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Epedagogia · 2020. 3. 29. · Diagramação e capa: Lucas Fontella Margoni Arte de capa: Detalhe do Retrato de Santo Tomas de Aquino, por P. Joos van Gent e Berruguetee O padrão

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Page 1: Epedagogia · 2020. 3. 29. · Diagramação e capa: Lucas Fontella Margoni Arte de capa: Detalhe do Retrato de Santo Tomas de Aquino, por P. Joos van Gent e Berruguetee O padrão

A eacutetica filosoacutefica em

TOMAacuteS DE AQUINO

Direccedilatildeo Editorial

Lucas Fontella Margoni

Comitecirc Cientiacutefico

Prof Dr Angelo Aparecido Zanoni Ramos

Profordf Drordf Maria Cristina Theobaldo

Prof Dr Luis Alberto De Boni

Prof Dr Aloir Pacini SJ

Saacutevio Laet de Barros Campos

A eacutetica filosoacutefica em

TOMAacuteS DE AQUINO

2ordf ediccedilatildeo - Revisada e Atualizada

φ editora fi

Diagramaccedilatildeo e capa Lucas Fontella Margoni Arte de capa Detalhe do Retrato de Santo Tomas de Aquino por P Joos van Gent e Berruguetee O padratildeo ortograacutefico o sistema de citaccedilotildees e referecircncias bibliograacuteficas satildeo prerrogativas do autor Da mesma forma o conteuacutedo da obra eacute de inteira e exclusiva responsabilidade de seu autor

Todos os livros publicados pela Editora Fi estatildeo sob os direitos da Creative Commons 40 httpscreativecommonsorglicensesby40deedpt_BR

httpwwwabecbrasilorgbr Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP) CAMPOS Saacutevio Laet de Barros A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino [recurso eletrocircnico] Saacutevio Laet de Barros Campos -2ordf Ediccedilatildeo - Porto Alegre RS Editora Fi 2017 347 p ISBN - 978-85-5696-251-5 Disponiacutevel em httpwwweditorafiorg 1 Eacutetica Filosoacutefica 2 Teologia Moral 3 Aristoacuteteles 4 Tomaacutes de Aquino I Tiacutetulo

CDD-170

Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico 1 Eacutetica 170

A Jesus Eucariacutestico agrave Santiacutessima Virgem

ao glorioso Santo Tomaacutes de Aquino aos meus amados e inestimaacuteveis pais Armando e Darci agrave minha querida e insubstituiacutevel madrinha Luzia Maria [in memoriam] agrave pequena Amanda

Rodrigues [in memoriam] garotinha digna de ser amada agrave minha diletiacutessima tia-avoacute Irmatilde Denise Marie [in memoriam] Irmatildes Azuis e aos mestres Prof Dr

Peter Buumlttner Prof Dr Joseacute Jivaldo Lima e Prof Dr Luiz Jean Lauand

Agradecimentos

Ao professor Dr Angelo Aparecido Zanoni Ramos e agrave Profordf Drordf Maria Cristina Theobaldo por ter-nos pacientemente orientado como tambeacutem pela valiosa amizade compreensatildeo apoio em todos os momentos e dedicaccedilatildeo ao ofiacutecio de ensinar de que somente satildeo capazes aqueles verdadeiramente dignos de serem chamados mestres

Aos examinadores Prof Dr Luis Alberto De Boni Prof Dr Roberto Hofmeister Pich e Prof Dr Aloir Pacini SJ que gentilmente cederam parte de seu valioso tempo para a leitura e avaliaccedilatildeo deste trabalho e ao Coordenador do Programa Prof Dr Tiegue Vieira Rodrigues pelo precioso auxiacutelio e atenccedilatildeo em todos os momentos ao Prof Dr Gabriel Mograbi ao Prof Dr Silas Borges Monteiro agrave Profordf Drordf Sara Pozzer da Silveira ao Prof Dr Wendell Lopes ao Prof Dr Walter Gomide ao Prof Dr Roberto de Barros Freire agrave Drordf Michella Lopes Velaacutesquez agrave Drordf Daniela Piau de Lima Maitelli ao Prof Dr Fabio di Clemente graccedilas ao qual comecei a tomar contato com a tradiccedilatildeo filosoacutefica italiana ao Prof Vito Nunziante (meu mestre de italiano) que pacientemente revisou vaacuterias das minhas traduccedilotildees e ao Prof Otaacutevio de Lima e Silva (meu professor de grego e revisor teacutecnico do grego deste trabalho) pelo apoio e inestimaacutevel auxiacutelio que sempre nos dispensaram

Aos meus pais amigos e colegas (em especial agrave senhora Nasla Rodrigues Gonccedilalves de Saboacuteia Campos pela receptividade a Joatildeo Paulo Martins Juliano Xavier e Fernanda Marcia da Luz Rondon) que muito nos auxiliaram e cujo incentivo ajuda praacutetica apoio moral e acolhida nunca poderatildeo ser suficientemente retribuiacutedos

Agrave CAPES agecircncia financiadora da pesquisa sem a qual o nosso estudo e este trabalho natildeo teriam sido possiacuteveis

ldquoConstatemos que mesmo para os contemporacircneos o

tomismo tinha um cariz propriamente filosoacutefico Possuiacutea tambeacutem um certo ar de Renascimentordquo

Paul Vignaux

ldquo[Tomaacutes] pensa que a razatildeo se se manteacutem aderente agrave sua ordem atinge a verdade ateacute onde eacute capaz sem depender em nada da feacuterdquo

Henry Dumeacutery

ldquoAgrave sua proacutepria maneira a Summa Theologiae eacute

uma obra-prima da literatura filosoacuteficardquo

Anthony Kenny

ldquoO mestre natildeo deve portanto fazer mais que levar o disciacutepulo ao conhecimento daquilo que lhe eacute desconhecido seguindo o mesmo

percurso pelo qual teria chegado sozinho (ou pelo qual outros chegam sozinhos) ou seja deve explicar com sinais apropriados (palavras) o percurso que a razatildeo eacute capaz de realizar sozinha A aprendizagem natildeo eacute portanto senatildeo uma forma de descoberta

guiada de fora e que sempre se apoia na proacutepria razatildeo natural do disciacutepulo

Se assim natildeo fosse isto eacute se o mestre natildeo confiasse nos princiacutepios naturais que estatildeo presentes nele como em seu

disciacutepulo esse uacuteltimo natildeo adquiriria verdadeiramente ciecircncia limitar-se-ia a crer em alguma coisa ou a

consideraacute-la verdadeira natildeo a compreendecirc-la ou desenvolveria feacute ou opiniatildeo mas natildeo exatamente ciecircnciardquo

Pasquale Porro

Lista de transliteraccedilotildees1 gregas2 Αα = Aa Ββ = Bb

Γγ = Gg Δδ = Dd

Εε = Ee Ζζ = Zz

Ηη = Ēē Θθ = Th (como no inglecircs think)

Ιι = Ii Κκ = Kk

Λλ = Ll Μμ = Mm

Νν = Nn Ξξ = Xx (como em taacutexi)

Οο = Oo Ππ = Pp

Ρρ = Rr Σσ = Ss

Σς (forma final) = Ss Ττ = Tt

Υυ = Yy (como o ldquourdquo francecircs) Φφ = Ff

Χχ = Kh (como em carro) Ψψ = Ps

Ωω = Ōō

1 Transliteraccedilatildeo eacute um ldquoato ou efeito de transliterarrdquo com a funccedilatildeo de ldquorepresentar uma letra de um (vocaacutebulo) por uma letra diferente no correspondente vocaacutebulo de outra liacutenguardquo (AULETE Caldas Transliteraccedilatildeo In______ Dicionaacuterio Contemporacircneo da Liacutengua Portuguesa 5 ed Rio de Janeiro Delta 1970 p 3629 v 5) De forma simplificada eacute a substituiccedilatildeo de um caractere da liacutengua de origem para outro da liacutengua de destino Eacute oriunda do latim trans (aleacutem) + litera (letra) (Idem Op Cit) 2 Compomos aqui uma lista de transliteraccedilotildees greco-portuguesas que convencionalmente adotamos ao longo deste trabalho Nem todas as transliteraccedilotildees apresentadas aqui satildeo usadas no texto O que pretendemos eacute oferecer uma ferramenta completa para possibilitar ao leitor reconhecer os termos gregos em portuguecircs

VOGAIS ACENTUADAS3

ᾶ = atilde ά = aacute ὰ = agrave έ = eacute ὲ = egrave ῆ = ẽ ή = ḗ ὴ = ḕ ῖ = ĩ ί = iacute ὶ = igrave ό = oacute ὸ = ograve ῦ = ỹ ύ = yacute ὺ = ỳ ῶ = ȭ ώ = ṓ ὼ = ṑ TRANSLITERACcedilAtildeO DOS DITONGOS αι = ai ΑΙ = AI ει = ei ΕΙ = EI οι = oi ΟΙ = OI υι = yi ΥΙ = YI αυ = ay ΑΥ = AY ευ = ey ΕΥ = EY ηυ = ēy ΗΥ = ĒY ου = oy ΟΥ = OY ωυ = ōy ΩΥ = OY TRANSLITERACcedilAtildeO DOS ESPIacuteRITOS BRANDOS E AacuteSPEROS ἁ = ha ἀ = α ἑ = he ἐ = e ἡ = hē ἠ = ē ἱ = hi ἰ = i ὁ = ho ὀ = o ὑ = hy ὐ = y ὡ = hō ὠ = ō

3 Os acentos foram mantidos em portuguecircs da mesma forma graacutefica que aparece em grego na esteira das observaccedilotildees apresentadas por Antocircnio Freire (FREIRE Antocircnio Gramaacutetica grega 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 pp 4-9)

Sumaacuterio Prefaacutecio 17 Apreciaccedilatildeo - Frei Carlos Josaphat 19 Apresentaccedilatildeo - Luis Alberto De Boni 21 Introduccedilatildeo 27 Capiacutetulo I 49 Filosofia e Eacutetica 11 Do mito agrave filosofia o ldquothaỹmardquo como princiacutepio do filosofar 50 12 Filosofia e ldquoalḗtheiardquo a filosofia como ldquofiliacuteardquo agrave ldquosofiacuteardquo 54 13 A filosofia como ldquotheōriacuteardquo o nascimento da ldquoepistḗmērdquo pelo proceder do ldquodiaacutelogosrdquo 59 14 Tomaacutes de Aquino e a ldquoFilosofiacuteardquo do ldquodiaacutelogosrdquo agrave ldquodisputatiordquo 66 Capiacutetulo II 75 A eacutetica enquanto ciecircncia em Aristoacuteteles 21 Contextualizaccedilatildeo Histoacuterica da Eacutetica 76 22 Preacircmbulos antropoloacutegicos e a Definiccedilatildeo de eacutetica 80 23 Teacutelos e Eydaimoniacutea 90 24 Eacutergon Aretḗ e Kakiacutea 92 25 Proaiacuteresis e boyacuteleysis 96 26 Virtudes dianoeacuteticas e eacuteticas o conceito de justo meio quanto agraves virtudes eacuteticas 98 27 O papel da amizade na eacutetica 101 28 Contornos acerca do conceito de Eydaimoniacutea 112 29 A racionalidade proacutepria da ciecircncia eacutetica 123 291 Froacutenēsis e Epistḗmē 123 292 A Epistḗmē Ēthikḗ enquanto Epistḗmē Politikḗ 128 Capiacutetulo III 149 A recepccedilatildeo da eacutetica aristoteacutelica na teologia moral de Tomaacutes 31 Contextualizaccedilatildeo criacutetica Tomaacutes como auctor 149 32 O conceito de natureza em Tomaacutes 153 33 A concepccedilatildeo tomasiana da eacutetica 160 34 O papel da razatildeo da Linguagem e da Lei na eacutetica tomasiana 162 341 Eacutetica das virtudes e lei natural 171

342 Eacutetica e direito 177 35 Civitas e beatitudo ou felicitas em Tomaacutes 181 36 Do livre-arbiacutetrio distintivo do ato humano agrave pessoa 188 361 A pessoa 200 362 O bem uacutetil honesto e deleitaacutevel 203 37 A amizade 211 38 A racionalidade proacutepria da eacutetica 218 381 Prudecircncia e filosofia praacutetica 218 382 Os eacutendoxa em Tomaacutes de Aquino 227 383 A racionalidade proacutepria da eacutetica tomasiana 232 Capiacutetulo IV 237 O conceito de Teologia em Tomaacutes de Aquino 41 O conceito de Teologia como ciecircncia em Tomaacutes 238 42 O ldquoobjetordquo da Teologia 241 43 O papel da filosofia na Teologia tomasiana 241 44 A face humana da Teologia tomasiana 250 45 Os ldquopreacutestimosrdquo da filosofia agrave Teologia 254 46 O modo de proceder de Tomaacutes 258 Capiacutetulo V 261 Toacutepicos da Eacutetica Filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino 51 O que eacute o homem 261 52 A eacutetica integrada de Tomaacutes 266 53 As paixotildees da alma 277 54 A estrutura do ato humano 284 55 As virtudes 288 551 A bondade e a maliacutecia do ato humano 288 552 A definiccedilatildeo de virtude como habitus e meio-termo da razatildeo 290 553 A conexatildeo das virtudes 294 554 As virtudes cardeais 299 Conclusatildeo 309 Referecircncias 323 A) Fontes Primaacuterias 323 B) Fontes Secundaacuterias 327 Para saber mais 339

Prefaacutecio

Eacute com alegria que apresento a segunda ediccedilatildeo de A Eacutetica Filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Trata-se da minha dissertaccedilatildeo de mestrado em filosofia pela UFMT (2016) aprovada com louvor Segue o texto revisado e corrigido com desvelo por mim Fiz um esforccedilo hercuacuteleo a fim de sanar quaisquer impropriedades e imprecisotildees que ainda restassem Reli-o sob a oacutetica filosoacutefica e histoacuterica depois sob a gramatical e estiliacutestica Revisei conferindo com os originais as citaccedilotildees em liacutengua portuguesa em seguida revisei as em liacutengua estrangeira e suas respectivas traduccedilotildees Tambeacutem conferi a bibliografia ampliando-a e atualizando os links consultados A abundacircncia de citaccedilotildees eacute apenas um convite agrave leitura e para que todos participem da mesma emoccedilatildeo que sinto ao ler Tomaacutes O texto vem enriquecido por uma Apresentaccedilatildeo do professor Luis Alberto de Boni que fez parte da minha Banca e a quem agradeccedilo penhoradamente Para esta segunda ediccedilatildeo natildeo posso deixar de expressar a diacutevida moral de gratidatildeo que contraiacute com o autor do livro Paradigma Teoloacutegico de Tomaacutes de Aquino nosso frei Carlos Josaphat que neste interregno gentilmente fez uma Apreciaccedilatildeo do trabalho e me ofereceu a sua preciosa amizade Deixo meu muito obrigado agraves senhoras Maria de Lourdes Mendes e Lilian Contreira que singela e amavelmente possibilitaram o meu contato com o frei Carlos Sem ter sofrido nenhuma mudanccedila substancial gostaria de que o texto fosse lido ou relido nesta versatildeo revisitada e atualizada E se pudesse resumir em poucas palavras o que pretendi com esta perquiriccedilatildeo usaria os mesmos termos de Anthony Kenny em reposta a Bertrand Russell Este uacuteltimo em sua Histoacuteria da filosofia ocidental afirmava haver pouco do espiacuterito filosoacutefico em Tomaacutes por supor que Aquino jaacute soubesse de antematildeo mdash em virtude de sua adesatildeo agrave feacute catoacutelica mdash o que buscava descobrir com um argumento Ao que Kenny responde em sua Uma nova histoacuteria da filosofia ocidental

18 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Julgamos um filoacutesofo pelo fato de seus raciociacutenios serem acertados ou natildeo natildeo em funccedilatildeo de onde pela primeira vez se elucidou em relaccedilatildeo agraves suas premissas ou de como pela primeira vez passou a crer em suas conclusotildees A hostilidade a Aquino com base em sua posiccedilatildeo oficial no catolicismo eacute assim injustificada ainda que compreensiacutevel mesmo para filoacutesofos seculares (KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental Filosofia Medieval Trad Edson Bini Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 v 2 p 98)

Inobstante a minha consagraccedilatildeo ao estudo uma devoccedilatildeo

aprovaccedilatildeo oniacutemoda natildeo existe Se o texto se ressente ainda de lacunas e ambiguidades isto se deve seja a questotildees de espaccedilo seja em razatildeo dos meus limites Por esta segunda e derradeira ediccedilatildeo agradeccedilo de modo especial ao editor e colega Lucas Margoni que pacientemente acompanhou os tracircmites de toda esta induacutestria Por fim tomando distacircncia despeccedilo-me deste trabalho certo de que nele entreguei o melhor de mim naquele momento

Sempre Saacutevio Laet

Apreciaccedilatildeo

A mensagem que vocecirc jaacute enviou e jaacute elaborou eacute de extraordinaacuteria riqueza Vocecirc leva muito longe a pesquisa e a sua elaboraccedilatildeo Ousaria dizer que na perspectiva globalizada em que vocecirc se coloca natildeo tiacutenhamos ateacute agora um trabalho dessa natureza e levado adiante com tal conjunto de qualidades

No centro do seu trabalho estaacute a obra-prima de Tomaacutes a Suma de Teologia bem como a Suma Contra os Gentios Um estudo deste nuacutecleo de suas pesquisas e da condensaccedilatildeo agrave qual vocecirc jaacute chegou seraacute um bom ponto de partida para todos os que se interessam por esse campo da ciecircncia sagrada

Gostaria quase de dizer que natildeo se trata apenas de uma contribuiccedilatildeo importante eu a considero original e singular pelo seu conteuacutedo pelo empenho visado de ir sempre ao essencial e de recorrer a todos os meios para valorizar este essencial Para isso o estudioso do tomismo da Teologia claacutessica do cristianismo e de modo geral quem se interessa pela religiatildeo cristatilde conta hoje com sua contribuiccedilatildeo como sendo a mais completa a mais bem ordenada de elementos analisados como conveacutem

Temos assim em matildeos um estudo que se pode considerar substancialmente acabado anunciado como sendo a demonstraccedilatildeo da existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica aristoteacutelica estruturando intelectualmente a teologia moral de Tomaacutes de Aquino

A partir desse projeto preciso e jaacute bem realizado vai surgindo outro muito promissor que assume condensa enriquece e aperfeiccediloa os estudos jaacute existentes sobre o tema Todo universo da moral teoloacutegica de Tomaacutes eacute oferecido de maneira mais completa e rigorosa ordenado em torno da metafisica da ldquomateacuteria e formardquo Sugeri que se aprofundasse essa anaacutelise recorrendo agrave noccedilatildeo mais profunda e universal de ldquoato e potecircnciardquo Tenho para mim que a metafiacutesica do Ato puro (e infinito) de Deus e do ato e potecircncia nas criaturas constitui a base da construccedilatildeo filosoacutefica de Tomaacutes por ele integrada em toda a sua siacutentese filosoacutefica e teoloacutegica

20 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

O estudo dessa conjunccedilatildeo ldquoatopotecircnciardquo veio ampliar e aprimorar a imensa e valiosa siacutentese elaborada a partir ldquoda mateacuteria e formardquo por Saacutevio Laet Ele propotildee uma compreensatildeo muito rica e atualizada da Suma de Tomaacutes utilizando o que haacute de melhor nos tomistas de ontem e de hoje acrescentando a novidade de sua proacutepria reflexatildeo servida por um meacutetodo original susceptiacutevel de oferecer uma nova visatildeo do tomismo

Frei Carlos Josaphat OP

Satildeo Paulo 20 de outubro de 2017

Apresentaccedilatildeo

Inicio esse texto citando o luterano Rudolf von Ihering um dos maiores juristas do seacuteculo XIX Ao preparar a segunda ediccedilatildeo de A finalidade do Direito (Zweck im Recht) obra que todo o jurista conhece resolveu acrescentar uma nota que ateacute hoje eacute citada Ele a inicia agradecendo ao padre catoacutelico D Haoff que lhe indicara alguns textos referentes ao direito provenientes de Tomaacutes de Aquino algueacutem cuja obra lhe era ateacute entatildeo desconhecida E prossegue ldquoEsse padre provou-me atraveacutes de citaccedilotildees de Tomaacutes de Aquino que esse grande espiacuterito jaacute havia reconhecido plenamente o momento realiacutestico-praacutetico social e tambeacutem histoacuterico da Eacutetica No que se refere a mim natildeo posso recusar a acusaccedilatildeo de desconhecimento que D Haoff me faz mas com um peso bem maior essa acusaccedilatildeo atinge os filoacutesofos modernos e os teoacutelogos luteranos que perderam a oportunidade de valer-se dos grandiosos pensamentos desse homem Admirado eu me pergunto como foi possiacutevel que tais verdades depois de terem sido escritas caiacuteram em tatildeo grande esquecimento por parte da nossa ciecircncia protestante Quantos descaminhos ela poderia ter evitado se as houvesse tomado a seacuterio De minha parte se jaacute as houvesse conhecido talvez eu natildeo tivesse escrito todo meu livro pois as ideias fundamentais e era com elas que eu me preocupava encontram-se jaacute naquele portentoso pensador com plena clareza e expressas com termos lapidaresrdquo1

1 Derselbe weist mir durch Zitate aus Thomas ab Aquino nach dass dieser grosse Geist das realistisch-praktische und gesellschaftlische Moment des Sittlichen ebenso wie das historiche bereits vollkommen richtig erkannt hatte Den Vorwurf der Unkenntnis den er fuumlr mich daran knupft kann ich nicht von mir ablehnen aber mit ungleich schwererem Gewicht als mich trifft er die modernen Philosophen und protestantischen Theologen die es versaumlumt haben sich die grossartigen Gedanken dieses Mannes zunutze zu machen Staunend frage ich mich wie war es motildeglich dass solche Wahrheiten nachdem sie einmal ausgesprochen waren bei unserer protestantischen Wissenschaft so gaumlnzlich in Vergessenheit geraten konten Welche Irrwege haumltte sie sich ersparen koumlnne wenn sie dieselben beherzigt hatte Ich meinerseits haumltte vielleicht mein ganzes Buch nicht geschrieben wenn ich sie gekannt hatte denn die Grundgedanken um die es mir zu tun war finden sich schon bei jenem gewaltigen Denker in vollendeter Klarheit und praumlgnantester Fassung ausgesprochen (RUDOLF von IHERING Zweck im Recht 4a ed 1905 c IX n 161 nota 2 p 125)

22 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Para evitar polecircmicas situemos esse texto em seu tempo Quando Ihering escreveu sua obra as divergecircncias entre catoacutelicos e luteranos (e demais reformados) eram grandes ainda estavam sangrando as feridas abertas pelo embate entre a Reforma e a Contra-Reforma No decorrer do tempo sempre houve quem procurou se aproximar do oponente como foram por exemplo os casos dos protestantes H Grotius e G W Lebniz Na Igreja Catoacutelica no iniacutecio do seacuteculo XIX houve tambeacutem os que tentaram aproximaccedilatildeo dialogando com filoacutesofos luteranos mas acabaram sendo condenados por Roma foram os casos dos padres G Hermes e A Guumlnther considerados hoje como precursores de muitas ideias inovadores aceitas pela Igreja No decliacutenio do seacuteculo XIX a Histoacuteria comeccedilou a tomar outros rumos Enfim o seacuteculo XX conheceu o Movimento Ecumecircnico (uma iniciativa dos diversos ramos evangeacutelicos) e da parte da Igreja Catoacutelica o Conciacutelio Ecumecircnico Vaticano II levou a uma grande abertura para com os ldquoirmatildeos separadosrdquo Hoje os catoacutelicos leem M Lutero R Bultmann O Cullman e K Barth do mesmo modo como os luteranos leem Tomaacutes de Aquino K Rahner H de Lubac e Bernard Lonergan

Tomaacutes de Aquino foi um dos grandes filoacutesofos de todos os

tempos2 Legou-nos uma obra imensa que desde 1882 vem sendo publicada em ediccedilatildeo criacutetica Satildeo previstos ao todo 50 volumes sendo alguns deles divididos em dois ou trecircs Neles encontram-se cerca de 40 mil citaccedilotildees o que fez Umberto Eco dizer que um outro autor que apresentasse tantas citaccedilotildees acabaria fazendo um pastiche

2 Sobre a vida e a obra de Tomaacutes de Aquino cfr J-P Torrell Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 2011C Josaphat Paradigma Teoloacutegico de Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2012

Saacutevio Laet de Barros Campos | 23

Trata-se pois de uma produccedilatildeo imensa agrave qual a de poucos pensadores posteriores pode ser comparada Algueacutem poderaacute dizer a respeito que se tratava de um frade que natildeo precisava se preocupar com o modo de ganhar a vida e que por isso dedicou todo seu tempo ao ofiacutecio de professor Na resposta a isso devem ser feitas duas observaccedilotildees Em primeiro lugar Tomaacutes natildeo foi apenas professor Ele foi missionaacuterio deslocou-se de um local para outro por ordem dos superiores e assim percorreu a peacute ndash como deviam fazer os frades mendicantes ndash cerca de 10 mil quilocircmetros entre Itaacutelia Alemanha e Franccedila Assumiu diversos cargos dentro da Ordem Dominicana e trabalhou tambeacutem como assessor na corte papal entatildeo situada em Orvieto Em segundo lugar eacute preciso levar em conta os anos que dedicou agrave vida acadecircmica A expectativa de vida na Idade Meacutedia estava longe daquela de hoje Houve alguns poucos mestres de seu tempo que tiveram uma longa vida Alberto Magno faleceu aos 80 anos Rogeacuterio Bacon aos 78 Egiacutedio Romano e Guilherme de Moerbeke aos 71 A maioria poreacutem partiu bem antes Marsiacutelio de Paacutedua aos 63 Ockham aos 62 Alexandre de Hales aos 58 Satildeo Boaventura aos 57 Dante e Godofredo de Fontaines aos 56 Henrique de Gand aos 53 E entatildeo chega a vez dos jovens Pedro de Joatildeo Olivi faleceu aos 50 anos Tomaacutes de Aquino aos 4950 Duns Scotus aos 42 Joatildeo Quidort aos 41 e Siacuteger de Brabante aos 40

Santo Tomaacutes nasceu em 12241225 e faleceu em 07031274 Por volta de 1250 sendo assistente de Alberto Magno em Colocircnia publicou o Comentaacuterio sobre Isaiacuteas e em 1273 na qualidade de professor em Naacutepoles deixou inesperadamente de escrever Isso significa que sua vida acadecircmica durou cerca de 23 anos Noutras palavras teve 23 anos para produzir sua obra imensa a maior da Idade Meacutedia Homem de memoacuteria fora do comum e de inteligecircncia aguda era capaz de ditar ao mesmo tempo para trecircs ou quatro secretaacuterios ndash algo raro de que Ceacutesar e Napoleatildeo tambeacutem eram capazes Contam seus bioacutegrafos que muitas vezes um dos secretaacuterios velava noite a fora pois podia

24 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino acontecer que ele acordasse e entatildeo dissesse ldquoEscreve frei Fulanordquo e laacute ficava ele a ditar madrugada a dentro C Wolf E Husserl e M Heidegger trecircs grandes pensadores da modernidade legaram-nos uma imensa produccedilatildeo intelectual cada um deles contando para tanto com cerca de 60 anos de vida acadecircmica E no entanto Frei Tomaacutes com parcos 23 anos de magisteacuterio rivaliza com eles

O legado tomista eacute pois imenso e se me perguntarem qual de suas obras eacute a mais importante direi que eacute a Suma Teoloacutegica E direi mais eacute a obra filosoacutefico teoloacutegica mais importante produzida pela Idade Meacutedia Isso natildeo desqualifica outras obras dele como a Suma contra gentiles a seacuterie de Quaestiones disputatae e outras mais E tambeacutem natildeo deprecia as de outros autores Alexandre de Hales (+ 1245) por exemplo serviu de modelo e teve grande significado para Tomaacutes pois foi o primeiro a escrever uma Summa Theologiae na qual repensou autores cristatildeos do passado como Agostinho e Dioniacutesio recuperou outros como Anselmo e Bernardo e tambeacutem deu espaccedilo para natildeo- cristatildeos como Aristoacuteteles Avicena e Averroacuteis que naquela eacutepoca estavam sendo traduzidos A obra tomasiana tambeacutem natildeo obnubilou a de conterracircneos e poacutesteros Citemos por exemplo o franciscano Joatildeo Duns Scotus (+1308) que muitos equiparam a Tomaacutes e cujas ideias influenciaram Suaacuterez Wolf Kant Pierce Heidegger Zubiri e muitos outros

Voltemos agrave Suma Teoloacutegica A maior obra de Tomaacutes de Aquino e a mais importante obra do pensamento medieval natildeo surgiu de um grande projeto Frei Tomaacutes estava lecionando no Studium generale que a Ordem Dominicana acabava de criar em Roma Nada que se comparasse com os Studia de Paris Colocircnia ou Naacutepoles E os alunos tambeacutem natildeo se comparavam com os dos outros centros Vendo que comentar o Livro das Sentenccedilas de

Saacutevio Laet de Barros Campos | 25

Pedro Lombardo como fizera em Paris era exigir demais daqueles jovens que acabavam ldquono teacutedio e na confusatildeordquo ele resolveu entatildeo redigir algo mais simples E dizia numa introduccedilatildeo de 20 linhas ldquoEsforccedilando-nos por evitar esses e outros defeitos tentaremos confiantes no divino auxiacutelio expor breve e lucidamente o que respeita agrave doutrina sagrada na medida em que a mateacuteria o comportardquo

Uma breve exposiccedilatildeo para principiantes acabou recebendo o nome de summa (resumo apanhado) uma summa que provocaria admiraccedilatildeo e respeito atraveacutes dos seacuteculos Em cerca de seis anos de 1268 a 1273 - apesar de muitos trabalhos entre os quais aleacutem de aulas de dirigir questotildees disputadas e de escrever outros livros estatildeo 12 comentaacuterios a obras de Aristoacuteteles salientando-se a Eacutetica a Fiacutesica e a Metafiacutesica - Tomaacutes redigiu com auxiacutelio de seus secretaacuterios a Summa Theologiae um volumoso compecircndio (satildeo 4445 paacuteginas na ediccedilatildeo brasileira de Alexandre Correa 19801981) recheado por centenas de citaccedilotildees biacuteblicas e de autores de todas as proveniecircncias

A obra foi dividida em trecircs partes A primeira delas trata de Deus em si da Trindade e da criaccedilatildeo E quem natildeo recorre a ela quando deseja encontrar provas sobre a existecircncia de Deus (questatildeo 3) ou quando se pergunta sobre o que vem a ser esta criatura racional que eacute o homem (qq 7- 89) A terceira parte ficou incompleta (seus auxiliares haveriam de concluiacute-la) Ela trata de Cristo nosso Redentor e dos sacramentos (ateacute a Confissatildeo) A piedade do autor dos hinos Pange lingua e Adoro te devote encanta a leitura da Cristologia

A segunda parte eacute a mais longa ocupando cerca de 35 do total da obra Eacute dedicada toda ela agrave Moral enquanto regresso do homem para Deus Eacute a parte onde mais o autor apela para a Filosofia e para redigi-la eacute evidente que leu antes e comentou a Eacutetica a Nicocircmaco da qual dispunha jaacute da nova traduccedilatildeo de Roberto Grosseteste acompanhada dos comentaacuterios de Eustraacutecio e Miguel de Eacutefeso e acabava de ser comentada pela segunda vez por seu

26 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Mestre Alberto Magno E como natildeo poderia deixar de ser tinha agrave sua frente tambeacutem o comentaacuterio de Averroacuteis Permito-me ressaltar trecircs temas tratados nessa parte Em primeiro lugar a pergunta sobre o fim uacuteltimo do homem que eacute a felicidade (qq 1-5) em segundo lugar o tratado a respeito dos atos humanos (qq 7-48) enfim o claacutessico tratado De lege (Sobre a Lei) (qq 90-97) que se tornou um verdadeiro manual de estudos juriacutedicos

Concordo com os muitos que dizem ser a segunda parte da Suma Teoloacutegica o mais importante tratado de Eacutetica escrito ateacute hoje A Eacutetica Filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que o leitor encontraraacute a seguir confirma o que estou dizendo

Luis Alberto De Boni

Introduccedilatildeo

A proposta deste trabalho eacute mostrar a existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica no bojo da teologia moral de Tomaacutes de Aquino em sua mais acabada formulaccedilatildeo vale dizer a IIa parte da Summa Theologiae A fim de delimitar a nossa temaacutetica importa fazermos algumas consideraccedilotildees Natildeo pretendemos expor sistematicamente a eacutetica filosoacutefica tomasiana mas apenas atestar que ela existe Nem tencionamos apresentar um Tomaacutes unicamente filoacutesofo ou mero comentador de Aristoacuteteles Chesterton mdash em sua obra sobre o Aquinate mdash assevera que ele era reconhecido como um autor (auctor) mesmo entre os seus coetacircneos

Um arguto observador contemporacircneo de Tomaacutes de Aquino afirmou que este ldquopoderia sozinho restaurar toda a filosofia se ela tivesse sido queimada pelo fogordquo Eacute por isso que se diz que Tomaacutes foi um homem original uma mente criativa ele poderia ter criado seu proacuteprio universo a partir de pedras e paus mesmo sem os manuscritos de Aristoacuteteles ou de Agostinho1

Ademais eacute inegaacutevel que Frei Tomaacutes eacute antes de tudo um

teoacutelogo e as suas obras magnas satildeo sumas de teologia sendo inclusive a sua moral fundamentalmente uma moral teoloacutegica Natildeo haacute como apagar a afirmaccedilatildeo feita na Summa Contra Gentiles

Por isso sirvo-me aqui das palavras de Hilaacuterio Estou consciente de que o principal ofiacutecio da minha vida eacute referente a Deus de modo que toda palavra minha e todos os meus sentidos dele falem (I Sobre a Trindade 37 PL 10 48 D)2

1 CHESTERTON Satildeo Tomaacutes de Aquino e Satildeo Francisco de Assis Trad Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonccedilalves Rio de Janeiro Ediouro 2003 p 316 2 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios Trad Odilatildeo Moura Rev Luis A De Boni Porto Alegre Sulina 1990 I II 2 [9] ldquo[] ut enim verbis Hilarii utar ego hoc vel praecipuum vitae meae officium debere me Deo conscius sum ut eum omnis sermo meus et sensus loquaturrdquo

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O que buscamos evidenciar eacute que integrada agrave sua teologia moral mdash constituindo parte da sua sabedoria teoloacutegica mdash haacute uma conceptualidade filosoacutefica tambeacutem no acircmbito da eacutetica Eis o nosso escopo mostrar que sem prejuiacutezo da teologia propriamente dita Tomaacutes integra agrave sua sabedoria teoloacutegica uma eacutetica filosoacutefica a qual permanece mdash ainda que integrada a uma teologia moral mdash genuinamente filosoacutefica Como diz Carlos Josaphat

O paradigma de Tomaacutes confere portanto agrave eacutetica uma consistecircncia universal primordialmente humana racional suscetiacutevel de uma elaboraccedilatildeo filosoacutefica Mas semelhante projeto de plena realizaccedilatildeo humana pelas virtudes morais eacute chamado a se inserir no projeto teoloacutegico []3

O nosso desafio consiste pois em demonstrar que Tomaacutes

prevecirc uma eacutetica filosoacutefica decerto que esta se encontra em sua siacutentese teoloacutegica de uma forma tensa algures com uma audaacutecia ainda vacilante mas alhures deixando-se manifestar com uma ousadia que natildeo se furta aos olhos de um leitor inquieto

Em todo caso atrevo-me a apresentar as afliccedilotildees e vacilaccedilotildees de Santo Tomaacutes como mais um elo dessa longa caminhada da humanidade cristatilde na busca de uma justa secularizaccedilatildeo isto eacute de uma adequada autonomia das realidades profanas4

3 JOSAPHAT Carlos Paradigma teoloacutegico de Tomaacutes de Aquino sabedoria e arte de questionar verificar debater e dialogar chaves de leitura da Suma de Teologia Rev Iranildo Bezzera Lopes e Maacutercia Elisa Rodrigues Satildeo Paulo Paulus 2012 p 458 4 SARANYANA JosepndashIgnasi La Filosofiacutea Medieval Desde sus oriacutegenes patristicos hasta la escolaacutestica barroca 2 ed EUNSA Pamplona 2007 p 293 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEn todo caso me atrevo a presentar las cuitas y vacilaciones de Santo Tomaacutes como un eslaboacuten maacutes de esa larga caminata de la humanidad cristiana en busca de una justa secularizacioacuten es decir de una adecuada autonomiacutea de las realidades profanasrdquo Numa recente ediccedilatildeo biliacutengue da Summa Contra Gentiles o estudioso Mauriacutelio Joseacute de Oliveira Camello na introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo cita uma inquietante apreciaccedilatildeo de Alain de Libera sobre a obra em questatildeo LIBERA Alain de Tomaacutes de Aquino mdash Suma contra os gentios Satildeo Paulo Mandarim 1996 p 515 In CAMELLO Mauriacutelio Joseacute de Oliveira Introduccedilatildeo Geral Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2015 p 24 ldquo[] a organizaccedilatildeo de detalhe de Contra os Gentios o emaranhado de seus desenvolvimentos as muacuteltiplas digressotildees que o perpassam as mudanccedilas de perspectivas as transiccedilotildees disciplinares que sutilmente a trabalham fazem com que natildeo se saiba sempre se tratamos com uma suma de teologia ou com uma suma de filosofiardquo O teoacutelogo espanhol Luis Francisco Ladaria em sua Introduzione alla Antropologia Teologica ao expor a estrutura da

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Gilson em uma passagem emblemaacutetica tambeacutem acolhe esta possibilidade quando admite que se o Aquinate tivesse querido teria em matildeos instrumentos suficientes para construir tambeacutem uma eacutetica exclusivamente filosoacutefica

Se tivesse querido santo Tomaacutes teria podido escrever uma metafiacutesica uma cosmologia uma psicologia e uma moral concebidas de acordo com um plano estritamente filosoacutefico No entanto eacute um fato e nada mais que suas obras sistemaacuteticas satildeo sumas de teologia e que por conseguinte a filosofia que expotildeem nos eacute oferecida segundo uma ordem teoloacutegica5

Analisemos com maior detenccedila a passagem que acabamos

de ler Com efeito a ordem das obras sistemaacuteticas de Tomaacutes mdash conforme assinala Gilson mdash eacute certamente teoloacutegica porque afinal Tomaacutes de Aquino eacute um teoacutelogo Poreacutem como tambeacutem acentua o historiador francecircs a filosofia que expotildee nestas obras natildeo eacute menos filosoacutefica por causa disso Desta sorte admite nosso estudioso Tomaacutes teria podido adotar um plano estritamente filosoacutefico Gilson acresce ainda que o fato de o Aquinate natildeo ter optado por uma ordem filosoacutefica eacute somente mdash e tatildeo somente mdash a escolha de um teoacutelogo natildeo uma ldquonecessidade intriacutensecardquo Imediatamente antes da citaccedilatildeo acima reconhece

Portanto nessa obra filosoacutefica a influecircncia confessa da teologia eacute certa e eacute a teologia mesma que forneceraacute um plano Natildeo que houvesse uma necessidade intriacutenseca6

antropologia tomasiana na Summa Theologiae verificou nela a predominacircncia de questotildees filosoacuteficas Por fim considerou o Breviloquium de Satildeo Boaventura mais proacuteximo do que hoje se entende por teologia Afirma ele acerca da antropologia da Summa LADARIA Luis Francisco Introduccedilatildeo agrave Antropologia Teoloacutegica Trad Roberto Leal Ferreira 7 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 18 ldquoEm muitos desses pontos as questotildees filosoacuteficas predominam em ampla medida sobre as teoloacutegicasrdquo Sobre o Breviloquium de Satildeo Boaventura ajuiacuteza Ladaria Idem Op Cit p 20 ldquoCertamente natildeo pode deixar de ser admirada a estrutura dessa obra sem duacutevida mais proacutexima dos tratados modernos que a Sumardquo 5 GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Trad Eduardo Brandatildeo Rev Carlos Eduardo Silveira Matos Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 657 [Os itaacutelicos satildeo nossos] 6 Idem Ibidem

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De posse desta certeza a saber de que quando fazia filosofia Tomaacutes era realmente filoacutesofo Chesterton pocircde tambeacutem concluir ldquoNatildeo seraacute mais possiacutevel esconder de ningueacutem que Satildeo Tomaacutes foi um dos principais libertadores do intelecto humanordquo7 De fato em diversas obras mdash tanto anteriores quanto concomitantes agrave Suma de Teologia mdash Tomaacutes sempre demonstrou distinguir com clareza uma argumentaccedilatildeo filosoacutefica de uma teoloacutegica Isso natildeo nos parece nada casual Por volta dos anos 12641265 quando da redaccedilatildeo do quarto livro da Contra Gentiles ao passar a abordar as verdades essencialmente reveladas ele discrimina

Ora nos livros precedentes falou-se de Deus segundo o conhecimento das coisas divinas a que pode chegar pelas criaturas a razatildeo natural [] Resta pois o que deve ser dito das coisas que nos foram reveladas por Deus e que excedem o intelecto humano8

Pode-se constatar por esta passagem que o Frade de

Roccasecca mdash na supracitada obra mdash consagra um livro agrave parte para falar das verdades que excedem a razatildeo e destaca um capiacutetulo inteiro para advertir que passaraacute a tratar deste tema Do mesmo periacuteodo eacute a primeira parte do Compendium Theologiae obra que Tomaacutes dedica a Reginaldo de Piperno seu confrade e disciacutepulo Num dado momento desse tratado faz questatildeo de separar o que vem antes do que viraacute depois E afirma isso nestes termos

Tudo poreacutem o que acima se disse de Deus foi considerado sutilmente por muitos filoacutesofos gentios conquanto alguns tenham errado acerca disso e os que entre eles disseram verdade natildeo puderam chegar a ela senatildeo com dificuldades e apoacutes longa e

7 CHESTERTON Op Cit p 202 8 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios IV I 7 [3347] ldquoQuia igitur debilis erat Dei cognitio ad quam homo per vias praedictas intellectuali quodam quasi intuitu pertingere poterat ex superabundanti bonitate ut firmior esset hominis de Deo cognitio quaedam de seipso hominibus revelavit quae intellectum humanum exceduntrdquo

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laboriosa investigaccedilatildeo Deus poreacutem nos comunicou na doutrina da religiatildeo cristatilde coisas que eles natildeo puderam alcanccedilar acerca das quais a feacute cristatilde nos instrui para aleacutem do senso humano9

Mesmo nos opuacutesculos escritos quando a redaccedilatildeo da

Summa Theologiae jaacute corria reaparece a mesma sensibilidade de Tomaacutes para distinguir a argumentaccedilatildeo racional da fundada na feacute No polecircmico De unitate intellectus contra averroistas mdash que data de 1270 mdash o Aquinate jaacute no fim do tratado faz uma declaraccedilatildeo importante ldquoEis em suma o que redigimos para destruir os erros referidos natildeo servindo-nos dos dogmas da feacute mas dos argumentos e das afirmaccedilotildees dos proacuteprios filoacutesofosrdquo 10 No opuacutesculo De Substantiis Separatis redigido no ano seguinte ele destaca sem desunir a parte filosoacutefica da teoloacutegica afirmando

Como jaacute se expocircs aquilo que os principais filoacutesofos Platatildeo e Aristoacuteteles julgaram sobre as substacircncias imateriais no tocante agraves suas origens condiccedilatildeo de natureza distinccedilatildeo e ordem de governo e aquilo em que os outros em erro deles discordaram resta expor o que afirma a religiatildeo cristatilde acerca de cada ponto11

Ora o nosso trabalho natildeo tem outro propoacutesito senatildeo

evidenciar os caminhos pelos quais Tomaacutes sem deixar de ser teoacutelogo e muito menos cristatildeo mdash e aqui estaacute o novo mdash conseguiu

9 TOMAacuteS DE AQUINO Compecircndio de Teologia Trad Carlos Nougueacute Porto Alegre Concreta 2015 I 36 ldquoHaec autem quae in superioribus de Deo tradita sunt a pluribus quidem gentilium philosophis subtiliter considerata sunt quamvis nonnulli eorum circa praedicta erraverint et qui in iis verum dixerunt post longam et laboriosam inquisitionem ad veritatem praedictam vix pervenire potuerunt Sunt autem et alia nobis de Deo tradita in doctrina Christianae religionis ad quam pervenire non potuerunt circa quae secundum Christianam fidem ultra humanum sensum instruimurrdquo 10 TOMAacuteS DE AQUINO A Unidade do Intelecto Contra os Averroiacutestas Trad Maacuterio Santiago de Carvalho Lisboa Ediccedilotildees 70 1999 V 120 ldquoHaec igitur sunt quae in destructionem praedicti erroris conscripsimus non per documenta fidei sed per ipsorum philosophorum rationes et dictardquo 11 TOMAacuteS DE AQUINO Sobre os Anjos Trad Luiz Astorga Rev Carlos Nougueacute Rio de Janeiro Seacutetimo Selo 2006 XVII 91 ldquoQuia igitur ostensum est quid de substantiis spiritualibus praecipui philosophi Plato et Aristoteles senserunt quantum ad earum originem conditionem naturae distinctionem et gubernationis ordinem et in quo ab eis alii errantes dissenserunt restat ostendere quid de singulis habeat Christianae religionis assertiordquo

32 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino conceber uma eacutetica que atendo-se ao que a razatildeo pode admitir espera permanecer aberta e pronta para ser reproposta a todos os homens porque inteligiacutevel a todos 12 Esta pretensatildeo de universalidade eacutetica estaacute no iniacutecio do proacuteprio pensar eacutetico e eacute uma constante jaacute nos antigos Como frisa Mario Vegetti trata-se de uma dificuldade que natildeo foi trazida exclusivamente talvez nem principalmente seja pela cultura escravista seja pelo advento da religiatildeo Na percepccedilatildeo do estudioso italiano a dificuldade de uma eacutetica universal estaacute calcada em razotildees de cunho filosoacutefico

Portanto a eacutetica antiga experimentou evidentemente as exigecircncias de universalizaccedilatildeo da subjetividade moral do valor e da norma poreacutem sempre bateu em retirada diante das dificuldades de pensar ateacute o fundo essas exigecircncias diante da impossibilidade de construir um projeto de valorizaccedilatildeo e libertaccedilatildeo referente a todos os homens e ao homem todo [] Eacute provavelmente verdadeiro poreacutem insuficiente debitar esse xeque-mate da eacutetica antiga na conta do contexto da sociedade escravista e dos seus enraizados efeitos de pensamento e de consciecircncia Do ponto de vista filosoacutefico haacute talvez razotildees mais profundas embora natildeo isentas de relaccedilatildeo com aquele contexto13

Retornando a Tomaacutes e levando em conta estas premissas

advertimos que a nossa abordagem sobre o pensamento eacutetico do Aquinate natildeo seraacute por assim dizer canocircnica Tampouco a literatura que frequentamos foi a tradicional sem nenhum desdouro em relaccedilatildeo a esta14 E isto se justifica pelo fato de que o tradicionalismo nunca foi a marca do nosso autor Seu tempo natildeo o tinha como um ldquoanjo das escolasrdquo antes fixando-nos no ldquoTomaacutes

12 JOSAPHAT Op Cit p 640 ldquoTomaacutes incorpora sem dificuldade a mensagem espiritual do Evangelho em sua elaboraccedilatildeo de uma eacutetica universal e autenticamente humanardquo (Os itaacutelicos satildeo nossos) 13 VEGETTI Mario A Eacutetica dos Antigos Trad Joseacute Bortolini Rev Tiago Joseacute Risi Leme et al Satildeo Paulo Paulus 2014 pp 26-27 14 Uma siacutentese das linhas de interpretaccedilatildeo de Tomaacutes pode ser consultada em SANTOS Ivanaldo A diferenccedila entre tomismo tradicional e tomismo tradicionalista In Aquinate n 28 2015 pp 35-56

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histoacutericordquo temos que este de certa forma esteve muito mais proacuteximo de um ldquoheterodoxordquo do que de um ldquosantordquo

[] Tomaacutes natildeo foi entendido por seus contemporacircneos como um campeatildeo da ortodoxia e [] a sua habilidade filosoacutefica mesmo no campo teoloacutegico natildeo esteve sempre sob a inspiraccedilatildeo da moderaccedilatildeo da conciliaccedilatildeo e do irenismo15

Tanto em vida quanto depois da morte o seu pensamento

soacute se consolidou apoacutes intensa pugna Ao contraacuterio do que comumente se pensa no tempo de Tomaacutes a sua obra foi quase sempre causa de contradiccedilatildeo seu pensamento longe de apaziguar os acircnimos o mais das vezes trouxe polecircmica e muitos dos seus contemporacircneos natildeo o receberam16 Guido de Ruggiero em seu estudo sobre a filosofia tomasiana realccedila este aspecto

[] Natildeo certamente no iniacutecio porque na sua primeira apariccedilatildeo a filosofia de Tomaacutes encontrou um ambiente igualmente cheio de concitado fervor [] As polecircmicas antitomistas daquela eacutepoca tecircm para noacutes um grande interesse porque nos mostram claramente que os adversaacuterios de Tomaacutes ainda natildeo desarmados

15 PORRO Pasquale Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico Trad Orlando Soares Moreira Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 132 16 Numa passagem assaz ilustrativa Boehner e Gilson descrevem como foi tensa a recepccedilatildeo da obra do Aquinate naqueles idos BOEHNER Philotheus GILSON Eacutetienne Histoacuteria Da Filosofia Cristatilde Desde as Origens ateacute Nicolau de Cusa Trad Raimundo Vier 7 ed Petroacutepolis Vozes 2000 pp 482-483 ldquoVisto de fora o seu primeiro destino deve ser qualificado de malogro A corrente conservadora mdash sob a lideranccedila dos mestres franciscanos Joatildeo Peckham Joatildeo Pedro Olivi Rogeacuterio Marston etc dos dominicanos Roberto Kilwardby arcebispo de Cantuaacuteria e Pedro de Tarantaise bem como de alguns representantes do clero secular tais como Henrique de Gand e Estecircvatildeo Tempier arcebispo de Paris mdash pronunciou-se contra vaacuterias doutrinas de S Tomaacutes e principalmente contra a tese da unicidade da forma do homem julgando dever qualificaacute-las pelo menos de suspeitas Pouco apoacutes a condenaccedilatildeo de algumas proposiccedilotildees tomistas por Estecircvatildeo Tempier apareceu um Correctorium fratris Thomae da autoria de Guilherme de la Mare contendo uma anaacutelise criacutetica de 118 proposiccedilotildees colhidas dos escritos do Aquinate e nomeadamente da Summa [] Um edito promulgado em 1282 interdizia aos franciscanos a leitura da Summa a menos que tivessem agrave matildeo o Correctorium de Guilherme de la Mare []rdquo Eacute bom reforccedilar que em 1277 o bispo Eacutetienne Tempier condenou 219 teses Entre estas pelo menos nove eram inequivocamente de Tomaacutes E esta condenaccedilatildeo soacute foi revogada explicitamente em 1325 dois anos apoacutes a sua canonizaccedilatildeo em 18 de julho de 1323 NASCIMENTO Carlos Arthur R Santo Santo Tomaacutes de Aquino o Boi Mudo da Siciacutelia Satildeo Paulo EDUC 1992 pp 50 e 84

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pela embaraccedilosa santidade de seu inimigo viram com perspicaacutecia quais deixas hereacuteticas estavam nas suas doutrinas17

Outros autores tambeacutem destacam que a princiacutepio as

inovaccedilotildees de Tomaacutes natildeo foram reconhecidas como ortodoxas dentro da Igreja do seu tempo o que fez com que o Aquinate vivesse sempre como um viandante natildeo conseguindo se estabelecer nenhures nem em Paris nem na Itaacutelia18

[] Tomaacutes de Aquino foi um pensador fortemente original e inovador frequentemente em contraste com muitas das posiccedilotildees comumente aceitas em seu tempo a ponto de suscitar reaccedilotildees muito violentas no interior da proacutepria Igreja da eacutepoca [] de atrair mais de uma suspeita sobre a completa ortodoxia das suas posiccedilotildees (trecircs anos depois da sua morte foi com efeito ateacute

17 RUGGIERO Guido de La Filosofia del Cristianesimo Bari Larteza 1967 pp 620-621 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoNon certamente allrsquoinizio percheacute al suo primo apparire la filosofia de Tommaso trovograve un ambiente anchrsquoesso pieno di concitato fervore [] Le polemiche anti-tomiste di quellrsquoepoca hanno per noi un grande interesse percheacute ci mostrano chiaramente che gli avversari di Tommaso non ancora disarmati dalla ingombrante santitagrave del nemico videro con perspicacia quali spunti eretici fossero nelle sue dottrinerdquo Em recente ediccedilatildeo brasileira uma Histoacuteria Ecumecircnica da Igreja organizada por estudiosos das mais diversas confissotildees cristatildes registra que a ldquocanonizaccedilatildeordquo da obra do Aquinate eacute um fenocircmeno da modernidade Acresce ainda que este uso ldquotriunfalistardquo da obra de Tomaacutes nunca foi ponto paciacutefico nem sequer entre os seus seguidores KAUFMANN Thomas [et al] Histoacuteria Ecumecircnica da Igreja 2 Da alta Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio da Idade Moderna Trad Irineu Rabuske Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola Paulus Satildeo Leopoldo Editora Sinodal 2014 p 111 ldquoA incomparaacutevel histoacuteria de sucesso da doutrina de Tomaacutes na Idade Moderna que alguns de seus admiradores atuais tambeacutem lamentam como sendo uma histoacuteria de apropriaccedilotildees indevidas natildeo deve levar ao engano de que sua audaz tentativa de intermediaccedilatildeo a princiacutepio apenas apresentava uma opccedilatildeo entre o pensamento moderno daquela eacutepoca e a tradiccedilatildeo teoloacutegica cristatilde ao lado de outras sendo aleacutem disso alvo de fortes contestaccedilotildeesrdquo COPLESTON Frederick Filosofia Medieval uma introduccedilatildeo Trad Wilson Filho Ribeiro de Almeida Curitiba Livraria Danuacutebio Editora 2017 p 101 ldquoMas embora Santo Tomaacutes gradualmente tenha vindo a ser o doutor oficial da ordem dominicana ele nunca se tornou durante a Idade Meacutedia o filoacutesofo oficial catoacutelico Eacute incorreto dizer que mesmo agora o tomismo como tal seja imposto oficialmente a todos os filoacutesofos catoacutelicos mas eacute inegaacutevel que desde a carta enciacuteclica Aeterni Patris do papa Leatildeo XIII Santo Tomaacutes desfruta de uma posiccedilatildeo na Igreja Catoacutelica que natildeo foi concedida a nenhum outro filoacutesofordquo 18 Eacute bem verdade que as ordens mendicantes tinham um forte caraacuteter missionaacuterio o que implicava que o frade vivesse como um viajor LENZENWEGER Josef STOCKMEIER Peter [et al] Histoacuteria da Igreja Catoacutelica Trad Fredericus Stein Rev Joseli N Brito 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2006 p 171 ldquoO ambular de um convento para outro visto como exceccedilatildeo senatildeo como algo suspeito desde os tempos de Satildeo Bento tornou-se agora o princiacutepio do apostolado Alberto Magno trabalhou em Paacutedua Estrasburgo Colocircnia Wuumlrzburg Regensburg Paris etcrdquo No entanto isso natildeo explica a nosso ver os interstiacutecios ocorridos durante o magisteacuterio de Tomaacutes soacute com transferecircncias

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mesmo aberto um procedimento poacutestumo contra as suas doutrinas)19

De sorte que a visatildeo que temos hoje do Aquinate depois de

tantos seacuteculos nos quais o seu pensamento foi assumido e usado pela Igreja e natildeo obstante as tentativas recentes de conhececirc-lo mais a fundo ainda se pode dizer miacuteope20

Na verdade o proacuteprio Tomaacutes estava cocircnscio de que tinha um modo de pensar a tradiccedilatildeo que era soacute seu Em A unidade do intelecto contra os averroiacutestas opuacutesculo jaacute citado acima ele afirma com descortino ldquo[] o pensar tem o modo de ser daquele que pensa []rdquo21 Em seguida conclui ldquo[] eacute de fato aqui que a ciecircncia

19 ESPOSITO Costantino PORRO Pasquale Filosofia Antica e Medievale 2 ed Roma-Bari Laterza 2010 p 338 v 1 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoTommaso drsquoAquino egrave stato un pensatore fortemente originale e innovativo spesso in contrasto con molte delle posizioni comunemente accettate ai suoi tempi fino al punto di suscitare reazioni molto violente allrsquointerno della stessa Chiesa dellrsquoepoca [] di attirare piugrave di un sospetto sulla completa ortodossia delle sue posizioni (tre anni dopo la sua morte fu in effetti perfino aperto un procedimento postumo contro le sue dottrine)rdquo Numa recente traduccedilatildeo brasileira da Historie des Dogmes que conta com a direccedilatildeo de Bernard Sesbouumleacute o mesmo apresenta Tomaacutes de Aquino natildeo agrave guisa de um ldquoteoacutelogo tradicionalrdquo como era de se esperar mas antes como um daqueles que promoveram o conturbado ingresso de Aristoacuteteles na sacra ciecircncia SESBOUumlEacute Bernard THEOBALD Christoph Histoacuteria dos Dogmas A Palavra da Salvaccedilatildeo Trad Aldo Vannucchi Rev Albertina Pereira Leite Piva e Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2006 v 4 p 82 ldquoNo seacuteculo XIII Aristoacuteteles eacute a paixatildeo das Universidades lsquoo filoacutesoforsquo lsquoa autoridade intelectualrsquo Santo Tomaacutes cita-o nesses termos pronto para uma lsquoexplicaccedilatildeo muito respeitosarsquo (expositio reverentialis) quando lhe percebe alguma afirmaccedilatildeo incompatiacutevel com a feacute cristatilde Essa coragem de introduzir o enfoque filosoacutefico no ensino da ciecircncia sacra iraacute lhe render suspeitas e ateacute mesmo condenaccedilatildeordquo COPLESTON Filosofia Medieval uma introduccedilatildeo p 87 ldquoO homem que realmente tentou juntar o sistema filosoacutefico de Aristoacuteteles e a teologia cristatilde em um todo harmonioso foi o frade dominicano Santo Tomaacutes de Aquino Voltando-se para traacutes a olhar o cenaacuterio medieval atraveacutes dos seacuteculos que se passaram desde que Santo Tomaacutes viveu e escreveu pode-se esquecer que ele foi um inovador e que parecia aos seus contemporacircneos um pensador lsquoavanccediladorsquordquo 20 Pasquale Porro propotildee uma linha interpretativa de Aquino que nos apraz exclusive o aparente desinteresse pelo que o texto de Tomaacutes tem a nos dizer hoje PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 352 ldquoO que de fato faltou a boa parte do tomismo do seacuteculo XX foi exatamente a devida atenccedilatildeo ao modo como Tomaacutes chegou a determinadas conclusotildees confrontando-as natildeo com abstratas tradiccedilotildees de pensamento (aristotelismo platonismo averroiacutesmo etc) mas com textos bem identificaacuteveis [] Ao contraacuterio talvez seria mais simples ou pelo menos mais profiacutecuo tentar separar definitivamente o confronto direto com os escritos de Tomaacutes das vicissitudes do tomismo e sobretudo do neotomismo do seacuteculo XX como aliaacutes as pesquisas realizadas nos uacuteltimos dececircnios jaacute comeccedilaram a fazer de modo amplordquo [O itaacutelico eacute nosso] 21 TOMAacuteS DE AQUINO A Unidade do Intelecto Contra os Averroiacutestas V 107 p 151 ldquo[] sequitur quod intelligere sit secundum modum intelligentis []rdquo

36 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino se individualiza em mim e em tirdquo 22 De todo modo temos consciecircncia de que o fato de natildeo optarmos pela via tradicional de exposiccedilatildeo pode fazer surgir muitos questionamentos e eacute escusado dizer que natildeo teremos espaccedilo para responder a todos Alguns deles todavia parecem-nos fundamentais Assim esquematizamos o nosso texto em cinco capiacutetulos

Se estamos a falar de eacutetica filosoacutefica eacute mister considerarmos o que eacute eacutetica e o que eacute filosofia bem como qual a razatildeo de associarmos ambas Sabemos que a filosofia nasceu na Greacutecia Sendo assim qualquer trabalho que pretenda ser cuidadoso tem de retornar agravequela aurora grega que nunca se obliterou nem conheceu ocaso Luminosas satildeo as palavras de Enrico Berti neste sentido

ldquoClaacutessicordquo significa o que vale sempre o que conserva sempre seu valor para aleacutem das modas que mudam A filosofia grega eacute claacutessica porque jamais envelhece mas conserva todo o frescor do que eacute originaacuterio Todo o mundo grego foi considerado por exemplo por Hegel a expressatildeo da juventude da humanidade As figuras com que ele se abre e se encerra satildeo respectivamente segundo Hegel Aquiles e Alexandre ambos heroacuteis mortos jovens que por isso se tornaram emblemaacuteticos Ningueacutem com efeito jamais poderaacute representar um Aquiles velho ou um Alexandre velho O mesmo se deve dizer da filosofia grega da qual beberam direta ou indiretamente todas as filosofias seguintes e da qual continuaratildeo a extrair a seiva vital as filosofias ainda por vir23

Assim o nosso primeiro capiacutetulo eacute consagrado agrave

investigaccedilatildeo de como nasce a filosofia na Greacutecia Esperamos nele tornar patente como a interrogaccedilatildeo filosoacutefica mdash desde o seu comeccedilo mdash abriga em si uma indagaccedilatildeo eacutetica ou melhor uma ldquofenomenologia do eacutethosrdquo Aqui tambeacutem nos esforccedilaremos por

22 Idem Ibidem V 109 p 153 ldquo[] quantum enim ad hoc individuatur scientia in me et in illordquo 23 BERTI Enrico No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga Trad Fernando Soares Moreira Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 16 [O itaacutelico eacute nosso]

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evidenciar que o modo como os gregos fizeram filosofia eacute assumido pelos medievais inclusive por Tomaacutes Com isso temos o propoacutesito de acentuar o elo existente entre o dia uacutetil do pensamento nascido na Greacutecia e a reflexatildeo medieval maacutexime no pensamento do Aquinate Assegurando isto pensamos poder incluir a filosofia de Aquino na esteira daquela ldquoclassicidaderdquo que natildeo se pode obnubilar sem prejuiacutezo agrave proacutepria filosofia Importa lembrar que neste capiacutetulo recorreremos com alguma constacircncia agraves etimologias e agrave filologia O preliminar semacircntico no estudo da eacutetica filosoacutefica eacute recomendado por Lima Vaz de forma precisa

Um estudo sobre Eacutetica que se pretenda filosoacutefico deve dedicar-se preliminarmente a delinear o contorno semacircntico dentro do qual o termo Eacutetica seraacute designado e a definir assim em primeira aproximaccedilatildeo o objeto ao qual se aplicaratildeo suas investigaccedilotildees e suas reflexotildees bem como a caracterizar a natureza e a estabelecer os limites do tipo de conhecimento a ser praticado no estudo da Eacutetica24

No entanto para natildeo sobrecarregarmos o texto com uma

quaestio nominis os termos eacutetica e moral seratildeo livremente tomados como sinocircnimos25 A eacutetica poreacutem natildeo se resume a uma ldquofenomenologia do eacutethosrdquo senatildeo que pode ser bem definida como ldquo[] a ciecircncia do ethosrdquo26 E quem deu a ela este status de ldquociecircnciardquo colocando-a num ramo bem definido da ldquofilosofia praacuteticardquo foi Aristoacuteteles Quando fala do nascimento da eacutetica filosoacutefica Lima Vaz mdash referindo-se a Aristoacuteteles mdash se expressa com meridiana clareza ldquoA Eacutetica alcanccedila assim seu estatuto de saber

24 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 p 11 25 Idem Ibidem p 14 ldquoVemos assim que a evoluccedilatildeo semacircntica paralela de Eacutetica e Moral a partir de sua origem etimoloacutegica natildeo denota nenhuma diferenccedila significativa entre esses dois termos []rdquo 26 Idem Ibidem p 17

38 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino autocircnomo e passa a ocupar um lugar preponderante na tradiccedilatildeo cultural e filosoacutefica do Ocidenterdquo27

Se a nossa intenccedilatildeo eacute trabalhar a existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino e se pretendemos salientar certa continuidade entre os gregos e Tomaacutes cumpre traccedilarmos mdash ao menos em linhas gerais mdash o itineraacuterio da eacutetica aristoteacutelica contemplada com maior clareza na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o nosso segundo capiacutetulo Esta segunda aproximaccedilatildeo eacute muito bem delimitada por alguns conceitos-chave os quais tecircm as suas raiacutezes na semacircntica de dois termos ἦθος (ẽthos)28 mdash grafado com o η inicial mdash que designa a ldquocasa do homemrdquo e ἔθος (eacutethos)29 mdash com um ε inicial mdash que significa haacutebito isto eacute a disposiccedilatildeo estaacutevel para agir de determinada maneira Podemos dizer que estes dois termos constituem a ldquoespinha dorsalrdquo do nosso trabalho pois eacute deles que adveacutem a nossa definiccedilatildeo de ēthikḗ como reflexatildeo acerca de quais satildeo aqueles haacutebitos (ἔθος) que permitem ao homem construir o seu proacuteprio haacutebitat (ἦθοςẽthos) Mostrar como Tomaacutes assume esta concepccedilatildeo grega e aristoteacutelica eacute um dos nossos objetivos preciacutepuos Sobre a importacircncia capital destas noccedilotildees vale citar a reflexatildeo de Lima Vaz

Na liacutengua filosoacutefica grega ethike procede do substantivo ethos que receberaacute duas grafias distintas designando matizes diferentes da mesma realidade ethos (com eta inicial) designa o conjunto de costumes normativos da vida de um grupo social ao passo que ethos (com epsilon) refere-se agrave constacircncia do comportamento do indiviacuteduo cuja vida eacute regida pelo ethos- costume Eacute pois a realidade histoacuterico-social dos costumes e sua

27 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura 4 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 12 28 CHANTRAINE Pierre Ἦθος [ẽthos] In ______ Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque histoire des mots Paris Eacuteditions Klincksieck 1968 p 407 O etimoacutelogo afirma que o termo diz estada habitual morada de animais 29 BAILLY A ἔθος [eacutethos] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 247 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt CHANTRAINE εἴωθα In Op Cit p 327 A forma nominativa usual eacute ἔθος na acepccedilatildeo de haacutebito costume

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presenccedila no comportamento dos indiviacuteduos que eacute designada pelas duas grafias do termo ethos Nesse seu uso que iraacute prevalecer na linguagem filosoacutefica ethos (eta) eacute a transposiccedilatildeo metafoacuterica da significaccedilatildeo original com que o vocaacutebulo eacute empregado na liacutengua grega usual e que denota a morada o covil ou o abrigo dos animais donde o termo moderno de Etologia ou estudo do comportamento animal A transposiccedilatildeo metafoacuterica do ethos para o mundo humano dos costumes eacute extremamente significativa e eacute o fruto de uma intuiccedilatildeo profunda sobre a natureza e sobre as condiccedilotildees de nosso agir (praxis) ao qual ficam confiadas a edificaccedilatildeo e preservaccedilatildeo de nossa verdadeira residecircncia no mundo como seres inteligentes e livres a morada do ethos cuja destruiccedilatildeo significaria o fim de todo sentido para a vida propriamente humana30

Esta longa passagem que escolhemos citar in extenso

praticamente resume a razatildeo do capiacutetulo segundo e tambeacutem de todo o nosso trabalho a eacutetica entendida como aquela ciecircncia que permite ao homem conhecer quais satildeo os haacutebitos que lhe possibilitam construir a sua casa ou abrigo na fyacutesis (φύσις)

Do ponto de vista de sua plena auto-realizaccedilatildeo o ser humano antes de habitar no oikos da natureza deve morar no seu oikos espiritual mdash no mundo da cultura mdash que eacute constitutivamente eacutetico31

Ora esta reflexatildeo acerca dos costumes chamada eacutetica

baseia-se num exerciacutecio peculiar do λόγος loacutegos que mdash como veremos no texto mdash eacute antes de mais entendido como fala linguagem capacidade de comunicaccedilatildeo capacidade de criar uma linguagem koinḗ (κοινή) e por ela uma comunhatildeo (κοινωνίαkoinōniacutea) uma comunidade entre os homens Assim a

30 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 13 A Etologia eacute a ciecircncia que estuda os haacutebitos dos animais e a sua acomodaccedilatildeo agraves condiccedilotildees do ambiente Os cientistas Karl von Frisch Konrad Lorenz ambos austriacuteacos e Nikolas Tinbergen holandecircs ganharam o Precircmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1973 por terem criado esta nova ciecircncia 31 Idem Ibidem p 40

40 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino eacutetica apresenta-se natildeo como obra de um homem ou mesmo de uma geraccedilatildeo mas fundamentalmente como uma ldquociecircncia poliacuteticardquo (ἐπιστήμη πολιτικήepistḗmē politikḗ) 32 que deve ser sempre retomada e aprofundada a cada nova geraccedilatildeo Nisto reside a importacircncia de pensar a eacutetica a partir de uma tradiccedilatildeo posto que seria impossiacutevel mdash e de uma insensatez caprichosa mdash pretender fundar a cada geraccedilatildeo uma nova concepccedilatildeo de eacutetica Lima Vaz afirma com clareza

Um primeiro traccedilo se faz visiacutevel no ethos nessa sua condiccedilatildeo de espaccedilo habitaacutevel do mundo onde a comunidade humana pode lanccedilar raiacutezes e crescer Assim como a casa material deve ser construiacuteda sobre peacutetreos fundamentos para permanecer de peacute e durar assim o ethos dos diversos grupos humanos manifesta uma extraordinaacuteria capacidade de resistir agrave usura do tempo e agraves mudanccedilas advindas de tradiccedilotildees estranhas O ethos eacute constitutivamente tradicional pois o ser humano natildeo conseguiria refazer continuamente sua morada espiritual Trata-se de um legado mdash o mais precioso mdash que as geraccedilotildees se transmitem (tradere traditio) ao longo do tempo e que mostra por outro lado uma natildeo menos extraordinaacuteria capacidade de assimilaccedilatildeo de novos valores e de adaptaccedilatildeo a novas situaccedilotildees33

32 O termo usado por Aristoacuteteles na Poliacutetica eacute filosofia poliacutetica ARISOacuteTELES Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo Amaral Carlos Gomes Lisboa Vega 1998 III 12 1282 b 20 ldquo[] Isto levanta uma dificuldade e implica uma filosofia poliacutetica [φιλοσοφίαν πολιτικήν]rdquo 33 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 40 A convicccedilatildeo de que a histoacuteria desconhece comeccedilos absolutos eacute assumida por Tomaacutes e pode ser bem atestada em suas obras Afirma Sofia Vanni Rovighi acerca do Aquinate ROVIGHI Sofia Vanni Storia della filosofia medievale Dalla Patristica al secolo XIV Milano Vita amp Pensiero 2011 p 104 ldquoE S Tommaso era profondamente persuaso che la filosofia fosse una progressiva scoperta di una unica veritagrave accessibile ad ogni ricercatore di buona volontagrave Moltissimi suoi articoli premettono alla soluzione del problema una breve storia delle soluzioni [] storia che segue sempre questo schema i presocratici hanno dato un primo abbozzo di soluzione che si egrave determinato e perfezionato prima nellambito stesso della filosofia presocratica si egrave arricchito specialmente con Platone ha raggiunto unulteriore compiutezza con Aristotelerdquo ldquoE Santo Tomaacutes estava profundamente persuadido de que a filosofia fosse uma progressiva descoberta de uma uacutenica verdade acessiacutevel a todo pesquisador de boa vontade Muitos de seus artigos antepotildeem agrave soluccedilatildeo dos problemas uma breve histoacuteria das soluccedilotildees precedentes [] histoacuteria que segue sempre este esquema os preacute-socraacuteticos deram um primeiro esboccedilo de soluccedilatildeo que foi determinado e aperfeiccediloado primeiro no acircmbito da proacutepria filosofia preacute-socraacutetica enriqueceu-se especialmente com Platatildeo [e] alcanccedilou uma ulterior perfeiccedilatildeo com Aristoacutetelesrdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] O proacuteprio Tomaacutes assegura TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica Trad Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira et al Satildeo Paulo Loyola 2001 I 44 2 C

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Aqui cabe um breve parecircntese Afinal por que natildeo comeccedilar com Tomaacutes Por que todo este preacircmbulo Tomaacutes natildeo se basta Na verdade a Idade Meacutedia pode ser tudo menos autossuficiente Como observa o filoacutesofo francecircs Reacutemi Brague o traccedilo mais essencial daquilo que hoje convencionamos chamar Idade Meacutedia eacute a consciecircncia da sua insuficiecircncia Os medievais latinos mdash e Tomaacutes de Aquino natildeo eacute uma exceccedilatildeo mdash nunca deixaram de se reconhecer dependentes dos antigos Por isso jamais cessaram de buscar fora de si a saber nos claacutessicos e mesmo noutras culturas (judaica grega e aacuterabe) as suas raiacutezes Ora esta consciecircncia ininterrupta de que inclusive em filosofia dever-se-ia buscar nos ldquoprimeiros filoacutesofosrdquo os proacuteprios fundamentos fez com que os medievais mdash tambeacutem Tomaacutes de Aquino mdash se tornassem os verdadeiros herdeiros da Antiguidade porque devedores dela Do nosso ponto de vista natildeo haacute como pensar a Idade Meacutedia latina inclusive Tomaacutes senatildeo como um aprimoramento um aprofundamento um desenvolvimento e finalmente um prolongamento do pensamento judaico grego e aacuterabe34 Daiacute a razatildeo do introito O medievo eacute por natureza uma continuidade e uma realidade multiacutevoca

Para tomar emprestado satildeo ainda necessaacuterias duas condiccedilotildees Eacute necessaacuterio primeiramente se dar conta de que se erra Eacute necessaacuterio em seguida aceitar ir procurar fora de si o que os outros inventaram Eacute necessaacuterio aceitar sentir-se inferior Isso exige certa coragem Seria mais faacutecil recusar-se a reconhecer-se inferior recusar-se a confessar-se necessitado [] Ora essa atitude mdash aceitar-se secundaacuterio relativamente a fontes anteriores

ldquoRespondeo dicendum quod antiqui philosophi paulatim et quasi pedetentim intraverunt in cognitionem veritatisrdquo ldquoOs filoacutesofos antigos penetraram pouco a pouco e quase passo a passo no conhecimento da verdaderdquo 34 A propoacutesito do uso das fontes por Tomaacutes Carlos Josaphat nota um aparente ldquoparadoxordquo que vale a pena citar JOSAPHAT Op Cit p 113 ldquoAbaixo das Sagradas Escrituras Agostinho e Aristoacuteteles satildeo as referecircncias mais citadas por Tomaacutes de Aquino em toda a Suma Paradoxalmente quanto mais este Doutor avanccedila em quantidade de citaccedilotildees e na correlaccedilatildeo que estabelece entre essas duas fontes uma filosoacutefica e outra teoloacutegica tanto mais se afirma sua originalidade singularrdquo

42 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

e exteriores delas haurir sem a esperanccedila de uma assimilaccedilatildeo total mdash eacute me parece a que marca a Idade Meacutedia inteira35

Esse sentimento de inferioridade na Idade Meacutedia natildeo eacute senatildeo uma atitude entre outras Eacute me parece a essa atitude que a Idade Meacutedia deve simplesmente a sua existecircncia Eacute a ela que a Idade Meacutedia deve o ser ela mesma A Idade Meacutedia eacute essa eacutepoca em que para retomar uma imagem ceacutelebre se soube que se era apenas um anatildeo empoleirado nos ombros de gigantes [] Essa humildade era necessaacuteria para aceitar ir haurir nas fontes Foi isso o que a Idade Meacutedia natildeo cessou de fazer Os historiadores nos desembaraccedilaram da imagem de uma Idade Meacutedia obscura para substituiacute-la por aquela de uma seacuterie ininterrupta de renascimentos Arrisquemo-lo a Idade Meacutedia eacute uma eacutepoca talvez a uacutenica eacutepoca da histoacuteria que jamais aceitou ser uma Idade Meacutedia Sempre quis ser um renascimento desde o iniacutecio36

Os medievais souberam ir procurar fora de si fora de sua experiecircncia imediata junto aos antigos e mesmo fora de sua tradiccedilatildeo proacutepria no mundo aacuterabe informaccedilotildees culturais Souberam aprimoraacute-las desenvolvecirc-las prolongaacute-las Mas sem jamais esquecer que o que tomavam emprestado vinha de fora Sem jamais esquecer tampouco que a fonte permanecia fora37

Delongamo-nos pois na justificaccedilatildeo destes dois primeiros

capiacutetulos no anseio de sinalizar que eles natildeo satildeo fortuitos ocasionais mas ao contraacuterio basilares para o nosso trabalho Com efeito apontar para o fato de que Tomaacutes mdash sem negar as peculiaridades do seu pensamento mdash permanece vinculado a uma tradiccedilatildeo a qual insere a sua reflexatildeo filosoacutefica na histoacuteria do pensamento eacutetico-filosoacutefico jaacute que a perda deste horizonte tradicional comprometeria a proacutepria noccedilatildeo de eacutetica como ldquociecircncia do ethosrdquo eacute primordial para noacutes Natildeo economizamos citar Vaz

35 BRAGUE Reacutemi Mediante a Idade Meacutedia Filosofias medievais na cristandade no judaiacutesmo e no islatilde Trad Edson Bini Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 63 36 Idem Ibidem p 64 37 Idem Ibidem p 65

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nestas linhas mdash e que nos seja permitido citaacute-lo ainda em alguns momentos do nosso texto mdash porque nos parece ser ele quem com maior refinamento conseguiu pensar a eacutetica tomasiana por um caminho que leva em conta estes preacircmbulos Nosso plano para os proacuteximos capiacutetulos eacute perceber o ressoar do quanto dissemos na proacutepria obra do Aquinate

Assim jaacute no terceiro capiacutetulo envidaremos esforccedilos para fazer ver como Tomaacutes recebe a Eacutetica a Nicocircmaco Nosso propoacutesito eacute exprimir quais as razotildees que levam o Aquinate a recepcionar mdash em sua obra teoloacutegica mdash a conceptualidade filosoacutefica do Estagirita Trilhando esta via exporemos em primeiro lugar os fatos histoacutericos que colocam em relevo como a eacutetica de Aristoacuteteles influenciou a redaccedilatildeo da IIa parte da Summa Theologiae Em seguida fixaremos os conceitos propriamente ditos pelos quais Tomaacutes justifica o ato de lanccedilar matildeo de um filoacutesofo da antiguidade pagatilde para conceber a sua teologia moral

Destacamos como a grande coluna deste capiacutetulo o fato de o Aquinate retomar mdash a seu modo mdash atraveacutes da sua definiccedilatildeo de virtudes cardeais a metaacutefora do ἦθος (ẽthos) como a morada do homem bem como a concepccedilatildeo de eacutetica como uma reflexatildeo mediante a qual o homem pensa de que forma pode inaugurar uma vida propriamente humana atraveacutes das suas accedilotildees Outro conceito que destacaremos entre os demais por sua importacircncia eacute o de ratio que parece realmente recuperar o de λόγος (loacutegos) enquanto o Aquinate o concebe como a capacidade de o homem situar na ldquovozrdquo (vox) a ldquopalavrardquo (verbum) que expressa um conceito a saber a palavra dotada de significado distinta por isso mesmo da sem significado ldquoA palavra que natildeo eacute significativa natildeo pode ser chamada de verbordquo38 O verbum portanto eacute um tipo especial de signum signum que por natureza se define como ldquo[] o meio de chegar ao conhecimento de outra coisardquo39 Destarte o

38 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 34 1 C ldquoVox autem quae non est significativa verbum dici non potestrdquo 39 Idem Ibidem III 60 4 C ldquoSignum autem est per quod aliquis devenit in cognitionem alteriusrdquo

44 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino verbum diz mais do que a simples vox ldquo[] a palavra humana [humanum verbum] assume voz [vocem assumit] para dar-se a conhecer sensivelmente aos homensrdquo40 Ora quando esta palavra entendiacutevel e encarnada na vox torna-se entendida por outros homens temos a ldquolinguagemrdquo (locutio) como ficaraacute claro no decorrer do texto E quando pela ldquolinguagemrdquo (locutio) os homens conseguem descobrir que certas regras das suas accedilotildees satildeo inerentes agrave sua natureza alcanccedilamos propriamente o que podemos chamar um exerciacutecio de razatildeo (ratio) praacutetica o qual torna possiacutevel que os homens comunguem a vida uns dos outros constituindo assim a civitas e a gecircnese da eacutetica enquanto ciecircncia

No quarto capiacutetulo trataremos de outro ponto central eacute possiacutevel haver uma eacutetica filosoacutefica numa teologia moral Como pode subsistir num tratado teoloacutegico mdash sem romper a sua unidade mdash uma eacutetica filosoacutefica A esta questatildeo que julgamos de grande relevacircncia buscaremos responder tentando definir qual eacute o conceito de teologia que Tomaacutes elabora

Para o quinto e uacuteltimo capiacutetulo planejamos o seguinte definir alguns conceitos-chave da eacutetica filosoacutefica tomasiana aleacutem de exemplificar alguns momentos desta mesma eacutetica sem contudo pretendermos expocirc-la sistematicamente como jaacute advertimos no comeccedilo

Na conclusatildeo procuraremos recolher os principais resultados da nossa pesquisa Nela empenhar-nos-emos por ressaltar a natildeo exaustividade do nosso trabalho os problemas que ele deliberadamente deixa em aberto e como o fato desta ldquoincompletuderdquo ser justamente o que o torna mdash assim esperamos mdash aproveitaacutevel a outros pesquisadores que pretendam retomaacute-lo agrave sua maneira

Aleacutem das fontes mdash evidentemente nosso aporte teoacuterico principal mdash figuram tambeacutem em nosso texto outros referenciais

40 Idem Compecircndio de Teologia I 219 ldquo [] Sicut autem humanum verbum vocem assumit ut sensibiliter hominibus innotescat []rdquo

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teoacutericos Os principais satildeo as obras de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz jaacute citadas nesta introduccedilatildeo Todavia podemos distinguir nosso aparato teoacuterico tambeacutem por capiacutetulos No primeiro capiacutetulo uma preleccedilatildeo do filoacutesofo e filoacutelogo italiano Emanuele Severino seraacute a nossa acircncora conceitual para as etimologias gregas sem que com isso deixemos mdash quando oportuno mdash de citar as fontes

Aqui cabe outra advertecircncia quando na transliteraccedilatildeo dos vocaacutebulos gregos natildeo seguirmos a Sociedade Brasileira de Estudos Claacutessicos (SBEC) eacute porque optamos por uma disciplina alternativa porquanto as gramaacuteticas natildeo satildeo consensuais ao apresentarem a conversatildeo dos caracteres gregos para o portuguecircs e a transliteraccedilatildeo apresentada pela SBEC natildeo segue a Nova Reforma Ortograacutefica41 onde o acreacutescimo das letras k w e y muito tem facilitado a transposiccedilatildeo dos termos para o nosso idioma42 Nossa proposta consta na lista de transliteraccedilotildees gregas a qual seguiremos homogeneamente Natildeo privilegiamos a forma foneacutetica neste trabalho mas a graacutefica43 Os aparatos teacutecnicos relativos ao grego (gramaacuteticas e dicionaacuterios) seratildeo mencionados no decurso do proacuteprio texto e na bibliografia final

41 SOCIEDADE BRASILEIRA DE ESTUDOS CLAacuteSSICOS Alfabeto grego In AUBENQUE Pierre O problema do ser em Aristoacuteteles Trad Cristiana de Souza Agostini Diocleacutezio Domingos Faustino Rev Caio Pereira 1 ed Satildeo Paulo Paulus 2012 p 7 (Coleccedilatildeo Filosofia) 42 A volta dessas letras possibilita que na transliteraccedilatildeo possamos reconhecer a palavra original devido agrave equivalecircncia inequiacutevoca que a inserccedilatildeo destas letras proporciona Um bom exemplo disso eacute o uso que as gramaacuteticas gregas em liacutengua portuguesa fazem do y na transliteraccedilatildeo como na palavra οὐσία Note que apesar de o y grego (υ) ter a forma visual semelhante ao nosso u portuguecircs basta que se coloque em caixa alta para perceber a distinccedilatildeo (ΟΥΣΙΑ = οὐσία) Constata-se assim que satildeo letras diferentes Como o portuguecircs brasileiro natildeo continha k w e y natildeo havia uma letra em nosso alfabeto que pudesse representar o υ grego Com a Nova Reforma Ortograacutefica as letras k w e y comeccedilaram a vigorar e doravante podemos fazer a correspondecircncia graacutefica equivalente ao grego do υ (y) ao inveacutes de usar o u como sempre ocorreu Como a SBEC natildeo alterou seu sistema transliteraacuterio apoacutes a Nova Reforma Ortograacutefica optamos por fazer uso do y contrariamente agrave literatura vigente mesmo quando os termos apresentam foneticamente o som de u como nos ditongos proacuteprios (FREIRE Op Cit p 7) 43 Por exemplo a conjunccedilatildeo aditiva ldquoerdquo se escreve kaiacute em grego mas se lecirc ldquokaacuteirdquo Isso ocorre porque no grego nem sempre a tocircnica recai sobre a vogal acentuada como no caso dos ditongos proacuteprios acentuados cujo acento demarca a semivogal e natildeo a vogal como eacute de costume pronunciar em portuguecircs (ex reacuteu) (FREIRE Op Cit pp 9-10)

46 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Tambeacutem optamos por destacar com itaacutelico os termos em latim e as transliteraccedilotildees do grego mas conservamos normalmente as palavras gregas com seus caracteres originais para facilitar a identificaccedilatildeo e distinccedilatildeo de alguns sinais que se confundem em itaacutelico como as aspiraccedilotildees (lsquo e rsquo) e o acento agudo (acute) Sempre que houver algum termo grego que possa causar duacutevida quanto agrave escrita seraacute acompanhado pela referecircncia em que nos apoiamos

No segundo capiacutetulo algumas obras de Aristoacuteteles mdash particularmente a Eacutetica a Nicocircmaco44 mdash seratildeo o nosso suporte principal aleacutem de uma preleccedilatildeo e vaacuterias obras do principal estudioso italiano de Aristoacuteteles na atualidade Enrico Berti

No terceiro quarto e quinto capiacutetulos o nosso apoio fundamental seraacute a Suma de Teologia de Tomaacutes e algumas obras do Boi Mudo compostas antes ou durante a sua redaccedilatildeo Entre estas destacamos a Summa Contra Gentiles 45 cuja redaccedilatildeo precedeu a da Summa Theologiae46 e o Compendium Theologiae47 O fato de natildeo nos atermos agrave Suma de Teologia deve-se ao consenso hoje estabelecido de que natildeo se pode mdash sem perda de perspectivas mdash interpretar a Summa sem recorrer a outras obras do mesmo periacuteodo ou precedentes Jaacute em um estudo de Martin Grabmann mdash um dos mais dedicados leitores da Summa Theologiae da primeira metade do seacuteculo passado mdash existe este indicativo Depois de acenar para a importacircncia capital da Summa declara

