer existem belas pedras ornamentadas pela natureza, durante a noite atraiçoa-te e vai buscar uma para mim.

Num campo denso escuro e longínquo, existem fl ores com temperamentos silvestres, presenteia-me um ramo com cheiro a papoilas e uivos de lobos.

Numa praia deserta de gente e acompanhada de areia cúmplice do mar, leva-me e possui-me como a terra desfruta do oceano.

Numas quaisquer escadas de via pública liberta-te e pega-me ao colo, rodopia-me e faz-me feliz.

No meio da multidão faz parar o trânsito e diz que sou tua e tu és meu.

São pequenas e infi nitamente diminutas, mas tão simples de fazer.Não requer dinheiro, não exige riqueza, não pede abundância.Nas mais pobres famílias até esta simplicidade rica em sentimentos pode coabitar.Basta sentir, experimentar e gozar.

Sou mulher de emoções fortes, excêntrica e egocêntrica, a extravagância e a personalização enfeitam-me a alma, seduzem-me o corpo e fertilizam-me a mente.

Quero sentir, vibrar e gozar. Estou viva goza-me e desfruta-me, usa-me e abusa.Quero emoções fortes permanentemente em toda a minha vida. Aproveita-as e usufrui-as.

Eu deixo, eu quero, eu permito. Só tens que ser tu e dizer-me baixinho e bem alto o quanto me amas com toda a minha excentricidade, autenticidade e cumplicidade com o meu ego, a minha vaidade e a minha postura em não saber me envergonhar diante de plateias recheadas de cobertura irónica que, apenas querem igualmente sentir, viver, vibrar e gozar o que eu assumidamente te suplico, te peço e te imploro que o faças sem pudor de te mendigar.

Vamos ser nós próprios como em tempos de paixões fortes vivemos e brincámos.Vamos ser cúmplices na vida e na morte, quebrar barreiras e monotonias.Vamos apenas ser o que sempre fomos e deixámos de o ser por a vida ditar que bom senso deve-se ter.

Eu não quero ter esse juízo.Eu não quero ter essa sensatez.Eu não quero ter esse discernimento.

Eu apenas quero loucura.Eu apenas quero paixão.Eu apenas quero extravasar.

Transborda-me de surpresas surrealistas e vamos ser um só, diferentes e únicos…

Page 11: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

11

- A

en

trevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

TENHO UM FURACÃO DENTRO DE MIM

Vi traços amarelos, estrada negra, visão escura, estava de noite.

Carreguei forte e feio no acelerador, ultrapassei sem destino carros com um propósito. Eu sem direcção estava e pus prego a fundo. Cerrei os pulsos, bati com força no volante, desafi ei o destino, e estimulei a morte. Cheguei à auto-estrada e já estava a 240 km/h, o gozo em enfrentar o perigo era demasiado forte para parar, queria adrenalina, gritar, esbarrar, estava possessa, louca de raiva, queria bater em tudo e em todos.

Aumentei o volume da música, estava sofridamente alta, assim a quis de maneira a poder acompanhá-la e não me conseguir ouvir. Gostava de sentir os agudos e gritei em agudo de maneira a quebrar os vidros e ninguém me ouvir.

Tinha um furacão dentro de mim, gritei tanto, mas tanto, que de repente deu-me outro desatino. Queria fazer uma travagem brusca mesmo a 240 km/h. Fiz e sabia que ia sentir o peso do perigo sem colocar em perigo ninguém e apenas eu. Foi um gozo sem igual, ri alto, gargalhei, gritei e mesmo assim nunca me consegui ouvir, pois a música estava forte, rasgava-me os tímpanos e vibrava completamente o carro que parecia querer sair das minhas mãos.

Parei numa vila sem nome e saí do carro, bati a porta com uma força tal que quase acordei a pouca população que habitava nessa vila. Descalcei-me e corri, corri e corri, corri tanto que a dor que sentia nos pés não me magoava mais, era tão boa a dor que sentia ao correr que me aliviou a tensão que senti durante todo o percurso que fi z.

Mas o furacão, esse ainda cá estava. Subi para cima do carro e coloquei-me de braços abertos, estavam fortemente esticados como se algo eu quisesse alcançar mas não podia.

