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Entrevista Le Goff

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Entrevista com Le Goff

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  • AE AC

    medievista Jacques Le Go[[ um dos principais expoentes da histria

    das mentalidades. Nascido na Frana em 1924, fonnou-se em histria e logo se integrou escola dita das (a palavra feminina)Annales, revista da qual atualmente co-diretor.

    Plesidente, de 1972 a 1977, da VI Seo da cole.Pratique des Hautes tudes, hoje cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, diretor de pesquisa no grupo de antropologia l\istrica do Ocidente medieval dessa mesma inStituio. Entre outras altas distines, Le Goff acaba de receber a medalha de ouro do Centre National de la Recberebe Scientifique (CNRS), pela primeira vez atribuda a um historiador.

    Boa parte de sua obra est ao alcance do leitor brasileiro, traduzida para o portugus (ver lista bibliogrfica no final da entrevista).

    Nesta entrevista, concedida em Paris em janeiro de 1992a MoniqueAugras, Le Goff sintetiza a sua concepo da histria, descreve a sua fonnao, e d um vibrante

    REVISTA COM UESLEGOFF

    depoimento sobre a constituio da Europa e a tarefa do historiador.

    - Ao receber a medaU,a de ouro do CNRS, o senhor definiu o hisroriador, em seu discurso, como um U especialista dos mudanas das sociedades" e disse que a [ullo da histria U inlroduzir alguma raciol/nlidade na histria vivido e na memrll". Mudanas, muitas vezes, significam crises. Como poss(vel introduzir alguma racionalidade no seio do tempestade?

    - possvel, pela mediao daquilo que hoje tem o nome rebarbativo de problemdtica. Como sabe, perteno tradio das AlUlilles, cujos fundadores, Lucien Febvre e Mare Bloch, definiram um tipo especfico de histria, a histria-problema. Isso fundamental para ns. Julgamos que o historiador tem o dever de colocarquestes como eixo do seu trabalbo. Em seguida, ele v como respond-Ias, apoiando-se naquilo que, claro, continua sendo o seu

    NDlIE. &lI entrevista roi transcrita, trldu:rid. e editad. por Monique Augru.

    E.studos Hist6r:os, Rio de Janeiro. vei. 4, n. 8, 1991, p. 262-210

  • UMA ENfR.EV1STA COM JAC'QUES LE GOFF 263

    material especfico, que so os doalmentos.

    Logo, o prprio fato de partir de uma questo problemtica j introduz alguma racionalidade. Depois, se o historiador pretende realizar uma obra cientfica - ainda que a histria seja uma cincia muito peculiar, acredito que seja uma cincia - tambm deve levar em conta o movimento da histria, a sua diversidade, sua irracionalidade, sua flexibilidade. Pessoalmente, tenho grande interesse na histria do imaginrio e, no imaginrio, h muita irracionalidade. Portanto, introduzir a racionalidade na histria no significa excluiro irracional, o impreciso, o flutuante, muito pelo contnirio. Significa que a gente tenta explicar as mudanas histricas a partir da resposta a uma questo que, por sua vez, racional.

    - No ac"" que a histria, como as demais cincias sociais, tem como um dos seus problemas fondamentais o fato de sempre propor interpretaes ex post faeto?

    - De pleno acordo, isso para mim essencial, eu diria at que uma das bases cientficas das cincias sociais e, particularmente, da histria. Penso - e olhe que eu no estou sozinho nisso - que o historiador se senle pouco vontade quando a gente cbega ao imediatamente contemporneo. Um dos motivos pelos quais muito difcil estudar a histria contempornnea que no sabemos o que vai acontecer mais tarde. preciso dizer isso claramente. Muitas vezes, os historiadores no querem assumir isso, colocam-se como se [os sem os descobridores da evoluo histrica. Nada disso! Eles devem partir daquilo que aconteceu para tenta r compreender como e por que aconteceu.