44 A Ēthikagrave Nikomaacutekheia (Ἠθικὰ Νικομάχεια) seraacute citada habitualmente a partir da traduccedilatildeo brasileira consignada na Coleccedilatildeo Os Pensadores conforme indicaremos no decorrer do texto Os termos gregos mais importantes seratildeo citados entre colchetes a partir da ediccedilatildeo biliacutengue espanhola de Mariacutea Arauacutejo e Juliaacuten Mariacuteas Quando poreacutem a traduccedilatildeo brasileira for por alguma razatildeo insatisfatoacuteria traduziremos a partir da versatildeo espanhola colocando o original espanhol no rodapeacute 45 Utilizaremos a ediccedilatildeo biliacutengue da Summa contra Gentiles (1258 a 1264) na traduccedilatildeo brasileira de Odilatildeo Moura revista recentemente (1996) por Luis Alberto De Boni 46 Transitaremos pela ediccedilatildeo biliacutengue da Summa Theologiae na sua nova traduccedilatildeo brasileira das Ediccedilotildees Loyola que resultou no aparecimento de nove volumes entre os anos de 2001 a 2006 47 Frequentaremos o Compendium Theologiae em duas ediccedilotildees A primeira e jaacute citada nesta introduccedilatildeo eacute uma ediccedilatildeo biliacutengue vertida para o vernaacuteculo por Carlos Nougueacute Tambeacutem trafegaremos por uma traduccedilatildeo mais antiga de Odilatildeo Moura (1977) Doravante sempre que usarmos a ediccedilatildeo biliacutengue faremos a ressalva a fim de distinguir as duas ediccedilotildees

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Pelo contraacuterio para a investigaccedilatildeo cientiacutefica que escruta um a um os problemas da doutrina tomista no ponto de vista histoacuterico e especulativo as demais obras do Aquinate satildeo tambeacutem uma fonte indispensaacutevel e por outra parte inesgotaacutevel Consagrados a trabalhos de pormenor exerceram estes escritos maior influecircncia sobre o pensamento e a obra de S Tomaacutes e em consequumlecircncia sobre o nascimento a elaboraccedilatildeo e o acabamento da poderosa siacutentese que encontramos na Suma Teoloacutegica seu estudo lanccedilaraacute pois uma viva luz sobre a proacutepria Suma e ajudar-nos-aacute a melhor penetrar-lhe o sentido [] Quem desejar conhecer e aclarar o lado aristoteacutelico da Suma Teoloacutegica e portanto seu fundamento filosoacutefico essencial deve seguir ao mesmo tempo o Aquinate em seu laboratoacuterio filosoacutefico nos comentaacuterios sobre Aristoacuteteles onde forja os instrumentos de sua especulaccedilatildeo48

Ressaltamos que as principais passagens das obras

tomasianas seratildeo citadas de forma biliacutengue sempre com o latim no rodapeacute O original latino seraacute sempre citado a partir do texto Taurino editado em 1953 e transferido automaticamente por Roberto Busa em fitas magneacuteticas e uma vez mais revisto e ordenado por Enrique Alarcoacuten 49 Ademais nos supracitados capiacutetulos comparecem ainda os comentadores de Tomaacutes Entre eles mencionamos a historiadora da filosofia medieval Sofia Vanni

48 GRABMANN Martinho Introduccedilatildeo agrave Suma Teoloacutegica de Santo Tomaacutes de Aquino Trad Francisco Lage Pessocirca Rio de Janeiro Editora Vozes 1994 pp 29-30 [O itaacutelico eacute nosso] Tambeacutem Gilson salienta a necessidade do recurso a outras obras de Tomaacutes quando se quer aprofundar as posiccedilotildees da Summa Theologiae Vale a transcriccedilatildeo GILSON A Filosofia na Idade Meacutedia p 655 ldquoA exposiccedilatildeo completa mas tatildeo simplificada quanto possiacutevel da filosofia tomista se encontra na primeira e segunda partes da Suma teoloacutegica Eacute aiacute nessas questotildees expressamente redigidas por santo Tomaacutes para os principiantes que conveacutem buscar uma primeira iniciaccedilatildeo a seu pensamento A Summa contra os gentios conteacutem a mesma doutrina mas pretende fundaacute-la tatildeo completamente quanto possiacutevel numa demonstraccedilatildeo racional Eacute aiacute pois que se deve buscar a discussatildeo aprofundada dos problemas resolvidos na Suma teoloacutegica eles satildeo retomados examinados sob todos os acircngulos submetidos agrave prova de inuacutemeras objeccedilotildees e eacute somente depois de ter triunfado sobre essas muacuteltiplas provas de resistecircncia que as soluccedilotildees satildeo definitivamente consideradas verdadeiras Enfim para os casos em que um novo aprofundamento dos problemas pareccedila necessaacuterio deve-se procurar tanto nas Questotildees disputadas como nos Quodlibeta O conhecimento de certas questotildees disputadas como as Quaestiones de Veritate ou o De Potentia por exemplo natildeo eacute menos indispensaacutevel do que o das duas Sumas para quem quiser penetrar ateacute o fundo do pensamento de santo Tomaacutesrdquo 49 CORPUS THOMISTICUM Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorggt

48 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Rovighi e o medievalista francecircs Eacutetienne Gilson Em cada capiacutetulo colocamos agrave vista do leitor as referecircncias bibliograacuteficas Cada capiacutetulo apresenta tambeacutem uma introduccedilatildeo as devidas subdivisotildees uma conclusatildeo mdash logicamente parcial mdash assim como um fio condutor que o liga ao proacuteximo Na dinacircmica que resolvemos dar agrave nossa exposiccedilatildeo encontramos por vezes a necessidade de aprofundar temas jaacute tratados em capiacutetulos anteriores e a voltar a passagens jaacute citadas Quando isso ocorrer procuraremos justificar a razatildeo do nosso retorno agrave temaacutetica e ao periacuteodo Toda esta nossa propedecircutica quer atestar que mesmo quando fazemos digressotildees nossa direccedilatildeo eacute sempre para Tomaacutes e a nossa temaacutetica tal como a tentamos circunscrever nesta introduccedilatildeo tambeacutem remonta ao Aquinate

Capiacutetulo I Filosofia e Eacutetica

Uma vez que trataremos da eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino julgamos pertinente determo-nos por um instante na relaccedilatildeo existente entre filosofia e eacutetica a fim de estabelececirc-la E para que a nossa abordagem natildeo fique fechada no medievo mas se torne um texto mais aberto optamos por nos reportar primeiramente aos gregos mostrando em seguida como Tomaacutes mdash agrave sua maneira mdash retorna a eles Neste capiacutetulo portanto eacute nosso propoacutesito patentear que a filosofia nasce tambeacutem como ἦθος (ẽthos) 1 mdash com o η inicial mdash entendendo por este termo a pretensatildeo humana de construir um espaccedilo na ldquofyacutesisrdquo (φύσις) habitaacutevel para o homem

O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do ethos [] A metaacutefora da morada e do abrigo indica justamente que a partir do ethos o espaccedilo do mundo torna-se habitaacutevel para o homem2

Para tanto focaremos em alguns conceitos-chave Antes de

tudo abordaremos o ldquothaỹmardquo (θαῦμα) como origem do filosofar Em seguida discorreremos acerca da etimologia da palavra ldquofilosofiacuteardquo (φιλοσοφία) entendida como ldquofiliacuteardquo (φιλία) agrave ldquosofiacuteardquo (σοφία) que se desabrocha na persecuccedilatildeo e consecuccedilatildeo da

1 A bem da verdade a filosofia nasce poliacutetica no sentido de que ela nasce na e com a poacutelis nasce da poacutelis A filosofia comeccedila na Agoraacute [Ἀγορά] na praccedila sua gecircnese coincide pois com a do espaccedilo puacuteblico Como afirma Petrucciani a argumentaccedilatildeo filosoacutefica em seu iniacutecio eacute um fenocircmeno eminentemente urbano PETRUCCIANI Stefano Modelos de Filosofia Poliacutetica Trad Joseacute Raimundo Vidigal Satildeo Paulo Paulus 2014 p 37 ldquoA cidade-estado grega eacute o lugar no qual aparece pela primeira vez aquela novidade radical que eacute a discussatildeo poliacutetica no espaccedilo puacuteblico Com ela e junto com ela nascem aquelas praacuteticas que tecircm sido caracteriacutesticas por toda a histoacuteria da civilizaccedilatildeo ocidental como o discurso argumentativo a filosofia o debate poliacutetico o pensamento poliacuteticordquo 2 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura pp 12-13 Esta concepccedilatildeo de ẽthos precisa mdash sem duacutevida mdash ser completada Faremos este complemento no proacuteximo capiacutetulo mas desde jaacute podemos fixar que esta acepccedilatildeo de ἦθος (ẽthos) eacute bem atestada pelos filoacutelogos mais renomados (CHANTRAINE ἦθος [ẽthos] In Op Cit p 407)

50 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ldquoalḗtheiardquo (ἀλήθεια) luz inconteste Depois falaremos da filosofia como ldquotheōriacuteardquo (θεωρία) isto eacute como contemplaccedilatildeo que se daacute quando da posse da ldquoalḗtheiardquo que alcanccedilada atraveacutes do ldquodiaacutelogosrdquo (διάλογος) e esquematizada daacute origem agrave ldquoepistḗmērdquo (ἐπιστήμη)

Em todo este percurso projetamos acenar como Tomaacutes acolhe mdash agrave sua maneira mdash estes conceitos Mas cumpre deixarmos algo claro Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo esgotar a temaacutetica do nascimento da filosofia tampouco exaurir a riqueza dos conceitos arrolados nem a sua ressonacircncia em Tomaacutes Pretendemos apenas assinalar que a filosofia nasce tambeacutem como interrogaccedilatildeo acerca do ἦθος (ẽthos) mdash no sentido que por ora demos a este termo mdash e como o Aquinate segundo percebemos concebe-a assim A nossa fonte mdash maacutexime quanto agraves etimologias mdash seraacute a preleccedilatildeo de Emanuele Severino I Presocratici e la nascita della filosofia que integra a primeira seacuterie da coletacircnea Il Caffegrave Filosofico3 Quanto a Tomaacutes suas obras seratildeo a nossa fonte Passemos a considerar o thaỹma 11 DO MITO Agrave FILOSOFIA O ldquoTHAỸMArdquo COMO PRINCIacutePIO DO FILOSOFAR

Diz Aristoacuteteles na Metafiacutesica que a filosofia nasce do thaỹma (θαῦμα)4 O termo thaỹma comodamente traduzido por

3 I PRESOCRATICI e la nascita della filosofia Apresentado por Emanuele Severino Roma La repubblica e Lrsquoespresso 2009 1 DVD (90 min) widescreen color (Collana Il Caffegrave Filosofico v 1) Aqui vale uma advertecircncia seguiremos Emanuele Severino mormente enquanto filoacutelogo e estudioso dos primoacuterdios da filosofia sem desconhecer que ele tambeacutem eacute um eminente filoacutesofo Mas enquanto filoacutesofo suas conclusotildees satildeo o mais das vezes antiteacuteticas agraves dos autores que privilegiaremos 4 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 10 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 ldquoDe fato os homens comeccedilaram a filosofar agora como na origem por causa da admiraccedilatildeo [θαυμάζεινthaymaacutezein] na medida em que inicialmente ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples []rdquo Observemos a razatildeo da admiraccedilatildeo ficavam perplexos assustados ou assombrados diante das dificuldades mais simples Ademais importa ressaltarmos que Aristoacuteteles aqui daacute realce a um dito de Platatildeo PLATOacuteN Teeteto Trad Aacutelvaro Vallejo Campos Rev Fernando Garciacutea Romero Madrid Editorial Gredos 1992 t V 155 d ldquoQuerido amigo parece que Teodoro no se ha equivocado al juzgar tu condicioacuten natural pues experimentar eso que llamamos la admiracioacuten es muy caracteriacutestico del filosofo Eacuteste y no otro efetivamente es la origen de la filosofiacuteardquo ldquoSoacutecrates mdash Querido amigo parece que Teodoro natildeo se equivocou ao julgar sua condiccedilatildeo natural pois

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ldquomaravilhardquo evoca muito mais do que comumente se pensa a saber um indiviacuteduo que se admira diante de algo que antes simplesmente natildeo lhe causava espanto algum No original thaỹma quer dizer ldquomedordquo ldquoterrorrdquo5 Mas medo de quecirc Sobretudo da dor da infelicidade e da morte Em razatildeo disso a filosofia nasce tambeacutem do terror isto eacute do medo do homem em face da dor e da morte

Entretanto este caminho conheceu preacircmbulos Diante do estupor causado pelos fenocircmenos da natureza por vezes terrificantes e ateacute ameaccediladores o homem de antanho a priori sem recursos acurados para explicaacute-los comeccedilou por atribuiacute-los agrave vontade arbitraacuteria de figuras humanas que se lhe apresentavam como mais potentes do que ele A estas figuras humanas denominou deuses Por isso os deuses foram os que por primeiro passaram a dar sentido a todos os fenocircmenos naturais e a ser a explicaccedilatildeo natural do homem ante a precariedade da sua existecircncia tatildeo contingente quanto agraves coisas que o cercam A respeito do ldquomedordquo do homem ao perceber a sua contingecircncia Selvaggi assinala

Se com efeito o mundo existia quando outros ldquoeusrdquo natildeo existiam e continua a existir quando eles natildeo existem mais natildeo eram

experimentar isso que chamamos admiraccedilatildeo eacute muito caracteriacutestico do filoacutesofo Isto e natildeo outra coisa efetivamente eacute a origem da filosofiardquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 5 CHANTRAINE θαῦμα [thaỹma] In Op Cit p 424 BAILLY θαῦμα [thaỹma] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais p 413 Paris Librairie Hachette 1901 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Ambos os linguistas atestam existir a acepccedilatildeo do termo thaỹma como maravilha objeto de espanto e de admiraccedilatildeo mas tambeacutem de assombro monstruoso A propoacutesito tambeacutem Tomaacutes fala de um temor que causa admiraccedilatildeo TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 41 4 C ldquoMalum autem quod in exterioribus rebus consistit triplici ratione potest excedere hominis facultatem ad resistendum Primo quidem ratione suae magnitudinis cum scilicet aliquis considerat aliquod magnum malum cuius exitum considerare non sufficit Et sic est admiratiordquo ldquoO mal que estaacute nas coisas exteriores pode ultrapassar a capacidade do homem de trecircs maneiras 1 em razatildeo de sua grandeza Quando algueacutem considera um grande mal e natildeo consegue ver como sair dele Haacute entatildeo admiraccedilatildeo []rdquo Mais adiante nas respostas agraves objeccedilotildees o Aquinate afirma que esta espeacutecie de temor que eacute causa de admiraccedilatildeo eacute o princiacutepio do filosofar Idem Ibidem I-II 41 4 ad 5 ldquoUnde admiratio est principium philosophandi []rdquo ldquoPor isso a admiraccedilatildeo eacute o princiacutepio do filosofar []rdquo

52 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

necessaacuterios para o mundo satildeo temporais e satildeo contingentes porque o mundo ldquopode existirrdquo sem eles e de fato existia ou existe Mas o que vale para os outros vale tambeacutem para mim que lhes sou semelhante Portanto tambeacutem eu natildeo sou necessaacuterio para o mundo sou temporal e contingente e o mundo o mundo real que eacute o ldquomeurdquo mundo pode existir sem mim6

Mas o fato eacute que com estas primeiras espeacutecies de narraccedilatildeo

mdash mỹthos (μῦθος)7 em grego significa exatamente narraccedilatildeo mdash o homem tentava dar sentido ao seu assombro ante os fenocircmenos naturais ao mesmo tempo que buscava responder agrave sua vulnerabilidade diante deles Hoje conhecemos estas narraccedilotildees pelo nome de mitologia A princiacutepio eram apenas tradiccedilotildees orais Todavia na Greacutecia Homero e Hesiacuteodo mdash valendo-se de uma linguagem poeacutetica mdash comeccedilaram a consignar estas narraccedilotildees incorporando-as desta sorte ao registro da histoacuteria Aqui eacute muito importante notarmos o marco que a mitologia daacute porquanto doravante o homem natildeo procura mais defender-se da dor e da morte mdash e de tudo o que ameaccedila a sua vida mdash somente mediante ldquoteacutecnicasrdquo rudimentares ou procedimentos meramente ldquopraacuteticosrdquo mas tambeacutem buscando adquirir um senso do mundo que de certa forma sirva de proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade Em outras palavras o homem comeccedila a valer-se mdash de uma forma nova mdash do loacutegos (λόγος) para viver (deveras natildeo ainda o loacutegos filosoacutefico) Reiteramos que isso eacute marcante porque o fato de dar sentido agraves coisas e agrave proacutepria existecircncia passa a servir como uma espeacutecie de ldquoremeacutediordquo ao homem que se sente ameaccedilado Aristoacuteteles chega a dizer que quem ama o mito jaacute eacute sob certo aspecto filoacutesofo

6 SELVAGGI Filippo Filosofia do Mundo Cosmologia Filosoacutefica Trad Alexander A Macintyre Rev H C de Lima Vaz Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1988 p 28 7 O termo mỹthos eacute encontrado de formas diversas nos dicionaacuterios ora com circunflexo ora com acento agudo como trazem os dicionaacuterios de grego moderno (MANIATOGLOU Maria da Piedade Faria Dicionaacuterio grego-portuguecircs 1 ed Porto Porto Editora 2010 p 906) Damos preferecircncia para a grafia mais antiga segundo a etimologia do grego claacutessico como eacute encontrada na obra de CHANTRAINE Μῦθος [mỹthos] Op Cit p 735

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Ora quem experimenta a sensaccedilatildeo de duacutevida e de admiraccedilatildeo reconhece que natildeo sabe e eacute por isso que tambeacutem aquele que ama o mito eacute de certo modo filoacutesofo o mito com efeito eacute constituiacutedo por um conjunto de coisas admiraacuteveis8

Eacute necessaacuterio acentuarmos ainda outro aspecto o homem

vive o mito natildeo como uma faacutebula e a escrita miacutetica em forma de poesia natildeo diminui em nada a forccedila que o mito exerce sobre ele Por isso eacute preciso esclarecermos que quando se diz que o mito eacute uma narraccedilatildeo poeacutetica isto natildeo significa de forma alguma que o homem vetusto o acolhe como uma faacutebula antes ele o recebe como algo produzido (poeacutetico vem de poiacuteēsis [ποίησις] = produccedilatildeo) por ele mesmo a partir da observaccedilatildeo de fatos atestaacuteveis e a fim de responder agrave precariedade existencial com a qual se depara e que o assombra a todo instante

Acontece poreacutem mdash e vale salientarmos que isto eacute peculiar ao gecircnio grego mdash que os mitos aos poucos vatildeo-se tornando insuficientes porque no final das contas todos eles satildeo passiacuteveis de ser negados visto que se respondem agrave sorte infausta do homem pelas representaccedilotildees fantaacutesticas natildeo respondem a ela com o rigor de um raciociacutenio irrefutaacutevel Nasce entatildeo o desejo de saber9 isto eacute de adquirir um conhecimento tatildeo soacutelido quanto indestrutiacutevel ou seja um conhecimento que natildeo seja mais negaacutevel nem passiacutevel de ser desmentido E adquirir este saber eacute mister pois sem ele o homem pode sempre volver ao estado de ldquoescravordquo do medo da dor e da morte pela duacutevida Por isso urge a aquisiccedilatildeo deste saber seguro e irrefutaacutevel que possa resguardar o homem do temor do infortuacutenio e da morte

Ora esta procura constante por um saber indefectiacutevel apresenta-se tambeacutem como a busca de algo a que os gregos

8 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 15 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 9 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 980 a In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 ldquoTodos os homens por natureza tendem ao saberrdquo

54 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino chamaram verdade e que natildeo eacute senatildeo a marca primeira do proacuteprio filosofar Portanto a filosofia nasce existencial uma vez que por ela o homem espera encontrar o remeacutedio definitivo que o ajude a se libertar da escravidatildeo da dor da desdita e da morte Mas a filosofia exprime-se ainda como ἦθος (ẽthos) entendendo sempre por este termo a pretensatildeo de o homem produzir (poiacuteēsis [ποίησις] = produccedilatildeo)10 por meio de um modo de portar-se ante o mundo e ante os seus semelhantes um espaccedilo humano que ainda natildeo estaacute dado Para consumaacute-lo o homem teraacute de passar do ldquoloacutegos miacuteticordquo ao filosoacutefico e assim chegar agrave reflexatildeo que constituiraacute a Eacutetica enquanto ciecircncia do eacutethos Lima Vaz indica este processo de forma feliz

Eacute pois no espaccedilo do ethos que o logos torna-se compreensatildeo e expressatildeo do ser do homem como exigecircncia radical de dever-ser ou do bem Assim na aurora da filosofia grega Heraacuteclito entendeu o ethos na sua sentenccedila ceacutelebre ethos antrocircpo daiacutemocircn O ethos eacute na concepccedilatildeo heracliacutetica regido pelo logos e eacute nessa obediecircncia ao logos que se datildeo os primeiros passos em direccedilatildeo agrave Eacutetica como saber racional do ethos assim como iraacute entendecirc-la a tradiccedilatildeo filosoacutefica do Ocidente11

Prossigamos na nossa tentativa de entender como o

itineraacuterio da eacutetica comeccedila a se delinear a partir da especulaccedilatildeo grega 12 FILOSOFIA E ldquoALḖTHEIArdquo A FILOSOFIA COMO ldquoFILIacuteArdquo Agrave ldquoSOFIacuteArdquo

Diziacuteamos acima acerca da importacircncia da busca da verdade Mas o que eacute a verdade Para o grego antigo a verdade eacute

10 Natildeo precisamos carregar a tinta todas as vezes que usamos o termo grego poiacuteēsis a fim de opor o fazer (obra que transita do sujeito para o objeto) ao agir (obra que termina no sujeito) Podemos entender o ldquoagirrdquo tambeacutem como uma produccedilatildeo construccedilatildeo De qualquer forma voltaremos com maior detenccedila a esta questatildeo numa nota que se encontra no proacuteximo capiacutetulo 11 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13

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alḗtheia (ἀλήθεια) O ldquoαrdquo aqui eacute uma partiacutecula privativa 12 enquanto lḗthē (λήθη)13 significa ldquoesquecimentordquo Logo alḗtheia eacute o que natildeo se pode esquecer porque patente evidente manifesto14 Diziacuteamos ainda que quem busca a verdade eacute o filoacutesofo Mas o que eacute a filosofiacutea (φιλοσοφία) Este termo eacute comumente traduzido e explicado por ldquoamor agrave sabedoriardquo Poreacutem isso natildeo basta para dizecirc-lo em seu sentido mais profundo Com efeito que amor eacute este Fiacutelos (φίλος) deriva de filiacutea (φιλία) que significa um amor de atenccedilatildeo de cuidado de curadoria Sofiacutea (σοφία) por seu lado vem

12 FREIRE Antocircnio Op Cit p 266 13 CHANTRAINE λήθη [lḗthē] In Op Cit p 636 Chantraine remete o leitor ao verbo λανθάνω Idem Λανθάνω [lanthaacutenō] Op Cit p 618 Tambeacutem Bailly usa do mesmo expediente BAILLY Λανθάνω [lanthaacutenō] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 516 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Os dois estudiosos preveem o significado de lḗthē como o que estaacute oculto escondido bem como o que eacute ignorado esquecido negligenciado No final da Repuacuteblica na narrativa do mito de Er lḗthē eacute o nome dado agrave planiacutecie de cujo rio as almas eram obrigadas a beber a aacutegua e as que bebiam mais do que deviam se esqueciam de tudo PLATOacuteN Repuacuteblica Trad Conrado Eggers Lan Rev Alberto Del Pozo Ortiz Madrid Editorial Gredos 1986 t IV X 621 a-b ldquoDespueacutes de que pasaron tambieacuten las demaacutes marcharon todos hacia la planicie del Olvido a traveacutes de un calor terrible y sofocante En efecto la planicie estaba desierta de aacuterboles y de cuanto crece de la tierra Llegada la tarde acamparon a la orilla del riacuteo de la Desatencioacuten cuyas aguas ninguna vasija puede retenerlas Todas las almas estaban obligadas a beber una medida de agua pero a algunas no las preservaba su sabiduriacutea de beber maacutes allaacute de la medida y asiacute tras beber se olvidaban de todordquo ldquoDepois passaram tambeacutem as demais marcharam todas para a planiacutecie do Esquecimento [lḗthē] atraveacutes de um calor terriacutevel e sufocante Com efeito a planiacutecie estava deserta de aacutervores e de tudo quanto cresce da terra Chegada a tarde acamparam agrave margem do rio da Desatenccedilatildeo cujas aacuteguas nenhuma vasilha pode retecirc-las Todas as almas estavam obrigadas a beber uma medida de aacutegua poreacutem a algumas natildeo as preservava a sua sabedoria de beber aleacutem da medida e assim depois de beber esqueciam-se de tudordquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 14 MOLINARO Aniceto Metafiacutesica curso sistemaacutetico Trad Joatildeo Paixatildeo Netto e Roque Frangiotti Rev Zolferino Tonon Satildeo Paulo Paulus 2014 pp 16-17 ldquoAleacutetheia significa etimologicamente natildeo escondimento a condiccedilatildeo daquilo que eacute na luz inegaacutevelrdquo Uma passagem do Fedro mostra com clareza a oposiccedilatildeo entre alḗtheia e lḗthē PLATOacuteN Fedro Trad Eacute Lledoacute Iacutentildeigo Rev Carlos Garciacutea Editorial Gredos Madrid 1988 t III 248 c ldquoCualquier alma que en el sequito de lo divino haya vislumbrado algo de lo verdadero estara indemne hasta el proximo giro y simpre que haga lo mismo estara libre de dano Pero cuando por no haber podido seguirlo no lo ha visto y por cualquier azaroso suceso se va gravitando llena de olvido y dejadez debido a este lastre pierde las alas y cae a tierrardquo ldquoQualquer alma que no seacutequito do divino tenha vislumbrado algo do verdadeiro estaraacute indene ateacute a proacutexima roda e sempre que faccedila o mesmo estaraacute livre do dano Poreacutem quando por natildeo haver podido segui-lo natildeo o viu e por qualquer evento desafortunado vai gravitando cheia de esquecimento [λήθηlḗthē] e negligecircncia devido a este lastro perde as asas e cai na terrardquo [A traduccedilatildeo eacute nossa]

56 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino de safḗs (σαφής)15 que significa claro luminoso O fḗs de safḗs vem de fȭs (φῶς) que designa luz Daiacute por exemplo a nossa palavra ldquofoto-grafiardquo (φωτο-γραφία) = grafia da luz Por conseguinte sofiacutea eacute o que natildeo se esconde o que essencialmente se mostra e o que precisamente por natildeo poder ser negado por ser uma luz inexpugnaacutevel natildeo pode ser tomado como uma mera ilusatildeo passando a figurar como um saber imorredouro Entatildeo o que eacute a filosofia Eacute a busca cuidadosa eacute a vontade de alcanccedilar a sofiacutea a saber a claridade a luz que se mostra e que natildeo se esconde e que por isso natildeo pode ser negada Por outro lado jaacute sabemos que a verdade (alḗtheia) eacute a que possui estes predicados Sendo assim a filosofia eacute a procura contiacutenua da sabedoria que se possui quando da posse da verdade isto eacute da luz incontrovertida16 a qual por sua vez seraacute como que a ldquoterapiardquo para o nosso medo da dor da desventura e da morte

Pela busca da verdade o homem tenta destacar-se daquilo que o rodeia e escapar agraves vicissitudes da sua proacutepria existecircncia a fim de construir um haacutebitat que lhe seja proacuteprio Assim sendo temos que a filosofia mdash mesmo com uma preponderante valecircncia teoreacutetica mdash nasce tambeacutem com uma exigecircncia ldquoeacuteticardquo que eacute muito mais do que mera necessidade ldquopragmaacuteticardquo (ldquotecnocratardquo diriacuteamos hoje) ao contraacuterio trata-se da afirmaccedilatildeo do homem enquanto homem que busca fazer um mundo onde possa viver humanamente Falamos pois de uma exigecircncia existencial

Este sentido de um lugar de estada permanente e habitual de um abrigo protetor constitui a raiz semacircntica que daacute origem agrave significaccedilatildeo do ethos como costume esquema praxeoloacutegico duraacutevel estilo de vida e accedilatildeo [] O domiacutenio da physis ou reino

15 CHANTRAINE σαφής [safḗs] In Op Cit p 991 BAILLY Σάφα [Saacutefa] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 782 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Ambos os autores falam de safḗs como o que eacute claro manifesto luminoso 16 MOLINARO OpCit p 16 ldquoA filosofia nesse caso eacute amor procura cuidado interesse por tudo o que por estar na luz do ser eacute absolutamente inegaacutevel eacute amor agrave verdade irrefutaacutevelrdquo

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da necessidade eacute rompido pela abertura do espaccedilo humano do ethos no qual iratildeo inscrever-se os costumes os haacutebitos as normas os valores e as accedilotildees17

Voltando ao tema da filosofia afirmaacutevamos que ela se

configura mdash desde os seus primoacuterdios mdash essencialmente como a busca da verdade Tomaacutes de Aquino retoma esta concepccedilatildeo quando assevera ldquo[] o estudo da filosofia natildeo eacute para que seja conhecido o que os homens pensaram mas para conhecer qual eacute a verdade das coisasrdquo18 Dito de outra forma podemos afirmar que a filosofia mdash em sua gecircnese mdash apresenta-se como uma busca ininterrupta pelo fundamento do devir ou seja o ldquoserrdquo Por isso tambeacutem a filosofia mostra-se mdash desde o seu iniacutecio mdash desejosa de conhecer a causa primeira de todas as coisas De sorte que ela aspira a ser uma ldquociecircnciardquo um conhecimento dotado de racionalidade proacutepria de controle proacuteprio Tambeacutem este rigor eacute muito bem frisado por Tomaacutes quando diz ldquo[] as liccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo recebidas por causa da autoridade de quem as diz mas por causa da razatildeo do que se diz []rdquo19 Alhures afirma ainda o Aquinate

Outra disputa eacute a do professor nas escolas natildeo para remover o erro mas para instruir os ouvintes e levaacute-los agrave intelecccedilatildeo da verdade que se apresenta Entatildeo eacute necessaacuterio apoiar-se em razotildees que procurem a raiz da verdade e faccedilam saber como seja

17 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13 18 TOMAacuteS DE AQUINO De caelo Lib 1 22 n8 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgccm1htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] quia studium philosophiae non est ad hoc quod sciatur quid homines senserint sed qualiter se habeat veritas rerumrdquo Idem Suma Teoloacutegica I 107 2 C ldquoNon enim pertinet ad perfectionem intellectus mei quid tu velis vel quid tu intelligas cognoscere sed solum quid rei veritas habeatrdquo ldquoCom efeito natildeo pertence agrave perfeiccedilatildeo de meu intelecto saber o que tu queres ou conheces mas somente qual eacute a verdade da coisa Conhecer o que o outro pensa natildeo eacute algo insosso inoacutecuo eacute parar nas opiniotildees subjetivas sem se chegar agrave verdade 19 TOMAacuteS DE AQUINO Super De Trinitate pars 1 q 2 a 3 ad 8 Disponiacutevel em lt httpwwwcorpusthomisticumorgcbthtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoAd octavum dicendum quod in quantum sacra doctrina utitur philosophicis documentis propter se non recipit ea propter auctoritatem dicentium sed propter rationem dictorum []rdquo

58 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

verdadeiro o que eacute dito De outro modo se um mestre determina uma questatildeo por autoridades nuas o ouvinte ficaraacute certificado de que eacute assim mas natildeo adquiriraacute nenhuma ciecircncia e inteligecircncia e se retiraraacute vazio [vacuus abscedet]20

Aleacutem disso a filosofia nasce ainda mdash ratificamos mdash

existencial porque de algum modo procedente do terror do homem ante a morte iminente terror este que o faz buscar construir mdash atraveacutes de um loacutegos (λόγος) cada vez mais depurado mdash uma habitaccedilatildeo que o distinga daquilo que o ameaccedila um abrigo A bem da verdade a filosofia nasce ontoloacutegica e existencial ao mesmo tempo A perspectiva existencial enraiacuteza-se na perplexidade do homem perante o devir das coisas e dele proacuteprio enquanto a perspectiva ontoloacutegica consiste na resposta adequada do homem frente a esta anguacutestia resposta esta que se encontra na aquisiccedilatildeo da verdade vale dizer da sabedoria que natildeo eacute senatildeo o ser enquanto fundamento do real Temos entatildeo que o aspecto existencial e o ontoloacutegico embora distintos satildeo indissociaacuteveis Em uma palavra atraveacutes do loacutegos mdash que lhe confere acesso ao ser mdash o homem busca produzir uma ambiecircncia onde possa viver segundo o lugar que lhe cabe na hierarquia dos seres

Outrossim eacute preciso notar tambeacutem como a filosofia aspira mdash desde o seu princiacutepio mdash a um caraacuteter ldquosocialrdquo e como o ẽthos que ela reclama abriga mdash a um soacute tempo mdash uma valecircncia individual e social uma vez que o que estaacute em jogo eacute a construccedilatildeo de um mundo onde todos os homens possam viver humanamente ldquoA experiecircncia primeira do ethos revela por outro lado uma estrutura dual caracteriacutestica e constitutiva o ethos eacute

20 TOMAacuteS DE AQUINO Quodlibet IV q 9 a 3 co Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgq04htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoQuaedam vero disputatio est magistralis in scholis non ad removendum errorem sed ad instruendum auditores ut inducantur ad intellectum veritatis quam intendit et tunc oportet rationibus inniti investigantibus veritatis radicem et facientibus scire quomodo sit verum quod dicitur alioquin si nudis auctoritatibus magister quaestionem determinet certificabitur quidem auditor quod ita est sed nihil scientiae vel intellectus acquiret et vacuus abscedetrdquo

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inseparavelmente social e individualrdquo 21 O filoacutesofo italiano Salvatore Natoli concebe a eacutetica antes de mais como o exerciacutecio do homem virtuoso a esculpir o mundo humano tornando esta terra capaz de hospedar a comunidade humana a fim de que haja um espaccedilo que seja um abrigo seguro para a estada desta comunidade A eacutetica eacute pois o criar as possibilidades de uma habitaccedilatildeo um tornar possiacutevel o existir do homem enquanto homem Ora nenhum ser humano sozinho pode criar esta morada para os seus semelhantes Daiacute a face social irrenunciaacutevel da eacutetica

O ser humano vive no mundo porque algueacutem o pocircs nele vive porque algueacutem o acolhe Encontra-se portanto desde o iniacutecio situado numa rede de relaccedilotildees da qual natildeo pode prescindir A eacutetica corresponde ao modo como os seres humanos habitam a terra e por isso antes mesmo de estar relacionada ao dever tem a ver com o habitar e em sentido estrito com o existir De fato a palavra grega eacutethos aleacutem de significar costume mdash justamente costume moral mdash tambeacutem significa estadia sede morada [] Ao vir ao mundo o ser humano toma posiccedilatildeo nele entra em relaccedilotildees de pertencimento [] A eacutetica coincide portanto com o pertencimento e ao mesmo tempo com o sentir-se parte22

Mas tentemos entender melhor como este aspecto dual

apontado acima jaacute se encontra nas origens da filosofia 13 A FILOSOFIA COMO ldquoTHEŌRIacuteArdquo O NASCIMENTO DA ldquoEPISTḖMĒrdquo PELO PROCEDER DO ldquoDIAacuteLOGOSrdquo

O que se segue quando o homem se depara com a verdade Inebriado por esta luz nasce nele a theōriacutea (θεωρία) termo costumeiramente traduzido por contemplaccedilatildeo Poreacutem uma vez mais a traduccedilatildeo reclama esclarecimentos Na Greacutecia antiga

21 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 58 22 NATOLI Salvatore Filosofia e formaccedilatildeo do caraacuteter Trad Marcelo Perine Rev Iranildo B Lopes Satildeo Paulo Paulus 2008 pp 71-72

60 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino theōriacutea significava antes de mais festa Theōriacutea eacute antes de qualquer coisa espetaacuteculo23 Pois bem a theōriacutea filosoacutefica natildeo eacute senatildeo a ldquofestardquo pela descoberta da verdade Eacute o homem absorto ante a claridade de uma luz inabarcaacutevel Como Platatildeo narra na Repuacuteblica o espetaacuteculo do filoacutesofo eacute a posse da verdade24 Diante da verdade natildeo haacute mais o que se temer nem a dor nem a infelicidade nem a morte Theōriacutea portanto trata-se de uma espeacutecie de celebraccedilatildeo salviacutefica na qual o homem se encontra em condiccedilotildees de superar o medo da dor e da morte e isto de uma vez por todas ou seja de uma forma incontestaacutevel sem a incerteza que a mitologia comportava Sendo assim nada mais inexato do que ler theōriacutea como algo puramente abstrato Falamos isto sim de um evento mdash ao mesmo tempo mdash profundamente existencial e ontoloacutegico Chamamos theōriacutea pois a um acontecimento feliz posto que por ele o homem celebra o encontro da ldquomedicinardquo para a sua existecircncia enferma Dizendo agora positivamente a filosofia tem sua arkhḗ (ἀρχή) num paacutethos (πάθος) pela eydaimoniacutea (εὐδαιμονία) isto eacute pela felicidade que soacute se perfaz quando se estaacute sob a eacutegide de um saber indestrutiacutevel de uma luz inconfundiacutevel

Digamos ainda que os antigos gregos tinham um nome para este conhecimento vivificante Designavam-no epistḗmē (ἐπιστήμη) Geralmente traduz-se o vocaacutebulo simplesmente por

23 CHANTRAINE 2 θέω [theacuteō] Θεωρέω [theōreacuteō] In Op Cit p 433 BAILLY θέω [theacuteō] Θεωρέω [theōreacuteō] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 433 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Uma das acepccedilotildees primeiras deste termo eacute justamente a de assistir a uma festa religiosa bem como ser espectator dos jogos oliacutempicos 24 PLATOacuteN Repuacuteblica V 475 e ldquomdash Entonces a quieacutenes llamas verdaderamente filoacutesofos mdash A quienes aman el espectaacuteculo de la verdadrdquo ldquo[Glauco] mdash Entatildeo a quem chama lsquoverdadeiramente filoacutesofosrsquo [Soacutecrates] mdash Agravequeles que amam o espetaacuteculo da verdaderdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] Lembremo-nos de que θεωρία (theōriacutea) vem do verbo θεωρέω (theōreacuteō) que significa examinar ou inspecionar com a inteligecircncia Na verdade θεωρέω (theōreacuteō) eacute um verbo composto do substantivo θέα (theacutea) que possui o sufixo -α de accedilatildeo ou resultado da accedilatildeo e significa a accedilatildeo de olhar um aspecto ou objeto e ὁράω (horaacuteō) que eacute um verbo que tambeacutem diz olhar observar e entender θεωρέω (theōreacuteō) por conseguinte eacute a accedilatildeo daquele que lanccedila o seu olhar examinador sobre um objeto ou aspecto a fim de especulaacute-lo com a sua inteligecircncia e contemplaacute-lo quando o encontra (PEREIRA Isidoro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 2 ed Porto Livraria Apostolado da Imprensa 1957 p 248 BAILLY A Dicionnaire grec franccedilais 6 ed Paris Librairie Hachette 1979 p 919) No caso da θεωρία (theōriacutea) filosoacutefica este objeto ou aspecto eacute a verdade

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ldquoconhecimentordquo ou ldquociecircnciardquo Mas o fato eacute que ele natildeo eacute qualquer conhecimento ldquoEpiacuterdquo (ἐπί)25 significa ldquosobrerdquo e iacutestamai (ἴσταμαι)26 ldquoestar em peacuterdquo Em outras palavras a nomenclatura epistḗmē fala-nos de um saber que permanece ldquoem peacuterdquo porque sustentado ldquosobrerdquo uma argumentaccedilatildeo racional que atraveacutes do poacutelemos (πόλεμος) do diaacutelogos (διάλογος) alcanccedilou a verdade (alḗtheia) alcanccedilou a sabedoria (sofiacutea)27 Em virtude disso ldquoepistḗmērdquo eacute um conhecimento fundado na verdade acerca da existecircncia humana a partir de uma visatildeo eminente

Contra a nossa argumentaccedilatildeo neste passo poderia levantar-se a objeccedilatildeo segundo a qual a filosofia nasce como uma busca do saber pelo saber e natildeo com uma finalidade ldquoutilitaristardquo como poderia ser interpretada a construccedilatildeo de um mundo humano Neste sentido poderia ser evocada a ceacutelebre passagem da Metafiacutesica de Aristoacuteteles onde se afirma que a filosofia eacute a busca desinteressada do saber A passagem da Metafiacutesica ei-la

De modo que se os homens filosofaram para libertar-se da ignoracircncia eacute evidente que buscavam o conhecimento unicamente em vista do saber e natildeo por alguma utilidade praacutetica E o modo como as coisas se desenvolveram o demonstra quando jaacute se possuiacutea praticamente tudo de que se necessitava para a vida e

25 BAILLY ἐπί [epiacute] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 326 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Bailly fala do termo epiacute como um estar ldquoagrave superfiacutecie derdquo 26 CHANTRAINE ἵτεμι [hiacutetemi] In Op Cit p 470 Chantraine precisa que o termo ἵτεμι (hiacutetemi) eacute derivado exatamente de ἴσταμαι [iacutestamai] que significa endireitar situar deter colocar na balanccedila pesar fixar etc Aristoacuteteles fala de ldquoepistḗmērdquo ligando-a a esta acepccedilatildeo ARISTOacuteTELES Fiacutesica Trad Guillermo R De Echandiacutea Rev Alberto Bernabeacute Pajares Madrid Editorial Gredos 1995 VII 3 247b 10 ldquoTampoco la aquisicioacuten inicial de conocimiento es una generacioacuten o una alteracioacuten pues decimos que la razoacuten conoce y piensa justamente cuando estaacute en reposo y en quietud []rdquo ldquoTampouco a aquisiccedilatildeo inicial de conhecimento [epistḗmē] eacute uma geraccedilatildeo ou uma alteraccedilatildeo pois dizemos que a razatildeo conhece e pensa justamente quando estaacute em repouso [ὴρεμεῖνēremeĩn] e em quietude []rdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 27 MOLINARO Op Cit p 16 ldquoEpisteacuteme eacute a palavra grega para ciecircncia Mas examinando a fundo o que os gregos pensaram com esta palavra constata-se que significa estar (=steacuteme de iacutestemi) sobre (=epigrave) si mesma impondo-se sobre (=epigrave) tudo o que pretende e presume negar o seu estar O significado de estar eacute o da inegabilidade e da irremovibilidade da indubitabilidade e da incontrovertibilidade []rdquo

62 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

tambeacutem para o conforto e para o bem-estar entatildeo se comeccedilou a buscar essa forma de conhecimento Eacute evidente portanto que natildeo o buscamos por nenhuma vantagem que lhe seja estranha e mais ainda eacute evidente que como chamamos livre o homem que eacute fim para si mesmo e natildeo estaacute submetido a outros assim soacute esta ciecircncia dentre todas as outras eacute chamada livre pois soacute ela eacute fim para si mesma28

O periacuteodo eacute claro e natildeo comporta dubiedade No entanto o

que defendemos natildeo se opotildee em nada a ele pois o ẽthos (ἦθος) do qual falamos a saber a ldquomorada do homemrdquo estaacute longe de ser algo que insira mdash nas origens do filosofar mdash uma visatildeo ldquopragmatistardquo ou ldquoutilitaristardquo Estamos a falar antes de algo intriacutenseco ao ser humano O ẽthos fala de uma ldquocasa espiritualrdquo afigura-se como a busca da proacutepria possibilidade da existecircncia humana isto eacute de o homem existir enquanto homem enquanto ser distinto dos ldquodeusesrdquo e do mundo ldquoinfra-humanordquo da fyacutesis (φύσις) Esta ponderaccedilatildeo eacute muito bem acentuada por Lima Vaz

O ethos eacute a morada do animal e passa a ser a lsquocasarsquo (oikos) do ser humano natildeo jaacute a casa material que lhe proporciona fisicamente abrigo e proteccedilatildeo mas a casa simboacutelica que o acolhe espiritualmente e da qual irradia para a proacutepria casa material uma significaccedilatildeo propriamente humana entretecida por relaccedilotildees afetivas eacuteticas e mesmo esteacuteticas que ultrapassam suas finalidades puramente utilitaacuterias e a integram plenamente no plano humano da cultura Do ponto de vista de sua plena auto-realizaccedilatildeo o ser humano antes de habitar no oikos da natureza deve morar no seu oikos espiritual mdash o mundo da cultura mdash que eacute constitutivamente eacutetico29

Mas voltando ao enredo perguntamo-nos como

alcanccedilamos este conhecimento sobre o qual falamos mais acima e

28 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 20-25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 29 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 pp 39-40

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que denominamos epistḗmē Segundo jaacute acenamos atraveacutes do diaacutelogo (διάλογος) O termo diaacute (διά) geralmente eacute traduzido como ldquoatraveacutesrdquo 30 enquanto loacutegos (λόγος) eacute tomado como palavra discurso pensamento31 Todavia diaacute conteacutem a partiacutecula dirsquo (διrsquo)32 que indica divisatildeo33 e no caso especiacutefico diferenccedila entre dois loacutegoi (λόγοι) que se separam e se distanciam por se contrastarem e se dissociam justamente por natildeo possuiacuterem num mesmo termo a verdade Esta ldquodivisatildeordquo para os gregos eacute a causa de uma espeacutecie de distensatildeo intelectual que eacute constitutiva do proacuteprio diaacutelogo Por meio dela o diaacutelogo acontece O ldquoquecircrdquo do diaacutelogo estaacute exatamente nisto num conhecimento que se produz e se fundamenta enquanto se estende por meio de argumentos que se contrastam Longe de ser uma concordacircncia o diaacutelogo pressupotildee uma discordacircncia e se inicia por ela Alguns dos diaacutelogos platocircnicos alongam-se alargam-se e como que se tornam cada vez mais claros luminosos a partir das respostas que Soacutecrates daacute agraves objeccedilotildees que satildeo levantadas ao seu proacuteprio pensamento Eacute pois do diaacutelogo assim concebido como duas ldquofalasrdquo (loacutegoiλόγοι) que se contrastam que nasce a epistḗmē isto eacute a clareza o esclarecimento a certeza inabalaacutevel sobre uma determinada tese Natildeo haacute o que negar soacute dilatamos o nosso

30 FREIRE Antocircnio Op Cit p 209 31 A palavra logos eacute derivada de um radical ldquolegrdquo que forma o verbo falar dizer (BAILLY λέγω [leacutegō] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 528 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt) MOLINARO Op Cit p 15 ldquoLoacutegos derivado de leacutego o termo natildeo significa apenas palavra mas sobretudo pensamento eacute daiacute que proveacutem a loacutegica O pensamento eacute o viacutenculo a unificaccedilatildeo De quecirc Do serrdquo 32 Tanto o διά quanto o διrsquo (forma suprimida) podem ser encarados como adveacuterbio (separando dividindo) ou como preposiccedilatildeo (PEREIRA Op Cit p 127 FREIRE Op Cit p 209) Como preposiccedilatildeo possuem dois casos genitivo e acusativo Como genitivo significam atraveacutes de como geralmente satildeo traduzidos (PEREIRA 1957 Op Cit p 127) Como acusativo podem indicar a causa (por causa de) e podem servir como elemento identificador de um gecircnero literaacuterio em particular como eacute o caso das etiologias Tambeacutem no caso acusativo podem significar com o auxiacutelio de (PEREIRA Op Cit p 127) Como substantivo parecem seguir a linha de acepccedilatildeo do adveacuterbio dividindo separando dispersando dum e doutro lado de onde provecircm diretamente os vocaacutebulos divisatildeo separaccedilatildeo distanciamento O διrsquo enquanto elisatildeo de διά tambeacutem eacute amparado pela gramaacutetica grega de Antocircnio Freire (FREIRE Op Cit p 275) e pelo dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidoro Pereira (PEREIRA Op Cit p 127) 33 Idem Op Cit p 127

64 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino pensamento soacute alcanccedilamos um saber inequiacutevoco quando pensamos por contrastes Saltam-nos agrave vista as palavras de Platatildeo na Repuacuteblica

[] Aquele que natildeo pode distinguir a Ideia do Bem com a razatildeo abstraindo-a das demais e natildeo pode atravessar todas as dificuldades como em meio a uma batalha nem aplicar-se a esta busca mdash natildeo segundo a aparecircncia senatildeo segundo a essecircncia mdash e tampouco fazer a marcha por todos estes lugares com um raciociacutenio que natildeo decaia natildeo diraacutes que semelhante homem possui o conhecimento do Bem em si nem de nenhuma outra coisa boa34

Tomaacutes tambeacutem falava disso

Se algueacutem quiser escrever contra isto ser-me-aacute aceitabiliacutessimo Com efeito natildeo haacute modo melhor de descobrir a verdade e confutar a falsidade do que resistir contraditando35

De mais a mais assim como nos tribunais natildeo se pode julgar sem ouvir as razotildees de ambas as partes assim tambeacutem eacute necessaacuterio que quem deve estudar filosofia para ter um melhor julgamento ouccedila todas as razotildees e as duacutevidas dos adversaacuterios36

34 PLATOacuteN Repuacuteblica VII 534 b-c [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] aquel que no pueda distinguir la Idea del Bien con la razoacuten abstrayeacutendola de las demaacutes y no pueda atravesar todas las dificultades como en medio de la batalla ni aplicar-se a esta buacutesqueda mdash no seguacuten la apariencia sino seguacuten la esencia mdash y tampoco hacer la marcha por todos estos lugares con un razonamiento que no decaiga no diraacutes que semejante hombre posee el conocimiento del Bien en siacute ni de ninguna otra cosa buena []rdquo 35 TOMAacuteS DE AQUINO De perfectione cap 26 Disponiacutevel em lt httpwwwcorpusthomisticumorgoaphtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoSi quidam vero contra haec rescribere voluerint mihi acceptissimum erit Nullo enim modo melius quam contradicentibus resistendo aperitur veritas et falsitas confutatur []rdquo 36 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 3 1 n 5 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp03htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoSicut autem in iudiciis nullus potest iudicare nisi audiat rationes utriusque partis ita necesse est eum qui debet audire philosophiam melius se habere in iudicando si audierit omnes rationes quasi adversariorum dubitantiumrdquo ARISTOacuteTELES Metafiacutesica III 1 995 b In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 ldquoAdemais quem ouviu as razotildees opostas como num processo estaacute necessariamente em melhor condiccedilatildeo de julgarrdquo

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Do quanto dissemos resta concluir que a filosofia eacute o lugar onde nasceraacute a eacutetica enquanto ciecircncia do ẽthos Em razatildeo disso a indagaccedilatildeo acerca do ẽthos caberaacute sempre mdash e primariamente mdash ao labor filosoacutefico Afirma Lima Vaz

[] tendo sido a Filosofia a forma originaacuteria com que historicamente se constituiu a ciecircncia do ethos e que persistimos em considerar a uacutenica forma adequada que nos permite pensar os fundamentos racionais desta ciecircncia37

Ora se a filosofia se perfaz atraveacutes do diaacutelogos tal qual o

entendemos acima como duas falas (loacutegoiλόγοι) que se contrastam a eacutetica mdash ciecircncia do ẽthos mdash iraacute pressupor sempre de algum modo a poacutelis (πόλις) isto eacute vaacuterios (πολύς) homens que compareccedilam agrave Agoraacute (Ἀγορά) com o seu loacutegos Acentua Vaz ldquoComo primeiro desses traccedilos apresenta-se sem duacutevida a estrutura dual do ethos ou seja a sua dupla face social e individualrdquo38 Sobre a importacircncia fundamental do ldquodiaacutelogosrdquo para a eacutetica o mesmo estudioso afirma noutro lugar

Somente nesse horizonte eacute possiacutevel o encontro com o Outro Ora esse encontro eacute em sua forma elementar uma interlocuccedilatildeo em que duas razotildees se comunicam diaacute-logos O diaacutelogo eacute fundamentalmente um evento de natureza eacutetica e eacute por ele que a estrutura intersubjetiva do agir eacutetico primeiramente se realiza39

Ademais pelo fato de em filosofia a verdade se dar mdash

prevalentemente mdash pelo poacutelemos (πόλεμος) do diaacutelogos (διάλογος) resta que a ciecircncia do ẽthos nunca estaraacute acabada e seraacute sempre um conhecimento mdash decerto cientiacutefico agrave sua maneira mdash poreacutem incompleto e aberto a novos aprofundamentos Jaacute dizia Aristoacuteteles acerca da sabedoria praacutetica ldquo[] e tambeacutem o tempo

37 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 35 38 Idem Ibidem p 39 39 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Eacutetica e Direito Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 pp 248-249

66 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino parece ser um bom descobridor e colaborador nessa espeacutecie de trabalhordquo40 Salienta tambeacutem Lima Vaz

O ethos natildeo eacute uma grandeza imoacutevel no tempo mas como a proacutepria cultura da qual eacute a dimensatildeo normativa e prescritiva revela um surpreendente dinamismo de crescimento adaptaccedilatildeo e recriaccedilatildeo de valores quando os chamados ldquoconflitos eacuteticosrdquo desencadeiam no seu seio a siacutendrome da crise cujo desfecho eacute em geral a invenccedilatildeo de uma nova forma eacutetica de vida41

Ao longo deste capiacutetulo jaacute comeccedilamos a mostrar como as

notas presentes na gecircnese do filosofar foram livremente assumidas por Tomaacutes de Aquino Gostariacuteamos agora de aprofundar isso tentando nos aproximar da estrutura do pensamento de Tomaacutes na sua siacutentese final a Summa Theologiae Com isso queremos atestar como a obra do Aquinate eacute um projeto aberto e vivo Agrave fecundidade dos diaacutelogos de Platatildeo os medievais mdash maacutexime Tomaacutes mdash propuseram o terreno natildeo menos feacutertil das disputas 14 TOMAacuteS DE AQUINO E A ldquoFILOSOFIacuteArdquo DO ldquoDIAacuteLOGOSrdquo Agrave ldquoDISPUTATIOrdquo

Sem pretendermos ser exaustivos queremos enfatizar que a Summa Theologiae e tambeacutem as outras obras do Aquinate comportam um conhecimento filosoacutefico que eacute buscado atraveacutes de uma forma que consideramos similar ao procedimento grego do diaacutelogos a saber a disputatio Assim a estrutura da Summa apresenta-se como um contiacutenuo lidar com reacuteplicas e treacuteplicas uma obra que soacute se perfaz pelo tirociacutenio das objeccedilotildees justamente porque nela parecem palpitar ainda as disputas Trata-se de um pensamento que se dilata um discurso que soacute se torna polido quando submetido agrave sabatina das ldquodiscordacircnciasrdquo Na Summa os

40 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Trad Leonel Vallandro Gerd Bornheim 1 ed Satildeo Paulo Abril SA Cultural e Industrial 1973 II 7 1098 a 20 41 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 41

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argumentos se expandem quando contraditos e a clareza soacute resplandece quando a resposta se distende em respostas agraves objeccedilotildees Nela o contraditoacuterio eacute sempre uma oportunidade de aprofundamento Jaacute Aristoacuteteles na Metafiacutesica assevera acerca desta necessidade de se reconhecer preacutevia e cuidadosamente as dificuldades que uma questatildeo comporta antes de tomaacute-la em consideraccedilatildeo Afirma que os que natildeo se resguardam preliminarmente neste sentido tornam-se guias cegos que natildeo tendo tido a precauccedilatildeo de saber de onde partiram tampouco estatildeo aptos para distinguir se alcanccedilaram ou natildeo uma meta Tomaacutes comentando o mesmo trecho da Metafiacutesica aduz que eacute preciso cultivar uma espeacutecie de ldquoduacutevida metoacutedicardquo para se atingir a verdade Esta ldquoduacutevida metoacutedicardquo eacute exatamente o contraacuterio daquela que duvida sem escutar a palavra dos seus opositores De mais a mais que forma melhor haacute para se avaliar as dificuldades de uma questatildeo do que ser provocado pelas objeccedilotildees O filoacutesofo precisa ser provado pelas objeccedilotildees necessita delas para que se previna contra os assaltos da imaginaccedilatildeo e se ponha ao abrigo de uma sorte de precipitaccedilatildeo que pode conduzi-lo agrave desafortunada realidade de natildeo demonstrar o que se propocircs Ouccedilamos Aristoacuteteles e em seguida o comentaacuterio de Tomaacutes

Ora para quem pretende resolver bem um problema eacute uacutetil perceber adequadamente a dificuldade que ele comporta a boa soluccedilatildeo final consiste na resoluccedilatildeo das dificuldades previamente estabelecidas Quem ignora um noacute natildeo poderaacute desataacute-lo e a dificuldade encontrada pelo pensamento manifesta a dificuldade existente nas coisas De fato enquanto duvidamos estamos numa condiccedilatildeo semelhante a quem estaacute amarrado em ambos os casos eacute impossiacutevel ir adiante Por isso eacute preciso que primeiro sejam examinadas todas as dificuldades tanto por essas razotildees como porque os que pesquisam sem primeiro ter examinado as dificuldades assemelham-se aos que natildeo sabem aonde devem ir Ademais estes natildeo satildeo capazes de saber se encontraram ou natildeo o que buscam pois natildeo lhes eacute claro o fim que devem alcanccedilar

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enquanto isso eacute claro para quem antes compreendeu as dificuldades42

E primeiro disse [Aristoacuteteles] que agravequeles dispostos a investigar a verdade importa preparar bem o trabalho isto eacute duvidar convenientemente antes de fazecirc-lo ou seja considerar corretamente quais satildeo os pontos duvidosos E isto porque o que suceder agrave investigaccedilatildeo da verdade nada mais eacute do que a soluccedilatildeo das duacutevidas anteriormente postas43

E a Summa segue este caminho Mostra-se como uma obra

sem fecho porque potencialmente refutaacutevel e capaz de refutar um cume sim mas aberto a um horizonte sem fim diversa portanto da imagem que nos adveacutem do famoso deliacuterio de Braacutes Cubas44 Nada haacute nela de cadaveacuterico senatildeo o contraacuterio a Summa permanece em constante vicejar e pulsar como que esperando uma nova objeccedilatildeo Aliaacutes mesmo os por vezes densos comentaacuterios de Tomaacutes a Aristoacuteteles tambeacutem jaacute causavam este tipo de admiraccedilatildeo R Bongli um natildeo adepto do pensamento de Tomaacutes que traduziu parte da Metafiacutesica de Aristoacuteteles para o italiano no seacuteculo XIX acerca do Comentaacuterio de Tomaacutes agrave Metafiacutesica do Estagirita jaacute dizia

Grande figura verdadeiramente Santo Tomaacutes Que pensamento agudo e soacutelido Quanta clareza e equiliacutebrio Natildeo haacute dificuldade que o desencoraje questatildeo que o afaste obstaacuteculo que o detenha

42 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica III 1 995 b In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 43 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 3 1 n 2 Disponiacutevel lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp03htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] et primo dicit quod volentibus investigare veritatem contingit prae opere idest ante opus bene dubitare idest bene attingere ad ea quae sunt dubitabilia Et hoc ideo quia posterior investigatio veritatis nihil aliud est quam solutio prius dubitatorumrdquo 44 ASSIS Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas 9 ed Satildeo Paulo Aacutetica 1982 p 19 In NASCIMENTO Carlos Arthur R Santo Tomaacutes de Aquino o Boi Mudo da Siciacutelia Satildeo Paulo EDUC 1992 pp 87-88 ldquoLogo depois senti-me transformado na Summa Theologica de S Tomaacutes impressa num volume e encadernada em marroquim com fechos de prata e estampas ideacuteia esta que me dava ao corpo a mais completa imobilidade e ainda agora me lembra que sendo as minhas matildeos os fechos do livro e cruzando-as eu sobre o ventre algueacutem as descruzava (Virgiacutelia decerto) porque a atitude lhe dava a imagem de um defuntordquo

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Tentar compreender natildeo eacute para ele uma curiosidade mas uma obrigaccedilatildeo e o esforccedilo da inteligecircncia o demonstra mas natildeo o anuncia Jamais um desprezo uma maldiccedilatildeo uma trapaccedila uma ira uma reprovaccedilatildeo um riso para os seus adversaacuterios de qualquer espeacutecie sempre pronto a discutir seguro de suas armas sem ser pretensioso45

Mesmo no seacuteculo XX Tomaacutes ainda eacute lembrado como um

dos mais penetrantes inteacuterpretes de Aristoacuteteles Eloquente eacute o testemunho de Jaeger a este respeito

Os comentaacuterios de Santo Tomaacutes a Aristoacuteteles revelam um novo esforccedilo de concentraccedilatildeo para chegar a compreender quer o espiacuterito quer a letra de um autor novo que apresenta seacuterias dificuldades ao especialista e obstaacuteculos insuperaacuteveis ao leitor meacutedio despreparado [] natildeo haacute nada de comparaacutevel agrave seriedade e agrave tenacidade da feliz tentativa de Santo Tomaacutes de penetrar o sentido das obras do grande filoacutesofo a cuja anaacutelise e interpretaccedilatildeo ele dedicou uma parte tatildeo grande da sua vida Natildeo encontramos exemplos deste tipo de compreensatildeo mdash que eacute ao mesmo tempo particular e geral no estilo de ensaio mas mesmo assim absolutamente objetiva mdash nem mesmo considerando os seacuteculos do mais culto humanismo46

Tambeacutem nosso contemporacircneo o historiador italiano da

filosofia Giovanni Reale natildeo sendo tampouco um seguidor de Tomaacutes por ocasiatildeo do seu Comentaacuterio agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles confessa que as ldquointuiccedilotildees geniaisrdquo do Aquinate natildeo envelheceram inclusive do ponto de vista histoacuterico natildeo podem ser relegadas ao passado

E particularmente natildeo sendo tomista minha escolha de Tomaacutes

45 BONGLI R Metafisica drsquoAristotele volgarizzata e commentata da R Bonghi Livros I-VI Turim 1854 In REALE Giovanni Metafiacutesica vol I Ensaio introdutoacuterio Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 pp 18-19 46 JAEGER Werner Umanesimo e Teologia Milano Corsi dei Servi 1958 pp 35-36 In MONDIN Battista A Grandeza e Atualidade de Satildeo Tomaacutes de Aquino Trad Antocircnio Angonese Satildeo Paulo EDUSC 1998 p 15

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foi determinada justamente pela verificaccedilatildeo de sua excelecircncia objetiva e utilidade inclusive do ponto de vista histoacuterico47

Portanto a Summa e as Questotildees Disputadas de Tomaacutes

natildeo satildeo senatildeo partes que se desdobram em questotildees que por sua vez desmembram-se em artigos que por seu lado desdobram-se em argumentos e respostas agraves objeccedilotildees48 Por isso a Summa natildeo eacute algo inerme ou inerte ao contraacuterio em seu proacuteprio constituir-se ela aparece como um vigoroso movimento no qual a verdade se desvela com o fito de ser simplesmente dita Seus argumentos porquanto provindos direta ou indiretamente do ensino satildeo verdadeiros sinalizadores (Notemos que o verbo ensinar [insignare insignire] significa precisamente ldquosinalizarrdquo)49 e soacute o satildeo ratificamos enquanto Tomaacutes os recolhe das Disputas escolares do seu tempo cujo dinamismo exige um pensar que soacute se desabrocha e se consolida trabalhando com os ldquocontraditoacuteriosrdquo Por essa razatildeo a obra de Tomaacutes mostra-se como o ensino da verdade a desenvolver-se em permanente erudiccedilatildeo erudiccedilatildeo que segundo nos sugerem os proacuteprios termos dos quais proveacutem o vocaacutebulo (ldquoexrdquoldquoruderdquo) eacute um lanccedilar para fora tudo quanto nos embrutece um polir tudo quanto se encontre em noacutes em estado bruto O Aquinate em diversos momentos aponta para isso

Por isso ele [Aristoacuteteles] diz que eacute necessaacuterio amar tanto aquele de quem seguimos a opiniatildeo quanto aquele de quem a rejeitamos

47 REALE Giovanni Metafiacutesica vol I Ensaio introdutoacuterio Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 p 19 48 Ainda nesta mesma linha recordemos que em latim ldquoplicardquo significa dobra Daiacute a nossa palavra ldquocomplicadardquo significar antes de qualquer coisa algo natildeo visto porque dobrado e redobrado Natildeo nos esqueccedilamos ademais de que o termo ldquoexrdquo em latim significa o mais das vezes ldquopara forardquo Donde o nosso termo ldquoexplicarrdquo denotar antes de tudo lanccedilar para fora as dobras desdobrar desfazer as dobras a fim de que o leitor ou o ouvinte possam ver o que antes as dobras natildeo lhes permitiam ver Acerca da etimologia do termo ldquoexplicarrdquo vide LAUAND Luiz Jean As dobras da liacutengua Disponiacutevel em lthttpwwwjeanlauandcomLPo76htmgt 49 LAUAND Luiz Jean RUBIO Juliana Bassana As razotildees da liacutengua cultura e ensino de inglecircs CEMOrOC-FeuspIJI-Universidade do Porto Notandum 30 set-dez 2012 p 88

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De fato ambos aplicaram-se agrave inquiriccedilatildeo da verdade e um e outro nos ajudaram50

[Os pensadores foram tambeacutem ajudados] indiretamente quando os erros dos primeiros acerca da verdade deram ocasiatildeo para os seus poacutesteros exercitarem uma discussatildeo mais diligente que tem por finalidade resultar num maior esclarecimento da verdade Eacute verdadeiramente justo agradecer a todos aqueles que nos ajudaram na aquisiccedilatildeo de tatildeo grande bem que eacute o conhecimento da verdade51

Eis pois de que Tomaacutes queremos nos aproximar em nosso

estudo Estar com o Aquinate mdash atraveacutes das suas obras mdash eacute estar aberto agrave verdade venha ela de onde vier Quando consultado por um confrade sobre como se adquire a sabedoria Aquino mdash entre outras coisas mdash recomendou-lhe ldquoQue natildeo atentes a quem disse mas ao que de bom se diga guardando-o na memoacuteriardquo52 Na Summa afirma sem pestanejar

Portanto deve-se dizer que toda verdade [omne verum] dita por quem quer que seja [quocumque dicatur] vem do Espiacuterito Santo enquanto infunde em noacutes a luz natural e nos daacute a moccedilatildeo

50 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 12 9 n 14 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp12htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] ideo dicit quod oportet amare utrosque scilicet eos quorum opinionem sequimur et eos quorum opinionem repudiamus Utrique enim studuerunt ad inquirendam veritatem et nos in hoc adiuveruntrdquo 51 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 2 1 n 15 e 16 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp02htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] indirecte vero inquantum priores errantes circa veritatem posterioribus exercitii occasionem dederunt ut diligenti discussione habita veritas limpidius appareret Est autem iustum ut his quibus adiuti sumus in tanto bono scilicet cognitione veritatis gratias agamusrdquo TOMAacuteS DE AQUINO Sentencia De anima lib 1 2 n 15 In NUNES Ruy Afonso da Costa Histoacuteria da educaccedilatildeo na Idade Meacutedia 2ordf ed Satildeo Paulo Kiacuterion 2018 p 270 ldquoDe qua scilicet anima intendentes ad praesens necesse est accipere opiniones antiquorum quicumque sint qui aliquid enunciaverunt de ipsa Et hoc quidem ad duo erit utile Primo quia illud quod bene dictum est ab eis accipiemus in adiutorium nostrum Secundo quia illud quod male enunciatum est cavebimusrdquo ldquoDevem escutar-se as opiniotildees dos Antigos por vetustas que sejam pois assim podemos apropriar-nos do que falaram certo e evitar o que disseram de errocircneordquo 52 TOMAacuteS DE AQUINO O modo de estudar 13 In TOMAacuteS DE AQUINO Opuacutesculos Filosoacuteficos Trad Paulo Faitanin Rev Esteve Jaulent Satildeo Paulo Sita-Brasil 2009 v 1 ldquo[] non respicias a quo audias sed quidquid boni dicatur memoriae recomenda []rdquo

72 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

necessaacuteria para entender e exprimir esta verdade [intelligendum et loquendum veritatem]53

O Boi Mudo em vaacuterios momentos da sua imensa obra

sinaliza para um movimento que consiste justamente num progresso ininterrupto do pensar que se daacute por um aprofundamento e natildeo por uma substituiccedilatildeo do que jaacute foi conquistado 54 Ora sobretudo em eacutetica urge esta atitude de abertura como ainda voltaremos a ver no decorrer deste trabalho a eacutetica enquanto ciecircncia fundamentalmente se perfaz pelo ldquodiaacutelogosrdquo dos gregos ou pela ldquodisputatiordquo dos medievais E este debate realiza-se natildeo somente entre noacutes mas tambeacutem quando debatemos com as geraccedilotildees que nos precederam Como anotildees em ombros de gigantes de acordo com a sugestiva imagem de Bernardo de Chartres tambeacutem Tomaacutes acreditava que soacute podemos ver mais longe quando natildeo nos esquecemos do que eacute passado pelo tempo mas perene pela validade Todavia eacute preciso acentuar a cada geraccedilatildeo o condatildeo o muacutenus de aprofundar-se na verdade sem nunca pretender exauri-la

[] De fato se algueacutem procedendo no tempo investigar a verdade o tempo ajudaraacute a encontrar a verdade e quanto a um mesmo homem que depois veja o que natildeo via antes e tambeacutem quanto aos diversos homens como quando algueacutem capta as coisas que descobriram os seus predecessores e acrescenta algo

53 Idem Suma Teoloacutegica I-II 109 1 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod omne verum a quocumque dicatur est a spiritu sancto sicut ab infundente naturale lumen et movente ad intelligendum et loquendum veritatemrdquo 54 MARITAIN Jacques Sete Liccedilotildees Sobre o Ser Trad Nicolaacutes Nyimi Companaacuterio 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2001 p 17 ldquoOnde predomina ao contraacuterio o aspecto misteacuterio trata-se de penetrar sempre mais no mesmo O espiacuterito permanece no lugar gravita em torno de um centro ou penetra cada vez melhor uma mesma densidade Eacute um progresso no mesmo lugar um progresso por aprofundamento Eacute desta forma que no lsquoaumentorsquo intensivo dos haacutebitos a inteligecircncia diz Joatildeo de Santo Tomaacutes natildeo deixa de mergulhar no objeto no mesmo objeto vehementius et profundius mais veementemente e mais profundamente Deste modo podemos ler e reler sempre o mesmo livro ler e reler a Biacuteblia e a cada vez ocorre uma descoberta nova e mais profunda Claro estaacute que na vida da humanidade uma tradiccedilatildeo intelectual a continuidade estaacutevel de uma doutrina fundada sobre princiacutepios que natildeo mudam satildeo a condiccedilatildeo de tal progressordquo

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E por esse modo satildeo feitos os acreacutescimos nas artes dos quais em princiacutepio pouco foi inventado e depois atraveacutes de diversos homens pouco a pouco atingiu uma grande quantidade porque pertence a qualquer homem acrescentar o que falta ao considerado pelos predecessores55

Da parte da razatildeo porque parece ser natural da razatildeo humana chegar gradualmente do imperfeito ao perfeito Por isso vemos nas ciecircncias especulativas que aqueles que por primeiro filosofaram transmitiram algumas coisas imperfeitas que depois pelos poacutesteros se tornaram mais perfeitas56

Estabelecidos estes pressupostos eacute tempo de darmos mais

um passo no recorte do nosso trabalho Procuraremos definir com maior detenccedila e exaccedilatildeo o termo ldquoethosrdquo57 bem como qual o significado da ēthikḗ (ἠθική) concebida como ldquociecircncia do ethosrdquo

55 TOMAacuteS DE AQUINO Comentaacuterio de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica a Nicocircmaco I-III o bem e as virtudes Trade Rev Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rio de Janeiro Mutuus 20015 v I I Lect 11 ndeg 3 ldquoSi enim aliquis tempore procedente det se studio investigandae veritatis iuvatur ex tempore ad veritatem inveniendam et quantum ad unum et eumdem hominem qui postea videbit quod prius non viderat et etiam quantum ad diversos utpote cum aliquis intuetur ea quae sunt a praedecessoribus adinventa et aliquid superaddit Et per hunc modum facta sunt additamenta in artibus quarum a principio aliquid modicum fuit adinventum et postmodum per diversos paulatim profecit in magnam quantitatem quia ad quemlibet pertinet superaddere id quod deficit in consideratione praedecessorumrdquo 56 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 97 1 C ldquoEx parte quidem rationis quia humanae rationi naturale esse videtur ut gradatim ab imperfecto ad perfectum perveniat Unde videmus in scientiis speculativis quod qui primo philosophati sunt quaedam imperfecta tradiderunt quae postmodum per posteriores sunt magis perfecta Ita etiam est in operabilibus Nam primi qui intenderunt invenire aliquid utile communitati hominum non valentes omnia ex seipsis considerare instituerunt quaedam imperfecta in multis deficientia quae posteriores mutaverunt instituentes aliqua quae in paucioribus deficere possent a communi utilitaterdquo 57 Esta eacute a forma como Lima Vaz habitualmente grafa o vocaacutebulo

Capiacutetulo II A eacutetica enquanto ciecircncia em Aristoacuteteles

Aristoacuteteles como jaacute frisamos antes foi o fundador da Eacutetica enquanto ldquociecircnciardquo enquanto parte da filosofia Foi ele quem distinguiu os ramos das ciecircncias filosoacuteficas mdash teoreacuteticas praacuteticas e poieacuteticas mdash bem como definiu o campo das mesmas1 Sendo assim como diz Enrico Berti

[] Aristoacuteteles pode ser considerado o fundador do conceito de filosofia praacutetica entendida como ciecircncia diferente das teoreacuteticas poreacutem munida de racionalidade proacutepria2

Embora o gecircnero literaacuterio adotado por Aristoacuteteles natildeo seja

o diaacutelogo suas obras mdash inclusive a Ēthikagrave Nikomaacutekheia (Ἠθικὰ Νικομάχεια) mdash adotam um estilo no qual o autor mdash antes de tomar posiccedilatildeo mdash dialoga com os seus predecessores e mesmo com o senso comum Acerca do ldquomeacutetodordquo de Aristoacuteteles temos a assertiva de Berti

Com efeito os proacuteprios tratados escolaacutesticos de Aristoacuteteles tecircm um andamento nada sistemaacutetico e demonstrativo mas consistem inteiramente de discussotildees de problemas argumentaccedilotildees a favor e contra cada soluccedilatildeo contiacutenuas objeccedilotildees e refutaccedilotildees que em muitos casos deixam a discussatildeo completamente aberta Em siacutentese trata-se de uma espeacutecie de institucionalizaccedilatildeo escolaacutestica do meacutetodo socraacutetico e platocircnico3

1 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica VI 1 1025 b 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquo[] todo conhecimento racional eacute ou praacutetico [πρακτική] ou produtivo [ποιητική] ou teoreacutetico [θεωρητική] []rdquo 2 BERTI Enrico Perfil de Aristoacuteteles Trad Joseacute Bortolini Rev Iranildo Bezerra Lopes Caio Pereira Satildeo Paulo Paulus 2012 p 158 3 Idem Ibidem p 30

76 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Nosso objetivo neste capiacutetulo natildeo eacute expor a Eacutetica Nicomaqueia mas esboccedilar os seus grandes momentos sobretudo com o fito de evidenciar que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma eacutetica humana Para esta empresa valemo-nos de uma preleccedilatildeo de Enrico Berti mdash filoacutesofo italiano e dedicado leitor de Aristoacuteteles mdash sobre a Eacutetica a Nicocircmaco A liccedilatildeo de Berti fora ministrada no auditoacuterio da Societagrave Filosofica Italiana com o tiacutetulo Lrsquoetica in Aristotele De mais a mais para natildeo interrompermos o texto optamos por registrar vaacuterias citaccedilotildees em rodapeacute A propoacutesito o fato de usarmos a preleccedilatildeo de Berti para expormos alguns toacutepicos da Eacutetica natildeo significa que a tomamos como nossa fonte primaacuteria que seraacute sempre a proacutepria obra do Estagirita Recorremos a Berti a fim de nos servirmos da sua invulgar capacidade de siacutentese jaacute que soacute buscamos Aristoacuteteles para relacionaacute-lo com Tomaacutes o nosso verdadeiro objeto de pesquisa

A ordem da nossa exposiccedilatildeo seraacute a seguinte primeiro uma contextualizaccedilatildeo histoacuterica em seguida alguns preacircmbulos antropoloacutegicos nos daratildeo ensejo para circunscrevermos a noccedilatildeo de eacutetica em Aristoacuteteles dando continuidade consideraremos os conceitos de teacutelos e eydaimoniacutea no toacutepico seguinte trataremos dos conceitos de eacutergon aretḗ e kakiacutea depois abordaremos as concepccedilotildees de proaiacuteresis e boyacuteleysis a fim de conhecermos qual eacute a natureza das accedilotildees passiacuteveis de virtude ou de viacutecio Havendo dado estes passos definiremos e distinguiremos as virtudes eacuteticas das dianoeacuteticas passaremos entatildeo a discorrer sobre o papel da amizade na eacutetica de Aristoacuteteles por fim voltaremos ao tema da eydaimoniacutea com o intento de aprofundaacute-lo e trataremos da racionalidade proacutepria da eacutetica aristoteacutelica Sigamos com uma sucinta contextualizaccedilatildeo histoacuterica da Eacutetica 21 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO HISTOacuteRICA DA EacuteTICA

Aristoacuteteles escreveu alguns livros sobre eacutetica Eacutetica Nicomaqueia ou tambeacutem Eacutetica a Nicocircmaco a Grande Eacutetica (de

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autenticidade duvidosa) a Eacutetica Eudecircmica e a Poliacutetica A mais completa mdash como jaacute adiantamos mdash e que se tornou tambeacutem a mais famosa eacute justamente a Eacutetica a Nicocircmaco Observemos que esta obra dividida em dez livros foi escrita por Aristoacuteteles antes de mais para o seu filho Nicocircmaco4 Natildeo a escreveu portanto a um ldquocidadatildeordquo qualquer mas a seu dileto A Eacutetica natildeo nasce pois como uma ldquoobra acadecircmicardquo e sim como ldquoconselhosrdquo de um pai para o seu filho ldquoconselhosrdquo que tinham por finalidade que o filho fosse feliz na vida Isto eacute um fato muito revelador Aristoacuteteles fala da poacutelis sim fala do cidadatildeo sim mas a sua Eacutetica nasce de um pai educando o seu filho para o bem viver Nasce num ambiente familiar diriacuteamos hoje natildeo numa universidade nem sequer numa escola Quis a sorte que esta obra se tornasse a de maior sucesso de nosso filoacutesofo Por milecircnios vem sendo assim

Para entendermos esta obra magna devemos reportar-nos ao contexto histoacuterico em que ela foi concebida isto eacute agrave antiga Greacutecia no seacuteculo IV antes de Cristo Talvez a primeira coisa que temos de levar em conta eacute que os gregos natildeo obstante fossem um povo religioso e tivessem uma religiatildeo natildeo possuiacuteam como os outros povos um livro que transmitisse uma revelaccedilatildeo de Deus Eles natildeo tinham um livro que lhes fosse apresentado como a proacutepria palavra de Deus Fato notaacutevel porque distingue os gregos do povo hebreu e da religiatildeo hebraica outro tronco da nossa civilizaccedilatildeo De fato a religiatildeo hebraica se fundamenta na Torah que natildeo eacute senatildeo a Lei de Deus consignada em cinco livros Pentateuco em grego Para o hebreu Deus natildeo eacute somente o Criador do homem e de todas as coisas mas tambeacutem o Legislador Logo a moral judaica eacute uma moral fundada na Lei de Deus ditada pelo

4 Nicocircmaco era o nome do pai de Aristoacuteteles meacutedico afortunado porque a serviccedilo do rei Amintas da Macedocircnia O Estagirita o perdeu ainda jovem PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave Filosofia de Aristoacuteteles Trad Gabriel Hibon Benocircni Ramos Satildeo Paulo Paulus 2002 p 9 ldquoSeu pai Nicocircmaco que parece ter vindo de Messecircnia era meacutedico ceacutelebre foi chamado agrave corte de Pela e foi meacutedico pessoal do rei Amintas III pai de Filipe [] Morreu antes de ter tempo de formar o filho em sua arterdquo Quando Aristoacuteteles teve o seu filho deu-lhe o nome do avocirc Idem Op Cit p 12 ldquoE sabemos que ao morrer Piacutetia ele desposou Herpillis que lhe deu um filho Nicocircmaco []rdquo

78 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mesmo Deus a Moiseacutes e registrada na Torah O quanto se disse dos judeus pode-se dizer mutatis mutandis da religiatildeo cristatilde e islacircmica porque ambas satildeo tambeacutem portadoras de uma moral fundada na Revelaccedilatildeo de um Deus que eacute tambeacutem um Legislador5

ldquoNo princiacutepio era o Logosrdquo diz o incipit do evangelho de Joatildeo que os cristatildeos interpretaram como ldquoNo princiacutepio era o Verbordquo ou seja ldquoa Palavrardquo ldquo[] e o Logos estava voltado para Deus e o Logos era Deusrdquo continua Joatildeo indicando com clareza de que ldquoPalavrardquo se trata Para os cristatildeos com efeito o princiacutepio eacute constituiacutedo por Deus entendido como Palavra que cria todas as coisas mas tambeacutem pela proacutepria palavra de Deus ou seja pela revelaccedilatildeo com que Ele se manifestou aos homens Esse uacuteltimo significado vale para todas as religiotildees pelo menos para as monoteiacutestas6

Os gregos quando pensavam em moral natildeo faziam

referecircncia a uma lei fundada numa revelaccedilatildeo divina justamente porque natildeo a tinham Decerto que entre os helecircnicos havia leis mas estas procediam das diversas cidades Cada uma delas tinha as suas proacuteprias leis Deste modo a concepccedilatildeo grega de moral natildeo eacute a de uma seacuterie de ditames ou prescriccedilotildees reveladas por um Deus legislador E a Eacutetica de Aristoacuteteles natildeo eacute exceccedilatildeo agrave regra Aliaacutes eacute o fato mesmo de ela natildeo ser uma eacutetica revelada que confere a ela uma atualidade inalienaacutevel Afirma Berti numa de suas obras mais recentes

Para os antigos gregos as coisas natildeo eram assim Como todos os povos tambeacutem os gregos tinham uma religiatildeo mas na base dela natildeo havia nenhuma revelaccedilatildeo natildeo havia nenhum livro natildeo havia nada que dissesse o que havia no ldquoprinciacutepiordquo Eles tinham os poemas de Homero a Iliacuteada e a Odisseia que falam dos deuses e os poemas de Hesiacuteodo especialmente a Teogonia que tratam da

5 Esta eacute uma asserccedilatildeo geral natildeo universal Como veremos no terceiro capiacutetulo num autor cristatildeo como Tomaacutes de Aquino a lei tem o papel de educadora de disciplinadora mas natildeo de fundamento do agir eacutetico 6 BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 10

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genealogia desses deuses mas natildeo os consideravam livros revelados obra dos deuses mas sim obra dos poetas dos ldquoteoacutelogosrdquo nos quais se podia acreditar se a proacutepria cidade o exigia ou ateacute natildeo acreditar7

Com efeito num tempo onde as religiotildees se digladiam e

vivemos a realidade patente do ateiacutesmo e do agnosticismo religioso a Eacutetica do Estagirita se oferece como uma eminecircncia entre crentes e natildeo crentes porque escrita fora do contexto de crenccedila e descrenccedila Assim a Eacutetica de Aristoacuteteles natildeo eacute a teologia moral predominante na cristandade medieval mas tambeacutem natildeo coincide com o ldquohumanismordquo ou ldquoracionalismordquo que prevalecem na eacutetica moderna A Eacutetica a Nicocircmaco eacute uma eacutetica humana integralmente humana fundada num certo modo de exercer a razatildeo humana E exatamente por isso vale dizer precisamente por natildeo admitir ldquoclichecircsrdquo ela pode ser reproposta a todos os homens de hoje crentes e natildeo crentes Nisto reside justamente a sua atualidade os homens de hoje num tempo onde cada vez mais entendemos que natildeo podemos viver isolados precisam de algo que os una Noutra obra em que trata da presenccedila de Aristoacuteteles no seacuteculo XX Enrico Berti esclarece que a ldquoteologia racionalrdquo de Aristoacuteteles natildeo abarca a existecircncia de um Deus concebido como Legislador supremo tampouco a sua filosofia praacutetica se fundamenta nesta ideia

Em todo caso natildeo se trata de uma fundaccedilatildeo teoloacutegica natildeo porque Aristoacuteteles exclua da sua filosofia (teoreacutetica) uma teologia (racional) mas porque o conceito de Deus delineado pela sua teologia natildeo eacute o de um Deus que domina isto eacute que prescreve aos homens uma lei da qual se possam deduzir as normas morais na medida em que Deus como ele mesmo afirma ldquonatildeo tem necessidade de nadardquo Nisto consiste a atualidade da filosofia praacutetica de Aristoacuteteles isto eacute a sua capacidade de corresponder agraves exigecircncias da vida cotidiana de uma eacutepoca como a presente

7 Idem Ibidem

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caracterizada pela interdependecircncia entre os homens de todo o planeta e entre as proacuteprias geraccedilotildees que se sucedem no tempo8

Dando prosseguimento passemos a considerar alguns

toacutepicos da antropologia de Aristoacuteteles que nos ajudaratildeo a compreender a sua concepccedilatildeo de eacutetica 22 PREAcircMBULOS ANTROPOLOacuteGICOS E A DEFINICcedilAtildeO DE EacuteTICA

Os gregos conheciam dois termos para designar vida ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) Zōḗ indica vida entendida como capacidade efetiva de viver (enteleacutekheia) e de viver de certa forma biacuteos antes indica o exerciacutecio mesmo de viver (eneacutergeia) e de viver de certa forma Biacuteos diz pois certo gecircnero de vida ldquoestilordquo de vida ou jeito de viver habitual Em uma palavra biacuteos indica a vida vivida9 Na