Baixei-os e ancorei-me, coloquei as minhas mãos entre as minhas pernas e apertei-me, segurei-me forte e marquei-me com as próprias mãos. Coloquei-me de barriga para baixo para chegar dentro do carro, voltei a colocar a música bem alta e voltei a gritar. Eu não cantava, eu gritava, estupidamente parva estava e até me ria de ver o que todos diziam e pensavam que louca eu estava.

Haaaaaaaaa, é tão bom ser-se louca, eu gosto de fazer loucuras de dominar perigos, desafi ar destinos, romper barreiras e quebrar regras. Gosto de ter furacões dentro de mim, gosto de ver ciclones agitarem-se sem fi m, de sentir tempestades tropicais, de vibrar com o som das trovoadas, gosto de emoções fortes, gosto de quebrar monotonias e provocar devaneios, gosto de alimentar riscos e faço questão de fomentá-los.

Respirei fundo, bem fundo e resolvi sentir novamente o silêncio. Desliguei a música, saí de cima do carro e entrei para dentro dele. Estava calma, serena, como se nada se tivesse passado. Descarreguei o turbilhão de raiva que habitava em mim por questões que nem eu própria sabia, desfrutei o momento sozinha sem depositar em ninguém a fúria que sentia.

Page 12: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

12

- A

en

trevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

Agora estava tão calma, tão claramente serena que podia regressar e é utópico dizer, mas a contradição abateu-se em mim, pois de 240 km/h passei a 20 km/h em plena auto-estrada, mais um perigo que abordei sem muito me preocupar.

Cheguei a casa, abracei os meus fi lhos e iniciei a minha actividade de mãe como qualquer outro dia normal da vida de uma mulher.

A diferença estava só e unicamente no equilíbrio emocional que necessitei e dele fui buscar, deste modo, a harmonia e a estabilidade permitiu-me de forma serena ser novamente a

mulher exemplar, sem a loucura por explorar.

Page 13: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

13

- A

en

trevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

EMOCIONALMENTE ESGOTADA

Sinto a areia fi na e cristalina a queimar-me os pés, estou descalça e de chinelos em uma das mãos, a outra, afaga-me ao de leve o cabelo puxando-o para trás de modo a poder ver o que a brisa teima em cegar.

Estou de roupa leve, larga e clara, mas sinto-me pesada, sinto-me estupidamente cansada.Sinto um vazio incondicional como se no meio de uma multidão estivesse e ninguém conhecesse. Quero descansar, hibernar e apenas acordar quando a certeza tiver que um dia te vou encontrar.

Sinto-me desgastada, ando, vagueio, caminho e o rumo não o vejo, nem tão pouco o sinto, porque o calor desértico queima-me o corpo, incendeia-me a alma e põe-me a nudez à vista de quem quer ver o que não posso mostrar.

Apenas quero fechar os olhos, esquecer-me do mundo, esquecer-me de mim e de ti também.

Quando acordasse, estaria sem família, sem amigos, sem terra, sem ocupação, sem lazer, sem nada…nada mesmo, iria começar de novo, iria aprender de novo, iria errar de novo, iria chorar, rir, fantasiar e adormecer de novo.

Mas pelo menos iria ao teu encontro, iria lembrar-me que tu existes e que hoje eu teimo em esquecer-te.

Peço-te apenas uma coisa, uma só… não permitas que te denuncie, não permitas que te negue, nem tão pouco permitas que cerre fi leiras e te bata a porta. Não me deixes enlouquecer nem me abandones agora.

Deixa-me apenas deitar-me por breves momentos, deixa-me fechar os olhos e perder-me no calor desértico da surdez que necessito sentir.

Deixa-me ir ao teu encontro e sentir-te como quem sente a paz, deixa-me cair para conseguir descansar o cansaço que habita em mim.

Vou ao teu encontro, estou cansada e preciso de ti, estou fatigada e sem força.Vou ao teu encontro, espera por mim e embala-me até adormecer.Espera-me descanso… eu chamo-te e tu irás ao meu encontro.

Promete-me que não me abandonarás, mas apenas me acalentarás para dormir e não mais acordar, neste desértico povoado humano de gente só, de igual cansaço como eu.