    Para mim, o fato de partir do ponto de chegada o que garante a seriedade do Ir.lbalho do historiador. Alm disso, h outras condies, outras qualidades, cla-

    ro, mas partir do ponto de cbegada me parece essencial. por isso que concordo com Mare Bloch, que denunciava "a idolatria das origens". Muitas vezes, os historiadores das origens fazem o caminho inverso. Parlem daquilo que comeou, e descem o rio. Ora, penso que se a gente se satisfaz em descer o rio, duas coisas podem acontecer. em vez de entender por que o rio corre, a gente acaba sendo levada por ele; ou ento, corre o risa> de perder o contato com o rio e ir para longe dele. O mtodo, o trabalho do historiador, a meu ver, consistem necessariamente em uma constante ida-e-volta entre passado e presente. Sendo que o presente obviamente o futuro. O futuro do passado.

    \bu citar uma frase conhecida, que foi repetida por vrios cientistas e, particularmente, pelo filsofo italiano Benedello Croce: "Toda histria contempornnea." O passado continua sendo interpretado, sempre uma leitura contempornnea que se faz e, na compreenso do passado, temos de illtegrar essa leitura renovada, sempre recomeada.

    -No se poderia aproximar essa observao da perspectica ali/Topolgica, quando, ao descrever sociedades OUIras, estamos retratalldo tambm a 1I0ssa prpria sociedade?

    -Concordo inteiramente, mas, vocsa be, h um nmero bastante grande de historiadores que discordam. Para mim, o ponto crtico que me permite distinguir os historiadores que pretendem renovar a histria daqueles que se satisfazem com a histria tradicional. Acredito que, tanto na antropologia como na histria, h esse movimento de ida-e-volta. claro que as sociedades de que trata o historiador no so as mesmas sociedades que o antroplogo estuda, e mesmo quando eles acabam pesquisando as mesmas sociedades -o que acontece cada vez mais - eles tm pontos

  • 264 ESTUDOS HISTRIOOS -199118

    de vista um tanto diferentes. O que os aproxima sobretudo o fato de ambos oonsiderarem as sociedades de modo global, sem fragllk!nt-las oonfonne OS velbos escaninbos da histria tradicional.

    - A "nova histria" parece ter obtido grande sucesso junto ao pblico cllllo. Mas, enlre os historiadores, ser que no est ocol/endo uma reao contrria?

    - Est ocorrendo sim. Em primeiro lugar, h um certo nmero de historiadores, com seus discpulos - nisso conoordo oom a teoria dc Bourdieu, da reproduo, eles vivcm se reproduzindo! -que pennanecem hostis "nova histria" (entre aspas, por favor). E houve tambm certa reao, que pe em evidncia a presena de ouas OOtrentes paralelas. Os "novos historiadores" (no gosto muito desta terminologia, que me parece inutilmente provocante, mas no sei como substitu-la) esto voltando para um certo nmero de orientaes que haviam deixado de lado oomo, por exemplo, a histria poltica. Mas acredito que esto renovando esse tipo de histria, j que lhe esto aplicando a experincia, o mtodo, j elahorados em outras reas. No vou me deter nisso, mas no tanto a histria fl poltica, como a histria do poltioo, do poder, que por exemplo atribui importncia, a meu ver justificada, dimenso simblica do poder ctc.

    R portanto um retomo, que de fato uma renovao, que poderamos at chamar de renascimento. Mas h tambm uma histria poltica vcrdadeirameme reacionria, que volta para os velhos tipos, que se interessa essencialmente pelos acontecimentos, pelas instituies, e pelos gra ndes hollk!ns. Continua grassando. Veja por exemplo a biograr ... Hoje em dia, h uma biografia renovada que se processa, que est comeguindo superar a oposio entre grandes homens e sociedade. Mas h tambm biografias que so pura e simplesmen-

    te reacionrias, anedticas, narrativas, de um psioologismo que no leva a nada! Na Frana, est ocorrendo um fenmeno bem significativo. H uma editora, qual estou ligado - fao questo de dizer, a Fayardque publica grande nmero de biografias. Pois bem, publica tanto biografias renovadas, ao novo estilo, como biografias ultratradicionais.

    -Falando em biografia, poderia dizer algo de sllas origens familiares eCII/turais? O seu sobrenome breto?