8 BERTI Enrico Aristoacuteteles no seacuteculo XX Trad Dion Davi Macedo Rev Mauriacutecio Balthazar Leal Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1997 pp 283-284 9 A distinccedilatildeo entre ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) natildeo eacute rigorosa em Aristoacuteteles Aqui no entanto ancorados em Berti consideramos esta distinccedilatildeo que o estudioso prevecirc Ele nos remete por exemplo a um passo do De Anima que julga elucidar esta distinccedilatildeo ARISTOacuteTELES Sobre a Alma Trad Ana Maria Loacutelio Rev Tomaacutes Calvo Martinez Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2010 (Obras Completas de Aristoacuteteles) II 1 20-25 ldquo[] eacute no ente em que a alma existe que existem quer o sono quer a vigiacutelia e esta eacute anaacuteloga ao exerciacutecio do saber enquanto o sono eacute anaacutelogo agrave posse deste sem exerciacuteciordquo ζωή (zōḗ) portanto designa a vida sem as suas operaccedilotildees sem a sua atividade como no sono βίος (biacuteos) eacute a vida enquanto atividade como quando estamos em vigiacutelia O termo βίος (biacuteos) tambeacutem eacute usado para designar um gecircnero de vida como Aristoacuteteles assevera num passo da Eacutetica a Nicocircmaco Idem Eacutetica a Nicocircmaco I 5 1095 b 15-20 ldquoA julgar pela vida que os homens levam em geral a maioria deles e os homens de tipo mais vulgar parecem (natildeo sem um certo fundamento) identificar o bem ou a felicidade com o prazer e por isso amam a vida dos gozos [βίος ὰπολαυστικόςbiacuteos apolaystikoacutes] Pode-se dizer com efeito que existem trecircs tipos principais de vida a que acabamos de mencionar a vida poliacutetica [βίος πολιτικόςbiacuteos politikoacutes] e a contemplativa [βίος θεωρητικόςbiacuteos theōrētikoacutes]rdquo Fermani confirma esta distinccedilatildeo partindo de uma anaacutelise semacircntica de zōḗ e biacuteos Zōḗ jaacute eacute viver mas eacute um simples estar vivo enquanto biacuteos avoca uma atividade a vida vivida que acaba se configurando como um modus vivendi FERMANI Arianna A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles Trad Renato Ambrosio Rev Tarcila Donaacute et al Satildeo Paulo Paulus 2015 pp 52-53 ldquoPorque se eacute verdade que como seres humanos estamos todos ligados pelo simples fato de viver isto eacute pelo fato de termos uma zoeacute (que eacute aquela vida que segundo os gregos compartilhamos tambeacutem com os animais e os deuses) cada homem vivendo realiza um biacuteos isto eacute um modus vivendi um modo singular de estar no mundordquo Reeve atenua a distinccedilatildeo mas a manteacutem Zōḗ eacute a vida num sentido mais global Zōḗ indica tanto o ato de nutrir-se crescer reproduzir-se sentir e entender quanto a potecircncia para realizar estes atos Jaacute biacuteos indica os tipos especiacuteficos de vida eacute a vida que se encontra por exemplo descrita nas histoacuterias naturais e nas

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Eacutetica a Nicocircmaco biacuteos aponta para o modo especiacutefico de vida de um ser No caso do homem por exemplo a vida segundo o loacutegos

A mesma doutrina se encontra na Eacutetica a Nicocircmaco em que aparece para indicar o tipo de vida melhor o termo βίος que significa a vida vivida medida por certo arco de tempo e pode ser precisamente de gecircnero diferente Existem assim o gecircnero de vida vivido pelas plantas os gecircneros de vida vividos pelos animais [] e os muitos tipos de vida vividos pelos homens []10

A fim de entendermos melhor a distinccedilatildeo feita acima entre

ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) seraacute proveitoso compreendermos o conceito de alma para Aristoacuteteles Na concepccedilatildeo do filoacutesofo de Estagira a alma eacute antes de tudo o princiacutepio de vida (ζωήzōḗ) de um corpo fiacutesico que possui a vida em potecircncia ldquoPor isso a alma eacute o primeiro acto de um corpo natural que possui vida em potecircnciardquo11 Ela eacute o ato (ἐντελέχειαenteleacutekheia) que torna um corpo vivo Assim se a alma da planta daacute-lhe capacidade para que se nutra e a alma dos animais para que sintam percebam e se movam a alma humana capacita efetivamente o homem para que chegue ao exerciacutecio de certo tipo de vida (βίοςbiacuteos) a saber segundo o loacutegos (λόγος) Esta precisatildeo do conceito de vida torna-se

biografias REEVE CDC Accedilatildeo contemplaccedilatildeo e felicidade Um ensaio sobre Aristoacuteteles Trad Celiacutelia Camargo Bartoltti Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 pp 277-278 ldquoDuas palavras gregas correspondem agrave traduccedilatildeo lsquovidarsquo zocircecirc e bios Zocircecirc refere-se aos tipos de processos de vida estudados por bioacutelogos zooacutelogos e outros cientistas (incluindo psicoacutelogos e teoacutelogos) crescimento e reproduccedilatildeo satildeo processos desse tipo assim como percepccedilatildeo e entendimento Portanto zocircecirc eacute ambiacuteguo significando ou o potencial para crescer reproduzir-se perceber ou o processo ou atividade de crescer reproduzir-se perceber e entender Bios refere-se ao tipo de vida que um historiador natural ou bioacutegrafo poderia investigar mdash a vida da lontra a vida de Peacutericles mdash e assim a uma duraccedilatildeo ao longo da qual algueacutem possui zocircecirc como uma potencialidaderdquo 10 BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos II Fiacutesica Antropologia e Metafiacutesica Trad Silvana Cobucci Leite Ceciacutelia Camargo Bartalotti Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2011 p 169 11 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 1 412 a 25 Idem Ibidem II 412 a 15-20 ldquoA alma portanto tem de ser necessariamente uma substacircncia no sentido de forma de um corpo natural que possui vida em potecircnciardquo

82 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino relevante quando pensamos que Aristoacuteteles afirma que a poacutelis surge para preservar a vida e promover a vida boa que eacute justamente a vida segundo o loacutegos ldquoFormada a princiacutepio para preservar a vida [ζῆνzẽn] a cidade subsiste para assegurar a boa vida [εὖ ζῆνeỹ zẽn]rdquo12

Tragamos a lume outra distinccedilatildeo acerca do proacuteprio termo ato Tanto ἐντελέχειαenteleacutekheia quanto ἐνέργειαeneacutergeia significam ato 13 Poreacutem enquanto enteleacutekheia numa primeira acepccedilatildeo significa o ldquoato primeirordquo isto eacute a capacidade efetiva de viver eneacutergeia significa o ldquoato segundordquo ou seja o exerciacutecio mesmo desta capacidade de viver a atividade a vida vivida como jaacute dissemos acima Ademais o termo eneacutergeia tem uma peculiaridade a saber aponta para uma atividade continuada prolongada constante ininterrupta no sentido de que natildeo se extingue mas perdura mesmo apoacutes ter alcanccedilado o resultado14 A todos os seres vivos eacute dado o ldquoato primeirordquo em sua primeira acepccedilatildeo mas cada um tem de construir mdash conforme a sua natureza mdash o seu ldquoato segundordquo o qual lhe eacute especiacutefico Mas haacute aleacutem disso como jaacute acenamos uma segunda acepccedilatildeo do termo enteleacutekheia Enteleacutekheia designa tambeacutem a perfeiccedilatildeo alcanccedilada pela eneacutergeia do eacutergon eacutergon que significa funccedilatildeo e sobre o qual voltaremos a falar mais adiante15 A alma mdash falando com exaccedilatildeo mdash eacute enteleacutekheia na

12 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 2 1252 b 29-30 13 Haacute passagens em suas obras eacute preciso advertir em que Aristoacuteteles parece abandonar a distinccedilatildeo entre ἐντελέχειαenteleacutekheia e ενέργειαeneacutergeia 14 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 372 ldquoEneacutergeia eacute um termo que natildeo aparece no corpus platonicum O substantivo que remete ao verbo energeacuteō (lsquoestou ativorsquo lsquoestou em atividadersquo lsquoajorsquo lsquoproduzorsquo) e aos adjetivos energeacutes (lsquooperantersquo lsquoeficazrsquo lsquooperosorsquo lsquoativorsquo lsquoeneacutergicorsquo ldquoprodutivordquo) e energoacutes (lsquoativorsquo lsquoeficazrsquo) significa lsquoforccedilarsquo lsquoeficaacuteciarsquo lsquoatividadersquo lsquoaccedilatildeorsquo lsquoobrarsquo lsquoenergiarsquo Essa lsquoatividadersquo ou lsquocapacidade de agirrsquo possui na realidade uma peculiaridade essencial a natildeo exauribilidade a capacidade de se conservar de se manter em vida mesmo depois de ter alcanccedilado o objetivordquo [O itaacutelico eacute nosso] 15 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica IX 8 1050 a 20 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado 2 ed Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquoA operaccedilatildeo [ἔργον] eacute fim [τέλος] e o ato [ἐνέργεια] eacute operaccedilatildeo [ἔργον] por isso tambeacutem o ato [ἐνέργεια] eacute dito em relaccedilatildeo com a operaccedilatildeo [ἔργον] que tende ao mesmo significado de enteleacutequeia [ἐντελέχειαν]rdquo

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sua primeira acepccedilatildeo apontada acima ldquoMas lsquoactorsquo diz-se em dois sentidos num como o eacute o saber no outro como o eacute o exerciacutecio do saber Eacute evidente que a alma eacute acto no sentido em que o eacute o saberrdquo16

Logo depois ele esclarece que a forma eacute ato [ἐντελέχεια] e distingue dois significados de ato correspondentes respectivamente agrave posse de uma capacidade por exemplo a ciecircncia e ao exerciacutecio dela A alma eacute ato no primeiro sentido ou seja ldquoato primeirordquo de um corpo natural que tem a vida em potecircncia o que significa que ela eacute a posse efetiva por parte de um corpo natural da capacidade de viver A vida portanto seraacute ato no segundo sentido ou seja como exerciacutecio da capacidade constituiacuteda pela alma quer dizer como atividade [ἐνέργεια]17

Com efeito eacute somente quando conhecemos o biacuteos

enquanto ato mesmo de viver o qual se desabrocha num modus vivendi numa maneira habitual de viver que se coloca o problema da eacutetica18 Mas para apreendermos o que o Estagirita entende por eacutetica eacute mister considerarmos o termo ldquoethosrdquo Este termo conforme jaacute acenamos remonta a uma transliteraccedilatildeo de dois vocaacutebulos gregos de significaccedilatildeo distinta 19 O primeiro ἦθος (ẽthos) grafado com o η inicial designa por assim dizer a morada do homem ou seja o ambiente habitaacutevel ao homem enquanto tal Nas palavras de Lima Vaz nesta acepccedilatildeo ldquoO ethos eacute a casa do

16 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 412 a 20 17 BERTI Novos Estudos Aristoteacutelicos II Fiacutesica Antropologia e Metafiacutesica p 164 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 7 1098 a 5 ldquoE como a lsquovida do elemento racionalrsquo tambeacutem tem dois significados devemos esclarecer aqui que nos referimos agrave vida no sentido de atividade pois esta parece ser a acepccedilatildeo mais proacutepria do termordquo 18 O biacuteos evoca uma vida plasmada FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 53 ldquoEacute somente a partir de nosso biacuteos isto eacute da vida que nunca pode ser separada da sua forma daquela orientaccedilatildeo daquela direccedilatildeo que a vida tomou e pela qual foi plasmada que podemos fazer a pergunta sobre a felicidaderdquo 19 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 12 ldquoO termo ethos eacute uma transliteraccedilatildeo dos dois vocaacutebulos gregos ethos (com eta) e ethos (com eacutepsilon)rdquo

84 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino homemrdquo20 Todavia em grego diz-se tambeacutem ἔθος (eacutethos) com um ε inicial significando desta feita haacutebito isto eacute a disposiccedilatildeo estaacutevel para agir de determinada maneira21 Ora unindo estas duas concepccedilotildees temos que pelos haacutebitos (habitus em latim ἕξις [heacutexis] em grego) mdash pelo ἔθος (eacutethos) enfim mdash o homem torna-se capaz de construir o seu mundo vale dizer o seu haacutebitat proacuteprio o seu ἦθος (ẽthos) desta sorte entendido como aquelas disposiccedilotildees estaacuteveis que permitem ao homem moldar a sua morada sobre a terra Haacute entatildeo na ldquofenomenologia do ethosrdquo uma espeacutecie de obra poieacutetica (poiacuteēsis [ποίησις] = produccedilatildeo)22 pois ela pressupotildee que o

20 Idem Ibidem 21 Idem Ibidem p 14 ldquoA segunda acepccedilatildeo de ethos (eacutepsilon inicial) diz respeito ao comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos [] [] o ethos (eacutepsilon inicial) designa o processo geneacutetico do haacutebito ou da disposiccedilatildeo habitual para agir de uma certa maneira []rdquo 22 Observemos que se deve ter cuidado ao tentar aproximar ēthikḗ e poiacuteēsis em Aristoacuteteles porquanto na distinccedilatildeo dos ramos das ciecircncias mdash teoreacuteticas praacuteticas e poieacuteticas mdash ele define bem o campo de cada uma ARISTOacuteTELES Metafiacutesica VI 1025 b 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado 2 ed Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquo[] todo conhecimento racional eacute ou praacutetico [πραχτιχή] ou produtivo [ποιητιχέ] ou teoreacutetico [θεωρητιχή] []rdquo Na proacutepria Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles diferencia atividade de produccedilatildeo ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 1 1094 a 5 ldquoMas observa-se entre os fins uma certa diferenccedila alguns satildeo atividades [ἐνέργειαιeneacuterγειαι] outros satildeo produtos [ἔργαeacuterga] distintos das atividades que os produzemrdquo Noutro lugar Aristoacuteteles precisa ainda que eacute necessaacuteria esta diferenciaccedilatildeo para que natildeo se confunda eacutetica e arte pois enquanto a primeira eacute um agir a segunda eacute um produzir Idem Ibidem VI 4 1140 a 15 ldquoDiferindo pois o produzir [ποίησιςpoiacuteēsis] e o agir [πρᾶξιςpratildexis] a arte [τέχνηνteacutekhnēn] deve ser uma questatildeo de produzir e natildeo de agirrdquo Mas eacute preciso ponderar bem este e outros textos Na primeira passagem citada da Eacutetica [I 1 1094 a 5] Aristoacuteteles usa o termo ldquoἔργαrdquo distinguindo-o de ldquoἐνέργειαιrdquo Contudo em seguida ao delimitar a accedilatildeo eacutetica fala que ela consiste numa atividade [ενέργεια] segundo a funccedilatildeo ou a obra [ἔργον] proacutepria do homem Eacute inegaacutevel a plurivocidade com que os termos satildeo empregados Pois bem considerando todos estes prolegocircmenos o que devemos reter parece ser o seguinte stricto sensu a atividade [ενέργειαeneacutergeia] eacute uma accedilatildeo [πρᾶξιςpratildexis] distinta daquela accedilatildeo produtiva que Aristoacuteteles define como ποίησις [poiacuteēsis] a qual eacute proacutepria da arte [τέχνηteacutekhnē] Todavia pensamos poder valer-nos da mesma polissemia agrave qual Aristoacuteteles recorre permanentemente para afirmarmos que lato sensu a ēthikḗ pode ter uma acepccedilatildeo de poiacuteēsis quando se entende que ela tambeacutem se traduz como a possibilidade de o homem mediante os atos virtuosos ldquoproduzirrdquo um mundo humano e ldquoconstruir-serdquo a si mesmo De resto ocorre-nos que isto seja mesmo necessaacuterio pois se o agir eacutetico natildeo for sob nenhum aspecto transeunte transformador da realidade na qual se insere podemos deveras cair num ldquosolipsismordquo caprichoso e assim perdermos a ligaccedilatildeo fundante em Aristoacuteteles entre eacutetica e poliacutetica Por fim as accedilotildees belas e justas satildeo o legado que o cidadatildeo deixa para a poacutelis Aliaacutes o proacuteprio Aristoacuteteles quando faz eacutetica natildeo deixa de evocar os ditos e feitos dos grandes homens Numa passagem ele diz que a obra de um homem manifesta em ato o que ele eacute em potecircncia Idem Ibidem IX 7 1168 a 5 ldquoE isso tem raiacutezes

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homem seja capaz de construindo-se e construindo o seu mundo destacar-se do mundo da fyacutesis (φύσις) sem separar-se dele Sintetiza Lima Vaz

A metaacutefora da morada e do abrigo indica justamente que a partir do ethos o espaccedilo do mundo torna-se habitaacutevel para o homem O domiacutenio da physis ou o reino da necessidade eacute rompido pela abertura do espaccedilo humano do ethos no qual iratildeo inscrever-se os costumes os haacutebitos as normas e os interditos os valores e as accedilotildees Por conseguinte o espaccedilo do ethos enquanto espaccedilo humano natildeo eacute dado ao homem mas por ele construiacutedo ou incessantemente reconstruiacutedo23

Ora a ἠθική (ēthikḗ) natildeo eacute senatildeo a ciecircncia que estudaraacute

quais satildeo estes haacutebitos pelos quais o homem pode se tornar artiacutefice da sua vida (βίοςbiacuteos) demiurgo do seu mundo Portanto a ēthikḗ mdash ciecircncia do ẽthos (ἦθος) mdash pode tambeacutem ser considerada a ciecircncia do eacutethos (ἔθος) vale lembrar dos haacutebitos (ἕξειςheacutexeis) que permitiratildeo ao homem construir o seu haacutebitat (ἦθος) O Estagirita parece fazer referecircncia a isso quando diz no comeccedilo do livro β da Eacutetica

[] enquanto a virtude moral eacute adquirida em resultado do haacutebito donde ter-se formado o seu nome (ἠθική) por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ἔθος (haacutebito)24

Eacute interessante seguindo ainda Lima Vaz introduzirmos

nova distinccedilatildeo mdash se bem que tecircnue mdash entre eacutethos e heacutexis Esta distinccedilatildeo natildeo eacute de todo infundada Poreacutem eacute preciso acrescer que entre ambos haacute tambeacutem uma continuidade Eacutethos (ἔθος) diz o processo geneacutetico no qual o sujeito pela pratildexis mdash o termo πρᾶξις (pratildexis) indica accedilatildeo mdash constante e reiterada vai acostumando-se a

profundas na natureza das coisas pois o que ele [o homem] eacute em potecircncia [δυνάμειdynaacutemei] sua obra [ἔργον] o manifesta em ato [ὲνεργείᾳenergeiacutea]rdquo 23 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13 24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 1 1103 a 15

86 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino agir de determinada maneira ateacute que adquira o haacutebito (ἕξιςheacutexis) mdash disposiccedilatildeo estaacutevel mdash que eacute o termo desta circularidade Em outras palavras o eacutethos eacute o que instaura na pratildexis humana o haacutebito o qual inaugura por sua vez a vida eacutetica a vida humana Afirma Vaz

Mas se o ethos (eacutepsilon inicial) designa o processo geneacutetico do haacutebito ou da disposiccedilatildeo habitual para agir de uma certa maneira o termo dessa gecircnese do ethos mdash sua forma acabada e o seu fruto mdash eacute designado pelo termo hexis que significa haacutebito como possessatildeo estaacutevel [] Haacute pois uma circularidade entre os trecircs momentos costume (ethos) accedilatildeo (praxis) haacutebito (ethos-hexis) na medida em que o costume eacute fonte de accedilotildees tidas como eacuteticas e a repeticcedilatildeo destas accedilotildees acaba por plasmar os haacutebitos25

Se mdash como dissemos acima mdash o biacuteos especiacutefico do homem eacute

o loacutegos antes de adentrarmos na Eacutetica importa delinearmos o que seja o loacutegos O loacutegos eacute antes de tudo a capacidade que o homem tem de falar Em vez de simplesmente emitir voz mdash flatus vocis diratildeo os latinos mdash o homem pode ir aleacutem da simples expressatildeo de dor e prazer nominando o que eacute dor e o que eacute prazer significando o que lhe causa dor e prazer e chegando assim ao discernimento do que eacute justo e injusto bem e mal Ora para Aristoacuteteles isto eacute o loacutegos maacutexime no seu comportamento praacutetico Assim para o Estagirita eacute o loacutegos que cria a poacutelis porque o loacutegos mdash enquanto linguagem mdash eacute inteligiacutevel e portanto comunicaacutevel capaz de criar comunhatildeo entre os homens26

A natureza conforme dizemos nada faz ao desbarato e soacute o homem de entre todos os seres vivos possui a palavra [λόγος] Assim enquanto a voz indica prazer ou sofrimento e nesse sentido eacute tambeacutem atributo de outros animais (cuja natureza tambeacutem atinge sensaccedilotildees de dor e de prazer e eacute capaz de as

25 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura pp 14 -15 26 O proacuteprio verbo do qual vem loacutegos λέγω indica no grego arcaico uma accedilatildeo que cria ligame relaccedilatildeo Chantraine fala de ajuntamento reuniatildeo CHANTRAINE 2 λέγω [leacutegō] In Op Cit p 625

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indicar) o discurso [λόγος] serve para tornar claro o uacutetil e o prejudicial e por conseguinte o justo e o injusto Eacute que perante os outros seres vivos o homem tem as suas peculiaridades soacute ele sente o bem e o mal o justo e o injusto eacute a comunidade desses sentimentos que constitui a famiacutelia e a cidade27

O medievalista Reacutemi Brague lendo esta passagem da

Poliacutetica coloca em revelo a importacircncia da linguagem mdash enquanto comunicaccedilatildeo mdash para a constituiccedilatildeo da poacutelis Ele daacute ecircnfase agrave ideia de que natildeo eacute prioritariamente o fato de vivermos num mesmo espaccedilo geograacutefico nem o de intercambiarmos propriedades nem os laccedilos de famiacutelia que nos tornam ciacutevicos Antes o que nos faz consortes no acircmbito poliacutetico eacute a comunhatildeo que mediante o dinamismo da linguagem estabelecemos em torno dos valores ciacutevicos

O que eacute comum para o homem natildeo eacute um conjunto de propriedades passivamente constatadas Eacute o que ele coloca em comum por meio de um processo ativo A linguagem eacute o lugar dessa colocaccedilatildeo em comum [] na linguagem a comunidade eacute resultado da comunicaccedilatildeo28

Mas o que o constitui como espaccedilo [o espaccedilo poliacutetico] sua abertura eacute de ordem linguiacutestica A vida da poacutelis certamente seraacute tecida por trocas entre seus membros Mas o ato por meio do qual os cidadatildeos reconhecem uns aos outros como concidadatildeos eacute um ato de linguagem Eacute pois legiacutetimo que a comunidade seja aqui o objeto de uma comunicaccedilatildeo portanto de um ato de comunicaccedilatildeo29

Tambeacutem comentando a mesma passagem da Poliacutetica

Mario Vegetti ressalta que nela a concepccedilatildeo de loacutegos como

27 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 5-15 28 BRAGUE Reacutemi Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Rev Dayane Cristina Pal Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007 p 175 29 Idem Ibidem [O colchetes satildeo nossos]

88 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino linguagemrazatildeo e por conseguinte meio de comunicaccedilatildeo entre os homens eacute bem atestada e digna de destaque

A proacutepria posse do logos a linguagemrazatildeo especiacutefica do homem tem essencialmente uma destinaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica ela serve com efeito ldquopara comunicar o uacutetil e o nocivo portanto tambeacutem o justo e o injustordquo (Pol I 2 1253a 9ss)30

De mais a mais se ldquo[] ser para todos os seres vivos eacute

viver []rdquo31 uma vez que o homem eacute um animal dotado de loacutegos mdash loacutegos entendido enquanto fala linguagem mdash o seu ser eacute viver como um ldquoanimal falanterdquo E como esta fala o torna capaz de expressar os estados da sua alma o homem pode ser definido tambeacutem como um ldquoanimal simboacutelicordquo Outrossim como eacute capaz de dar significado agraves coisas ele pode ser ainda chamado ldquoanimal significanterdquo

O que define o homem eacute mais que tudo a palavra [] Por conseguinte o homem eacute mais propriamente um animal dotado de palavra ou de linguagem [] o homem poderia ser definido como animal simboacutelico [] o homem poderia ser definido como animal semacircntico ou significante32

Enfim exatamente por ser capaz de significar valorar e

comunicar o homem eacute por natureza um animal poliacutetico De fato ldquo[] se o homem eacute ciacutevico eacute porque ele tambeacutem eacute provido de logosrdquo33

[] o homem [ἄνθρωποςaacutenthrōpos] eacute por natureza [φύσειfyacutesei] um ser vivo poliacutetico [ζῷον πολιτικόνzȭon

30 VEGETTI Op Cit p 223 31 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 415 b 10 32 BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 169 33 BRAGUE Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia 169

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politikoacuten] Aquele que por natureza e natildeo por acaso natildeo tiver cidade seraacute um ser decaiacutedo ou sobre-humano34

E ser um zȭon politikoacuten significa ser capaz de pensar o bem

e o mal o justo e o injusto com os seus semelhantes Donde a poacutelis (πόλις) ser justamente o resultado de homens que entram em comunhatildeo (κοινωνίαkoinōniacutea) porque comungam de princiacutepios cuja conquista se daacute pelo consoacutercio entre eles o qual acontece atraveacutes do loacutegos ldquoTornar comum eacute entrar em acordo sobre o que seraacute comum E eacute entrar em acordo por meio da linguagemrdquo35 Daiacute Aristoacuteteles dizer do homem ldquo[] soacute ele sente o bem e o mal o justo e o injusto eacute a comunidade destes sentimentos que produz a famiacutelia e a cidaderdquo36 Observa ainda Brague

De fato lemos o que constitui esses grupos satildeo menos seus componentes que o fato de que certas noccedilotildees sejam comuns E essas noccedilotildees e junto com elas o ser-em-comum soacute se tornam visiacuteveis no meio que constitui o logos Eacute poliacutetica toda relaccedilatildeo que se estabelece porque seus termos satildeo dotados de logos Eacute pois no caso da poacutelis que vemos mais claramente aflorar sob a comunidade como grupo um tipo determinado de ser-em-comum37

Ora uma vez que a ēthikḗ pode ser concebida tambeacutem

uma ciecircncia do eacutethos ou seja dos haacutebitos (heacutexeis) que permitiratildeo ao homem construir o seu haacutebitat (ἦθος) e jaacute que o homem eacute um zȭon politikoacuten a ēthikḗ seraacute naturalmente uma ldquociecircncia poliacuteticardquo (ἐπιστήμη πολιτικήepistḗmē politikḗ) O proacuteprio Aristoacuteteles assim introduz o seu estudo

34 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 5 35 BRAGUE Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia 173 36 ARISTOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 15 37 BRAGUE Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia p 169

90 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Tais satildeo por conseguinte os fins visados pela nossa investigaccedilatildeo pois que isso pertence agrave ciecircncia poliacutetica [μέθοδος πολιτικήmeacutethodos politikḗ] numa das acepccedilotildees do termo38

Agora podemos traccedilar em linhas gerais os grandes

momentos da Eacutetica Nicomaqueia indicando as suas passagens mais emblemaacuteticas Passemos a trabalhar dois conceitos basilares da eacutetica de Aristoacuteteles teacutelos e eydaimoniacutea39 23 TEacuteLOS E EYDAIMONIacuteA

O que Aristoacuteteles propotildee em sua Eacutetica No livro I da Eacutetica ele afirma de suacutebito que toda accedilatildeo humana tende para um fim (τέλοςteacutelos) ao mesmo tempo que reconhece que haacute uma multidatildeo de fins porque muitas satildeo as accedilotildees do homem40 Observa ainda que o que eacute fim numa accedilatildeo pode tornar-se meio noutra e que portanto haacute uma hierarquia dos bens como haacute dos fins41 Reconhece tambeacutem que na ordem dos fins deve haver um fim uacuteltimo ao qual todos os outros deveratildeo estar subordinados como meios pois ningueacutem agiria se natildeo houvesse um fim propriamente dito Qual eacute este fim Eacute o bem supremo o oacutetimo42 Em grego diz-

38 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 2 1094 a 10 39 Como jaacute advertimos seguiremos de perto Enrico Berti BERTI Enrico Lrsquoetica in Aristotele Disponiacutevel em lthttpwwwyoutubecomwatchv=fnsrqOiq6BMgt Outra siacutentese do pensamento Aristoteacutelico com a qual somente recentemente tomamos contato enconta-se em OTFRIED Houmlffe Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 40 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 1 1094 a 5 ldquoOra como satildeo muitas as accedilotildees [πολλῶν δὲ πράξεων] artes e ciecircncias muitos [πολλά] satildeo os seus fins [τέλη]rdquo 41 Idem Ibidem I 1 1094 a 5-15 ldquoMas quando tais artes se subordinam a uma uacutenica faculdade mdash assim como a selaria e as outras artes que se ocupam com os aprestos dos cavalos se incluem na arte da equitaccedilatildeo e esta juntamente com todas as accedilotildees militares na estrateacutegia haacute outras artes que tambeacutem se incluem em terceiras mdash em todas elas os fins das artes fundamentais devem se preferidos a todos os fins subordinados porque estes uacuteltimos satildeo procurados a bem dos primeirosrdquo 42 Idem Ibidem I 2 1094 a 15-20 ldquoSe pois para as coisas que fazemos existem um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais eacute desejado no interesse desse fim e se eacute verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito e inuacutetil e vatildeo seria o nosso desejar) evidentemente tal fim seraacute o bem [τἀγαθόν] ou antes o sumo bem [ἄριστον]rdquo

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se ἄριστον (aacuteriston) que quer dizer bem supremo porquanto superlativo de ἀγαθόν (agathoacuten) que eacute bem Mas qual eacute este bem supremo que direta ou indiretamente eacute buscado em todas as accedilotildees humanas Digamos desde jaacute a felicidade em grego εὐδαιμονία (eydaimoniacutea)43 Eacute para sermos felizes que fazemos tudo o que fazemos A eydaimoniacutea eacute tanto o fim uacuteltimo quanto o primeiro princiacutepio de nossas accedilotildees ldquoE tambeacutem parece ser assim pelo fato de ser ela um primeiro princiacutepio [ἀρχή] pois eacute tendo-a em vista que fazemos tudo o que fazemos [πάντα πάντες πράττομεν]rdquo44 Aqui temos um primeiro corolaacuterio para Aristoacuteteles a eacutetica eacute uma disciplina filosoacutefica que reflete sobre como eacute possiacutevel ao homem alcanccedilar a felicidade

Mas em que consiste a felicidade Para responder a esta pergunta Aristoacuteteles potildee-se primeiramente a observar o que se entende comumente por felicidade Estaraacute a felicidade numa vida de prazeres como alguns a entendem ou na busca das riquezas do poder e das honras como pensam outros E depois de arrolar estas e outras opiniotildees o Estagirita retoma a palavra para dizer que nenhuma dessas asserccedilotildees responde com argumentos adequados o que ele busca saber o que eacute a felicidade45 Na verdade a pesquisa se prolonga ateacute o uacuteltimo livro De forma que soacute no livro X Aristoacuteteles nos daraacute a sua definiccedilatildeo final de felicidade Evidentemente que natildeo poderemos segui-lo pari passu neste capiacutetulo Teremos de ir abreviando os seus caminhos Dando continuidade fixemos a atenccedilatildeo em trecircs conceitos tambeacutem fundantes da eacutetica aristoteacutelica eacutergon aretḗ e kakiacutea

43 Idem Ibidem I 4 1095 a 15-20 ldquoVerbalmente quase todos estatildeo de acordo pois tanto o vulgo como os homens de cultura superior dizerm ser esse fim a felicidade [εὐδαιμονίαν] e identificam o bem viver e o bem agir com o ser feliz [εὐδαιμονεῖν]rdquo 44 Idem Ibidem I 12 1102 a 45 Idem Ibidem I 7 1097 a 15 ldquoVoltemos novamente ao bem que estamos procurando e indaguemos o que eacute ele [τί ποτrsquo ἂν εἴη] []rdquo

92 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino 24 EacuteRGON ARETḖ E KAKIacuteA

Outro conceito importante para compreendermos mdash in nuce mdash o que Aristoacuteteles entende por felicidade eacute o de ἔργον (eacutergon) que significa funccedilatildeo obra (em latim opus) O Estagirita afirma que cada homem tem o seu eacutergon a sua funccedilatildeo Assim o eacutergon do escultor eacute construir estaacutetuas o eacutergon do arquiteto eacute construir casas ou templos o que toca flauta tem como sua funccedilatildeo (eacutergon) tocar flauta etc46 Em seguida Aristoacuteteles coloca a seguinte questatildeo haveraacute um eacutergon que toque natildeo a um homem em particular mas ao homem enquanto tal ao homem enquanto homem Qual eacute a funccedilatildeo do homem propriamente dito O primeiro esboccedilo de uma resposta a esta importante questatildeo eacute o seguinte se o homem possui um eacutergon que lhe seja especiacutefico este deve consistir na realizaccedilatildeo da sua potencialidade proacutepria ou seja deve consistir na realizaccedilatildeo da capacidade que eacute especiacutefica do homem47 E a verdade eacute que o homem possui algo que lhe eacute peculiar Natildeo eacute deveras o alimentar-se porque isto ele tem em comum com as plantas tampouco eacute a sensibilidade porque esta ele compartilha com os animais Entatildeo qual a capacidade que distingue o homem destes seres e na qual pode residir o seu eacutergon Aristoacuteteles natildeo pestaneja em dizer o λόγος e loacutegos significa antes de tudo palavra linguagem como jaacute sabemos O homem eacute o uacutenico animal dotado de palavra Por isso o eacutergon proacuteprio do homem enquanto homem eacute o loacutegos e tudo o que esteja em conexatildeo com ele48

46 Idem Ibidem I 7 1097 b 25 ldquoPois assim como para um flautista um escultor ou um pintor e em geral para todas as coisas que tecircm funccedilatildeo [ἔργον] ou atividade considera-se que o bem e o lsquobem feitorsquo residem na funccedilatildeo [ἔργῳ] o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma funccedilatildeo [ἔργον]rdquo 47 Idem Ibidem I 7 1097 b 30 ldquoA vida parece ser comum ateacute agraves proacuteprias plantas mas agora estamos procurando o que eacute peculiar ao homemrdquo 48 Idem Ibidem I 7 1098 a 5 [] A funccedilatildeo [ἔργον] do homem [ἀνθρώπου] eacute uma atividade [ἐνέργεια] da alma [ψυχῆς] que segue ou que implica um princiacutepio racional [λόγου] []rdquo

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Mas neste passo da argumentaccedilatildeo ele introduz outro conceito de primeira grandeza para a sua eacutetica a saber o de virtude Aqui haacute que se ter cuidado Nos dias de hoje a palavra virtude estaacute muito vinculada a certa concepccedilatildeo ldquomoralistardquo qual seja a de ldquobom comportamentordquo Entretanto a palavra que Aristoacuteteles usa para significar virtude eacute ἀρετή (aretḗ) que vem da raiz ἀρίς da qual proveacutem tambeacutem ἄριστον (aacuteriston) que significa oacutetimo Assim sendo aretḗ (virtude) indica a capacidade que o homem tem de realizar da melhor forma possiacutevel mdash com excelecircncia mdash o seu ἔργον (eacutergon) isto eacute a sua funccedilatildeo a qual eacute o λόγος (loacutegos) e tudo quanto seja conexo com ele 49 Como eacute virtuoso o escultor que faz bem a sua estaacutetua o arquiteto que constroacutei bem a sua casa e o flautista que toca bem a sua flauta eacute virtuoso o homem que usa bem ou seja exercita da melhor forma possiacutevel o ἔργον (eacutergon) que lhe eacute especiacutefico vale dizer o loacutegos (λόγος) De fato uma coisa eacute fazer uma boa accedilatildeo outra adicional eacute fazecirc-la bem eis a aretḗ 50 E o que compete ao homem Compete ao homem que por meio de seu loacutegos (λόγος) crie koinōniacutea (κοινωνία) viacutenculos humanos laccedilos humanos E praticar esta accedilatildeo da melhor forma possiacutevel eacute realizaacute-la com aretḗ com excelecircncia Mas o que temos ateacute aqui Uma eacutetica cujo ponto nevraacutelgico estaacute

49 Sem o estigma do ldquoperfeccionismordquo podemos dizer que Aristoacuteteles eacute um ldquoperfeccionistardquo Adquirimos a perfeiccedilatildeo da virtude eacutetica treinando praticando E quando esta pratildexis torna-se heacutexis a atividade eacute facilitada destravada torna-se aacutegil O exerciacutecio do eacutergon fica mais ceacutelere menos moroso sem desleixo Ora esta perfeiccedilatildeo a ser perseguida se chama aretḗ Idem Ibidem II 2 1104 a 30-1104 b ldquoO mesmo ocorre com as virtudes tornamo-nos temperantes abstendo-nos de prazeres e eacute depois de nos tornarmos tais que somos mais capazes dessa abstenccedilatildeo E igualmente no toca agrave coragem pois eacute habituando-se a desprezar e arrostar coisas terriacuteveis que nos tornamos bravos e depois de nos tornarmos tais somos mais capazes de lhes fazer frenterdquo 50 Idem Ibidem I 7 1098 a 5 10 e 15 ldquoOra se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma que segue ou que implica um princiacutepio racional e se dizemos que lsquoum tal-e-talrsquo e lsquoum bom tal-e-talrsquo tecircm uma funccedilatildeo que eacute a mesma em espeacutecie (por exemplo um tocador de lira e um bom tocador de lira e assim em todos os casos sem maiores discriminaccedilotildees sendo acrescentada ao nome da funccedilatildeo a eminecircncia com respeito agrave bondade mdash pois a funccedilatildeo de um tocador de lira eacute tocar lira e a de um bom tocador de lira eacute fazecirc-lo bem) se realmente assim eacute [] o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de uma virtude com a melhor e mais completardquo

94 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino num conceito de felicidade que consiste na plena realizaccedilatildeo das capacidades (δυνάμειςdynaacutemeis) humanas

Observemos pois que toda virtude ou excelecircncia natildeo soacute coloca em boa condiccedilatildeo a coisa de que eacute a excelecircncia como tambeacutem faz com que a funccedilatildeo dessa coisa seja bem desempenhada Por exemplo a excelecircncia do olho torna bons tanto o olho como a sua funccedilatildeo pois eacute graccedilas agrave excelecircncia do olho que vemos bem Analogamente a excelecircncia de um cavalo tanto o torna bom em si como bom na corrida [] Portanto se isto vale para todos os casos a virtude do homem tambeacutem seraacute a disposiccedilatildeo de caraacuteter que o torna bom e que o faz desempenhar bem a sua funccedilatildeo51

Um homem eacutetico eacute pois aquele que se empenha em

realizar da melhor forma possiacutevel isto eacute com virtude com aretḗ o seu eacutergon a saber aquilo que lhe compete enquanto homem E o seu eacutergon eacute que ultrapassando o que o separa dos seus pares ele busque permanentemente mdash mediante o loacutegos (λόγος) mdash criar koinōniacutea (κοινωνία) entre os homens comunhatildeo em torno de alguns valores que exatamente porque descobertos em comunidade consolidam-na

Como ante um pianista que executa uma peccedila com perfeiccedilatildeo dizemos que pianista virtuoso Ou de uma sinfocircnica que toca com perfeiccedilatildeo um tema dizemos que execuccedilatildeo feliz Assim devemos dizer diante de um homem que pela mediaccedilatildeo do loacutegos (λόγος) procura continuamente criar koinōniacutea (κοινωνία) entre os seus semelhantes que homem feliz Que homem virtuoso Eacute neste sentido que podemos afirmar que a eacutetica aristoteacutelica eacute uma eacutetica bela porque concebida como uma espeacutecie de poiacuteēsis (ποίησις) como a bela obra de toda uma vida que busca constantemente mdash atraveacutes do loacutegos (λόγος) mdash fazer com que os homens comunguem a vida uns dos outros O proacuteprio Aristoacuteteles registra como objeto da sua ldquociecircncia poliacuteticardquo as belas accedilotildees ldquoOra as accedilotildees belas (τὰ

51 Idem Ibidem II 6 1106 a 15-20 Com estes exemplos tirados da vida cotidiana Aristoacuteteles mostra que adestrar as nossas accedilotildees torna a sua praacutetica aleacutem de mais eficaz mais prazerosa

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καλάtagrave kalaacute) e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga []rdquo52 Noutra passagem o Estagirita diz que o fim da vida poliacutetica e da proacutepria ciecircncia poliacutetica eacute ser fautora de cidadatildeos virtuosos capazes de accedilotildees boas e belas

[] o objetivo da vida poliacutetica [πολιτικῆςpolitikẽs] eacute o melhor dos fins e essa ciecircncia dedica o melhor de seus esforccedilos a fazer com que os cidadatildeos sejam bons e capazes de nobres accedilotildees [τῶν καλῶνtȭn kalȭn]53

Tambeacutem Berti mdash ao estudar a ldquociecircncia poliacuteticardquo de

Aristoacuteteles a qual engloba a eacutetica e a poliacutetica propriamente dita mdash define-a como o estudo das accedilotildees belas e justas

Aqui Aristoacuteteles descreve com muita clareza aquilo que denominamos a intenccedilatildeo topoloacutegica proacutepria da ciecircncia poliacutetica ela se ocupa das accedilotildees belas isto eacute nobres e justas54

Ao chegar a este ponto parece que dissemos tudo quanto

possa ser dito sobre a Eacutetica E no entanto abordamos apenas e sinteticamente o livro I Em seguida Aristoacuteteles reflete no fato de que o homem eacute capaz de muitas accedilotildees e que portanto haacute muitas virtudes Jaacute sabemos que fundamentalmente a virtude estaacute em realizar bem uma accedilatildeo Mas e se a realizamos mal Ora se agimos mal caiacutemos no viacutecio O termo que nosso autor usa para designar viacutecio eacute κακία (kakiacutea) que vem de κακός (kakoacutes) e que significa o que eacute mau bruto rude Daiacute que para Aristoacuteteles viciosa eacute toda accedilatildeo humana que vai aleacutem ou fica aqueacutem do que poderia e deveria

52 Idem Ibidem I 3 1094 b 10-15 53 Idem Ibidem I 9 1099 b 30 Idem Ibidem I 8 1098 b 20 ldquoSendo assim as accedilotildees virtuosas [] satildeo boas e nobres [καλαίkalaiacute] e possuem no mais alto grau cada um destes atributos []rdquo As accedilotildees virtuosas natildeo soacute satildeo belas mas possuem o atributo da beleza no mais alto grau Aristoacuteteles chama o temperante ldquoamigo do belordquo Idem Ibidem I 8 1099 a 10 ldquo[] os amantes do que eacute nobre [φιλοκάλοιςfilokaacutelois] se comprazem em coisas que tecircm aquela qualidade []rdquo 54 BERTI Enrico As razotildees de Aristoacuteteles Trad Dion Davi Macedo Rev Renato Rocha Carlos 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 p 121

96 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ser como veremos mais abaixo55 Mas quais satildeo as accedilotildees que satildeo propriamente passiacuteveis de virtude ou de viacutecio 25 PROAIacuteRESIS E BOYacuteLEYSIS

A virtude diz respeito agraves accedilotildees das quais o homem eacute o princiacutepio motor56 E o homem eacute o princiacutepio motor daquelas accedilotildees sobre as quais ele exerce a sua escolha (προαίρεσιςproaiacuteresis) por meio de uma deliberaccedilatildeo (βούλευσιςboyacuteleysis) A deliberaccedilatildeo e a escolha mdash esta uacuteltima fruto da deliberaccedilatildeo mdash por sua vez tratam dos meios exequiacuteveis para se alcanccedilar o fim57 Por isso as accedilotildees passiacuteveis de virtudes mdash e consequentemente de viacutecios58 mdash satildeo as factiacuteveis isto eacute as que estatildeo em nosso poder e que escolhemos59 mdash agrave guisa de meio mdash para chegarmos a um fim60 Do quanto dissemos temos que as accedilotildees eacuteticas satildeo aquelas que procedem de noacutes que nascem de noacutes porque filhas de nossas escolhas deliberadas Desta sorte para Aristoacuteteles a eacutetica trata daquelas accedilotildees das quais ldquo[] o homem [ἄνθρωπον] seja um princiacutepio [ἀρχήν] motor e pai [γεννητήν] de suas accedilotildees [πράξεων] como o eacute de seus filhosrdquo61 Por isso na concepccedilatildeo de nosso filoacutesofo cada

55 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 6 1106 b 35-1107 a 5 ldquoA virtude [ἀρετή] eacute pois uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξις] [] E eacute um meio-termo [μεσότες] entre dois viacutecios [κακιῶν] um por excesso e outro por falta pois que enquanto os viacutecios ou vatildeo muito longe ou ficam aqueacutem do que eacute conveniente no tocante agraves accedilotildees e paixotildees a virtude encontra e escolhe o meio-termordquo 56 Idem Ibidem III 3 1112 b 30 ldquoParece pois como jaacute ficou dito que o homem eacute um princiacutepio motor de accedilotildeesrdquo 57 Idem Ibidem III 3 1112 b 30 ldquoCom efeito o fim natildeo pode ser objeto de deliberaccedilatildeo mas apenas o meiordquo Idem Ibidem III 3 1112 b 10 ldquoNatildeo deliberamos acerca de fins mas a respeito de meiosrdquo 58 Idem Ibidem II 1 1103 b 5 ldquoAinda mais eacute das mesmas causas e pelos mesmos meios que se gera e se destroacutei toda virtude []rdquo 59 Idem Ibidem III 3 1113 a 10 ldquoSendo pois o objeto da escolha uma coisa que estaacute ao nosso alcance e que eacute desejada apoacutes deliberaccedilatildeo a escolha eacute um desejo deliberado de coisas que estatildeo ao nosso alcance []rdquo 60 Idem Ibidem III 5 1113 b 5 ldquoSendo pois o fim aquilo que desejamos e o meio aquilo acerca do qual deliberamos e que escolhemos as accedilotildees relativas ao meio devem concordar com a escolha e ser voluntaacuterias Ora o exerciacutecio da virtude diz respeito aos meios Por conseguinte a virtude estaacute em nosso poder do mesmo modo que o viacutecio []rdquo 61 Idem Ibidem III 5 1113 b 15

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accedilatildeo eacutetica afigura-se como um novo nascimento pois se ldquoDeliberamos sobre coisas que estatildeo ao nosso alcance e podem ser realizadasrdquo62 ou seja sobre coisas que natildeo estatildeo determinadas deliberamos acerca de coisas que ldquo[] em noacutes estaacute igualmente o fazecirc-las ou natildeo as fazerrdquo63 A eacutetica nos coloca assim ante o ineacutedito o imprevisiacutevel e por ela o homem mdash senhor de suas accedilotildees mdash faz-se e cria o mundo em que habita De sorte que a vida eacutetica eacute como uma segunda natureza64 e a felicidade obra de nossas matildeos pois ldquo[] ningueacutem eacute involuntariamente feliz [μακάριοςmakaacuterios] []rdquo65 O raciociacutenio eacute simples se estaacute em nosso poder agir ou natildeo agir de forma virtuosa ou viciosa estaacute em nosso poder tambeacutem sermos virtuosos ou viciosos Ademais se a virtude e o viacutecio geram em noacutes como uma segunda natureza estaacute ao nosso alcance ainda sermos bons ou maus justos ou injustos valentes ou covardes pois em grande medida transformamo-nos naquilo que fazemos naquilo que escolhemos ser

[] quando depende de noacutes o agir tambeacutem depende o natildeo agir e vice-versa de modo que quando temos o poder de agir quando isso eacute nobre tambeacutem temos o de natildeo agir quando eacute vil e se estaacute em nosso poder o natildeo agir quando isso eacute nobre tambeacutem estaacute o agir quando isso eacute vil Logo depende de noacutes praticar atos nobres ou vis e se eacute isso que se entende por ser bom ou mau entatildeo depende de noacutes sermos virtuosos ou viciosos66

Isso pois eacute o que tambeacutem ocorre com as virtudes pelos atos que praticamos em nossas relaccedilotildees com os homens nos tornamos justos ou injustos pelo que fazemos em presenccedila do perigo e pelo

62 Idem Ibidem III 3 1112 a 30 63 Idem Ibidem III 1 1110 a 15 64 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel Nascimento Pena Rev Levi Condinho 2 ed Lisboa Biblioteca de Autores Claacutessicos 2005 v VIII I 11 1370 a 5ldquo[] o haacutebito eacute de algum modo semelhante agrave natureza []rdquo 65 Idem Eacutetica a Nicocircmaco III 5 1113 b 15 66 Idem Ibidem III 5 1113 b 10

98 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

haacutebito do medo ou da ousadia nos tornamos valentes ou covardes67

Aubenque e Zingano dois importantes comentadores

repisam o que acabamos de dizer

Ele pretende dizer que a virtude eacute uma disposiccedilatildeo que exprime uma decisatildeo da qual somos princiacutepio que engaja nossa liberdade nossa responsabilidade nosso meacuterito o adjetivo προαιρετικός designa a diferenccedila especiacutefica que separa a virtude moral que nos eacute imputaacutevel da virtude natural cuja posse natildeo nos concede nenhum meacuterito porque natildeo concerne agrave nossa proaiacuteresis68

Graccedilas agrave razatildeo deliberativa sou senhor de minhas accedilotildees como as disposiccedilotildees satildeo geradas pelas accedilotildees sou em parte causa de minhas disposiccedilotildees Ora as disposiccedilotildees praacuteticas constituem o que se pode chamar de natureza praacutetica do agente e os fins aparecem ao agente em funccedilatildeo de sua natureza (praacutetica) por conseguinte em uma certa medida sou causa do fato que certos fins apareccedilam para mim69

Toquemos ainda que concisamente na distinccedilatildeo que

Aristoacuteteles estabelece entre virtudes dianoeacuteticas e virtudes eacuteticas e a partir de que criteacuterio ele concebe o conceito de justo meio 26 VIRTUDES DIANOEacuteTICAS E EacuteTICAS O CONCEITO DE JUSTO MEIO QUANTO AgraveS VIRTUDES EacuteTICAS

Do livro II da Eacutetica a Nicocircmaco ateacute o livro VII encontra-se o que podemos chamar tratado acerca das virtudes e dos viacutecios opostos Aristoacuteteles divide as virtudes em duas ordens haacute as virtudes eacuteticas tambeacutem chamadas virtudes de caraacuteter ou morais e

67 Idem Ibidem II 1 1103 b 10-15 68 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad Marisa Lopes Rev Siacutelvio Rosa Filho 2 ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2008 pp 193-194 69 ZINGANO Marco Estudos de Eacutetica Antiga 2 ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009 pp 319-320

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as virtudes dianoeacuteticas70 O substantivo dianoeacutetica vem do verbo διὰ-νοεῖν (diagrave-noeĩn) que significa discorrer raciocinar Lembremos ainda que o substantivo νοῦς (noỹs) designa inteligecircncia Daiacute que as virtudes dianoeacuteticas satildeo as virtudes racionais ou intelectuais A elas cabe nos conduzir ao conhecimento da verdade71 A alma humana eacute pois uma alma intelectiva Mas observemos com atenccedilatildeo a alma humana natildeo eacute soacute intelectiva ela eacute uma alma intelectiva que acumula as funccedilotildees vegetativa e sensitiva Haacute portanto uma soacute alma que acumula estas trecircs funccedilotildees

E de entre os seres que possuem sensibilidade uns possuem a faculdade de se moverem de lugar outros natildeo Por fim um pequeno nuacutemero de animais possui raciociacutenio e pensamento discursivo De entre os seres pereciacuteveis os que possuem raciociacutenio possuem tambeacutem as restantes faculdades mas nem todos os que possuem cada uma daquelas dispotildeem de raciociacutenio []72

As virtudes referentes agrave correccedilatildeo da razatildeo satildeo justamente

as virtudes dianoeacuteticas conforme jaacute evidenciamos Poreacutem o homem repetimos natildeo eacute soacute razatildeo Ele sente e se nutre Todavia o que haacute de melhor no homem eacute a razatildeo Desta sorte natildeo seraacute feliz o homem cuja sensibilidade e prazeres se contrapuserem agrave razatildeo As virtudes que devem harmonizar aqueles comportamentos que natildeo satildeo apenas racionais mas dizem respeito agrave sensibilidade satildeo denominadas virtudes eacuteticas73 ou de caraacuteter74 Eacute neste contexto que

70 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 1 1103 a 15 ldquoSendo pois de duas espeacutecies a virtude intelectual e moral []rdquo 71 Idem Ibidem VI 2 1139 a 25 ldquoQuanto ao intelecto contemplativo e natildeo praacutetico nem produtivo o bom e o mau estado satildeo respectivamente a verdade e a falsidade []rdquo 72 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 3 415 a 5 73 Idem Eacutetica a Nicocircmaco VI 2 1139 a 25-30 ldquoOra esta espeacutecie de intelecto e de verdade eacute praacutetica [] [] mas da parte praacutetica e intelectual o bom estado eacute a concordacircncia da verdade com o reto desejordquo

100 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino surge a famosa definiccedilatildeo de virtude de Aristoacuteteles como o justo meio (μεσότηςmesoacutetēs) entre dois extremos o excesso e a falta75

Por exemplo a virtude do guerreiro eacute ser corajoso ou seja natildeo se furtar agrave luta quando se tem uma causa nobre Contudo a eminecircncia da virtude da coragem proacutepria do guerreiro fica entre o viacutecio por excesso da temeridade que consiste em natildeo saber reconhecer os riscos que devem ser ponderados antes da guerra e o viacutecio da covardia que eacute simplesmente a falta de coragem para se encarar a luta quando isto se faz necessaacuterio O mesmo se pode dizer da virtude da generosidade entre o extremo da avareza e o excesso da prodigalidade haacute precisamente a virtude da generosidade Estes exemplos satildeo importantes a fim de entendermos que o justo meio natildeo eacute algo mediacuteocre como se pode pensar mas uma eminecircncia que se sobrepotildee ao excesso e agrave falta

E assim no que toca agrave sua substacircncia e agrave definiccedilatildeo que lhe estabelece a essecircncia a virtude eacute mediania com referecircncia ao sumo bem e ao mais justo eacute poreacutem um extremo76

As principais virtudes eacuteticas satildeo a fortaleza ou coragem

(ἀνδρείαandreiacutea) que eacute como vimos o justo meio em relaccedilatildeo aos sentimentos de medo e confianccedila a temperanccedila (σωφροσύνηsōfrosyacutenē) que eacute o justo meio em relaccedilatildeo aos prazeres e dores77 Contudo entre as virtudes eacuteticas Aristoacuteteles destaca a justiccedila (δικαιοσύνηdikaiosyacutenē) Esta consiste na equidade ldquo[] o justo eacute equumlitativo como aliaacutes pensam todos

74 Idem Ibidem II 5 1106 a 10 ldquoPor conseguinte se as virtudes natildeo satildeo paixotildees nem faculdades soacute resta uma alternativa a de que sejam disposiccedilotildees de caraacuteterrdquo 75 Idem Ibidem II 6 1106 b 25 ldquoOra a virtude diz respeito agraves paixotildees e accedilotildees em que o excesso eacute uma forma de erro assim como a carecircncia ao passo que o meio-termo eacute uma forma de acerto digna de louvor []rdquo 76 Idem Ibidem II 6 1107 a 5 77 Idem Ibidem II 7 1107 b 5 ldquoEm relaccedilatildeo aos sentimentos de medo e de confianccedila a coragem eacute o meio-termo [] Com relaccedilatildeo aos prazeres e dores mdash natildeo todos e menos no que tange agraves dores mdash o meio-termo eacute a temperanccedila e o excesso eacute a intemperanccedilardquo

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mesmo sem discussatildeordquo78 Haacute segundo Aristoacuteteles dois tipos de justiccedila a distributiva na qual se realiza uma igualdade geomeacutetrica que consiste em o governante dar do que eacute comum a cada qual segundo os seus meacuteritos e a comutativa ou corretiva que se realiza mediante uma igualdade aritmeacutetica que consiste na correccedilatildeo das comutas entre os indiviacuteduos79 Interessante eacute notar que estas virtudes eacuteticas satildeo conexas Por exemplo a virtude intelectual da froacutenēsis eacute conexa com a virtude eacutetica da sōfrosyacutenē Para expressar esta conexatildeo Aristoacuteteles chega a indicar que a sōfrosyacutenē teria este nome porque eacute ela que salva (σώζωsṓzō) a froacutenēsis ldquoE por isso mesmo damos agrave temperanccedila o nome de σωφροςύνη subentendendo que ela preserva a nossa sabedoria σώζουσα τήν φρόνησω [sṓzoysa tḗn froacutenēsō]rdquo80

Restaria muito por dizer mas nossa intenccedilatildeo era tatildeo somente fazer uma concisa apresentaccedilatildeo das virtudes eacuteticas Poreacutem ainda natildeo falamos acerca do papel da amizade na eacutetica aristoteacutelica 27 O PAPEL DA AMIZADE NA EacuteTICA

Eacute a amizade uma virtude Haacute quem pense que sim e alegue a seu favor que Aristoacuteteles dedica dois livros da Eacutetica a Nicocircmaco agrave temaacutetica Ademais para os que defendem esta posiccedilatildeo algumas passagens desta obra parecem tratar a filiacutea como heacutexis e aretḗ 81 Uma linha diversa reclama que Aristoacuteteles nunca aplica agrave

78 Idem Ibidem V 3 1131 a 10 79 Idem Ibidem V 4 1131 b 25-30-1132 a ldquoCom efeito a justiccedila que distribui posses comuns estaacute sempre de acordo com a proporccedilatildeo mencionada acima (e mesmo quando se trata de distribuir os fundos comuns de uma sociedade ela se faraacute segundo a mesma razatildeo que guardam entre si os fundos empregados no negoacutecio pelos diferentes soacutecios) e a injusticcedila contraacuteria a esta espeacutecie de injusticcedila eacute a que viola a proporccedilatildeo Mas a justiccedila nas transaccedilotildees entre um homem e outro eacute efetivamente uma espeacutecie de igualdade e a injusticcedila uma espeacutecie de desigualdade natildeo de acordo com essa espeacutecie de proporccedilatildeo todavia mas de acordo com uma proporccedilatildeo aritmeacuteticardquo 80 Idem Ibidem VI 5 1140 b 10 81 BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos III Filosofia Praacutetica Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 136 ldquoA amizade mdash e isso eacute notoacuterio mdash eacute a virtude (sim a

102 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino amizade a mesoacutetēs cuja funccedilatildeo eacute a de definir uma virtude eacutetica pelo que concluem que a amizade natildeo eacute virtude embora a implique82 Natildeo nos pronunciaremos sobre a questatildeo deixando-a adrede em aberto Para o nosso propoacutesito basta seguirmos o Filoacutesofo quanto ao papel da amizade na vida eacutetica o qual natildeo eacute como veremos um papel de somenos Antes de tudo para Aristoacuteteles a amizade eacute uma paixatildeo da alma

Devemos considerar agora o que eacute a virtude [ἀρετή] Visto que na alma se encontram trecircs espeacutecies de coisas mdash paixotildees [πάθη] faculdades e disposiccedilotildees de caraacuteter [ἕξεις] mdash a virtude deve pertencer a uma destas Por paixotildees [πάθη] entendo os apetites a coacutelera o medo a audaacutecia a inveja a alegria a amizade [φιλίαν] []83

Todavia no comeccedilo do livro VIII o Estagirita parece definir

a amizade como aretḗ ou algo que a implique

amizade eacute uma virtude natildeo conveacutem esquececirc-lo) da qual Aristoacuteteles fala mais longamente em suas obras consagrando-lhe dois livros inteiros da Eacutetica a Nicocircmaco e um livro da Eacutetica a Eudemo para natildeo falar da Grande eacutetica ou Grande moral de autenticidade duvidosardquo BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 294 ldquoAleacutem disso segundo Aristoacuteteles a amizade eacute uma virtude isto eacute uma forma de excelecircncia um bem []rdquo 82 HOBUSS J ldquoEthica Nicomachea 1165b 13-14 filia e mudanccedila de caraacuteterrdquo In Dissertatio n 36 2012 pp 177 -185 ldquoNo livro VIII Aristoacuteteles comeccedila com uma afirmaccedilatildeo que identifica a amizade com a virtude recuando logo em seguida e sublinhando que se natildeo eacute uma virtude ao menos envolve virtude Na realidade jamais Aristoacuteteles indica que a amizade seja uma virtude e se se observa o tratamento da virtude nos livros VIII e IX da EN ele jamais daacute a esta o mesmo tratamento que daacute agraves virtudes morais ou seja ela nunca eacute tratada nesses livros como uma mediedade entre o excesso e a falta Nem nesses livros nem no resto da EN pois nas passagens onde aparece a φιλία como uma mediedade ente o excesso e a falta (1108b 26-30 1126b 20-28) o contexto faz com que se traduza φιλία como lsquoamabilidadersquo Na primeira passagem o que peca por excesso eacute um obsequioso ou um lisonjeador e o que peca por falta eacute um importuno ou grosseiro na segunda a mediedade natildeo tem um nome proacuteprio mas se parece de certo modo com a amizaderdquo WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Giachini Rev Renato da Rocha e Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 230 ldquoTambeacutem a breve indicaccedilatildeo da teoria do mesotes (1158 a 10 ss) apenas reforccedila a impressatildeo de que natildeo se pode classificar a amizade como uma arete [] Assim a uacutenica referecircncia clara estabelecida por Aristoacuteteles entre amizade e arete eacutetica consiste no fato de que natildeo haacute amizade em sentido verdadeiro e proacuteprio sem que as pessoas envolvidas na relaccedilatildeo de amizade possuam arete eacuteticardquo 83 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 5 1105 b 20-25

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Depois do que dissemos segue-se naturalmente uma discussatildeo da amizade [φιλίας] visto que ela eacute uma virtude [ἀρετή] ou implica virtude [ἀρετής] sendo aleacutem disso sumamente necessaacuteria agrave vida84

Para entendermos a questatildeo precisamos ter presente que

filiacutea eacute um termo grego a priori de significado muito amplo empregado para expressar toda sorte de afetos humanos Poreacutem pelo contexto do tratado aristoteacutelico existe uma compreensatildeo de filiacutea que soacute se realiza quando haacute uma benevolecircncia reciacuteproca e habitual entre as pessoas e eacute a esta benevolecircncia muacutetua entre os homens que Aristoacuteteles chama propriamente amizade

Ora as pessoas amam por trecircs razotildees Para o amor dos objetos inanimados natildeo usamos a palavra ldquoamizaderdquo pois natildeo se trata de amor muacutetuo nem um deseja o bem ao outro (seria com efeito ridiacuteculo se desejaacutessemos bem ao vinho se algo lhe desejamos eacute que se conserve para que continuemos dispondo dele) no tocante aos amigos poreacutem diz-se que devemos desejar-lhes o bem no interesse deles proacuteprios Mas aos que desejam bem dessa forma soacute atribuiacutemos benevolecircncia se o desejo natildeo eacute reciacuteproco a benevolecircncia quando reciacuteproca torna-se amizade [φιλίαν]85

E assim como a amizade [φίλιας] depende mais do amar do que do ser amado e satildeo os que amam os seus amigos que satildeo louvados o amar parece ser a virtude caracteriacutestica dos amigos [φίλων ἀρετὴ τὸ φιλεῖν] de modo que soacute aqueles que amam na medida justa satildeo amigos duradouros e soacute a amizade desses resiste ao tempo86

O Estagirita distingue pois o amor entendido como

paacutethos por exemplo quando se manifesta como eacuterōs do amor enquanto filiacutea stricto sensu De fato eacute soacute a filiacutea entendida stricto

84 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 5 85 Idem Ibidem VIII 2 1155 b 25-30 86 Idem Ibidem VIII 8 1159 a 30-35

104 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino sensu que ele considera uma disposiccedilatildeo de caraacuteter isto eacute heacutexis visto que envolve proaiacuteresis e consiste como jaacute dissemos num amor muacutetuo Fato eacute que sem amigos verdadeiros ningueacutem consegue viver ainda que possua todos os outros bens o que torna a amizade um bem indispensaacutevel agrave eydaimoniacutea ldquoPorque sem amigos ningueacutem escolheria viver ainda que possuiacutesse todos os outros bensrdquo87

Ora dir-se-ia que o amor eacute um sentimento e a amizade [φιλία] eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξει] porque se pode sentir amor mesmo pelas coisas inanimadas mas o amor muacutetuo envolve escolha [προαιρέσεως] e a escolha [προαίρεσις] procede de uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξεως] E os homens desejam bem agravequeles a quem amam por eles mesmos natildeo por efeito de um sentimento [πάθος] mas de uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξιν]88

Se quisermos ser mais precisos podemos distinguir com

Aristoacuteteles trecircs tipos de amizade Uma que se baseia no prazer outra que se funda na utilidade que um tem para o outro finalmente a mais perfeita e a mais rara a amizade propriamente dita a qual se baseia no fato mesmo de o outro ser quem eacute vale dizer virtuoso Esta uacuteltima forma de filiacutea acumula tambeacutem o prazer e a utilidade mas natildeo se alicerccedila neles89 Eacute rara porque exige tempo concoacuterdia e familiaridade90 As demais formas de amizade satildeo ditas amizades apenas acidentalmente porque logo que o prazer e a utilidade se esvaem elas se dissolvem Com efeito

87 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 5 88 Idem Ibidem VIII 5 1157 b 25-35 89 Idem Ibidem VIII 6 1158 b 5 ldquoEacute por sua semelhanccedila com a amizade da virtude que parecem ser amizades (pois uma delas envolve prazer e a outra utilidade e estas caracteriacutesticas pertencem tambeacutem agrave amizade dos virtuosos) []rdquo 90 Exige diriacuteamos hoje provas de confianccedila ateacute que confirmada a mesma amizade fique ela blindada contra as caluacutenias Idem Ibidem VIII 4 1157 a 20 ldquoA amizade entre os bons e soacute ela tambeacutem eacute invulneraacutevel agrave caluacutenia pois natildeo damos ouvidos facilmente agraves palavras de qualquer um a respeito de um homem que durante muito tempo submetemos agrave prova e eacute entre os bons que satildeo encontradas a confianccedila o sentimento expresso pelas palavras lsquoele nunca me faria uma deslealdadersquo e todas as outras coisas que se requerem numa verdadeira amizaderdquo

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amizades baseadas tatildeo somente no prazer ou na utilidade podem existir tambeacutem entre os viciosos jaacute a amizade propriamente dita soacute entre os virtuosos91 Haacute passagens particularmente elucidativas a este respeito

Haacute assim trecircs espeacutecies de amizade [] Ora os que se amam por causa de sua utilidade natildeo se amam por si mesmos [] Idecircntica coisa se pode dizer dos que se amam por causa do prazer [] De forma que essas amizades satildeo apenas acidentais pois a pessoa amada natildeo eacute amada por ser o homem que eacute mas porque proporciona algum bem ou prazer Eis por que tais amizades se dissolvem facilmente se as partes natildeo permanecem iguais a si mesmas com efeito se uma das partes cessa de ser agradaacutevel ou uacutetil a outra deixa de amaacute-la92

A amizade perfeita eacute a dos homens que satildeo bons e afins na virtude pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons e satildeo bons em si mesmos Ora os que desejam bem aos seus amigos por eles mesmos satildeo os mais verdadeiramente amigos porque o fazem em razatildeo da sua proacutepria natureza e natildeo acidentalmente93

Uma tal amizade eacute como seria de esperar permanente jaacute que eles encontram um no outro todas as qualidades que os amigos devem possuir [] E agrave amizade entre homens bons pertencem todas as qualidades que mencionamos [prazer utilidade] [] Mas eacute natural que tais amizades natildeo sejam muito frequumlentes pois que tais homens satildeo raros Acresce que uma amizade dessa espeacutecie exige tempo e familiaridade [] Os que natildeo tardam a mostrar mutuamente sinais de amizade desejam ser amigos mas natildeo o satildeo a menos que ambos sejam estimaacuteveis e o saibam

91 Idem Ibidem VIII 4 1157 b ldquoDividindo-se pois a amizade nestas espeacutecies os maus seratildeo amigos com vistas na utilidade ou no prazer e a esse respeito se assemelharatildeo um ao outro mas os bons seratildeo amigos por eles mesmos isto eacute em razatildeo da sua bondade Esses pois satildeo amigos no sentido absoluto do termo e os outros o satildeo acidentalmente e por uma semelhanccedila com os primeirosrdquo 92 Idem Ibidem VIII 3 1156 a 5-20 93 Idem Ibidem VIII 3 1156 b 5-10

106 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

porque o desejo da amizade pode surgir depressa mas a amizade natildeo94

Como jaacute vimos apenas a filiacutea que se baseia no querer bem

ao outro como a si mesmo implica perfeiccedilatildeo ldquoEsta espeacutecie de amizade pois eacute perfeita (τελεία) []rdquo95 Ademais eacute esta forma de amizade calcada na virtude que inobstante rara deve ser buscada adquirida e conservada na e pela poacutelis Trata-se como jaacute dito de um haacutebito (heacutexis) que natildeo se perde com a distacircncia esta soacute interrompe a atividade (eneacutergeia) natildeo o haacutebito salvo se durar muito tempo

A distacircncia natildeo rompe a amizade [φιλίαν] em absoluto mas apenas a sua atividade [ἐνέργειαν] Todavia se a ausecircncia dura muito tempo parece realmente fazer com que os homens esqueccedilam a sua amizade daiacute o proveacuterbio ldquolonge dos olhos longe do coraccedilatildeordquo96

Aristoacuteteles fala ainda por assim dizer de outras espeacutecies

de amizade no bojo da proacutepria poacutelis entre pai e filho velho e jovem governante e suacutedito etc Poreacutem todas estas espeacutecies de amizade mdash inclusive a que eacute segundo a virtude mdash oriundas de comunidades mais particulares pressupotildeem a poacutelis como a parte supotildee o todo 97 Por isso tais amizades soacute podem ser buscadas vividas e conservadas no horizonte da mesma poacutelis que abarca todas

94 Idem Ibidem VIII 3 1156 b 15-30 95 Idem Ibidem VIII 4 1156 b 30 96 Idem Ibidem VIII 5 1157 b 10 97 Idem Ibidem VIII 9 1160 a 5-10 ldquoOra todas as formas de comunidade [κοινωνίαι] satildeo como partes da comunidade poliacutetica [πολιτικῆς] []rdquo Idem Ibidem VIII 9 1160 a 20 ldquoMas todos parecem incluir-se na comunidade poliacutetica [πολιτική] que natildeo visa agrave vantagem imediata mas ao que eacute vantajoso para a vida no seu todo []rdquo Idem Ibidem VIII 9 1160 a 25-30 ldquoTodas as comunidades [κοινωνίαι] por conseguinte parecem fazer parte da comunidade poliacutetica [πολιτικῆς] e as espeacutecies particulares de amizade devem corresponder agraves espeacutecies particulares de comunidaderdquo

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De qualquer maneira destas formas de amizade exceto a que eacute segundo a virtude natildeo satildeo um fim em si mesmas senatildeo meio visto que se tomadas como um fim elas tendem agrave degeneraccedilatildeo porque envolvem desigualdade ldquoTambeacutem nas amizades que se baseiam na superioridade surgem dissenccedilotildees pois cada qual espera obter mais proveito delas mas quando isso natildeo acontece a amizade se dissolverdquo 98 Por exemplo na relaccedilatildeo governantesuacutedito nem sempre eacute faacutecil manter a proporcionalidade que iguala os desiguais e conserva a amizade Em razatildeo disso como jaacute dissemos a filiacutea que deve ser querida inclusive no acircmbito da poacutelis eacute sempre a que traraacute um maior proveito comum99 a saber a amizade segundo a virtude entre pares Ora a constituiccedilatildeo que melhor propicia a amizade segundo a virtude eacute a que se baseia na meritocracia visto que nela se estabelece uma igualdade segundo a virtude e desta sorte ela fomenta a amizade perfeita que eacute a filiacutea entre irmanados na virtude

A amizade de irmatildeos eacute como a de camaradas porquanto satildeo iguais e proacuteximos uns dos outros pela idade e tais pessoas em geral assemelham-se nos sentimentos e no caraacuteter E tambeacutem eacute semelhante a esta a amizade apropriada ao governo timocraacutetico [τιμοκρατικήν] pois numa tal constituiccedilatildeo o ideal eacute serem os cidadatildeos iguais e equumlitativos e por isso o governo eacute assumido por turnos numa base de igualdade E a amizade [φιλία] apropriada a esta constituiccedilatildeo corresponde agrave que descrevemos100

Tendo presente o que dissemos ateacute aqui sobre a amizade

passemos a considerar o seu papel na eacutetica Friedo Ricken em O

98 Idem Ibidem VIII 14 1163 a 20-25 99 Idem Ibidem VIII 9 1160 a 10 ldquo[] e eacute por causa da vantagem que a comunidade poliacutetica parece ter-se formado e perdurar pois esse eacute o objetivo que os legisladores se propotildeem e chamam justo o que concorre para a vantagem comumrdquo 100 Idem Ibidem VIII 11 1161 a 25 Eacute claro que em qualquer forma de governo corrompida supressa a justiccedila suprime-se tambeacutem a possibilidade de amizades verdadeiras Idem Ibidem VIII 11 1161 a 30 ldquoNas formas de desvio poreacutem como mal existe justiccedila tambeacutem eacute rara a amizaderdquo

108 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino bem-viver em comunidade na parte dedicada agrave poliacutetica de Aristoacuteteles frisa que eacute soacute pela experiecircncia de uma sadia convivecircncia desde a famiacutelia ateacute a poacutelis que chegamos a conhecer e a nomear os autecircnticos valores humanos

Para ele os valores e regras surgem a partir da experiecircncia da convivecircncia bem-sucedida [] A experiecircncia no trato com as pessoas nos leva a uma visatildeo das regras a que devemos obedecer para que a convivecircncia humana seja bem-sucedida Os valores ou regras morais mdash num resumo provisoacuterio da minha interpretaccedilatildeo mdash mostram-se como tais quando promovem a comunidade eles satildeo reconhecidos em comunidades humanas elementares por causa de suas experiecircncias de vida101

Noutro passo da mesma obra Ricken estende para a poacutelis

de forma mais especiacutefica a concepccedilatildeo de que eacute somente a convivecircncia que nos faz descobrir e vivenciar o justo e o injusto Ele faz a sua exegese a partir de uma passagem da Poliacutetica jaacute citada neste texto [I 2 1253 a 5-15]

O espantoso nessa tese eacute a relaccedilatildeo de consequecircncia nela formulada a pergunta pelo benefiacutecio e pelo prejuiacutezo natildeo pode ser separada da pergunta de como o benefiacutecio e o prejuiacutezo satildeo distribuiacutedos a pergunta pela distribuiccedilatildeo do benefiacutecio e do prejuiacutezo eacute um aspecto da racionalidade do objetivo pois este soacute pode ser alcanccedilado em conjunto pelas pessoas Elas natildeo podem se reunir para realizar juntas um benefiacutecio sem perguntar como esse benefiacutecio e os esforccedilos necessaacuterios vinculados a ele seratildeo distribuiacutedos A cooperaccedilatildeo soacute pode ser estaacutevel sob a condiccedilatildeo de ser dada a essa pergunta uma resposta satisfatoacuteria a todos os envolvidos Portanto a necessidade do justo pode ser fundamentada assim parece com ajuda do conceito de comunidade102

101 RICKEN Friedo O bem-viver em comunidade A vida boa segundo Platatildeo e Aristoacuteteles Trad Inecircs Antocircnia Lohbauer Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 pp 125-126 102 Idem Ibidem p 147

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A fim de constatarmos nos proacuteprios textos do Estagirita esta realidade basta lermos o que eacute dito sobre o homem a saber que ele eacute por natureza [fyacutesei] um vivente poliacutetico (zȭon politikoacuten) Isto implica que o homem natildeo eacute autossuficiente Por isso para Aristoacuteteles aquele que for incapaz de criar koinōniacutea mais ainda quem natildeo sente esta necessidade natildeo vive segundo a sua natureza

Quem for incapaz de se associar ou que natildeo sente essa necessidade por causa de sua auto-suficiecircncia natildeo faz parte de qualquer cidade e seraacute um bicho ou um deus103

Mas qual a melhor forma de convivecircncia Que nome dar agrave

convivecircncia virtuosa Ora a melhor forma de convivecircncia eacute a amizade pois nela sem abandonarmos o nosso ldquoeurdquo estendemo-lo pois o amigo eacute como outro ldquoeurdquo com quem compartilhamos palavras pensamentos e gestos Assim o bem viver do amigo seraacute o nosso bem viver e vice-versa E a ldquoconsciecircnciardquo do bem viver do amigo promoveraacute tambeacutem o nosso bem viver e vice-versa Cria-se pois uma circularidade na qual a felicidade individual existe mas de forma indissociaacutevel da coletiva

Ele [o homem] necessita por conseguinte ter consciecircncia tambeacutem da existecircncia do seu amigo e isso se verificaraacute se viverem em comum e compartilharem suas discussotildees e pensamentos pois isso eacute ο que o conviacutevio parece significar no caso do homem e natildeo como para o gado o pastar juntos no mesmo lugar Se portanto o ser eacute desejaacutevel em si mesmo para o homem sumamente feliz [] e o ser de seu amigo eacute mais ou menos idecircntico ao seu um amigo seraacute uma das coisas desejaacuteveis104

103 ARISTOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 25 104 Idem Eacutetica a Nicocircmaco IX 9 1170 b10-15

110 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

A amizade gera cooperaccedilatildeo parece mesmo ativar e dilatar a dimensatildeo poliacutetica do homem pois um amigo antecipa-se ao outro para fazer-lhe participar do seu gozo e adianta-se em ajudaacute- lo antes que este lhe peccedila auxiacutelio A dinacircmica da amizade se por um lado leva-nos a ajudar o amigo a carregar os seus pesos por outro leva-nos a natildeo querer sobrecarregaacute-lo com as nossas desditas

Segundo parece pois deveriacuteamos convocar sem demora os nossos amigos a compartilhar a nossa ventura (pois as pessoas de caraacuteter benfazejo satildeo nobres) mas hesitar em chamaacute-los nos dias de infortuacutenio pois que de nossos males devemos dar-lhes uma parte tatildeo pequena quanto possiacutevel mdash donde a frase jaacute basta o meu infortuacutenio Acima de tudo devemos chamar nossos amigos quando eles podem sem grande trabalho prestar-nos um grande serviccedilo Inversamente eacute decoroso acorrer sem ser convidado em auxiacutelio dos que foram colhidos pela adversidade (pois eacute caracteriacutestico de um amigo prestar serviccedilos e especialmente aos que deles necessitam e que natildeo os solicitaram uma tal accedilatildeo eacute mais nobre e mais apraziacutevel a ambos) []105

A amizade segundo a virtude nota ainda Enrico Berti a

partir de uma passagem da Eacutetica a Nicocircmaco106 que citaremos abaixo gera accedilotildees desinteressadas O amigo verdadeiro estaacute disposto a com alegria abrir matildeo de muitos bens pelos quais os homens lutam mdash riquezas honras etc mdash e ateacute da sua proacutepria vida pelo bem de seu amigo ou de sua paacutetria Ora esta espeacutecie de accedilatildeo abnegada e doadora que adveacutem da amizade segundo a virtude eacute a face bela da eacutetica

105 Idem Ibidem IX 11 1171 b 15-20 106 Trata-se de uma recente videoliccedilatildeo na qual Enrico Berti comenta uma tese de doutorado da qual ele foi um dos examinadores A tese eacute Aristotele e il bello Poesis praxis theoria A autora da referida tese Lisa Bressan A tese que se transformou em livro foi defendida em 2012 na Universitagrave di Padova No trabalho a autora defende que o belo em Aristoacuteteles estaacute presente natildeo soacute na poiacuteēsis mas tambeacutem na praacutexis e na theōriacutea BERTI Enrico La natura del bello nel pensiero di Aristotele Disponiacutevel em lt httpswwwyoutubecomwatchv=coiO_Fpo6z4gt

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Do homem bom tambeacutem eacute verdadeiro dizer que pratica muitos atos no interesse de seus amigos e de sua paacutetria e se necessaacuterio daacute a vida por eles Com efeito um tal homem de bom grado renuncia agrave riqueza agraves honras e em geral aos bens que satildeo objetos de competiccedilatildeo ganhando para si a nobreza [τὸ καλόν]107

A partir deste contexto entendemos a razatildeo por que a

grande virtude do poliacutetico seraacute sempre a de patrocinar e favorecer a amizade entre os homens pois dela todas as virtudes inclusive a justiccedila mdash que ela aperfeiccediloa mdash parecem dimanar fluir para a poacutelis A experiecircncia da amizade faz a poacutelis ganhar em altruiacutesmo unidade e estabilidade

[] se a vida eacute desejaacutevel e particularmente desejaacutevel para os homens bons porque para eles a existecircncia eacute boa e apraziacutevel [] e se o homem virtuoso eacute para o amigo tal como eacute para si proacuteprio (porquanto o amigo eacute um outro ldquoeurdquo) mdash se tudo isso eacute verdadeiro assim como o seu proacuteprio ser eacute desejaacutevel para cada homem igualmente (ou quase igualmente) o eacute o de seu amigo108

A amizade tambeacutem parece manter unidos os Estados e dir-se-ia que os legisladores tecircm mais amor agrave amizade do que agrave justiccedila pois aquilo a que visam acima tudo eacute agrave unanimidade que tem pontos de semelhanccedila com a amizade e repelem o facciosismo como se fosse o seu maior inimigo E quando os homens satildeo amigos natildeo necessitam de justiccedila ao passo que os justos necessitam tambeacutem da amizade e considera-se que a mais genuiacutena forma de justiccedila eacute uma espeacutecie de amizade109

Natildeo estamos mdash eacute claro mdash a identificar ou confundir

amizade e justiccedila mas a ressaltar a confluecircncia das duas Na verdade a justiccedila eacute a principal das virtudes eacuteticas porque o oacutetimo eacute aquele que exerce a virtude natildeo soacute em relaccedilatildeo a si mesmo mas em relaccedilatildeo a outrem e aacuterdua eacute esta funccedilatildeo ldquo[] o melhor natildeo eacute o

107 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 8 1169 a 15-20 108 Idem Ibidem IX 9 1170 b 5 109 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 20-25

112 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que exerce a sua virtude para consigo mesmo mas para com um outro pois que difiacutecil tarefa eacute essardquo110 O que ocorre eacute que a amizade intensifica a justiccedila pelo que haacute uma sincronia entre elas

E as imposiccedilotildees da justiccedila tambeacutem parecem aumentar com a intensidade da amizade o que implica que a amizade e a justiccedila existem entre as mesmas pessoas e satildeo coexistensivas111

A amizade em suma natildeo tolhe mas aperfeiccediloa a justiccedila

Mais ainda ldquo[] considera-se que a mais genuiacutena forma de justiccedila eacute uma espeacutecie de amizaderdquo112 Desta sorte praticar e promover habitualmente e da melhor forma possiacutevel a sadia convivecircncia entre os homens mdash que culmina na amizade mdash pela qual descobrimos nominamos e experienciamos juntos o beneacutefico e o prejudicial eacute agir com aretḗ eacute ser virtuoso

Chega o momento de darmos novos contornos ao conceito-chave da Eacutetica o de eydaimoniacutea 28 CONTORNOS ACERCA DO CONCEITO DE EYDAIMONIacuteA

A felicidade numa primeira acepccedilatildeo consiste no exerciacutecio dos atos das virtudes numa atividade portanto Neste sentido eacute claro que sendo virtuoso o homem pode ser feliz hic et nunc Contudo a εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) mdash termo a rigor intraduziacutevel mdash fala stricto sensu do exerciacutecio de toda uma vida que inobstante eventuais vicissitudes e infortuacutenios foi habitualmente bem vivida digna de ser vivida porque se desabrochou e se desdobra como uma constante e duradoura atividade das virtudes Aliaacutes como pontuamos acima o proacuteprio termo eneacutergeia evoca uma atividade que se conserva que se manteacutem Neste sentido eacute que a eydaimoniacutea

110 Idem Ibidem V 1 1130 a 5 111 Idem Ibidem VIII 9 1160 a 5 112 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 25

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pode ser tomada como o conjunto dinacircmico de toda uma vida Aristoacuteteles diz acerca da condiccedilatildeo da eydaimoniacutea

Porque como dissemos haacute mister natildeo soacute de uma virtude completa mas tambeacutem de uma vida completa jaacute que muitas mudanccedilas ocorrem na vida e eventualidades de toda sorte o mais proacutespero pode ser viacutetima de grandes infortuacutenios na velhice como se conta de Priacuteamo no Ciclo Troiano e a quem experimentou tais vicissitudes e terminou miseravelmente ningueacutem chama feliz113

Portanto se a felicidade eacute uma atividade a vida feliz por

assim dizer eacute a vida vivida em sua completude Aliaacutes aqui reside a razatildeo uacuteltima de o termo que traduz felicidade ser exatamente εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) Na verdade em grego εὖ (eỹ) significa bom e δαίμων (daiacutemōn) natildeo diz simplesmente divindade mas tambeacutem fortuna114 De modo que εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) nomina uma ldquoboa fortunardquo Cumpre poreacutem termos presente que definir a felicidade como ldquoboa fortunardquo natildeo significa confiaacute-la ao acaso ou confundi-la com uma vida de excessos115 Significa isto sim saber que para aleacutem das virtudes tambeacutem a fortuna corrobora para nos dar as condiccedilotildees que nos permitem realizar os atos virtuosos sem os quais natildeo podemos ser ou permanecer felizes116 Neste sentido

113 Idem Ibidem I 9 1100 a 5 114 O termo εὖ [eỹ] eacute uma preposiccedilatildeo etimoloacutegica e quer dizer bem bom conveniente agradaacutevel Faz parte da maioria das composiccedilotildees terminoloacutegicas em grego (FREIRE Op Cit p 267 BAILLY εὖ [eỹ] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 369 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt CHANTRAINE ἐύς [eyacutes] In Op Cit p 246) Conjugada com o termo δαίμον (daiacutemon) que significa ldquopotecircncia divina [] deus destino [] a fortuna o acasordquo forma a palavra eydaimoniacutea (BAILLY δαίμον [daiacutemon] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 149 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt CHANTRAINE δαίμον [daiacutemon] In Op Cit p 246) 115 O proacuteprio Aristoacuteteles pondera ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VII 13 1153 b 20-25 ldquoE pelo fato de necessitarmos da fortuna [τύχης] como de outras coisas alguns identificam a boa fortuna [εὺτυχία] com a felicidade [εὺδαίμονιᾳ] mas sucede que a proacutepria boa fortuna quando em excesso eacute um obstaacuteculo e talvez jaacute natildeo mereccedila o nome de boa fortuna [εὺτυχίαν] pois que o seu limite eacute fixado com referecircncia agrave felicidade [εὺδαίμονιαν]rdquo 116 Idem Ibidem I 10 1101 a 15-20 ldquoEm verdade o futuro nos eacute impenetraacutevel enquanto a felicidade afirmamos noacutes eacute um fim e algo de final a todos os respeitos Sendo assim chamaremos felizes

114 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino talvez seja mais correto entender o daiacutemon de eydaimoniacutea na acepccedilatildeo socraacutetica soacute que em vez de identificar este daiacutemon com uma espeacutecie de ldquoanjo da guardardquo como parece fazer Platatildeo melhor seraacute identificaacute-lo com a froacutenēsis aristoteacutelica que a todo momento parece ldquoconspirarrdquo com as condiccedilotildees exteriores mdash dadas pela fortuna mdash a fim de que tudo concorra para o bem do froacutenimos (φρόνιμος) ldquo[] sem virtude [ἀρετῆςaretēs] natildeo eacute faacutecil carregar com elegacircncia os bens da fortuna [εὐτυχήματαeytykhḗmata]rdquo117 Nas passagens que se seguem na primeira Fermani coleta as principais interpretaccedilotildees semacircnticas de daiacutemon e eydaimoniacutea tentando sintetizaacute-las na segunda Reeve arrazoa qual delas parece estar mais proacutexima de Aristoacuteteles