Page 14: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

14

- A

en

trevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

Page 15: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

15

- A

en

trevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

Em

Carne

Viva

ANA MASCARENHAS

Page 16: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

16

- A

en

trevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

HOUVE UM DIA

Acordo a meio da noite e não te sinto. O vazio ao meu lado consegue até o meu corpo abranger.

Atinge-me a uma velocidade imprevista que, apenas nunca esperei que fosse acompanhada por alguém como tu. Alguém em quem depositei toda a confi ança para me fazer feliz, para de mim fazer a sua mulher, a mãe dos teus fi lhos, a tua amante e amiga, a tua confi dente e fi el depositária das tuas tristezas e angústias, alegrias e devaneios, loucuras e inquietações. Mas, um dia houve em que de mim gostaste. Amaste-me porque te senti assim, lutador e enciumado até de mim.

Houve um dia que em mim viste a menina por moldar, a menina inocente que querias para ti e me amaste apenas assim, com toda a minha energia, com toda a minha inocência, com toda a minha pureza de me ser assim, feliz e amada por ti. Houve um dia que em mim deixaste de me querer devaneada, o receio de me perder foi-se apoderando de ti e tu simplesmente me moldaste aos teus sabores, às tuas inquietações, às tuas alegrias que já eram poucas e até às tuas dúvidas, apenas porque duvidoso por natureza sempre foste e, de alguma maneira aprendeste a crescer com as dúvidas não só em ti mas também nos outros. Houve um dia que de tanto me quereres e de tanto receares me perder, aniquilaste-me como menina e mulher que por ti se apaixonou e tu por mim te apaixonaste. Fizeste de mim a mulher que te protegia e assegurava futuro certo, fi zeste de mim mulher com M grande que te agradava sem hesitar, fi zeste de mim mulher dependente apenas por te amar. Houve um dia que acordei e não te senti. O vazio ao meu lado conseguiu até no meu corpo tocar.

Atingiu-me como fl echas que me esventravam a alma, questionavam-me o meu “eu” e apenas sem resposta fi cava, por eu própria não saber quem algum dia fui e hoje apenas saber que o meu nome perdura, por me ter tornado somente tua. Houve um dia que acordei e não te senti, tentei abraçar-te com a alma dorida e com um grito de alerta, mas não te encontrei. De mim fugiste depois de me teres moldado à tua semelhança, depois de me teres feito chorar sendo a mãe dos teus fi lhos e, apenas me fugiste como a água das mãos escorrem, apenas fugiste de mim, mulher, amiga e amante, deixando apenas habitar-me como mãe, por a natureza nisso não permitir aniquilar. Houve um dia que fui feliz, talvez por ter sido inocente, talvez por ter sido menina, mas quando acordei não soube viver assim, só e desamparada, humilhada e até maltratada, não soube ser a independência de mulher moderna que sei ser, não soube ser a nudez que perante ti sempre fui, apenas porque um dia me amaste, me moldaste e agora me abandonaste. O que farei de mim sem ti?

Page 17: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

17

- A

en

trevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

UM QUARTO VIRADO PARA O CÉU

Um quarto recheado de sabedoria e sapiência.

Um quarto coberto de estantes e livros sem espaço para mais nada, mas eles permaneciam e empilhavam-se com gosto de serem lidos e relidos, livros e escritos, contos e histórias avolumavam-se neste pequeno espaço que nos dá prazer por sabermos nele permanecer. E nele igualmente nos amávamos, delirávamos sem cessar, por cima da sabedoria e da sapiência que nos dava o gozo de sentir o prazer por também nós sabermos presenteá-los com os nossos Eus.