    - Sou breto por parte de pai e provenal por parte de me. Nasci em Toulon e passei toda a illfncia e a adolescncia na Provena, em Toulon e depois MarseiUe. Depois da guerrJ fui para Paris de onde no .

    .

    -mais sal, a nao ser para passar um ano em Oxford, para trabalhar em um college, e outro alio lia Escola Francesa de Roma, da qual fui membro. Meu pai era professor de ingls no liceu e minha me, professora de

    plallo.

    - Por qlle a histria?

    - Minha me era catlica muito praticante, meu pai era anticlerical muito feroz, e o casamento deles foi excelente, da tive de refletir sobre isso, o que me levou histria ...

    - Como assim?

    -TIve de rcfletirsobre o fato de que no se pode fazer histria a priori, porque se algum tivesse colocado essa questo sem verificao, teria concludo ser impossvel existir um casamento bem ajustado entre esses dois tipos de pessoas, e no entanto, esse casamento deu muito certo. Vi que o mundo da scnsibilidade, das mentalidades, dos comportamentos, era um mundo muito peculiar. Se o problema fosse colocado do ponto de vista das idias apenas, a resposta

  • UMA El'nREVISTA COM JACQUES LEGOFF 265

    teria sido: OIsamento impossvel. Mas homens e mulheres so minimamente dirigidos por idias. Eles so condu7Jdos por sensibilidades, por mentalidades, e por isso que acho excelente ter inventado uma "histria das mentalidades", que nos permite compreender melbor o que acontece, e o que aconteceu nas sociedades.

    -Porque a Idade Mdia?

    -Sabe que no sei ao certo? S sei que, muito cedo, eu devia ter uns 10 anos, j queria estudar histria. Lembro que logo foi a Idade Mdia que me interessou mais. Vejo duas influncias muito importantes. A primeira foi de um professor do 3 ano ginasial, eu estava com 13 anos, c ele me levou a gostar ainda mais da histria. Naquele tempo, no 3 ginasial, a gente estudava a Idade Mdia. A outra influncia foi o fascnio pelos romances de Walter SeOIl. Neles, no encontrava apenas o exotismo que obviamente seduzia o adolescente, mas tambm devo dizer que j percebia em Walter SCOII uma verdadeira atitude de

    .historiador. Via-o como historiador, porque ele procurava dar uma explicao do funcionamento das sociedades das quais falava.

    Por exemplo, o mais clebre, entre ns, dos romances de Walter Scotl,lvallO, d uma explicao da histria que se situa na perspectiva da oposio entre normandos e anglo-saxes. H no romance uma problemtica da histria. H um certo nmero de outros fatos que recebem tratamento literrio, claro, mas com uma carpintaria que digna de um historiador. Por exemplo, o papel dos judeus, a importncia e a significao dos torneios etc. etc. Essa obra no s me levou a amara Idade Mdia do ponlo de vista da licor local", mas me reforou na opinio que h um certo nmero de fenmenos essenciais que em grande parte explicam como viveram os homens, como funcionaram as sociedades.

    -o sellhor COSnlma afirmar que a Idade Mdio comea 110 sculo II e acaba 110 sculo XlX. Por que o sculo XlX'?

    - A periodizao dos historiadores essencialmente fundamentada na histria das sociedades ocidentais. Por ocidentais, entendo tambm as sociedades geradas pelo Ocidente, como o caso, claro, das sociedades americanas. A dominao dos conquistadores foi tal que, ainda que alguns elementos indgenas tenham sobrevivido, a marca essencial dessas sociedades uma marca ocidental. Digo que as sociedades ocidentais sofreram choques determinantes no decorrer do sculo XIX. Sem estabelecer uma ordem hierrquica entre eles, posso enumerar alguns desses fenmenos: em primeiro lugar, o choque tecnolgico, as descobertas, claro, a revoluo industrial; e tambm o choque social e poltico oriundo em grande parte da Revoluo Francesa que, acredito, marcou o fim de um mundo e o comeo de outro. Emhora certos grandes pensadores, tais como Tocqueville, vejam tambm as continuidades do Antigo Regime na Revoluo, a modificao me parece fundamental. A mesma coisa acontece no campo religioso e no campo cultural.