Entatildeo podemos dizer que o daiacutemon pode ser visto de dois modos 1) como aquele que atribui um destino que estabelece uma sorte 2) como o proacuteprio destino ou seja simultaneamente como o guia do ser humano e como o proacuteprio ser humano no maacuteximo de suas pontecialidades (visto que ldquoa funccedilatildeo daiacutemon eacute ser o portador da divindade potencial do homemrdquo) ldquoEacutethos anthroacutepoi daiacutemonrdquo ldquoa iacutendole eacute o daiacutemon iacutentimo do homemrdquo escreveu Heraacuteclito []rdquo Nesse sentido somente o homem que cultivou seu daiacutemon tem a possibilidade de atingir a eudaimoniacutea isto eacute de encontrar a proacutepria plenitude a realizaccedilatildeo de seu proacuteprio teacutelos Em outras palavras na eudaimoniacutea a vida se reencontrou o daiacutemon identificou a sua morada o homem finalmente estaacute em sua proacutepria casa118

Etimologicamente a palavra eudaimoniacutea significa ter um bom (eu) espiacuterito (daimocircn) um anjo da guarda poderiacuteamos dizer Assim Soacutecrates usa o termo to daimonion para se referir agrave voz ou sinal que o continha se ele estivesse prestes a fazer algo natildeo

agravequeles dentre os seres humanos vivos em que essas condiccedilotildees [condiccedilotildees exteriores] se realizem ou estejam destinadas a realizar-se mdash mas homens felizesrdquo Idem Ibidem X 7 1177 b 20-25 ldquo[] segue-se que essa seraacute a felicidade completa do homem se ele tiver uma existecircncia completa quanto agrave duraccedilatildeo []rdquo 117 Idem Ibidem IV 3 1124 a 30 118 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 44

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aconselhaacutevel (Platatildeo Apologia 40a) Aleacutem disso essa voz ou sinal eacute claramente distinto de sua proacutepria razatildeo ou consciecircncia uma vez que lhe daacute conselhos de natureza profeacutetica natildeo prudencial [] Aristoacuteteles tambeacutem localiza o entendimento divino na cabeccedila e faz a analogia das raiacutezes de uma planta com a cabeccedila de um animal de modo que a proacutepria planta torna-se um animal de cabeccedila para baixo [] Mas nosso entendimento ainda que divino em origem e amado pelos deuses natildeo eacute profeacutetico embora possa nos ajudar a planejar o futuro []119

De modo que a rigor soacute no final da vida o homem vai

poder dizer mdash com certeza e propriedade mdash que eacute eydaiacutemōn (εὐδαίμων)

Mas eacute preciso ajuntar ldquonuma vida completardquo Porquanto uma andorinha natildeo faz veratildeo nem um dia tampouco e da mesma forma um dia ou um breve espaccedilo de tempo natildeo faz um homem feliz e venturoso120

Vegetti referindo-se agrave passagem na qual Aristoacuteteles afirma

que nem uma andorinha nem um dia fazem veratildeo adota esta acepccedilatildeo de eydaimoniacutea como uma vida tomada em sua inteireza

Pode-se falar de felicidade diz Aristoacuteteles somente se ela natildeo eacute condiccedilatildeo esporaacutedica mas ocupa todo o arco de uma vida mesmo se natildeo eacute necessaacuterio esperar a morte []121

Neste mesmo sentido Enrico Berti ao falar da felicidade

eacutetica em Aristoacuteteles a define distinguindo-a da ldquofelicidade sobrenaturalrdquo mdash como a das religiotildees monoteiacutestas mdash e da ldquofelicidade hedonistardquo e fugaz como as atuais ldquoA felicidade eacute uma caracteriacutestica da vida humana isto eacute da vida vivida neste mundo

119 REEVE Op Cit pp 261-262 120 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 7 1098 a 15 121 VEGETTI Op Cit p 213

116 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino com alma e corpo e da vida toda isto eacute natildeo soacute de uma de suas fasesrdquo122

Importa observarmos ainda que a felicidade natildeo consiste numa vida isenta de intempeacuteries Antes Aristoacuteteles adverte que a vida virtuosa requer lutas reclama persistecircncia e perseveranccedila ldquoPensa-se que a vida feliz eacute virtuosa Ora uma vida virtuosa exige esforccedilo e natildeo consiste em divertimentordquo 123 Haacute passagens inclusive em que o Estagirita assevera que se bem recebidos os reveses podem calibrar o nosso caraacuteter moldaacute-lo os infortuacutenios quando acolhidos da forma devida talham a nossa vida melhor dispondo-a para as virtudes Os incidentes natildeo interrompem ao contraacuterio cifram a nossa felicidade

Se as atividades satildeo como dissemos o que daacute caraacuteter agrave vida nenhum homem feliz pode tornar-se desgraccedilado porquanto jamais praticaraacute atos odiosos e vis Com efeito o homem verdadeiramente bom e saacutebio suporta com dignidade pensamos noacutes todas as contingecircncias da vida e sempre tira o maior proveito das circunstacircncias como um general que faz o melhor uso possiacutevel do exeacutercito sob o seu comando ou um bom sapateiro faz os melhores calccedilados com o couro que lhe datildeo e do mesmo modo com todos os outros artiacutefices E se assim eacute o homem feliz nunca pode tornar-se desgraccedilado []124

E tampouco seraacute ele versaacutetil e mutaacutevel pois nem se deixaraacute desviar facilmente do seu venturoso estado por quaisquer desventuras comuns mas somente por muitas e grandes []125

Todavia natildeo se pode deixar de notar como se vecirc pela

desdita de Priacuteamo que embora a felicidade comporte tambeacutem desalentos podem ocorrer desventuras tatildeo intensas que tornem

122 BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 288 123 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 7 1177 a Idem Ibidem X 6 1176 b 25 ldquoA felicidade natildeo reside por conseguinte na recreaccedilatildeo []rdquo 124 Idem Ibidem I 10 1100 b 30-35 a 1101 a 5 125 Idem Ibidem I 10 1101 a 10

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impossiacuteveis as condiccedilotildees necessaacuterias para que ela aconteccedila inclusive no acircmbito teoacuterico Na verdade eacute por reconhecer as disposiccedilotildees da natureza humana na sua integridade que Aristoacuteteles admite a necessidade de uma seacuterie de bens exteriores natildeo em excesso mas em boa dosagem para se alcanccedilar a felicidade Em outros termos eacute por isso como antes jaacute observamos que o Estagirita insiste no papel da fortuna para a consecuccedilatildeo da felicidade

Mas o homem feliz como homem que eacute tambeacutem necessita de prosperidade exterior porquanto a nossa natureza natildeo basta a si mesma para os fins da contemplaccedilatildeo nosso corpo tambeacutem precisa gozar de sauacutede de ser alimentado e cuidado Natildeo se pense todavia que o homem para ser feliz necessite de muitas ou de grandes coisas soacute porque natildeo pode ser supremamente feliz sem bens exteriores A auto-suficiecircncia e a accedilatildeo natildeo implicam excesso e podemos praticar atos nobres sem sermos donos da terra e do mar126

[] e haacute coisas cuja ausecircncia empana a felicidade como a nobreza de nascimento uma boa descendecircncia a beleza Com efeito o homem de muito feia aparecircncia ou mal-nascido ou solitaacuterio e sem filhos natildeo tem muitas probabilidades de ser feliz e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigos127

Tambeacutem Vegetti ao se deparar com as passagens acima

citadas aponta para o importante papel da fortuna para a persecuccedilatildeo da felicidade

Poreacutem eacute certo que a felicidade precisa de alguma dose de boa sorte e como precisa de condiccedilotildees e bens externos em razatildeo da sua dimensatildeo intrinsecamente puacuteblica ativa e temporal128

126 Idem Ibidem X 8 1178 b 30-35 - 1179 a 127 Idem Ibidem I 8 1009 b 5 128 VEGETTI Op Cit p 214

118 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Natildeo nos podemos esquecer ademais da complexa relaccedilatildeo entre hedonḗ e eydaimoniacutea em Aristoacuteteles Na Academia de Platatildeo da qual Aristoacuteteles fez parte durante vinte anos aconteceu um debate acalorado sobre o prazer Houve quem o defendesse irrestritamente e quem o rejeitasse sem mais Aristoacuteteles matiza o tema Para ele o prazer segue a atualizaccedilatildeo de uma tendecircncia da nossa natureza seja ela qual for129 Ora quando esta atualizaccedilatildeo eacute feita consoante uma escolha prudente ela eacute boa quando natildeo eacute ruim Haacute mesmo aqueles prazeres que satildeo neutros130 De maneira que o prazer quando congecircnere aos atos de virtude natildeo soacute natildeo os impede como os aperfeiccediloa e intensifica131 Entre estes prazeres tambeacutem os corporais natildeo devem ser rechaccedilados Debalde tentam argumentar os que defendem que o prazer corporal eacute um mal Basta pensar nas dores que se opotildeem aos prazeres do corpo Satildeo estas maacutes Se sim o contraacuterio delas a saber o prazer eacute bom porque o contraacuterio do mau eacute o bom132 Por isso malgrado haja prazeres nocivos quem afirma que um homem pode ser feliz mesmo em meio a dores atrozes natildeo sabe o que diz

129 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 4 1174 b 30 ldquoNa medida pois em que tanto o objeto inteligiacutevel ou sensiacutevel como a faculdade discriminadora ou contemplativa forem tais como conveacutem a atividade seraacute acompanhada de prazer [ἡδονή] []rdquo 130 Idem Ibidem X 5 1175 b 20-30 ldquoOra assim como as atividades diferem com respeito agrave bondade ou maldade e umas satildeo dignas de escolha outras devem ser evitadas e outras ainda satildeo neutras o mesmo sucede com os prazeres [ἡδοναί] pois cada atividade tem o seu prazer [ἡδονή] proacuteprio O prazer proacuteprio a uma atividade digna eacute bom e o prazer proacuteprio a uma atividade indigna eacute mau []rdquo 131 Idem Ibidem VII 12 1153 a 20 ldquoNem a sabedoria praacutetica [φρονήσει] nem qualquer estado do ser eacute impedido pelo prazer [ἡδονή] que ele proporciona Satildeo os prazeres estranhos que tecircm um efeito impeditivo visto que os prazeres advindos do pensar e do aprender nos fazem pensar e aprender ainda maisrdquo Idem Ibidem X 5 1175 a 35 ldquoE assim os prazeres [ἡδοναί] intensificam as atividades e o que intensifica uma coisa lhe eacute congecircnere mas coisas diferentes em espeacutecie tecircm propriedades diferentes em espeacuteciesrdquo 132 Idem Ibidem VII 14 1154 a 5-10 ldquoCom respeito aos prazeres corporais os que dizem que alguns prazeres satildeo muito dignos de escolha a saber os nobres poreacutem natildeo os corporais isto eacute aqueles a que se dedica o homem intemperante devem examinar por que nesse caso as dores contraacuterias satildeo maacutes Porquanto o contraacuterio do mau eacute bomrdquo

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Os que dizem que o homem torturado no cavalete ou aquele que sofre grandes infortuacutenios eacute feliz se for bom estatildeo disparatando [οὐθὲν λέγουσιν] quer falem a seacuterio quer natildeo133

Agreguemos outro elemento essencial agrave felicidade humana

em Aristoacuteteles Trata-se do que noacutes modernos chamamos ldquoconsciecircnciardquo (conscientia) Aristoacuteteles usa o termo aiacutesthēsis (αἴσθησις) que numa primeira acepccedilatildeo significa sensaccedilatildeo percepccedilatildeo Poreacutem pelo contexto natildeo haacute como natildeo notar certa proximidade com o termo latino conscientia De toda forma para Aristoacuteteles a felicidade consuma-se quando o homem tem a percepccedilatildeo ou toma ldquoconsciecircnciardquo de que age com correccedilatildeo de que eacute bom ldquoOra jaacute vimos que o seu ser eacute desejaacutevel porque ele percebe a sua proacutepria bondade e uma tal percepccedilatildeo eacute agradaacutevel em si mesmardquo134 Tal movimento integra-o tornando-o por assim dizer amigo de si mesmo Natildeo pode haver homem feliz sem uma ldquoconsciecircnciardquo conciliada ou reconciliada com as suas proacuteprias escolhas A busca desta integraccedilatildeo eacute pois uma exortaccedilatildeo aristoteacutelica repisada por seus comentadores Algumas passagens satildeo emblemaacuteticas As duas primeiras citadas abaixo satildeo da Eacutetica na seguinte Reeve mostra que a eydaimoniacutea envolve o homem todo natildeo podendo ocorrer por exemplo se houver o reato da consciecircncia

133 Idem Ibidem VII 13 1153 b 15-20 Tatildeo conatural o prazer eacute agrave natureza humana que Aristoacuteteles chega a dizer que algueacutem se ameaccedilado a ser submetido a uma dor tenaz e atrozmente desumana pratica uma accedilatildeo que natildeo deveria para natildeo a sofrer embora natildeo seja digno de louvor eacute digno de indulgecircncia Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Mariacutea Arauacutejo y Juliaacuten Mariacuteas Madrid Instituto de Estudios Politicos 1970 (Ed Biliacutengue) III 1 1110 a 25 ldquoEn algunos casos si bien no se tributan alabalizas se tiene indulgencia cuando uno hace lo que no debe sometido a una presioacuten que rebasa la naturaleza humana y que nadie podria soportarrdquo ldquoEm alguns casos se bem que natildeo se tributem louvores tem-se indulgecircncia quando algueacutem faz o que natildeo deve submetido a uma pressatildeo que ultrapassa a natureza humana e que ningueacutem poderia suportarrdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 134 Idem Ibidem IX 9 1170 b 5-10 Alhures Aristoacuteteles vale-se dos termos syacutenesis [σύνεσις] e syneiacutedesis [συνείδεσις]

120 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

[] devemos envidar todos os esforccedilos para evitar a maldade e procurar ser bons porque soacute assim podemos ser amigos de noacutes mesmos e dos outros135

Portanto o homem bom deve ser amigo de si mesmo (pois ele proacuteprio lucraraacute com a praacutetica de atos nobres ao mesmo tempo que beneficiaraacute os seus semelhantes) []136

Em alguns aspectos portanto a eudaimonia aristoteacutelica poderia ser mais bem traduzida como ldquobem-estarrdquo ou ldquoprosperidaderdquo mdash embora pareccedila estranho se preocupar em esperar ateacute que a pessoa morra para poder dizer se ela era proacutespera Uma vantagem de usar ldquofelicidaderdquo em vez dessas alternativas de qualquer modo eacute precisamente que ela ressalta a importacircncia de um estado emocional favoraacutevel mdash de endosso e envolvimento mdash para a vida eudacircimon O necessaacuterio aleacutem disso eacute que aquilo que evoca esse estado emocional seja o melhor bem para um ser humano mdash um viver ativo de acordo com a virtude em que o estado seja realizado e expresso137

Fermani afinal conclui que desde a sua semacircntica o

termo eydaimoniacutea justamente porque implica integraccedilatildeo designa stricto sensu uma experiecircncia que ata a vida toda

[] Assim em toda eudaimoniacutea se desvela o percurso originaacuterio que toda existecircncia empreende para se unir a si mesma o sentido daquele complexo e cansativo itineraacuterio que todo ser humano deve percorrer na direccedilatildeo da conquista plena de si da realizaccedilatildeo de seu proacuteprio daiacutemon ou seja literalmente da proacutepria eu-daiacutemonia O que parece remeter a outro aspecto fundamental da eudaimoniacutea aquele da duraccedilatildeo da estabilidade da permanecircncia todas caracteriacutesticas que faltam agraves outras palavras com as quais os gregos denominaram a felicidade Um indiviacuteduo pode ser oacutelbios e eutykheacutes por breves momentos mas eacute eudaiacutemon por

135 Idem Ibidem IX 4 1166 b 25 136 Idem Ibidem IX 8 1169 a 10 137 REEVE Op Cit p 264

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toda a vida como emerge da tradiccedilatildeo filosoacutefica e literaacuteria ateacute o final do seacuteculo V a C138

Como pudemos observar jaacute nas citaccedilotildees acima este tornar-

se amigo de si mesmo leva-nos agravequele ciacuterculo virtuoso segundo o qual o homem feliz porque amigo de si mesmo consegue temperar todas as suas accedilotildees de sorte que passa a ser beneacutefico e natildeo prejudicial aos outros Em uma palavra o homem que vive virtuosamente na poacutelis eacute aquele que sabe governar politicamente antes de mais os seus proacuteprios apetites segundo o dito da Poliacutetica ldquoA alma governa o corpo com autoridade de senhor enquanto a inteligecircncia exerce uma autoridade poliacutetica ou reacutegia sobre o apetiterdquo139 Esta eacute a felicidade eacutetica que Aristoacuteteles prevecirc ela eacute deveras inferior agrave especulativa mas nem por isso deixa de ser uma forma de eydaimoniacutea aliaacutes eacute a eydaimoniacutea propriamente humana

Mas em grau secundaacuterio [δευτέρωςdeuteacuterōs] a vida de acordo com a outra espeacutecie de virtude eacute feliz porque as atividades que concordam com esta condizem com a nossa condiccedilatildeo humana [ἀνθρωπικαίanthrōpikaiacute]140

Outrossim Aristoacuteteles apresenta a felicidade como uma

realidade fundamentalmente polimorfa Os que tecircm temperamento especulativo seratildeo felizes especulando aqueles cujos humores convidam agrave vivecircncia eacutetica devem persegui-la ldquo[] e para cada homem a atividade [ἐνέργεια] que concorda com a sua disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξις] eacute a mais desejaacutevel []rdquo141 E na verdade por mais

138 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 45 139 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 5 1254 b 5 140 Idem Eacutetica a Nicocircmaco X 8 1178 a 5-10 141 Idem Ibidem X 6 1176 b 25 Para uma discussatildeo sobre os diversos tipos de felicidade em Aristoacuteteles vide o artigo de Fermani muito bem embasado por uma farta documentaccedilatildeo das fontes e dos comentadores contemporacircneos mais abalizados FERMANI Arianna Aristoacuteteles e a felicidade Flexibilidade e versatilidade existencial In MIGLIORI Maurizio FERMANI Arianna [Orgs] Platatildeo

122 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que a vida especulativa seja εὐδαιμονέστατος [eydaimoneacutestatos] para aquele que natildeo eacute chamado agrave especulaccedilatildeo a menos que queira negar a si mesmo o que natildeo eacute proacuteprio do virtuoso deve escolher outro caminho para ser eydaiacutemon

Porquanto a existecircncia eacute boa [ἀγαθόν] para o homem virtuoso [σπουδαίῳ] e cada um deseja para si o que eacute bom ao passo que ningueacutem desejaria possuir o mundo inteiro se para tanto lhe fosse preciso tornar-se uma outra pessoa [] Tal homem soacute deseja essas coisas com a condiccedilatildeo de continuar sendo o que eacute142

A eacutetica do Estagirita noacutes a enxergamos como a ciecircncia que

nos ensina ldquoa arte de viverrdquo melhor visualizamo-la como a ciecircncia que estuda a ldquoarte de saber viver bemrdquo de bem viver Berti vecirc a felicidade mdash coroa da eacutetica em Aristoacuteteles mdash ldquo[] como uma plenitude (fulfilment) plena realizaccedilatildeo de si lsquoflorescimento de todas as capacidades humanasrsquo vida florescenterdquo143

Procuremos agora entender mais de perto a forma de racionalidade da eacutetica de Aristoacuteteles

e Aristoacuteteles Dialeacutetica e loacutegica Trad Ivone C Benedetti Rev Sandra Garcia Custoacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2012 pp 126-171 142 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 4 1166 a 15-20 143 BERTI Aristoacuteteles no seacuteculo XX p 275 NATALI Carlo Aristoacuteteles Trad Maria da Graccedila Gomes de Pina Rev Tarsila Donaacute Iranildo Bezerra Lopes e Leidson de Farias Barros Satildeo Paulo Paulus 2016 pp 277-278 ldquoAristoacuteteles entende por lsquofelicidadersquo uma condiccedilatildeo objetiva do homem (I 6) Essa natildeo consiste num estado de intensa alegria autoconsciente e prolongado por toda a existecircncia mas num estado de lsquoautorrealizaccedilatildeorsquo como na expressatildeo lsquouma vida realizadarsquo Com isso queremos dizer agir de modo oportuno sair-se bem na proacutepria atividade especiacutefica Portanto a felicidade eacute um modo de estar em atividade e as suas componentes satildeo as accedilotildees humanas lsquosegundo a virtudersquordquo

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29 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA CIEcircNCIA EacuteTICA 291 FROacuteNĒSIS E EPISTḖMĒ

Antes de mais parece-nos necessaacuterio precisar o entorno no qual Aristoacuteteles pensa a sua filosofia praacutetica Para tanto importa observarmos que o Estagirita no livro VI da Eacutetica afirma que a alma possui por assim dizer duas partes ldquo[] a que concebe uma regra ou princiacutepio racional e a privada de razatildeordquo144 Em seguida subdivide a parte racional em teoacuterica e praacutetica ou seja ldquo[] uma pela qual contemplamos as coisas cujas causas determinantes satildeo invariaacuteveis e outra pela qual contemplamos as coisas variaacuteveisrdquo145 A parte da razatildeo teoacuterica possui trecircs haacutebitos a saber o noỹs (νοῦς) haacutebito (heacutexis) dos princiacutepios conhecidos intuitivamente 146 a epistḗmē (ἐπιστήμη) ou ciecircncia que eacute o haacutebito do raciociacutenio ou de silogizar (trata-se portanto do haacutebito demonstrativo 147) e a ldquosofiacuteardquo (σοφία) a qual eacute a aretḗ da razatildeo teoacuterica que consiste na conjugaccedilatildeo de conhecimento cientiacutefico com conhecimento intuitivo A sofiacutea resulta pois da combinaccedilatildeo de epistḗmē com noỹs

De quanto se disse resulta claramente que a sabedoria filosoacutefica eacute um conhecimento cientiacutefico combinado com a razatildeo intuitiva daquelas coisas que satildeo as mais elevadas por natureza Por isso dizemos que Anaxaacutegoras Tales e os homens semelhantes a eles possuem sabedoria filosoacutefica mas natildeo praacutetica quando os vemos ignorar o que lhes eacute vantajoso []148

144 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VI 1 1139 a 5 145 Idem Ibidem 146 Idem Ibidem VI 6 1141a 5 ldquo[] soacute resta uma alternativa que seja a razatildeo intuitiva que apreende os primeiros princiacutepiosrdquo 147 Idem Ibidem VI 3 1139 b 30-35 ldquoEm suma o conhecimento cientiacutefico eacute um estado que nos torna capazes de demonstrar []rdquo 148 Idem Ibidem VI 7 1141 b 1-5

124 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Na razatildeo praacutetica haacute a froacutenēsis (φρόησις) mdash aretḗ desta ordem mdash sabedoria praacutetica que consiste no haacutebito de bem deliberar acerca das coisas humanas (tagrave anthrṓpina) isto eacute de deliberar segundo o que eacute razoaacutevel para o bem viver em geral149 e a teacutekhnē (τέχνη) que eacute o haacutebito de produzir150 Como grande exemplo de um homem dotado de froacutenēsis Aristoacuteteles cita Peacutericles Foi Peacutericles um filoacutesofo Decerto que natildeo Poreacutem era dotado de prudecircncia poliacutetica porquanto tomava as decisotildees corretas151 Disso decorre que a filosofia praacutetica natildeo eacute a froacutenēsis mas uma forma de epistḗmē inscrita na pratildexis cuja consecuccedilatildeo se daacute pelo estabelecimento a partir dos fatos humanos dos princiacutepios praacuteticos e o raciociacutenio a partir deles Afirma Aristoacuteteles ldquoQue a sabedoria praacutetica [froacutenēsis] natildeo se identifica com o conhecimento cientiacutefico [epistḗmē] eacute evidente []rdquo152

A froacutenēsis enfim natildeo pode ser ciecircncia mdash ratificamos mdash porque ela versa sobre os meios tendo um conhecimento apenas

149 Idem Ibidem VI 7 1141 b 5-10 ldquoA sabedoria praacutetica [froacutenēsis] pelo contraacuterio versa sobre coisas humanas [τὰ ἀνθρώπιναtagrave anthrṓpina] e coisas que podem ser objeto de deliberaccedilatildeo pois dizemos que essa eacute acima de tudo a obra do homem dotado de sabedoria praacutetica deliberar bemrdquo Idem Ibidem VI 5 1140 a 25 ldquoOra julga-se que eacute cunho caracteriacutestico de um homem dotado de sabedoria praacutetica o poder deliberar bem sobre o que eacute bom e conveniente para ele natildeo sob um aspecto particular [] mas sobre aquelas coisas que contribuem para a vida boa em geralrdquo Aristoacuteteles chega a distinguir formas de froacutenēsis Ela pode ser exercida por exemplo no acircmbito poliacutetico por meio da correccedilatildeo das leis e dos decretos no acircmbito domeacutestico e no acircmbito pessoal A froacutenēsis pode consistir entatildeo no bom governo da cidade da casa e de si mesmo Idem Ibidem VI 8 1141 b 20-30 ldquoA sabedoria poliacutetica e a praacutetica satildeo a mesma disposiccedilatildeo mental mas sua essecircncia natildeo eacute a mesma Da sabedoria que diz respeito agrave cidade a sabedoria praacutetica que desempenha um papel controlador eacute a sabedoria legislativa enquanto a que se relaciona com os assuntos da cidade como particulares dentro do seu universal eacute conhecida pela denominaccedilatildeo geral de lsquosabedoria poliacuteticarsquo e se ocupa com a accedilatildeo e a deliberaccedilatildeo pois um decreto eacute algo a ser executado sob a forma de um ato individual [] A sabedoria praacutetica tambeacutem eacute identificada especialmente com aquela de suas formas que diz respeito ao proacuteprio homem ao indiviacuteduo e essa eacute conhecida pela denominaccedilatildeo geral de lsquosabedoria praacuteticarsquo Das outras espeacutecies uma eacute chamada administraccedilatildeo domeacutestica []rdquo 150 Idem Ibidem VI 4 1140 a 30 ldquoLogo como jaacute dissemos a arte eacute uma disposiccedilatildeo que se ocupa de produzir envolvendo o reto raciociacuteniordquo 151 Idem Ibidem VI 5 1140 b 10 ldquoDaiacute atribuirmos sabedoria praacutetica a Peacutericles e homens como ele porque percebem o que eacute bom para si mesmos e para os homens em geral pensamos que os homens dotados de tal capacidade satildeo bons administradores de casas e de Estadosrdquo 152 Idem Ibidem VI 9 1142 a 20

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espontacircneo do fim 153 Jaacute a epistḗmē politikḗ que Aristoacuteteles pretende fundar busca refletir sobre o teacutelos da vida eacutetica a saber a eydaimoniacutea Uma prova do que dissemos eacute que o Estagirita discrimina a peculiaridade desta ciecircncia Diferentemente da medicina onde o meacutedico que pratica eacute tambeacutem aquele que ensina a ēthikḗ pode ser ensinada por quem natildeo a vive Eacute o caso justamente dos sofistas Mas mesmo os sofistas natildeo a ensinam com retidatildeo pois a confundem com a retoacuterica ou com algo inferior Duas passagens exemplificam esta preocupaccedilatildeo de Aristoacuteteles

Ou haveraacute uma diferenccedila manifesta entre a estadiacutestica [πολιτικῆς] e as outras ciecircncias e artes Nas outras vemos que as mesmas pessoas as praticam e se oferecem para ensinaacute-las como por exemplo os meacutedicos e os pintores Mas enquanto os sofistas pretendem ensinar poliacutetica natildeo satildeo eles que a praticam e sim os poliacuteticos que parecem fazecirc-lo graccedilas a uma espeacutecie de habilidade ou experiecircncia [ἐμπειρίᾳ] e natildeo pelo raciociacutenio [διανοίᾳ]154

Mas aqueles sofistas que professam a arte parecem estar muito longe de ensinaacute-la Com efeito para exprimir-nos em termos gerais esses homens nem sequer sabem que espeacutecie de coisa ela eacute nem sobre o que versa De outro modo natildeo a teriam classificado como idecircntica agrave retoacuterica ou mesmo inferior a esta nem julgariam faacutecil legislar mediante uma compilaccedilatildeo das leis mais bem reputadas155

Pelas passagens acima citadas fica claro que Aristoacuteteles

reconhece que um eacute o poliacutetico (πολιτικόςpolitikoacutes) ou o prudente (φρόνιμοςfroacutenimos) e outro eacute o que reflete com detenccedila sobre a eacutetica Um diriacuteamos hoje eacute o homem eacutetico outro por exemplo eacute o

153 Idem Ibidem VI 12 1144 a 5-10 ldquoPor outro lado a obra de um homem soacute eacute perfeita quando estaacute de acordo com a sabedoria praacutetica [φρόνεσιν] e com a virtude moral [ὴθικὴν ἀρετὴν] esta faz com que seja reto o nosso propoacutesito [σκοπὸν] aquela [φρόνησις] com que escolhamos os devidos meiosrdquo 154 Idem Ibidem X 9 1180 b 30-35 a 1181 a 155 Idem Ibidem X 9 1181 a 1-15

126 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ldquoprofessor de eacuteticardquo Infelizmente as duas coisas natildeo satildeo idecircnticas e a ciecircncia pode existir sem a praacutetica Seja como for Aristoacuteteles natildeo concorda com o modo de proceder dos sofistas que acabam por negar agrave eacutetica o status de ciecircncia Em razatildeo disso o Estagirita opta por tomar um caminho proacuteprio na construccedilatildeo de uma epistḗmē politikḗ A Eacutetica a Nicocircmaco eacute apenas o primeiro passo neste caminho pois ela se encerra com um convite agrave poliacutetica [politikḗ]

Ora os nossos antecessores nos legaram sem exame este assunto da legislaccedilatildeo Por isso talvez convenha estudaacute-lo noacutes mesmos assim como a questatildeo da constituiccedilatildeo em geral a fim de completar da melhor maneira possiacutevel a nossa filosofia da natureza humana [ἀνθρώπεια φιλοσοφία] Em primeiro lugar pois se alguma coisa foi bem exposta em detalhe pelos pensadores que nos antecederam passemo-la em revista depois agrave luz das constituiccedilotildees que noacutes mesmos coligimos examinaremos que espeacutecies de influecircncias preservam e destroem os Estados que outras tecircm os mesmos efeitos sobre os tipos particulares de constituiccedilatildeo e a que causas [αἰτίας] se deve o fato de serem umas bem e outras mal aplicadas Apoacutes estudar essas coisas teremos uma perspectiva mais ampla dentro da qual talvez possamos distinguir qual eacute a melhor constituiccedilatildeo como deve ser ordenada cada uma e que leis e costumes lhe conveacutem utilizar a fim de ser a melhor possiacutevel156

Natildeo haacute como natildeo notar no passo acima que fecha a Eacutetica a

Nicocircmaco uma espeacutecie de ldquodiscurso do meacutetodordquo acerca do que o proacuteprio filoacutesofo denomina filosofia humana (ἀνθρώπεια φιλοσοφίαanthrṓpeia filosofiacutea) Mas pensemos a que Aristoacuteteles chama epistḗmē Talvez seja oportuno acompanhar o Estagirita pois para ele o saber comporta niacuteveis O primeiro eacute a percepccedilatildeo sensorial aiacutesthēsis (αἴσθησις) ou sensaccedilatildeo Trata-se do conhecimento que se tem quando da presenccedila da coisa ante os nossos sentidos maacutexime o da visatildeo ldquoDe fato eles amam as sensaccedilotildees por si mesmas independentemente da sua utilidade e

156 Idem Ibidem X 9 1181 b 10-20

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amam acima de tudo a sensaccedilatildeo da visatildeordquo157 O segundo niacutevel do conhecimento eacute o da recordaccedilatildeo que se daacute pela memoacuteria quando nos lembramos do objeto mesmo ele natildeo estando mais presente ldquoPor isso estes uacuteltimos satildeo mais inteligentes e mais aptos a aprender do que aqueles que natildeo tecircm capacidade de recordar [μνήμηmnḗmē]rdquo158 O terceiro nisto se distingue do segundo a saber diz respeito natildeo a esta ou agravequela memoacuteria mas sim em se possuir um conjunto de recordaccedilotildees sobre um mesmo objeto ldquoDe fato muitas recordaccedilotildees [πολλαὶ μνῆμαιpollaigrave mnẽmai] do mesmo objeto na memoacuteria chegam a constituir uma experiecircncia [ἐμπειρίαςempeiriacuteas] uacutenicardquo 159 Um niacutevel superior de conhecimento eacute a ciecircncia (epistḗmē) e a arte (teacutekhnē) O que Aristoacuteteles diz da teacutekhnē na passagem da Metafiacutesica que ora analisamos pode aplicar-se agrave epistḗmē Por isso tambeacutem a epistḗmē se daacute quando a partir da experiecircncia da empeiriacutea construiacutemos juiacutezos que valem para todos os casos Assim acontece por exemplo com o meacutedico que pela experiecircncia ajuiacuteza-se de que certa moleacutestia deve ser sempre tratada com certo tipo de medicamento 160 Para sermos mais precisos enquanto a experiecircncia consiste num saber o ldquoquecircrdquo num conhecer o fato individual a epistḗmē consiste num saber 0 ldquoporquecircrdquo isto eacute num conhecer a causa de aquele fato ocorrer sempre ou ldquoo mais das vezesrdquo Portanto a epistḗmē daacute-se propriamente quando do

157 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 908 a In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 158 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 980 a 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 159 ARISTOacuteTELES I 1 980 b 25 Metafiacutesica In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 160 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 981 a 5 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquoCom efeito os homens adquirem ciecircncia [επιστήμηepistḗmē] e arte [τέχνηteacutekhnē] por meio da experiecircncia A arte [τέχνη] se produz quando de muitas observaccedilotildees da experiecircncia forma-se um juiacutezo geral e uacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos semelhantesrdquo

128 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino conhecimento da causa Afirma Aristoacuteteles ldquoOs empiacutericos conhecem o puro dado de fato mas natildeo o seu porquecirc ao contraacuterio os outros conhecem o porquecirc e a causardquo161 Ora na uacuteltima passagem da Eacutetica (citada acima) o nosso filoacutesofo diz procurar a aitiacutea (αἰτία) do bem e do mal o ldquoporquecircrdquo do justo e do injusto Logo ele procura fazer uma epistḗmē ēthikḗ Pode-se mesmo dizer que esta epistḗmē ēthikḗ eacute uma forma de sapiecircncia (σοφίαsofiacutea) Com efeito a sofiacutea se distingue das outras ciecircncias porque especula acerca das causas primeiras162 Ora a ēthikḗ ou epistḗmē politikḗ especula sobre a causa uacuteltima das coisas humanas (tagrave anthrṓpina) Por outro lado deve-se ter o cuidado de ponderar que ldquo[] uma vez [que] o homem (ἄνθρωποςaacutenthrōpοs) natildeo eacute a melhor coisa do mundordquo 163 a sofiacutea das coisas humanas (tagrave anthrṓpina) seraacute sempre uma sabedoria relativa

Mas como chegamos agrave ēthikḗ enquanto epistḗmē politikḗ 292 A EPISTḖMĒ ĒTHIKḖ ENQUANTO EPISTḖMĒ POLITIKḖ

Diziacuteamos acima que a virtude eacutetica consiste no justo meio (mesoacutetēs) entre o excesso e a falta Ora este meacutetron este loacutegos encontra-se encarnado no froacutenimos no spoydaĩos (σπουδαῖος) Destarte para Aristoacuteteles quando se quer fazer uma filosofia humana (anthroacutepeia filosofiacutea) deve-se comeccedilar olhando natildeo para Deus ou para uma Revelaccedilatildeo divina mas justamente para as coisas humanas (tagrave anthrṓpina) Seratildeo os ditos e feitos do froacutenimos o objeto de reflexatildeo desta ciecircncia Em outros termos uma ciecircncia

161 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 981 a 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 162 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 5-10 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquoDo que foi dito resulta que o nome do objeto de nossa investigaccedilatildeo refere-se a uma uacutenica ciecircncia esta deve especular [θεωρητικήνtheōrētikeacuten] sobre os princiacutepios primeiros [πρώτων ἀρχῶνproacutetōn arkhotilden] e as causas [αἴτιῶνaiacutetiȭn] pois o bem e o fim das coisas eacute uma causardquo 163 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VI 7 1141 a 20

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dos biacuteon praacutexeōn teraacute de principiar dos eacutendoxa (ἔνδοξα)164 vale dizer daquelas coisas que satildeo ditas por todos e vividas pelo froacutenimos importa refletir sobre elas mas natildeo soacute sobre elas senatildeo tambeacutem sobre os ditos dos filoacutesofos a fim de transformaacute-los em epistḗmē mediante uma argumentaccedilatildeo dialeacutetica165 Aristoacuteteles natildeo deixa de recorrer aos eacutendoxa pois segundo ele natildeo pode haver consenso duradouro entre teses conflitantes uma vez que soacute a verdade concorda com a verdade

Haacute quem objete a isso dizendo que o fim visado por todas as coisas natildeo eacute necessariamente bom mas podemos estar certos de que tais pessoas natildeo fazem mais do que disparatar [οὐθὲν λέγουσιν = dizer coisa sem sentido] Porquanto noacutes dizemos que aquilo que todos pensam eacute a verdade e o homem que atacar essa crenccedila natildeo teraacute outra coisa mais digna de creacutedito para sustentar em lugar dela166

Devemos consideraacute-lo no entanto natildeo soacute agrave luz da nossa consideraccedilatildeo mas tambeacutem do que a seu respeito se costuma dizer [λεγομένων] pois com uma opiniatildeo verdadeira [ἀληθεῖ] todos os dados se harmonizam mas com uma opiniatildeo falsa [ψευδεῖ] os fatos natildeo tardam a entrar em conflito [διαφωνεῖ]167

Ora jaacute que o froacutenimos eacute o ldquolaboratoacuteriordquo do filoacutesofo praacutetico

conveacutem determo-nos um momento nele Dentro desta perspectiva faz sentido a questatildeo de que modo o loacutegos eacute exercido no acircmbito da razatildeo praacutetica Como o froacutenimos estabelece o justo meio

164 Um artigo de Berti pode ser consultado com proveito para um aprofundamento acerca dos ἔνδοξα BERTI Enrico O valor epistemoloacutegico dos ἔνδοξα segundo Aristoacuteteles In BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos I Epistemologia loacutegica e dialeacutetica Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Rev Renato Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 pp 370-387 165 Acerca do uso cientiacutefico da dialeacutetica na Eacutetica de Aristoacuteteles vide o artigo de Berti acompanhado de uma bibliografia autorizada BERTI Enrico O uso cientiacutefico da dialeacutetica de Aristoacuteteles In BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos I Epistemologia loacutegica e dialeacutetica Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Rev Renato Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 pp 312-330 166 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 2 1172 b 35 e 1173 [O itaacutelico eacute nosso] 167 Idem Ibidem I 8 1098 b 10 [O itaacutelico eacute nosso]

130 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino (μεσότηςmesoacutetēs) em suas accedilotildees Precisamente pelo loacutegos Mas atentemos para o fato de o loacutegos de Aristoacuteteles natildeo ser uma coisa mecacircnica Com efeito o justo meio natildeo eacute o mesmo para todos os homens Um exemplo bem simples a nutriccedilatildeo O justo meio entre o excesso e a falta de nutriccedilatildeo para um atleta certamente natildeo seraacute o mesmo que para um franzino em desenvolvimento Eacute neste sentido que a razatildeo deve intervir para ponderar sobre as diferentes circunstacircncias Outrossim natildeo nos devemos esquecer de que o justo meio eacute estabelecido em relaccedilatildeo a noacutes Dito doutra forma quanto ao objeto seis seraacute sempre o justo meio entre dez e dois pois a distacircncia entre ambos eacute quatro Mas isso eacute algo ldquoautomaacuteticordquo Nas coisas da vida certa quantidade de alimento pode ser razoaacutevel para um franzino mas natildeo para um atleta

Por meio-termo no objeto entendo aquilo que eacute equumlidistante de ambos os extremos e que eacute um soacute e o mesmo para todos os homens e por meio-termo relativamente a noacutes o que natildeo eacute nem demasiado nem demasiadamente pouco mdash e este natildeo eacute um soacute e o mesmo para todos Por exemplo se dez eacute demais e dois eacute pouco seis eacute o meio-termo considerado em funccedilatildeo do objeto porque excede e eacute excedido por uma quantidade igual esse nuacutemero eacute intermediaacuterio de acordo com uma proporccedilatildeo aritmeacutetica Mas o meio-termo relativamente a noacutes natildeo deve ser considerado assim se dez libras eacute demais para uma determinada pessoa comer e duas libras eacute demasiadamente pouco natildeo se segue daiacute que o treinador prescreveraacute seis libras porque isso tambeacutem eacute talvez demasiado para a pessoa que deve comecirc-lo ou demasiadamente pouco mdash demasiadamente pouco para Milo e demasiado para o atleta principiamente O mesmo se aplica agrave corrida e agrave luta Assim um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta buscando o meio-termo e escolhendo-o mdash o meio-termo natildeo no objeto mas relativamente a noacutes168

No uacuteltimo seacuteculo muito se questionou se Aristoacuteteles

conseguiu com esta forma de ldquopesquisa de campordquo fundamentar a

168 Idem Ibidem II 6 1106 a 25-35 ndash 1106 b 5

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eacutetica enquanto epistḗmē A ideia de que o Estagirita termina na froacutenēsis e de que esta natildeo eacute uma epistḗmē mas uma espeacutecie de sagacidade ou sensatez parece ser a interpretaccedilatildeo preponderante Os que defendem esta posiccedilatildeo frisam que olhando para o froacutenimos natildeo se pode deduzir dele nenhuma regra ou princiacutepio moral mas tatildeo somente decisotildees que dizem respeito a circunstacircncias irredutivelmente individuais 169 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo envolvermo-nos nesta questatildeo Importa-nos entender somente como Aristoacuteteles pretendeu demonstrar que a eacutetica eacute uma forma de epistḗmē Se esta fundamentaccedilatildeo eacute vaacutelida para outras correntes natildeo eacute da nossa alccedilada tratar aqui A bem dizer seria anacrocircnico esperar que Aristoacuteteles previsse todas as objeccedilotildees e as respondesse jaacute que a eacutetica se aperfeiccediloa com o tempo como o proacuteprio Aristoacuteteles atesta em passagem jaacute citada Tentemos uma vez mais apenas seguir o Filoacutesofo

Afirmamos acima que a eacutetica enquanto epistḗmē de certa forma fundamenta-se no froacutenimos Ora a froacutenēsis diz Aristoacuteteles eacute normativa ldquoCom efeito a prudecircncia [φρόνησις] eacute normativa [ἐπιτακτική] que se deve fazer [δεῖ πράττειν] ou natildeo tal eacute o fim [τέλος] a que se propotildee []rdquo170 De fato se ela consiste em bem deliberar (εὐβουλίαeyboyliacutea) acerca dos meios exequiacuteveis para se atingir o bem o teacutelos a eydaimoniacutea ela tambeacutem escolhe e decide (proaiacuteresis) em cada circunstacircncia o que se deve ou natildeo se deve fazer Em outros termos ela potildee diante do agente um deacuteon um

169 BRUumlLLMANN Philipp A teoria do bem na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Milton Camargo Mota Rev Sandra Garcia Custoacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 p 196 ldquoEstaacute provavelmente certa a afirmaccedilatildeo de que Aristoacuteteles eacute um lsquoceacutetico sobre regrasrsquo Sua eacutetica representa uma posiccedilatildeo contraacuteria a abordagens que tentam reduzir a moral ao menor nuacutemero possiacutevel de princiacutepios e no caso ideal a um soacute princiacutepio O caso individual desempenha um papel decisivo para a avaliaccedilatildeo moral Todavia parece-me precipitado interpretar a figura do virtuoso como resposta aristoteacutelica a uma eacutetica legalistardquo Wolf atribui esta predominacircncia da questatildeo sobre a oposiccedilatildeo entre ldquoeacutetica das virtudesrdquo e ldquoeacutetica deontoloacutegicardquo em Aristoacuteteles a certo vieacutes kantiano que se misturou agrave leitura de Aristoacuteteles WOLF Op Cit p 66 ldquoNesse meio-tempo poreacutem alguns filoacutesofos da moral chegaram agrave concepccedilatildeo de que seria possiacutevel superar certas carecircncias presentes na vigente teoria moral kantiana se fossem completadas ou substituiacutedas por uma moral das virtudesrdquo 170 Idem Eacutetica a Nicoacutemaco VI 10 1143 a 5-10 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEn efecto la prudencia es normativa queacute se debe hacer o no tal es el fin que se propone []rdquo

132 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino noacutemos um kanṓn Certo isso natildeo eacute epistḗmē pois estamos diante de uma razatildeo que calcula ou delibera171 em cada circunstacircncia como se deve ou natildeo agir nesta ou naquela circunstacircncia e soacute haacute epistḗmē mdash e aqui citamos os Segundos Analiacuteticos mdash acerca do que deve ser sempre ou o mais das vezes

Com efeito todo raciociacutenio se faz mediante proposiccedilotildees necessaacuterias ou mediante proposiccedilotildees ltque se datildeogt na maior parte das vezes e se as proposiccedilotildees satildeo necessaacuterias tambeacutem o eacute a conclusatildeo se as proposiccedilotildees se datildeo na maior parte das vezes tambeacutem a conclusatildeo172

Antes de mais eacute preciso fazer a ressalva de que aquele que

quer se tornar um froacutenimos simplesmente um ldquohomem eacuteticordquo natildeo olha e natildeo precisa olhar para o froacutenimos com o fito de encontrar nele um kanṓn Antes olha para o froacutenimos a fim de aprender a bem deliberar e a descobrir por si mesmo como ser froacutenimos Com outras palavras o indiviacuteduo busca aprender como ldquo[] agir lsquocomo se ele fosse uma norma e uma medida dessas coisasrsquo []rdquo173 e isto natildeo porque natildeo haja um meacutetron objetivo mas sim porque este meacutetron eacute descoberto e assumido pelo froacutenimos enquanto passa pelo crivo da escolha (proaiacuteresis) deliberada a qual faz com que cada indiviacuteduo seja pai de suas accedilotildees como de seus filhos e ipso facto virtuoso ou vicioso Eis a passagem claacutessica a este respeito e que em parte jaacute citamos acima

171 Idem Eacutetica a Nicocircmaco VI 1 1139 a 10-15 ldquoChamemos cientiacutefica [ἐπιστημονικόν] a uma dessas partes e calculativa [λογιστικόν] agrave outra pois o mesmo satildeo deliberar [βουλεύσθαι] e calcular [λογίζεσθαι] mas ningueacutem delibera sobre o invariaacutevel Por conseguinte a calculativa eacute uma parte da faculdade que concebe um princiacutepio racionalrdquo 172 ARISTOacuteTELES Analiacuteticos Segundos I 87 b 20-25 In ______ Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) Trad Miguel Candel Sanmartiacuten Rev Quintiacuten Racionero Madrid Editorial Gredos 1995 v II p 384 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEn efecto todo razonamiento se hace mediante proposiciones necesarias o mediante proposiciones ltque se dangt la mayor parte de las veces y si las proposiciones son necesarias tambieacuten lo es la conclusioacuten si las proposiciones se dan la mayor parte de las veces tambieacuten la conclusioacutenrdquo 173 BRUumlLLMANN Op Cit p 192

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A virtude [ἀρετή] eacute pois uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξις] relacionada com a escolha [προαιρετική] e consiste numa mediania [μεσότετι] isto eacute a mediania relativa a noacutes a qual eacute determinada por um princiacutepio racional [λόγῳ] proacuteprio do homem dotado de sabedoria praacutetica [πρόνιμος]174

O que ocorre poreacutem eacute que a ēthikḗ pode ser tambeacutem

tomada como uma epistḗmē Ora agravequele que a procura sob esta consideraccedilatildeo cumpre pesquisar com maior minudecircncia as constantes presentes nas accedilotildees deliberadas do froacutenimos ou seja alguns atos que habitualmente se apresentam como virtuosos e outros que geralmente se apresentam como viciosos Como deve ele proceder para perceber estas ldquoreincidecircnciasrdquo Aristoacuteteles assinala que a eacutetica mdash enquanto ciecircncia mdash deve partir dos fatos passar pelo poacutelemos do diaacutelogos a fim de por meio dele estabelecer a razoabilidade dos eacutendoxa (ἔνδοξα) que nada mais satildeo do que as opiniotildees comuns acerca do que concerne agrave vida humana e que existem por assim dizer em ldquocarne e ossordquo no froacutenimos refutando (ἔλεγχοςeacutelegkhos) as objeccedilotildees (ἀπορίαιaporiacuteai) que se levantam contra eles (eacutendoxa) Citemos um exemplo do proacuteprio Aristoacuteteles ldquoAs carnes leves satildeo saudaacuteveisrdquo ldquoa carne das aves eacute leverdquo ldquologo a carne das aves eacute saudaacutevelrdquo A premissa maior deste silogismo praacutetico eacute ldquoAs carnes leves satildeo saudaacuteveisrdquo A menor ldquoAs carnes das aves satildeo levesrdquo E a conclusatildeo do que se deve fazer eacute ldquoAs carnes das aves satildeo saudaacuteveisrdquo e por conseguinte devem ser preferidas 175 Transpondo-nos para o plano da eacutetica podemos ponderar Para o

174 Idem Ibidem II 6 1106 b 35-1107 a Eacute por isso que se Aristoacuteteles atribui ao ensino o aprendizado da virtude intelectual eacute ao haacutebito que ele atribui a aquisiccedilatildeo da virtude moral Idem Ibidem II 1 11093 a 15 ldquoSendo pois de duas espeacutecies a virtude intelectual e moral a primeira por via de regra gera-se e cresce graccedilas ao ensino mdash por isso requer experiecircncia e tempo enquanto a virtude moral eacute adquirida em resultado do haacutebito []rdquo Em outras palavras quando se trata de eacutetica para Aristoacuteteles aprende-se fazendo praticando Idem Ibidem II 1 1103 a 30 ldquoCom efeito as coisas que temos de aprender antes de poder fazecirc-las aprendemo-las fazendo []rdquo 175 Idem Ibidem VI 7 1141 b15-20 ldquo[] porque se um homem soubesse que as carnes leves satildeo digestiacuteveis e saudaacuteveis mas ignorasse que espeacutecies de carnes satildeo leves esse homem natildeo seria capaz de produzir a sauacutede poderia pelo contraacuterio produzi-la o que sabe ser saudaacutevel a carne de galinhardquo

134 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino froacutenimos basta saber o que se deve praticar interessa-lhe apenas a conclusatildeo Jaacute para o filoacutesofo eacutetico o que importa eacute antes de qualquer coisa a premissa maior Ela seraacute a oportunidade de ele saber por exemplo que o homem deseja ser saudaacutevel porque deseja viver e viver bem E a partir daiacute dialeticamente ele chegaraacute ao teacutelos do homem que eacute a eydaimoniacutea Como jaacute dito trata-se de um procedimento dialeacutetico

A exemplo do que fizemos em todos os outros casos passaremos em revista os fatos observados [φαινόμενα] e apoacutes discutir as dificuldades [διαπορήσαντας] trataremos de provar [δεικνύναι] se possiacutevel a verdade de todas as opiniotildees comuns [ἔνδοξα] a respeito desses afetos da mente mdash ou se natildeo todas pelo menos do maior nuacutemero e das mais autorizadas porque se refutarmos as objeccedilotildees e deixarmos intatas as opiniotildees comuns [ἔνδοξα] teremos provado [δεδειγμένον] suficientemente a tese176

Podemos observar nesta passagem que os eacutendoxa isto eacute as

opiniotildees comuns natildeo satildeo os fainoacutemena ou seja aquilo que pura e simplesmente aparece mas sim as constantes inseridas naquilo que aparece e que satildeo chamadas precisamente opiniotildees comuns (eacutendoxa) Aristoacuteteles busca estabelecer os eacutendoxa depurando-os das posiccedilotildees contraacuterias ldquo[] porque a soluccedilatildeo de uma dificuldade [ἀπορίας] eacute o encontro da verdade rdquo177 Natildeo haacute como natildeo ver neste movimento a tentativa de se fazer uma epistḗmē ēthikḗ pois ningueacutem que quisesse ser apenas um froacutenimos dar-se-ia ao trabalho de ir ao encalccedilo de tais justificativas Ademais podemos notar que esta epistḗmē ēthikḗ se apresenta como uma epistḗmē politikḗ pois satildeo as opiniotildees comuns (eacutendoxa) a saber vaacutelidas

176 Idem Ibidem VII 1 1145 b 1-5 177 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco [A traduccedilatildeo eacute nossa] VII 2 1146 b 5 ldquo[] porque la solucioacuten de una dificultad es el hallazgo de la verdadrdquo

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para todos ou para muitos e que se encontram encarnadas no froacutenimos que devem ser demonstradas dialeticamente178

De toda forma eacute a partir destas ldquoreincidecircnciasrdquo ou dos eacutendoxa retomados pela argumentaccedilatildeo dialeacutetica e que podemos chamar noacutemoi (νόμοι) mas que o homem comum e virtuoso vive e conhece apenas como virtudes que aquele que se esmera por fazer ldquociecircncia eacuteticardquo comeccedila a elaborar discursos sobre a natureza humana a virtude e o viacutecio e aborda questotildees como a da ldquopsicologia do agirrdquo do teacutelos da eydaimoniacutea coisas que o froacutenimos e o politikoacutes ratificamos natildeo tecircm necessidade de conhecer de forma douta Certamente a epistḗmē que deriva desta pesquisa natildeo teraacute nem a precisatildeo da matemaacutetica nem a finalidade teoacuterica da matemaacutetica e da fiacutesica De fato se Aristoacuteteles afirma que a eacutetica eacute uma ciecircncia natildeo afirma que ela seja uma ciecircncia como eacute por exemplo a filosofia primeira senatildeo que por tratar das accedilotildees humanas ela precisa comportar certa flexibilidade certa elasticidade De modo que deve haver um kanṓn (κανών) e jaacute sabemos de onde a princiacutepio ele vem e como chegamos a ele Entretanto como as escolhas dos homens satildeo muacuteltiplas e complexas este kanṓn certamente conheceraacute exceccedilotildees No entanto que haacute este kanṓn este deacuteon estes noacutemoi na epistḗmē ēthikḗ de Aristoacuteteles ele proacuteprio ressalta quando fala desta ciecircncia

Mas natildeo teraacute o seu conhecimento porventura grande influecircncia sobre a nossa vida [βίος] Semelhantes a arqueiros que tecircm um alvo certo para a sua pontaria natildeo alcanccedilaremos mais facilmente aquilo que nos cumpre alcanccedilar [τοῦ δέοντος]179

Ora como a poliacutetica utiliza as demais ciecircncias [ἐπιστεμῶν] e por outro lado legisla [νομοθετούσης] sobre o que devemos [δεῖ] e o que natildeo devemos fazer [πράττειν] a finalidade dessa ciecircncia deve

178 Sobre a demonstraccedilatildeo dialeacutetica e sobre o papel dos eacutendoxa em Aristoacuteteles vide ainda BERTI Enrico Contradiccedilatildeo e dialeacutetica nos antigos e nos modernos Trad Joseacute Bortolini Rev Tiago Joseacute Risi Leme Satildeo Paulo Paulus 2013 pp 198-213 179ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 2 1094 a 20-25

136 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

abranger as das outras de modo que essa finalidade seraacute o bem humano [τὰνθρώπινον ἀγαθόν]180

Estaacute claro pelo que jaacute dissemos ateacute aqui que aquilo que o

loacutegos estabelece no acircmbito de uma epistḗmē ēthikḗ eacute vaacutelido geralmente natildeo universalmente Assim eacute porque o objeto da eacutetica natildeo eacute o das ciecircncias teoreacuteticas onde as coisas satildeo sempre da mesma maneira o objeto da eacutetica por serem as accedilotildees humanas comporta um niacutevel de certeza que nos permite pensaacute-las boas ou maacutes tatildeo somente na maioria das vezes porquanto envolvem escolhas e circunstacircncias que podem variar ad infinitum Seriacuteamos insensatos pois e autodestruidores da ciecircncia eacutetica se buscaacutessemos aplicar a ela o mesmo niacutevel de certeza que aplicamos agraves ciecircncias teoreacuteticas Leiamos o Estagirita em duas passagens emblemaacuteticas a este respeito

Nossa discussatildeo seraacute adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o assunto pois natildeo se deve exigir a precisatildeo em todos os raciociacutenios por igual assim como natildeo se deve buscaacute-la nos produtos de todas as artes mecacircnicas Ora as accedilotildees belas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga admitem grande variedade e flutuaccedilotildees de opiniotildees [] E em torno dos bens haacute uma flutuaccedilatildeo semelhante [] Ao tratar pois de tais assuntos e partindo de tais premissas devemos contentar-nos em indicar a verdade aproximadamente e em linhas geais e ao falar de coisas que satildeo verdadeiras apenas em sua maior parte e com base em premissas da mesma espeacutecie soacute poderemos tirar conclusotildees da mesma natureza E eacute dentro do mesmo espiacuterito que cada proposiccedilatildeo deveraacute ser recebida pois eacute proacuteprio do homem culto buscar a precisatildeo em cada gecircnero de coisas apenas na medida em que a admite a natureza do assunto [] Sirvam pois de prefaacutecio estas observaccedilotildees sobre o estudante a espeacutecie de tratamento a ser esperado e o propoacutesito da investigaccedilatildeo181

180 Idem Ibidem I 2 1094 b 5 181 Idem Ibidem I 3 1094 a 10-25 e 109 a 10

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Devemos igualmente recordar o que se disse antes e natildeo buscar a precisatildeo em todas as coisas por igual mas em cada classe de coisas apenas a precisatildeo que o assunto comportar e que for apropriada agrave investigaccedilatildeo182

Entretanto pensamos natildeo haver dito tudo pois ateacute agora

soacute falamos dos noacutemoi que dizem respeito ao teacutelos mas que natildeo satildeo o teacutelos do homem E a nosso ver existe um princiacutepio eacutetico que regula e rege todas as virtudes que incidem sobre a vida eacutetica isto eacute um princiacutepio pelo qual todas elas mdash a froacutenēsis a dikaiosyacutenē a andreiacutea a sōfrosyacutenē etc mdash se norteiam Este princiacutepio que no comeccedilo deste capiacutetulo jaacute nomeamos eacute a koinōniacutea Todas as virtudes eacuteticas tendem como para seu teacutelos agrave koinōniacutea que eacute por assim dizer outro nome da eydaimoniacutea eacutetica Em uma palavra a koinōniacutea eacute o teacutelos da natureza humana Por isso o kanṓn o noacutemos o deacuteon da ēthikḗ de Aristoacuteteles eacute simpliciter criar koinōniacutea E haacute passagens em que Aristoacuteteles afirma existir esta lei comum esta

182 Idem Ibidem I 7 1098 a 25 As leis inclusive natildeo podem ser executadas com um rigor caprichoso ao contraacuterio tambeacutem elas devem ser algo versaacuteteis isto eacute elaboradas com congruecircncia e aplicadas por homens equacircnimes Idem Ibidem V 10 1137 b 15-30 ldquoPortanto quando a lei [νόμος] se expressa universalmente e surge um caso que natildeo eacute abrangido pela declaraccedilatildeo universal eacute justo uma vez que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade corrigir a omissatildeo mdash em outras palavras dizer o que o proacuteprio legislador teria dito se estivesse presente e que teria incluiacutedo na lei se tivesse conhecimento do caso E essa eacute a natureza do equumlitativo uma correccedilatildeo da lei [νόνομ] quando ela eacute deficiente em razatildeo da sua universalidade E mesmo eacute esse o motivo por que nem todas as coisas satildeo determinadas pela lei [νόνομ] em torno de algumas eacute impossiacutevel legislar de modo que se faz necessaacuterio um decreto Com efeito quando a coisa eacute indefinida a regra [κανών] eacute indefinida []rdquo A questatildeo eacute que o legislador e a regra sempre vatildeo ldquofalharrdquo em alguma circunstacircncia Aristoacuteteles eacute bastante claro nos exemplos Idem Ibidem IX 2 1164 b 30-35 ndash 1165 ldquo[] e em geral eacute mais certo retribuir benefiacutecios do que obsequiar amigos e antes de fazer um empreacutestimo a um amigo devemos pagar o nosso credor Mas talvez nem isto seja sempre verdadeiro por exemplo deve um homem que foi resgatado das matildeos dos bandidos resgatar em troca o que o libertou seja ele quem for (ou pagar-lhe se ele natildeo foi capturado mas exige pagamento) ou em vez disso deve resgatar o seu pai Dir-se-ia que o certo eacute resgatar o pai mesmo de preferecircncia a si proacutepriordquo Na verdade o ldquoerrordquo natildeo estaacute na inexatidatildeo da lei nem em quem a elabora porque a incerteza reside nos proacuteprios fatos que variam indefinidamente Idem Ibidem V 10 1137 b 15 ldquoNos casos pois em que eacute necessaacuterio falar de modo universal mas natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo corretamente a lei considera o caso mais usual se bem que natildeo ignore a possibilidade de erro E nem por isso tal modo de proceder deixa de ser correto pois o erro natildeo estaacute na lei nem no legislador mas na natureza da proacutepria coisa jaacute que os assuntos praacuteticos satildeo dessa espeacutecie por naturezardquo Talvez o equiacutevoco esteja em imaginar que o noacutemos seja algo que nos dispense de um julgamento responsaacutevel e proporcional a cada circunstacircncia A lei natildeo pode ser feita nem aplicada por autocircmatos

138 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino justiccedila natural conhecida tacitamente por todos os homens vaacutelida para todos os homens desde tempos imemoriais uma forma de ldquolei naturalrdquo que se exprime como uma ldquoamizade naturalrdquo de todo homem para com todo homem uma espeacutecie de filantropia na melhor acepccedilatildeo do termo Na Retoacuterica o nosso filoacutesofo diz ldquoChamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todosrdquo183 Um pouco mais adiante na mesma obra ele escreve

Pois haacute na natureza um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo como por exemplo mostra a Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu E como diz Empeacutedocles acerca de natildeo matar o que tem vida pelo facto de isso natildeo ser justo para uns e injusto para outros Mas a lei universal estende-se largamente atraveacutes do eacuteter e da incomensuraacutevel terra184

Tambeacutem na Eacutetica Aristoacuteteles se expressa acerca deste

princiacutepio comum e natural

Da justiccedila poliacutetica uma parte eacute natural [φυσικόν] e outra parte legal natural [φυσικὸν] aquela que tem a mesma forccedila onde quer que seja [πανταχοῦ] e natildeo existe em razatildeo de pensarem os homens desde ou daquele modo legal a que de iniacutecio eacute indiferente mas deixa de secirc-lo depois que foi estabelecida185

Membros da mesma raccedila a sentem uns pelos outros e especialmente os homens por isso louvamos os amigos de seu semelhante [φιλανθρώπους] Ateacute em nossas viagens podemos ver

183 Idem Retoacuterica I 10 1368 b 184 Idem Ibidem I 13 1373 b 185 Idem Eacutetica a Nicocircmaco V 7 1134 b 15-20 [O iaacutelico eacute nosso]

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quanto cada homem eacute chegado e caro a todos os outros [ἄνθρωπος ἀνθρώπῳ καὶ φίλον]186

Enquanto escravo pois natildeo se pode ser seu amigo mas enquanto homem isso eacute possiacutevel pois parece haver uma certa justiccedila entre um homem qualquer e outro homem qualquer [δίκαιον παντὶ ἀνθρώπῳ ρπὸς πάντα] que tenham condiccedilotildees para participar de um sistema juriacutedico ou ser partes num ajuste logo pode haver amizade [φίλια] com ele na medida em que eacute um homem [ἄνθρωπος]187

Por conseguinte se a causa proacutexima da ēthikḗ enquanto

epistḗmē eacute a observaccedilatildeo do froacutenimos e o estabelecimento dos eacutendoxa a sua causa remota eacute esta lei comum esta justiccedila natural Em outros termos as ldquoconstantesrdquo vaacutelidas apenas geralmente e que comportam variaccedilatildeo as quais aquele que faz filosofia praacutetica nota nos feitos do froacutenimos e nos ditos comuns (eacutendoxa) mdash e que o froacutenimos experiencia apenas como virtudes e natildeo como noacutemoi mdash se reduzem e conduzem a um noacutemos universal um kanṓn que natildeo conhece variaccedilatildeo e que se chama koinōniacutea E haacute mais Os princiacutepios imediatamente deduzidos deste princiacutepio universal a saber aqueles que satildeo conditio sine qua non para se criar koinōniacutea tambeacutem natildeo variam Aristoacuteteles natildeo os olvida tanto que elenca accedilotildees que ele considera intrinsecamente maleacutevolas E considerar determinadas accedilotildees como intrinsecamente maacutes significa como o proacuteprio Aristoacuteteles o diz que elas seratildeo sempre e em todo lugar maacutes

Mas nem toda accedilatildeo e paixatildeo admite um meio-termo pois algumas tecircm nomes que jaacute de si mesmos implicam maldade como o despeito o despudor a inveja e no campo das accedilotildees o adulteacuterio o furto o assassiacutenio Todas essas coisas e outras semelhantes implicam nos proacuteprios nomes que satildeo maacutes em si

186 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 20 [O itaacutelico eacute nosso] 187 Idem Ibidem VIII 11 1161 b 5 [Os itaacutelicos satildeo nossos]

140 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

mesmas e natildeo o seu excesso ou deficiecircncia Nelas jamais pode haver retidatildeo mas unicamente o erro188

Do quanto jaacute dissemos decorre que uma ēthikḗ que natildeo

seja politikḗ isto eacute que natildeo crie koinōniacutea entre os homens natildeo eacute condizente com a natureza humana pois o homem exatamente por ser zȭon logikoacuten (ζῷον λογικόν)189 eacute zȭon politikoacuten Natildeo sem razatildeo Aristoacuteteles afirma que a epistḗmē politikḗ eacute a arkhḗ da epistḗmē ēthikḗ

O estudo do prazer e da dor pertence ao campo do filoacutesofo poliacutetico [πολιτικὴν φιλοσοφοῦντος] pois ele eacute o arquiteto do fim com vistas no qual dizemos que uma coisa eacute maacute e outra eacute boa em absoluto190

Apoacutes termos dissertado sobre as diversas passagens da

Eacutetica e de outras obras de Aristoacuteteles que atestam o que temos afirmado acreditamos poder citar Richard Bodeacuteuumls o qual designa a poliacutetica precisamente como coroa da eacutetica aristoteacutelica

No fundo ter e perseguir uma meta uacuteltima para um indiviacuteduo eacute ter uma ldquopoliacuteticardquo e ordenar seus assuntos do mesmo modo que a cidade ordena os assuntos de todos Para Aristoacuteteles haacute aqui mais que uma simples analogia pois o fim uacuteltimo da poliacutetica natildeo pode ser formalmente diferente do que eacute visado pelos indiviacuteduos isoladamente Pelo contraacuterio o que daacute sentido agrave poliacutetica o que justifica em seus princiacutepios a ordem e as leis que ela proclama eacute precisamente o que daacute sentido agrave existecircncia dos indiviacuteduos para os quais essas leis satildeo feitas Em outras palavras a poliacutetica eacute definitivamente a maneira pela qual os indiviacuteduos reunidos na cidade pretendem dar sentido agrave sua existecircncia Ela responde pois agrave meta visada por cada um dos concidadatildeos e prescreve soberanamente em funccedilatildeo dessa meta o que cada um deve realizar Isso eacute o mesmo que dizer que a sagacidade que tem de

188 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 6 1107 a 5-15 189 Idem Poliacutetica I 2 1253 a 9-10 190 Idem Eacutetica a Nicocircmaco VII 11 1152 b

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ser colocada em accedilatildeo por cada um para atingir seu proacuteprio bem e dar um sentido perfeitamente racional agrave sua proacutepria existecircncia natildeo difere essencialmente da inteligecircncia poliacutetica que tem de ser colocada em accedilatildeo para organizar uma cidade na qual cada um pode atingir seu proacuteprio bem Essa convicccedilatildeo no filoacutesofo explica por que as questotildees de que ele trata nas Eacuteticas de maneira a estabelecer de modo criacutetico em que consiste o soberano bem do homem satildeo questotildees que ele apresenta com a cor de uma busca explicitamente chamada de ldquopoliacuteticardquo (Eacutet Nic 1094 b 11) e que ele dirige implicitamente aos legisladores Essa mesma convicccedilatildeo daacute tambeacutem a entender que as outras questotildees de que trata a coletacircnea de textos intitulada A Poliacutetica se reduzem a explicar como o soberano bem do homem pode ser atingido e preservado para cada homem dentro das sociedades que ele forma com os outros Para Aristoacuteteles natildeo existe nenhum conflito de princiacutepio entre as aspiraccedilotildees do indiviacuteduo e as do Estado (cidade) desde que o fim uacuteltimo de ambos seja formalmente idecircntico191

Um ponto no qual conveacutem insistir eacute que Aristoacuteteles mdash nem

de longe mdash considera a eacutetica ldquoterra de ningueacutemrdquo Para ele reafirmamos a eacutetica eacute uma forma de epistḗmē mais precisamente uma ldquociecircncia poliacuteticardquo Contudo diferentemente das ciecircncias teoreacuteticas ela eacute uma ciecircncia que tem uma finalidade praacutetica a saber conhecer o que torna os homens bons e felizes e quem sabe tornaacute-los Distingue-se pois das ldquociecircncias teoreacuteticasrdquo em razatildeo de natildeo visar ao saber por si mesmo mas aos fatos (πρᾶγμαpratildegma) agrave pratildexis onde mdash com um olhar ldquodoacutecilrdquomdash quer perscrutar o que eacute bom o que eacute mau o que eacute o bem e o que eacute o mal Eacute um modo diverso de se exercer a racionalidade Reiteramos que ela natildeo visa ao saber por si mesmo decerto que quer descobrir o quecirc e o porquecirc mas para uma finalidade conhecer o que torna e quiccedilaacute tornar os homens virtuosos Aristoacuteteles noutra passagem significativa deixa isso claro

191 BODEacuteUumlS Richard Aristoacuteteles A justiccedila e a cidade Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Rev Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007 p 14 [Os itaacutelicos satildeo nossos]

142 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Uma vez que a presente investigaccedilatildeo natildeo visa ao conhecimento teoacuterico como as outras mdash porque natildeo investigamos para saber o que eacute a virtude mas a fim de nos tornarmos bons do contraacuterio nosso estudo seria inuacutetil mdash devemos examinar agora a natureza dos atos isto eacute como devemos praticaacute-los []192

O Estagirita natildeo se cansa de dizer que a eacutetica eacute a ldquociecircnciardquo

dos fatos da vida (βίον πράξεωνbiacuteon praacutexeōn) Assim quando justifica a razatildeo pela qual o jovem natildeo estaacute bem disposto para esta ldquociecircnciardquo afirma ldquoCom efeito ele natildeo tem experiecircncia dos fatos da vida e eacute em torno desses que giram as nossas discussotildeesrdquo193 Haacute outras passagens eloquentes neste sentido

[] Tratando-se de sentimentos [πάθεσι] e de accedilotildees [πράξεσι] as palavras [λόγοι] natildeo inspiram tanta confianccedila como os fatos [ἔργων] e em consequecircncia quando as primeiras discrepam do que se percebe pelos sentidos satildeo desprezadas como falsas e desacreditam por sua vez a verdade194

[] Tratando-se de questotildees praacuteticas [πρακτικοῖς] julga-se pelos fatos [ἔργων] e pela vida [βίου] que satildeo nelas o principal Eacute preciso portanto considerar o que temos dito referindo-os aos fatos [ἔργα] e agrave vida [βίον] e aceitaacute-los se estaacute em harmonia com os fatos [ἔργοις] poreacutem consideraacute-los mera teoria [λόγους] se discrepa deles195

192 Idem Ibidem II 2 1103 b 25-30 193 Idem Ibidem X 2 1095 a e 1173 a 194 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco X 1 1172 a 35 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[hellip] trataacutendose de sentimientos y de acciones las palabras no inspiran tanta confianza como los hechos y en consecuencia cuando las primeras discrepan de lo que se percibe por los sentidos son despreciadas como falsas y desacreditan a la vez la verdadrdquo 195 Idem Ibidem X 8 1179 a 15-20 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] trataacutendose de cuestiones praacutecticas se juzga por los hechos y por la vida que son en nellas lo principal Es preciso por tanto considerar lo que llevamos dicho refirieacutendolo a los hechos y a la vida y aceptarlo si estaacute en harmoniacutea con los hechos pero considerarlo como mera teoriacutea si discrepa de ellosrdquo

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E Berti precisa que com este conceito de ldquociecircncia poliacuteticardquo ou eacutetica Aristoacuteteles nos insere no ldquomundo da vidardquo funda pois as assim chamadas ldquociecircncias humanasrdquo

O seu ponto de partida eacute o quecirc o fato a experiecircncia a vida vivida os bons costumes e ela parte destes para buscar os princiacutepios isto eacute o fim supremo [] Com efeito a filosofia praacutetica de Aristoacuteteles fornece um exemplo de discurso que concerne aos mais importantes problemas humanos problemas que se referem ao assim chamado ldquomundo da vidardquo que se diferencia no meacutetodo dos discursos das ciecircncias propriamente ditas e todavia natildeo estaacute privado de racionalidade proacutepria isto eacute de controlabilidade proacutepria []196

Nasce assim a eacutetica aristoteacutelica como epistḗmē do ἦθος

(ẽthos) e do ἔθος (eacutethos) Distinta do que poderiacuteamos chamar uma ldquoeacutetica religiosardquo visto que ela se configura como uma reflexatildeo acerca de como o homem pode construir-se e construir o seu haacutebitat proacuteprio precisamente enquanto distinto do mundo dos deuses e do mundo da fyacutesis (φύσις) Natildeo haacute mdash nesse contexto mdash uma divindade que ajude o homem a se construir e a construir o mundo humano Natildeo haacute uma divindade legisladora que puna ou premie O homem exclusiva e integralmente mdash com a experiecircncia e com a razatildeo mdash eacute quem deve construir a sua felicidade que natildeo estaacute num momento fugaz de prazer mdash como nas eacuteticas hedonistas mdash mas tambeacutem natildeo estaacute noutro mundo mdash como nas eacuteticas teoloacutegicas mdash senatildeo que se encontra num mundo que ele proacuteprio teraacute ao menos em parte de construir Esta produccedilatildeo dar-se-aacute mediante o exerciacutecio das virtudes virtudes estas que ele descobriraacute olhando para o prudente (froacutenimos) proacuteximo a ele e homem como ele e natildeo para Deus para uma lei divina

Mas em todas as coisas o que parece a um homem bom eacute considerado como sendo realmente tal Se isto eacute correto como se

196 BERTI Perfil de Aristoacuteteles p 162

144 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

afigura ser e a virtude e o homem bom [καλῶςkalȭs] como tais satildeo a medida [μέτρονmeacutetron] de todas as coisas seratildeo verdadeiros prazeres os que lhe parecerem tais e verdadeiramente agradaacuteveis as coisas em que ele se deleitar197

Enrico Berti repristina o pensamento eacutetico de Aristoacuteteles

que temos visto ateacute aqui

Concluindo essa exposiccedilatildeo devemos observar que a eacutetica aristoteacutelica eacute confirmada como sendo essencialmente fundada sobre o conceito de fim uacuteltimo do homem Esse fim eacute concebido de forma exclusivamente humana sem implicaccedilotildees de ordem metafiacutesica ou teoloacutegica De fato a felicidade com a qual ele eacute identificado natildeo eacute como frequentemente se acreditou ldquocontemplaccedilatildeo de Deusrdquo nem exclusivamente busca de Deus [] Portanto se trata de eacutetica exclusivamente humana e ao mesmo tempo integralmente humana que leva em conta todas as dimensotildees do homem e ao mesmo tempo estabelece exata hierarquia entre elas []198

Antes de terminarmos importa ratificarmos um

esclarecimento jaacute delineado Quando pensamos ao longo do capiacutetulo o agir eacutetico tambeacutem como um ato poieacutetico natildeo o fazemos confundindo o haacutebito da teacutekhnē com o da froacutenēsis ou com o da sofiacutea Estaacute sempre bem presente ante os nossos olhos a passagem inequiacutevoca do livro VI da Eacutetica

[] de sorte que a capacidade raciocinada de agir difere da capacidade raciocinada de produzir Daiacute tambeacutem o natildeo se incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacute produzir nem produzir eacute agir199

197 ARISOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 5 1176 a 15-20 198 BERTI Perfil de Aristoacuteteles pp 181-182 199 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VI 4 1140 a 5

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Usamos o termo poiacuteēsis num sentido estendido valendo-nos da mesma polissemia utilizada por Aristoacuteteles De fato este estender-se eacute usado pelo proacuteprio Aristoacuteteles no acircmbito da filosofia praacutetica Ele diz num passo

Eacute assim que a sabedoria filosoacutefica produz [ποιοῦσιpoioỹsi] felicidade porque sendo ela uma parte da virtude inteira torna um homem feliz pelo fato de estar na sua posse e de atualizar-se200

Ao comentar esta passagem Berti tambeacutem entende que

Aristoacuteteles usa o termo poiacuteēsis num sentido estendido ldquoAleacutem disso ele observa que elas [sofiacuteafroacutenēsis] satildeo tambeacutem produtivas e precisamente a sapiecircncia [sofiacutea] produz a felicidaderdquo201 Na verdade haacute uma razatildeo especiacutefica para empregar o termo poieacutetico tambeacutem em eacutetica Eacute que em Aristoacuteteles o eacutethos deixa de ser apenas um caraacuteter dado pela natureza e passa a ser um caraacuteter impresso em noacutes por nossos proacuteprios haacutebitos isto eacute por aquelas accedilotildees que oriundas de nossas escolhas deliberadas tecircm em noacutes a sua causa Em outras palavras como jaacute dissemos acima noacutes nos tornamos aquilo que praticamos ldquo[] tornamo-nos justos praticando atos justos e assim com a temperanccedila a bravura etcrdquo202 Assim o homem passa a ser de certa forma causa de si ldquo[] cada homem eacute de certo modo responsaacutevel [αἴτιοςaiacutetios] pela sua disposiccedilatildeo de acircnimo [ἕξεώςheacutexeṓs] []rdquo203 Destarte cada homem acaba contribuindo para produzir ao seu derredor uma ambiecircncia (ethos) pela qual tambeacutem eacute responsaacutevel

A afirmaccedilatildeo da responsabilidade do homem em face a seus proacuteprios atos vai transformar o significado e o valor atribuiacutedos ao

200 Idem Ibidem VI 12 1144 a 5 201 BERTI Perfil de Aristoacuteteles p 173 202 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 1 1103 b 203 Idem Ibidem III 5 114 b

146 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

ethos Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles repete que o ethos eacute o resultado de nossos atos adquire-se tal ou tal disposiccedilatildeo eacutetica agindo de tal ou tal maneira Realizando coisas justas assumem-se bons haacutebitos e o caraacuteter torna-se justo inversamente agindo de maneira intemperante adquire-se o haacutebito de ceder aos desejos e tornamo-nos intemperantes O caraacuteter natildeo eacute mais o que recebe suas determinaccedilotildees da natureza da educaccedilatildeo da idade da condiccedilatildeo social eacute o produto da seacuterie de atos dos quais sou o princiacutepio Posso pois ser declarado ldquoautorrdquo (aiacutetios) de meu caraacuteter como o sou de meus atos do mesmo modo que meus atos podem ser objeto de um elogio meu caraacuteter pode ser objeto de louvor Viacutecios e virtudes natildeo satildeo simples traccedilos psicoloacutegicos adquiridos tecircm significado moral porque pertencem ao campo do que depende de noacutes Esta responsabilidade testemunha a seriedade da accedilatildeo Quando ajo natildeo faccedilo somente algo de pontual pelo que terei que responder escolho o que vou ser204

Uma passagem que gostariacuteamos de comentar porque

exemplifica a relaccedilatildeo que estabelecemos entre ēthikḗ e poiacuteēsis diz o seguinte

Isso porque a existecircncia eacute para todos os homens uma coisa digna de ser escolhida e amada ora noacutes existimos em virtude da atividade [ἐνεργείᾳ] (isto eacute vivendo e agindo) e a obra [ἐνεργείᾳ] eacute em certo sentido uma produtora de atividade [ποιήσας τὸ ἔργου] portanto o artiacuteficie ama a sua obra [ἔργου] porque ama a existecircncia E isso tem raiacutezes profundas na natureza das coisas pois o que ele eacute em potecircncia [δυνάμει] sua obra [ἔργου] o manifesta em ato [ἐνεργείᾳ]205

Tem-se pela passagem acima que o homem de certo

modo eacute eacutergon em certo sentido ele eacute uma obra em marcha Com efeito se existir eacute uma atividade mui digna e o obrar alarga esta atividade entatildeo obrar com aretḗ eacute existir intensivamente Por isso

204 VERGNIEgraveRES Solange Eacutetica e poliacutetica em Aristoacuteteles physis ethos nomos Trad Marcondes Cesar Satildeo Paulo Paulus 1998 p 105 205 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 7 1168 a 5-10

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todos aqueles que amam a sua existecircncia natildeo deixam de obrar Existindo constroem construindo existem Existir eacute fazer a si mesmo porque os nossos haacutebitos (heacutexeis) oriundos da atividade (eneacutergeia) do nosso eacutergon perfazem o nosso caraacuteter (eacutethos) Existir eacute produzir aleacutem disso a ambiecircncia (ẽthos) que nos cerca porquanto os nossos atos se difundem (maacutexime quando virtuosos satildeo difusivos) irradiando-se nela Na verdade a aretḗ porque qualifica o obrar torna o existir humano que se define como zȭon politikoacuten intenso E a reta atualizaccedilatildeo do zȭon politikoacuten eacute a koinōniacutea Por isso criar koinōniacutea na pluralidade de suas formas manifesta a natureza humana

Fazer de si mesmo a sua proacutepria obra significa entatildeo literalmente realizar-se cumprir a si mesmo pocircr-se em ato ou seja dar forma ao que se eacute somente em potecircncia E eacute exatamente por meio da eneacutergeia naquela eneacutergeia naquele agir proacuteprio do homem em que o proacuteprio homem tem a possibilidade de exprimir a sua humanidade que o ser humano se realiza como eacutergon que o indiviacuteduo se torna obra206

O termo desta expansatildeo eacute a morte207 e eacute justamente aqui

que temos tambeacutem que passar a indagar como Tomaacutes de Aquino para quem a morte eacute branda porque natildeo eacute o fim pocircde acolher a eacutetica de Aristoacuteteles num contexto teoloacutegico

206 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 388 207 Idem Ibidem p 93 ldquoEntatildeo a morte como finis e como teacutelos eacute o que potildee termo agrave existecircncia o que faz com que ela acabe mas tambeacutem o que atribuindo-lhe um limite delimita um territoacuterio circunscreve uma regiatildeo um horizonte no interior do qual a vida humana pode desdobrar-serdquo

Capiacutetulo III A recepccedilatildeo da eacutetica aristoteacutelica na

teologia moral de Tomaacutes

Nas paacuteginas seguintes pretendemos apontar aqueles conceitos que permitiram a Tomaacutes acolher no acircmbito da sua teologia moral uma conceptualidade filosoacutefica A fim de levarmos a termo este objetivo julgamos pertinente nos resguardarmos de dois equiacutevocos O primeiro mdash e talvez o mais ingecircnuo mdash eacute imaginar que Tomaacutes foi tatildeo somente um filoacutesofo ou que tenha aceitado in totum todos os corolaacuterios da eacutetica aristoteacutelica Se assim fosse melhor seria ficarmos com Aristoacuteteles e natildeo com um comentador dele1 Tomaacutes eacute antes de tudo um teoacutelogo e mesmo a parte da Suma de Teologia que dedica agrave eacutetica sem duacutevida integra a sua teologia moral O segundo equiacutevoco eacute pensar que por ser um teoacutelogo e por natildeo ter parado na ldquoeacutetica naturalrdquo de Aristoacuteteles o Aquinate tenha renunciado agrave razatildeo filosoacutefica quando pensou as grandes questotildees eacuteticas Nem uma coisa nem outra Entendemos antes que em alguns momentos o Aquinate tenha sido ateacute mais realista e moderado do que o proacuteprio Estagirita Demos ensejo a uma breve contextualizaccedilatildeo criacutetica que justifique a nossa abordagem neste capiacutetulo 31 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO CRIacuteTICA TOMAacuteS COMO AUCTOR

Haacute hoje um consenso de que Tomaacutes redigiu o seu famoso Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco durante seu segundo periacuteodo de

1 Imaginar que Tomaacutes foi um mero repetidor de Aristoacuteteles a ponto de se cogitar que a leitura de Aristoacuteteles possa substituir ou suprir a de Tomaacutes eacute uma tese que natildeo encontra sustentaccedilatildeo Natildeo sem razatildeo Maritain concordava com o parecer de Gilson sobre este assunto MARITAIN Jacques Le paysan de la Garrone Un vieux laique Srsquointerrogue Paris Descleacutee de Brower 1966 p 197 In MOURA Odilatildeo Introduccedilatildeo agrave Suma contra os Gentios Porto Alegre EDIPUCRS 1996 p 9 ldquoEacute um enorme erro mdash Gilson tem razatildeo quando insiste nisso mdash o dizer como repetem tantos professores de Filosofia que a Filosofia de santo Tomaacutes eacute a Filosofia de Aristoacuteteles []rdquo

150 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ensino parisiense mais especificamente entre os anos de 1271 a 12722 Parece natildeo haver mais duacutevidas tambeacutem quanto ao fato de que este Comentaacuterio influenciou sobremodo a redaccedilatildeo da IIa parte da Summa Theologiae a qual provavelmente se iniciou depois das feacuterias de 12713 A isto podemos acrescer outro dado importante qual seja a finalidade do comentaacuterio de Tomaacutes agrave Eacutetica Atualmente se sabe que ele natildeo buscou fazer uma expositio desta obra vale dizer um comentaacuterio aprofundado que se ativesse agrave literalidade do texto Tomaacutes natildeo pretendeu simplesmente conhecer o que Aristoacuteteles disse nem devemos esperar do Aquinate uma leitura do Estagirita que esteja de acordo com os instrumentos criacuteticos de nossa eacutepoca e isso por duas razotildees A primeira porque ele obviamente desconhecia estes elementos A segunda porque a sua finalidade natildeo era conhecer Aristoacuteteles como um historiador mas sim como um saacutebio Em uma palavra trata-se de um pensador que comenta outro pensador natildeo simplesmente para conhececirc-lo mas para pensaacute-lo4

No capiacutetulo anterior pudemos verificar que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute exclusivamente humana no sentido de que se ateacutem ao que a razatildeo pode admitir Descobrimos ainda que esta eacutetica eacute por isso mesmo diversa da teologia moral da Idade Meacutedia que abriga em si componentes extraiacutedos da Revelaccedilatildeo cristatilde Mas agora eacute preciso aduzirmos que natildeo houve uma uacutenica teologia moral na Idade Meacutedia senatildeo teologias morais E a de Tomaacutes sem se coincidir eacute a que mais se aproxima da eacutetica de Aristoacuteteles5 E se