Nós nos acalentámos, refugiámo-nos nesse espaço que apenas partilhamos com os nossos livros de louca insensatez, como nome de baptismo do nosso fi lho que nasceu sem querer, e fez viver quem nunca soube assim viver. Vivemos e estudamos, criamos e recriamos, acusamo-nos perante enormes plateias estudantis que nos fazem ser a alma adolescente que tudo faz e nada importa. E de seguida após cansativas e exaustivas provocações de querermos e não podermos, refugiamo-nos no nosso quarto, no nosso espaço recheado de livros e sabedoria e é lá que nos sabemos amar como ninguém, é lá que me possuis como jamais alguém me possuiu, como jamais alguém me acolheu, nesse teu mundo recheado de criatividade por descobrir, em que nem tu próprio te revês e apenas te sentes. E eu me devaneio por querer seguir-te, saber estar ao teu nível de tamanha lucidez de ternura que em mim permaneces e em mim depositas, como se fôssemos de facto a metade que nos faltava, que nos completava, que nos entendia e nos fazia estremecer em cada canto do mundo, em cada página solta, em cada letra suspirada por loucas sensatezes de ter uma única certeza, que é a incerteza que em nós habita. Apenas neste quarto, neste pequeno espaço recheado de sabedoria e ternura, de erudição e carinho, nos despimos na alma, por cima de livros e mais livros, como se deles precisássemos para nos alimentarmos e saciarmos esta fome que temos um do outro, como se fosse esta avidez de conhecimento, esta sede de sentir que nos acalentasse e ao mesmo tempo acalmasse o corpo e o espírito. Seremos assim, vivos na alma, despidos no corpo e sapientes no espírito. Seremos assim, amados por cima de livros e saberes, por cima de histórias e estudos, por cima de ti e tu de mim.

Page 18: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

18

- A

en

trevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

ÚNICOS

Estava vestida para arrasar. De saltos fi nos e bem altos, pernas esguias e vestido rasgado na frente, cabelo preso com jeitos de soltura, decidi ir em busca da emoção para viva me sentir.

A noite era ainda uma criança, entro num táxi para me dirigir em disfarce boémio a uma casa de estilo próprio de dança com par. Quando cheguei, paguei e tirei propositadamente uma perna para fora, para vislumbrar quem ali passasse. Tirei a outra e de seguida levantei-me para do táxi sair. Entrei por uma ampla porta guardada por dois fi ngidos cavalheiros, percorri um pequeno corredor estreito e escuro, mas de cor vermelha e iluminada com quadros de cores berrantes e corpos tocantes. Quando ao salão chego, observo calada e decididamente dirijo-me para o bar, para ali permanecer por breves minutos, até o ambiente me convidar para em outro lugar fi car.

Peço um Martini e acendo uma cigarrilha numa boquilha de ponta dourada. Ali permaneço e ali observo, ali me encanto e ali estremeço.

Estremeço por ter sentido um leve toque nas costas que me fez de imediato pensar, “és tu”. Olhei para trás e ali estavas, de olhos penetrantes em mim, como se me pedisses para te deixar tocares-me com a vontade que a música pedia. Os meus olhos em ti permaneceram e suplicaram desejo por ti com a dança em mim.

E assim foi, pegaste-me na mão e levaste-me para o meio da pista. A dança começou e a sedução aumentou.

Uma das tuas mãos agarrou-me com vigor as costas que sabias ser o meu ponto fraco, a outra vestiu um chapéu para dar cor às pernas que insistimos em cruzar.

Arrastaste-me para uma mesa e para lá me jogaste. Com uma cadeira de cabaret colocaste uma perna em cima da mesma e, em cima de mim desejaste-me por completo, como se num salão sem dança não estivéssemos e apenas no mundo a existência éramos nós.

Pegaste-me como se a leveza fosse feita pelos passos, deitaste-me e curvaste o meu corpo para trás, por cima da tua perna de modo a sentir-te sem medo de cair. Com uma velocidade estonteante, trouxeste-me de novo a ti e agora de cara a cara e de lábios quase tocados, o desejo do beijo é interrompido por novo passo que dita o modo como o desejo deve ser comedido.

O som silenciou-se e eu com a cumplicidade da surdez, fi quei no chão agarrada às tuas pernas, encostando a cabeça aos teus joelhos e pedindo sem falar, levanta-me e ama-me.

Ouviste sem voz o meu pedido.

Page 19: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

19

- A

en

trevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te

[email protected]

www.torredegente.com

Page 20: Entrevista de Diego Martinez Lora a Ana Mascarenhas

20

- A

en

trevis

ta a

An

a M

ascaren

has e

m T

orre d

e G

en

te