    'Iklltando ao campo econmico, digamos, h um fenmeno ao qual atribuo grande importncia, que a fome(famine). As grandes fomes so tpicas da Idade Mdia e da poca moderna, e vo at o fim do sculo XVIII. Elas expressam um estado arcaico da economia rural, mas implicam tambm um tremendo abalo mental. No sculo XIX, h fome ainda em certos pases da Europa, na Rssia por exemplo, mas no conjunto esse fenmeno no existe

    mais. No campo cultural, vejamos o caso de

    instituies que aparentemente mantm a continuidade, como a instituio universitria. Ora, se a continuidade permanece em certos pases - na Inglaterra, por exemplo,

  • 266 ES11JDOS HlSroRIOOS - 1991"

    Oxforde Cambridgeno mudam-naFrana ocorre a ruptura da Revoluo e do Imprio, com grandes modificaes na instituio universitria. Mas, sobretudo, no inicio do sculo XIX, aparece um novo modelo, o da Universidade de Berlim, e e

  • UMA I3N1REVlST A COM JACQUES LE GOFF 267

    considero que a metodologia e a epistemologia so important&Simas. Mas a filosofia, no.

    Uma das poucas excees que eu faria, seria em relao a Michel Foucault. Eu o freqentei bastante, conversamos muitas vezes, mas aoedito que ele foi um caso raro: tomou-se historiador, permanecendo msofo! Creio que se Michel Foucauh pde ser Io importante para um historiador como eu -e no estou sozinho ni&so porque ele se tinha tomado um historiador.

    Em compensao, no sou chegado aos ftIsofos. No nego que haja nisso uma grande parte de preconceito. Acabo agora de descobrir -alis, estou me perguntando se j o tinha lido antes, e registrado inconscientemente-pois bem, eu que tenho tanto interesse pelo imaginrio, h quinze dias me deparei com um texto de Bachelard, o filsofo, totalmente empolgante, a esse respeito! Isso significa, provavelmente, que a minha reserva em relao aos filsofos um tanto exagerada. Mas quando falo neles, penso sobretudo nos metafsicos, que se apresentaram como a quinta-essncia dos ftJsofos. Ora, devo dizer, nem Plalo, nem Descartes -que admiro muito -, nem Hegel - que no suporto -, nem Niel2scbe - ainda que muitos ftIsofos agora o considerem como o pai da ftlosofia, e que eu acbe seus textos muito belos -, nem Heidegger-deixando de lado qualquer implicao ideolgica -, nenhum deles me parece interessar ao historiador. De fato, me provocaram verdadeira repulsa.

    Alm de Michel Foucault, no entanto, h um ftIsofo vivo, contemporneo, que

    escreve COISas extremamente Interessantes sobre o tempo. Paul Ricoeur.

    -Em suo formao universitdria, quais foram os mestres l[IIe o impressiollaram?

    - Devo confe=r que no so muitos. Os professores da Sorbonne me decepcio-

    naram muito. Apesar disso, l tive um mestre pelo qual tenho muita gratido e muito respeito, Cbarles Montperrin. Ele me deu sobretudo rigor metodolgico, mas no foi ele que influenciou a minha concepo da histria.

    Devo honestamente dil.er que no fui discpulo de Braudel. Eu o conheci muito de perto em certa poca, de 1960 a 1972, (reqentei- 8&siduamente, fiquei impressionadssimo com o que ele dizia, mas assisti muito pouco s suas aulas. Sua tese sobre o Mediterrneo despertou minha admirao mas, por a&sim dizer, acbo que eu j estava fonnado naquela poca.

    Resta algum que, em definitivo, foi meu nico mestre no sentido pleno da palavra. Por vrios motivos, um historiador pouco conhecido, Maurice Lombard. Era especialista do !sIo, i&so pode parecer esquisito, mas era o principal medievista da VI Seo da coleNationale des Hautes tudes c, embora trabalhando em campos distintos, tivemos contatos estreitos. A sua viso da histria, no que diz respeito s relacs entre as sociedades no tempo e no espao, teve grande importncia para mI1l, a&sim como os seus mtodos de anlise da cultum, tanto cultura material como cultura no sentido de civiliza"do. Lembro por exemplo de um curso deslumbrante que ele deu sobre os palcios do mundo muulmano. L ele marcou mesmo, foi um mestre.