2 TORRELL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Sua pessoa e sua obra Trad Luiz Paulo Rouanet Rev Saulo Krieger et al 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 265 3 Idem Ibidem 4 Idem Ibidem pp 265 e 266 5 Eacute necessaacuterio acrescer que o comentaacuterio de Tomaacutes agrave Eacutetica que prepara a siacutentese da Summa Theologiae deve muito agrave convivecircncia com Alberto Magno seu mestre o qual tambeacutem comentou a Eacutetica no mesmo periacuteodo em que Tomaacutes seguia os seus cursos no Studium de Colocircnia Aliaacutes o Aquinate na qualidade de assistente participou ativamente da redaccedilatildeo do comentaacuterio Frisa Lima Vaz VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo aacute Eacutetica Filosoacutefica 1 pp 208-209 ldquo[] Santo Alberto Magno foi sem duacutevida o maior inteacuterprete latino de Aristoacuteteles no seacuteculo XIII tendo comentado a maior parte do Corpus Aristotelicum entatildeo conhecido No que diz respeito agrave Eacutetica foi igualmente o

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aproxima natildeo agrave guisa de um mero ldquocomentaacuteriordquo do filoacutesofo grego mdash conforme jaacute acenamos mdash mas como uma obra que perfilha as consideraccedilotildees de outra a fim de trazer a lume o seu proacuteprio pensamento6 Em uma palavra Tomaacutes eacute um auctor que usa de uma auctoritas no caso Aristoacuteteles para trazer agrave luz as suas proacuteprias ideias7 Sobre isso assinala Jeauneau

Por aqui vemos mdash mas os exemplos abundam mdash com que liberdade S Tomaacutes adapta aos seus fins o pensamento de Aristoacuteteles Professa pelo Filoacutesofo a admiraccedilatildeo mais sincera Mas natildeo eacute um arqueoacutelogo cuja uacutenica ambiccedilatildeo se limitasse agrave restauraccedilatildeo dum glorioso passado Pensa para o seu tempo com uma constante preocupaccedilatildeo de actualidade Haacute mesmo qualquer coisa de revolucionaacuterio no seu empreendimento Os contemporacircneos natildeo se enganaram E se certos admiradores de S Tomaacutes propuseram fazer do tomismo um relicaacuterio ideal dos

primeiro a expor sistematicamente uma eacutetica fundada na experiecircncia e na reta razatildeo e a mostrar sua compatibilidade com a moral revelada Os problemas eacuteticos ocupam um lugar relevante na produccedilatildeo literaacuteria de Alberto Magno desde seu Comentaacuterio ao livro das Sentenccedilas agrave tardia Summa Theologiae Em particular deve-se mencionar o De natura boni a Summa de Bonno fazendo parte da primeira Summa Theologiae a Summa de Creaturis contendo um De Homine e os comentaacuterios agrave Eacutetica de Nicocircmaco a Lectura in libros Ethicorum Aristotelis redigida por seu assististente Tomaacutes de Aquino no tempo do magisteacuterio de Alberto no Studium dominicano de Colocircnia (1248-1252) e os Commentarii in libros Ethicorum Aristotelis em forma de paraacutefrase redigidos provavelmente entre 1256 e 1270 O pensamento eacutetico medieval deve a Alberto Magno uma mais rigorosa fixaccedilatildeo conceptual de algumas de suas categorias fundamentais que iratildeo ser utilizadas e aprofundadas por seu disciacutepulo Tomaacutes de Aquinordquo Citemos ainda Roberto Grosseteste que entre 1246 e 1247 traduziu a Eacutetica Foi a traduccedilatildeo de Grosseteste a utilizada por Alberto e Tomaacutes Lembrando que esta traduccedilatildeo foi revisada e completada em 1260 talvez por Guilherme de Moerbeke Tomaacutes usou esta segunda ediccedilatildeo 6 Natildeo se pode esquecer ademais da influecircncia decisiva que categorias filosoacuteficas tomadas de Agostinho desempenharam na estruturaccedilatildeo da eacutetica filosoacutefica tomasiana Como diz Lima Vaz Idem Ibidem p 216 ldquoA Eacutetica de Tomaacutes de Aquino obedecendo ao modelo que prevalece em Toda Eacutetica claacutessica desde Platatildeo e que vimos genialmente transposto para o universo cristatildeo na Eacutetica agostiniana eacute uma eacutetica da perfeiccedilatildeo e da ordem Essas duas categorias de natureza mostram-se como fundamentais na Ontologia tomaacutesica encontram em sua Antropologia uma realizaccedilatildeo exemplar e por conseguinte orientaratildeo em profundidade a construccedilatildeo da Eacuteticardquo 7 GILSON A Filosofia na Idade Meacutedia p 627 ldquoCom efeito na Idade Meacutedia distinguia-se entre o escriba (scriptor) que soacute eacute capaz de recopiar as obras de outrem sem nada modificar o compilador (compilator) que acrescenta ao que copia mas sem que seja coisa sua o comentador (commentator) que potildee coisa sua no que escreve mas soacute acrescenta ao texto o necessaacuterio para tornaacute-lo inteligiacutevel e enfim o autor (auctor) cujo objetivo principal eacute expor suas proacuteprias ideacuteias soacute apelando para as ideacuteias alheias a fim de confirmar as suas []rdquo [O itaacutelico eacute nosso]

152 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

conservantismos de toda a espeacutecie poderatildeo ter retido a letra mas natildeo penetraram seguramente o espiacuterito8

Esta proximidade conjugada com uma ultrapassagem de

horizontes entre Tomaacutes e Aristoacuteteles ocorreu de acordo com o nosso entendimento sobretudo por uma razatildeo perpassa toda a obra do Aquinate o axioma que ele formula logo na primeira questatildeo da Suma de Teologia ldquo[] a graccedila natildeo suprime a natureza mas a aperfeiccediloa []rdquo9 Assim em sua obra o que haacute de humano nunca eacute tolhido mas assumido Por isso ele pocircde acolher Aristoacuteteles Contudo o componente humano eacute deveras aperfeiccediloado pela graccedila e pelo prodigioso poder especulativo do nosso pensador Em outros termos em Tomaacutes o componente humano eacute integrado agrave Revelaccedilatildeo mas sem ser suprimido por esta

Respondo dizendo que os dons da graccedila satildeo de tal modo acrescidos agrave natureza que eles natildeo a suprimem senatildeo que mais a aperfeiccediloam Eis porque a luz da feacute que eacute gratuitamente infusa em noacutes natildeo destroacutei a luz natural da razatildeo que nos eacute divinamente dada10

Lima Vaz condensa

Em nenhum momento os textos tomaacutesicos inflectem no sentido de uma eacutetica puramente humana ou entatildeo mais aristoteacutelica do que cristatilde o pensamento eacutetico que encontramos na Summa Mesmo o comentaacuterio da Eacutetica de Nicocircmaco rigorosamente filosoacutefico se permite abrir clareiras por onde filtra alguma luz

8 JEAUNEAU Eacutedouard A Filosofia Medieval Trad Joatildeo Afonso dos Santos Lisboa Ediccedilotildees 70 1986 p 85 9 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 8 ad 2 ldquo[] gratia non tollat naturam sed perficiat []rdquo 10 TOMAacuteS DE AQUINO Super De Trinitate pars 1 q 2 a 3 co 1 Disponiacutevel em lt httpwwwcorpusthomisticumorgcbthtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoResponsio Dicendum quod dona gratiarum hoc modo naturae adduntur quod eam non tollunt sed magis perficiunt unde et lumen fidei quod nobis gratis infunditur non destruit lumen naturalis rationis divinitus nobis inditumrdquo

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que vem da Teologia A segunda chave que devemos denominar igualmente necessaacuteria ex hypothesi eacute a chave filosoacutefica A hipoacutetese eacute aqui em uacuteltima instacircncia a opccedilatildeo fundamental de Tomaacutes de Aquino que orienta toda a sua obra e que afirma a autonomia relativa da razatildeo e a vigecircncia de suas leis loacutegicas e de seu alcance ontoloacutegico em toda construccedilatildeo intelectual mdash de modo eminente na Teologia mdash segundo o axioma gratia non destruit naturam sed perficit Ora a mais alta obra da razatildeo eacute a Filosofia e segundo a convicccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino e da maioria dos doutores medievais ningueacutem aproximou-se tanto quanto Aristoacuteteles do ideal do saber filosoacutefico A partir pois da necessidade teoacuterica da integraccedilatildeo da razatildeo filosoacutefica na edificaccedilatildeo da ciecircncia teoloacutegica e da necessidade histoacuterica de receber de Aristoacuteteles os instrumentos e as categorias fundamentais dessa razatildeo o Aquinatense natildeo hesita em utilizar amplamente e profundamente a Eacutetica de Nicocircmaco interpretando-a livremente segundo as exigecircncias da moral Evangeacutelica na grandiosa construccedilatildeo intelectual de uma Eacutetica cristatilde levada a cabo na IIa parte da Summa Theologiae11

Uma vez que ldquoa graccedila natildeo tolhe a naturezardquo passemos a

trabalhar aquele que nos parece ser o conceito primordial de nossa exposiccedilatildeo qual seja o de natureza 32 O CONCEITO DE NATUREZA EM TOMAacuteS

Tomando por base os pressupostos jaacute anteriormente estabelecidos tentemos refletir em primeiro lugar acerca do que nos possa fazer pensar que natildeo haja espaccedilo numa teologia cristatilde como a de Tomaacutes para o exerciacutecio de uma racionalidade filosoacutefica A primeira objeccedilatildeo que nos vem agrave mente e que Tomaacutes mesmo se fez eacute a natureza racional mdash cuja obra maior eacute a filosofia mdash natildeo foi corrompida pelo pecado Se sim como podemos pensar que o homem mdash abandonado agraves suas proacuteprias forccedilas mdash seja capaz de virtudes Tomaacutes natildeo se esquiva da dificuldade Ele argumenta no

11 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 pp 214-215

154 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino estado de integridade mdash antes do pecado mdash havia trecircs bens concernentes agrave natureza humana Satildeo eles os princiacutepios constitutivos dela (o homem eacute definido como um animal racional) a inclinaccedilatildeo para a virtude e a justiccedila original que eacute um dom sobrenatural Pelo pecado ldquo[] o primeiro natildeo eacute nem tirado nem diminuiacutedo []rdquo12 Conforme afirma Tomaacutes ldquo[] o pecado natildeo pode tirar completamente do homem que seja racional porque jaacute natildeo seria capaz de pecadordquo13 Gilson comentando esta passagem chega a dizer que ldquoSupor o contraacuteriordquo mdash isto eacute que o pecado corrompeu a natureza humana enquanto tal mdash ldquoseria admitir que o homem poderia continuar sendo homem deixando de ser homemrdquo14 O terceiro bem de fato foi totalmente subtraiacutedo do homem Mas observemos que este terceiro bem natildeo eacute considerado pelo Aquinate como algo devido agrave natureza humana No Compendium Theologiae ele o denomina ldquo[] virtude excedente agrave sua condiccedilatildeo natural []rdquo15 Finalmente o segundo bem o do

12 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 85 1 C ldquoPrimum igitur bonum naturae nec tollitur nec diminuitur per peccatumrdquo 13 Idem Ibidem I-II 85 2 C ldquoPer peccatum autem non potest totaliter ab homine tolli quod sit rationalis quia iam non esset capax peccatirdquo 14 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad Eduardo Brandatildeo Rev Tessa Moura Lacerda Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 p 171 15 TOMAacuteS DE AQUINO Compecircndio de Teologia Trad Odilatildeo Moura 2 ed Porto Alegre EDIPUCRS 1996 I CLXXXVI 2 Na ediccedilatildeo biliacutengue a traduccedilatildeo permanece mais fiel ao original latino Idem Ibidem I 186 ldquoErat igitur hoc ex virtute superiori scilicet Dei qui sicut animam rationabilem corpori coniunxit omnem proportionem corporis et corporearum virtutum cuiusmodi sunt vires sensibiles transcendentem ita dedit animae rationali virtutem ut supra conditionem corporis ipsum continere posset et vires sensibiles secundum quod rationali animae competebat Ut igitur ratio inferiora sub se firmiter contineret oportebat quod ipsa firmiter sub Deo contineretur a quo virtutem praedictam habebat supra conditionem naturaerdquo ldquoEra pois uma virtude superior [virtute superiori] ou seja a de Deus que assim como uniu ao corpo uma alma racional que transcende toda a proporccedilatildeo do corpo e das virtudes corporais como as virtudes sensiacuteveis assim tambeacutem deu agrave alma racional a virtude de sobre a condiccedilatildeo do corpo poder contecirc-lo e agraves virtudes sensiacuteveis segundo o que competia agrave alma racional A fim pois de que a razatildeo contivesse firmemente sob si as coisas inferiores era necessaacuterio que ela mesma se contivesse firmemente sob Deus do qual tinha a referida virtude sobre a condiccedilatildeo da naturezardquo Na Summa Tomaacutes natildeo eacute menos claro quanto a isso Idem Suma Teoloacutegica I 95 1 C ldquoErat enim haec rectitudo secundum hoc quod ratio subdebatur Deo rationi vero inferiores vires et animae corpus Prima autem subiectio erat causa et secundae et tertiae quandiu enim ratio manebat Deo subiecta inferiora ei subdebantur ut Augustinus dicit Manifestum est autem quod illa subiectio corporis ad animam et inferiorum virium ad rationem non erat naturalis alioquin post peccatum mansisset cum etiam in

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meio a saber a inclinaccedilatildeo natural para a virtude foi ldquo[] apenas diminuiacutedo pelo pecadordquo16 Ao que Gilson conclui ldquoAssim o pecado natildeo poderia acrescentar nada agrave natureza humana nem nada lhe retirarrdquo17 Eacute a mesma conclusatildeo a que chega Vasoli ldquo[] natildeo se deve esquecer de que a filosofia tomista legitima assim a existecircncia de uma natureza conclusa e autossuficiente dotada de leis proacuteprias e processos necessaacuterios proacutepriosrdquo18 Em siacutentese ldquo[] pelo pecado natildeo eacute tirado o bem natural que pertence agrave espeacutecierdquo19 Diante disso a eacutetica de Tomaacutes mdash mesmo sendo fundamentalmente uma teologia moral mdash natildeo precisa considerar o homem como um ente totalmente depravado 20 E por isso mesmo ela se abre a consideraccedilotildees proacuteprias de uma eacutetica filosoacutefica Jaacute nas Quaestiones disputatae de veritate o Aquinate dizia que o homem perdendo a justiccedila original mdash que era uma virtude excedente agrave sua natureza

Daemonibus data naturalia post peccatum permanserint ut Dionysius dicit cap IV de Div Nom Unde manifestum est quod et illa prima subiectio qua ratio Deo subdebatur non erat solum secundum naturam sed secundum supernaturale donum gratiae non enim potest esse quod effectus sit potior quam causardquo ldquoEssa retidatildeo consistia em que a razatildeo estava submetida a Deus as forccedilas inferiores agrave razatildeo e o corpo agrave alma A primeira dessas submissotildees era a causa a um tempo da segunda e da terceira Pois enquanto a razatildeo estivesse submetida a Deus os inferiores lhe permaneciam submissos como afirma Agostinho Aliaacutes eacute claro que essa submissatildeo do corpo agrave alma e das forccedilas inferiores agrave razatildeo natildeo era natural de outra sorte teria persistido depois do pecado pois entre os democircnios tambeacutem os elementos naturais permaneceram depois do pecado como diz Dioniacutesio Por consequumlecircncia eacute claro que tambeacutem a primeira submissatildeo a da razatildeo a Deus natildeo era somente natural mas um dom sobrenatural da graccedila natildeo eacute possiacutevel que o efeito seja superior agrave causardquo 16 Idem Ibidem I-II 85 I C ldquoSed medium bonum naturae scilicet ipsa naturalis inclinatio ad virtutem diminuitur per peccatumrdquo 17 GILSON O Espiacuterito da Filosofia Medieval p 171 18 VASOLI Cesare Storia della filosofia II La filosofia medioevale Milano Feltrinelli 1961 p 311 [A traduccedilatildeo eacute nossa] p 311 ldquo[] non si deve dimenticare che la filosofia tomistica legittima cosiacute lrsquoesistencia di una natura conclusa ed autosufficiente dotada di leggi proprie e di propri processi necessarirdquo 19 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios IV LII 13 [3888] ldquoPer peccatum enim non tollitur bonum naturae quod ad speciem naturae pertinet []rdquo 20 O infiel ou qualquer que natildeo esteja em estado de graccedila natildeo estaacute fadado a fazer o mal em tudo quanto faz Idem Suma Teoloacutegica II-II 10 4 C ldquoLogo eacute claro que os infieacuteis natildeo podem fazer boas obras que decorram da graccedila isto eacute obras meritoacuterias entretanto podem de algum modo praticar boas obras para as quais basta o bem da natureza Portanto natildeo pecam necessariamente em tudo o que fazem mas sempre que fazem alguma obra procedente da infidelidade entatildeo pecamrdquo

156 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino um dom concedido pela liberalidade divina mdash natildeo passou a ser portador de uma natureza absolutamente prevaricada senatildeo que voltou a contar somente com o que lhe convinha naturalmente

Com efeito o que foi concedido ao homem no primeiro estado para que a razatildeo totalmente dominasse as potecircncias inferiores tambeacutem a alma e o corpo natildeo proveio do poder dos princiacutepios naturais mas do poder da justiccedila original acrescentada agrave natureza pela liberalidade divina Com efeito suprimida tal justiccedila pelo pecado o homem voltou ao estado que lhe convinha por seus princiacutepios naturais21

Haacute uma vexata quaestio que decorre do quanto jaacute dissemos

e que deve ser tratada sob pena de todo o nosso esforccedilo ser vatildeo Trata-se de saber mdash e o proacuteprio Aquinate se questiona acerca disso mdash se as virtudes eacuteticas ou morais (mos em latim) podem existir em noacutes sem a caridade Aqui segundo pensamos o gecircnio especulativo de Tomaacutes se manifesta de forma exemplar Depois de dizer que as virtudes naturais natildeo existem em noacutes por natureza salvo ldquo[] em estado de aptidatildeo e incoativamente []rdquo 22 mas devem ser adquiridas pela repeticcedilatildeo dos atos conducentes a elas23 conclui

Conforme foi dito acima as virtudes morais enquanto obram um bem em ordem a um fim que natildeo excede a capacidade natural humana podem ser adquiridas pelos atos humanos E assim

21 TOMAacuteS DE AQUINO A sensualidade Quaestiones disputatae de veritate questatildeo 25 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Beatriz Rodrigues de Lima Satildeo Paulo Edipro 2015 25 7 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoQuod enim homini in primo statu collatum fuit ut ratio totaliter inferiores vires contineret et anima corpus non fuit ex virtute principiorum naturalium sed ex virtute originalis iustitiae ex divina liberalitate superadditae Qua quidem iustitia per peccatum sublata homo rediit ad statum convenientem sibi per principia sua naturalia []rdquo 22 Idem Suma Teoloacutegica I-II 63 1 C ldquoSic ergo patet quod virtutes in nobis sunt a natura secundum aptitudinem et inchoationem []rdquo 23 Idem Ibidem I-II 63 2 C ldquoPortanto a virtude humana ordenada para o bem que eacute medido pela regra da razatildeo humana pode ser causada pelos atos humanos enquanto esses atos procedem da razatildeo de cujo poder e controle depende o referido bemrdquo

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adquiridas podem existir sem a caridade como existiram em muitos pagatildeos24

Isto exposto toda a questatildeo gira em torno do que Tomaacutes

fala em seguida acerca destas mesmas virtudes morais

Mas enquanto obram um bem em ordem ao fim uacuteltimo sobrenatural eacute que atingem perfeita e verdadeiramente a razatildeo da virtude e natildeo podem ser adquiridas pelos atos humanos mas satildeo infundidas por Deus E essas virtudes morais natildeo podem existir sem a caridade25

Eis o impasse como entender que as virtudes possam

existir em noacutes de forma imperfeita se a virtude se define justamente como uma excelecircncia O Aquinate natildeo pode simplesmente desdizer o que jaacute disse ou seja que as virtudes morais podem existir sem a caridade tanto que existiram em muitos pagatildeos Ele dirime a dificuldade saindo do plano da univocidade Perfeito diz-se de muitos modos No De Virtutibus Tomaacutes arrola trecircs modos de perfeiccedilatildeo Haacute uma perfeiccedilatildeo absoluta agrave qual nada falta de toda perfeiccedilatildeo possiacutevel haacute uma perfeiccedilatildeo segundo a natureza que existe no caso do homem hipoteticamente naquele que consegue desenvolver toda perfeiccedilatildeo possiacutevel agrave sua natureza e haacute finalmente uma perfeiccedilatildeo segundo o tempo que existe naquele que possui a perfeiccedilatildeo proporcional a um determinado tempo e condiccedilatildeo

24 Idem Ibidem I-II 65 2 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est virtutes morales prout sunt operativae boni in ordine ad finem qui non excedit facultatem naturalem hominis possunt per opera humana acquiri Et sic acquisitae sine caritate esse possunt sicut fuerunt in multis gentilibusrdquo 25 Idem Ibidem [O itaacutelico eacute nosso] ldquoSecundum autem quod sunt operativae boni in ordine ad ultimum finem supernaturalem sic perfecte et vere habent rationem virtutis et non possunt humanis actibus acquiri sed infunduntur a Deo Et huiusmodi virtutes morales sine caritate esse non possuntrdquo

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[] como quando dizemos que uma crianccedila eacute perfeita porque tem de acordo com aquela idade todos os elementos que se requerem para que chegue a ser um homem adulto26

A perfeiccedilatildeo absoluta mdash continua Tomaacutes no corpo do

mesmo artigo que trata da caridade mdash soacute Deus a possui A perfeiccedilatildeo segundo a natureza o homem pode tecirc-la mas natildeo nesta vida E a perfeiccedilatildeo quanto ao tempo o homem pode possuiacute-la nesta vida Ora aplicando isto mutatis mutandis ao tema das virtudes morais devemos dizer que a perfeiccedilatildeo que podemos ter delas sem a caridade eacute uma perfeiccedilatildeo segundo o tempo isto eacute o homem pode praticaacute-las de forma perfeita para satisfazer a vida poliacutetica a que elas se ordenam e agrave qual ele eacute chamado por natureza Isso eacute possiacutevel porque se por um lado mdash apoacutes o pecado mdash o ldquo[] homem falha naquilo que lhe eacute possiacutevel pela sua natureza a tal ponto que ele natildeo pode mais por suas forccedilas naturais realizar totalmente o bem proporcionado agrave sua naturezardquo27 por outro o bem comum que eacute aquilo que o homem busca na vida poliacutetica mdash agrave qual as virtudes eacuteticas o ordenam mdash tambeacutem natildeo reclama dele necessariamente o ato de todas as virtudes nem pretende coibir

26 TOMAacuteS DE AQUINO A Caridade a Correccedilatildeo Fraterna e a Esperanccedila Trad Paulo Faitanin Bernardo Veiga Satildeo Paulo Ecclesiae 2013 2 10 C ldquoPerfectum secundum tempus dicimus quando nihil deest alicui eorum quae natum est habere secundum tempus illud sicut dicimus puerum perfectum quia habet ea quae requiruntur ad hominem secundum aetatem illamrdquo Na Summa Tomaacutes fala do virtuoso como dotado de uma ldquoperfeiccedilatildeo deficienterdquo se comparada com a divina Idem Suma Teoloacutegica II-II 161 1 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod perfectum dicitur aliquid dupliciter Uno modo simpliciter in quo scilicet nullus defectus invenitur nec secundum suam naturam nec per respectum ad aliquid aliud Et sic solus Deus est perfectus cui secundum naturam divinam non competit humilitas sed solum secundum naturam assumptam Alio modo potest dici aliquid perfectum secundum quid puta secundum suam naturam vel secundum statum aut tempus Et hoc modo homo virtuosus est perfectus Cuius tamen perfectio in comparatione ad Deum deficiens invenitur []rdquo ldquoDeve-se dizer que de duas maneiras se atesta que um ser eacute perfeito Primeiro absolutamente quando nele nenhum defeito existe nem em si mesmo nem em relaccedilatildeo a outros seres Neste sentido perfeito eacute soacute Deus a cuja natureza divina natildeo cabe a humildade mas soacute pela natureza assumida mdash Segundo em sentido relativo por exemplo quanto agrave sua natureza ou quanto agrave sua condiccedilatildeo ou ainda quanto ao tempo Nesse sentido o homem virtuoso eacute perfeito malgrado sua perfeiccedilatildeo seja deficiente comparada com Deus []rdquo 27 Idem Ibidem I-II 109 2 C ldquoSed in statu naturae corruptae etiam deficit homo ab hoc quod secundum suam naturam potest ut non possit totum huiusmodi bonum implere per sua naturaliardquo

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todos os viacutecios Tomaacutes natildeo eacute afeito a represaacutelias Aliaacutes segundo ele querer reprimir toda sorte de pecados pode incitar a viacutecios maiores ldquoDeve-se dizer que agraves vezes como foi dito natildeo eacute bom corrigir o pecado para que ele natildeo fique piorrdquo28 De sorte que agraves vezes conclui o Aquinate noutro trecho o remeacutedio eacute tolerar para que as coisas natildeo fiquem ainda piores ldquo[] como diz Agostinho lsquoSuprime as meretrizes da sociedade humana e perturbaraacutes tudo com a libidinagemrsquordquo29 O fato eacute que a lei natildeo visa a coibir todos viacutecios ou a preceituar todas as virtudes

E assim pela lei humana natildeo satildeo proibidos todos os viacutecios dos quais se abstecircm os virtuosos mas tatildeo-soacute os mais graves dos quais eacute possiacutevel agrave maior parte dos homens se abster e principalmente aqueles que satildeo em prejuiacutezo dos outros sem cuja proibiccedilatildeo a sociedade humana natildeo pode conservar-se []30

A lei humana poreacutem natildeo preceitua sobre todos os atos de todas as virtudes mas apenas sobre aqueles que satildeo ordenaacuteveis ao bem comum ou imediatamente como quando algumas coisas se fazem diretamente em razatildeo do bem comum ou mediatamente como quando satildeo ordenadas pelo legislador algumas coisas pertencentes agrave boa disciplina por meio da qual os cidadatildeos satildeo

28 Idem Ibidem II-II 150 1 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod aliquando correctio peccatoris est intermittenda ne fiat inde deterior ut supra dictum estrdquo 29 Idem Ibidem II-II 10 11 C ldquo[] sicut Augustinus dicit in II de ordine aufer meretrices de rebus humanis turbaveris omnia libidinibusrdquo 30 Idem Ibidem I-II 96 2 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoEt ideo lege humana non prohibentur omnia vitia a quibus virtuosi abstinent sed solum graviora a quibus possibile est maiorem partem multitudinis abstinere et praecipue quae sunt in nocumentum aliorum sine quorum prohibitione societas humana conservari non posset sicut prohibentur lege humana homicidia et furta et huiusmodirdquo Nas respostas agraves objeccedilotildees o Aquinate chega a dizer que embora a lei mire a virtude quando se tenta pela lei fazer com que a multidatildeo se abstenha de suacutebito de todos os males esta pretensatildeo acaba por gerar um colapso social Idem Ibidem I-II 96 2 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod lex humana intendit homines inducere ad virtutem non subito sed gradatim Et ideo non statim multitudini imperfectorum imponit ea quae sunt iam virtuosorum ut scilicet ab omnibus malis abstineant Alioquin imperfecti huiusmodi praecepta ferre non valentes in deteriora mala prorumperent []rdquo ldquoDeve-se dizer que a lei humana tenciona induzir os homens agrave virtude natildeo de suacutebito mas gradualmente E assim natildeo impotildee imediatamente agrave multidatildeo dos imperfeitos aquelas coisas que satildeo jaacute dos virtuosos como por exemplo que se abstenham de todos os males De outro modo os imperfeitos natildeo podendo suportar tais preceitos se lanccedilariam a males piores []rdquo

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formados para que conservem o bem comum da justiccedila e da paz31

Mas entatildeo natildeo eacute necessaacuteria a caridade para a consecuccedilatildeo

do bem comum Novamente Tomaacutes natildeo se deixa levar pela univocidade Necessaacuterio segundo o Aquinate pode ser entendido de duas formas

[] ou porque sem ele algo natildeo pode existir por exemplo o alimento eacute necessaacuterio para a conservaccedilatildeo da vida humana ou porque com ele se chega ao fim de modo melhor e mais conveniente por exemplo o cavalo eacute necessaacuterio para viajar32

Quanto ao primeiro modo de necessidade pode-se dizer

que a caridade natildeo eacute necessaacuteria agrave persecuccedilatildeo do bem comum jaacute que este natildeo exige nem uma perfeiccedilatildeo segundo a natureza nem visa a coibir todos os viacutecios Quanto ao segundo modo de necessidade parece evidente que a caridade eacute necessaacuteria pois com a sua correccedilatildeo podemos chegar ao bem viver de forma melhor e mais completa Tendo presentes estes conceitos fundantes passemos a aplicaacute-los agrave eacutetica tal como concebida por Tomaacutes 33 A CONCEPCcedilAtildeO TOMASIANA DA EacuteTICA

No opuacutesculo Quaestiones disputatae De Virtutibus que data da mesma eacutepoca do Comentaacuterio agrave Eacutetica portanto entre 1271 e 1272 mdash ao disputar sobre as virtudes cardeais ou seja a prudecircncia a justiccedila a fortaleza e a temperanccedila mdash Tomaacutes afirma serem elas

31 Idem Ibidem I-II 96 3 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoNon tamen de omnibus actibus omnium virtutum lex humana praecipit sed solum de illis qui sunt ordinabiles ad bonum commune vel immediate sicut cum aliqua directe propter bonum commune fiunt vel mediate sicut cum aliqua ordinantur a legislatore pertinentia ad bonam disciplinam per quam cives informantur ut commune bonum iustitiae et pacis conserventrdquo 32 Idem Ibidem III 1 2 C ldquoRespondeo dicendum quod ad finem aliquem dicitur aliquid esse necessarium dupliciter uno modo sine quo aliquid esse non potest sicut cibus est necessarius ad conservationem humanae vitae alio modo per quod melius et convenientius pervenitur ad finem sicut equus necessarius est ad iterrdquo

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ditas cardeais porque satildeo como a dobradiccedila que gira uma porta no sentido de que eacute por meio do exerciacutecio delas que o homem eacute como que introduzido no humano isto eacute numa vida condizente com a sua natureza enquanto tal Aquino daacute tal valecircncia a estas virtudes morais que diz ser a vida praacutetica qual seja a vida moral mdash na qual elas como que nos entronizam mdash a vida propriamente humana sendo a vida que se apega unicamente aos sentidos bestial e a vida contemplativa sobre-humana Vemos aqui que o Aquinate com a analogia da dobradiccedila que gira uma porta aproxima-se muito da metaacutefora do ἤθος (ḗthos) como a casa do homem bem como de uma concepccedilatildeo da ἠθική (ēthikḗ) como a ciecircncia do eacutethos Em outros termos Tomaacutes concebe que a eacutetica tenha de forma irrevogaacutevel uma face humana destinada agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica Tomemos as palavras do proacuteprio autor

Respondo dizendo que ldquocardealrdquo se diz da dobradiccedila na qual se gira a porta [] Por isso se chamam virtudes cardeais aquelas nas quais se fundam a vida humana pela qual se entra pela porta A vida humana poreacutem eacute a proporcionada ao homem No entanto em relaccedilatildeo ao homem se encontra primeiramente uma certa natureza sensitiva na qual coincide com a dos animais irracionais A razatildeo praacutetica que eacute proacutepria do homem se encontra conforme o seu grau e o intelecto especulativo que natildeo se encontra de modo perfeito no homem assim como se encontra nos anjos mas segundo uma certa participaccedilatildeo da alma Por isso a vida contemplativa natildeo eacute propriamente humana mas sobre-humana Contudo a vida voluptuosa que se apega aos bens sensiacuteveis natildeo eacute humana mas bestial Logo a vida propriamente humana eacute a vida ativa que consiste no exerciacutecio das virtudes morais E por isso satildeo chamadas propriamente de virtudes cardeais aquelas pelas quais de algum modo a vida moral se funda e se altera assim como em certos princiacutepios de tal vida33

33 TOMAacuteS DE AQUINO As Virtudes Morais Trad Paulo Faitanin Bernardo Veiga Satildeo Paulo Ecclesiae 2012 5 1 C [Os itaacutelicos satildeo nossos] ldquoRespondeo Dicendum quod cardinalis a cardine dicitur in quo ostium vertitur [] Unde virtutes cardinales dicuntur in quibus fundatur vita humana per quam in ostium introitur vita autem humana est quae est homini proportionata In hoc homine autem invenitur primo quidem natura sensitiva in qua convenit cum brutis ratio practica quae est homini propria secundum suum gradum et intellectus speculativus qui non

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Neste sentido pensamos poder afirmar que Tomaacutes permanece fiel ao ideal da eacutetica antiga inclusive da aristoteacutelica No nosso entendimento a leitura da eacutetica aristoteacutelica pelo Aquinate corresponde por assim dizer ao exerciacutecio que ele empreende para girar a dobradiccedila da porta que o possibilita adentrar na casa do homem a qual tem o seu alicerce exatamente nas virtudes cardeais as principais virtudes relacionadas agrave vida eacutetica Mas qual eacute o papel da razatildeo na formulaccedilatildeo da eacutetica tomasiana 34 O PAPEL DA RAZAtildeO DA LINGUAGEM E DA LEI NA EacuteTICA TOMASIANA

A razatildeo faculta ao homem a capacidade de ir aleacutem da simples ldquoemissatildeo de vozrdquo para a comunicaccedilatildeo pela palavra (verbum) pela linguagem (locutio) A falar com maacutexima exaccedilatildeo Tomaacutes distingue a palavra enquanto simples ldquoemissatildeo de vozrdquo do verbum que segundo o Aquinate eacute uma palavra dotada de significado Em passagem jaacute citada ele afirma ldquoA palavra [vox=voz] que natildeo eacute significativa natildeo pode ser chamada de verbo [verbum=palavra]rdquo34 Sendo pois a palavra [verbum] uma voz dotada de significado temos que a ldquosimples vozrdquo eacute uma peculiaridade dos seres vivos em geral mdash ldquo[] nenhum ente inanimado tem vozrdquo35 mdash enquanto a palavra (verbum) eacute exclusiva dos seres racionais Desta sorte na concepccedilatildeo de Aquino a palavra (verbum) eacute obra da razatildeo36 A partir desta visatildeo de razatildeo como a

perfecte in homine invenitur sicut invenitur in Angelis sed secundum quamdam participationem animae Ideo vita contemplativa non est proprie humana sed superhumana vita autem voluptuosa quae inhaeret sensibilibus bonis non est humana sed bestialis Vita ergo proprie humana est vita activa quae consistit in exercitio virtutum moralium et ideo proprie virtutes cardinales dicuntur in quibus quodammodo vertitur et fundatur vita moralis sicut in quibusdam principiis talis vitae []rdquo 34 Idem Suma Teoloacutegica I 34 1 C ldquoVox autem quae non est significativa verbum dici non potestrdquo 35 TOMAacuteS DE AQUINO Sentencia De anima Lib 2 18 n 1 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcan2htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoNullum autem inanimatum habet vocemrdquo 36 Idem Suma Teoloacutegica I 34 1 C Sic igitur primo et principaliter interior mentis conceptus verbum dicitur secundario vero ipsa vox interioris conceptus significativa []rdquo ldquoVerbo

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capacidade de se expressar de forma significativa pensamos que a conceptualidade filosoacutefica da eacutetica tomasiana recupera mdash a seu modo mdash o fundamento da eacutetica aristoteacutelica Mesmo os leitores mais tradicionais de Tomaacutes reconhecem que a linguagem desempenha um papel preponderante no seu pensamento poliacutetico ldquoMas o sinal mais evidente da natureza social do homem eacute a faculdade de exprimir as suas ideias aos outros homens por meio da linguagemrdquo37 No De Regno Tomaacutes afirma ter sido a linguagem o fator fundante da vida poliacutetica

Isto se patenteia com muita evidecircncia no ser proacuteprio do homem usar da linguagem pela qual pode exprimir totalmente a outrem o seu conceito [] Eacute pois o homem mais comunicativo que qualquer outro animal gregaacuterio como o grou a formiga e a abelha38

Porro comentando esta passagem natildeo deixa duacutevidas ldquoA

comunidade poliacutetica fundamenta-se tambeacutem na linguagem pois o homem eacute absolutamente o animal lsquomais comunicativorsquordquo 39 Destarte pela razatildeo o homem torna-se capaz de dizer o que eacute bem e o que eacute mal de distinguir as accedilotildees justas das injustas Poreacutem exatamente por esta razatildeo ser comunicaacutevel estaacute inscrita na proacutepria natureza humana que a consecuccedilatildeo destes valores mdash bemmal justoinjusto mdash soacute se pode dar em comunhatildeo com outros

[verbum=palavra] portanto significa primeira e principalmente o conceito interior da mente Em segundo lugar a palavra que exprime o conceito interiorrdquo 37 COPLESTON Frederick Storia della Filosofia Vol II La Filosofia Medioevale da Agostino a Escoto Trad A Balestrieri Sacchi Rev Enzo Maccagnolo Brescia Paideia 1971 p 524 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoMa il segno piugrave evidente della natura sociale dellrsquouomo egrave la facoltagrave di esprimere le sue idee ad altri uomini per mezzo del linguaggiordquo 38 TOMAacuteS DE AQUINO Do reino ou do governo dos priacutencipes ao Rei de Chipre Trad Arlindo Veiga dos Santos Rev Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento I II In Escritos Poliacuteticos de Santo Tomaacutes de Aquino Rio de Janeiro Vozes 1997 (Claacutessicos do pensamento poliacutetico) p 127 ldquoHoc etiam evidentissime declaratur per hoc quod est proprium hominis locutione uti per quam unus homo aliis suum conceptum totaliter potest exprimere [] Magis igitur homo est communicativus alteri quam quodcumque aliud animal quod gregale videtur ut grus formica et apisrdquo 39 PORRO Tomaacutes de Aquino Um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 209

164 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino homens De sorte que o discernimento do que eacute justo e do que eacute injusto deve ser celebrado quando os homens comungam da vida uns dos outros Eacute assim que nasce a civitas No Comentaacuterio agrave Poliacutetica Tomaacutes argumenta

Vemos com efeito que se certos animais tecircm a voz ou o grito apenas o homem tem a linguagem (locutio) [] A palavra humana serve para significar o que eacute uacutetil e o que eacute nocivo e tambeacutem o justo e o injusto Justiccedila e injusticcedila consistem em que alguns se ajustam ou natildeo em mateacuteria de utilidade ou de nocividade A palavra eacute pois proacutepria aos homens porque em comparaccedilatildeo aos animais lhes eacute proacuteprio ter o conhecimento do bem e do mal do justo e do injusto e de outras realidades desse gecircnero que podem ser significadas pela palavra (sermo)40

Uma vez que a palavra foi dada ao homem pela natureza e uma vez que ela eacute ordenada a permitir a ldquocomunicaccedilatildeordquo entre os homens em mateacuteria de utilidade e nocividade de justiccedila e de injusticcedila e de outros valores semelhantes segue-se mdash dado que a natureza nada faz em vatildeo mdash que eacute natural aos homens ldquocomunicarrdquo entre si sobre essas realidades Ora eacute precisamente a ldquocomunicaccedilatildeordquo nesses valores que constitui a famiacutelia e a cidade o homem eacute pois por natureza um ser domeacutestico e poliacutetico41

Nem podemos dizer que esta seja uma posiccedilatildeo que o

Aquinate assume enquanto comentarista de Aristoacuteteles jaacute que ele a

40 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia libri Politicorum Lib 1 1 n 28 e 29 In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 336 ldquoVidemus enim quod cum quaedam alia animalia habeant vocem solus homo supra alia animalia habeat loquutionem [] Sed loquutio humana significat quid est utile et quid nocivum Ex quo sequitur quod significet iustum et iniustum Consistit enim iustitia et iniustitia ex hoc quod aliqui adaequentur vel non aequentur in rebus utilibus et nocivis Et ideo loquutio est propria hominibus quia hoc est proprium eis in comparatione ad alia animalia quod habeant cognitionem boni et mali ita et iniusti et aliorum huiusmodi quae sermone significari possuntrdquo 41 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia libri Politicorum Lib 11 n 29 In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 336 ldquoCum ergo homini datus sit sermo a natura et sermo ordinetur ad hoc quod homines sibiinvicem communicent in utili et nocivo iusto et iniusto et aliis huiusmodi sequitur ex quo natura nihil facit frustra quod naturaliter homines in his sibi communicent Sed communicatio in istis facit domum et civitatem Igitur homo est naturaliter animal domesticum et civilerdquo

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retoma em suas obras de siacutentese Na Summa Contra Gentiles ele define que ldquo[] o homem eacute naturalmente animal poliacutetico e socialrdquo 42 Mas tentemos aprofundar o que buscamos dizer Quando Tomaacutes pensa na lei por exemplo ele a pensa como regra e medida dos atos humanos43 afirmando que esta regra estaacute na razatildeo ldquoA regra e a medida dos atos humanos eacute com efeito a razatildeo []rdquo44 E diz mais ao afirmar que a razatildeo eacute ldquo[] o primeiro princiacutepio dos atos humanos []rdquo45 Noutro lugar mdash depois de destacar que no homem se encontram muitas coisas mdash sublinha que ldquoA razatildeo no homem ocupa o lugar do que domina e natildeo do que estaacute submetido agrave dominaccedilatildeordquo46 Entretanto haacute mais Ao propugnar que a razatildeo eacute a regra dos atos humanos discrimina tambeacutem o que de especiacutefico a razatildeo dita ao homem E entre outras coisas a razatildeo dita ao homem ldquo[] que viva em sociedade [] que natildeo ofenda aqueles com os quais deve conviver []rdquo47

Todavia o Aquinate natildeo para por aiacute Quando deseja definir qual eacute a obra proacutepria da razatildeo assinala de forma coerente ldquo[] a linguagem obra proacutepria da razatildeo []rdquo48 Desta sorte se a regra dos atos humanos eacute a razatildeo sendo a obra proacutepria dela a linguagem isto eacute a capacidade de comunicaccedilatildeo e por conseguinte de criar comunhatildeo entre os homens torna-se claro que o que a razatildeo nos ordena de mais proacuteprio eacute viver em comunidade Logo qualquer ordenaccedilatildeo ulterior da razatildeo ou seja qualquer lei ldquo[] por primeiro e principalmente visa a ordenaccedilatildeo ao bem

42 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios III LXXXV 10 [2607] ldquoHomo naturaliter est animal politicum vel sociale []rdquo 43 Idem Suma Teoloacutegica I-II 90 1 C ldquo[] lex quaedam regula est et mensura actuum []rdquo 44 Idem Ibidem ldquoRegula autem et mensura humanorum actuum est ratio []rdquo 45 Idem Ibidem ldquoPrimum principium actuum humanorum []rdquo 46 Idem Ibidem I 96 2 C ldquoRatio autem in homine habet locum dominantis et non subiecti dominiordquo 47 Idem Ibidem I-II 94 2 C ldquo[] quod in societate vivat [] quod alios non offendat cum quibus debet conversari []rdquo 48 Idem Ibidem I 91 3 ad 3 ldquo[] locutionem quae est proprium opus rationis []rdquo

166 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino comumrdquo49 De acordo com Tomaacutes ldquoComo pois cada homem eacute parte da cidade eacute impossiacutevel que um homem seja bom a menos que seja bem proporcionado ao bem comum []rdquo50 Assim toda lei soacute tem valor de lei se for instituiacuteda pela multidatildeo ou por quem a representa Neste sentido se o legislador for um deacutespota ldquoDeve-se dizer que a lei tiracircnica uma vez que natildeo eacute segundo a razatildeo natildeo eacute simplesmente lei mas antes certa perversidade da leirdquo51 Em outras palavras soacute pode haver lei quando ela eacute constituiacuteda pela comunicaccedilatildeo da linguagem vale dizer pela comunhatildeo de valores que nasce desta comunicaccedilatildeo Diz Tomaacutes

Ordenar poreacutem algo para o bem comum eacute ou de toda a multidatildeo ou de algueacutem que faz as vezes de toda a multidatildeo E assim constituir a lei ou pertence a toda a multidatildeo ou pertence agrave pessoa puacuteblica que tem o cuidado de toda a multidatildeo52

Abbagnano ao comentar esta passagem da Suma afirma

ldquoSanto Tomaacutes desta forma explicitamente afirmou a origem popular das leisrdquo53 Aliaacutes o proacuteprio Tomaacutes acena para isso

Se com efeito eacute uma multidatildeo livre que pode fazer-se a lei o consenso de toda a multidatildeo para algo a observar-se que o costume manifesta eacute mais do que a autoridade do priacutencipe que

49 Idem Ibidem I-II 90 3 C ldquo[] primo et principaliter respicit ordinem ad bonum commune []rdquo 50 Idem Ibidem I-II 92 1 ad 3 ldquoCum igitur quilibet homo sit pars civitatis impossibile est quod aliquis homo sit bonus nisi sit bene proportionatus bono communi []rdquo 51 Idem Ibidem I-II 92 1 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod lex tyrannica cum non sit secundum rationem non est simpliciter lex sed magis est quaedam perversitas legisrdquo 52 Idem Ibidem I-II 90 3 C ldquoOrdinare autem aliquid in bonum commune est vel totius multitudinis vel alicuius gerentis vicem totius multitudinis Et ideo condere legem vel pertinet ad totam multitudinem vel pertinet ad personam publicam quae totius multitudinis curam habet Quia et in omnibus aliis ordinare in finem est eius cuius est proprius ille finisrdquo 53 ABBAGNANO Nicola Storia della Filosofia La Filosofia Antica la Patristica e la Escolastica Torino UTET Libreria 2003 p 581 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoS Tommaso ha cosiacute esplicitamente affermato lrsquoorigine popolare delle leggirdquo

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natildeo tem poder de fazer a lei a natildeo ser enquanto gere a pessoa da multidatildeo54

Contudo podemos nos perguntar no caso de transferir

para o priacutencipe a missatildeo de legislar a multidatildeo natildeo se estaacute alienando da sua missatildeo proacutepria De modo algum Urge que entendamos ao menos em suas linhas gerais como Tomaacutes pensa o governo Natildeo se tem duacutevida de que para ele havendo acomodaccedilatildeo para tanto o governo de um soacute eacute o melhor de todos os regimes Poreacutem o governo de um soacute natildeo significa pura e simplesmente que somente uma pessoa venha a deter todo o poder55 Antes a autoridade constituiacuteda (o priacutencipe ou o rei) natildeo pode assegurar o bem comum do povo sem o povo Por conseguinte eacute de suma importacircncia que aquele que governa junte a si mdash de todas as partes do corpo social mdash os que possam conjuntamente colaborar na busca do bem comum Ora isto leva o Aquinate a optar na verdade por uma espeacutecie de regime misto como o melhor

O priacutencipe rei ou de qualquer modo que se o designe natildeo pode assegurar o bem comum do povo senatildeo apoiando-se nele Por conseguinte deve buscar a colaboraccedilatildeo de todas as forccedilas sociais para o bem comum para dirigi-las e uni-las Daiacute nasce o que o mesmo Santo Tomaacutes denomina um ldquoregime bem dosadordquo que eacute o que considera melhor56

54 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 97 3 ad 3 ldquoSi enim sit libera multitudo quae possit sibi legem facere plus est consensus totius multitudinis ad aliquid observandum quem consuetudo manifestat quam auctoritas principis qui non habet potestatem condendi legem nisi inquantum gerit personam multitudinisrdquo 55 GILSON Eacutetienne Introduccioacuten a La Filosofiacutea de Santo Tomaacutes de Aquino Trad Alberto Oteiza Quirno Buenos Aires Ediciones Descleacutee de Brouwer 1951 pp 458-459 ldquoPor lo dicho debemos entender que el mejor de los regiacutemenes poliacuteticos es el que somete el cuerpo social al gobierno de uno solo pero no que el mejor reacutegimen sea el gobierno del Estado por uno solordquo ldquoPelo que foi dito devemos entender que o melhor dos regimes poliacuteticos eacute o que submete o corpo social ao governo de um soacute poreacutem natildeo que o melhor regime seja o governo do Estado por um soacuterdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 56 Idem Ibidem p 459 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEl priacutencipe rey o de cualquier modo con que se lo designe no puede asegurar el bieacuten comuacuten del pueblo sino apoyaacutendose en eacutel Por conseguiente debe buscar la colaboracioacuten de todas as fuerzas sociales para el bien comuacuten para dirigirlas y unirlasrdquo Assim fica esclarecido que Tomaacutes nunca defendeu uma monarquia no sentido moderno do termo Longe dele por exemplo defender uma monarquia absolutista fundada no direito de sangue Idem

168 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Mas como este regime misto funcionaria Duas coisas seriam necessaacuterias para o seu bom funcionamento a primeira conforme jaacute referimos eacute que todos os cidadatildeos de alguma forma participem da autoridade A segunda consiste em determinar o modo adequado segundo o qual se deve distribuir esta mesma autoridade Tal distribuiccedilatildeo deve ser feita consoante a virtude Assim sendo o proacuteprio rei ou priacutencipe seria eleito como cabeccedila de todo o corpo segundo a sua virtude Abaixo dele e igualmente conforme as suas virtudes seriam eleitos tambeacutem alguns chefes Mas o fato de apenas alguns participarem diretamente da autoridade natildeo excluiria tampouco o resto do povo do governo pois estes chefes poderiam ser escolhidos dentre o povo e pelo povo57

Eis em suas linhas gerais qual seria o melhor regime para Tomaacutes porque conteacutem mdash ldquobem dosadordquo mdash o melhor de cada um dos regimes justos Da monarquia o fato de que um soacute preside Da aristocracia porque o povo tambeacutem delega certo poder a alguns cidadatildeos de acordo com as suas virtudes Da democracia porque estes deputados a chefes do povo satildeo eleitos dentre o povo e pelo

Ibidem ldquoEste reacutegimen no se parece en nada a las monarquiacuteas absolutas fundadas en el derecho de la sangre que han pretendido a veces justificarse en la autoridad de Santo Tomaacutes de Aquinordquo ldquoEste regime natildeo se parece em nada com as monarquias absolutistas fundadas no direito de sangue que pretenderam agraves vezes justificar-se na autoridade de Santo Tomaacutesrdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 57 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 105 1 C ldquoRespondeo dicendum quod circa bonam ordinationem principum in aliqua civitate vel gente duo sunt attendenda Quorum unum est ut omnes aliquam partem habeant in principatu per hoc enim conservatur pax populi et omnes talem ordinationem amant et custodiunt [] Aliud est quod attenditur secundum speciem regiminis vel ordinationis principatuum [] Unde optima ordinatio principum est in aliqua civitate vel regno in qua unus praeficitur secundum virtutem qui omnibus praesit et sub ipso sunt aliqui principantes secundum virtutem et tamen talis principatus ad omnes pertinet tum quia ex omnibus eligi possunt tum quia etiam ab omnibus eligunturrdquo ldquoDuas coisas devem ser consideradas acerca da boa ordenaccedilatildeo dos priacutencipes numa cidade ou povo Uma das quais eacute que todos tenham alguma parte no principado Com efeito por meio disso conserva-se a paz do povo e todos amam e guardam tal ordenaccedilatildeo [] Outra coisa eacute o que se considera segundo a espeacutecie de regime ou de ordenaccedilatildeo dos priacutencipes [] Donde a melhor ordenaccedilatildeo dos priacutencipes numa cidade ou reino eacute aquela na qual um eacute posto como chefe com poder o qual a todos preside e sob o mesmo estatildeo todos os que governam com poder e assim tal principado pertence a todos quer porque podem ser escolhidos dentre todos quer porque tambeacutem satildeo escolhidos por todosrdquo [Os itaacutelicos satildeo nossos]

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povo58 Assim o fato de o povo eleger o rei ou o priacutencipe natildeo o aliena da missatildeo de legislar

Eacute preciso ratificar ainda que Tomaacutes de Aquino natildeo eacute um ldquoconvencionalistardquo Ele admite como temos visto que haacute uma lei natural uma lei racional comum a todos os homens O que queremos frisar eacute que ele natildeo deixa de defender tambeacutem que esta lei soacute pode ser descoberta pelos homens quando eles comungam da vida uns dos outros e instituem leis pela mediaccedilatildeo da linguagem (locutio) obra proacutepria da ratio Dito de outro modo pela ldquolocutiordquo daacute-se um exerciacutecio da ldquorazatildeo praacuteticardquo que nos faz chegar por deduccedilatildeo agraves disposiccedilotildees mais particulares da lei natural que satildeo justamente as leis humanas conforme atesta o proacuteprio Aquinate

[] assim tambeacutem dos preceitos da lei natural como de alguns princiacutepios comuns e indemonstraacuteveis eacute necessaacuterio que a razatildeo humana proceda para dispor mais particularmente algumas coisas E estas disposiccedilotildees particulares descobertas segundo a razatildeo humana dizem-se leis humanas []59

Natildeo obstante a lei precise ainda de outros requisitos para

ser efetivada como lei humana este eacute o seu cerne um movimento pelo qual os homens pela mediaccedilatildeo da linguagem descobrem juntos atraveacutes do exerciacutecio das virtudes e do raciociacutenio alguns valores dos quais podem comungar porque inerentes agrave sua natureza Reacutemi Brague ao lidar com estas passagens conclui que a lei natildeo nasce como algo imposto ao homem de fora mas sim como

58 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 105 1 C ldquoTalis enim est optima politia bene commixta ex regno inquantum unus praeest et aristocratia inquantum multi principantur secundum virtutem et ex democratia idest potestate populi inquantum ex popularibus possunt eligi principes et ad populum pertinet electio principumrdquo ldquoTal eacute com efeito o melhor governo bem combinado de reino enquanto um soacute preside de aristocracia enquanto muitos governam com poder e de democracia isto eacute com o poder do povo enquanto os priacutencipes podem ser eleitos dentre as pessoas do povo e ao povo pertence a eleiccedilatildeo dos priacutencipesrdquo 59 Idem Ibidem I-II 91 3 C ldquo[] ita etiam ex praeceptis legis naturalis quasi ex quibusdam principiis communibus et indemonstrabilibus necesse est quod ratio humana procedat ad aliqua magis particulariter disponenda Et istae particulares dispositiones adinventae secundum rationem humanam dicuntur leges humanae []rdquo

170 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino algo que lhe eacute proposto pela vivecircncia em comum e pela atividade da ldquoratiordquo que ele assume como seu no dinamismo razatildeovontade

Mas em toda a extensatildeo do termo [ratio] fica uma ideacuteia de uma capacidade de tornar seu de se apropriar do que eacute dado Podemos nos inserir numa ordem e natildeo nos submeter a ela apenas podemos compreender uma forma de agir e natildeo imitaacute-la servilmente apenas E em contrapartida essa ratio diz Tomaacutes eacute proposita agrave criatura racional Podemos traduzir esta palavra por ldquopropostardquo mas desde que se entenda como ldquoposta peranterdquo em todo caso natildeo imposta pelo alto60

Ora eacute este exerciacutecio racional precipuamente que leva a

ato o habitus natural dos primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica que Tomaacutes denomina sindeacuterese

Por conseguinte os princiacutepios da ordem da accedilatildeo de que somos dotados naturalmente natildeo pertencem a uma potecircncia especial mas a um haacutebito natural especial que chamamos sindeacuterese Por isso se diz que a sindeacuterese incita ao bem e condena o mal na medida em que noacutes mediante os primeiros princiacutepios buscamos descobrir e julgamos o que encontramos61

E o ato do habitus da sindeacuterese que se daacute de forma

privilegiada quando os homens pelo raciociacutenio descobrem que alguns valores satildeo intriacutensecos agrave sua natureza eacute denominado por Tomaacutes consciecircncia ldquoMas pelo fato de o habitus ser princiacutepio do ato agraves vezes se atribui o nome de consciecircncia ao primeiro haacutebito natural isto eacute agrave sindeacutereserdquo62 Na verdade eacute deste exerciacutecio que

60 BRAGUE Reacutemi A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila Trad Luacutecia Pereira de Souza Rev Sandra G Custoacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2009 p 291 61 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 79 12 C ldquoUnde et principia operabilium nobis naturaliter indita non pertinent ad specialem potentiam sed ad specialem habitum naturalem quem dicimus synderesim Unde et synderesis dicitur instigare ad bonum et murmurare de malo inquantum per prima principia procedimus ad inveniendum et iudicamus inventardquo 62 Idem Ibidem I 79 13 C ldquoQuia tamen habitus est principium actus quandoque nomen conscientiae attribuitur primo habitui naturali scilicet synderesi []rdquo

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acabamos de tentar descrever que nasce a civitas e o conceito de beatitude natural no Aquinate Mas antes de passarmos ao proacuteximo toacutepico importa esclarecermos um ponto 341 EacuteTICA DAS VIRTUDES E LEI NATURAL

Estamos a falar de uma eacutetica das virtudes ou de uma eacutetica dos princiacutepios de obrigaccedilatildeo do direito natural A questatildeo faz sentido mas eacute preciso ponderar que talvez esta natildeo seja a sua melhor formulaccedilatildeo A pergunta correta seria a uma eacutetica das virtudes opotildee-se a existecircncia de uma lei natural A princiacutepio de fato parece mesmo que a lei nos eacute imposta de fora Nesta direccedilatildeo diz Tomaacutes ldquoJaacute o princiacutepio que move exteriormente ao bem eacute Deus que nos instrui pela lei []rdquo63 Poreacutem o que eacute a lei A lei jaacute pudemos constatar ldquo[] eacute algo que pertence agrave razatildeordquo64 Ora a razatildeo eacute o que especifica a natureza humana Assim tanto a virtude quanto a lei natural dispotildeem-nos a seguir a nossa natureza Neste sentido a lei natural natildeo nos eacute imposta de fora nem nos eacute dada de uma soacute vez como um decaacutelogo inscrito em ldquotaacutebuas de pedrardquo Ela se quisermos permanecer na imagem biacuteblica estaacute inscrita em ldquotaacutebuas de carnerdquo a saber em nossos ldquocoraccedilotildeesrdquo

O homem natildeo eacute apenas capaz de conhecer a lei moral natural como lei de seu dever mas essa mesma lei o obriga tambeacutem de uma maneira racionalmente fundamentada a estar ativamente soliacutecito de si e de seu proacuteximo A razatildeo humana eacute assim a faculdade propriamente legisladora do homem ela estaacute na origem do dever Nenhuma espeacutecie de obrigaccedilatildeo pode ser

63 Idem Ibidem I-II 90 ldquoPrincipium autem exterius movens ad bonum est Deus qui et nos instruit per legem []rdquo A traduccedilatildeo de ldquoinstruitrdquo por ldquoinstruirdquo eacute equiacutevoca e induz a erro BRAGUE A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila p 289 ldquoPela lei Deus nos instruit (latim) o que de forma alguma deve ser traduzido em francecircs pelo falso cognato lsquoinstruirsquo mas por lsquoprovecircrsquo natildeo se trata de ensinar aos homens o que eles devem fazer mas de provecirc-los de instrumentos para que possam fazecirc-lordquo [O itaacutelico eacute nosso] 64 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 90 1 C ldquoUnde relinquitur quod lex sit aliquid pertinens ad rationemrdquo

172 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

imposta ao homem que natildeo seja ditada por sua razatildeo pois o dever moral fundamenta-se exclusivamente numa intuiccedilatildeo interior e natildeo numa ordem imposta de fora Num vago paralelo com o conceito kantiano de razatildeo praacutetica pode-se falar aqui de uma autonomia moral da razatildeo mas sem esquecer que em teologia o ponto de partida eacute a ordem da criaccedilatildeo e que para Tomaacutes de Aquino o fundamento uacuteltimo se entende com base na Sabedoria divina65

Ora descobrimos as leis da nossa razatildeo quando esta

conhece as suas proacuteprias regras captando-as na experiecircncia da vida virtuosa bem como no ldquocoloacutequiordquo com os nossos coetacircneos e com aqueles que nos precederam ldquoCom efeito quando se trata de accedilotildees e paixotildees humanas em que a experiecircncia vale mais que tudo os exemplos movem mais que as palavrasrdquo66 Por isso Tomaacutes afirma que ldquo[] tambeacutem pelos atos maximamente multiplicados que constituem o costume pode a lei ser mudada e expostardquo67 Isto nos faz perceber que o Aquinate natildeo tem um conceito de todo estaacutetico da lei mas dinacircmico Muitas coisas foram e podem na lida com a experiecircncia humana ser acrescidas agrave lei ldquo[] muitas coisas com efeito foram acrescentadas agrave lei natural uacuteteis para a vida humana tanto pela lei divina quanto tambeacutem pelas leis humanasrdquo68 Natildeo soacute mas no tempo que inexoravelmente corre esta lei mdash salvo em seus princiacutepios primeiros e incoerciacuteveis mdash pode tambeacutem ser olvidada pelos homens

65 LEacuteCRIVAIN Ph SESBOUumlEacute Bernard [et al] Histoacuteria dos Dogmas O homem e sua Salvaccedilatildeo Trad Orlando Soares Moreira Rev Sheila Tonon Fabre e Cristina Peres 3 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 v 2 p 463 66 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 34 1 C ldquoIn operationibus enim et passionibus humanis in quibus experientia plurimum valet magis movent exempla quam verbardquo 67 Idem Ibidem I-II 97 3 C ldquoUnde etiam et per actus maxime multiplicatos qui consuetudinem efficiunt mutari potest lex et exponi []rdquo 68 Idem Ibidem I-II 94 5 C ldquoEt sic nihil prohibet legem naturalem mutari multa enim supra legem naturalem superaddita sunt ad humanam vitam utilia tam per legem divinam quam etiam per leges humanasrdquo

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Quanto poreacutem aos outros preceitos segundos pode a lei natural ser destruiacuteda dos coraccedilotildees dos homens ou por causa das maacutes persuasotildees do mesmo modo como no especulativo acontecem os erros a respeito das conclusotildees necessaacuterias ou tambeacutem em razatildeo dos costumes depravados e haacutebitos corruptos como entre alguns natildeo se reputavam pecados os latrociacutenios ou tambeacutem os viacutecios contra a natureza []69

De tudo quanto jaacute dissemos decorre qual corolaacuterio

espontacircneo que o fundamento da eacutetica tomasiana eacute a experiecircncia da virtude Em outros termos natildeo satildeo as leis que fundam o cataacutelogo das accedilotildees virtuosas ao contraacuterio eacute a vivecircncia das virtudes que permite ao homem reconhecer a lei da sua natureza e codificaacute-la O ato virtuoso portanto natildeo significa pura e simplesmente seguir os ditames de um coacutedigo mas agir de acordo com a proacutepria natureza no parto que eacute o ato livre70 Se natildeo houvesse accedilotildees virtuosas que fossem expressotildees da lei natural natildeo haveria como reconhecer com clareza os ditames da nossa natureza A assertiva de Tomaacutes quanto ao conhecimento da lei natural portanto natildeo difere da sua teoria do conhecimento a qual comeccedila sempre com a

69 Idem Ibidem I-II 94 6 C ldquoQuantum vero ad alia praecepta secundaria potest lex naturalis deleri de cordibus hominum vel propter malas persuasiones eo modo quo etiam in speculativis errores contingunt circa conclusiones necessarias vel etiam propter pravas consuetudines et habitus corruptos []rdquo 70 Klaus Demmer em sua Introduccedilatildeo agrave Teologia Moral afirma que soacute o ato livre personifica os valores no sentido de que soacute ele torna aquela norma por assim dizer propriedade de quem a pratica e por conseguinte expressatildeo de sua liberdade Com o ato livre proacuteprio da pessoa a regra eacute assimilada a um ldquoeurdquo o ditame ganha um caraacuteter extraordinaacuterio torna-se se assim pudermos expressar-nos imprevisiacutevel justamente porque livre DEMMER Klaus Introduccedilatildeo agrave Teologia Moral Trad Pier Luigi Cabra Rev Sandra Garcia 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007 p 79 ldquoAs normas se satisfazem apenas agrave primeira vista com uma accedilatildeo ordinaacuteria enquanto as obras extraordinaacuterias encontram abundante espaccedilo na medida em que o indiviacuteduo se esforccedila para se tornar uma personalidade moral desenvolvendo uma fisionomia inconfundiacutevel que em sua relaccedilatildeo com a norma supera o mero cumprimento material e que eacute posta agrave prova sobretudo nas relaccedilotildees interpessoais Se a virtude natildeo chega a formar o coraccedilatildeo ela natildeo atinge seu objetivordquo Eacute pelo ato humano tal como tentamos descrever que a lei eacute reconhecida como inerente agrave natureza humana e eacute com a observaccedilatildeo dos atos humanos que uma lei natural pode vir a ser assumida como lei humana e positiva Natildeo eacute pois pela mera obrigaccedilatildeo que tomamos nota de que um ditame eacute uma lei ao contraacuterio eacute pela espontaneidade com o qual o ditame eacute cumprido no ato livre isto eacute no ato virtuoso que atestamos o seu valor E mesmo quando o ldquodeverrdquo se apresenta como um ldquodeverrdquo eacute somente quando eacute assumido livremente que temos um ato virtuoso

174 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino maacutexima de cunho aristoteacutelico ldquo[] todo o nosso conhecimento se origina a partir dos sentidosrdquo71 Dito de outro modo tambeacutem o nosso conhecimento da lei natural origina-se pela experiecircncia da vida virtuosa Tomaacutes noutro passo cita um exemplo

[] se aqueles que ensinavam que todos os prazeres satildeo maus fossem flagrados desfrutando de algum prazer os homens seriam levados mais ainda ao prazer pelo exemplo de seu comportamento deixando de lado a doutrina de suas palavras72

Aleacutem disso toda lei positiva soacute existe e tem razatildeo de ser

quando se baseia na lei natural a qual por sua vez eacute descoberta jaacute o sabemos pela nossa proacutepria experiecircncia das virtudes ou pela observaccedilatildeo dos que vivem ou viveram uma vida virtuosa Daiacute o Aquinate poder dizer acerca da lei humana ldquoSe contudo algo discorda da lei natural jaacute natildeo seraacute lei mas corrupccedilatildeo da leirdquo73 Fato eacute que o papel da lei no trato com a virtude eacute sempre ancilar porque se os legisladores soacute aprendem a legislar olhando para os exemplos e modelos de vida virtuosa a lei jaacute formulada tambeacutem pode e deve servir agrave virtude educando para ela isto eacute ensinando os homens enquanto os adestra aos atos virtuosos sendo enfim uma espeacutecie de propedecircutica que treina e prepara para a liberdade responsaacutevel Assinala Tomaacutes ldquoComo a virtude eacute lsquoaquela que torna bom quem a possuirsquo segue-se que o efeito proacuteprio da lei eacute tornar bons aqueles aos quais eacute dada []rdquo 74 MacIntyre observa justamente

71 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 9 C ldquo[] quia omnis nostra cognitio a sensu initium habetrdquo 72 Idem Ibidem I-II 34 1 C ldquo[] si illi qui docent omnes delectationes esse malas deprehendantur aliquas delectationes suscipere magis homines ad delectationes erunt proclives exemplo operum verborum doctrina praetermissardquo 73 Idem Ibidem I-II 95 2 C ldquoSi vero in aliquo a lege naturali discordet iam non erit lex sed legis corruptiordquo 74 Idem Ibidem I-II 92 1 C ldquoCum igitur virtus sit quae bonum facit habentem sequitur quod proprius effectus legis sit bonos facere eos quibus datur []rdquo

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Compreender a aplicaccedilatildeo de regras como parte do exerciacutecio das virtudes significa compreender o sentido de seguir as regras uma vez que se pode compreender o exerciacutecio das virtudes somente nos termos da funccedilatildeo que elas exercem na formaccedilatildeo do tipo de vida que eacute o uacutenico no qual se pode conseguir o telos humano As regras que satildeo os preceitos negativos da lei natural natildeo fazem mais que pocircr limites agravequele tipo de vida e desse modo soacute parcialmente definem o tipo de bondade ao qual aspirar Separadas de seu papel para a definiccedilatildeo e formaccedilatildeo de todo um modo de vida elas se tornam apenas uma seacuterie de proibiccedilotildees arbitraacuterias75

As regras satildeo necessaacuterias mas mdash observa MacIntyre mdash nenhuma espeacutecie de regra nem as negativas inviolaacuteveis nem as prescriccedilotildees positivas ldquopodem constituir sozinhas um guia suficiente para a accedilatildeordquo de modo que ldquosaber como agir virtuosamente implica sempre algo mais que simplesmente seguir uma regrardquo76

Eleonore Stump tambeacutem se pronunciou acerca da relaccedilatildeo

entre virtude e lei natural em Tomaacutes

Eacute um erro considerar a teoria tomasiana da eacutetica como construiacuteda sobre leis Antes de tudo embora a lei natural seja uma codificaccedilatildeo da eacutetica as leis natildeo fundam a eacutetica mas se limitam a exprimir o que se funda na natureza das coisas ou nos acordos convencionais entre os seres humanos Em segundo lugar o modo pelo qual Tomaacutes estrutura sua teoria eacutetica natildeo se funda em leis ou regras Ao contraacuterio satildeo as virtudes que constituem o princiacutepio que estrutura sua exposiccedilatildeo da eacutetica Aleacutem disso tambeacutem na descriccedilatildeo e anaacutelise das virtudes ele dedica pouquiacutessimo espaccedilo agraves regras que codificam aquelas virtudes ou prescrevem o modo pelo qual agiria uma pessoa virtuosa77

75 MACINTYRE A Three rival versions of moral enquiry Duckworth London 1990 p 139 In MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 68 76 MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 69 77 STUMP E Aquinas Routhedge London-New York 2003 pp 310-311 In MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 70 A lei humana conquanto natildeo seja uma sucedacircnea

176 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Anthony Kenny acredita que Tomaacutes supera a oposiccedilatildeo entre eacutetica das virtudes e lei natural e esta superaccedilatildeo estaacute no fato de que a lei eacute antes de tudo a natureza do homem a sua razatildeo e eacute descoberta pela proacutepria razatildeo quando a sua ordem inteligiacutevel torna-se palpaacutevel concretizada no dinamismo do ato livre

Tomaacutes de Aquino procura conciliar eacutetica aristoteacutelica com biacuteblica da maneira que se segue Para Aristoacuteteles eacute a razatildeo que fixa a meta da accedilatildeo e fornece o criteacuterio pelo qual as accedilotildees devem ser consideradas virtuosas ou viciosas na Biacuteblia o criteacuterio eacute estabelecido por um coacutedigo de leis Natildeo haacute nenhum conflito sustenta Tomaacutes de Aquino porque a lei eacute um produto da razatildeo78

Se entendermos que a lei natural prevecirc o exerciacutecio da razatildeo

para se estabelecer enquanto tal compreenderemos tambeacutem o

da virtude desempenha natildeo o negamos um papel importante em Tomaacutes a saber o de ser pedagoga A lei positiva pode ser uma forma didaacutetica de o homem aprender a reconhecer em seus atos aquilo que promove e aquilo que natildeo promove a sua natureza Eacute uma disciplina que faz o homem conhecer os seus proacuteprios limites E natildeo haacute nisso heteronomia alguma Satildeo intriacutensecos agrave lei o precircmio e o castigo Podemos entender melhor isso comparando o comportamento das coisas naturais com as humanas Naquelas as que observam a reta ordem alcanccedilam necessariamente a conservaccedilatildeo e as que a transgridem naturalmente sofrem a destruiccedilatildeo Pois bem entre os homens segue-se algo anaacutelogo somente que o castigo ou o precircmio satildeo estabelecidos e aplicados de acordo com a natureza humana a qual estaacute votada agrave liberdade Tem-se entatildeo que eacute um legislador quem deliberadamente impotildee a quem infringiu ou cumpriu a lei por meio de um ato voluntaacuterio o castigo ou o precircmio Assim nas coisas humanas natildeo haacute castigo ou precircmio senatildeo para quem tem consciecircncia de que estaacute sendo punido ou premiado em vista do restabelecimento ou permanecircncia da reta ordem Em outras palavras quem eacute punido eacute punido por natildeo ter seguido a lei da sua natureza E o precircmio natildeo eacute senatildeo apanaacutegio de quem seguiu a sua natureza Idem Suma Contra os Gentios III CXL 3 [3148] ldquoSicut igitur res naturales cum in eis debitus ordo naturalium principiorum et actionum servatur sequitur ex necessitate naturae conservatio et bonum in ipsis corruptio autem et malum cum a debito et naturali ordine receditur ita etiam in rebus humanis oportet quod cum homo voluntarie servat ordinem legis divinitus impositae consequatur bonum non velut ex necessitate sed ex dispensatione gubernantis quod est praemiari et e converso malum cum ordo legis fuerit praetermissus et hoc est punirirdquo ldquoAssim pois nas coisas naturais quando nelas eacute conservada a devida ordenaccedilatildeo dos princiacutepios naturais e das accedilotildees haacute necessariamente conservaccedilatildeo da natureza e do bem mas haveraacute corrupccedilatildeo e mal se forem desviadas do devido fim e da ordem natural Analogicamente tambeacutem nas coisas humanas quando o homem segue voluntariamente a ordenaccedilatildeo imposta pela lei divina eacute necessaacuterio que ele consiga o bem natildeo por necessidade mas pela dispensa do governante e isto eacute ser premiado mas em contraacuterio obteraacute o mal se a ordem da lei for desobedecida e isto eacute ser punidordquo 78 KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental Filosofia Medieval Trad Edson Bini Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 v 2 pp 300-301

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porquecirc de o direito natural natildeo excluir uma eacutetica das virtudes pois esta se fundamenta no ato livre que tem a sua raiz no juiacutezo racional acerca dos bens contingentes 342 EacuteTICA E DIREITO

Para Tomaacutes o justo consiste sempre numa certa relaccedilatildeo de igualdade que implica certa alteridade ldquo[] o direito ou o justo vem a ser uma obra ajustada a outrem segundo certo modo de igualdaderdquo79 Ora de dois modos pode-se estabelecer a igualdade na alteridade Primeiro pode a igualdade ser fundada na natureza mesma da coisa por exemplo quando dou uma importacircncia para receber o equivalente A isto chamamos direito natural80 O direito natural por sua vez apresenta uma subdivisatildeo Aplicando-se agravequilo que em virtude da sua proacutepria natureza eacute ajustado ou proporcional a outrem o direito natural eacute estabelecido pela proacutepria natureza Poreacutem para Tomaacutes e aqui estaacute o cerne do argumento uma coisa pode ser naturalmente justa a outrem de duas maneiras Em primeiro lugar em si mesma e absolutamente falando Assim o macho eacute naturalmente ajustado agrave fecircmea para dela gerar filhos e o pai ao seu filho para que o nutra81 Em segundo lugar diz-se que

79 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 57 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est ius sive iustum est aliquod opus adaequatum alteri secundum aliquem aequalitatis modumrdquo 80 Idem Ibidem II-II 57 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est ius sive iustum est aliquod opus adaequatum alteri secundum aliquem aequalitatis modum Dupliciter autem potest alicui homini aliquid esse adaequatum Uno quidem modo ex ipsa natura rei puta cum aliquis tantum dat ut tantundem recipiat Et hoc vocatur ius naturalerdquo ldquoComo jaacute foi dito o direito ou o justo vem a ser uma obra ajustada a outrem segundo certo modo de igualdade Ora isto pode realizar-se de duas maneiras 1 em virtude da natureza mesma da coisa Por exemplo se algueacutem daacute tanto para receber tanto isso se chama o direito naturalrdquo 81 Idem Ibidem II-II 57 3 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est ius sive iustum naturale est quod ex sui natura est adaequatum vel commensuratum alteri Hoc autem potest contingere dupliciter Uno modo secundum absolutam sui considerationem sicut masculus ex sui ratione habet commensurationem ad feminam ut ex ea generet et parens ad filium ut eum nutriatrdquo ldquoComo se disse o direito ou o justo natural eacute o que por natureza eacute ajustado ou proporcional a outrem Ora isso se pode dar de duas maneiras primeiro segundo a consideraccedilatildeo absoluta da coisa em si mesma Assim o macho por natureza estaacute adaptado agrave fecircmea para dela gerar filhos e o pai ao filho para que o nutrardquo

178 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino uma coisa eacute naturalmente ajustada agrave outra natildeo em si mesma mas tendo em conta certas consequecircncias Por exemplo o direito agrave propriedade privada Absolutamente falando um campo considerado unicamente em si mesmo estaacute destinado a todos os homens Todavia visto sob o ponto de vista do seu cultivo ele pertence propriamente agravequele que pode tornaacute-lo mais produtivo Destarte o direito agrave propriedade privada natildeo eacute um direito natural absoluto e em si mesmo82 Absolutamente falando natural eacute a destinaccedilatildeo universal dos bens No entanto a propriedade privada continua sendo tambeacutem um direito natural se se considera que tambeacutem eacute de direito natural aquilo que cai sob a consideraccedilatildeo da razatildeo que eacute parte da natureza humana Na verdade eacute exatamente isto que distingue o direito natural comum ao gecircnero animal isto eacute aos homens e aos demais animais do direito natural das gentes que eacute comum somente agrave espeacutecie humana Neste sentido sendo o homem um animal racional os bens que satildeo por ele queridos levando em conta a consideraccedilatildeo da razatildeo mdash que prevecirc as consequecircncias da utilizaccedilatildeo destes mesmos bens mdash tambeacutem pertencem ao direito natural Portanto o direito natural tambeacutem pressupotildee a observaccedilatildeo dos fatos e a intervenccedilatildeo da razatildeo

Ora apreender as coisas de maneira absoluta natildeo conveacutem apenas ao homem mas tambeacutem aos animais Eis por quecirc o direito chamado natural no primeiro sentido nos eacute comum a noacutes e aos animais [] Ora considerar alguma coisa confrontando-a com

82 Idem Ibidem ldquoAlio modo aliquid est naturaliter alteri commensuratum non secundum absolutam sui rationem sed secundum aliquid quod ex ipso consequitur puta proprietas possessionum Si enim consideretur iste ager absolute non habet unde magis sit huius quam illius sed si consideretur quantum ad opportunitatem colendi et ad pacificum usum agri secundum hoc habet quandam commensurationem ad hoc quod sit unius et non alterius []rdquo ldquoSegundo algo eacute naturalmente adaptado a outrem natildeo segundo a razatildeo absoluta da coisa em si mas tendo em conta as suas consequumlecircncias por exemplo a propriedade privada Com efeito a considerar tal campo de maneira absoluta nada tem que o faccedila pertencer a um indiviacuteduo mais do que a outro Poreacutem considerado sob o acircngulo da oportunidade de cultivaacute-lo ou de seu uso paciacutefico tem certa conveniecircncia que seja de um e natildeo de outro []rdquo

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suas consequumlecircncias eacute proacuteprio da razatildeo Portanto isso eacute natural ao homem segundo a razatildeo natural que dita esse proceder83

O segundo modo de se estabelecer a igualdade nas relaccedilotildees

entre os homens eacute por convenccedilatildeo o que ocorre por exemplo quando algueacutem dando uma coisa daacute-se por satisfeito ao receber outra Ora esta convenccedilatildeo tambeacutem pode ocorrer de dois modos A convenccedilatildeo ou o comum acordo pode dar-se entre duas pessoas privadas ou pode encerrar um caraacuteter social Entre duas pessoas em particular acontece quando elas estabelecem as regras de suas permutas Assim uma pessoa se daacute por satisfeita quando em troca de um produto que ela possui recebe determinado valor pecuniaacuterio A convenccedilatildeo assume um caraacuteter social quando o povo ou o priacutencipe que o representa estabelece que algo seja adequado e proporcional a outrem Pois bem este direito que se encontra fundado numa convenccedilatildeo eacute chamado direito positivo84 Sobre a

83 Idem Ibidem ldquoAbsolute autem apprehendere aliquid non solum convenit homini sed etiam aliis animalibus Et ideo ius quod dicitur naturale secundum primum modum commune est nobis et aliis animalibus Considerare autem aliquid comparando ad id quod ex ipso sequitur est proprium rationis Et ideo hoc quidem est naturale homini secundum rationem naturalem quae hoc dictatrdquo Eacute bem verdade por exemplo que todo mundo nasceu nu Por isso eacute um direito natural o homem ficar nu Contudo diz Tomaacutes a razatildeo humana que eacute parte da natureza humana inventou as vestes e a natureza nada diz de contraacuterio agraves vestes Por isso passou a ser um direito humano ter vestes apropriadas e natildeo precisar andar nu e nada haacute nisso de antinatural Idem Ibidem I-II 94 5 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod aliquid dicitur esse de iure naturali dupliciter Uno modo quia ad hoc natura inclinat sicut non esse iniuriam alteri faciendam Alio modo quia natura non induxit contrarium sicut possemus dicere quod hominem esse nudum est de iure naturali quia natura non dedit ei vestitum sed ars adinvenitrdquo ldquoDeve-se dizer que algo eacute dito de direito natural de dois modos De um modo porque a isso inclina a natureza como natildeo dever fazer injuacuteria a outrem De outro modo porque a natureza natildeo induziu ao contraacuterio como podemos dizer que estar o homem nu eacute de direito natural porque a natureza natildeo lhe deu a veste mas a arte inventourdquo 84 Idem Ibidem II-II 57 2 C ldquoAlio modo aliquid est adaequatum vel commensuratum alteri ex condicto sive ex communi placito quando scilicet aliquis reputat se contentum si tantum accipiat Quod quidem potest fieri dupliciter Uno modo per aliquod privatum condictum sicut quod firmatur aliquo pacto inter privatas personas Alio modo ex condicto publico puta cum totus populus consentit quod aliquid habeatur quasi adaequatum et commensuratum alteri vel cum hoc ordinat princeps qui curam populi habet et eius personam geritrdquo ldquo2 Por convenccedilatildeo ou comum acordo Por exemplo quando algueacutem se daacute por satisfeito de receber tanto O que se pode dar de dois modos primeiro por uma convenccedilatildeo particular quando pessoas privadas firmam entre si um pacto segundo por uma convenccedilatildeo puacuteblica quando todo o povo consente que algo seja tido como adequado ou proporcionado a outrem ou assim o ordena o priacutencipe que governa o povo e o representardquo

180 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino flexibilidade e a natureza dos acordos que acontecem no direito positivo esclarece Gilson

Dois homens podem entender-se para estabelecer que o gozo de uma propriedade valha certa quantidade de dinheiro todo um povo pode entender-se para fixar uma escala de preccedilos os representantes do povo ou o chefe do Estado podem fazecirc-lo com validez em seu nome Estas decisotildees criam relaccedilotildees de equivalecircncia mais flexiacuteveis que as de estrita igualdade natural o direito que se origina em virtude de tais convenccedilotildees se denomina ldquodireito positivordquo85

Eacute necessaacuterio afirmar por fim a primazia do direito natural

sobre o direito positivo Em que sentido se baseia esta primazia No sentido de que o direito positivo natildeo pode ser estabelecido em contradiccedilatildeo com o direito natural Por exemplo de nenhuma forma estaacute no poder dos homens tornar liacutecito mdash por qualquer convenccedilatildeo que seja mdash o roubo o adulteacuterio ou qualquer coisa intrinsecamente desordenada86 Mas vale lembrar que o direito natural natildeo se coloca sem a atividade racional

Estamos jaacute nos contornos que esboccedilam a possibilidade de uma eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes Tendo desfeito o cipoal que parecia contrapor uma eacutetica das virtudes agrave lei natural tomemos em consideraccedilatildeo o conceito de felicidade

85 GILSON Introduccioacuten a La Filosofiacutea de Santo Tomaacutes de Aquino p 426 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoDos hombres pueden entenderse para convenir que el goce de una propiedad valga cierta cantidad de dinero todo un pueblo puede entenderse para fijar una escala de precios los representantes del pueblo o el jefe de Estado pueden hacerlo con validez en su nombrerdquo 86 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 57 2 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod voluntas humana ex communi condicto potest aliquid facere iustum in his quae secundum se non habent aliquam repugnantiam ad naturalem iustitiam Et in his habet locum ius positivum Unde philosophus dicit [] Sed si aliquid de se repugnantiam habeat ad ius naturale non potest voluntate humana fieri iustum puta si statuatur quod liceat furari vel adulterium committere ldquoDeve-se dizer que a vontade humana por uma convenccedilatildeo comum pode tornar justa uma coisa entre aquelas que em nada se oponham agrave justiccedila natural [] Mas se algo de si mesmo se opotildee ao direito natural natildeo se pode tornar justo por disposiccedilatildeo da vontade humana Se por exemplo se decretasse que eacute liacutecito roubar ou cometer adulteacuteriordquo

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35 CIVITAS E BEATITUDO OU FELICITAS EM TOMAacuteS

Como toda eacutetica antiga tambeacutem a eacutetica medieval incluindo a de Tomaacutes satildeo fundadas na busca da εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) em latim beatitudo ou felicitas ldquoCom efeito o fim uacuteltimo do homem [] chama-se felicidade ou beatituderdquo 87 Tal eacute a importacircncia deste conceito que Lima Vaz afirma que da noccedilatildeo de beatitude depende a proacutepria possibilidade de uma leitura filosoacutefica da eacutetica medieval inclusive a tomasiana

A noccedilatildeo de beatitude herdada da Eacutetica claacutessica mas profundamente transformada segundo a tradiccedilatildeo agostiniana pela Revelaccedilatildeo cristatilde torna-se assim a noccedilatildeo matricial de toda a Eacutetica tomaacutesica ficando a depender da sua interpretaccedilatildeo os juiacutezos diversos que sobre ela tecircm sido propostos88

Ora o Aquinate distingue uma beatitude imperfeita que

pode ser alcanccedilada nesta vida mdash porque proporcionada agrave natureza humana mdash de uma beatitude perfeita que eacute a visatildeo de Deus e que natildeo pode ser alcanccedilada nesta vida nem sem a graccedila porque transcende a natureza humana89 Diz Tomaacutes ldquoDuas satildeo as bem-aventuranccedilas a imperfeita que se tem nesta vida e a perfeita que consiste na visatildeo de Deusrdquo90 E precisa noutro lugar

[] a felicidade ou bem-aventuranccedila humana eacute dupla uma eacute proporcional agrave natureza humana ou seja pode o homem consegui-la pelos princiacutepios de sua natureza a outra supera sua

87 Idem Suma Contra os Gentios III XXV 13 [2068] ldquoUltimus autem finis hominis et cuiuslibet intellectualis substantiae felicitas sive beatitudo nominatur []rdquo 88 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 220 89 Por exemplo se nos propuseacutessemos discorrer sobre a beatitude perfeita ou felicidade uacuteltima do homem teriacuteamos de afirmar com Tomaacutes que ela natildeo consiste nos atos das virtudes morais ou no ato da prudecircncia TOMAacuteS DE AQUINO Suma contra os gentios III XXXIV-XXXV Ela reside soacute na visatildeo de Deus face a face Idem Ibidem XXXVII 90 Idem Suma Teoloacutegica I-II 4 5 C ldquoRespondeo dicendum quod duplex est beatitudo una imperfecta quae habetur in hac vita et alia perfecta quae in Dei visione consistitrdquo

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natureza e soacute pode ser alcanccedilada por graccedila divina por certa participaccedilatildeo da divindade []91

Ao prever a existecircncia de uma beatitude imperfeita

consentacircnea agrave natureza humana e que por conseguinte pode ser alcanccedilada pelo homem nesta vida a partir dos princiacutepios de sua natureza Tomaacutes admite a nosso juiacutezo a possibilidade de uma eacutetica filosoacutefica no proacuteprio bojo de sua teologia moral Nas palavras do Aquinate