    Infelizmente, Lombard era rigoroso demais, exigente e delalhista demais, s publicou uns poucos artigos. Houve um manuscrito dele que foi publicado, um livro belssimo, L 'Is/am dalls 50 premiere gralldeur. Mais tarde publicaram tambm notas de aulas, acho que foi uma pena, porque ele no teve a oportunidade de fazer a reviso. Por i&so tudo, ele permanece pouco conhecido, at no seu campo especfico ficou um pouco margem. Mas para mim , de longe, o grande mestre.

    Fui aluno de Lombard e, mais tarde, ele teve a bondade de me tomar como seu

  • 268 ESllJOOS IUSTORlCOS -1991J!1

    assistente. Nesse meio tempo fui, durante CIVXl anos, professor-assistente na UnivelSidade de Lille, e l pude acompanhar um excelente historiador, Michel Mollal. Ele me ensinou que o verdadeiro historiador um historiador completo. Michel MoUatlIatava igualmente de histria econmica, de histria das tcnicas, histria religiosa... Foi um grande historiador das navegaes, fez sua tese sobre O comrcio de Rouen, alis fora aluno de Marc Blocb. O seu outro grande campo de pesquisa eram os pobres, o ideal de pobreza, e isso para mim foi muito animador, muito estimulante, de ver que a histria podia ser, de maneiIa to boa, histria econmica e tambm religiosa. Estou convicto de que, para compreender determinada sociedade em determinada poca, preciso o esforo de oonbec-Ia em todos os seus aspectos.

    - O que nos leva interdisciplillorillde.

    - isso mesmo. essa a linha das ANIIlles, com a noo de histria total ou histria global.

    - Mudando um pouco de perspectiva, consta que o seflOr trabalhou jUlllo com algumas empresas, e particularmente a RATP (Administrao dos Tra/lSpartes Parisienses). Em que cO/lSistia. a suo atuao?

    -Ainda estou IIabalbando com a RATP. Fui solicitado, de modo surpreendente, pelo diretor geral adjunto, que sabia mais ou menos o que eu estava fazendo. Eu tinha acabado de publicar um volume sobre a histria da cidade medieval, e parece que foi isso que o incitou a me procurar. A RATP estava iniciando uma semana de renexo sobre a cidade. Eles estavam interessados nos usurios dos transportes parisienses, e achavam que para entender Paris, a pelSpectiva histrica era muito im-

    ponante. O que acho notvel que no foram convidar apenas historiadores oontemporneos, nem, o que seria evidente, socilogos ou psiclogos, mas chamaram um historiador do passado. Julgaram que, em Paris, a presena do passado era tamanha, que devia ser levada em conta para esclarecer a relao do fenmeno urbano com a pessoa do citadino. Realizamos trs colquios, e durante quatro anos participamos de seminrios mensais compostos metade de tt1licos dos transportes e metade de pesquisadores, historiadores, gegrafos etc. Era apaixonaote. Deu para entender que a histria, pela sua prpria renexo e seu papel na cidade, s pode enriquecer-se ao trabalhar junto oom o mundo das empresas.

    -E a Europa?

    -Penso que o contato, o dilogo com os outros fundamental. um dos motivos de minha satisfao hoje, quando me dirijo aos pesquisadores brasileiros, que representam outro mundo, longe daqui, importante e apaixonante.

    A Europa tambm o outro, o estrangeiro prximo. Alm disso, no meu trabalho de historiador da Idade Mdia, nunca pensei limitar-me a um s pas. Para mim, a realidade histrica era a cristandade, isto , a Europa crist, latina e romana. A constituio da Europa deve levar em conta aquilo que tambm separava os povos, as naes, os estados, aquilo que os levava ao confronto. No acho que seja possvel construir um conjunto, como dizer? artificial. Vou tomar como exemplo o esperanto: um fracasso lingstico. Muita gente simptica ainda a favor do esperanto, mas o fato que o esperanto no deu certo. uma pena, mas no deu. No faremos a Europa nesses moldes. No faremos um pasesperJnto.