A bem-aventuranccedila imperfeita que nesta vida se pode ter o homem pode adquiri-la por seus dons naturais do mesmo modo que a virtude em cuja accedilatildeo ela consiste92

Falta dizer no entanto que esta beatitude imperfeita eacute

aquela que se daacute no acircmbito da civitas a qual em Tomaacutes natildeo eacute fruto do pecado mas procede da proacutepria natureza humana porque o homem eacute por natureza um animal poliacutetico Neste sentido a civitas mdash e o governo poliacutetico que lhe segue mdash existiriam mesmo sem o pecado O que natildeo existiria natildeo fosse o pecado mdash e o que pode existir agora mdash eacute a possibilidade de um governo tiracircnico O Frade de Roccasecca aponta para isso com clareza

Assim algueacutem domina a outro como livre quando o dirige para o proacuteprio bem daquele que eacute dirigido ou para o bem comum E haveria tal domiacutenio do homem sobre o homem no estado de inocecircncia por dois motivos Primeiro porque o homem eacute

91 Idem Ibidem I-II 62 1 C ldquoEst autem duplex hominis beatitudo sive felicitas ut supra dictum est Una quidem proportionata humanae naturae ad quam scilicet homo pervenire potest per principia suae naturae Alia autem est beatitudo naturam hominis excedens ad quam homo sola divina virtute pervenire potest secundum quandam divinitatis participationem []rdquo 92 Idem Ibidem I-II 5 5 C ldquoRespondeo dicendum quod beatitudo imperfecta quae in hac vita haberi potest potest ab homine acquiri per sua naturalia eo modo quo et virtus in cuius operatione consistit []rdquo ABBAGNANO Op Cit p 580 ldquoLe virtuacute intellettuali e morali sono virtuacute umane esse conducono alla felicitagrave che lrsquouomo puograve conseguire con le stesse forze naturali in questa vitardquo ldquoAs virtudes intelectuais e morais satildeo virtudes humanas essas conduzem agrave felicidade que o homem pode conseguir com as proacuteprias forccedilas naturais nesta vidardquo [A traduccedilatildeo eacute nossa]

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naturalmente um animal social portanto os homens viveriam socialmente no estado de inocecircncia Natildeo poderia haver uma vida social de muitos a natildeo ser que algueacutem presidisse tendo a intenccedilatildeo do bem comum93

Natildeo sendo consequecircncia do pecado Tomaacutes concebe a

civitas como tendo uma finalidade proacutepria a saber o bem viver E pensa o governo poliacutetico como aquele que conduz a multidatildeo a este bem comum que eacute justamente aquela felicidade conforme a natureza Mas tentemos entender melhor como o Frade Dominicano concebe a civitas Segundo Storck na concepccedilatildeo de Tomaacutes a civitas se diferencia das famiacutelias e aldeias enquanto eacute uma comunidade de homens que busca um fim mais alto ou seja um fim que excede o da mera sobrevivecircncia o bem viver94 Este fim o homem o alcanccedila pela sua razatildeo razatildeo esta que o adverte da impossibilidade de alcanccedilar este mesmo fim sem consortes A propoacutesito diz o Aquinate no opuacutesculo De Regno

Foi poreacutem o homem criado sem a preparaccedilatildeo de nada disso pela natureza e em lugar de tudo coube-lhe a razatildeo pela qual pudesse granjear por meio das proacuteprias matildeos todas essas coisas para o que eacute insuficiente um homem soacute Por cuja causa natildeo poderia um homem levar suficientemente a vida por si Logo eacute natural ao homem viver na sociedade de muitos95

93 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 96 4 C ldquoTunc vero dominatur aliquis alteri ut libero quando dirigit ipsum ad proprium bonum eius qui dirigitur vel ad bonum commune Et tale dominium hominis ad hominem in statu innocentiae fuisset propter duo Primo quidem quia homo naturaliter est animal sociale unde homines in statu innocentiae socialiter vixissent Socialis autem vita multorum esse non posset nisi aliquis praesideret qui ad bonum commune intenderet []rdquo 94 STORCK Alfredo Carlos O Indiviacuteduo e a Ordem Poliacutetica na Dimensatildeo da Civitas In DE BONI (Org) Idade Media Eacutetica e Poliacutetica Porto Alegre EDIPUCRS 1996 FILOSOFIA-38 p 326 ldquoPortanto a civitas tem como primeira caracteriacutestica que a diferencia das formas preacute-poliacuteticas de associaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo de suas partes para um fim superior agrave mera sobrevivecircncia podemos chamaacute-lo bem viverrdquo 95 TOMAacuteS DE AQUINO Do reino ou do governo dos priacutencipes ao Rei de Chipre Trad Arlindo Veiga dos Santos Rev Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento I II In Escritos Poliacuteticos de Santo Tomaacutes de Aquino Rio de Janeiro Vozes 1997 (Claacutessicos do pensamento poliacutetico) p 127 ldquoHomo autem institutus est nullo horum sibi a natura praeparato sed loco omnium data est ei ratio per quam sibi

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Ora natildeo eacute possiacutevel abarcar um homem todas essas coisas pela razatildeo Por onde eacute necessaacuterio ao homem viver em multidatildeo para que um seja ajudado por outro []96

Por isso ldquoA civitas eacute para Santo Tomaacutes uma criaccedilatildeo

coletiva dos homensrdquo97 ou seja uma obra produzida construiacuteda feita por homens concordes Na civitas cada um e todos trabalham mdash cada qual dentro de funccedilotildees determinadas98 mdash em prol do bem comum que nada mais eacute do que a realizaccedilatildeo da natureza humana 99 Homens vivendo em comunidade com o fim de alcanccedilar o bem especiacutefico da sua natureza eis a civitas De sorte que ela mdash ratifica Storck mdash natildeo eacute uma consequecircncia do pecado mas sim a atualizaccedilatildeo de uma disposiccedilatildeo da proacutepria natureza humana100

Ora como o pecado natildeo corrompeu a natureza humana enquanto tal esta ordem natural da qual emerge a civitas natildeo foi quebrada nem perdeu a sua ldquoautonomiardquo Pelo que mdash para Tomaacutes mdash a civitas e o seu governo gozam de certa ldquoautonomiardquo frente ao proacuteprio poder eclesial Com efeito como tanto o poder secular quanto o eclesial procedem diretamente de Deus segue-se que o poder secular natildeo proveacutem do eclesial tendo assim ldquoautonomiardquo perante ele No Comentaacuterio agraves Sentenccedilas mdash obra de juventude mdash o Frade Mendicante jaacute previa esta ldquoautonomiardquo com clareza

haec omnia officio manuum posset praeparare ad quae omnia praeparanda unus homo non sufficit Nam unus homo per se sufficienter vitam transigere non posset Est igitur homini naturale quod in societate multorum vivatrdquo 96 Idem Ibidem ldquoNon est autem possibile quod unus homo ad omnia huiusmodi per suam rationem pertingat Est igitur necessarium homini quod in multitudine vivat ut unus ab alio adiuvetur []rdquo 97 STORCK Op Cit p 327 98 Idem Op Cit ldquoResulta disto que no interior da civitas natildeo somente eacute possiacutevel que os indiviacuteduos possam alcanccedilar uma quantidade de bens maior do que os necessaacuterios para a mera sobrevivecircncia como tambeacutem lhes sobraraacute tempo para se dedicarem a atividades mais nobresrdquo 99 Idem Op Cit p 328 ldquoSegundo Santo Tomaacutes a civitas natildeo eacute essencialmente coercitiva mas cooperativa ou seja eacute o resultado dos esforccedilos compartilhados para se alcanccedilar um bem comumrdquo 100 Idem Op Cit ldquoAs accedilotildees humanas instauradoras da comunidade poliacutetica possuem sua raiz na natureza humana de sorte que a criaccedilatildeo da civitas pode ser entendida como a atualizaccedilatildeo de uma disposiccedilatildeo naturalrdquo

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O poder espiritual e o poder secular derivam ambos do poder divino eis por que o poder secular soacute se subordina ao poder espiritual agrave medida que foi submetido por Deus isto eacute no que respeita ao estatuto das almas nesse domiacutenio mais vale obedecer ao poder espiritual que ao poder secular Mas no que concerne ao bem poliacutetico mais vale obedecer ao poder secular que ao poder espiritual segundo o que se diz em Mateus 22 21 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesarrdquo101

101 TOMAacuteS DE AQUINO Super Sent Lib 2 d 44 q 2 a 3 expos ad 4 In TORRELL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Sua pessoa e sua obra Trad Luiz Paulo Rouanet Rev Saulo Krieger et al 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 16 ldquoAd quartum dicendum quod potestas spiritualis et saecularis utraque deducitur a potestate divina et ideo intantum saecularis potestas est sub spirituali inquantum est ei a Deo supposita scilicet in his quae ad salutem animae pertinent et ideo in his magis est obediendum potestati spirituali quam saeculari In his autem quae ad bonum civile pertinent est magis obediendum potestati saeculari quam spirituali secundum illud Matth 22 21 reddite quae sunt Caesaris Caesarirdquo Nesta citaccedilatildeo vemos que a posiccedilatildeo de Tomaacutes natildeo se alinhava agrave visatildeo teocraacutetica do seu tempo De fato nos anos que precederam o Comentaacuterio agraves Sentenccedilas de Tomaacutes o Papa Inocecircncio IV que faleceu em 1254 aprofundando a teoria da ldquoplenitudo potestatisrdquo que havia inicialmente sido proposta por Gregoacuterio VII dentro dos limites da Igreja e que depois foi estendida por Inocecircncio III tambeacutem ao acircmbito laico jaacute havia proposto ainda que apenas teoricamente uma forma de teocracia nunca vista POTESTAgrave Gian Luca VIAN Giovanni Histoacuteria do Cristianismo Trad Orlando Soares Moreira Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 p 183 ldquoNo quadro do conflito Inocecircncio IV jurista de formaccedilatildeo chegou a teorizar a ilegitimidade de qualquer poder que natildeo se fundasse em Cristo passando pelo reconhecimento papal Nessa perspectiva o poder dos soberanos natildeo cristatildeos eacute como tal ilegiacutetimo Desse modo Inocecircncio IV ampliava para aleacutem das fronteiras da cristandade as prerrogativas reivindicadas pelo papa como vigaacuterio de Cristo teorizando que na linha do direito toda criatura dotada de razatildeo lhe estava submetidardquo Mas afinal e se houver conflito entre as duas instacircncias a saber a civil e a eclesiaacutestica Tomaacutes prevecirc que as leis podem ser injustas de dois modos Primeiro quando atentam contra o bem humano E isso ocorre nos seguintes casos quando o legislador legifera em causa proacutepria por exemplo onerando os suacuteditos para proveito proacuteprio quando exorbita da sua funccedilatildeo legiferando sobre o que excede a sua competecircncia finalmente quando natildeo distribui congruamente as obrigaccedilotildees Nestes casos natildeo se trata de leis mas de violecircncias Tais regras pois natildeo obrigam no foro da consciecircncia salvo se se obedece a elas para evitar um mal maior TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 96 4 C ldquoEt huiusmodi magis sunt violentiae quam leges quia sicut Augustinus dicit in libro de Lib Arb lex esse non videtur quae iusta non fuerit Unde tales leges non obligant in foro conscientiae nisi forte propter vitandum scandalum vel turbationem propter quod etiam homo iuri suo debet cedere []rdquo ldquoE essas satildeo mais violecircncias que leis pois como diz Agostinho lsquoNatildeo parece ser lei a que natildeo for justarsquo Portanto tais leis natildeo obrigam no foro da consciecircncia a natildeo ser talvez para evitar o escacircndalo ou a perturbaccedilatildeo em razatildeo do que o homem deve ceder do seu direito []rdquo Segundo as leis podem ser injustas tambeacutem quanto ao bem divino por exemplo quando o legislador ordena a idolatria Nestes casos de nenhum modo eacute liacutecito ao suacutedito observar tais leis Idem Ibidem ldquoEt tales leges nullo modo licet observare []rdquo ldquoE tais leis de modo algum eacute liacutecito observar []rdquo A propoacutesito parece ser a previsatildeo de um direito divino que supera mas natildeo tolhe o direito humano que daacute agrave civitas de Tomaacutes um horizonte diferente do da poacutelis de Aristoacuteteles

186 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Emanuele Severino autor jaacute citado neste trabalho quando estuda Tomaacutes de Aquino comeccedila analisando precisamente como o dito evangeacutelico se reflete na obra do Aquinate

Enunciando o seu princiacutepio Jesus afirma ademais que Ceacutesar mdash o Estado mdash tem a capacidade de estabelecer retamente e autonomamente o quanto lhe eacute devido De fato Jesus natildeo se intromete na elaboraccedilatildeo deste caacutelculo e dizendo para dar a Ceacutesar o que lhe respeita reconhece a retidatildeo e a autonomia de tal caacutelculo [] De modo sempre mais decisivo o pensamento medieval e sobretudo Tomaacutes de Aquino estendeu agrave relaccedilatildeo entre razatildeo e feacute os caracteres revelados pelo texto evangeacutelico a propoacutesito da relaccedilatildeo entre o ordenamento racional da sociedade (O Estado) e o ordenamento da realidade que se manifesta no interior da feacute cristatilde102

Pelas razotildees elencadas percebemos que a teologia moral de

Tomaacutes prevecirc a existecircncia de uma ldquocultura laicardquo de uma eacutetica filosoacutefica Ele proacuteprio atesta ldquoO direito divino fundado na graccedila natildeo destroacutei o direito humano que vem da razatildeo naturalrdquo103 A civitas denominada por Tomaacutes comunidade perfeita 104 tem

102 SEVERINO Emanuele La Filosofia dai Greci al nostro Tempo La Filosofia Antica e Medioevale Milano Bur 2004 p 284 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEnunciando il suo principio Gesugrave afferma inoltre che Cesare mdash lo Stato mdash abbia la capacitagrave di stabilire rettamente e autonomamente quanto gli egrave dovuto Infatti Gesugrave non si intromette nella elaborazione di questo calcolo e dicendo di dare a Cesare quel che gli spetta riconosce la rettitudine e lrsquoautonomia di tale calcolo [] In modo sempre piugrave deciso il pensiero medioevale e soprattutto Tommaso drsquoAquino hanno esteso al rapporto tra ragione e fede i caratteri rivelati dal testo evangelico a proposito del rapporto tra lrsquoordinamento razionale della societagrave (lo Stato) e lrsquoordinamento della realtagrave che si manifesta allrsquointerno della fede cristianardquo Franco Pierini historiador da Igreja tambeacutem ressalta a candente questatildeo que agitou a segunda metade do seacuteculo XIII PIERINI Franco A Idade Meacutedia Curso da Histoacuteria da Igreja Trad Joseacute Maria de Almeida Satildeo Paulo Paulus 1998 v II p 188 ldquoEntre 1260 e 1277 em particular delineia-se um momento de agudas batalhas doutrinaacuterias As questotildees em jogo satildeo teoacutericas e praacuteticas Trata-se de decidir se a verdade de feacute e as racionais devem necessariamente estar em harmonia as segundas submetidas agraves primeiras e se consequumlentemente devem tambeacutem estar de acordo as duas sociedades a eclesiaacutestica e a civil o poder pontifiacutecio e o dos soberanos seculares com a submissatildeo do Estado agrave Igrejardquo 103 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 10 10 C ldquoIus autem divinum quod est ex gratia non tollit ius humanum quod est ex naturali rationerdquo 104 Idem Ibidem I-II 90 2 C ldquo[] perfecta enim communitas civitas []rdquo ldquoesta perfeita comunidade com efeito eacute a cidade []rdquo

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exatamente por ser perfeita a capacidade de perfazer-se e eacute isto que nos autoriza a falar de uma eacutetica filosoacutefica em Aquino enquanto fruto de uma reflexatildeo acerca das condiccedilotildees de possibilidade da civitas hominis Neste sentido conclui Sciacca

Desta forma Tomaacutes funda a autonomia do saber ou a ciecircncia proacutepria do homem isto eacute a cultura ldquolaicardquo mas ao mesmo tempo inclusive porque natildeo a contrapotildee agrave sapiecircncia divina revelada exclui aquilo que seraacute o ldquolaicismordquo []105

O jesuiacuteta Copleston jaacute citado neste capiacutetulo tambeacutem

ressalta

O estado eacute uma ldquosociedade perfeitardquo (communitas perfecta) isto eacute tem a sua disposiccedilatildeo todos os meios necessaacuterios para a consecuccedilatildeo do seu fim o bonum commune ou o bem comum dos cidadatildeos106

Natildeo eacute todavia menos verdadeiro que o estado eacute uma ldquosociedade perfeitardquo autocircnoma na sua esfera107

Entretanto estas noccedilotildees de civitas e de felicidade que

acabamos de destacar natildeo existiriam sem antes Tomaacutes definir o ato humano e o que lhe confere moralidade O homem eacute chamado ao ato livre e se deixamos para agora uma breve reflexatildeo acerca do livre-arbiacutetrio foi por uma opccedilatildeo expositiva Eacute tempo de tocarmos neste tema a fim de que natildeo caiamos na tentaccedilatildeo de

105 SCIACCA Michele Federico La filosofia nel suo sviluppo storico 1 Antichitagrave e Medioevo 30 ed Edizione Cremonese Roma 1969 p 232 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCosigrave Tommaso fonda lrsquoautonomia del sapere o scienza propria dellrsquouomo cioegrave la cultura lsquolaicarsquo ma nello stesso tempo proprio percheacute non la contrappone alla sapienza divina rivelata esclude quel che saragrave il lsquolaicismorsquo []rdquo 106 COPLESTON Storia della Filosofia Vol II La Filosofia Medioevale da Agostino a Escoto p 526 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoLo stato egrave una lsquosocietagrave perfettarsquo(communitas perfecta) cioegrave ha a sua disposizione tutti i mezzi necessari per il conseguimento del suo fine il bonum commune o bene comune dei citadini rdquo 107 Idem Ibidem ldquoNon egrave tuttavia men vero che lo stato egrave una lsquosocietagrave perfettarsquo autonoma nella sua sferardquo

188 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino pensarmos que Tomaacutes encerra a sua eacutetica num ldquocomunitarismordquo que olvida a singularidade de cada ser humano A bem dizer o contraacuterio eacute que eacute verdadeiro Com Vignaux defendemos que o estreito conuacutebio entre antropologia e eacutetica em Tomaacutes eacute o melhor caminho para pensarmos em sua siacutentese uma eacutetica filosoacutefica

Digamos que o tomismo coloca como uma possibilidade essencial uma filosofia pura obra da pura razatildeo Esta ideia corresponde evidentemente a sua ideia de homem como ser dotado de uma luz natural108

Tentemos desenvolver esta ideia de homem Como jaacute

tratamos da razatildeo acentuaremos o livre-arbiacutetrio e a perfeiccedilatildeo da pessoa 36 DO LIVRE-ARBIacuteTRIO DISTINTIVO DO ATO HUMANO Agrave PESSOA

Para Tomaacutes o homem eacute vocacionado a ser livre E ser livre mdash raciocina o Aquinate mdash consiste em possuir livre-arbiacutetrio Possuiacutemos livre-arbiacutetrio mdash diz Tomaacutes mdash ldquo[] com relaccedilatildeo agraves coisas que natildeo queremos por necessidade ou por instinto naturalrdquo109 O livre-arbiacutetrio eacute pois uma capacidade de escolha de decisatildeo ldquoSomos livres enquanto podemos aceitar uma coisa rejeitada outra o que eacute escolherrdquo110 A princiacutepio natildeo importa se escolhemos bem ou mal jaacute que o livre-arbiacutetrio consiste simplesmente em poder escolher uma coisa e natildeo outra Daiacute dizer Tomaacutes ldquo[] o livre-arbiacutetrio eacute indiferente

108 VIGNAUX El pensamiento en la Edad Media Trad Tomaacutes Segovia Fondo de Cultura Econoacutemica Buenos Aires 1954 p 120 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoDigamos que lo tomismo plantea como una posibilidad esencial una filosofiacutea pura obra de pura raacutezon Esta idea corresponde evidentemente a su idea del hombre como ser dotado de una luz naturalrdquo 109 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 19 10 C ldquoRespondeo dicendum quod liberum arbitrium habemus respectu eorum quae non necessario volumus vel naturali instincturdquo 110 Idem Ibidem I 83 3 C ldquo[] ex hoc enim liberi arbitrii esse dicimur quod possumus unum recipere alio recusato quod est eligererdquo

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a escolher bem ou mal []rdquo111 Ora a escolha recai natildeo sobre o fim mas sobre os meios conducentes a ele como pontua o Aquinate ldquoA escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre os meios para o fim []rdquo112 Por exemplo o homem natildeo eacute livre para escolher ser feliz ou natildeo pois este eacute o seu fim uacuteltimo113 o que pode ocorrer mdash e agraves vezes ocorre mdash eacute ele escolher mal os meios conducentes agrave felicidade

Mas o que confere ao homem esta capacidade de escolha O que lhe daacute este poder eacute a sua razatildeo Como isso se daacute Eacute verificaacutevel que algumas coisas diz Tomaacutes agem sem julgamento Eacute o caso da pedra por exemplo que cai somente em virtude da sua forma E assim acontece com todas as coisas que satildeo destituiacutedas de conhecimento114

Haacute outras poreacutem que agem com julgamento mas eacute um julgar por instinto e por isso natildeo livre Assim a ovelha foge do lobo porque por instinto julga que ele lhe eacute nocivo O mesmo sucede com todos os animais O julgamento por instinto natildeo eacute livre porque natildeo procede de uma comparaccedilatildeo que eacute uma operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo115

111 Idem Ibidem I 83 2 C ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo 112 Idem Ibidem I 82 1 ad 3 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finem ut dicitur in III Ethicrdquo 113 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 82 1 C ldquoQuinimmo necesse est quod sicut intellectus ex necessitate inhaeret primis principiis ita voluntas ex necessitate inhaereat ultimo fini qui est beatitudo finis enim se habet in operativis sicut principium in speculativis []rdquo ldquo[] eacute necessaacuterio que assim como o intelecto adere necessariamente aos primeiros princiacutepios a vontade adira necessariamente ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila pois o fim estaacute para o agir como o princiacutepio estaacute para o conhecer []rdquo GARDEIL Henri-Dominique Iniciaccedilatildeo agrave filosofia de satildeo Tomaacutes de Aquino psicologia e metafiacutesica Trad Cristiane Negreiros Abbud Ayoub Carlos Eduardo de Oliveira 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2013 p 173 ldquo[] natildeo eacute possiacutevel para mim natildeo querer o bem como tal ou minha bem-aventuranccedilardquo 114 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 83 1 C ldquoAd cuius evidentiam considerandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut lapis movetur deorsum et similiter omnia cognitione carentiardquo ldquo[] certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm o conhecimentordquo 115 Idem Ibidem ldquoQuaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicatrdquo ldquomdash Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto naturalrdquo

190 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Com efeito no caso do homem que eacute um animal racional haacute nele um julgamento livre Ele foge de uma coisa ou a procura mediante uma comparaccedilatildeo da razatildeo e natildeo por um instinto natural Ora esta comparaccedilatildeo exercida pela razatildeo no homem eacute possiacutevel porque as suas accedilotildees particulares satildeo contingentes e desta sorte natildeo se encontram determinadas a uma uacutenica coisa Destarte pela proacutepria natureza contingente das accedilotildees particulares nelas a razatildeo pode orientar-se para alternativas diversas sem ser constrangida a nenhuma116 Realmente o julgamento livre acontece por comparaccedilatildeo e esta eacute uma operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo Mas como acontece esta comparaccedilatildeo Acontece no dizer de Tomaacutes quando a razatildeo reflete sobre o seu proacuteprio ato julga o seu proacuteprio juiacutezo acerca das coisas

No entanto julgar de seu proacuteprio juiacutezo eacute proacuteprio soacute da razatildeo que volta sobre seu proacuteprio ato e conhece as disposiccedilotildees das coisas acerca das quais julga e pelas quais julga Por isso toda raiz da liberdade estaacute constituiacuteda na razatildeo117

Noutro momento voltaremos com maior detenccedila agrave temaacutetica

da estrutura do ato humano Agora basta retermos que pelo juiacutezo racional o homem pode escapar ao determinismo dos apetites inferiores e a qualquer outro ldquomoacutevel externordquo porque a sua vontade

116 Idem Ibidem ldquoSed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid esse fugiendum vel prosequendum Sed quia iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferri [] Particularia autem operabilia sunt quaedam contingentia et ideo circa ea iudicium rationis ad diversa se habet et non est determinatum ad unumrdquo ldquoO homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute o efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos [] Como as accedilotildees particulares satildeo contingentes o julgamento da razatildeo sobre elas se refere a diversas e natildeo eacute determinado a uma uacutenicardquo 117 TOMAacuteS DE AQUINO O livre-arbiacutetrio Quaestiones disputatae de veritate Questatildeo 24 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Beatriz Rodrigues de Lima Satildeo Paulo Edipro 2105 24 2 C ldquoIudicare autem de iudicio suo est solius rationis quae super actum suum reflectitur et cognoscit habitudines rerum de quibus iudicat et per quas iudicat unde totius libertatis radix est in ratione constitutardquo

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pode sempre escolher o que lhe for apresentado pela razatildeo118 Por isso pode-se dizer ldquo[] que o homem seja dotado de livre-arbiacutetrio pelo fato mesmo de ser racionalrdquo119

Contudo eacute preciso entender bem nem mesmo ao domiacutenio da razatildeo mdash entenda-se da reta razatildeo (recta ratio)120 mdash a vontade estaacute submetida Em outros termos ela pode agir contra a reta razatildeo (recta ratio) e consoante a razatildeo errocircnea e os apetites inferiores De maneira que nem a razatildeo pode determinar necessariamente a vontade a nada mdash exceto agrave felicidade mdash porquanto no campo onde se desenvolve a accedilatildeo humana como dissemos a razatildeo soacute apresenta agrave vontade bens particulares bens relativos isto eacute coisas boas por um lado poreacutem onerosas por outro coisas portanto que podem ser queridas ou repelidas Em outras palavras um bem relativo proposto como apraziacutevel por sua razatildeo de bem natildeo deixa de esconder a sua razatildeo de natildeo bem por outro lado o mesmo bem se proposto como rejeitaacutevel

118 Na concepccedilatildeo tomasiana esclarece Franca haacute dois tipos de atos livres aqueles que procedem formalmente da vontade e aqueles que embora procedam de outras faculdades estatildeo sob o domiacutenio da vontade FRANCA Leonel A Psicologia da Feacute 7 ed Rio de Janeiro Agir Editora 1958 p 33 ldquoDe dois modos chamam-se livres os nossos atos ou porque emanam de uma faculdade formalmente livre ou porque procedem imediatamente de outra faculdade mas sob o impeacuterio de uma determinaccedilatildeo livrerdquo Livres propriamente satildeo somente os atos da vontade entretanto aquelas faculdades que estatildeo sob o impeacuterio da vontade pelo influxo que esta pode exercer sobre elas tambeacutem podem agir livremente Idem Op Cit Desta sorte com exceccedilatildeo das funccedilotildees vegetativas mdash nutriccedilatildeo assimilaccedilatildeo circulaccedilatildeo etc mdash todos os demais atos humanos podem estar sob a influecircncia da vontade Idem Op Cit pp 33-34 Por isso o movimento a visatildeo e a estudiosidade conquanto estejam reduzidos quanto aos seus princiacutepios mais imediatos a outras faculdades (muacutesculos olhos e aplicaccedilatildeo mental) podem ser determinados pelo livre-arbiacutetrio Assim podemos escolher andar ou parar de andar abrir ou fechar os olhos estudar histoacuteria ou matemaacutetica etc Com efeito Franca nada mais faz do que explicitar o que Tomaacutes registra na Summa TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 6 4 C ldquoRespondeo dicendum quod duplex est actus voluntatis unus quidem qui est eius immediate velut ab ipsa elicitus scilicet velle alius autem est actus voluntatis a voluntate imperatus et mediante alia potentia exercitus ut ambulare et loqui qui a voluntate imperantur mediante potentia motivardquo ldquoO ato da vontade eacute duplo um que lhe eacute imediato como emanado dela querer outro que eacute por ela imperado e exercido por outra potecircncia como andar falar que satildeo imperados pela vontade mas exercidos por uma potecircncia motorardquo 119 Idem Ibidem I 83 1 C ldquoEt pro tanto necesse est quod homo sit liberi arbitrii ex hoc ipso quod rationalis estrdquo 120 Querer e agir de acordo com a reta razatildeo eacute o ato proacuteprio da virtude da prudecircncia A falar com exaccedilatildeo a prudecircncia eacute a reta razatildeo do agir Idem Ibidem II-II 47 8 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est recta ratio agibilium ut supra dictum est ldquoA prudecircncia eacute a reta razatildeo do que deve ser feito jaacute foi ditordquo

192 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mostra-se tambeacutem deleitaacutevel por sua razatildeo de bem E a razatildeo e a vontade cientes deste ldquocustobenefiacuteciordquo de todos os bens relativos comportam-se em relaccedilatildeo a eles considerando os proacutes e os contras Eacute este o dilema que torna a eleiccedilatildeo humana livre e dramaacutetica Afirma Tomaacutes

Ademais como a falta de qualquer bem tem a razatildeo de natildeo-bem por isso soacute aquele bem perfeito ao qual nada falta eacute o bem que a vontade natildeo pode deixar de querer e este bem eacute bem-aventuranccedila Qualquer outro bem particular deficiente em algo do bem pode ser tido como natildeo-bem Segundo essa consideraccedilatildeo pode ser repudiado ou aprovado pela vontade que eacute capaz de se dirigir para o mesmo objeto considerado sob diversos aspectos121

Tudo aquilo que a razatildeo pode apreender como bem para isso a vontade pode tender Ademais pode a razatildeo apreender como bem natildeo somente querer ou agir como tambeacutem natildeo querer e natildeo agir Ainda em todos os bens particulares pode considerar a

121 Idem Ibidem I-II 10 2 C ldquoEt quia defectus cuiuscumque boni habet rationem non boni ideo illud solum bonum quod est perfectum et cui nihil deficit est tale bonum quod voluntas non potest non velle quod est beatitudo Alia autem quaelibet particularia bona inquantum deficiunt ab aliquo bono possunt accipi ut non bona et secundum hanc considerationem possunt repudiari vel approbari a voluntate quae potest in idem ferri secundum diversas considerationesrdquo E ainda Idem Ibidem I-II 13 6 C ldquoSolum autem perfectum bonum quod est beatitudo non potest ratio apprehendere sub ratione mali aut alicuius defectus Et ideo ex necessitate beatitudinem homo vult nec potest velle non esse beatus aut miser Electio autem cum non sit de fine sed de his quae sunt ad finem ut iam dictum est non est perfecti boni quod est beatitudo sed aliorum particularium bonorum Et ideo homo non ex necessitate sed libere eligitrdquo ldquoSomente o bem perfeito que eacute a bem-aventuranccedila natildeo pode a razatildeo apreender sob a razatildeo de mal ou de alguma deficiecircncia Daiacute que o homem necessariamente quer a bem-aventuranccedila nem pode natildeo querer ser bem-aventurado ou querer ser desgraccedilado Como a eleiccedilatildeo natildeo eacute do fim mas do que eacute para o fim como jaacute foi dito natildeo eacute do bem perfeito que eacute a bem-aventuranccedila mas de outros bens imperfeitos Por isso o homem natildeo elege necessariamente mas livrementerdquo Tambeacutem no Compecircndio de Teologia encontramos a mesma tese Segue a citaccedilatildeo a partir da ediccedilatildeo biliacutengue Idem Compecircndio de Teologia I 76 ldquoAdhuc Liberum est quod non est obligatum ad aliquid unum determinatum Appetitus autem substantiae intellectivae non est obligatus ad aliquid unum determinatum bonum sequitur enim apprehensionem intellectus quae est de bono universaliter Igitur appetitus substantiae intelligentis est liber utpote communiter se habens ad quodcumque bonumrdquo ldquoAdemais eacute livre o que natildeo eacute obrigado a uma soacute e determinada coisa Ora o apetite das substacircncias intelectivas natildeo eacute obrigado a um soacute e determinado bem segue-se com efeito da apreensatildeo do intelecto a qual eacute do bem em universal Por conseguinte o apetite da substacircncia inteligente eacute livre dado que comumente se tem para todo e qualquer bemrdquo

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razatildeo de bem de um e a deficiecircncia de algum bem que tem a razatildeo de mal Assim pode apreender cada um desses bens como capaz de ser eleito ou rejeitado Somente o bem perfeito que eacute a bem-aventuranccedila natildeo pode a razatildeo apreender sob a razatildeo de mal ou de alguma deficiecircncia Daiacute que o homem necessariamente quer a bem-aventuranccedila nem pode querer natildeo ser bem-aventurado ou querer ser desgraccedilado122

Em razatildeo disso a liberdade humana implica sempre a

traacutegica possibilidade de fazermos escolhas contraacuterias agrave reta razatildeo e em consonacircncia com os apetites inferiores e assim trairmos a nossa vocaccedilatildeo agrave beatitude De sorte que o homem estaacute entregue ao seu arbiacutetrio de modo que nem o poder poliacutetico o pode tolher desta sua liberdade antes o poder poliacutetico pressupotildee que o homem seja livre e eacute justamente isto que o distingue do poder despoacutetico Neste aspecto o poder poliacutetico natildeo eacute senatildeo uma extensatildeo da natureza livre do homem Assim como a razatildeo pode controlar os apetites inferiores integrando-os agrave sua ordem assim o poder reacutegio domina os homens conduzindo-os a um fim comum Afirma o Boi Mudo

Donde dizer o Filoacutesofo no livro I da Poliacutetica que a razatildeo eacute superior ao irasciacutevel e ao concupisciacutevel natildeo por um domiacutenio despoacutetico que eacute proacuteprio do senhor em relaccedilatildeo ao escravo mas por um domiacutenio poliacutetico e reacutegio que eacute proacuteprio dos homens livres que natildeo se submetem totalmente a domiacutenio algum123

122 Idem Suma Teoloacutegica I-II 13 6 C ldquoQuidquid enim ratio potest apprehendere ut bonum in hoc voluntas tendere potest Potest autem ratio apprehendere ut bonum non solum hoc quod est velle aut agere sed hoc etiam quod est non velle et non agere Et rursum in omnibus particularibus bonis potest considerare rationem boni alicuius et defectum alicuius boni quod habet rationem mali et secundum hoc potest unumquodque huiusmodi bonorum apprehendere ut eligibile vel fugibile Solum autem perfectum bonum quod est beatitudo non potest ratio apprehendere sub ratione mali aut alicuius defectus Et ideo ex necessitate beatitudinem homo vult nec potest velle non esse beatus aut miserrdquo 123 Idem Ibidem I-II 17 7 C ldquoEt tunc ille motus est praeter imperium rationis quamvis potuisset impediri a ratione si praevidisset Unde philosophus dicit in I Polit quod ratio praeest irascibili et concupiscibili non principatu despotico qui est domini ad servum sed principatu politico aut regali qui est ad liberos qui non totaliter subduntur imperiordquo

194 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Podemos ir mais longe Nem mesmo o poder religioso pode subjugar o livre-arbiacutetrio do homem no seu poder de decisatildeo O Aquinate chega a dizer que se a razatildeo errocircnea concebe a fornicaccedilatildeo como um bem mdash inobstante seja ela um mal em si mdash maacute seraacute a vontade que natildeo escolher fornicar porque estaraacute contrariando o juiacutezo mdash deveras errocircneo mdash da razatildeo E vai mais longe ainda Se a razatildeo apresentar agrave vontade que crer em Cristo eacute um mal mdash e a vontade mesmo assim aderir a Cristo mdash esta vontade seraacute maacute porque iraacute contrariar a razatildeo embora crer em Cristo seja necessaacuterio agrave salvaccedilatildeo Pela importacircncia desta passagem citemo-la

Por exemplo abster-se da fornicaccedilatildeo eacute um certo bem mas este bem a vontade natildeo aceita a natildeo ser que seja proposto pela razatildeo Se portanto foi proposto como mal pela razatildeo errocircnea seraacute levada a isso sob a razatildeo de mal Daiacute que a vontade seraacute maacute por querer o mal natildeo o que eacute mau por si mas o que eacute mau acidentalmente por causa da apreensatildeo da razatildeo Semelhantemente crer em Cristo eacute um bem por si e necessaacuterio para a salvaccedilatildeo Mas a vontade natildeo eacute levada a esta verdade se natildeo lhe for proposta pela razatildeo Portanto se a razatildeo a propuser como mal a vontade a aceitaraacute como mal natildeo porque seja um mal em si mas porque eacute mal acidentalmente pela apreensatildeo da razatildeo [] Portanto deve-se dizer de modo absoluto que toda vontade que discorda da razatildeo seja reta ou errocircnea eacute sempre maacute124

O que quisemos acentuar eacute que razatildeovontade satildeo de certa

forma a instacircncia uacuteltima de nossas escolhas mdash sejam estas felizes ou natildeo mdash gozando ambas na simbiose em que interagem de

124 Idem Ibidem I-II 19 5 C ldquoPuta abstinere a fornicatione bonum quoddam est tamen in hoc bonum non fertur voluntas nisi secundum quod a ratione proponitur Si ergo proponatur ut malum a ratione errante feretur in hoc sub ratione mali Unde voluntas erit mala quia vult malum non quidem id quod est malum per se sed id quod est malum per accidens propter apprehensionem rationis Et similiter credere in Christum est per se bonum et necessarium ad salutem sed voluntas non fertur in hoc nisi secundum quod a ratione proponitur Unde si a ratione proponatur ut malum voluntas feretur in hoc ut malum non quia sit malum secundum se sed quia est malum per accidens ex apprehensione rationis[] Unde dicendum est simpliciter quod omnis voluntas discordans a ratione sive recta sive errante semper est malardquo

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ldquoautonomiardquo em relaccedilatildeo aos ldquocostumesrdquo ao poder poliacutetico e ao proacuteprio domiacutenio religioso Tomaacutes resume esta sua concepccedilatildeo afirmando ldquoO motivo disso eacute que o livre difere do servo porque o livre eacute causa de si []rdquo125 Na verdade para o Aquinate somente as accedilotildees que procedem do livre-arbiacutetrio ou seja unicamente da sinergia entre razatildeo e vontade podem ser ditas accedilotildees propriamente humanas Donde a claacutessica distinccedilatildeo entre ato do homem (actus hominis) e ato humano (actus humanus)

O homem diferencia-se das criaturas irracionais porque tem o domiacutenio de seus atos Por isso somente satildeo ditas propriamente humanas aquelas accedilotildees sobre as quais o homem tem domiacutenio Ora o homem tem domiacutenio de suas accedilotildees pela razatildeo e pela vontade Donde seraacute chamada de livre-arbiacutetrio a faculdade da vontade e da razatildeo Assim sendo satildeo propriamente ditas humanas as accedilotildees que procedem da vontade deliberada Se outras accedilotildees poreacutem satildeo proacuteprias do homem poderatildeo ser chamadas de accedilotildees do homem mas natildeo satildeo propriamente humanas pois natildeo satildeo do homem enquanto homem126

Ora eacute exatamente este domiacutenio intransferiacutevel e ineludiacutevel

do ato livre que torna o homem responsaacutevel por suas accedilotildees vale dizer capaz de virtudes e de viacutecios ldquoO homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio do contraacuterio os conselhos as exortaccedilotildees os preceitos as proibiccedilotildees as recompensas e os castigos seriam vatildeosrdquo127 O livre-

125 Idem Ibidem I 96 4 C ldquoCuius ratio est quia servus in hoc differt a libero quod liber est causa sui []rdquo 126 Idem Suma Teoloacutegica I-II 1 1 C ldquoDiffert autem homo ab aliis irrationalibus creaturis in hoc quod est suorum actuum dominus Unde illae solae actiones vocantur proprie humanae quarum homo est dominus Est autem homo dominus suorum actuum per rationem et voluntatem unde et liberum arbitrium esse dicitur facultas voluntatis et rationis Illae ergo actiones proprie humanae dicuntur quae ex voluntate deliberata procedunt Si quae autem aliae actiones homini conveniant possunt dici quidem hominis actiones sed non proprie humanae cum non sint hominis inquantum est homordquo 127 Idem Ibidem I 83 1 C ldquoRespondeo dicendum quod homo est liberi arbitrii alioquin frustra essent consilia exhortationes praecepta prohibitiones praemia et poenaerdquo Este princiacutepio natildeo eacute negado em teologia pois a graccedila natildeo anula mas pressupotildee e aperfeiccediloa a natureza racional Em contextos estritamente teoloacutegicos o Aquinate afirma Idem Ibidem III 27 2 C ldquoCulpa autem non potest emundari nisi per gratiam cuius subiectum est sola creatura rationalisrdquo ldquoOra a culpa soacute pode

196 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino arbiacutetrio inaugura pois a vida eacutetica As nossas accedilotildees satildeo nossas mas por isso mesmo devemos responder por elas Aliaacutes a uacutenica coisa que nos pertence e que podemos dar ao mundo de ineacutedito satildeo os nossos atos No De veritate o Aquinate diz ldquoNo entanto natildeo podemos dar senatildeo isso que eacute nosso do que somos donos Contudo como somos donos de nossos atos pela vontade []rdquo128 Destarte para Tomaacutes pelo livre-arbiacutetrio mdash que adveacutem do consoacutercio entre razatildeo e vontade mdash o homem dono de suas accedilotildees passa a ser ele proacuteprio ldquo[] depois que ele tiver o uso da razatildeo ele comeccedila a ser ele mesmo e pode [] decidir-se por si mesmordquo129 O ato livre mdash prossegue ainda o Aquinate mdash faz o homem senhor de si pois este ato implica que conhecendo os proacutes e os contras das coisas o homem pode deixar de estar entre elas para estar diante delas130 De maneira que o homem livre natildeo pode ser compelido nem coagido mesmo a crer ldquoE entatildeo ele eacute induzido agrave feacute natildeo por coaccedilatildeo mas por persuasatildeo []rdquo131 Em suma pelo livre-arbiacutetrio o homem torna-se capaz de perfazer-se virtuoso ou vicioso jaacute que as suas potecircncias racionais soacute satildeo determinadas por suas livres e

ser purificada pela graccedila e o sujeito da graccedila eacute exclusivamente a criatura racionalrdquo Idem O livre-arbiacutetrio Quaestiones disputatae de veritate Questatildeo 24 24 1 C ldquoAd hoc enim fides astringit cum sine libero arbitrio non possit esse meritum vel demeritum iusta poena vel praemiumrdquo ldquoCom efeito a feacute tambeacutem obriga a isso pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo pode haver meacuterito ou demeacuterito justa pena ou precircmiordquo 128 TOMAacuteS DE AQUINO As paixotildees da alma Quaestiones disputatae de veritate Questatildeo 26 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Beatriz Rodrigues de Lima Satildeo Paulo Edipro 2015 26 6 C ldquoDare autem non possumus nisi id quod nostrum est cuius domini sumus Sumus autem domini nostrorum actuum per voluntatem []rdquo 129 Idem Suma Teoloacutegica II-II 10 12 C ldquoPostquam autem incipit habere usum liberi arbitrii iam incipit esse suus et potest [] sibi ipsi providererdquo 130 Eacute verdade admite Tomaacutes que natildeo eacute contraacuterio agrave razatildeo de ato livre seguir conselhos Poreacutem adverte Aquino aquele que segue conselhos sem saber tomar as suas proacuteprias decisotildees ainda natildeo eacute perfeito na virtude Idem Ibidem I-II 57 5 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod cum homo bonum operatur non secundum propriam rationem sed motus ex consilio alterius nondum est omnino perfecta operatio ipsius quantum ad rationem dirigentem et quantum ad appetitum moventem Unde si bonum operetur non tamen simpliciter bene quod est bene vivererdquo ldquoDeve-se dizer que quando o homem faz o bem natildeo pela proacutepria razatildeo mas levado pelo conselho de outrem sua obra ainda natildeo eacute totalmente perfeita nem quanto agrave razatildeo que a dirige nem quanto ao apetite que a move Portanto se o bem eacute feito natildeo o eacute absolutamente bem que eacute viver bemrdquo 131 Idem Ibidem ldquoEt tunc est inducendus ad fidem non coactione sed persuasione []rdquo

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reiteradas escolhas que se tornam disposiccedilotildees estaacuteveis as quais Tomaacutes denomina haacutebitos

Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam indeterminadamente a muitas coisas Ora eacute pelos haacutebitos que elas se determinam aos atos como se mostrou acima132

Nas Quaestiones Disputatae de Veritate o Aquinate remata

esta questatildeo dizendo que Deus deu ao homem o ser autor dos seus atos e por conseguinte do seu porvir ldquolsquoDeus deixou o homem nas matildeos de seu conselhorsquo (Sr 15 14) na medida em que ele o constituiu intendente de seus proacuteprios atosrdquo133 Noutro lugar volta a afirmar que Deus concedeu ao homem participar da Sua Providecircncia natildeo soacute como ldquoobjetordquo mas tambeacutem como ldquosujeitordquo que provecirc ldquoPor conseguinte a criatura racional participa da providecircncia natildeo somente enquanto eacute governada mas tambeacutem enquanto governa pois governa as suas proacuteprias accedilotildees e as dos outrosrdquo134 Por isso para o Aquinate atentar contra a accedilatildeo proacutepria das coisas mdash no caso do homem contra o seu livre-arbiacutetrio mdash eacute atentar contra a virtude divina ldquoLogo tirar das coisas as suas proacuteprias accedilotildees eacute diminuir a bondade divinardquo135 Importa ressaltar

132 Idem Ibidem I-II 55 1 C ldquoPotentiae autem rationales quae sunt propriae hominis non sunt determinatae ad unum sed se habent indeterminate ad multa determinantur autem ad actus per habitus sicut ex supradictis patet Et ideo virtutes humanae habitus suntrdquo 133 Idem De veritate q 5 a 5 ad 4 In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 344 ldquoAd quartum dicendum quod Deus permisit hominem in manu consilii sui inquantum constituit eum propriorum actuum provisorem []rdquo Torrell arrola outras passagens em que Tomaacutes mdash na Suma de Teologia mdash cita o versiacuteculo do Eclesiaacutestico para expressar a mesma ideia o ato humano eacute dotado de uma causalidade proacutepria 134 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios III CXIII 5 [2873] ldquoCreatura rationalis sic providentiae divinae subiacet quod non solum ea gubernatur sed etiam rationem providentiae utcumque cognoscere potest []rdquo BRAGUE A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila p 288 ldquoA criatura racional tem parte na providecircncia natildeo apenas como objeto mas tambeacutem como sujeitordquo 135 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios III LXIX 11 [2446] ldquoDetrahere ergo actiones proprias rebus est divinae bonitati derogarerdquo Idem Ibidem III LXIX 10 [2445] ldquoSed si nulla creatura habet aliquam actionem ad aliquem effectum producendum multum detrahitur perfectioni

198 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino no entanto que o fato de Tomaacutes dar ecircnfase agrave liberdade do homem natildeo o torna por assim dizer um ldquodeiacutestardquo posto que a ordem da Providecircncia dispocircs de tal forma os seres criados ldquo[] que o efeito da providecircncia divina natildeo eacute unicamente que algo aconteccedila de qualquer modo mas que aconteccedila seja de modo necessaacuterio seja de modo contingenterdquo136 Em razatildeo disso a liberdade humana natildeo estaacute fora do controle da Providecircncia nem eacute tolhida por ela inclusive na ordem da graccedila Conclui o Frade Mendicante

[] Deus tudo move segundo o modo proacuteprio de cada um [] Ora a natureza proacutepria do homem eacute estar dotado de livre-arbiacutetrio Portanto quando se trata de um indiviacuteduo que tem o uso de seu livre-arbiacutetrio a moccedilatildeo de Deus para a justiccedila natildeo acontece sem que se exerccedila este livre-arbiacutetrio137

Do que expusemos acerca do livre-arbiacutetrio decorre que o

homem eacute livre por ser racional e volitivo e sendo livre pode ter domiacutenio sobre os seus atos e responder por eles Haacute entatildeo uma realidade humana um mundo ou um haacutebitat construiacutedo pelos homens fundado por seus atos porquanto o homem eacute de certo modo providecircncia para si mesmo Ele provecirc para si e para os seus ldquo[] Deus quis comunicar a sua semelhanccedila agraves coisas natildeo soacute quanto ao ser mas tambeacutem quanto ao serem causas de outrasrdquo 138

creaturae ex abundantia enim perfectionis est quod perfectionem quam aliquid habet possit alteri communicare Detrahit igitur haec positio divinae virtutirdquo ldquoOra se nenhuma criatura tem accedilatildeo efetiva muito eacute diminuiacutedo de sua perfeiccedilatildeo pois eacute proacuteprio da excelecircncia da perfeiccedilatildeo de uma coisa poder comunicaacute-la agrave outra coisa Logo tal tese diminui a virtude divinardquo 136 Idem Suma Teoloacutegica I 22 4 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod effectus divinae providentiae non solum est aliquid evenire quocumque modo sed aliquid evenire vel contingenter vel necessariordquo 137 Idem Ibidem I-II 113 3 C ldquoDeus autem movet omnia secundum modum uniuscuiusque [] Unde et homines ad iustitiam movet secundum conditionem naturae humanae Homo autem secundum propriam naturam habet quod sit liberi arbitriirdquo 138 Idem Suma Contra os Gentios III LXX 5 [2465] ldquoNon enim hoc est ex insufficientia divinae virtutis sed ex immensitate bonitatis ipsius per quam suam similitudinem rebus communicare voluit non solum quantum ad hoc quod essent sed etiam quantum ad hoc quod aliorum causae essent []rdquo BRAGUE A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila p 288 ldquoDeus lhe delega sua providecircncia ateacute fazer coincidir Sua providecircncia com a prudecircncia palavra que na histoacuteria da

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Mais uma vez nos deparamos com a face filosoacutefica da eacutetica de Tomaacutes Comentando estas passagens Brague destaca a perspectiva poieacutetica da eacutetica tomasiana visto que nela o homem natildeo eacute soacute ldquoobjetordquo de uma realidade jaacute dada mas ldquosujeitordquo que cria a sua morada por sua capacidade de agir livremente

Este bem do homem natildeo eacute soacute um bem criado para ele mas um bem que ele eacute capaz de criar A partir do momento em que eacute percebido dessa forma o homem entra em cena como sujeito e natildeo apenas como objeto Assim penetra-se no campo da moral como teoria do bem enquanto criaacutevel pelo homem o qual se apropria desse bem na excelecircncia humana ou virtude139

Mondin define a moral exatamente como o exerciacutecio de o

homem construir-se como homem ldquoFazer o homem mdash que eacute a tarefa proacutepria da moral mdash significa fazer o homem em todas as suas dimensotildees []rdquo140 Noutro lugar ele retoma a mesma ideia ldquoA tarefa da eacutetica eacute fazer o homemrdquo141 Por fim Tomaacutes integra todos estes dados sobre o ato humano para definir o homem como pessoa Passemos agrave consideraccedilatildeo deste conceito

liacutengua constitui aliaacutes a coacutepia da primeira originaacuteria como ela do latim providentiardquo Idem Ibidem ldquoEis aqui o fruto produzido por um princiacutepio formulado fora a bondade de Deus vai ateacute transmitir ao que Ele cria Seu proacuteprio poder criadorrdquo 139 Idem Ibidem p 292 140 MONDIN Battista Definiccedilatildeo Filosoacutefica da Pessoa Humana Trad Jacinta Turolo Garcia Satildeo Paulo EDUSC 1998 p 23 141 Idem Ibidem p 37 Ao usar os verbos ldquoagordquo e ldquofaciordquo natildeo desconhecemos que eles possuem stricto sensu significaccedilotildees distintas pois o agir eacute um ato que termina na perfeiccedilatildeo do sujeito e o fazer eacute um ato transeunte que termina na perfeiccedilatildeo do objeto TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 57 4 C ldquoDiffert autem facere et agere quia ut dicitur in IX Metaphys factio est actus transiens in exteriorem materiam sicut aedificare secare et huiusmodi agere autem est actus permanens in ipso agente sicut videre velle et huiusmodirdquo ldquoFazer e agir satildeo coisas diferentes O primeiro como se diz no livro IX da Metafiacutesica eacute um ato que passa para uma mateacuteria exterior como construir cortar e outros enquanto que o segundo eacute um ato que fica no proacuteprio agente como ver querer e semelhantesrdquo Contudo lato sensu no sentido de que o agir perfaz o nosso caraacuteter e assim as nossas relaccedilotildees e o ambiente que nos circunda natildeo haacute razatildeo a nosso ver para natildeo aproximarmos o agir eacutetico de uma espeacutecie de fazer poieacutetico

200 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino 361 A PESSOA

Assim chegamos a um ponto importante da eacutetica tomasiana Afirma Tomaacutes ldquoPessoa significa o que haacute de mais perfeito em toda natureza a saber o que subsiste numa natureza racionalrdquo142 No De Potentia diz o mesmo ldquoA natureza implicada na significaccedilatildeo do nome pessoa eacute a mais digna de todas as naturezas uma vez que eacute a natureza intelectiva em toda a sua amplidatildeordquo143 E o que haacute de mais nobre no proacuteprio ser pessoa e por isso livre eacute a sua possibilidade de fazer-se

Diversamente dos outros seres vivos cujo ser eacute inteiramente produzido preacute-fabricado pela natureza o homem eacute grande em medida o artiacutefice de si mesmo [] Ele deve se construir com suas proacuteprias matildeos cultivando a si mesmo144

A liberdade eacute dada ao homem para que ele possa realizar a si mesmo seu proacuteprio ser porque ele realiza tudo aquilo que a natureza apenas comeccedilou a esboccedilar145

Pensa Battista Mondin que Tomaacutes ao definir o homem

como pessoa e ao dizer que eacute na liberdade da pessoa que se radica a vida eacutetica retoma a ideia dos antigos de que a eacutetica eacute sob certo aspecto uma ldquoarterdquo Diz o estudioso ldquoNa origem a pessoa humana eacute um projeto mais do que uma obra completa A pessoa eacute uma obra de arte a maior de todas as obras de arterdquo146 Aliaacutes o proacuteprio Tomaacutes concebe a vida eacutetica como uma vida bela Para ele a beleza

142 Idem Ibidem I 29 3 C ldquoRespondeo dicendum quod persona significat id quod est perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturardquo 143 TOMAacuteS DE AQUINO De Potentia q 9 a 1 co In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 371 ldquoNatura autem quam persona in sua significatione includit est omnium naturarum dignissima scilicet natura intellectualis secundum genus suumrdquo 144 MONDIN Definiccedilatildeo Filosoacutefica da Pessoa Humana pp 15 e 16 145 Idem Ibidem p 18 146 Idem Ibidem p 38

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espiritual consiste numa vida vivida e construiacuteda segundo a reta razatildeo

[] Do mesmo modo a beleza espiritual consiste em ter o homem comportamento e atividade bem equilibrados pelo esplendor espiritual da razatildeo Mas isso diz respeito agrave razatildeo de honesto que acabamos de declarar idecircntico agrave virtude a qual regula todas as coisas humanas de acordo com a razatildeo Por isso o honesto eacute o mesmo que a beleza espiritual []147

Com os resultados jaacute obtidos podemos aprofundar o

conceito de pessoa a fim de percebermos quais satildeo as suas implicaccedilotildees eacuteticas Segundo Garrigou-Lagrange na sua siacutentese do pensamento de Tomaacutes ldquo[] a pessoa eacute um sujeito inteligente e livre []rdquo148 Para bem compreendermos o enunciado cumpre analisarmos cada um dos termos contidos na definiccedilatildeo Antes de mais importa entendermos o que nela estaacute pressuposto a saber o conceito de substacircncia (substantia) conforme a definiccedilatildeo que Tomaacutes retoma de Boeacutecio ldquo[] a pessoa eacute segundo Boeacutecio a lsquosubstacircncia individual de uma natureza racionalrsquordquo 149 Ora a substacircncia eacute aquilo que existe por si eacute o ens per se diriam os escolaacutesticos Em outros termos a substacircncia eacute aquilo que estaacute apto para existir em oposiccedilatildeo agravequilo que natildeo pode existir por si a saber ao acidente (accidens) Este uacuteltimo por natildeo possuir um ato de ser (actus essendi) proacuteprio soacute pode subsistir na e pela substacircncia que ao contraacuterio possui um actus essendi proacuteprio150

147 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 145 2 C ldquoEt similiter pulchritudo spiritualis in hoc consistit quod conversatio hominis sive actio eius sit bene proportionata secundum spiritualem rationis claritatem Hoc autem pertinet ad rationem honesti quod diximus idem esse virtuti quae secundum rationem moderatur omnes res humanas Et ideo honestum est idem spirituali decorirdquo 148 GARRIGOU-LAGRANGE Reacuteginald La Siacutentesis Tomista Trad Eugenio S Melo Buenos Aires Ediciones Descleacutee 1946 p 247 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] la persona es un sujeto inteligente y libre []rdquo 149 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica III 2 2 C ldquo[] persona quam rationalis naturae individua substantia secundum Boetium []rdquo 150 MONDIN Battista Substacircncia In ______ Glossaacuterio dos Principais Termos Teoloacutegico-Filosoacuteficos Trad Joseacute Maria de Almeida 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 p 440

202 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Dessa anaacutelise chegamos a outro conceito fundamental Se a substacircncia possui um ato de ser proacuteprio e natildeo existe em outra coisa senatildeo em si mesma ela eacute entatildeo distinta de tudo eacute um indiviacuteduo Com efeito um indiviacuteduo como define Tomaacutes ldquo[] eacute o que eacute indiviso em si e distinto dos outrosrdquo151 De fato o universal e o particular se encontram em todos os gecircneros do ser poreacutem eacute no gecircnero substacircncia que particularmente se encontra o indiviacuteduo Enquanto os acidentes subsistem como indiviacuteduos nas substacircncias as substacircncias satildeo individuadas por si mesmas Em outras palavras se os acidentes tornam-se indivisos por existirem numa substacircncia a proacutepria substacircncia eacute indivisa em si mesma Por isso eacute ao indiviacuteduo do gecircnero substacircncia isto eacute agravequele que subsiste em si mesmo que damos formalmente o nome de hipoacutestase ou substacircncia primeira152

Todavia a pessoa natildeo eacute somente uma substacircncia individual mas como jaacute havia definido Boeacutecio uma substacircncia individual de natureza racional (individua substantia rationalis naturae) Com efeito o particular e o individual se encontram de maneira ainda mais especial e perfeita nas chamadas substacircncias racionais Isto se daacute pelo fato de as substacircncias racionais possuiacuterem o domiacutenio dos seus atos (dominium sui actus) Elas natildeo estatildeo fadadas a agir somente por causalidade natural mas podem desencadear uma causalidade proacutepria Aliaacutes eacute esta peculiaridade que distingue as substacircncias racionais das demais substacircncias elas satildeo capazes de agir por si mesmas (per se agunt) De fato denominamos pessoa (persona) precisamente a substacircncia racional que aleacutem de existir por si (ens per se) ou exatamente por isso eacute capaz em virtude da sua racionalidade de agir por si Disso

151 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 29 4 C ldquoIndividuum autem est quod est in se indistinctum ab aliis vero distinctumrdquo GILSON O Espiacuterito da Filosofia Medieval p 265 ldquoUm indiviacuteduo eacute um ser dividido de todos os outros seres e por sua vez natildeo divisiacutevel em outros seresrdquo 152 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 29 1 C ldquoSubstantia enim individuatur per seipsam sed accidentia individuantur per subiectum quod est substantia []rdquo ldquoA substacircncia com efeito eacute individuada por si mesma Mas os acidentes o satildeo pelo sujeito isto eacute pela substacircncia []rdquo

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decorre que o homem eacute uma pessoa isto eacute uma substacircncia racional resultante da uniatildeo substancial entre alma e corpo que existe e age por si Vale ceder a palavra ao proacuteprio Tomaacutes

O particular e o indiviacuteduo realizam-se de maneira ainda mais especial e perfeita nas substacircncias racionais que tecircm o domiacutenio de seus atos e natildeo satildeo apenas movidas na accedilatildeo como as outras mas agem por si mesmas Ora as accedilotildees estatildeo nos singulares Por isso entre as outras substacircncias os indiviacuteduos de natureza racional tecircm o nome especial de pessoa153

Para prosseguirmos na abordagem sobre a pessoa cumpre

que ponderemos o que eacute o bem e quais satildeo os seus desdobramentos a fim de verificarmos em qual escala se encontra a pessoa na hierarquia dos bens 362 O BEM UacuteTIL HONESTO E DELEITAacuteVEL

O bem em Tomaacutes natildeo eacute um conceito uniacutevoco mas pluriacutevoco154 Contudo abstraiacutedo relativamente dos modos como se realiza podemos defini-lo como aquilo para o qual todos tendem ou aquilo que todos desejam155 Dito isso podemos considerar a existecircncia de um bem uacutetil honesto e deleitaacutevel O bem uacutetil eacute aquele que eacute desejado como meio para se chegar a um fim isto eacute aquele que eacute apetecido tendo em vista este fim Jaacute o bem honesto eacute aquele

153 Idem Ibidem ldquoSed adhuc quodam specialiori et perfectiori modo invenitur particulare et individuum in substantiis rationalibus quae habent dominium sui actus et non solum aguntur sicut alia sed per se agunt actiones autem in singularibus sunt Et ideo etiam inter ceteras substantias quoddam speciale nomen habent singularia rationalis naturae Et hoc nomen est personardquo 154 Idem Ibidem I 5 6 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod bonum non dividitur in ista tria sicut univocum aequaliter de his praedicatum sed sicut analogum []rdquo ldquoDeve-se dizer que o bem natildeo se divide nestes trecircs gecircneros como um termo uniacutevoco atribuiacutedo igualmente a eles mas como um termo anaacutelogo [hellip]rdquo 155 Idem Ibidem I 5 1 C ldquoRatio enim boni in hoc consistit quod aliquid sit appetibile unde philosophus in I Ethic dicit quod bonum est quod omnia appetuntrdquo ldquo[] a razatildeo do bem consiste em que alguma coisa seja atrativa Por isso mesmo o Filoacutesofo no livro I da Eacutetica assim define o bem lsquoAquilo para o qual todas as coisas tendemrsquordquo

204 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que eacute desejado por si ou seja querido por si mesmo e natildeo como meio para se alcanccedilar outra coisa por isso tem razatildeo de fim e natildeo de meio O bem deleitaacutevel eacute aquele no qual repousa a vontade vale dizer eacute o termo uacuteltimo do seu movimento156 Estes bens natildeo satildeo opostos ou excludentes mas complementares entretanto pode acontecer que acidentalmente um contrarie o outro Por exemplo um bem que seja apetecido uacutenica e exclusivamente em razatildeo de ser deleitaacutevel inobstante seja deleitaacutevel pode ser desonesto Desta sorte o sexo cujo fim eacute a procriaccedilatildeo quando praticado apenas por luxuacuteria torna-se um bem desonesto Assim acontece tambeacutem com um remeacutedio amargo que eacute um bem uacutetil porque desejado tatildeo somente como meio para se alcanccedilar a sauacutede se no entanto por absurdo fosse ingerido como um fim em si mesmo tornar-se-ia desonesto157 Atendo-nos agrave definiccedilatildeo de bem exposta fica evidente

156 Idem Suma Teoloacutegica I 5 6 C ldquoRespondeo dicendum quod haec divisio proprie videtur esse boni humani Si tamen altius et communius rationem boni consideremus invenitur haec divisio proprie competere bono secundum quod bonum est Nam bonum est aliquid inquantum est appetibile et terminus motus appetitus Cuius quidem motus terminatio considerari potest ex consideratione motus corporis naturalis Terminatur autem motus corporis naturalis simpliciter quidem ad ultimum secundum quid autem etiam ad medium per quod itur ad ultimum quod terminat motum et dicitur aliquis terminus motus inquantum aliquam partem motus terminat Id autem quod est ultimus terminus motus potest accipi dupliciter vel ipsa res in quam tenditur utpote locus vel forma vel quies in re illa Sic ergo in motu appetitus id quod est appetibile terminans motum appetitus secundum quid ut medium per quod tenditur in aliud vocatur utile Id autem quod appetitur ut ultimum terminans totaliter motum appetitus sicut quaedam res in quam per se appetitus tendit vocatur honestum quia honestum dicitur quod per se desideratur Id autem quod terminat motum appetitus ut quies in re desiderata est delectatiordquo ldquoEsta divisatildeo propriamente parece ser do bem humano No entanto se consideramos a razatildeo de bem de maneira mais profunda e geral vemos que esta divisatildeo cabe propriamente ao bem enquanto tal Com efeito uma coisa eacute boa enquanto atrativa e enquanto termo do movimento do apetite Ora o termo deste movimento pode ser comparado ao do corpo fiacutesico O movimento do corpo fiacutesico termina absolutamente em seu termo uacuteltimo mas sob certo aspecto ele termina no espaccedilo intermediaacuterio por onde se vai ateacute o termo uacuteltimo que termina o movimento Assim se chama termo de um movimento o que termina uma parte do movimento O termo uacuteltimo do movimento pode-se entender de duas maneiras ou a coisa agrave qual se tende como a forma o lugar ou o repouso naquela coisa Assim no movimento do apetite chama-se uacutetil aquilo que eacute atrativo e termina o movimento sob certo aspecto como um meio pelo qual se tende para outra coisa Aquilo que eacute atrativo como uacuteltimo e termina completamente o movimento do apetite chama-se honesto por exemplo alguma coisa para a qual o apetite tende por si Por isso chama-se honesto o que eacute desejaacutevel em si mesmo Enfim aquilo que termina o movimento do apetite como repouso na coisa desejada eacute o agradaacutevelrdquo 157 Idem Ibidem I 5 6 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod haec divisio non est per oppositas res sed per oppositas rationes Dicuntur tamen illa proprie delectabilia quae nullam habent aliam

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que a razatildeo de bem se realiza mais perfeitamente naquele que eacute desejado por si mesmo a saber o bem honesto Em segundo lugar no bem deleitaacutevel onde a vontade se aquieta Por uacuteltimo no bem uacutetil no qual a razatildeo de bem se realiza de forma menos proacutepria pois ele soacute eacute desejado enquanto meio que leva a um fim158

Ora Tomaacutes admite um bem honesto relativo agrave ordem natural a saber o homem Procuremos entender Diz o Aquinate ldquoNo homem se encontram de certo modo todas as coisasrdquo159 A partir disso prossegue dizendo que sendo o homem de certa forma um microcosmo tem-se que o modo como ele domina as coisas que estatildeo nele eacute o mesmo pelo qual ele domina todas as coisas Pois bem pela razatildeo o homem se equipara aos anjos pelas potecircncias sensitivas aos animais pelas naturais agraves plantas pelo corpo agraves coisas inanimadas De sorte que a razatildeo eacute o que haacute de mais nobre no homem e eacute pela razatildeo que o homem se ordena a dominar todas as coisas do macrocosmo e consequentemente a natildeo ser dominado por nenhuma delas Em passagem jaacute citada diz Tomaacutes ldquoA razatildeo no homem ocupa o lugar do que domina e natildeo do que estaacute submetido agrave dominaccedilatildeordquo160 A questatildeo que se segue eacute esta como o homem exerce este seu domiacutenio racional sobre todas as coisas Em relaccedilatildeo agraves potecircncias sensiacuteveis a razatildeo domina dando-lhes ordens Assim o homem domina os animais dando-lhes ordens em relaccedilatildeo agraves plantas e agraves coisas inanimadas como agraves

rationem appetibilitatis nisi delectationem cum aliquando sint et noxia et inhonesta Utilia vero dicuntur quae non habent in se unde desiderentur sed desiderantur solum ut sunt ducentia in alterum sicut sumptio medicinae amarae Honesta vero dicuntur quae in seipsis habent unde desiderenturrdquo ldquoDeve-se dizer que esta divisatildeo natildeo eacute por coisas opostas mas por razotildees opostas Entretanto chama-se apropriadamente agradaacutevel aquilo cuja uacutenica razatildeo de atraccedilatildeo eacute o deleite ainda que alguma vez seja natildeo soacute nocivo como tambeacutem desonesto Chama-se uacutetil o que em si mesmo nada tem por onde ser atrativo mas eacute desejado apenas enquanto leva a outras coisas como tomar um remeacutedio amargo Pelo contraacuterio chama-se honesto o que em si mesmo tem por onde ser desejadordquo 158 Idem Ibidem I 5 6 ad 3 ldquoPer prius enim praedicatur de honesto et secundario de delectabili tertio de utilirdquo ldquoEm primeiro lugar atribui-se ao honesto em segundo ao agradaacutevel e em terceiro ao uacutetilrdquo 159 Idem Ibidem I 96 2 C ldquoRespondeo dicendum quod in homine quodammodo sunt omnia []rdquo 160 Idem Ibidem ldquoRatio autem in homine habet locum dominantis et non subiecti dominiordquo

206 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino suas potecircncias naturais e ao seu proacuteprio corpo o homem domina utilizando-os Poreacutem quando domina outros homens o homem natildeo os domina dando-lhes ordens ou utilizando-os mas sim como ldquo[] algueacutem domina a outro como livre quando o dirige para o proacuteprio bem daquele que eacute dirigido ou para o bem comumrdquo161 Nisto pois reside a dignidade da pessoa humana por ser livre e capaz de ser senhor de si o homem natildeo pode ser tomado como meio ou como servo mas deve ser sempre respeitado como fim Retomemos toda a passagem

O motivo disso eacute que o livre difere do servo porque o livre eacute causa de si como se diz no iniacutecio da Metafiacutesica o servo poreacutem eacute ordenado para outro Entatildeo algueacutem domina outrem como servo quando refere aquele que eacute dominado agrave proacutepria utilidade a saber do que domina E porque o proacuteprio bem eacute apeteciacutevel a cada um consequumlentemente eacute contristador a algueacutem ceder a outrem o bem que deveria pertencer-lhe assim tal domiacutenio natildeo pode existir sem pena dos suacuteditos162

Natildeo se trata de negar as raiacutezes cristatildes de Tomaacutes mas de

perceber como ele se utiliza de algumas verdades reveladas tambeacutem para dar ldquocidadaniardquo agrave ordem natural Todo o argumento acima esconde um estreito laccedilo com a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde na qual o homem eacute o aacutepice da criaccedilatildeo Na verdade o Aquinate reconquista em termos filosoacuteficos algumas ldquoverdades cristatildesrdquo Diz ele ldquo[] na hierarquia dos seres os menos perfeitos satildeo para os mais perfeitos []rdquo163 Em seguida revela de onde retira este argumento ldquo[] como no processo da geraccedilatildeo a natureza vai do

161 Idem Ibidem I 96 4 C ldquoTunc vero dominatur aliquis alteri ut libero quando dirigit ipsum ad proprium bonum eius qui dirigitur vel ad bonum communerdquo 162 Idem Ibidem ldquoCuius ratio est quia servus in hoc differt a libero quod liber est causa sui ut dicitur in principio Metaphys servus autem ordinatur ad alium Tunc ergo aliquis dominatur alicui ut servo quando eum cui dominatur ad propriam utilitatem sui scilicet dominantis refert Et quia unicuique est appetibile proprium bonum et per consequens contristabile est unicuique quod illud bonum quod deberet esse suum cedat alteri tantum ideo tale dominium non potest esse sine poena subiectorumrdquo 163 Idem Ibidem II-II 64 1 C ldquoIn rerum autem ordine imperfectiora sunt propter perfectiora []rdquo

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imperfeito ao perfeitordquo164 Por fim chega a exemplificar ldquo[] na geraccedilatildeo do homem primeiro existe o ser vivo depois o animal e finalmente o homemrdquo165 Aqui natildeo eacute o lugar de discutirmos os limites dos conhecimentos bioloacutegicos de Tomaacutes O que nos importa reter eacute o seguinte na argumentaccedilatildeo de Tomaacutes a ordem das coisas nos ensina que ldquo[] os seres que soacute tecircm a vida os vegetais satildeo no conjunto destinados a servir aos animais todos e os animais ao homemrdquo 166 Ora eacute deste raciociacutenio que ele deduz que ldquo[] conserva-se a vida dos animais e das plantas natildeo por causa deles mas do homemrdquo167 ou seja o homem na ordem da geraccedilatildeo natural apresenta-se como um bem querido por si mesmo um fim A bem da verdade ao discriminar o que distingue o homem dos outros seres vivos Aquino aduz ainda o mesmo argumento no qual fundamenta o seu conceito de pessoa a saber a capacidade de agir por si mesmo ldquoDeve-se dizer que os animais e as plantas natildeo tecircm a vida racional que lhes facultaria agir por eles mesmosrdquo168 E eacute soacute apoacutes esta complexa argumentaccedilatildeo e como um corolaacuterio moral e natildeo como parte dela que o Aquinate cita uma passagem do livro do Gecircnesis

Pois se lecirc no livro do Gecircnesis ldquoEis que vos dou todas as ervas e todas as aacutervores para vos servirem de sustento para voacutes e os animais da terrardquo E ainda ldquoTudo o que se move e vive vos serviraacute de alimentordquo169

164 Idem Ibidem ldquo[] sicut etiam in generationis via natura ab imperfectis ad perfecta proceditrdquo 165 Idem Ibidem ldquoEt inde est quod sicut in generatione hominis prius est vivum deinde animal ultimo autem homo []rdquo 166 Idem Ibidem ldquo[] ita etiam ea quae tantum vivunt ut plantae sunt communiter propter omnia animalia et animalia sunt propter hominemrdquo 167 Idem Ibidem II-II 64 1 ad 1 ldquo[] conservatur vita animalium et plantarum non propter seipsam sed propter hominemrdquo 168 Idem Ibidem II-II 64 1 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod animalia bruta et plantae non habent vitam rationalem per quam a seipsis agantur []rdquo 169 Idem Ibidem II-II 64 1 C ldquo[] dicitur enim Gen I ecce dedi vobis omnem herbam et universa ligna ut sint vobis in escam et cunctis animantibus Et Gen IX dicitur omne quod movetur et vivit erit vobis in cibumrdquo

208 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Com efeito ao definir o homem como pessoa Tomaacutes o coloca como imagem de Deus Natildeo sem razatildeo eacute seguindo esta linha que ele pode dizer que a perfeiccedilatildeo da pessoa conveacutem antes de mais a Deus ldquoOra tudo o que diz perfeiccedilatildeo deve ser atribuiacutedo a Deus [] Conveacutem portanto atribuir a Deus este nome pessoardquo170 Em outros termos o que o Aquinate faz natildeo eacute senatildeo traduzir em termos filosoacuteficos uma parte da teologia do homem como imagem de Deus (Gn 1 26) a saber o fato de o homem ser pessoa Pelo contexto da uacuteltima citaccedilatildeo da Summa podemos observar ainda que a imagem de Deus no homem mostra-se precisamente pelo dinamismo do ato livre o qual por sua vez eacute derivado da sua natureza racional Numa passagem agrave qual voltaremos no proacuteximo capiacutetulo Tomaacutes resume exatamente nestes termos a sua eacutetica

Afirma Damasceno que o homem eacute criado agrave imagem de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-arbiacutetrio e revestido por si de poder Apoacutes ter discorrido sobre o exemplar a saber Deus e sobre as coisas que procederam do poder voluntaacuterio de Deus deve-se considerar agora a sua imagem a saber o homem enquanto ele eacute o princiacutepio de suas accedilotildees possuindo livre-arbiacutetrio e domiacutenio sobre suas accedilotildees171

Este passo daacute-nos a conhecer que na ordem natural

exatamente enquanto imagem de Deus ou em termos filosoacuteficos enquanto pessoa capaz de ser princiacutepio de suas accedilotildees o homem eacute sempre um fim para o qual se ordenam os meios a serem escolhidos pelo diaacutelogo entre razatildeo e vontade Em outras palavras

170 Idem Ibidem I-II 29 3 C ldquoUnde cum omne illud quod est perfectionis Deo sit attribuendum eo quod eius essentia continet in se omnem perfectionem conveniens est ut hoc nomen persona de Deo dicaturrdquo 171 Idem Ibidem I-II Proacutelogo [O segundo itaacutelico eacute nosso] ldquoQuia sicut Damascenus dicit homo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et arbitrio liberum et per se potestativum postquam praedictum est de exemplari scilicet de Deo et de his quae processerunt ex divina potestate secundum eius voluntatem restat ut consideremus de eius imagine idest de homine secundum quod et ipse est suorum operum principium quasi liberum arbitrium habens et suorum operum potestatemrdquo

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o homem natildeo pode ser tomado como bem uacutetil ou simplesmente deleitaacutevel Ele eacute inclusive em teologia a seu modo um bem honesto porquanto querido por si mesmo por Deus que a ele tudo submeteu Natildeo eacute de pouca monta que Tomaacutes num ceacutelebre artigo do tratado De Homine da Summa argumenta que tendo sido o homem ldquo[] estabelecido como um intermediaacuterio entre as criaturas corruptiacuteveis e incorruptiacuteveis pois sua alma eacute por natureza incorruptiacutevel e seu corpo eacute por natureza corruptiacutevelrdquo172 ele foi querido por si mesmo enquanto indiviacuteduo e natildeo somente em virtude da perpetuaccedilatildeo da espeacutecie

Pela alma incorruptiacutevel ao contraacuterio conveacutem que a multidatildeo dos indiviacuteduos seja visada por si pela natureza ou antes pelo autor da natureza que eacute o uacutenico criador das almas humanas173

Natildeo eacute o lugar para dissertarmos sobre o complexo tema da

imortalidade da alma nem eacute preciso insistir no paradigma ldquoteiacutestardquo O que Tomaacutes quer frisar pode ser assim resumido se o agir segue o ser em ato174 e o modo de agir o modo de ser175 uma vez que o homem eacute capaz de ser senhor de suas accedilotildees pois sua razatildeo torna-o capaz de pelo juiacutezo racional preferir um bem a outro176 segue-se

172 Idem Ibidem I 98 1 C ldquoEst ergo considerandum quod homo secundum suam naturam est constitutus quasi medium quoddam inter creaturas corruptibiles et incorruptibiles nam anima eius est naturaliter incorruptibilis corpus vero naturaliter corruptibilerdquo 173 Idem Ibidem ldquoEx parte vero animae quae incorruptibilis est competit ei quod multitudo individuorum sit per se intenta a natura vel potius a naturae auctore qui solus est humanarum animarum creatorrdquo 174 Idem Suma Contra os Gentios III LXIX 10 [2450] ldquo[] agit enim unumquodque secundum quod est acturdquo ldquo[] o agir segue o ser em ato []rdquo 175 Idem Suma Teoloacutegica I 89 1 C ldquo[] modus operandi uniuscuiusque rei sequitur modum essendi ipsiusrdquo ldquo[] o modo de agir de toda coisa eacute uma consequumlecircncia de seu modo de existirrdquo 176 Idem Ibidem I 83 1 C ldquoO homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute o efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetosrdquo Uma autorizada e atualizada concepccedilatildeo do homem como pessoa mdash em larga medida devedora da siacutentese tomasiana mdash como ser livre dotado de abertura e da capacidade de transcender-se encontra-se em Lima Vaz que adentra na temaacutetica a partir de uma revalorizaccedilatildeo da especificidade da dimensatildeo

210 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que ele eacute um bem em si mesmo a saber um bem honesto Mas eacute preciso ressaltar que exaltando a dignidade da pessoa Tomaacutes natildeo se afasta de uma eacutetica das virtudes nem da eydaimoniacutea porque o bem honesto reside justamente no ldquoflorescimento da pessoa humanardquo o qual consiste na accedilatildeo de acordo com a reta razatildeo ou seja no agir virtuosamente

O honesto tem o mesmo objeto que o uacutetil e deleitaacutevel mas se distingue deles pela razatildeo pois uma coisa eacute dita honesta quando possui certo brilho por estar de acordo com os princiacutepios da razatildeo Ora o que estaacute conforme a razatildeo eacute por natureza conveniente ao homem E todo ser naturalmente se compraz com o que lhe conveacutem Assim o honesto eacute naturalmente prazeroso para o homem como prova o Filoacutesofo a propoacutesito dos atos virtuosos No entanto nem tudo o que eacute deleitaacutevel eacute honesto porque pode um bem ser conveniente aos sentidos e natildeo agrave razatildeo Nesse caso poreacutem eacute deleitaacutevel contra a ordem da razatildeo a qual aperfeiccediloa a natureza humana177

Todavia quando pensamos que estaacute tudo dito a respeito da

racionalidade humana e da incomunicabilidade do ser pessoa verificamos que o Aquinate em outros textos descobre como que outra face desta mesma racionalidade a saber a dimensatildeo da comunicabilidade ldquoA pessoa [] eacute essencialmente comunicaccedilatildeordquo178 Podemos assim retornar ao tema da civitas mas desta feita ancorados na fundamentaccedilatildeo do caraacuteter intransferiacutevel do ato humano isto eacute do homem concebido como pessoa A

pneumaacutetica do homem VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Antropologia Filosoacutefica I 7 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 pp 181-264 177 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 145 3 C ldquoRespondeo dicendum quod honestum concurrit in idem subiectum cum utili et delectabili a quibus tamen differt ratione Dicitur enim aliquid honestum sicut dictum est inquantum habet quendam decorem ex ordinatione rationis Hoc autem quod est secundum rationem ordinatum est naturaliter conveniens homini Unumquodque autem naturaliter delectatur in suo convenienti Et ideo honestum est naturaliter homini delectabile sicut de operatione virtutis philosophus probat in I Ethic Non tamen omne delectabile est honestum quia potest etiam aliquid esse conveniens secundum sensum non secundum rationem sed hoc delectabile est praeter hominis rationem quae perficit naturam ipsiusrdquo 178 MONDIN Definiccedilatildeo Filosoacutefica da Pessoa Humana p 30

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mencionada comunicabilidade proacutepria da pessoa baseada no ato livre daacute-se tambeacutem pelo que podemos denominar ldquoamizade poliacuteticardquo De fato assim como a ldquopessoardquo eacute o que existe de mais perfeito no universo a comunidade das pessoas humanas a civitas eacute a comunidade perfeita porque por ela as potencialidades da pessoa se perfazem no dinamismo do ato livre 37 A AMIZADE

Do fato de o homem natildeo poder viver tampouco viver bem sozinho segue-se que ele precisa do seu semelhante para ser feliz e construir o seu mundo Nasce entatildeo a ldquoamizade poliacuteticardquo Acerca desta amizade quando fala da felicidade da civitas afirma o Frade Dominicano

Se falamos da felicidade da vida presente como diz o Filoacutesofo no livro IX da Eacutetica o homem feliz necessita de amigos [] Necessita ainda dos amigos para praticar o bem tanto nas obras da vida ativa como nas da vida contemplativa179

Mas soacute entenderemos como se daacute este viacutenculo entre

homens se compreendermos o proacuteprio conceito de amizade Para Tomaacutes o laccedilo criado pela amizade natildeo eacute o de qualquer amor pois deve implicar benevolecircncia E benevolecircncia significa querer o bem de quem se ama180 Natildeo podemos dizer-nos amigos do vinho ou do cavalo pois deles natildeo queremos senatildeo o bem que eles nos podem dar Natildeo eacute assim na amizade Nela pensamos antes no bem que

179 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 4 8 C ldquoRespondeo dicendum quod si loquamur de felicitate praesentis vitae sicut philosophus dicit in IX Ethic felix indiget amicis non quidem propter utilitatem cum sit sibi sufficiens [] Indiget enim homo ad bene operandum auxilio amicorum tam in operibus vitae activae quam in operibus vitae contemplativaerdquo 180 Idem Ibidem II-II 23 1 C ldquo[] non quilibet amor habet rationem amicitiae sed amor qui est cum benevolentia quando scilicet sic amamus aliquem ut ei bonum velimusrdquo ldquo[] natildeo eacute qualquer amor que realiza a noccedilatildeo de amizade mas somente o amor de benevolecircncia pelo qual queremos bem a quem amamosrdquo

212 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino podemos dar ao outro do que naquele que podemos receber dele181 Por isso o indicativo da amizade eacute a reciprocidade Sem reciprocidade de amor natildeo haacute amizade verdadeira Eacute preciso pois que o amigo tambeacutem queira o nosso bem Tomaacutes chega a dizer que ldquo[] o homem considera o amigo como um outro eurdquo182 Em virtude disso a amizade consiste numa muacutetua benevolecircncia em torno da qual se funda uma comunhatildeo que se pauta em um querer o bem do outro183 Na concepccedilatildeo de Tomaacutes haacute mdash como jaacute dissemos mdash uma ldquoamizade poliacuteticardquo agrave qual todo homem se inclina naturalmente E eacute ela que condiciona a ldquovida eacuteticardquo

Aleacutem disso sendo o homem naturalmente um animal social necessita do auxiacutelio dos outros homens para alcanccedilar o seu fim Isto com efeito realiza-se com muita conveniecircncia se existe o amor muacutetuo entre os homens184

Acerca desta ldquoamizade poliacuteticardquo mdash agrave qual todos os homens

tendem por natureza mdash gostariacuteamos de citar outro texto significativo

[] Eacute natural aos homens amarem-se mutuamente Vecirc-se o sinal disto no instinto natural segundo o qual um homem auxilia outro homem qualquer nas necessidades como por exemplo

181 Idem Ibidem ldquoSi autem rebus amatis non bonum velimus sed ipsum eorum bonum velimus nobis sicut dicimur amare vinum aut equum aut aliquid huiusmodi non est amor amicitiae sed cuiusdam concupiscentiae ridiculum enim est dicere quod aliquis habeat amicitiam ad vinum vel ad equumrdquo ldquoSe poreacutem natildeo queremos o bem daquilo que amamos e antes queremos para noacutes o bem que haacute neles quando por exemplo dizemos amar o vinho ou o cavalo etc natildeo haacute amor de amizade mas um amor de concupiscecircnciardquo 182 Idem Suma Contra os Gentios IV XXI 5 [3579] ldquo[] cum homo amicum habeat ut se alterum []rdquo 183 Idem Suma Teoloacutegica II-II 23 1 C ldquoSed nec benevolentia sufficit ad rationem amicitiae sed requiritur quaedam mutua amatio quia amicus est amico amicus Talis autem mutua benevolentia fundatur super aliqua communicationerdquo ldquo[] eacute preciso que haja reciprocidade de amor pois um amigo eacute amigo de seu amigo Ora essa muacutetua benevolecircncia eacute fundada em alguma comunhatildeordquo 184 Idem Suma Contra os Gentios III CXVII 3 [2897] ldquoCum homo sit naturaliter animal sociale indiget ab aliis hominibus adiuvari ad consequendum proprium finem Quod convenientissime fit dilectione mutua inter homines existenterdquo

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afastando-o do caminho errado levantando-o na queda etc como se todo homem fosse ao homem naturalmente familiar e amigo185

Mas a amizade extravasa os limites da civitas e ganha uma

feiccedilatildeo pessoal Passamos a arrolar agora algumas caracteriacutesticas peculiares da amizade segundo Tomaacutes Quando somos amigos de algueacutem afirma o Aquinate amamos tambeacutem as pessoas e as coisas que lhes satildeo caras Se este amor eacute muito intenso amamos mesmo aqueles que nos ofendem se ao menos eles satildeo estimados pelos nossos amigos186 Aleacutem disso poder gozar da presenccedila do amigo dos seus gestos e palavras principalmente nas agruras e infortuacutenios que a vida nos reserva eacute-nos um grande consolo187 Ademais eacute mesmo natural da amizade natildeo soacute que um amigo revele ao outro os seus segredos188 senatildeo que tambeacutem o socorra em suas necessidades189 partilhando com alegria os seus bens pois na

185 Idem Idem III CXVII 5 [2899] ldquoEst autem omnibus hominibus naturale ut se invicem diligant Cuius signum est quod quodam naturali instinctu homo cuilibet homini etiam ignoto subvenit in necessitate puta revocando ab errore viae erigendo a casu et aliis huiusmodi ac si omnis homo omni homini esset naturaliter familiaris et amicusrdquo 186 Idem Suma Teoloacutegica II-II 23 1 ad 2 ldquoEt tanta potest esse dilectio amici quod propter amicum amantur hi qui ad ipsum pertinent etiam si nos offendant vel odiantrdquo ldquoE a amizade que temos por um amigo pode ser tatildeo grande que por causa dela sejam amadas as pessoas que lhe satildeo proacuteximas mesmo que elas nos ofendam ou nos odeiemrdquo 187 Idem Suma Contra os Gentios IV XXII 2 [3586] ldquoEst autem et amicitiae proprium quod aliquis in praesentia amici delectetur et in eius verbis et factis gaudeat et in eo consolationem contra omnes anxietates inveniat unde in tristitiis maxime ad amicos consolationis causa confugimusrdquo ldquoEacute tambeacutem proacuteprio da amizade deleitar-se com a presenccedila do amigo alegrar-se com as suas palavras e atos e nele encontrar o consolo de todas as contrariedades Por isso nas tristezas nos refugiamos principalmente nos amigos devido ao seu consolordquo 188 Idem Ibidem IV XXI 4 [3578] ldquoEst autem hoc amicitiae proprium quod amico aliquis sua secreta revelet Cum enim amicitia coniungat affectus et duorum faciat quasi cor unum []rdquo ldquoEacute tambeacutem proacuteprio da amizade que o amigo revele ao amigo os seus segredos Sendo que a amizade une as afeiccedilotildees e faz de dois um soacute coraccedilatildeo []rdquo 189 Idem Ibidem IV XXII 3 [3587] ldquoSimiliter autem et amicitiae proprium est consentire amico in his quae vult []rdquo ldquoPois bem como tambeacutem eacute proacuteprio da amizade consentir naquilo que o amigo quer []rdquo

214 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino amizade cada qual considera outrem como outro eu190 Na Summa Tomaacutes conclui

[] Enquanto pelos movimentos externos nos ordenamos aos outros a moderaccedilatildeo deles eacute operada pela amizade ou afabilidade que demonstra por palavras e por obras nossa solidariedade com as alegrias e as tristezas dos que vivem conosco191

Observemos que mesmo quando ganha este caraacuteter

privado a amizade tanto na poacutelis de Aristoacuteteles quanto na civitas de Tomaacutes aperfeiccediloa e intensifica a justiccedila mdash virtude social por excelecircncia A amizade eacute pois um bem indispensaacutevel agrave vida em sociedade Ela eacute remeacutedio para muitos viacutecios desagregadores tais como a difamaccedilatildeo que consiste em criar intrigas em segredo com vista a destruir a reputaccedilatildeo alheia e a adulaccedilatildeo que se excede nas adjetivaccedilotildees192 Ademais vendo no amigo outro eu eacute refreada a soberba que consiste num olhar depreciativo que soacute repara os defeitos do outro 193 Outrossim a amizade instaura uma cooperaccedilatildeo que veda ao homem tomar como conquista exclusiva

190 Idem Ibidem IV XXI 5 [3579] ldquoNon solum autem est proprium amicitiae quod amico aliquis revelet sua secreta propter unitatem affectus sed eadem unitas requirit quod etiam ea quae habet amico communicet quia cum homo amicum habeat ut se alterum necesse est quod ei subveniat sicut et sibi sua ei communicans[]rdquo ldquoNatildeo obstante natildeo eacute somente proacuteprio da amizade revelar ao amigo os segredos devido agrave uniatildeo afetiva como tambeacutem ela exige ainda que se partilhe com o amigo aquilo que se possui como o homem considera o amigo como um outro eu e deve auxiliaacute-lo como se fosse a si mesmo dando-lhe o que pertence a si []rdquo 191 Idem Ibidem II-II 168 1 ad 3 ldquoInquantum enim per exteriores motus ordinamur ad alios pertinet exteriorum motuum moderatio ad amicitiam vel affabilitatem quae attenditur circa delectationes et tristitias quae sunt in verbis et factis in ordine ad alios quibus homo convivitrdquo 192 Idem Ibidem II-II 115 1 ad 3 C ldquoQuae ei contrariatur quantum ad ea quae dicuntur non autem directe quantum ad finem quia adulator quaerit delectationem eius cui adulatur detractor autem non quaerit eius contristationem cum aliquando occulte detrahat sed magis quaerit eius infamiamrdquo ldquoHaacute contrariedade entre elas naquilo que dizem mas natildeo diretamente no que concerne ao fim porque o adulador procura o prazer daquele que estaacute sendo adulado enquanto o difamador natildeo procura tanto a tristeza da sua viacutetima pois muitas vezes ele age em segredo e busca principalmente atingir sua reputaccedilatildeordquo 193 Idem Ibidem II-II 162 3 ad 2 ldquoEt ideo quaecumque ad hoc conferant quod aliquis existimet se supra id quod est inducunt hominem ad superbiam Quorum unum est quod aliquis consideret defectus aliorum []rdquo ldquoE por isso todas as coisas que levam algueacutem agrave superestima de si mesmo levam-no agrave soberba Uma delas eacute ficar reparando os defeitos dos outros []rdquo

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sua o que recebeu como benefiacutecio corporativo194 Ela tolhe o ldquoindividualismordquo incitado tambeacutem pela soberba que consiste em desprezar os outros a fim de preocupar-se apenas com a proacutepria excelecircncia195 Natildeo somente mas a amizade inaugura a proacutepria dimensatildeo da gratuidade que se daacute quando ultrapassamos o acircmbito do ldquoestritamente justordquo isto eacute quando fazemos aleacutem do que nos eacute devido196 Instala nas relaccedilotildees humanas aleacutem disso a gratidatildeo e a gratidatildeo os viacutenculos duradouros197 A troca de benefiacutecios enseja uma muacutetua estima ldquoDaiacute a frase de Secircneca lsquoQueres pagar um benefiacutecio Recebe-o de bom gradorsquordquo198 Por fim a amizade daacute

194 Idem Ibidem II-II 162 4 C ldquoEt ideo cum aliquis aestimat bonum quod habet ab alio ac si haberet a seipso fertur per consequens appetitus eius in propriam excellentiam supra suum modumrdquo ldquoPor essa razatildeo quando algueacutem considera um bem recebido de outro como conquista sua seu apetite eacute levado a buscar a proacutepria excelecircncia aleacutem do que lhe eacute devidordquo 195 Idem Ibidem II-II 162 4 C ldquoUnde et ex hoc etiam fertur inordinate appetitus in propriam excellentiam Et secundum hoc sumitur quarta species superbiae quae est cum aliquis despectis ceteris singulariter vult viderirdquo ldquoDonde resulta tambeacutem que seu apetite eacute levado a buscar de forma desordenada a proacutepria excelecircncia dando lugar entatildeo agrave quarta espeacutecie de soberba que eacute desprezando os outros querer ser visto como o uacutenicordquo 196 Idem Ibidem II-II 106 3 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod sicut Seneca dicit in III de Benefic quandiu servus praestat quod a servo exigi solet ministerium est ubi plus quam a servo necesse beneficium est Ubi enim in affectum amici transit incipit vocari beneficiumrdquo ldquoDeve-se dizer como Secircneca lsquoEnquanto o servo se limita a fazer aquilo que se costuma exigir de um servo ele estaacute apenas cumprindo um ofiacutecio quando o que ele faz eacute mais do que se pode exigir trata-se de um benefiacutecio Porque quando faz surgir uma afeiccedilatildeo de amizade comeccedila entatildeo a se chamar benefiacuteciorsquordquo 197 Tomaacutes citando Secircneca fala que a gratidatildeo nos move a estreitar laccedilos Idem Ibidem II-II 106 3 ad 5 ldquoEt Seneca dicit in VI de Benefic multa sunt per quae quidquid debemus reddere et felicibus possumus fidele consilium assidua conversatio sermo communis et sine adulatione iucundusrdquo ldquoE Secircneca afirma lsquoHaacute vaacuterios meios de retribuir o que devemos mesmo agraves pessoas felizes conselho leal frequentaccedilatildeo assiacutedua conversa simples alegre e sem bajulaccedilatildeorsquordquo Noutro lugar tambeacutem citanto Secircneca o Aquinate afirma que a verdadeira gratidatildeo rompe com as formalidades da relaccedilatildeo credordevedor Idem Ibidem II-II 106 4 C ldquoUt enim Seneca dicit IV de Benefic qui nimis cito cupit solvere invitus debet et qui invitus debet ingratus estrdquo ldquoComo diz Secircneca lsquoquem demonstra pressa excessiva em pagar o que deve deve contra a vontade e quem se sente contrariado com uma diacutevida eacute um ingratorsquordquo A gratidatildeo diz Aquino sempre na esteira de Secircneca leva-nos a fazer o melhor juiacutezo possiacutevel de quem nos deve Idem Ibidem II-II 107 4 C ldquoPrimo namque debet non esse facilis ad ingratitudinem iudicandam quia frequenter aliquis ut Seneca dicit qui non reddidit gratus est quia forte non occurrit ei facultas aut debita opportunitas reddendirdquo ldquoPrimeiramente natildeo prejulgar facilmente a ingratidatildeo porque como diz Secircneca lsquomuitas vezes aquele que natildeo retribuiu eacute no entanto gratorsquo porque talvez natildeo tenha tido meios ou oportunidade de o fazerrdquo 198 Idem Ibidem II-II 106 4 C ldquoUnde Seneca dicit in II de Benefic vis reddere beneficium Benigne acciperdquo

216 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino vazatildeo agrave praacutetica da solidariedade assim como ao exerciacutecio de outras virtudes como a da fortaleza199 Por exemplo a amizade exercita a paciecircncia e a perseveranccedila na praacutetica do bem pois nos leva a natildeo pagar exasperadamente ingratidatildeo com ingratidatildeo bem como a nos afastar daqueles que rejeitam com persistecircncia a nossa proximidade200 Em uma palavra a amizade humaniza as relaccedilotildees entre os homens

Donde Santo Isidoro afirmar ldquoAlgueacutem eacute considerado humano porque tem para com os outros amor e afeto de consideraccedilatildeo Por isso humanidade eacute proteger-nos mutuamenterdquo mdash Por isso a amizade eacute considerada enquanto ordena o conviacutevio social como diz Aristoacuteteles201

De sorte que natildeo haacute felicidade possiacutevel nem ocasiotildees

propiacutecias agraves accedilotildees virtuosas senatildeo onde prevaleccedila a leveza de relaccedilotildees amistosas e sinceras onde o entrelace natildeo nasccedila de amenidades pueris mas de um ver no outro um fim e natildeo um meio um bem honesto e natildeo uacutetil ou oportuno202 Em passagem jaacute citada que retomamos afirma o Aquinate

199 Idem Ibidem II-II 123 5 C ldquoSed et circa pericula cuiuscumque alterius mortis fortis bene se habet praesertim quia et cuiuslibet mortis homo potest periculum subire propter virtutem puta cum aliquis non refugit amico infirmanti obsequi propter timorem mortiferae infectionis []rdquo ldquoMas o homem forte se comporta bem diante dos perigos mortais de qualquer espeacutecie principalmente porque a virtude pode expor a muitos perigos por exemplo quando algueacutem apesar do medo de contaacutegio mortal natildeo se recusa a prestar assistecircncia a um amigo doente []rdquo 200 Idem Ibidem II-II 107 4 C ldquoSecundo debet tendere ad hoc quod de ingrato gratum faciat quod si non potest primo beneficio facere forte faciet secundo Si vero ex beneficiis multiplicatis ingratitudinem augeat et peior fiat debet a beneficiorum exhibitione cessarerdquo ldquoEm segundo lugar o benfeitor deve se esforccedilar para transformar o ingrato em um agradecido se natildeo conseguir isto com um primeiro benefiacutecio talvez o consiga com um segundo Se no entando a multiplicaccedilatildeo dos benefiacutecios conseguir apenas aumentar e agravar a ingratidatildeo seraacute preciso cessar a concessatildeo de favoresrdquo 201 Idem Ibidem II-II 80 1 ad 2 ldquoDicit enim Isidorus in libro Etymol quod humanus dicitur aliquis quia habeat circa hominem amorem et miserationis affectum unde humanitas dicta est qua nos invicem tuemur Et secundum hoc amicitia sumitur prout ordinat exteriorem convictum sicut de ea philosophus tractat in IV Ethicrdquo 202 A propoacutesito Tomaacutes novamente recorrendo a Secircneca afirma que a primeira coisa que devemos nos perguntar quando recebemos um benefiacutecio eacute de quem o recebemos Idem Ibidem II-II 106 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod sicut Seneca dicit in VI de Benefic multum interest utrum aliquis

Saacutevio Laet de Barros Campos | 217

Se falamos da felicidade da vida presente como diz o Filoacutesofo no livro IX da Eacutetica o homem feliz necessita de amigos natildeo para sua utilidade pois ele se basta a si nem para seu prazer porque possui em si o perfeito prazer na accedilatildeo da virtude mas para bem agir a saber para lhes fazer o bem e para alegrar-se ao vecirc-los fazendo o bem e tambeacutem para ser por eles auxiliado na praacutetica do bem203

Aleacutem disso se Aristoacuteteles deixa em aberto se a amizade eacute

ou natildeo uma virtude para o Aquinate natildeo resta duacutevida de que ela eacute uma virtude eacutetica204 Uma vez que a justiccedila trata da nossa lida com os outros e que por natureza somos chamados a viver em comunidade saber interagir com o outro de forma afaacutevel eacute uma virtude visto que eacute insuportaacutevel pondera Tomaacutes manter um trato razoaacutevel com pessoas habitualmente desagradaacuteveis por exemplo as afeitas a contendas205 Eacute pois uma obrigaccedilatildeo natural continua

beneficium nobis det sua causa an sua et nostra Ille qui totus ad se spectat et nobis prodest quia aliter sibi prodesse non potest eo mihi loco habendus videtur quo qui pecori suo pabulum prospicit Si me in consortium admisit si duos cogitavit ingratus sum et iniustus nisi gaudeo hoc illi profuisse quod proderat mihi Summae malignitatis est non vocare beneficium nisi quod dantem aliquo incommodo afficitrdquo ldquoDeve-se dizer como Secircneca diz lsquoPara mim eacute muito importante saber se quem faz o benefiacutecio tem em vista apenas seu interesse ou o dele e o meu Aquele que pensa unicamente em si e que soacute nos oferece proveito em alguma coisa porque esta eacute a uacutenica maneira de ele proacuteprio auferir tambeacutem algum proveito me parece comparaacutevel a algueacutem que fornece alimento para seus animais Se ele me aceita como soacutecio se pensa em noacutes dois eu serei ingrato e injusto se natildeo me regozijar de vecirc-lo tirar proveito daquilo que a mim tambeacutem foi vantagem Porque eacute na realidade uma grande maldade qualificar como benefiacutecio somente aquilo que provoca algum dano para o doadorrdquo 203 Idem Ibidem I-II 4 8 C ldquoRespondeo dicendum quod si loquamur de felicitate praesentis vitae sicut philosophus dicit in IX Ethic felix indiget amicis non quidem propter utilitatem cum sit sibi sufficiens nec propter delectationem quia habet in seipso delectationem perfectam in operatione virtutis sed propter bonam operationem ut scilicet eis benefaciat et ut eos inspiciens benefacere delectetur et ut etiam ab eis in benefaciendo adiuveturrdquo 204 Idem Suma Teoloacutegica II-II 114 1 C ldquoEt ideo oportet esse quandam specialem virtutem quae hanc convenientiam ordinis observet Et haec vocatur amicitia sive affabilitasrdquo ldquoPor isso eacute necessaacuteria uma virtude especial que mantenha a harmonia desta ordem E esta virtude se chama amizade ou afabilidaderdquo 205 De fato Tomaacutes chega a citar o exemplo dado por Aristoacuteteles dos impugnadores a saber daqueles que passam o tempo todo contestando e que natildeo sabem se contentar com nada Idem Ibidem II-II 116 1 C ldquoEt sic fit litigium quod praedictae amicitiae vel affabilitati opponitur ad quam pertinet delectabiliter aliis convivere Unde philosophus dicit in IV Ethic quod illi qui ad omnia contrariantur causa eius quod est contristare neque quodcumque curantes discoli et litigiosi

218 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino o Aquinate que o homem aprenda a se entreter com os outros homens com uma habitual afabilidade Por isso para Tomaacutes a amizade eacute uma virtude social anexa agrave virtude da justiccedila

Ora assim como o homem natildeo poderia viver numa sociedade sem verdade assim tambeacutem natildeo poderia viver numa sociedade sem prazer Aristoacuteteles diz ldquoningueacutem consegue passar um dia inteiro com uma pessoa triste e sem atrativosrdquo Por isso o homem eacute obrigado por uma espeacutecie de diacutevida natural de honestidade a tornar agradaacuteveis as relaccedilotildees com os outros []206

Queremos passar a abordar a eacutetica enquanto se apresenta

como uma ldquociecircnciardquo para Tomaacutes 38 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA EacuteTICA 381 PRUDEcircNCIA E FILOSOFIA PRAacuteTICA

Tambeacutem em Tomaacutes existe uma distinccedilatildeo entre prudecircncia e filosofia praacutetica Vejamos como ele chega ao mesmo caminho jaacute percorrido por Aristoacuteteles pois soacute assim compreenderemos a racionalidade que a eacutetica tomasiana comporta O Aquinate tal como Aristoacuteteles distingue as virtudes intelectuais das morais De fato os haacutebitos da razatildeo teoacuterica satildeo aqueles que aperfeiccediloam o nosso intelecto na consecuccedilatildeo da verdade207 A verdade de dois

vocanturrdquo ldquoE assim se origina a contestaccedilatildeo que se opotildee agravequela amizade ou afabilidade que permite conviver agradavelmente com os outros Por isso Aristoacuteteles diz lsquoAqueles que contestam tudo e todo mundo com a simples finalidade de contrariar os outros sem levar em consideraccedilatildeo nada e ningueacutem satildeo chamados de rudes e contestadoresrsquordquo 206 Idem Ibidem II-II 114 2 ad 1 ldquoSicut autem non posset vivere homo in societate sine veritate ita nec sine delectatione quia sicut philosophus dicit in VIII Ethic nullus potest per diem morari cum tristi neque cum non delectabili Et ideo homo tenetur ex quodam debito naturali honestatis ut homo aliis delectabiliter convivat nisi propter aliquam causam necesse sit aliquando alios utiliter contristarerdquo 207 Idem Ibidem I-II 57 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut iam dictum est virtus intellectualis speculativa est per quam intellectus speculativus perficitur ad considerandum verum hoc enim est bonum opus eiusrdquo ldquo[] eacute pela virtude intelectual especulativa que o intelecto especulativo se aperfeiccediloa na consideraccedilatildeo da verdade jaacute que esta eacute a sua accedilatildeo boardquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 219

modos pode ser conhecida ou por si mesma ou por inquiriccedilatildeo da razatildeo 208 Quando conhecemos a verdade por si mesma conhecemo-la enquanto princiacutepio209 O habitus que aperfeiccediloa o intelecto na consideraccedilatildeo da verdade imediatamente evidente eacute chamado intelecto210 Contudo mdash continua o Aquinate mdash existem aquelas verdades que satildeo percebidas pelo intelecto somente mediante outras verdades 211 Trata-se pois daquele grupo de verdades que passa a gozar de evidecircncia apenas atraveacutes do raciociacutenio Ora entre estas verdades haacute ainda aquelas que satildeo as uacuteltimas no seu gecircnero de conhecimento e aquelas que satildeo as uacuteltimas em relaccedilatildeo a todo o conhecimento humano212 O habitus que aperfeiccediloa o intelecto na persecuccedilatildeo das verdades uacuteltimas de um determinado gecircnero chama-se ciecircncia 213 De resto jaacute que existem vaacuterios gecircneros de coisas cognosciacuteveis haveraacute tambeacutem diversos haacutebitos de ciecircncia um para cada gecircnero214 No entanto como assinalamos existem aquelas verdades que satildeo as uacuteltimas em relaccedilatildeo a todo o conhecimento humano Mas o que eacute uacuteltimo

208 Idem Ibidem ldquoVerum autem est dupliciter considerabile uno modo sicut per se notum alio modo sicut per aliud notumrdquo ldquoOra a verdade pode ser considerada de dois modos ou por si mesma ou por meio de outra verdaderdquo 209 Idem Ibidem ldquoQuod autem est per se notum se habet ut principium et percipitur statim ab intellecturdquo ldquoPor si mesma comporta-se como um princiacutepio e eacute imediatamente percebida pelo intelectordquo 210 Idem Ibidem ldquoEt ideo habitus perficiens intellectum ad huiusmodi veri considerationem vocatur intellectus qui est habitus principiorumrdquo ldquoE por isso o haacutebito que aperfeiccediloa o intelecto para essa consideraccedilatildeo da verdade chama-se intelecto que eacute o haacutebito dos princiacutepiosrdquo 211 Idem Ibidem ldquoVerum autem quod est per aliud notum non statim percipitur ab intellectu sed per inquisitionem rationis et se habet in ratione terminirdquo ldquoQuanto agrave verdade conhecida mediante outra ela natildeo eacute apreendida imediatamente pelo intelecto mas inquirida pela razatildeo e comporta-se como um termordquo 212 Idem Ibidem ldquoQuod quidem potest esse dupliciter uno modo ut sit ultimum in aliquo genere alio modo ut sit ultimum respectu totius cognitionis humanaerdquo ldquoE isso pode ser de dois modos ou eacute o uacuteltimo num determinado gecircnero ou eacute o uacuteltimo em relaccedilatildeo com todo conhecimento humanordquo 213 Idem Ibidem ldquoAd id vero quod est ultimum in hoc vel in illo genere cognoscibilium perficit intellectum scientiardquo ldquoPor fim quanto agravequilo que eacute uacuteltimo neste ou naquele gecircnero das coisas conheciacuteveis eacute a ciecircncia que aperfeiccediloa o intelectordquo 214 Idem Ibidem ldquoEt ideo secundum diversa genera scibilium sunt diversi habitus scientiarum []rdquo ldquoPor isso haveraacute tantos diferentes haacutebitos das ciecircncias quanto satildeo os diferentes gecircneros de coisas conheciacuteveis []rdquo

220 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino segundo o conhecimento do homem eacute primeiro na ordem da natureza215 Trata-se deveras daquele conhecimento que temos das causas primeiras Ora o conhecimento delas aperfeiccediloa inclusive a ciecircncia Assim sendo somente remontando agraves causas primeiras pode-se chegar a um juiacutezo mais perfeito e universal216 Com efeito o habitus que se aplica ao conhecimento destas causas eacute o da sabedoria217

Por fim haacute a prudecircncia que aperfeiccediloa o uso praacutetico do conhecimento jaacute adquirido e a arte que ldquo[] eacute lsquoa razatildeo reta das coisas factiacuteveisrsquordquo218 A prudecircncia que eacute a que mais nos interessa aqui eacute a virtude que conduz agrave perfeiccedilatildeo inclusive concretizando na accedilatildeo a deliberaccedilatildeo e a escolha dos meios conducentes ao fim Logo a prudecircncia tambeacutem eacute uma virtude intelectual219 Observemos ainda que para Tomaacutes como para Aristoacuteteles a prudecircncia trata dos meios concernentes a um fim jaacute estabelecido Por esta razatildeo uma eacute a filosofia praacutetica que eacute o conhecimento por racioniacutecio dos fins outra eacute a prudecircncia que versa sobre a aplicabilidade dos meios proporcionados a estes fins Natildeo se trata de negar a racionalidade da prudecircncia mas de atentar para o fato de que a

215 Idem Ibidem ldquo[] ideo id quod est ultimum respectu totius cognitionis humanae est id quod est primum et maxime cognoscibile secundum naturamrdquo ldquo[] o que eacute uacuteltimo relativamente a todo conhecimento humano eacute o que por natureza eacute o primeiro e o mais cognosciacutevelrdquo 216 Idem Ibidem ldquoUnde convenienter iudicat et ordinat de omnibus quia iudicium perfectum et universale haberi non potest nisi per resolutionem ad primas causasrdquo ldquoPortanto convenientemente analisa e organiza todas as coisas pois eacute remontando agraves causas primeiras que se pode ter um juiacutezo perfeito e universalrdquo 217 Idem Ibidem ldquoEt circa huiusmodi est sapientia quae considerat altissimas causas []rdquo ldquoOra sobre isso eacute que se aplica a sabedoria que considera as causas altiacutessimas []rdquo 218 Idem Ibidem I-II 57 4 C ldquo[] quia ars est recta ratio factibilium []rdquo 219 Idem Ibidem I-II 57 5 C ldquoAd id autem quod convenienter in finem debitum ordinatur oportet quod homo directe disponatur per habitum rationis quia consiliari et eligere quae sunt eorum quae sunt ad finem sunt actus rationis Et ideo necesse est in ratione esse aliquam virtutem intellectualem per quam perficiatur ratio ad hoc quod convenienter se habeat ad ea quae sunt ad finem Et haec virtus est prudentia Unde prudentia est virtus necessaria ad bene vivendumrdquo ldquoQuanto aos meios adequados a esse fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas com os meios satildeo atos da razatildeo Eacute necessaacuterio pois haver na razatildeo alguma virtude intelectual que a aperfeiccediloe para ela proceder com acerto em relaccedilatildeo com os meios Essa virtude eacute a prudecircncia virtude portanto necessaacuteria para se viver bemrdquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 221

racionalidade da filosofia praacutetica eacute distinta Enquanto o filoacutesofo praacutetico julga as coisas por um conhecimento silogiacutestico conhecendo por exemplo o que eacute ser casto e por que se deve ser casto por um raciociacutenio que parte das causas primeiras da ordem praacutetica o prudente conhece o que eacute a castidade como e por que ser casto sendo casto por uma espeacutecie de conaturalidade proacutepria do haacutebito adquirido Assim pode acontecer que quem se ocupa de filosofia praacutetica conheccedila minuciosamente o que eacute ser prudente mas natildeo o seja e o prudente que talvez natildeo tenha esse julgamento meticuloso saiba o que eacute a prudecircncia sendo prudente

Pode-se julgar por inclinaccedilatildeo como quem possui um habitus virtuoso julga com retidatildeo o que deve ser feito na linha deste habitus estando jaacute inclinado neste sentido Eis por que se ensina no livro X da Eacutetica que o homem virtuoso eacute a medida e a regra dos atos humanos Mas existe outra maneira de julgar a saber por conhecimento como o instruiacutedo em ciecircncia moral pode julgar os atos de uma virtude ainda que natildeo a possua220

Esta retidatildeo de julgamento pode existir de duas maneiras ou por um uso perfeito da razatildeo ou por uma certa conaturalidade com as coisas sobre as quais se deve julgar Assim no que diz respeito agrave castidade aquele que aprendeu a ciecircncia moral julga bem em consequumlecircncia de uma inquiriccedilatildeo racional enquanto aquele que tem o haacutebito de castidade julga bem por uma certa conaturalidade com ela221

220 Idem Ibidem I 1 6 ad 3 ldquoContingit enim aliquem iudicare uno modo per modum inclinationis sicut qui habet habitum virtutis recte iudicat de his quae sunt secundum virtutem agenda inquantum ad illa inclinatur unde et in X Ethic dicitur quod virtuosus est mensura et regula actuum humanorum Alio modo per modum cognitionis sicut aliquis instructus in scientia morali posset iudicare de actibus virtutis etiam si virtutem non haberetrdquo 221 Idem Ibidem II-II 45 2 C ldquoRectitudo autem iudicii potest contingere dupliciter uno modo secundum perfectum usum rationis alio modo propter connaturalitatem quandam ad ea de quibus iam est iudicandum Sicut de his quae ad castitatem pertinent per rationis inquisitionem recte iudicat ille qui didicit scientiam moralem sed per quandam connaturalitatem ad ipsa recte iudicat de eis ille qui habet habitum castitatisrdquo

222 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Talvez falte dizer que Tomaacutes pontua que o fato de a eacutetica ser uma ldquociecircncia praacuteticardquo natildeo significa que a melhor forma de ser eacutetico eacute possuindo esta ldquociecircncia moralrdquo Com efeito a ldquociecircncia moralrdquo inobstante tenha por objeto a praacutetica eacute ela proacutepria teoacuterica e natildeo praacutetica Por isso para o Aquinate o melhor modo de se aprender a ser prudente eacute praticando os atos da prudecircncia Daiacute ele dizer com Aristoacuteteles ldquoPor isso diz o Filoacutesofo lsquoPara a praacutetica da virtude nada ou pouco adianta o saberrsquordquo222

Chegamos assim a uma perfeita correspondecircncia entre Aristoacuteteles e Tomaacutes acerca dos haacutebitos De fato o intelecto habitus dos princiacutepios corresponde ao noỹs a ciecircncia como conhecimento via raciociacutenio das causas primeiras de cada gecircnero agrave epistḗmē a sabedoria conhecimento das causas primeiras agrave sofiacutea a arte reta razatildeo de fazer algumas obras 223 agrave teacutekhnē e a prudecircncia conhecimento e aplicaccedilatildeo dos meios da accedilatildeo agrave froacutenēsis O que defendemos eacute que Aquino prevecirc a existecircncia de uma ciecircncia eacutetica de cunho filosoacutefico que tem seu alicerce na sua concepccedilatildeo do homem como bem honesto como fim Se o Aquinate desenvolve em todos os seus pormenores o que ele prevecirc natildeo eacute o mais importante ao menos se levarmos em conta que estamos lidando com um teoacutelogo que pretende fazer uma teologia moral Como observa Vignaux ao tratar do tema ldquoTenhamos Santo Tomaacutes por um pensador que tendo fundado a possibilidade de uma pura filosofia prefere sem embargo ser teoacutelogordquo224 O que parece natildeo possa ser mais olvidado sem prejuiacutezo para a histoacuteria das ideias eacute que Tomaacutes tenha previsto um plano humano e mundano ainda que natildeo tenha escrito uma Summa Philosophiae

222 Idem Ibidem II-II 181 1 C ldquo[] unde philosophus dicit in II Ethic quod ad virtutem scire quidem parum aut nihil potestrdquo 223 Idem Ibidem I-II 57 3 C 224 VIGNAUX Op Cit p 124 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoTengamos a Santo Tomaacutes por un pensador que habiendo fundado la posibilidad de una pura filosofiacutea prefiere sin embargo ser teoacutelogordquo

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[] a forte exigecircncia racional que estaacute presente no pensamento de Tomaacutes natildeo pode ser ignorada e subestimada posto que esta representa jaacute um reconhecimento ao menos teoacuterico dos direitos da pura pesquisa filosoacutefica e cientiacutefica cuja influecircncia devia pesar ao longo da evoluccedilatildeo do uacuteltimo pensamento medieval225

No entanto resta esclarecer uma questatildeo importante qual

eacute a fonte primaacuteria da ciecircncia eacutetica A fonte primaacuteria como jaacute vimos eacute o homem eacutetico Em outros termos natildeo eacute o prudente que tem de olhar para a lei mas eacute a lei que eacute descoberta enquanto encarnada no prudente ldquoEis por que se ensina no livro X da Eacutetica que o homem virtuoso eacute a medida e a regra dos atos humanosrdquo226 Natildeo eacute do dever que nasce a eacutetica mas eacute da experiecircncia da virtude que brota o dever e o dever soacute eacute cumprido plenamente quando deixa de ser dever e volta por assim dizer a ser virtude Em eacutetica a experiecircncia do virtuoso eacute o princiacutepio da sabedoria ldquoA prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas []rdquo227 Noutro passo o Aquinate afirma com clareza

Em relaccedilatildeo a essas determinaccedilotildees se tem o juiacutezo dos experientes e prudentes como a certos princiacutepios a saber enquanto vecircem de imediato o que particularmente haacute de se determinar de modo mais congruente Donde dizer o Filoacutesofo que em tais coisas ldquoeacute preciso atender agraves enunciaccedilotildees e opiniotildees indemonstraacuteveis dos experientes e dos anciatildeos ou dos prudentes natildeo menos que agraves demonstraccedilotildeesrdquo228

225 VASOLI Op Cit p 299 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] la forte esigencia razionale che egrave presente nel pensiero di Tommaso non puograve essere ignorata e sottovalutata poicheacute essa rappresenta giagrave un riconoscimento almeno teorico dei diritti della pura ricerca filosofica filosofica e scientifica la cui influenza doveva pesare a lungo nellrsquoevoluzione dellrsquoultimo pensiero medioevalerdquo 226 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 6 ad 3 ldquo[] unde et in X Ethic dicitur quod virtuosus est mensura et regula actuum humanorumrdquo 227 Idem Ibidem II-II 47 2 ad 1 ldquoUnde manifestum est quod prudentia est sapientia in rebus humanis []rdquo 228 Idem Ibidem I-II 95 2 ad 4 ldquo[] ad quas quidem determinationes se habet expertorum et prudentum iudicium sicut ad quaedam principia inquantum scilicet statim vident quid congruentius sit particulariter determinari Unde philosophus dicit in VI Ethic quod in talibus oportet attendere expertorum et seniorum vel prudentum indemonstrabilibus enuntiationibus et opinionibus non minus quam demonstrationibusrdquo

224 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Mas como se adquire esta ldquosabedoria praacuteticardquo e como pode ela passar a ser uma ldquosabedoria filosoacuteficardquo Haacute muitas maneiras de se abordar a questatildeo da prudentia em Tomaacutes Natildeo eacute nosso intuito aqui fazer uma anaacutelise pormenorizada do quanto o Aquinate diz sobre o assunto Seguiremos apenas o essencial para mostrarmos o que tencionamos a saber que eacute da percepccedilatildeo da memoacuteria e da experiecircncia do homem prudente que Tomaacutes parte para pensar a eacutetica enquanto filosofia praacutetica Segundo o Aquinate a partir de uma etimologia que remonta a Isidoro prudentia consiste antes de tudo num pro videre ou porro videns isto eacute num prever ou ver ao longe mediante uma deduccedilatildeo das coisas presentes e passadas o desenlace dos fatos humanos Ora este antever ou ver ao longe eacute um ato da razatildeo que calcula229 Com efeito como os fatos humanos variam ad infinitum a aquisiccedilatildeo da prudecircncia exige tempo experiecircncia e um esforccedilo ingente para se deslindar algumas constantes nos eventos humanos230 Outrossim estas constantes

229 Idem Ibidem II-II 47 1 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut Isidorus dicit in libro Etymol prudens dicitur quasi porro videns perspicax enim est et incertorum videt casus Visio autem non est virtutis appetitivae sed cognoscitivae Unde manifestum est quod prudentia directe pertinet ad vim cognoscitivam Non autem ad vim sensitivam quia per eam cognoscuntur solum ea quae praesto sunt et sensibus offeruntur Cognoscere autem futura ex praesentibus vel praeteritis quod pertinet ad prudentiam proprie rationis est quia hoc per quandam collationem agitur Unde relinquitur quod prudentia proprie sit in rationerdquo ldquoSegundo Isidoro lsquoprudente significa o que vecirc ao longe eacute perspicaz vecirc o desenlace dos casos incertosrsquo A visatildeo natildeo pertence agrave potecircncia apetitiva mas a cognoscitiva Por isso eacute evidente que a prudecircncia pertence diretamente agrave potecircncia cognoscitiva Natildeo poreacutem agrave sensitiva porque por meio desta se reconhecem as coisas que estatildeo presentes e aparecem aos sentidos enquanto que conhecer o futuro a partir das coisas presentes ou passadas o que eacute proacuteprio da prudecircncia pertence agrave razatildeo dado que se faz por deduccedilatildeo Portanto resulta que a prudecircncia reside propriamente na razatildeordquo Idem Ibidem II-II 49 6 C ldquoUtrumque autem horum importatur in nomine providentiae importat enim providentia respectum quendam alicuius distantis ad quod ea quae in praesenti occurrunt ordinanda sunt Unde providentia est pars prudentiaerdquo ldquoOra o termo previdecircncia implica ambas as coisas implica com efeito que o olhar se prenda a qualquer coisa distante como a um termo ao qual devem ser ordenadas as accedilotildees presentes A previdecircncia eacute pois uma parte da prudecircnciardquo 230 Idem Ibidem II-II 47 3 ad 2 ldquoTamen per experientiam singularia infinita reducuntur ad aliqua finita quae ut in pluribus accidunt quorum cognitio sufficit ad prudentiam humanamrdquo ldquoNo entanto pela experiecircncia a infinidade dos singulares eacute reduzida a um nuacutemero finito de casos mais frequumlentes cujo conhecimento eacute suficiente para a prudecircncia humanardquo Idem Ibidem II-II 47 14 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod prudentia acquisita causatur ex exercitio actuum unde indiget ad sui generationem experimento et tempore ut dicitur in II Ethic Unde non potest esse in iuvenibus nec secundum habitum nec secundum actumrdquo ldquoDeve-se dizer que a prudecircncia adquirida eacute causada pela

Saacutevio Laet de Barros Campos | 225

nunca legaratildeo ao prudente eacute bom que se diga regras inamoviacuteveis mas apenas gerais231 E mesmo estas ldquoregras geraisrdquo natildeo poderatildeo ser aplicadas pelo homem virtuoso sem que este tenha um conhecimento preacutevio e invulgar das circunstacircncias um conhecimento de circunspecccedilatildeo diz Tomaacutes porque o que se mostra bom numa determinada circunstacircncia noutra pode resultar num empecilho agrave consecuccedilatildeo do fim232 De todo modo como exige experiecircncia e tempo para se conhecer o que eacute mais frequente a virtude da prudecircncia exige tambeacutem uma memoacuteria robusta233 Natildeo soacute mas como versa sobre os meios ela requer que se tenha um conhecimento taacutecito dos fins isto eacute dos primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica234 bem como uma capacidade de raciocinar bem a partir destes princiacutepios a fim de saber aplicaacute-los corretamente hic et nunc235 Ademais porque trata do que se deve

repeticcedilatildeo dos atos portanto lsquopara sua aquisiccedilatildeo eacute necessaacuteria a experiecircncia e o temporsquo como se diz no livro II da Eacutetica e natildeo pode encontrar-se nos jovens nem atual nem habitualmente []rdquo 231 Idem Ibidem II-II 49 1 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est circa contingentia operabilia sicut dictum est In his autem non potest homo dirigi per ea quae sunt simpliciter et ex necessitate vera sed ex his quae ut in pluribus accidunt []rdquo ldquoA prudecircncia como foi explicado trata das accedilotildees contingentes Nessas accedilotildees o homem natildeo pode ser dirigido por verdades absolutas e necessaacuterias mas pelo que sucede comumenterdquo 232 Idem Ibidem II-II 49 7 C ldquoSed quia prudentia sicut dictum est est circa singularia operabilia in quibus multa concurrunt contingit aliquid secundum se consideratum esse bonum et conveniens fini quod tamen ex aliquibus concurrentibus redditur vel malum vel non opportunum ad finemrdquo ldquoOra porque a prudecircncia como se disse tem como objeto as accedilotildees singulares agraves quais concorrem muitas coisas acontece que alguma coisa considerada em si mesma seja boa e conveniente ao fim a qual entretanto pode tornar-se maacute ou inoportuna ao fimrdquo 233 Idem Ibidem II-II 49 1 C ldquoQuid autem in pluribus sit verum oportet per experimentum considerare unde et in II Ethic philosophus dicit quod virtus intellectualis habet generationem et augmentum ex experimento et tempore Experimentum autem est ex pluribus memoriis ut patet in I Metaphys Unde consequens est quod ad prudentiam requiritur plurium memoriam habererdquo ldquoOra o que eacute verdade na maioria dos casos natildeo pode ser sabido senatildeo por experiecircncia tambeacutem o Filoacutesofo diz que a lsquovirtude intelectual nasce e cresce graccedilas agrave experiecircncia e ao temporsquo Por sua vez lsquoa experiecircncia resulta de muitas recordaccedilotildeesrsquo diz ele ainda Consequumlentemente a prudecircncia exige a memoacuteria de muitas coisasrdquo 234 Idem Ibidem II-II 49 2 C ldquoOmnis autem deductio rationis ab aliquibus procedit quae accipiuntur ut prima Unde oportet quod omnis processus rationis ab aliquo intellectu procedatrdquo ldquoOra toda deduccedilatildeo da razatildeo procede de proposiccedilotildees aceitas como primeiras Portanto eacute necessaacuterio que todo processo da razatildeo proceda de algo conhecidordquo 235 Idem Ibidem II-II 49 5 C ldquoRespondeo dicendum quod opus prudentis est esse bene consiliativum ut dicitur in VI Ethic Consilium autem est inquisitio quaedam ex quibusdam ad alia

226 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino fazer hic et nunc a prudecircncia implica sagacidade ou seja rapidez na deliberaccedilatildeo dos meios 236 aleacutem de solicitude vale dizer agilidade em se fazer hic et nunc o que deve ser feito237 Ligeireza e destreza que natildeo significam no entanto pressa a qual eacute uma precipitaccedilatildeo Por conseguinte quando se trata de accedilotildees contingentes haacute que se ter precauccedilatildeo para se avaliar retamente o que aquela circunstacircncia pede e assim natildeo tomar o mal como bem ou vice-versa 238 Aleacutem disso como as flutuaccedilotildees dos fatos humanos satildeo infindas o homem prudente deve estar revestido de docilidade ou seja deve estar disposto a ouvir os mais experientes maacutexime os anciatildeos pois seria impossiacutevel que um homem sozinho conseguisse abarcar todas as variaccedilotildees inerentes aos fatos da vida239 A prudecircncia natildeo eacute pois uma perspicaacutecia natural mas uma

procedens Hoc autem est opus rationis Unde ad prudentiam necessarium est quod homo sit bene ratiocinativusrdquo ldquoA obra do prudente eacute a de deliberar acertadamente como diz o Filoacutesofo E a deliberaccedilatildeo eacute uma pesquisa que partindo de certos dados passa para outros Isso eacute obra da razatildeo Portanto a prudecircncia requer que o homem saiba raciocinar bemrdquo 236 Idem Ibidem II-II 49 4 C ldquo[] solertia autem est facilis et prompta coniecturatio circa inventionem medii ut dicitur in I Posterrdquo ldquo[] a sagacidade poreacutem eacute lsquoa conjectura faacutecil e raacutepida a respeito dos meios como diz o Filoacutesofordquo 237 Idem Ibidem II-II 47 9 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dicit Isidorus in libro Etymol sollicitus dicitur quasi solers citus inquantum scilicet aliquis ex quadam solertia animi velox est ad prosequendum ea quae sunt agenda Hoc autem pertinet ad prudentiam cuius praecipuus actus est circa agenda praecipere de praeconsiliatis et iudicatis Unde philosophus dicit in VI Ethic quod oportet operari quidem velociter consiliata consiliari autem tarde Et inde est quod sollicitudo proprie ad prudentiam pertinetrdquo ldquoSegundo diz Isidoro soliacutecito vem de solers (sagaz) e de citus (raacutepido) enquanto algueacutem a partir de certa sagacidade do espiacuterito eacute raacutepido para cumprir o que se deve fazer Ora isso pertence agrave prudecircncia cujo ato principal eacute comandar em mateacuteria de accedilatildeo aquilo que antes foi deliberado e julgado Por isso diz o Filoacutesofo que lsquoeacute preciso pocircr em accedilatildeo prontamente aquilo que foi deliberado mas deliberar calmamentersquo Donde se conclui que a solicitude tem propriamente relaccedilatildeo com a prudecircnciardquo 238 Idem Ibidem II-II 49 8 C ldquoRespondeo dicendum quod ea circa quae est prudentia sunt contingentia operabilia in quibus sicut verum potest admisceri falso ita et malum bono propter multiformitatem huiusmodi operabilium in quibus bona plerumque impediuntur a malis et mala habent speciem boni Et ideo necessaria est cautio ad prudentiam ut sic accipiantur bona quod vitentur malardquo ldquoA mateacuteria da prudecircncia satildeo as accedilotildees contingentes nas quais assim como o verdadeiro se mistura com o falso o mal se mistura com o bem devido agrave grande variedade dessas accedilotildees nas quais o bem eacute frequumlentemente impedido pelo mal e nas quais o mal assume aparecircncia de bem Eacute por isso que a precauccedilatildeo eacute necessaacuteria agrave prudecircncia para escolher os bens e evitar os malesrdquo 239 Idem Ibidem II-II 49 3 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est prudentia consistit circa particularia operabilia In quibus cum sint quasi infinitae diversitates non possunt ab uno homine sufficienter omnia considerari nec per modicum tempus sed per temporis

Saacutevio Laet de Barros Campos | 227

virtude moral um haacutebito adquirido agrave custa de muito trabalho240 Tomaacutes prevecirc ainda a existecircncia de uma prudecircncia poliacutetica proacutepria do governante e de uma prudecircncia econocircmica proacutepria do chefe de famiacutelia241 Mas o que nos garante que esta ldquosabedoria praacuteticardquo eacute verdadeira Parece que aqui ainda que natildeo tenha desenvolvido esta doutrina ex professo Tomaacutes retoma os eacutendoxa de Aristoacuteteles 382 OS EacuteNDOXA EM TOMAacuteS DE AQUINO

Tomaacutes como amiuacutede tambeacutem aqui permanece fiel a Aristoacuteteles e assevera que o conhecimento da verdade a evidecircncia dela e a posse de sua certeza podem ser alcanccedilados por todos e efetivamente em alguma medida o satildeo pois naturalmente procuramos a verdade e rejeitamos o erro242 Aliaacutes por natureza

diuturnitatem Unde in his quae ad prudentiam pertinent maxime indiget homo ab alio erudiri et praecipue ex senibus qui sanum intellectum adepti sunt circa fines operabiliumrdquo ldquoComo se disse anteriormente a prudecircncia concerne agraves accedilotildees particulares nas quais a diversidade eacute quase infinita Natildeo eacute possiacutevel que um soacute homem seja plenamente informado de tudo o que a isso se refere nem em um curto tempo senatildeo em um longo tempo Por isso no que se refere agrave prudecircncia em grande parte o homem tem necessidade de ser instruiacutedo por outro e sobretudo pelos anciatildeos que chegaram a formar um juiacutezo satildeo a respeito dos fins das operaccedilotildeesrdquo 240 Idem Ibidem I-II 47 15 C ldquoQuia igitur prudentia non est circa fines sed circa ea quae sunt ad finem ut supra habitum est ideo prudentia non est naturalisrdquo ldquoPortanto dado que a prudecircncia natildeo tem por objeto os fins mas os meios em vista do fim como se viu acima ela tambeacutem natildeo eacute natural no homemrdquo Idem Ibidem II-II 47 4 C ldquoEt ideo prudentia non solum habet rationem virtutis quam habent aliae virtutes intellectuales sed etiam habet rationem virtutis quam habent virtutes morales quibus etiam connumeraturrdquo ldquoEacute por isso que a prudecircncia natildeo realiza somente o conceito de virtude como as outras virtudes intelectuais mas possui tambeacutem a noccedilatildeo de virtude proacutepria das virtudes morais entre as quais ela estaacute enumeradardquo 241 Idem Ibidem II-II 50 3 C ldquoEt ideo sicut prudentia communiter dicta quae est regitiva unius distinguitur a politica prudentia ita oportet quod oeconomica distinguatur ab utraquerdquo ldquoPor conseguinte assim como a prudecircncia em geral que governa uma soacute pessoa se distingue da prudecircncia poliacutetica de igual modo a econocircmica deve ser distinta de ambasrdquo 242 TOMAacuteS DE AQUINO Suma contra os gentios I LXI 7 [513] ldquoSicut verum est bonum intellectus ita falsum est malum ipsius naturaliter enim appetimus verum cognoscere et refugimus falso decipi Malum autem in Deo esse non potest ut probatum est Non potest igitur in eo esse falsitasrdquo ldquo[] assim como o verdadeiro eacute o bem do intelecto o falso eacute o seu mal segundo o Filoacutesofo (VI da Eacutetica 2 1139a cmt 2 1130) pois naturalmente desejamos conhecer o verdadeiro e fugimos de ser enganados pelo falsordquo Noutro lugar precisa Idem A unidade do intelecto contra os Averroiacutestas I 1 ldquoSicut omnes homines naturaliter scire desiderant veritatem ita naturale desiderium inest hominibus fugiendi errores et eos cum facultas adfuerit confutandirdquo ldquoComo todos

228 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino natildeo soacute buscamos a verdade e fugimos do que eacute falso mas tambeacutem tentamos desbaratar o que eacute enganoso Pois bem justificar o que se afirma eacute a tarefa preciacutepua do filoacutesofo De fato a experiecircncia nos atesta que quando afirmamos algo repelimos o seu contraacuterio243 Repugna agrave razatildeo uma afirmaccedilatildeo do gecircnero o cavalo branco de Napoleatildeo eacute preto Nesta linha Tomaacutes aduz que os nossos sentidos bem como a nossa razatildeo natildeo se enganam quanto a seus objetos proacuteprios porque quanto a eles satildeo unidimensionais Em outras palavras o olho soacute pode ver e ipso facto natildeo se pode enganar quando vecirc244 Dispostos assim agrave verdade acrescentemos que ela eacute uma adequaccedilatildeo do intelecto agrave coisa245 Esta adequaccedilatildeo daacute-se por uma espeacutecie de assimilaccedilatildeo que consiste em o conhecido estar intencionalmente naquele que conhece 246 Tal assertiva eacute de

os homens por natureza desejam saber a verdade (Metafiacutesica I 1 980 a 22) tambeacutem neles eacute natural o desejo de fugir dos erros e de os refutar quanto tecircm essa faculdaderdquo 243 Idem Suma contra os gentios I I 3 [6] ldquoEiusdem autem est unum contrariorum prosequi et aliud refutare sicut medicina quae sanitatem operatur aegritudinem excluditrdquo ldquoPertence com efeito ao que aceita um dos termos contraacuterios refutar o outro como por exemplo acontece na medicina esta trata da sauacutede e afasta a doenccedila []rdquo 244 Idem Suma Teoloacutegica I 85 6 C ldquoSensus enim circa proprium obiectum non decipitur sicut visus circa colorem nisi forte per accidens ex impedimento circa organum contingente [] Obiectum autem proprium intellectus est quidditas rei Unde circa quidditatem rei per se loquendo intellectus non falliturrdquo ldquoOs sentidos natildeo se enganam a respeito de seu objeto proacuteprio assim a vista em relaccedilatildeo agrave cor a natildeo ser talvez por acidente em razatildeo de um impedimento proveniente do oacutergatildeo [] O objeto proacuteprio do intelecto eacute a quumlididade Por isso falando de maneira absoluta o intelecto natildeo erra sobre a quumlididade da coisardquo 245 Idem Ibidem I 16 2 C ldquoEt propter hoc per conformitatem intellectus et rei veritas definiturrdquo ldquoEis por que se define a verdade pela conformidade do intelecto e da coisardquo TOMAacuteS DE AQUINO Questotildees Disputadas Sobre a Verdade I 1 C In LAUAND Luiz Jean SPROVIERO Mario Bruno Verdade e Conhecimento Trad Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 ldquoPrima ergo comparatio entis ad intellectum est ut ens intellectui concordet quae quidem concordia adaequatio intellectus et rei dicitur et in hoc formaliter ratio veri perficiturrdquo ldquoA primeira consideraccedilatildeo quanto a ente e intelecto eacute pois que o ente concorde com o intelecto esta concordacircncia diz-se adequaccedilatildeo do intelecto e da coisa e nela formalmente realiza-se a noccedilatildeo de verdadeirordquo 246 Idem Ibidem I 16 1 C ldquo[] quia cognitio est secundum quod cognitum est in cognoscente []rdquo ldquoO conhecimento consiste em que o conhecido estaacute naquele que conhece []rdquo Idem Questotildees Disputadas Sobre a Verdade I 1 C In LAUAND Luiz Jean SPROVIERO Mario Bruno Verdade e Conhecimento Trad Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 149 ldquoOmnis autem cognitio perficitur per assimilationem cognoscentis ad rem cognitam ita quod assimilatio dicta est causa cognitionis sicut visus per hoc quod disponitur secundum speciem coloris cognoscit coloremrdquo ldquoPois todo conhecimento realiza-se pela assimilaccedilatildeo do cognoscente agrave

Saacutevio Laet de Barros Campos | 229

primeira ordem Ela nos leva a afirmar que conhecimento noacutes o temos primeiramente das coisas que existem fora de noacutes e natildeo das espeacutecies impressas inteligiacuteveis ou mesmo dos conceitos (espeacutecies expressas inteligiacuteveis) que estatildeo no nosso intelecto247 Em termos analiacuteticos contemporacircneos poderiacuteamos classificar Tomaacutes como um ldquoexternistardquo248 Em outras palavras para Aquino eacute o intelecto que se deve conformar agrave realidade e natildeo o contraacuterio249 A verdade natildeo estaacute pois nas ldquosutilezasrdquo mas na conformidade do intelecto com o real250 De modo que ao menos tanto quanto agraves sentenccedilas dos filoacutesofos devemos dar creacutedito ao que a multidatildeo afirma pois ela estaacute de certo modo mais proacutexima das coisas do que as ldquosofisticaccedilotildeesrdquo daqueles251 A propoacutesito Tomaacutes natildeo tinha

coisa conhecida de modo que a assimilaccedilatildeo diz-se causa do conhecimento por exemplo a vista capacitada para cor conhece a corrdquo 247 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 85 2 C ldquoSi igitur ea quae intelligimus essent solum species quae sunt in anima sequeretur quod scientiae omnes non essent de rebus quae sunt extra animam sed solum de speciebus intelligibilibus quae sunt in anima [] Et sic species intellectiva secundario est id quod intelligitur Sed id quod intelligitur primo est res cuius species intelligibilis est similitudordquo ldquoSe pois aquilo que conhecemos fosse somente as espeacutecies que estatildeo na alma todas as ciecircncias natildeo seriam de coisas que estatildeo fora da alma mas somente das espeacutecies inteligiacuteveis que estatildeo na alma [] Assim a espeacutecie inteligiacutevel eacute o que eacute conhecido em segundo lugar Mas o que eacute primeiramente conhecido eacute a coisa da qual a espeacutecie inteligiacutevel eacute a semelhanccedilardquo 248 MICHELETTI Op Cit p 46 ldquoEm Warrant The Current Debate (1993) e em Warrant and Proper Funcion (1993) Plantinga sustenta que a crise na epistemologia contemporacircnea daquela tradiccedilatildeo lsquointernistarsquo que havia tido preponderacircncia depois de Descartes Locke e o Iluminismo permitiu o reaparecimento do lsquoexternismorsquo da concepccedilatildeo epistemoloacutegica que segundo a reveladora genealogia desenhada por Plantinga remonta a Thomas Reid Tomaacutes de Aquino e Aristoacutetelesrdquo 249 Falamos da verdade loacutegica natildeo da ontoloacutegica Esta uacuteltima consiste no fato de as coisas serem verdadeiras enquanto se adequam agrave mente divina e natildeo o contraacuterio TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 16 1 C ldquoEt similiter res naturales dicuntur esse verae secundum quod assequuntur similitudinem specierum quae sunt in mente divina dicitur enim verus lapis qui assequitur propriam lapidis naturam secundum praeconceptionem intellectus divinirdquo ldquoAssim tambeacutem as coisas naturais satildeo verdadeiras na medida em que se assemelham agraves representaccedilotildees que estatildeo na mente divina uma pedra eacute verdadeira quanto tem a natureza proacutepria da pedra preconcebida como tal pelo intelecto divinordquo 250 Idem Ibidem II-II 1 2 ad 2 ldquo[] non enim formamus enuntiabilia nisi ut per ea de rebus cognitionem habeamus sicut in scientia ita et in fiderdquo ldquo[] natildeo formamos enunciados a natildeo ser para que tenhamos conhecimento das coisas como acontece na ciecircncia e tambeacutem na feacute []rdquo 251 Idem Suma contra os gentios I I 1 [2] ldquoMultitudinis usus quem in rebus nominandis sequendum philosophus censet []rdquo ldquoA terminologia vulgar que o Filoacutesofo diz ser conveniente respeitar ao se dar nome agraves coisas (II Toacutepicos I 109 a) []rdquo

230 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino um conceito elevado demais acerca de si mesmo nem de seus ldquocolegasrdquo filoacutesofos como deixa claro quando diz que nenhum filoacutesofo conseguiu conhecer perfeitamente nem sequer a essecircncia de uma mosca ou abelha252 Por traacutes disso estaacute a convicccedilatildeo de que a nossa mente natildeo inventa verdades natildeo eacute criadora Daiacute que para ele a docilidade de uma velhinha pode ser mais uacutetil do que a ldquoagudezardquo de um ldquofiloacutesofordquo quando se trata de se conformar agraves coisas253 O fato a se destacar aqui eacute que quando haacute adequaccedilatildeo do intelecto agrave realidade vale dizer assimilaccedilatildeo da coisa por parte daquele que conhece haacute entatildeo a evidecircncia e a certeza da verdade E disto resulta em primeiro lugar que natildeo eacute a boa argumentaccedilatildeo que nos daacute a verdade A bem dizer a argumentaccedilatildeo estabelece a verdade do discurso O que nos faculta ou possibilita o conhecimento da verdade eacute a confiabilidade na funccedilatildeo proacutepria das nossas potecircncias cognoscitivas a vista diz Tomaacutes eacute capaz de ver e conhece o que vecirc Por isso quando digo que o cavalo branco de Napoleatildeo eacute branco e natildeo preto natildeo haacute nesta asserccedilatildeo nenhuma presunccedilatildeo de se fazer com que o cavalo seja branco ou mesmo de que se pareccedila branco Haacute sim a pretensatildeo de se afirmar que ele eacute branco O cognoscente portanto confia na funccedilatildeo proacutepria da sua visatildeo que eacute ver e no enunciado que a sua razatildeo formula Ora os conhecimentos fundados nesta confiabilidade de funccedilatildeo proacutepria chamam-se eacutendoxa E eacute a adequaccedilatildeo ou assimilaccedilatildeo do intelecto agrave coisa a qual natildeo seria possiacutevel ou perceptiacutevel sem esta

252 TOMAacuteS DE AQUINO Exposiccedilatildeo sobre o credo Trad Odilatildeo Moura 4 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1997 p 19 ldquo[] sed cognitio nostra est adeo debilis quod nullus philosophus potuit unquam perfecte investigare naturam unius muscae unde legitur quod unus philosophus fuit triginta annis in solitudine ut cognosceret naturam apisrdquo ldquoMas o nosso conhecimento eacute tatildeo limitado que nenhum filoacutesofo ateacute hoje conseguiu perfeitamente investigar a natureza de uma soacute mosca Conta-se ateacute que certo filoacutesofo levou trinta anos no deserto para conhecer a natureza das abelhasrdquo 253 Idem Ibidem p 18 ldquoEt hoc patet quia nullus philosophorum ante adventum Christi cum toto conatu suo potuit tantum scire de Deo et de necessariis ad vitam aeternam quantum post adventum Christi scit una vetula per fidemrdquo ldquoEis porque nenhum filoacutesofo antes da vinda de Cristo apesar do grande esforccedilo intelectual que despendia pocircde chegar ao conhecimento de Deus e dos meios necessaacuterios para alcanccedilar a vida eterna como depois do advento de Cristo qualquer velhinha o pocircde pela feacuterdquo

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confiabilidade que estabelece a verdade e a evidecircncia da proposiccedilatildeo Enfim esta evidecircncia existe como certeza espontacircnea para um simples camponecircs e como certeza refletida para um filoacutesofo

Diziacuteamos que se trata da mesma verdade da mesma evidecircncia e da mesma certeza aquela que existe no camponecircs e no filoacutesofo Contudo suponhamos que haja um terceiro homem sagaz e erudito mdash chamemo-lo K mdash que consiga produzir uma argumentaccedilatildeo falsa fundada em ldquoconveniecircnciasrdquo ou naquilo que simplesmente aparece Suponhamos ainda que ele habilmente consiga ser mais coerente do que o nosso camponecircs e teremos entatildeo que a falsidade da sua tese iraacute prevalecer inobstante seja uma tese falsa Pois bem a tarefa do filoacutesofo natildeo eacute estabelecer uma nova verdade mas sim fazer com que a verdade exprimida espontaneamente pelo camponecircs prevaleccedila Ora o filoacutesofo faraacute isso antes de mais por meio de uma argumentaccedilatildeo correta que consistiraacute no caso da eacutetica em estabelecer que a proposiccedilatildeo de K eacute menos provaacutevel ou que natildeo atinge os eacutendoxa Sim ldquomenos provaacutevelrdquo jaacute que em eacutetica quase sempre natildeo lidamos com ldquoo que eacute semprerdquo mas sim com o que eacute ldquona maioria das vezesrdquo Destarte uma tese que pretenda impugnar os eacutendoxa porque eles natildeo se verificam sempre eacute uma falsa refutaccedilatildeo porque simplesmente natildeo os refuta jaacute que os eacutendoxa tratam do que acontece ldquona maioria das vezesrdquo mas natildeo ldquosemprerdquo Da mesma forma uma demonstraccedilatildeo que pretenda demonstrar que eles ldquosatildeo semprerdquo eacute uma demonstraccedilatildeo enganosa Quem faz filosofia praacutetica deve se precaver contra estes dois erros De qualquer forma o constatar como ldquomenos provaacutevelrdquo o que eacute contraacuterio aos eacutendoxa natildeo basta Natildeo basta pois estabelecer que o que acontece na maioria das vezes eacute a verdade Eacute mister fazer com que esta verdade prevaleccedila e para isso o discurso precisa ser natildeo somente correto e verdadeiro mas persuasivo Do contraacuterio K por penetrar ateacute as tendecircncias do auditoacuterio convenceraacute Assim a praacutetica da retoacuterica deve entrar em cena para persuadir por assim dizer acerca da verdade do que eacute

232 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino verdadeiro e da falsidade do que eacute falso A boa argumentaccedilatildeo portanto natildeo eacute nem soacute verdadeira nem soacute retoacuterica mas verdadeira e retoacuterica Por isso o bom dialeacutetico tem de conhecer tambeacutem a arte retoacuterica e praticaacute-la Teraacute de conhecer os eacutendoxa saber argumentar corretamente sobre eles estabelecendo que sejam verdadeiros enquanto prova que o que eacute contraacuterio a eles eacute ldquomenos provaacutevelrdquo ou natildeo os atinge e aleacutem disso teraacute de ser expressivo e convincente Maacutexime em Eacutetica onde as accedilotildees valem mais do que as palavras e onde a praacutetica prevalece sobre a teoria urge ser natildeo soacute verdadeiro mas tambeacutem comunicativo e praacutetico

Tomando por base estes pressupostos podemos considerar como funciona a razatildeo na eacutetica tomasiana 383 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA EacuteTICA TOMASIANA

Em primeiro lugar vale ressaltar que para o Aquinate mdash tal como para Aristoacuteteles mdash natildeo haacute lugar para um ldquolegalismordquo na ldquociecircncia poliacuteticardquo Os atos humanos mdash afirma o Frade de Roccasecca mdash precisamente enquanto atos livres comportam uma contingecircncia que pode fazecirc-los variar indefinidamente pelo que nenhum legislador conseguiraacute prever mdash no ato mesmo de legislar mdash uma lei que contemple todos os casos Assim sendo pode acontecer que o que eacute justo na maioria das vezes se torne deleteacuterio em determinadas circunstacircncias e o legislador deveraacute levar isto em conta tanto quando concebe a lei como quando a aplica Tomaacutes afirma isso com clareza em duas passagens emblemaacuteticas

Acontece poreacutem frequumlentemente que observar algo eacute uacutetil agrave salvaccedilatildeo comum o mais das vezes eacute contudo em alguns casos maximamente nocivo Dado que o legislador natildeo pode intuir todos os casos particulares propotildee uma lei segundo aquelas coisas que acontecem o mais das vezes levando sua intenccedilatildeo agrave utilidade comum Por isso se surge um caso no qual a

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observacircncia de tal lei eacute danosa agrave salvaccedilatildeo comum natildeo deve ela ser observada254 Quando se tratou das leis foi dito que os atos humanos que as leis devem regular satildeo particulares e contingentes e podem variar ao infinito Por isso foi sempre impossiacutevel instituir uma regra legal que fosse absolutamente sem falha e abrangesse todos os casos Os legisladores examinando atentamente o que sucede com mais frequumlecircncia procuraram legislar levando em conta isto Mas em alguns casos observar rigidamente a lei vai contra a igualdade da justiccedila e contra o bem comum que a lei visa255

Do exposto segue-se ainda que a eacutetica mdash tanto em Tomaacutes

quanto em Aristoacuteteles mdash enquanto reflexatildeo acerca dos costumes haacutebitos e leis humanas natildeo poderaacute ser uma ldquociecircncia do universalrdquo mdash exceto no que concerne aos primeiros princiacutepios da lei natural que ordenam a vida em comum e satildeo imutaacuteveis comuns e inolvidaacuteveis a todo homem e dos quais emanam todos os demais256 mdash mas somente do ldquogeralrdquo ou seja de princiacutepios que embora procedendo de princiacutepios peacutetreos soacute habitualmente ou na maioria das vezes se apresentam como benfazejos ao bem comum

254 Idem Suma Teoloacutegica I-II 96 6 C ldquoContingit autem multoties quod aliquid observari communi saluti est utile ut in pluribus quod tamen in aliquibus casibus est maxime nocivum Quia igitur legislator non potest omnes singulares casus intueri proponit legem secundum ea quae in pluribus accidunt ferens intentionem suam ad communem utilitatem Unde si emergat casus in quo observatio talis legis sit damnosa communi saluti non est observandardquo 255 Idem Ibidem II-II 120 1 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est cum de legibus ageretur quia humani actus de quibus leges dantur in singularibus contingentibus consistunt quae infinitis modis variari possunt non fuit possibile aliquam regulam legis institui quae in nullo casu deficeret sed legislatores attendunt ad id quod in pluribus accidit secundum hoc legem ferentes quam tamen in aliquibus casibus servare est contra aequalitatem iustitiae et contra bonum commune quod lex intenditrdquo 256 Idem Ibidem I-II 94 4 C ldquoSic igitur dicendum est quod lex naturae quantum ad prima principia communia est eadem apud omnes et secundum rectitudinem et secundum notitiamrdquo ldquoDeve-se dizer portanto que a lei da natureza quanto aos primeiros princiacutepios comuns eacute a mesma em todos tanto segundo a retidatildeo como segundo o conhecimentordquo Idem Ibidem I-II 94 5 C ldquoEt sic quantum ad prima principia legis naturae lex naturae est omnino immutabilisrdquo ldquoE assim quanto aos primeiros princiacutepios da lei da natureza a lei da natureza eacute totalmente imutaacutevelrdquo Idem Ibidem I-II 94 6 C ldquoQuantum ergo ad illa principia communia lex naturalis nullo modo potest a cordibus hominum deleri in universalirdquo ldquoQuanto pois agravequeles princiacutepios comuns a lei natural de nenhum modo pode ser destruiacuteda dos coraccedilotildees dos homens de modo universalrdquo

234 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Deve-se dizer que ldquonatildeo se deve procurar a mesma certeza em todas as coisasrdquo como se diz no Livro I da Eacutetica Por isso nas realidades contingentes como satildeo as naturais e as realidades humanas eacute suficiente a certeza tal que algo seja verdadeiro o mais das vezes embora agraves vezes falhe em poucos casos257

Aleacutem disso a tarefa da reflexatildeo eacutetica tampouco conheceraacute

fim A eacutetica seraacute sempre um projeto inacabado pois ldquoa razatildeo humana eacute mutaacutevel e imperfeitardquo258 Haveraacute sempre a possibilidade de as leis os haacutebitos e os costumes humanos serem aperfeiccediloados por reflexotildees ulteriores Diz Tomaacutes

Assim tambeacutem ocorre nas obras a realizar Com efeito os primeiros entenderam achar algo de uacutetil agrave comunidade dos homens natildeo podendo considerar por si mesmos todas as coisas instituiacuteram algumas imperfeitas que falhavam em muitos casos e essas os posteriores mudaram instituindo algumas que em poucos casos pudessem falhar quanto agrave utilidade comum259

Posto isso pensamos ter dado a circularidade que

pretendiacuteamos neste capiacutetulo no sentido de apanhar as principais repercussotildees da eacutetica aristoteacutelica no pensamento de Tomaacutes Comeccedilamos por afirmar um ldquoconceito positivordquo de natureza humana em Tomaacutes e como a civitas eacute oriunda desta natureza Depois movimentamos o texto na tentativa de justificar esta assertiva mostrando como o homem possui domiacutenio sobre as suas accedilotildees e eacute senhor delas e desta reflexatildeo deduzimos o corolaacuterio de que ele eacute pessoa Em seguida procuramos atestar como a incomunicabilidade da pessoa longe de tornaacute-la uma ldquoilhardquo traz

257 Idem Ibidem I-II 96 1 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod non est eadem certitudo quaerenda in omnibus ut in I Ethic dicitur Unde in rebus contingentibus sicut sunt naturalia et res humanae sufficit talis certitudo ut aliquid sit verum ut in pluribus licet interdum deficiat in paucioribusrdquo 258 Idem Ibidem I-II 97 1 ad 1 ldquo[] ratio humana mutabilis est et imperfectardquo 259 Idem Ibidem I-II 97 1 C ldquoIta etiam est in operabilibus Nam primi qui intenderunt invenire aliquid utile communitati hominum non valentes omnia ex seipsis considerare instituerunt quaedam imperfecta in multis deficientia quae posteriores mutaverunt instituentes aliqua quae in paucioribus deficere possent a communi utilitaterdquo

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em si o signo da abertura porque ser pessoa e ser racional tambeacutem eacute ser capaz de livremente criar relaccedilatildeo comunicar-se criar comunhatildeo comunidade o que se consolida mdash na ldquoesfera puacuteblicardquo mdash na ldquoamizade poliacuteticardquo E esta ldquoamizade poliacuteticardquo aperfeiccediloa a justiccedila que acentuamos natildeo ser legalista De mais a mais esforccedilamo-nos por mostrar que tipo de racionalidade mdash na concepccedilatildeo do Aquinate mdash confere agrave eacutetica o status de ldquociecircnciardquo De resto esta ordem natural ou eacutetica filosoacutefica que defendemos haver no Aquinate o mesmo Tomaacutes ainda que admita que ela vaacute sempre carecer de uma perfeiccedilatildeo absoluta reconhece tambeacutem que ela poderaacute lograr uma perfeiccedilatildeo quanto ao tempo conforme tambeacutem verificamos neste capiacutetulo Gostariacuteamos de citar novamente e desta feita integralmente uma passagem na qual Lima Vaz arrazoa sobre o ideal da eacutetica antiga que segundo a nossa compreensatildeo eacute retomado por Tomaacutes de Aquino

O domiacutenio da physis ou reino da necessidade eacute rompido pela abertura do espaccedilo humano do ethos no qual iratildeo inscrever-se os costumes os haacutebitos as normas e os interditos os valores e as accedilotildees Por conseguinte o espaccedilo do ethos enquanto espaccedilo humano natildeo eacute dado ao homem mas por ele construiacutedo ou incessantemente reconstruiacutedo Nunca a casa do ethos estaacute pronta e acabada para o homem e esse seu essencial inacabamento eacute o signo de uma presenccedila a um tempo proacutexima e infinitamente distante e que Platatildeo designou como a presenccedila exigente do Bem que estaacute aleacutem de todo ser (ousiacutea) ou para aleacutem do que se mostra acabado e completo260

Falta entretanto responder a uma pergunta como um

teoacutelogo cujas obras mais originais satildeo evidentemente teoloacutegicas conseguiu mdash nelas mdash desenvolver uma conceptualidade filosoacutefica uma abordagem eacutetico-filosoacutefica A resposta a esta questatildeo depende mdash a nosso ver mdash de uma reta compreensatildeo da concepccedilatildeo de

260 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13

236 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino teologia de Tomaacutes Delinear mdash ainda que sumariamente mdash esta concepccedilatildeo eis o que nos propomos fazer a seguir

Capiacutetulo IV O conceito de Teologia em Tomaacutes de Aquino

Neste capiacutetulo nosso intento eacute delinear qual o conceito de teologia elaborado por Tomaacutes Natildeo temos a pretensatildeo de acompanhar todos os pormenores da construccedilatildeo deste conceito Tomaacutes trata ex professo deste assunto logo na primeira questatildeo da primeira parte da Summa Theologiae A questatildeo eacute composta de dez artigos que discorrem sobre a sacra doctrina O que tentaremos fazer eacute apenas movimentar este texto junto com alguns outros a fim de mostrarmos que o conceito de teologia de Tomaacutes concede ldquodireito de cidadaniardquo agrave filosofia mdash inclusive no acircmbito da eacutetica mdash sem com isso romper a unidade da sacra doctrina A importacircncia de se estabelecer este conceito de teologia em Tomaacutes eacute salientada por Gilson

A principal razatildeo que dificulta a tantos historiadores filoacutesofos e teoacutelogos nomearem teologia o que eles preferem nomear filosofia eacute que em seus espiacuteritos a noccedilatildeo de teologia exclui a de filosofia Para eles verdades propriamente filosoacuteficas que dependem unicamente da razatildeo natildeo conseguiriam encontrar lugar na teologia onde todas as conclusotildees dependem da feacute E eacute verdade que todas as conclusotildees do teoacutelogo dependem da feacute mas natildeo eacute verdade que da feacute todas elas podem ser deduzidas Portanto era o sentido verdadeiro do termo teologia que se fazia necessaacuterio encontrar em primeiro lugar1

Tambeacutem Sofia Vanni Rovighi mdash talvez a que mais tenha

defendido em seu tempo a existecircncia de uma ldquofilosofia autocircnomardquo na teologia de Tomaacutes mdash aponta para a importacircncia de se compreender a concepccedilatildeo de teologia de Aquino com o fito de captar a universalidade do seu pensamento

1 GILSON Eacutetienne O Filoacutesofo e a Teologia Trad e Rev Tiago Joseacute Risi Leme Satildeo Paulo Paulus 2009 p 102

238 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Tomaacutes de Aquino foi e quis ser teoacutelogo Hoje se insiste muito e justamente sobre este fato mas talvez natildeo se devesse esquecer de que foi teoacutelogo a seu modo e natildeo ao modo dos teoacutelogos de hoje e que na sua concepccedilatildeo de teologia a indagaccedilatildeo racional (ou seja a filosofia) tem um lugar e uma funccedilatildeo essencial Jaacute dissemos falando da Summa contra Gentiles que segundo ele uma exposiccedilatildeo da doutrina catoacutelica que se queira dirigir a todos os homens (e pode ser catoacutelica sem se voltar para todos) deve comeccedilar por aquilo que a razatildeo pode descobrir porque a razatildeo eacute aquela que reuacutene todos os homens 2

Procuremos entatildeo encontrar o sentido verdadeiro do

termo ldquoteologiardquo em Tomaacutes pois soacute assim conseguiremos entender a razatildeo por que a filosofia ganha ldquoforos de cidaderdquo em sua obra 41 O CONCEITO DE TEOLOGIA COMO CIEcircNCIA EM TOMAacuteS

Logo no primeiro artigo da Summa o Aquinate coloca a seguinte questatildeo ldquoEacute necessaacuteria outra doutrina aleacutem das disciplinas filosoacuteficasrdquo3 E isto jaacute diz muita coisa A primeira eacute que Tomaacutes natildeo questiona que a filosofia seja uma ciecircncia antes indaga se aleacutem das disciplinas filosoacuteficas existe outra ciecircncia A maneira como ele coloca a questatildeo jaacute mostra que na sua concepccedilatildeo eacute a teologia mdash e natildeo a filosofia mdash que teraacute de se justificar como ciecircncia Nas palavras de Reacutemi Brague

Santo Tomaacutes de Aquino no comeccedilo de sua Suma Teoloacutegica natildeo se pergunta se eacute legiacutetimo fazer filosofia Muito pelo contraacuterio ele

2 ROVIGHI Sofia Vanni Introduzione a Tommaso DrsquoAquino Bari Laterza 1981 pp 40-41 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoTommaso drsquoAquino fu e volle essere teologo Oggi si insiste molto e giustamente su questo fatto mas forse non bisognerebbe dimenticare che fu teologo a modo suo e non al modo dei teologi di oggi e che nella sua concezione della teologia lrsquoindagine razionale (ossia la filosofia) ha un posto e una funzione essenziale Abbiamo giagrave detto parlando della Summa contra Gentiles che secondo lui unrsquoesposizione della dottrina cattolica che voglia rivolgersi a tutti gli uomini (e puograve essere cattolica senza rivolgersi a tutti) deve prendere le mosse da ciograve che la ragione umana puograve scoprire percheacute egrave la ragione quella che accomuna tutti gli uominirdquo 3 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 1 ldquoUtrum sit necessarium praeter philosophicas disciplinas aliam doctrinam haberirdquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 239

se coloca a questatildeo de saber se haacute necessidade de uma ciecircncia que venha a se juntar agrave filosofia mdash trata-se nessas circunstacircncias decerto da teologia A filosofia eacute suposta como indispensaacutevel O que mais for eacute perante seu tribunal que a teologia eacute convocada e que ela deve se justificar4

Depois de defender no corpo do primeiro artigo que

existe sim outra ciecircncia aleacutem da filosofia qual seja a teologia no artigo segundo busca fundamentar a teologia como ciecircncia5 Para levar a termo esta empresa vale-se da ldquoteoria da ciecircnciardquo aristoteacutelica Nos Analiacuteticos Posteriores Aristoacuteteles prevecirc a existecircncia de ciecircncias subalternas Assim a oacutetica deve agrave geometria seus princiacutepios e a muacutesica agrave aritmeacutetica Leiamos o trecho em que o Estagirita abre esta possibilidade

[] nem lteacute possiacutevel demonstrargt o proacuteprio de uma ciecircncia mediante outra a natildeo ser que todas em questatildeo estejam subordinadas umas agraves outras por exemplo as questotildees oacuteticas com respeito agrave geometria e as harmocircnicas com respeito agrave aritmeacutetica6

Pois bem o Boi Mudo assume esta ldquobrechardquo aberta por

Aristoacuteteles a fim de conferir o caraacuteter de ciecircncia agrave teologia Diz ele que haacute dois tipos de ciecircncia Umas procedem ldquo[] de princiacutepios que satildeo conhecidos agrave luz natural do intelecto como a aritmeacutetica a geometria etcrdquo7 outras ao contraacuterio procedem ldquo[] de princiacutepios conhecidos agrave luz de uma ciecircncia superior tais como [] a muacutesica

4 BRAGUE Mediante a Idade Meacutedia Filosofias medievais na cristandade no judaiacutesmo e no islatilde p 55 5 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 2 6 ARISTOacuteTELES Analiacuteticos Segundos I 75 b 10-15 In ______ Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) Trad Miguel Candel Sanmartiacuten Rev Quintiacuten Racionero Madrid Editorial Gredos 1995 v II pp 332-333 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] ni ltes posible demostrargt lo propio de una ciencia mediante otra a no ser que todas las cosas en cuestioacuten esteacuten subordinadas las unas a las otras Vg las cuestiones oacuteptimas respecto a la geometriacutea y las armoacutenicas respecto a la aritmeacuteticardquo 7 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 2 C ldquoQuaedam enim sunt quae procedunt ex principiis notis lumine naturali intellectus sicut arithmetica geometria et huiusmodirdquo

240 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino nos princiacutepios elucidados pela aritmeacuteticardquo8 Ora para Tomaacutes a teologia eacute ciecircncia no segundo sentido pois ela natildeo toma seus princiacutepios da luz natural da razatildeo mas sim de uma ciecircncia arquitetocircnica isto eacute a ciecircncia de Deus e dos celiacutecolas a qual ela conhece natildeo por visatildeo mas por Revelaccedilatildeo Eis o texto

Eacute desse modo que a doutrina sagrada eacute ciecircncia ela procede de princiacutepios conhecidos agrave luz de uma ciecircncia superior a saber da ciecircncia de Deus e dos bem-aventurados E como a muacutesica aceita os princiacutepios que lhe satildeo passados pelo aritmeacutetico assim tambeacutem a doutrina sagrada aceita os princiacutepios revelados por Deus9

O que nos interessa reter aqui eacute que desde a sua

constituiccedilatildeo como ciecircncia a teologia mdash em Tomaacutes mdash depende de uma reflexatildeo filosoacutefica tomada em grande parte de Aristoacuteteles Neste sentido diz Gilson sobre Tomaacutes ldquoEle sabe pela feacute para que termo se dirige contudo soacute progride graccedilas aos recursos da razatildeordquo10 Mas qual seraacute o ldquoobjetordquo da teologia

8 Idem Ibidem I 1 2 C ldquoQuaedam vero sunt quae procedunt ex principiis notis lumine superioris scientiae sicut perspectiva procedit ex principiis notificatis per geometriam et musica ex principiis per arithmeticam notisrdquo 9 Idem Ibidem ldquoEt hoc modo sacra doctrina est scientia quia procedit ex principiis notis lumine superioris scientiae quae scilicet est scientia Dei et beatorum Unde sicut musica credit principia tradita sibi ab arithmetico ita doctrina sacra credit principia revelata sibi a Deordquo Noutro passo o Aquinate eacute ainda mais claro Idem Ibidem II-II 1 7 C ldquoRespondeo dicendum quod ita se habent in doctrina fidei articuli fidei sicut principia per se nota in doctrina quae per rationem naturalem habeturrdquo ldquoOs artigos da feacute tecircm na doutrina da feacute o mesmo papel que os princiacutepios evidentes na doutrina que se constroacutei a partir da razatildeo naturalrdquo 10 GILSON A Filosofia na Idade Meacutedia p 657 Lapidar tambeacutem eacute a foacutermula adotada por Paul Gilbert para o proceder de Tomaacutes GILBERT Paul Introduccedilatildeo agrave Teologia Medieval Trad Dion Davi Macedo Rev Mauriacutecio Leal e Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1999 p 135 ldquoA feacute erige somente o que diz a razatildeordquo Isto natildeo significa que a razatildeo possa demonstrar os misteacuterios revelados mas sim que a teologia depende dos recursos da razatildeo para progredir com ordem Como jaacute dissemos Tomaacutes de Aquino tem um papel preponderante na formulaccedilatildeo da teologia como ciecircncia POSTESTAgrave VIAN Op Cit p 191 ldquoEstabelecendo seu estatuto de ciecircncia Tomaacutes levou (provisoriamente) a cabo seu longo percurso de se emancipar da exegese agora a teologia jaacute natildeo deveria ser considerada contemplaccedilatildeo da Escritura mas um saber autonomamente estruturado a partir dos princiacutepios revelados poreacutem desenvolvido e articulado segundo processos argumentativos de tipo racionalrdquo

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42 O ldquoOBJETOrdquo DA TEOLOGIA

A teologia enquanto ciecircncia tem um sujeito mdash diriacuteamos hoje um ldquoobjetordquo mdash e este eacute Deus ldquoDeus eacute o sujeito desta ciecircnciardquo11 Poreacutem Tomaacutes precisa que natildeo eacute qualquer conhecimento de Deus que eacute ldquoobjetordquo da teologia O ldquoobjetordquo desta ciecircncia natildeo eacute formalmente aquele conhecimento de Deus que os filoacutesofos mdash com mescla de erros mdash conseguiram alcanccedilar senatildeo aquele ldquo[] que soacute Deus conhece de si mesmo e que eacute comunicado aos outros por revelaccedilatildeordquo 12 Assim a ldquorazatildeo formalrdquo desta ciecircncia eacute o conhecimento de Deus obtido por Revelaccedilatildeo ldquo[] tudo o que eacute cognosciacutevel por revelaccedilatildeo divina tem em comum a uacutenica razatildeo formal do objeto desta ciecircnciardquo13 Em vaacuterias ocasiotildees Frei Tomaacutes reafirma isso Donde concluir que ldquoEra necessaacuterio existir para a salvaccedilatildeo do homem [] uma doutrina fundada na revelaccedilatildeo divinardquo 14 Mais abaixo afirma ainda ldquoPortanto aleacutem das disciplinas filosoacuteficas [] era necessaacuteria uma doutrina sagrada tida por revelaccedilatildeordquo15 Outras passagens poderiam ser citadas mas estas nos parecem suficientes Agora qual eacute o lugar da filosofia nesta ciecircncia 43 O PAPEL DA FILOSOFIA NA TEOLOGIA TOMASIANA

A impressatildeo que fica eacute que sendo a Revelaccedilatildeo o ldquoobjeto formalrdquo da teologia natildeo resta espaccedilo algum nela para a filosofia Contudo natildeo eacute assim Em primeiro lugar como Deus se revelou a

11 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 7 C ldquo[] Deus est subiectum huius scientiaerdquo 12 Idem Ibidem I 1 6 C ldquo[] sed etiam quantum ad id quod notum est sibi soli de seipso et aliis per revelationem communicatumrdquo 13 Idem Ibidem I 1 3 C ldquo[] omnia quaecumque sunt divinitus revelabilia communicant in una ratione formali obiecti huius scientiaerdquo 14 Idem Ibidem I 1 1 C ldquoUt igitur salus hominibus et convenientius et certius proveniat necessarium fuit quod de divinis per divinam revelationem instruanturrdquo 15 Idem Ibidem ldquoNecessarium igitur fuit praeter philosophicas disciplinas quae per rationem investigantur sacram doctrinam per revelationem haberirdquo

242 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino noacutes A fonte primeira da Revelaccedilatildeo eacute a Sagrada Escritura E o que temos laacute Deus revelando-Se a noacutes por meio das Suas criaturas ldquoConveacutem agrave Sagrada Escritura nos transmitir as coisas divinas e espirituais mediante imagens corporaisrdquo16 Mais do que atestar este fato Tomaacutes o justifica dizendo que assim deveria ser pois uma vez que natildeo somos espiacuteritos puros mas uma unidade entre alma e corpo eacute-nos natural conhecermos as coisas inteligiacuteveis atraveacutes das sensiacuteveis ldquo[] eacute natural ao homem elevar-se ao inteligiacutevel pelo sensiacutevel porque todo o nosso conhecimento se origina a partir dos sentidosrdquo17 Sendo assim mdash continua o Frade de Roccasecca mdash ldquo[] eacute entatildeo conveniente que na Escritura Sagrada as realidades espirituais nos sejam transmitidas por meio de metaacuteforas corporaisrdquo18

A questatildeo que se coloca entatildeo eacute a seguinte qual a ciecircncia que estuda as realidades naturais Eacute a filosofia Satildeo as disciplinas filosoacuteficas que nos datildeo a conhecer as coisas enquanto tais Neste sentido diraacute o Aquinate ldquo[] a filosofia humana as considera enquanto tais Donde as diversas partes da filosofia serem constituiacutedas segundo os diversos gecircneros das coisasrdquo19 A seguir Tomaacutes passa a distinguir com clareza como a filosofia e a teologia abordam as criaturas Enquanto o filoacutesofo quer conhecer apenas a natureza proacutepria de cada coisa ldquo[] por exemplo o fogo enquanto soberdquo20 o fiel ao contraacuterio quer conhecer nas criaturas ldquo[] somente aquilo que a elas conveacutem enquanto estatildeo