    Estou muito apegado herana europia, mas no concebo esta herana como

  • UMA ENTREVISTA COM JACQUES USGOFf 269

    situada em oposio aos outros grandes mnjuntos que existem no mundo: conjunto muulmano - alis, h muitas coisas muulmanas na Europa -, conjunto asitim, ou mnjuoto americano. Nesse ltimo OIS0, insisto, o conjunto americano , em grande parte, oriundo da Europa. Penso at que a mnstituio da Europa vai propiciar melbores dilogos com os demais conjuntos internacionais.

    verdade que vrios projetos, antes animadores, no esto indo muito bem das pernas. As ideologias esto em crise. O socialismo acabou completamente desmoralizado pela sua fomla sovitica. Verificamos que ainda h terrveis injustias, muita violncia, e porconscguinte estamos nos desiludindo. O capitalismo tampouco nos traz satisfaes. Para a maioria das pessoas, mais fcil viver em regime capitalista do que comunista, mas vemos, com todo esse desemprego, que no o regime ideal.

    Alm da crise das ideologias, h tambm ameaas concretas. Falando como cidado e no apenas como historiador, em meio a todas as injustias, todas as desgraas que h no mundo, da fome tortura, h, na prpria Europa, duas fontes de grande preocupao. A primeira, que nova, embora O historiador j pudesse prev-la, o despertar das nacionalidades sob forma de um nacionalismo exacerbado. Acredito na legitimidade das naes e de certos nacionalismos. Para certo nmero de povos, a independncia que no tiveram no sculo XIX nem no sculo XX obviamente um progJesso. Mas que isso se faa - no podemos deixar de pensar na Iugoslvia -na violncia e no dio, terrvel, arrasador. A segunda preocupao, ainda que eu permanea otimista, a efervescncia racista, e aqui na Frana, particularmente. Para mim, um retrocesso no movimento da histria, o contnirio daquilo que permite que os franceses se sintam relativamente satisfeitos com eles prprios, apesar dos

    episdios negativos que tm em sua histria, como todos os povos. uma grande tristeza, tanto para o historiador como para o cidado, ver q uc COiS.1S insatisfalrias de nossa histria so recuperadas, proclamadas, reivindicadas. Aquela gente, para mim, a anti-Frana.

    Estou muito preocupado com a juno de tantos movimentos turvos do passado em um s. Aqui, estamos confrontados com um problema gravssimo, que dizrespeito s relaes entre democracia e ditadura. Receio, num futuro prximo, as ameaas dos totalitarismos e dos racismos. Ainda que o estudo do movimento da histria possa mc conrortar, mc tranqilizar quanto Sua evoluo.

    - Apesar de rodos esses problemJlS, acha o balano posirivo, em relao cO/lSriruio da Europo?

    - lbdas essas dificuldades, o historiador j as conhece. Estamos em perodo de mutaes e toda mutao se faz na dor. Estou convicto de que um novo mundo est nascendo, um mundo apaixonante. Para mim, a Europa um grande projeto, onde podemos investir os desejos, os esforos, as paixes, pormeio das quais cada homem se deve investir na histria. No podemos assistir passivamente ao espetculo de nossa prpria vida. lemos de nos inserir modestamente no conjunto onde sentimos que h vontade de criao. isso, a Europa.

    A Europa s6 pode se constituir levando em conta a sua histria, assumindo tanto os conflitos, as oposies. como tambm aquilo que os estados tm em comum. E tm muita coisa em comum: a herana da Antiguidade greco-latina, a Idade Mdia, o Renascimento, o classicismol o iluminismo, o romantismo ... Thdo isso foi praticamente vivido de modo europeu, e nisso incluo a Europa do Leste. Penso que a Europa uma bela aventura.

  • 270 ESTUDOS I-USTRJCOS - 199118

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