16 Idem Ibidem I 1 9 C ldquoRespondeo dicendum quod conveniens est sacrae Scripturae divina et spiritualia sub similitudine corporalium tradererdquo 17 Idem Ibidem ldquoEst autem naturale homini ut per sensibilia ad intelligibilia veniat quia omnis nostra cognitio a sensu initium habetrdquo 18 Idem Ibidem ldquoUnde convenienter in sacra Scriptura traduntur nobis spiritualia sub metaphoris corporaliumrdquo 19 Idem Suma Contra os Gentios II IV 1 [871] ldquoNam philosophia humana eas considerat secundum quod huiusmodi sunt unde et secundum diversa rerum genera diversae partes philosophiae inveniunturrdquo 20 Idem Ibidem II IV 2[872 a] ldquo[] sicut igni ferri sursum []rdquo

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relacionadas com Deusrdquo21 De mais a mais o filoacutesofo considera as coisas a partir das suas causas proacuteximas enquanto o teoacutelogo as considera a partir da causa primeira Deus22 Mas e este eacute o ponto o Aquinate observa que natildeo eacute inuacutetil ao teoacutelogo o conhecimento das coisas enquanto tais porque tambeacutem na natureza mesma das coisas podemos descobrir traccedilos da sabedoria criadora da causa primeira Diz ele

Daiacute podermos pela consideraccedilatildeo das obras recolher a sabedoria divina que estaacute como que espelhada nas criaturas por certa comunicaccedilatildeo da sua semelhanccedila23

Entretanto nem sequer isso eacute o mais importante Devemos

ter um conhecimento reto das criaturas porque uma vez que Deus Se revelou a noacutes mediante ldquoimagens corporaisrdquo se natildeo entendermos o que as coisas satildeo em si mesmas podemos compreender de forma equivocada estas metaacuteforas ou interpretaacute-las de forma que atente contra a proacutepria feacute Por essa razatildeo Frei Tomaacutes julga falsa e danosa agrave feacute a opiniatildeo daqueles que pensam poder fazer correta teologia sem dispor de um soacutelido conhecimento natural Na Suma de Teologia ele diz ldquoA feacute pressupotildee o conhecimento natural como a graccedila pressupotildee a natureza e a perfeiccedilatildeo o que eacute perfectiacutevelrdquo24 Jaacute na Suma Contra os Gentios eacute ainda mais contundente

21 Idem Ibidem ldquo[] idelis autem ea solum considerat circa creaturas quae eis conveniunt secundum quod sunt ad Deum relata []rdquo 22 Idem Ibidem II IV 2 [873] ldquoNam philosophus argumentum assumit ex propriis rerum causis fidelis autem ex causa prima ut puta quia sic divinitus est traditum vel quia hoc in gloriam Dei cedit vel quia Dei potestas est infinitardquo ldquoO filoacutesofo deduz os seus argumentos partindo das proacuteprias causas das coisas o fiel poreacutem da causa primeira mostrando que assim eacute porque foi revelado por Deus ou porque redunda na gloacuteria de Deus ou porque a gloacuteria de Deus eacute infinitardquo 23 Idem Ibidem II II 1 [859] ldquoUnde ex factorum consideratione divinam sapientiam colligere possumus sicut in rebus factis per quandam communicationem suae similitudinis sparsamrdquo 24 Idem Suma Teoloacutegica I 2 2 ad 1 ldquo[] fides praesupponit cognitionem naturalem sicut gratia naturam et ut perfectio perfectibilerdquo

244 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Vecirc-se pois como eacute falsa a afirmaccedilatildeo de alguns de que era indiferente para as verdades da feacute o que se pensasse a respeito das criaturas contanto que se pensasse retamente sobre Deus como nos relata Agostinho O erro acerca das criaturas redunda em falsa ideacuteia de Deus e ao submeter as mentes humanas a quaisquer outras coisas afasta-as de Deus para quem a feacute as quer encaminhar25

Porro comenta esta passagem mostrando nela o vieacutes

filosoacutefico que Tomaacutes nunca abandonou quando fez teologia

Como eacute evidente essa passagem natildeo reivindica apenas o direito mas tambeacutem e sobretudo o dever para o teoacutelogo de se ocupar das criaturas levando em conta esse ponto pode-se talvez comeccedilar a compreender por que Tomaacutes continuou e ateacute intensificou a proacutepria leitura dos textos aristoteacutelicos ateacute os uacuteltimos anos de sua vida26

Pelas razotildees arroladas Aquino pocircde concluir que embora

distintas filosofia e teologia devem caminhar juntas a fim de que a filosofia confira solidez agrave teologia Decerto que o Aquinate toma o cuidado de dizer que esta integraccedilatildeo entre as duas ordens diversas do conhecimento natildeo eacute estritamente necessaacuteria como se a teologia fosse inferior agrave filosofia Todavia tal interaccedilatildeo eacute muito pertinente dado que devido agrave debilidade do nosso intelecto que soacute eleva ao inteligiacutevel mediante o sensiacutevel eacute mais seguro valermo-nos da filosofia porque ela enquanto nos daacute a conhecer o que satildeo as coisas em si mesmas nos possibilita tambeacutem entender o dado revelado posto que Deus mdash jaacute o sabemos mdash Se revela a noacutes mediante ldquoimagens corporais ou sensiacuteveisrdquo A filosofia nos ajuda

25 Idem Suma Contra os Gentios II III 5 [869] ldquoSic ergo patet falsam esse quorundam sententiam qui dicebant nihil interesse ad fidei veritatem quid de creaturis quisque sentiret dummodo circa Deum recte sentiatur ut Augustinus narrat in libro de origine animae nam error circa creaturas redundat in falsam de Deo sententiam et hominum mentes a Deo abducit in quem fides dirigere nititur dum ipsas quibusdam aliis causis supponitrdquo 26 PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 137

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pois a nos elevarmos do sensiacutevel ao inteligiacutevel com correccedilatildeo Ouccedilamos o proacuteprio Tomaacutes

Deve-se dizer que a ciecircncia sagrada pode tomar emprestada alguma coisa agraves ciecircncias filosoacuteficas Natildeo que lhe seja necessaacuterio mas em vista de melhor manifestar o que ela proacutepria ensina Seus princiacutepios natildeo lhe vecircm de nenhuma outra ciecircncia mas de Deus imediatamente por revelaccedilatildeo Por conseguinte ela natildeo toma emprestado das outras ciecircncias como se lhe fossem superiores mas delas se vale como de inferiores e servas [] Que a ciecircncia sagrada se valha das outras ciecircncias natildeo eacute por uma falha sua ou deficiecircncia sua mas por falha de nosso intelecto A partir dos conhecimentos naturais de onde procedem as outras ciecircncias nosso intelecto eacute mais facilmente introduzido nos objetos que ultrapassam a razatildeo e satildeo a mateacuteria desta ciecircncia 27

No entanto a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para provar a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina28

E por essa razatildeo sendo a sabedoria principal serve-se da filosofia humana E ainda por este motivo a sabedoria divina parte algumas vezes dos princiacutepios da sabedoria humana29

Ao se depararem com esta temaacutetica em Tomaacutes Reale e

Antiseri mdash em sua Histoacuteria da Filosofia mdash concluem ldquo[] sendo necessaacuteria uma correta filosofia para ser possiacutevel uma boa

27 Idem Ibidem I 1 5 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod haec scientia accipere potest aliquid a philosophicis disciplinis non quod ex necessitate eis indigeat sed ad maiorem manifestationem eorum quae in hac scientia traduntur Non enim accipit sua principia ab aliis scientiis sed immediate a Deo per revelationem Et ideo non accipit ab aliis scientiis tanquam a superioribus sed utitur eis tanquam inferioribus et ancillis [] Et hoc ipsum quod sic utitur eis non est propter defectum vel insufficientiam eius sed propter defectum intellectus nostri qui ex his quae per naturalem rationem (ex qua procedunt aliae scientiae) cognoscuntur facilius manuducitur in ea quae sunt supra rationem quae in hac scientia tradunturrdquo 28 Idem Ibidem I 1 8 ad 2 ldquoUtitur tamen sacra doctrina etiam ratione humana non quidem ad probandum fidem quia per hoc tolleretur meritum fidei sed ad manifestandum aliqua alia quae traduntur in hac doctrinardquo 29 Idem Suma Contra os Gentios II IV 4 [875] ldquoEt propter hoc sibi quasi principali philosophia humana deservit Et ideo interdum ex principiis philosophiae humanae sapientia divina proceditrdquo

246 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino teologiardquo30 Aliaacutes tambeacutem nesta mesma linha de interpretaccedilatildeo o proacuteprio Aquinate jaacute defendia que a filosofia poderia ser estudada inclusive pelos religiosos Afirma ele

Deve-se dizer que os filoacutesofos professavam o estudo das letras no que diz respeito agraves ciecircncias humanas Mas aos religiosos compete principalmente dedicar-se ao estudo das letras que se referem agrave ldquodoutrina que eacute segundo a piedaderdquo como diz o Apoacutestolo Dedicar-se poreacutem ao estudo das outras doutrinas natildeo eacute proacuteprio dos religiosos que consagram toda a sua vida ao ministeacuterio divino a natildeo ser na medida em que elas satildeo ordenadas agrave teologia31

A propoacutesito eacute digno de nota que a primeira constituiccedilatildeo da

Ordem Dominicana mdash Livro dos costumes dos frades pregadores mdash orientava que os noviccedilos estudassem sim mas estudassem apenas e tatildeo somente livros teoloacutegicos vedando-lhes a possibilidade de se dedicarem aos estudos profanos O teor do texto eacute este

Natildeo se dediquem aos livros dos gentios e dos filoacutesofos se os examinarem de vez em quando natildeo se instruam nas ciecircncias seculares nem nas artes que chamam de liberais mas tanto os jovens como os outros estudem apenas livros teoloacutegicos32

30 REALE Giovanni ANTISERI Dario Histoacuteria da Filosofia Antiguumlidade e Idade Meacutedia Rev Honoacuterio Dalbosco 6 ed Satildeo Paulo Paulus 1990 p 554 31 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 188 5 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod philosophi profitebantur studia litterarum quantum ad saeculares doctrinas Sed religiosis competit principaliter intendere studio litterarum pertinentium ad doctrinam quae secundum pietatem est ut dicitur Tit I Aliis autem doctrinis intendere non pertinet ad religiosos quorum tota vita divinis obsequiis mancipatur nisi inquantum ordinantur ad sacram doctrinamrdquo [O itaacutelico eacute nosso] 32 LIVRO DOS COSTUMES DOS FRADES PREGADORES Distinccedilatildeo II cap 6 Trad Gelabert M Milagro et al Madrid BAC 1947 p 900 In NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 p 23 Aliaacutes desde o iniacutecio o estudo foi uma das notas distintivas da ordem dos frades pregadores LENZENWEGER Josef STOCKMEIER Peter [et al] Op Cit p 170 ldquoFoi com Domingos que pela primeira vez na histoacuteria das ordens religiosas a finalidade pastoral foi formulada claramente A ascese tinha de estar a serviccedilo da pregaccedilatildeo contemplata predicare Costumes de ascetismos ateacute entatildeo considerados indispensaacuteveis foram sacrificados em prol do estudo Por exemplo os irmatildeos ganharam celas individuais e uma luz para que tambeacutem de noite pudessem estudar algo completamente impensaacutevel nas ordens monaacutesticasrdquo

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Contudo durante o capiacutetulo de Valenciennes em 1259 no qual Tomaacutes mdash jaacute regente de teologia em Paris mdash estava presente bem como Alberto Magno o Conselho decidiu que os pregadores estudassem tambeacutem os textos filosoacuteficos As palavras da Ata satildeo as seguintes ldquoQue se organizem nas proviacutencias que tiverem necessidade um ou mais estuacutedios de artes onde os jovens sejam instruiacutedosrdquo33 Esta novidade causou grande alvoroccedilo e acabou por render criacuteticas a Alberto inclusive dos seus proacuteprios confrades Algumas de suas respostas a estas criacuteticas dos seus coevos podem ser mencionadas com proveito porque sua iacutendole vem ao encontro da nossa temaacutetica Para as universidades mdash afirma Alberto mdash aqueles que satildeo avessos a toda sorte de novidades satildeo

[] como o fiacutegado pois em todo corpo haacute o humor da biacutelis que ao evaporar torna amargo todo o corpo igualmente na universidade haacute sempre homens muitiacutessimo amargos e biliosos que levam todos os outros agrave amargura e natildeo lhes permitem buscar a verdade em prazerosa companhia34

Digo isto para certos preguiccedilosos que buscam conforto agrave sua preguiccedila indo agrave caccedila de erros nos escritos dos outros E dado que dormem na sua preguiccedila para natildeo parecerem os uacutenicos a dormir buscam atribuir desonras aos eleitos Tais foram aqueles que mataram Soacutecrates exilaram Platatildeo de Atenas e com as suas maquinaccedilotildees constrangeram tambeacutem Aristoacuteteles a ir embora35

33 ATAS DOS CAPIacuteTULOS GERAIS DA ORDEM DOS PREGADORES Roma R M Reichert p 99 v I In NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 p 24 34 ALBERTO MAGNO Comentaacuterio aos VIII livros da Poliacutetica de Aristoacuteteles Paris Ed A Borgnet Vivegraves 1890-99 p 804 v 8 In NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 p 24 35 ALBERTO MAGNO In octo libros Politicorum Aristotelis l VIII cap 6 In ROVIGHI Sofia Vanni Introduzione a Tommaso DrsquoAquino Bari Laterza 1981 p 12 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoDico questo per certi pigri che cercano conforto alla sua loro pigrizia andando a caccia di errori negli scritti altrui E poicheacute dormono nella sua pigrizia per non sembrare i soli a dormire cercano di attribuire macchie agli eletti Tali furono coloro que uccisero Socrate esiliarono Platone di Atene e con le sue macchinazioni costrinsero anche Aristotele ad andarsenerdquo

248 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Alguns ignorantes querem combater de todos os modos o estudo da filosofia e especialmente entre os Pregadores onde ningueacutem resiste a eles Satildeo como animais brutos que praguejam contra aquilo que ignoram36

Tomaacutes parece ser ele proacuteprio a ldquotestemunha vivardquo da

orientaccedilatildeo dada pelo capiacutetulo de Valenciennes Mesmo natildeo tendo lecionado na faculdade de artes e portanto natildeo tendo obrigaccedilatildeo alguma de comentar Aristoacuteteles ainda assim comentou incansavelmente o corpus aristotelicum optando sempre que possiacutevel por traduccedilotildees feitas diretamente do grego em sua maioria obras de Guilherme de Moerbeke seu confrade Natildeo eacute de pouca monta observar que jaacute com a sua obra teoloacutegica quase toda realizada vale dizer nos uacuteltimos anos de sua vida o Aquinate nunca cessou de comentar as obras aristoteacutelicas o que nos daacute a convicccedilatildeo de que ele natildeo as comentava exclusivamente como preparaccedilatildeo para outras obras teoloacutegicas mas sim para manter atualizados os seus conhecimentos filosoacuteficos Outro fato digno de acento eacute que depois de sua morte os mestres da faculdade de artes mdash e natildeo os da teologia mdash pediram agrave Ordem dos Frades Pregadores o envio natildeo propriamente da Summa Theologiae mas dos comentaacuterios de Frei Tomaacutes a Aristoacuteteles Eacute interessante lermos as consideraccedilotildees de Porro a este respeito

Tomaacutes natildeo comentou Aristoacuteteles ateacute os uacuteltimos anos da sua vida porque fosse obrigado a isso por estatutos ou programas de ensino (embora seus comentaacuterios sejam depois solicitados apoacutes sua morte pelos mestres da faculdade das artes mdash o que atesta o indiscutiacutevel prestiacutegio que Tomaacutes conquistara como comentarista de Aristoacuteteles entre os que por profissatildeo eram obrigados a ler e a comentar Aristoacuteteles) [] Portanto natildeo resta senatildeo apelar ao que tambeacutem se dizia antes o interesse de Tomaacutes pelas obras

36 ALBERTO MAGNO In Epistolas B Dionisii Areop VIII 2 In ROVIGHI Sofia Vanni Introduzione a Tommaso DrsquoAquino Bari Laterza 1981 p 12 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoAlcuni ignoranti vogliono combattere in tutti i modi lo studio della filosofia e specialmente fra i Pedicatori dove nessuno resiste loro Sono como animali bruti che imprecano contro quello che ignoranordquo

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aristoteacutelicas natildeo eacute simplesmente instrumental ou natildeo tem por objetivo apenas chegar ao depoacutesito do saber aristoteacutelico para dele retirar o material uacutetil e necessaacuterio para construir o novo edifiacutecio cientiacutefico do saber cristatildeo mas eacute antes um traccedilo essencial da sua atitude geral Tomaacutes procurou ateacute os uacuteltimos anos confrontar-se com o sistema geral das ciecircncias (procurando se manter atualizado tambeacutem a propoacutesito dos textos postos agrave disposiccedilatildeo pelas traduccedilotildees acabadas naqueles mesmos anos) Talvez o conhecimento dos raios e dos terremotos natildeo fosse imediatamente utilizaacutevel nos seus escritos teoloacutegicos mas Tomaacutes ficou convencido (pela sua formaccedilatildeo pessoal pela aprendizagem sob Alberto Magno por sua proacutepria curiosidade intelectual) de que um bom teoacutelogo deveria ser em primeiro lugar um homem de ciecircncia em geral e manter o dever de jamais se subtrair ao confronto com as ciecircncias profanas se natildeo ateacute aprofundar cada uma delas de modo analiacutetico37

Eacute que mdash acrescentariacuteamos ao que diz Porro mdash sendo a

teologia certa participaccedilatildeo na ciecircncia de Deus38 uma vez que Deus quando Se conhece conhece tambeacutem as Suas obras39 pertence ao teoacutelogo sempre para entender melhor a Revelaccedilatildeo 40 e assim assemelhar a teologia menos imperfeitamente agrave ciecircncia de Deus conhecer tambeacutem as Suas obras41 E para conhecer as obras de Deus eacute oportuno que o teoacutelogo se valha das ciecircncias filosoacuteficas

37 PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico pp 293-294 [O itaacutelico eacute nosso] 38 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 3 ad 2 ldquo[] ut sic sacra doctrina sit velut quaedam impressio divinae scientiae quae est una et simplex omniumrdquo ldquoIsto faz com que esta ciecircncia apareccedila como impressatildeo da ciecircncia de Deus una e simples com relaccedilatildeo a tudordquo 39 Idem Ibidem I 1 4 C ldquo[] sicut et Deus eadem scientia se cognoscit et ea quae facitrdquo ldquo[] assim como Deus por uma mesma ciecircncia conhece a si proacuteprio e conhece suas obrasrdquo 40 Idem Ibidem I 1 3 ad 2 ldquoEt similiter ea quae in diversis scientiis philosophicis tractantur potest sacra doctrina una existens considerare sub una ratione inquantum scilicet sunt divinitus revelabiliardquo ldquoDa mesma forma a uacutenica ciecircncia sagrada pode considerar sob uma mesma razatildeo isto eacute como objetos de revelaccedilatildeo divina objetos tratados em ciecircncias filosoacuteficas diferentesrdquo 41 Idem Suma contra os gentios II IV 5 [876 b] ldquoEt sic est perfectior utpote Dei cognitioni similior qui seipsum cognoscens alia intueturrdquo ldquoE assim ela [a doutrina da feacute] eacute mais perfeita justamente por ser semelhante ao conhecimento de Deus que ao se conhecer vecirc as outras coisas em si mesmordquo

250 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Mas onde entra mdash nesta visatildeo de teologia mdash o discurso filosoacutefico no que tange especificamente agrave eacutetica 44 A FACE HUMANA DA TEOLOGIA TOMASIANA

Entre as criaturas o homem mdash enquanto pessoa mdash destaca-se como imagem e semelhanccedila de Deus tal como definimos este importante conceito (o de pessoa) no capiacutetulo anterior De fato ser pessoa eacute um atributo que pertence acima de tudo a Deus Tomemos um periacuteodo jaacute citado

Pessoa significa o que haacute de mais perfeito em toda natureza a saber o que subsiste em uma natureza racional Ora tudo o que diz perfeiccedilatildeo deve ser atribuiacutedo a Deus pois sua essecircncia conteacutem em si toda perfeiccedilatildeo Conveacutem portanto atribuir a Deus este nome pessoa Natildeo poreacutem da mesma maneira como se atribui agraves criaturas Seraacute de maneira mais excelente42

Ora se Deus se revelou aos homens por Suas criaturas e

entre estas criaturas o homem eacute a que eacute pessoa mdash atributo que pertence mormente a Deus mdash para entendermos o que este termo significa com maior amplitude importa que estudemos o homem mdash imagem e semelhanccedila de Deus mdash em sua natureza proacutepria isto eacute enquanto ser dotado de razatildeo e livre-arbiacutetrio Pois bem este preacircmbulo acerca do homem eacute tarefa da ldquofilosofia praacuteticardquo e deve integrar o labor do teoacutelogo Eacute assim que Tomaacutes abre a Prima Secundae da Summa Theologiae Voltemos a uma passagem jaacute citada

Afirma Damasceno que o homem eacute criado agrave imagem de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto

42 Idem Suma Teoloacutegica I 29 3 C ldquoRespondeo dicendum quod persona significat id quod est perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali natura Unde cum omne illud quod est perfectionis Deo sit attribuendum eo quod eius essentia continet in se omnem perfectionem conveniens est ut hoc nomen persona de Deo dicatur Non tamen eodem modo quo dicitur de creaturis sed excellentiori modo []rdquo

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de livre-arbiacutetrio e revestido por si de poder Apoacutes ter discorrido sobre o exemplar a saber Deus e sobre as coisas que procederam do poder voluntaacuterio de Deus deve-se considerar agora a sua imagem a saber o homem enquanto ele eacute o princiacutepio de suas accedilotildees possuindo livre-arbiacutetrio e domiacutenio sobre suas accedilotildees43

Observemos que o Aquinate soacute aparentemente afasta-se de

Deus quando trata do homem Na verdade Deus continua sendo a uacutenica razatildeo formal que daacute unidade a toda a sua sabedoria teoloacutegica Insistimos ocorre que para se entender a Revelaccedilatildeo de Deus mais amplamente na concepccedilatildeo do Aquinate cumpre entender a Sua criaccedilatildeo sobretudo o homem que eacute imagem e semelhanccedila de Deus Desta forma debruccedilar-se sobre o homem em si mesmo ajuda a amplificar o nosso entendimento do ser pessoa e a conhecer melhor por analogia Deus Carlos Josaphat assim define a teologia de Tomaacutes

Assim se constitui uma teologia antropoloacutegica Eacute o projeto audacioso e humilde de conhecimento do Misteacuterio de Deus enquanto se deixa vislumbrar no que haacute de mais sublime no ser humano na realidade e no dinamismo de seu espiacuterito Este eacute considerado analisado e discernido qual imagem menos improacutepria embora permaneccedila sempre infinitamente distante do Princiacutepio Primeiro e Exemplar da vida do conhecer e do amar 44

Deste modo ao teoacutelogo eacute conveniente conhecer o homem

na sua inteireza Eacute pois conveniente conhececirc-lo do ponto de vista da moral isto eacute conhecer as suas paixotildees e as suas accedilotildees enquanto estas satildeo virtuosas ou viciosas importa consideraacute-lo tambeacutem enquanto ser poliacutetico ou seja enquanto as suas accedilotildees satildeo louvaacuteveis

43 Idem Ibidem I-II Proacutelogo [O segundo itaacutelico eacute nosso] 44 JOSAPHAT Op Cit p 166 [O itaacutelico eacute nosso] NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 pp 75-76 ldquoO filoacutesofo alematildeo Ludwig Feuerbach (1804-1872) natildeo deixaria de ter uma ponta de razatildeo ao pretender que a verdade da teologia eacute a antropologia

252 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ou condenaacuteveis enfim eacute conveniente ainda conhecer a oratoacuteria para saber como escusar ou acusar um homem de forma reta

Deve-se dizer que a consideraccedilatildeo das circunstacircncias eacute objeto da moral da poliacutetica e da oratoacuteria Da moral enquanto nela se encontra ou eacute afastado o meio da virtude nos atos humanos e nas paixotildees Da poliacutetica e da oratoacuteria enquanto pelas circunstacircncias o ato torna-se louvaacutevel ou condenaacutevel escusaacutevel ou acusaacutevel Entretanto de modos diversos pois o que o orador persuade o poliacutetico julga Ao teoacutelogo a quem todas as outras artes servem pertence a consideraccedilatildeo das circunstacircncias de todos esses modos Assim com o moralista considera os atos virtuosos e viciosos e com o orador e o poliacutetico considera os atos enquanto merecem pena ou louvor45

Mas natildeo seria mais adequado conhecer a Deus pelo proacuteprio

Deus Sim mas aprouve ao proacuteprio Deus como temos dito revelar-Se a noacutes por meio das Suas criaturas a ponto de o Aquinate dizer que ldquo[] a humanidade de Cristo eacute o caminho pelo qual se vai agrave divindaderdquo46 De resto na perspectiva de Tomaacutes como tambeacutem jaacute notamos isto foi muito oportuno em razatildeo da debilidade do nosso intelecto que soacute se eleva ao inteligiacutevel atraveacutes de adminiacuteculos sensiacuteveis ldquo[] a origem do nosso conhecimento ateacute mesmo das coisas que transcendem os sentidos estaacute nos

45 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 7 2 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod consideratio circumstantiarum pertinet ad moralem et politicum et ad rhetorem Ad moralem quidem prout secundum eas invenitur vel praetermittitur medium virtutis in humanis actibus et passionibus Ad politicum autem et rhetorem secundum quod ex circumstantiis actus redduntur laudabiles vel vituperabiles excusabiles vel accusabiles Diversimode tamen nam quod rhetor persuadet politicus diiudicat Ad theologum autem cui omnes aliae artes deserviunt pertinent omnibus modis praedictis nam ipse habet considerationem de actibus virtuosis et vitiosis cum morali et considerat actus secundum quod merentur poenam vel praemium cum rhetore et politicordquo 46 Idem Compecircndio de Teologia I II 2 [O itaacutelico eacute nosso] ldquoNec mirum quia Christi humanitas via est qua ad divinitatem perveniturrdquo Na ediccedilatildeo biliacutengue traduz-se Idem Ibidem I 2 ldquoNatildeo eacute de admirar porque a humanidade de Cristo eacute o caminho pelo qual se chega agrave divindaderdquo Idem Suma Teoloacutegica I 2 ldquo[] tertio de Christo qui secundum quod homo via est nobis tendendi in Deumrdquo ldquo3 do Cristo que enquanto homem eacute para noacutes o caminho que leva a Deusrdquo [O itaacutelico eacute nosso]

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sentidosrdquo47 Em razatildeo disso pensamos eacute que Tomaacutes considera a humanidade de Cristo como um dos cernes da Revelaccedilatildeo cristatilde ldquo[] todo o conhecimento da feacute resume-se nestas duas verdades na divindade da Trindade e na humanidade de Cristordquo48 A partir desta loacutegica eacute mister estudarmos o homem tal como eacute em sua natureza proacutepria visto que isso nos ajudaraacute mdash ratificamos mdash a conhecermos melhor por analogia Deus que Se revelou a noacutes maximamente enquanto Se fez homem (Jo 1 14) Em outras palavras um correto entendimento do misteacuterio de Cristo passa por um reto conhecimento da natureza humana que ele assumiu49

47 Idem Suma Contra os Gentios I XII 8 [80] ldquoEt sic nostrae cognitionis origo in sensu est etiam de his quae sensum exceduntrdquo 48 Idem Compecircndio de Teologia I II 2 ldquoCirca haec ergo duo tota fidei cognitio versatur scilicet circa divinitatem Trinitatis et humanitatem Christirdquo 49 Sobre a grande relevacircncia filosoacutefica dos problemas levantados em torno da questatildeo teoloacutegica da Encarnaccedilatildeo indicamos o videocurso do filoacutesofo Alain de Libera Este estudioso em 2010 ministrou um curso no Istituto di Filosofia Applicata di Lugano intitulado Lrsquoidentitagrave personale nella filosofia medievale Nas dez liccedilotildees do curso ele demonstra com denodo e pormenorizadamente o quanto deve agraves controveacutersias cristoloacutegicas e trinitaacuterias dos padres gregos e latinos e depois agrave cristologia dos medievais mdash inclusive agrave de Tomaacutes de Aquino mdash o debate moderno e contemporacircneo sobre a identidade pessoal o sujeito a subjetividade o eu etc Aqui transcrevemos e depois traduzimos apenas a Apresentaccedilatildeo do curso LIBERA Alain de Lrsquoidentitagrave personale nella filosofia medievale Disponiacutevel em lthttpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismolidentita-personale-nella-filosofia-medievalegt ldquoLrsquoargomento generale del corso egrave il seguente I concetti il linguaggio teoretico i problemi filosofici dellrsquoidentitagrave non si possono capire senza riferirsi alla storia della teologia cristiana Cioegrave alle genealogie e a lrsquoarcheologia del soggetto e della soggettivitagrave della persona dellrsquoagente dellrsquoIo o dellrsquoEgo La prospettiva contemporanea dipende parzialmente dalle discussioni moderne vale a dire dalle discussioni della teoria lockeana dellrsquoidentitagrave personale questa teoria dipende essa stessa dalla discussione medievale dei problemi della persona di Cristo mdash ad esempio se la persona di Cristo sia composta se la natura umana sia stata unita al Verbo di Dio accidentalmente mdash e sopratutto dalla discussione dei problemi dellunitagrave di Cristo in rapporto alle operazioni Un altro problema teologico quello del battesimo dei gemelli siamesi viene studiato qui sulla base di una questione quodlibetale di Enrico di Gandavo (1281)rdquo ldquoO argumento geral do curso eacute o seguinte os conceitos a linguagem teoacuterica os problemas filosoacuteficos da identidade natildeo se podem compreender sem referimento agrave histoacuteria da teologia cristatilde Isto eacute agraves genealogias e agrave arqueologia do sujeito e da subjetividade da pessoa do agente do eu ou do ego A perspectiva contemporacircnea depende parcialmente das discussotildees modernas vale dizer das discussotildees da teoria lockeana da identidade pessoal esta mesma teoria depende das discussotildees medievais dos problemas da pessoa de Cristo mdash por exemplo se a pessoa de Cristo seja composta se a natureza humana teria sido unida ao Verbo de Deus acidentalmente mdash e sobretudo da discussatildeo dos problemas da unidade de Cristo em relaccedilatildeo agraves operaccedilotildees Outro problema teoloacutegico aquele do batismo dos gecircmeos siameses vem estudado aqui sobre a base de uma questatildeo quodlibetale de Henrique de Gand (1281)rdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa]

254 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Exatamente por isso Battista Mondin aponta para a riqueza do estudo do homem no Aquinate em muito devedor de uma conceptualidade tomada de Aristoacuteteles

Santo Tomaacutes poder ser chamado de humanista e precursor dos humanistas quer porque tem uma concepccedilatildeo altamente positiva do ser humano certamente muito mais positiva do que a dos seus contemporacircneos quer porque promoveu o retorno agrave cultura grega atraveacutes de uma revalorizaccedilatildeo substancial de Aristoacuteteles50

A nosso ver esta visatildeo teoloacutegica coligida acima torna a

teologia de Tomaacutes capaz de abrigar em si uma rede de conceitos estritamente racionais Por isso defendemos que inclusive no acircmbito da eacutetica haacute espaccedilo no Aquinate para pensarmos uma eacutetica filosoacutefica Contudo haacute mais razotildees para o exerciacutecio da racionalidade filosoacutefica na teologia de Tomaacutes 45 OS ldquoPREacuteSTIMOSrdquo DA FILOSOFIA Agrave TEOLOGIA

O Aquinate pensava que as verdades biacuteblicas inobstante fossem todas reveladas nem todas eram essencialmente reveladas senatildeo que algumas foram reveladas somente quanto ao modo pois muitos filoacutesofos chegaram a conhececirc-las Estas verdades mdash pondera o Frade Mendicante mdash embora em si mesmas admissiacuteveis agrave razatildeo foram oportunamente reveladas porque nem todos teriam capacidade tempo ou disposiccedilatildeo para alcanccedilaacute-las e mesmo entre aqueles que as alcanccedilaram natildeo as atingiram sem resquiacutecios de erros E como estatildeo elas relacionadas com a nossa salvaccedilatildeo nosso pensador conclui ldquoEacute necessaacuterio que o homem receba pela feacute natildeo soacute aquilo que supera a razatildeo mas tambeacutem o que pode ser

50 MONDIN Battista O Humanismo Filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino Trad Antocircnio Angonese Satildeo Paulo EDUSC 1998 p 7

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conhecido pela razatildeordquo51 E ainda ldquoAssim para que a salvaccedilatildeo chegasse aos homens com mais facilidade e maior garantia era necessaacuterio fossem eles instruiacutedos a respeito de Deus por uma revelaccedilatildeo divinardquo52

No entanto o fato de elas terem sido reveladas natildeo dispensa o teoacutelogo de propocirc-las demonstrativamente isto eacute de reconquistaacute-las com rigor filosoacutefico Assim mdash acresce Tomaacutes mdash ldquo[] a doutrina sagrada usa tambeacutem da autoridade dos filoacutesofos quando por sua razatildeo natural puderam atingir a verdaderdquo53 Demonstrar o que eacute passiacutevel de demonstraccedilatildeo eacute importante agrave proacutepria Revelaccedilatildeo porque eacute uma forma de persuadir ou refutar aqueles que pretendem contradizecirc-la ldquoDeve-se proceder na manifestaccedilatildeo da primeira ordem de verdades [as demonstraacuteveis] por razotildees demonstrativas pelas quais o adversaacuterio possa ser convencidordquo54 A bem da verdade o Aquinate aplicou este princiacutepio mdash certamente de modo diverso mdash nas duas sumas De todo modo torna-se claro que Tomaacutes abre as portas da teologia agrave filosofia com o intento de integrar esta uacuteltima agrave sua sabedoria teoloacutegica

E haacute mais Mesmo no campo das verdades indemonstraacuteveis pela razatildeo haacute espaccedilo para a filosofia porque embora natildeo possamos demonstraacute-las podemos ao menos demonstrar que aqueles que tentam refutaacute-las o fazem por razotildees falaciosas ou natildeo conclusivas Eacute pois mais uma janela que o Aquinate abre agrave filosofia em sua teologia Diz ele

51 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 2 4 C ldquoRespondeo dicendum quod necessarium est homini accipere per modum fidei non solum ea quae sunt supra rationem sed etiam ea quae per rationem cognosci possuntrdquo 52 Idem Ibidem I 1 1 C ldquoUt igitur salus hominibus et convenientius et certius proveniat necessarium fuit quod de divinis per divinam revelationem instruanturrdquo 53 Idem Ibidem I 1 8 ad 2 ldquoEt inde est quod etiam auctoritatibus philosophorum sacra doctrina utitur ubi per rationem naturalem veritatem cognoscere potuerunt []rdquo 54 Idem Suma Contra os Gentios I IX 2 [52] ldquoAd primae igitur veritatis manifestationem per rationes demonstrativas quibus adversarius convinci possit procedendum estrdquo

256 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

De todos esses raciociacutenios conclui-se que quaisquer razotildees que possam ser apresentadas contra as verdades ensinadas pela feacute natildeo procedem corretamente dos primeiros princiacutepios conhecidos por si mesmos e vindos da proacutepria natureza Donde natildeo possuiacuterem forccedila demonstrativa pois natildeo passam de razotildees provaacuteveis ou sofiacutesticas que por si mesmas datildeo motivo para serem destruiacutedas55

Aleacutem destas outras razotildees poderiam ser ainda elencadas

para estabelecerem que a teologia tomasiana abarca uma rica conceptualidade filosoacutefica mas cremos que as que compendiamos sejam suficientes para afirmarmos que natildeo eacute contraditoacuterio pensar que em Tomaacutes haja obras teoloacutegicas repletas de razotildees filosoacuteficas Lima Vaz concebe a sabedoria teoloacutegica do Aquinate como construiacuteda por dois focos

Eacute uma teologia que eacute gerada pela conjugaccedilatildeo de um duplo foco a ciecircncia de Deus comunicada pela revelaccedilatildeo (teologia) e a ciecircncia do homem alcanccedilada pela reflexatildeo autocircnoma (filosofia)56

Sobre a siacutentese teoloacutegico-filosoacutefica de Tomaacutes que resulta

desta conjugaccedilatildeo o mesmo autor remata

A originalidade de santo Tomaacutes consistiu em descobrir que o ponto de vista de Deus e o ponto de vista do homem podem realmente conjugar-se para dar origem a uma visatildeo de mundo coerente e harmoniosa57

55 Idem Ibidem I VII 7 [47 c] ldquoEx quo evidenter colligitur quaecumque argumenta contra fidei documenta ponantur haec ex principiis primis naturae inditis per se notis non recte procedere Unde nec demonstrationis vim habent sed vel sunt rationes probabiles vel sophisticae Et sic ad ea solvenda locus relinquiturrdquo 56 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Escritos de Filosofia I Problemas de Fronteira Rev Marcos Marcionilo Silvana Cobucci 3 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 p 32 57 Idem Ibidem

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Portanto se perguntaacutessemos ao mesmo estudioso qual seraacute a filosofia que encontraremos na teologia do Aquinate ele responderia

Eacute sem duacutevida uma filosofia autocircnoma Mas natildeo uma filosofia ldquoisoladardquo que evolui num plano paralelo ou mesmo divergente ao plano da teologia [] Uma filosofia a um soacute tempo autocircnoma e estruturalmente ligada agrave revelaccedilatildeo58

Deste modo retornamos agrave conclusatildeo sendo ldquoautocircnomardquo

podemos ler esta filosofia independentemente da teologia poreacutem como se encontra estruturalmente ligada agrave teologia devemos ter sempre presente mesmo lendo-a em sua inegaacutevel autonomia que ela se encontra integrada agrave teologia Acrescentariacuteamos apenas com Rovighi que esta leitura filosoacutefica autocircnoma de Tomaacutes eacute possiacutevel natildeo soacute em metafiacutesica mas tambeacutem em eacutetica

Mas assim como admitir a insuficiecircncia da metafiacutesica da theologia philosophica natildeo exclui que as verdades metafiacutesicas possam e devam ser justificadas racionalmente assim tambeacutem a insuficiecircncia da eacutetica filosoacutefica natildeo exime do dever de justificar racionalmente as proposiccedilotildees fundamentais da eacutetica59

Creio portanto que como falamos da filosofia de Tomaacutes de Aquino sem entrar por exemplo no discurso sobre a Trindade assim podemos falar da sua eacutetica sem falar das virtudes teologais60

58 Idem Ibidem pp 32-33 59 ROVIGHI Introduzione a Tommaso DrsquoAquino p 111 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoMa como lrsquoammettere lrsquoinsufficienza della metafisica della theologia philosophica non esclude che la veritagrave metafisiche possano e debbano essere giustificate razionalmente cosigrave lrsquoinsufficienza dellrsquoetica filosofica non esime dal dovere di giustificare razionalmente le proposizioni fondamentali dellrsquoeacuteticardquo 60 Idem Ibidem p 112 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCredo dunque che como abbiamo parlato della filosofia di Tommaso drsquoAquino senza entrare per esempio nel discorso sulla Trinitagrave cosigrave possiamo parlare della sua etica senza parlare delle virtugrave teologalirdquo

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Dito isso resta saber o que o Aquinate pretende ao adotar este modo de proceder em teologia A Summa Contra Gentiles faz-nos enxergar muito bem qual o objetivo do nosso pensador 46 O MODO DE PROCEDER DE TOMAacuteS

Esta Summa (1259 Paris mdash 12641265 Itaacutelia) que haacute muito deixou de ser considerada pela criacutetica apenas um manual para missionaacuterios hoje deve ser lida como uma obra pensada para natildeo cristatildeos vale dizer dirigida para que os cristatildeos pudessem debater com os natildeo cristatildeos61 Ora Tomaacutes propotildee nela algo muito semelhante mdash decerto natildeo de todo igual mdash ao que vimos Berti pensar ser o que confere agrave eacutetica de Aristoacuteteles uma atualidade que se impotildee vale lembrar um lugar onde prevaleccedila o que somente a razatildeo pode admitir Diz o Aquinate logo no capiacutetulo II do livro I

[] Porque entre os que erram alguns como os maometanos e os pagatildeos natildeo aceitam como noacutes a autoridade de algum texto das Escrituras pelo qual possam ser convencidos Por meio delas no entanto podemos disputar contra os judeus usando do Velho Testamento e contra os hereacuteticos usando do Novo Mas natildeo o podemos contra quem natildeo aceita nenhum dos dois Por esses motivos deve-se recorrer agrave razatildeo natural com a qual todos satildeo obrigados a concordar62

De fato os trecircs primeiros livros desta obra mdash dos quatro

que a constituem mdash tinham como proposta inicial valerem-se apenas de argumentos racionais demonstrativos e provaacuteveis sendo somente o livro quarto inteiramente dedicado agrave especulaccedilatildeo

61 TORRELL Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Sua pessoa e sua obra pp 122-125 62 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios I II 3 [11] [Os itaacutelicos satildeo nossos] ldquoSecundo quia quidam eorum ut Mahumetistae et Pagani non conveniunt nobiscum in auctoritate alicuius Scripturae per quam possint convinci sicut contra Iudaeos disputare possumus per vetus testamentum contra haereticos per novum Hi vero neutrum recipiunt Unde necesse est ad naturalem rationem recurrere cui omnes assentire cogunturrdquo

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das verdades essencialmente reveladas Eacute o que afirma o proacuteprio Tomaacutes

Pretendendo proceder nesta obra conforme o meacutetodo a que nos propusemos em primeiro lugar envidaremos esforccedilos para o esclarecimento daquela verdade professada pela feacute e investigada pela razatildeo apresentando argumentos demonstrativos e provaacuteveis alguns dos quais fomos buscar nos livros dos filoacutesofos e dos santos e pelos quais a verdade seja confirmada e o adversaacuterio confundido (1 I II e III)63

Porro comentando este passo da obra natildeo se exime de

dizer que tendo em vista os criteacuterios estabelecidos acima pelo autor a Contra Gentiles natildeo deixa de ser tambeacutem uma obra de cunho filosoacutefico

[] como exposiccedilatildeo da verdade da feacute catoacutelica a Suma eacute certamente uma obra teoloacutegica mas como o saacutebio eacute chamado a ilustrar essa verdade e defendecirc-la nos trecircs distintos modos antes lembrados ela eacute ao mesmo tempo tambeacutem uma obra de filosofia mdash natildeo em abstrato mas precisamente segundo os criteacuterios estabelecidos pelo proacuteprio Tomaacutes []64

Eacute certo que a Summa Theologiae natildeo adota a mesma forma

de proceder da Contra Gentiles mas algo segundo a nossa percepccedilatildeo prevalece nas duas quando Tomaacutes potildee-se a filosofar a argumentar como filoacutesofo eacute como filoacutesofo que ele se comporta65 E

63 Idem Ibidem I IX 4 [55] [Os itaacutelicos satildeo nossos] ldquoModo ergo proposito procedere intendentes primum nitemur ad manifestationem illius veritatis quam fides profitetur et ratio investigat inducentes rationes demonstrativas et probabiles quarum quasdam ex libris philosophorum et sanctorum collegimus per quas veritas confirmetur et adversarius convincaturrdquo 64 PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 117 65 Quando se trata de conhecer as verdades naturais Tomaacutes afirma que natildeo eacute necessaacuteria uma iluminaccedilatildeo divina sobrenatural mas somente a luz do intelecto Na verdade a doutrina da unidade do intelecto agente e possiacutevel proclama a autossuficiecircncia do conhecimento humano na sua ordem proacutepria Elimina a necessidade de um intelecto separado ldquodoador de formasrdquo (Avicena) e da iluminaccedilatildeo divina agostiniana TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 109 1 C ldquoSic igitur intellectus humanus habet aliquam formam scilicet ipsum intelligibile lumen quod est de se sufficiens ad quaedam intelligibilia cognoscenda ad ea scilicet in quorum notitiam per sensibilia

260 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino portar-se como filoacutesofo mesmo em uma obra teoloacutegica significa para o Aquinate ser capaz de dizer uma palavra que todos possam entender Disto decorre qual corolaacuterio espontacircneo que ser capaz de dizer uma palavra que todos possam compreender para Tomaacutes eacute tarefa que pertence tambeacutem ao teoacutelogo De posse destes conceitos que satildeo como que os prolegocircmenos pelos quais Aquino deu agrave sua teologia moral condiccedilotildees para comportar um lugar agrave meditaccedilatildeo filosoacutefica podemos passar a expor decerto natildeo toda a eacutetica mas ao menos os conceitos-chave que julgamos serem os pilares da eacutetica filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino

possumus devenire [] Non autem indiget ad cognoscendam veritatem in omnibus nova illustratione superaddita naturali illustrationi []rdquo ldquoDo mesmo modo o intelecto humano tem uma forma determinada isto eacute a luz inteligiacutevel que por si soacute eacute suficiente para conhecer algumas coisas inteligiacuteveis aquelas que podemos adquirir a partir das percepccedilotildees sensiacuteveis [] Mas uma nova iluminaccedilatildeo acrescentada agrave luz natural do intelecto natildeo eacute requerida para conhecer todas as espeacutecies de verdades []rdquo

Capiacutetulo V Toacutepicos da Eacutetica Filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino

Neste capiacutetulo como se deduz do proacuteprio tiacutetulo natildeo eacute nossa intensatildeo expor sistematicamente mas apenas visitar alguns toacutepicos da eacutetica de Tomaacutes O que tencionamos eacute definir os fundamentos desta eacutetica isto eacute aqueles conceitos pelos quais adentramos na concepccedilatildeo eacutetica do Aquinate E pensamos que estes conceitos basilares passam antes de tudo pela sua compreensatildeo de homem porque para Tomaacutes o agir segue o ser Destarte partindo da sua concepccedilatildeo de homem e de que a moral eacute o ser do homem mdash unidade entre alma e corpo mdash buscaremos traccedilar o que eacute virtude para o Aquinate e quais satildeo as virtudes que encabeccedilam a sua eacutetica sempre procurando tipificar com algumas aplicaccedilotildees praacuteticas estas virtudes Tentemos primeiramente definir o que eacute o homem para Aquino 51 O QUE Eacute O HOMEM

Para respondermos a esta questatildeo precisamos perceber com que alento Tomaacutes se esforccedila para pensar o homem como uma unidade substancial entre alma e corpo Comecemos por distinguir uniatildeo acidental de uniatildeo substancial A uniatildeo acidental eacute aquela que se daacute entre a substacircncia e os seus acidentes Nela a uniatildeo natildeo passa da existecircncia de uma entidade em outra Jaacute a uniatildeo substancial consiste na composiccedilatildeo de dois seres que tomados separadamente permanecem incompletos mas que unidos completam-se formando um soacute ser Ora a uniatildeo substancial eacute a que se daacute entre forma e mateacuteria eacute a uniatildeo existente entre alma e corpo1 Para Tomaacutes no homem em consequecircncia desta unidade substancial entre alma e corpo realiza-se uma uniatildeo tatildeo intriacutenseca entre as accedilotildees e o sujeito delas que os atos das suas faculdades

1 BOEHNER GILSON Histoacuteria Da Filosofia Cristatilde Desde as Origens ateacute Nicolau de Cusa p 468

262 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino (isto eacute das faculdades do sujeito da accedilatildeo) tanto das sensiacuteveis quanto das inteligiacuteveis satildeo chamados atos da pessoa e natildeo simplesmente das faculdades Assim quando saboreio uma maccedilatilde natildeo eacute o meu paladar que a saboreia mas sou eu quem por meio do meu paladar saboreia-a Quando quero fazer uma coisa natildeo eacute a minha vontade que quer mas sou eu quem quer realizar determinada accedilatildeo Do mesmo modo se o meu intelecto conhece algo natildeo eacute o meu intelecto que conhece simplesmente mas sou eu quem por meio do meu intelecto conhece2 Nos exemplos citados embora as accedilotildees sejam realizadas por um ldquoquerdquo elas devem ser atribuiacutedas e reduzidas a um ldquoquemrdquo ou seja por meio das faculdades eacute o sujeito a pessoa quem age3

Levando em consideraccedilatildeo a exposiccedilatildeo jaacute feita passemos a indagar o que levou Tomaacutes a natildeo se encontrar entre aqueles que sustentavam (o platonismo e a corrente dos agostinistas) que somente a forma entra na razatildeo da espeacutecie Acontece que para o Aquinate a razatildeo da espeacutecie eacute dada pela definiccedilatildeo E a definiccedilatildeo natildeo contempla apenas a forma mas tambeacutem a mateacuteria Assim nos seres naturais a mateacuteria tambeacutem eacute algo que os torna especiacuteficos Eacute claro que natildeo falamos aqui da mateacuteria assinalada que eacute princiacutepio

2 VAZ Henrique C de Lima Vaz Experiecircncia Miacutestica e Filosofia na Tradiccedilatildeo Ocidental Rev Cristina Peres Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000 p 12 ldquoA ordem que deve reinar no mundo das experiecircncias humanas supotildee evidentemente a unidade na diferenccedila do nosso ser segundo a qual em cada uma das nossas operaccedilotildees estaacute empenhada a unidade total do sujeito segundo o princiacutepio enunciado por Tomaacutes de Aquino lsquoNatildeo eacute o intelecto que entende mas o homem por meio do intelectorsquordquo [O itaacutelico eacute nosso] 3 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 3 8 C ldquoQuod autem venit in compositionem alicuius non est primo et per se agens sed magis compositum non enim manus agit sed homo per manum []rdquo ldquoOra o que entra como parte num composto natildeo eacute o que age primeiro e por si mesmo eacute antes o composto Assim natildeo eacute a matildeo que age eacute o homem por sua matildeo []rdquo BARROS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudioorgmcbarroshtmgt Acesso em 19082017 ldquoO homem natildeo eacute como os Anjos um ser puramente espiritual Tem um corpo material extenso composto de partes diferenciadas Esse corpo natildeo eacute um simples agregado acidental das partes que o compotildeem Uma observaccedilatildeo atenta da nossa maneira de ser convence-nos de que ele tem unidade substancial Sou eu por exemplo que me nutro sou eu que me movo sou eu que sinto eacute a mim que doacutei quando me magocirco na matildeo e natildeo agrave matildeo que magoei Satildeo meus todos os oacutergatildeos do meu corpo meus todos os atos que eles executam Sou eu que existo em mim mesmo plenamente eacute para a minha vida que estatildeo dispostas todas as partes do corpo sou no sentido que a palavra tem em metafiacutesica uma substacircnciardquo

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de individuaccedilatildeo nos seres mas da mateacuteria comum que se encontra em todos os seres de uma espeacutecie4 Aplicando estes princiacutepios ao homem podemos concluir que se natildeo eacute da razatildeo de homem ter esta alma esta carne e estes ossos faz parte da natureza humana ter alma carne e ossos5 Portanto a alma natildeo eacute o homem Diz Tomaacutes ldquoA alma [] natildeo eacute todo o homem minha alma natildeo sou eurdquo6 Noutra obra completa ldquo[] o homem natildeo se identifica nem com o seu corpo nem com a sua almardquo7 Entatildeo o que eacute o homem Responde o Aquinate ldquo[] o homem resulta da uniatildeo da alma com o corpordquo8 A natureza humana ldquo[] se mostra composta de alma e corpo []rdquo9

Mas compreendamos bem natildeo se trata de um ldquodualismordquo o homem eacute um todo uno que procede da uniatildeo substancial entre alma e corpo ldquo[] eacute necessaacuterio que da alma e do corpo se faccedila um todo uno e que natildeo sejam diversos quanto ao serrdquo10 Em outras

4 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 75 4 C ldquoUnde materia est pars speciei in rebus naturalibus non quidem materia signata quae est principium individuationis sed materia communisrdquo ldquoPor isso a mateacuteria eacute parte especiacutefica nas coisas naturais natildeo a mateacuteria assinalada que eacute o princiacutepio da individuaccedilatildeo mas a mateacuteria comumrdquo 5 Idem Ibidem ldquoSicut enim de ratione huius hominis est quod sit ex hac anima et his carnibus et his ossibus ita de ratione hominis est quod sit ex anima et carnibus et ossibusrdquo ldquoAssim como eacute da razatildeo deste homem ter esta alma estas carnes e estes ossos assim tambeacutem eacute da razatildeo de homem ter alma carnes e ossosrdquo 6 TOMAacuteS DE AQUINO Super I Cor 15 lect 2 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgc1vhtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] anima autem cum sit pars corporis hominis non est totus homo et anima mea non est egordquo Com a morte o homem deixa de ser homem em virtude da separaccedilatildeo de alma e corpo Idem Suma Teoloacutegica III 50 4 C ldquoPertinet autem ad veritatem mortis hominis vel animalis quod per mortem desinat esse homo vel animal mors enim hominis vel animalis provenit ex separatione animae quae complet rationem animalis vel hominisrdquo ldquoOra eacute na verdade proacuteprio da morte de um homem ou animal que pela morte deixe de ser homem ou animal pois a morte do homem ou do animal proveacutem da separaccedilatildeo da alma que eacute a que completa a razatildeo de animal ou de homemrdquo 7 Idem Suma Contra os Gentios II LXXXIX 16 [1752] ldquo[] non enim homo est suum corpus neque sua animardquo 8 Idem Ibidem II LVII 2 [1327] ldquoEx unione autem animae et corporis fit homordquo 9 Idem Ibidem II LVII 1 [1326] ldquo[] ex anima intellectuali et corpore videtur esse compositus []rdquo 10 Idem Ibidem II LVII 4 [1331] ldquo[] portet igitur ex anima et corpore unum fieri et quod non sint secundum esse diversardquo Idem Suma Teoloacutegica I 76 7 ad 3 ldquoSed inquantum anima est forma corporis non habet esse seorsum ab esse corporis sed per suum esse corpori unitur immediaterdquo

264 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino palavras natildeo eacute que exista de um lado a alma e de outro o corpo Para entendermos isso eacute preciso que recorramos agraves noccedilotildees basilares de ato e potecircncia pois para Tomaacutes ldquo[] a potecircncia e o ato dividem o ente e qualquer gecircnero de ente []rdquo11 Mas o que eacute ato e potecircncia A rigor natildeo se pode defini-los senatildeo descrevecirc-los Assim o ato designa o que jaacute eacute algo o jaacute realizado e acabado enquanto a potecircncia eacute o que ainda natildeo eacute algo mas tem a capacidade de vir a secirc-lo em ato Por exemplo a imagem a ser esculpida na madeira estaacute em potecircncia nela e a imagem jaacute esculpida estaacute em ato 12 Por isso quem diz potecircncia diz indeterminaccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo quem diz ato diz determinaccedilatildeo e perfeiccedilatildeo Na antropologia tomasiana o binocircmio ato e potecircncia eacute aplicado sob a formulaccedilatildeo de forma e mateacuteria A alma humana eacute a forma do corpo13 ela eacute o ato que daacute unidade e vida a um agregado de mateacuteria tornando-o um corpo humano14 Isto quer dizer que

ldquoMas enquanto forma do corpo a alma natildeo tem o ser separadamente do ser do corpo mas estaacute unida a ele por seu serrdquo 11 Idem Ibidem I 77 1 C ldquoPrimo quia cum potentia et actus dividant ens et quodlibet genus entis []rdquo 12 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia libri Metaphysicae Lib 9 5 n 3 In GARDEIL Henri-Dominique Iniciaccedilatildeo agrave filosofia de satildeo Tomaacutes de Aquino psicologia e metafiacutesica Trad Cristiane Negreiros Abbud Ayoub Carlos Eduardo de Oliveira 2 ed Satildeo Paulo 2013 p 480 ldquoSecundo ibi est autem determinat de actu Et primo ostendit quid sit actus Secundo quomodo diversimode dicatur in diversis ibi dicuntur autem actu Circa primum duo facit Primo ostendit quid est actus dicens quod actus est quando res est nec tamen ita est sicut quando est in potentia Dicimus enim in ligno esse imaginem Mercurii potentia et non actu antequam lignum sculpatur sed si sculptum fuit tunc dicitur esse in actu imago Mercurii in lignordquo ldquoAristoacuteteles mostra de iniacutecio o que eacute o ato O ato eacute quando uma coisa eacute natildeo entretanto como quando ela estaacute em potecircncia Dizemos com efeito que a imagem de Mercuacuterio estaacute em potecircncia e natildeo em ato na madeira antes que esta seja esculpida uma vez esculpida dizemos entatildeo que a imagem de Mercuacuterio estaacute em ato na madeirardquo 13 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 76 7 C ldquo[] tum etiam quia anima immediate corpori unitur ut forma materiaerdquo ldquo[] seja porque enfim a alma se une imediatamente ao corpo como a forma agrave mateacuteriardquo 14 Idem Ibidem I 76 1 C ldquoEt cum vita manifestetur secundum diversas operationes in diversis gradibus viventium id quo primo operamur unumquodque horum operum vitae est anima anima enim est primum quo nutrimur et sentimus et movemur secundum locum et similiter quo primo intelligimusrdquo ldquoOra eacute claro que o primeiro pelo qual um corpo vive eacute a alma E como a vida se revela pelas diversas atividades conforme os diversos graus dos seres vivos aquilo pelo qual por primeiro realizamos cada uma dessas operaccedilotildees vitais eacute a alma Ela eacute pois o primeiro pelo qual nos alimentamos e sentimos pelo qual nos movemos localmente e igualmente pelo qual por primeiro conhecemosrdquo

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sem alma natildeo haacute corpo haacute uma agregaccedilatildeo de mateacuteria em potecircncia para ser um corpo um cadaacutever por exemplo natildeo eacute mais um corpo humano A bem dizer natildeo existe a querela de como a alma se une ao corpo pois o corpo natildeo preexiste agrave alma nem a alma ao corpo sendo que eacute da essecircncia da alma estar unida ao corpo como seu ato15

Pois bem toda a eacutetica tomasiana eacute construiacuteda a partir desta rica concepccedilatildeo de natureza humana Para Tomaacutes a moral pressupotildee o natural Afirma ele ldquo[] as coisas naturais satildeo pressupostas pelas moraisrdquo16 Por isso em Aquino a moral eacute o ser do homem Daiacute ele dizer que a accedilatildeo humana ldquo[] nas coisas morais ordena-se para o fim comum de toda vida humanardquo17 De sorte que diferentemente das coisas relacionadas agrave arte onde o erro diz respeito apenas a um fim particular a saber agrave obra a ser feita em se tratando de moral mdash quando o erro implica o desvio do que eacute consoante a natureza humana enquanto tal mdash ldquo[] o

15 Idem Ibidem I 75 7 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod corpus non est de essentia animae sed anima ex natura suae essentiae habet quod sit corpori unibilisrdquo ldquoDeve-se dizer que o corpo natildeo eacute da essecircncia da alma mas a alma pela natureza da sua essecircncia eacute capaz de ser unir ao corpordquo BARROS Op Cit ldquoA alma e o corpo natildeo satildeo dois seres distintos satildeo princiacutepios distintos do mesmo ser Natildeo haacute dum lado a alma do outro um corpo com existecircncia separada da da alma Sem a alma natildeo haacute um corpo haacute a mateacuteria que compocircs ou vai compor um corpo humano mas dominada por outras formas constituindo outras substacircncias Um cadaacutever natildeo eacute um corpo humano eacute um agregado acidental de ceacutelulas sem unidade essencial Cada uma das suas partes segue a sua evoluccedilatildeo proacutepria independentemente das outras sem se subordinar a nenhuma lei que regule o conjunto Eacute a alma o princiacutepio de unidade do corpo humano eacute elemento indispensaacutevel agrave sua existecircncia como corpo a da sua uniatildeo ao corpo eacute questatildeo que natildeo existerdquo Para uma exposiccedilatildeo clara e sucinta sobre a questatildeo da uniatildeo alma e corpo veja ainda a intervenccedilatildeo de Franccedilois-Xavier Putallaz PUTALLAZ Franccedilois-Xavier Lunion de lacircme et du corps Disponiacutevel em lt httpswwwyoutubecomwatchv=mTZCN50VOXMampindex=5amplist=PLoF9tICw5xHMFru4TuxUim_cLoO6fHgphgt Para o nosso trabalho natildeo nos parece necessaacuterio colocar as questotildees filosoacuteficas de Deus (Ato Puro) que cria a alma humana e da imortalidade da alma que se baseia no fato de ela possuir um ato a saber a intelecccedilatildeo da essecircncia das coisas materiais que natildeo depende de nenhum oacutergatildeo corpoacutereo Acerca da imortalidade da alma pode ser consultada com proveito outra intervenccedilatildeo de Putallaz PUTALLAZ Franccedilois-Xavier Lacircme est-elle immortelle Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=NHMkPtA9v40ampindex=4amplist=PLoF9tICw5xHMFru4TuxUim_cLoO6fHgphgt 16 TOMAacuteS DE AQUINO A Caridade a Correccedilatildeo Fraterna e a Esperanccedila 3 1 ad 5 ldquoAd quintum dicendum quod naturalia praesupponuntur moralibus []rdquo 17 Idem Suma Teoloacutegica I-II 21 2 ad 2 ldquoIn moralibus autem ordinatur ad finem communem totius humanae vitaerdquo

266 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino homem eacute culpado enquanto homemrdquo18 Ora desta concepccedilatildeo resulta uma eacutetica encarnada ou melhor uma eacutetica que integra alma e corpo Seria o caso de primeiro definir formalmente as paixotildees depois o haacutebito em seguida a virtude e o viacutecio para finalmente passar aos exemplos Poreacutem por uma opccedilatildeo didaacutetica optamos comeccedilar por uma ldquofenomenologiardquo da vida eacutetica enquanto vida humana Soacute entatildeo passaremos a abordar formalmente as paixotildees o haacutebito e as virtudes cardeais 52 A EacuteTICA INTEGRADA DE TOMAacuteS

Como o homem natildeo eacute a sua alma mas um todo uno que resulta da uniatildeo entre alma e corpo o agir do homem mdash se quiser seguir o seu ser19 mdash se quiser ser um agir propriamente humano uma vez que ldquo[] o modo de agir de toda coisa eacute uma consequecircncia de seu modo de existirrdquo20 natildeo deveraacute levar em conta apenas a alma Sob este ponto de vista um homem que quisesse viver como um ldquoanjordquo mdash na concepccedilatildeo de Tomaacutes mdash longe de se tornar um ldquoanjordquo ou propriamente um homem tornar-se-ia ao contraacuterio algueacutem aqueacutem ou aleacutem do que deveria ser21 Ele cita Aristoacuteteles

18 Idem Ibidem ldquo[] culpatur homo inquantum homo []rdquo 19 Idem Suma Contra os Gentios III LXIX 10 [2450] ldquo[] o agir segue o ser em ato []rdquo 20 Idem Suma Teoloacutegica I 89 1 C ldquo[] modus operandi uniuscuiusque rei sequitur modum essendi ipsiusrdquo 21 A propoacutesito do estado da alma quando separada do corpo pela morte o Aquinate mesmo defendendo a imortalidade da alma afirma que enquanto estiver separada do corpo a alma se encontraraacute num estado antinatural Idem Ibidem I 89 1 C ldquo[] sed esse separatum a corpore est praeter rationem suae naturae []rdquo ldquoMas ser separada do corpo estaacute aleacutem de sua natureza []rdquo Noutro passo Tomaacutes eacute ainda mais incisivo Idem Ibidem I 118 3 C ldquoSi enim animae naturale est corpori uniri esse sine corpore est sibi contra naturam et sine corpore existens non habet suae naturae perfectionemrdquo ldquoSe para a alma eacute natural estar unida ao corpo estar sem o corpo seria contraacuterio a sua natureza sendo que uma alma sem corpo natildeo possuiria a perfeiccedilatildeo de sua naturezardquo Em outro lugar ele volta a dizer Idem Suma Contra os Gentios IV LXXIX 8 [4135] ldquoManifestum est etiam ex his quae in secundo dicta sunt quod anima corpori naturaliter unitur est enim secundum suam essentiam corporis forma Est igitur contra naturam animae absque corpore esse Nihil autem quod est contra naturam potest esse perpetuumrdquo ldquoDepreende-se tambeacutem do que no mesmo livro estaacute escrito que a alma se une naturalmente ao corpo pois eacute essencialmente forma do

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[] Como diz o livro I da Eacutetica O homem nesta vida precisa das coisas necessaacuterias para o corpo tanto para a accedilatildeo das potecircncias contemplativas como para a accedilatildeo das potecircncias ativas para as quais muitas outras coisas satildeo exigidas pelas quais se exercem as obras da potecircncia ativa22

Neste sentido a insensibilidade ou a ldquocastraccedilatildeordquo de todos

os prazeres eacute mdash para o Aquinate mdash um viacutecio contra a razatildeo

Deve-se dizer que como natildeo pode o homem usar a razatildeo sem recorrer agraves potecircncias sensitivas que precisam de oacutergatildeos corpoacutereos conforme se estabeleceu na I Parte segue-se daiacute a necessidade de que ele sustente o seu corpo para poder se servir da razatildeo Ora esse sustento realiza-se mediante accedilotildees que proporcionam prazer Natildeo pode entatildeo existir o bem da razatildeo no homem se ele se abstiver de todos os prazeres23

Tomaacutes afirma que natildeo se privar de certos prazeres como

alimentaccedilatildeo bebida etc eacute uma exigecircncia da natureza humana na medida em que estes e outros atos satildeo necessaacuterios para manter a sauacutede do homem Assim mdash exemplifica o Aquinate mdash natildeo eacute somente a embriaguez que eacute um viacutecio mas tambeacutem o seu contraacuterio Por exemplo ldquo[] se algueacutem se abstivesse conscientemente do vinho a ponto de prejudicar a proacutepria sauacutede

corpo Por conseguinte eacute contraacuterio agrave natureza da alma estar fora do corpordquo Ora se eacute contra a natureza e perfeiccedilatildeo da alma estar separada do corpo uma eacutetica que tolha a sensibilidade eacute contraacuteria agrave natureza e agrave perfeiccedilatildeo do homem Assim Tomaacutes insere o prazer inclusive corporal no acircmago da vida eacutetica distanciando-se por exemplo do estoicismo inobstante recorra a fontes estoicas Aliaacutes ele conhece e distingue o estoicismo da tradiccedilatildeo aristoteacutelica optando por esta uacuteltima Conhecida eacute a sua sentenccedila Idem Suma Teoloacutegica I-II 34 1 C ldquo[] nullus possit vivere sine aliqua sensibili et corporali delectatione []rdquo ldquo[] ningueacutem pode viver sem algum prazer sensiacutevel e corporal []rdquo 22 Idem Ibidem I-II 4 7 C ldquo[] ut dicitur in I Ethic Indiget enim homo in hac vita necessariis corporis tam ad operationem virtutis contemplativae quam etiam ad operationem virtutis activae ad quam etiam plura alia requiruntur quibus exerceat opera activae virtutisrdquo 23 Idem Ibidem II-II 142 1 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod quia ratione homo uti non potest sine sensitivis potentiis quae indigent organo corporali ut in primo habitum est necesse est quod homo sustentet corpus ad hoc quod ratione utatur Sustentatio autem corporis fit per operationes delectabiles Unde non potest esse bonum rationis in homine si abstineat ab omnibus delectabilibusrdquo

268 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino natildeo estaria isento de pecadordquo24 Outrossim natildeo eacute soacute a luxuacuteria que eacute um viacutecio mas tambeacutem o seu oposto Por exemplo o cocircnjuge que se recusar com pertinaacutecia a manter uma vida sexual ativa comete pecado25 De maneira que se abster de todo prazer necessaacuterio para o sustento da vida eacute um ato contra a razatildeo um viacutecio e os que o cometem natildeo satildeo ldquoascetasrdquo mas rudes ldquoDeve-se dizer que quem se absteacutem de todos os prazeres sem seguir a reta razatildeo como se eles por si mesmos lhe incutissem horror eacute insensiacutevel e ruderdquo26

Tudo o que contraria a ordem natural eacute vicioso Ora a natureza ajuntou o prazer agraves atividades necessaacuterias agrave vida do homem [] Portanto pecaria quem evitasse os prazeres sensiacuteveis a ponto de desprezar o que eacute necessaacuterio agrave conservaccedilatildeo da natureza contrariando assim a ordem natural Nisto consiste o viacutecio da insensibilidade27

Percebe-se bem esta integraccedilatildeo entre ldquoalma e corpordquo

tambeacutem na relaccedilatildeo que o Aquinate estabelece entre estudiosidade e eutrapelia Assim como o homem precisa de repouso para refazer as forccedilas do corpo que tem uma potecircncia limitada e natildeo pode

24 Idem Ibidem II-II 150 1 ad 1 ldquoEt tamen si quis scienter in tantum a vino abstineret ut naturam multum gravaret a culpa immunis non essetrdquo 25 Idem Ibidem II-II 153 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod oppositum luxuriae non contingit in multis eo quod homines magis sint proni ad delectationes Et tamen oppositum vitium continetur sub insensibilitate Et accidit hoc vitium in eo qui in tantum detestatur mulierum usum quod etiam uxori debitum non redditrdquo ldquoDeve-se dizer que o viacutecio oposto agrave luacutexuria natildeo eacute comum porque os homens satildeo mais inclinados agrave luacutexuria mesmo Entretanto esse viacutecio oposto existe Eacute a insensibilidade que estaacute presente naqueles que rejeitam de tal modo unir-se a uma mulher que natildeo cumprem sequer o deacutebito conjugalrdquo 26 Idem Ibidem II-II 152 2 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod ille qui abstinet ab omnibus delectationibus praeter rationem rectam quasi delectationes secundum se abhorrens est insensibilis sicut agricolardquo 27 Idem Ibidem II-II 142 1 C ldquoRespondeo dicendum quod omne illud quod contrariatur ordini naturali est vitiosum Natura autem delectationem apposuit operationibus necessariis ad vitam hominis Et ideo naturalis ordo requirit ut homo intantum huiusmodi delectationibus utatur quantum necessarium est saluti humanae vel quantum ad conservationem individui vel quantum ad conservationem speciei Si quis ergo intantum delectationem refugeret quod praetermitteret ea quae sunt necessaria ad conservationem naturae peccaret quasi ordini naturali repugnans Et hoc pertinet ad vitium insensibilitatisrdquo

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trabalhar sem parar assim tambeacutem a alma por possuir uma capacidade limitada natildeo se pode entregar ininterruptamente agraves operaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias sem descanso algum28 Aleacutem disso nas atividades racionais natildeo eacute somente a alma que se desgasta mas tambeacutem o corpo Com efeito a potecircncia intelectiva se serve das potecircncias sensitivas que operam por meio dos oacutergatildeos corporais para conhecer29 Ora os bens sensiacuteveis satildeo conaturais ao homem30 Por isso abstrair-se deles gera cansaccedilo Assim sendo do mesmo modo que o corpo se desgasta quando se prolonga em atividades superiores tambeacutem a alma agrave medida que se eleva acima das coisas sensiacuteveis pela operaccedilatildeo da razatildeo eacute acometida por uma espeacutecie de ldquofadiga psiacutequicardquo decorrente tanto do exerciacutecio da razatildeo especulativa quanto do da razatildeo praacutetica E esta fadiga passa a ser ainda maior quando a alma se dedica agrave contemplaccedilatildeo pois enquanto contempla ela se afasta sobremaneira das coisas sensiacuteveis31 De mais a mais da mesma maneira que a fadiga corporal desaparece pelo repouso corporal a fadiga mental pelo

28 Idem Ibidem II-II 168 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut homo indiget corporali quiete ad corporis refocillationem quod non potest continue laborare propter hoc quod habet finitam virtutem quae determinatis laboribus proportionatur ita etiam est ex parte animae cuius etiam est virtus finita ad determinatas operationes proportionata []rdquo ldquoAssim como o homem precisa de repouso para refazer as forccedilas do corpo que natildeo pode trabalhar sem parar pois tem resistecircncia limitada proporcional a determinadas tarefas assim tambeacutem a alma cuja capacidade tambeacutem eacute limitada e proporcional a determinadas operaccedilotildeesrdquo 29 Idem Ibidem ldquo[] quando ultra modum suum in aliquas operationes se extendit laborat et ex hoc fatigatur praesertim quia in operationibus animae simul etiam laborat corpus inquantum scilicet anima etiam intellectiva utitur viribus per organa corporea operantibusrdquo ldquoPortanto quando realiza certas atividades superiores agrave sua capacidade ela se desgasta e se cansa sobretudo porque nessas atividades o corpo se consome juntamente pois a proacutepria alma intelectiva se serve de potecircncias que operam por meio dos oacutergatildeos corporaisrdquo 30 Idem Ibidem ldquoSunt autem bona sensibilia connaturalia hominirdquo ldquoOra os bens sensiacuteveis satildeo conaturais ao homemrdquo 31 Idem Ibidem ldquoEt ideo quando anima supra sensibilia elevatur operibus rationis intenta nascitur exinde quaedam fatigatio animalis sive homo intendat operibus rationis practicae sive speculativae Magis tamen si operibus contemplationis intendat quia per hoc magis a sensibilibus elevatur []rdquo ldquoPor isso quando a alma se eleva sobre o sensiacutevel para se dedicar a atividades racionais gera-se aiacute certa fadiga psiacutequica seja nas atividades da razatildeo praacutetica seja nas da razatildeo especulativa Mas a fadiga eacute maior quando o homem se entrega agrave atividade contemplativa porque eacute assim que ele se eleva ainda mais sobre as coisas sensiacuteveis []rdquo

270 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino repouso mental E o repouso mental acontece no que eacute deleitaacutevel Donde ser necessaacuterio reiteramos para o bem da proacutepria atividade racional buscar o remeacutedio para a fadiga da alma e do corpo em algum prazer que afrouxe o esforccedilo do estudo racional32 E esta espeacutecie de prazer que dilata a alma e descansa o corpo ambos riacutegidos pela intensa atividade racional chama-se divertimento ou recreaccedilatildeo 33 Acentua Tomaacutes que estas recreaccedilotildees satildeo sempre necessaacuterias de quando em quando tendo em vista o repouso da alma e do corpo34 Mais do que isto como jaacute acenamos acima este tipo de divertimento que relaxa a alma e o corpo para o Aquinate eacute uma virtude tanto quanto o eacute a estudiosidade Aristoacuteteles chama esta virtude eutrapelia E quem pratica quando necessaacuterio estas recreaccedilotildees eacute virtuoso e pode ser chamado eutrapeacutelico porque consegue converter atos e palavras em diversatildeo repousante35 Por

32 Idem Ibidem ldquoSicut autem fatigatio corporalis solvitur per corporis quietem ita etiam oportet quod fatigatio animalis solvatur per animae quietem Quies autem animae est delectatio [] Et ideo oportet remedium contra fatigationem animalem adhibere per aliquam delectationem intermissa intentione ad insistendum studio rationisrdquo ldquoOra assim como a fadiga corporal desaparece pelo repouso do corpo assim tambeacutem eacute preciso que o cansaccedilo mental se dissipe pelo repouso mental O repouso da mente eacute o prazer [] Daiacute a necessidade de buscar remeacutedio agrave fadiga da alma em algum prazer afrouxando o esforccedilo do labor mentalrdquo 33 Idem Ibidem ldquoHuiusmodi autem dicta vel facta in quibus non quaeritur nisi delectatio animalis vocantur ludicra vel iocosardquo ldquoEssas palavras e accedilotildees nas quais natildeo se busca senatildeo o prazer da alma chamam-se divertimentos ou recreaccedilotildeesrdquo Idem Suma Contra os Gentios III XXV 7 [2063] ldquoNam etiam ipsae actiones ludicrae quae videntur absque fine fieri habent aliquem finem debitum scilicet ut per eas quodammodo mente relevati magis simus postmodum potentes ad studiosas operationes []rdquo ldquoAssim eacute que as proacuteprias accedilotildees luacutedicas que parecem natildeo se dirigir para um fim determinado tecircm o seu fim devido a saber que por meio delas a mente se distraia e apoacutes possa o homem estar mais apto para operaccedilotildees mais difiacuteceisrdquo 34 Idem Suma Teoloacutegica II-II 168 2 C ldquoEt ideo necesse est talibus interdum uti quasi ad quandam animae quietemrdquo ldquoLanccedilar matildeo delas de quando em quando eacute uma necessidade para o descanso da almardquo 35 Idem Ibidem II-II 168 2 C ldquoHabitus autem secundum rationem operans est virtus moralis Et ideo circa ludos potest esse aliqua virtus quam philosophus eutrapeliam nominat Et dicitur aliquis eutrapelus a bona versione quia scilicet bene convertit aliqua dicta vel facta in solatiumrdquo ldquoPortanto pode haver uma virtude que se ocupe com os jogos virtude que o Filoacutesofo denomina lsquoeutrapeliarsquo E quem a pratica eacute chamado de lsquoeutrapeacutelicorsquo ou de lsquojeito bomrsquo porque facilmente ajeita palavras e atos em diversatildeo repousanterdquo Tomaacutes fala ainda que sendo as accedilotildees luacutedicas necessaacuterias agrave vida aqueles que fazem do luacutedico uma profissatildeo a saber os comediantes desde que natildeo faltem com o decoro devem ser respeitados e subsidiados pois ganham a vida honestamente Idem Ibidem II-II 168 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod sicut dictum est ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae Ad omnia autem quae sunt utilia conversationi humanae deputari possunt aliqua

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outro lado quem natildeo brinca natildeo conta nenhuma piada e natildeo gosta de quem o faccedila natildeo eacute aos olhos de Tomaacutes um ldquointelectualrdquo antes atenta contra a virtude da estudiosidade pois insiste em permanecer e fazer com que os outros permaneccedilam enrijecidos pelo cansaccedilo Trata-se pois de uma pessoa dura e mal-educada

Nas accedilotildees humanas tudo o que vai contra a razatildeo eacute vicioso Ora eacute contra a razatildeo ser um peso para os outros natildeo lhes proporcionando por exemplo nenhum prazer e impedindo o prazer deles [] Ora os que se privam de toda diversatildeo nem eles dizem pilheacuterias e satildeo molestos aos que as dizem natildeo aceitando brincadeiras normais dos outros E por isso tais pessoas satildeo viciosas ldquoduras e mal-educadasrdquo como diz o Filoacutesofo36

Mesmo os que se dedicam agrave contemplaccedilatildeo das coisas

divinas e que devem ser louvados por conseguirem abster-se de muitos prazeres natildeo se podem abster de todos os prazeres Por exemplo o viacutecio da aciacutedia mdash que tolhe a contemplaccedilatildeo mdash eacute causado por um jejum excessivo

Assim toda deficiecircncia corporal por si mesma dispotildee agrave tristeza por isso os que jejuam quando pelo meio-dia comeccedilam a sentir

officia licita Et ideo etiam officium histrionum quod ordinatur ad solatium hominibus exhibendum non est secundum se illicitum nec sunt in statu peccati dummodo moderate ludo utantur idest non utendo aliquibus illicitis verbis vel factis ad ludum et non adhibendo ludum negotiis et temporibus indebitis [] Unde illi qui moderate eis subveniunt non peccant sed iusta faciunt mercedem ministerii eorum eis attribuendordquo ldquoDeve-se dizer que na vida humana o jogo eacute uma necessidade Ora a tudo o que serve agrave existecircncia humana correspondem algumas ocupaccedilotildees honestas entre as quais a dos comediantes Destinada a distrair as pessoas esta profissatildeo nada tem em si de iliacutecito nem vivem em pecado os comediantes se agirem com moderaccedilatildeo ou seja sem palavras ou accedilotildees iliacutecitas nem levando na brincadeira assuntos e situaccedilotildees inadequadas para isso [] Por isso os que os subsidiam razoavelmente natildeo pecam mas procedem com justiccedila recompensando-lhes o serviccedilordquo 36 Idem Ibidem II-II 168 4 C ldquoRespondeo dicendum quod omne quod est contra rationem in rebus humanis vitiosum est Est autem contra rationem ut aliquis se aliis onerosum exhibeat puta dum nihil delectabile exhibet et etiam delectationes aliorum impedit [] Illi autem qui in ludo deficiunt neque ipsi dicunt aliquod ridiculum et dicentibus molesti sunt quia scilicet moderatos aliorum ludos non recipiunt Et ideo tales vitiosi sunt et dicuntur duri et agrestes ut philosophus dicit in IV Ethicrdquo

272 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

a falta do alimento e satildeo fustigados pelo ardor do sol sofrem mais os assaltos da aciacutedia37

O Aquinate natildeo pestaneja em afirmar que a proacutepria razatildeo

exige que o seu uso seja amainado de quando em quando Daiacute ele dizer que se o sexo dentro do casamento fosse pecaminoso mdash como alguns queriam mdash soacute porque ele amaina por algum tempo o uso da razatildeo tambeacutem teriacuteamos de dizer que dormir eacute um pecado pois durante o sono o uso da razatildeo tambeacutem eacute arrefecido Por conseguinte por mais paradoxal que possa parecer estatildeo de acordo com a razatildeo mesmo aqueles atos que de vez em quando afrouxam a sua atividade

[] O prazer do ato conjugal embora se decirc em algo que estaacute conforme agrave razatildeo impede o exerciacutecio dela por causa da mudanccedila corporal que o acompanha Mas nem por isso segue-se uma maliacutecia moral como no sono que impede o exerciacutecio da razatildeo e natildeo eacute moralmente mau se for tomado de acordo com a razatildeo pois a proacutepria razatildeo tem como proacuteprio que o seu uso seja interrompido de vez em quando38

E o ato veneacutereo natildeo eacute querido apenas e tatildeo somente por

causa da procriaccedilatildeo O gozo que se daacute no coito aponta o Aquinate natildeo eacute contraacuterio agrave razatildeo e consequentemente eacute conforme a virtude da temperanccedila

Deve-se dizer que natildeo se mede o meio-termo da virtude quantitativamente mas pelo seu ajustamento com a reta razatildeo

37 Idem Ibidem II-II 35 1 ad 2 ldquoOmnis autem corporalis defectus de se ad tristitiam disponit Et ideo ieiunantes circa meridiem quando iam incipiunt sentire defectum cibi et urgeri ab aestibus solis magis ab acedia impugnanturrdquo 38 Idem Ibidem I-II 34 1 ad 1 [O itaacutelico eacute nosso] ldquo[] sicut in concubitu coniugali delectatio quamvis sit in eo quod convenit rationi tamen impedit rationis usum propter corporalem transmutationem adiunctam Sed ex hoc non consequitur malitiam moralem sicut nec somnus quo ligatur usus rationis moraliter est malus si sit secundum rationem receptus nam et ipsa ratio hoc habet ut quandoque rationis usus intercipiaturrdquo

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Por isso o intenso prazer gozado no ato sexual feito segundo a reta razatildeo natildeo contaria o meio-termo da virtude39

Mesmo a ldquosensualidaderdquo entre os cocircnjuges natildeo pode ser

vista como algo antinatural Com efeito eacute da natureza humana o se vestir com requinte 40 Por isso nada impede que as esposas procurem agradar ao esposo adornando-se Desde que natildeo haja excesso como o despudor e a falta de recato isso eacute ateacute mesmo aconselhaacutevel pois natildeo cuidar de si mdash e isto implica tambeacutem natildeo cuidar de manter a beleza com a qual a natureza nos afortunou mdash tambeacutem eacute um excesso um viacutecio

Cipriano fala da mesma coisa mas natildeo proiacutebe agraves mulheres casadas que se arrumem para agradar aos esposos a fim de natildeo lhes dar ocasiatildeo de pecarem com outras [] Entende-se por aiacute que o adorno feminino soacutebrio e moderado natildeo eacute proibido mas o exagerado despudorado e indecente41

Importa contudo considerar que natildeo eacute a mesma coisa fingir uma beleza que natildeo se tem e esconder um defeito proveniente de alguma causa como uma doenccedila ou de outra coisa qualquer Neste caso nada haacute de errado []42

39 Idem Ibidem II-II 153 2 C ldquoAd secundum dicendum quod sicut supra dictum est medium virtutis non attenditur secundum quantitatem sed secundum quod convenit rationi rectae Et ideo abundantia delectationis quae est in actu venereo secundum rationem ordinato non contrariatur medio virtutisrdquo 40 Idem Ibidem II-II 169 1 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod huiusmodi exterior cultus indicium quoddam est conditionis humanaerdquo 41 Idem Ibidem II-II 169 2 ad 1 ldquoIn quo etiam casu loquitur Cyprianus non autem prohibet mulieribus coniugatis ornari ut placeant viris ne detur eis occasio peccandi cum aliis [] per quod datur intelligi quod sobrius et moderatus ornatus non prohibetur mulieribus sed superfluus et inverecundus et impudicusrdquo 42 Idem Ibidem II-II 169 2 ad 2 ldquoSciendum tamen quod aliud est fingere pulchritudinem non habitam et aliud est occultare turpitudinem ex aliqua causa provenientem puta aegritudine vel aliquo huiusmodi Hoc enim est licitum []rdquo Tomaacutes tem uma palavra inclusive para a ldquoinduacutestria de cosmeacuteticosrdquo de seu tempo Segundo ele eacute uma profissatildeo digna aquela que decorre de uma necessidade natural Ora eacute natural agrave esposa procurar agradar ao marido Logo todos os produtos que favoreccedilam isso desde que natildeo sejam indecentes natildeo satildeo iliacutecitos Idem Ibidem II-II 170 2 ad 4 ldquoQuia ergo mulieres licite se possunt ornare vel ut conservent decentiam sui status vel etiam aliquid superaddere ut placeant viris consequens est quod artifices talium ornamentorum non peccant in

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Podemos observar que tambeacutem nas coisas mais corriqueiras Tomaacutes enxerga a uniatildeo entre alma e corpo Diz ele que ldquoA tristeza entre todas as paixotildees da alma eacute a mais nociva ao corpordquo 43 Mas o que ldquocurardquo a tristeza Tomaacutes chega a ser redundante ao dizer que o sorriso mdash aumentando a alegria mdash tende a afastar a tristeza ldquoPor isso os risos e outros efeitos da alegria a aumentam []rdquo44 Outrossim eacute interessante dar-se conta de que Frei Tomaacutes natildeo recorre ao expediente da oraccedilatildeo quando se trata de espantar a tristeza mas ao prazer

Entatildeo como qualquer repouso do corpo traz remeacutedio a qualquer fadiga provinda de qualquer causa natildeo natural assim tambeacutem todo prazer eacute remeacutedio que alivia qualquer tristeza seja qual for sua origem45

O importante eacute notar aqui mdash e em todos os exemplos mdash

como o Aquinate interliga alma e corpo estabelecendo entre eles uma verdadeira unidade A tristeza por exemplo eacute uma ldquopaixatildeo da almardquo No entanto como dito acima nada eacute mais nocivo ao corpo Por isso embora a tristeza seja uma ldquopaixatildeo da almardquo a sua cura pode estar num sorriso ou seja num gesto facial porque alma e corpo estatildeo em sinergia De resto saber-se amado alivia a tristeza porque causa prazer Ora sabemos que somos amados por nossos amigos quando percebemos que eles se entristecem conosco Assim os amigos mdash a sua companhia e conversa mdash tambeacutem nos

usu talis artis nisi forte inveniendo aliqua superflua et curiosardquo ldquoPor conseguinte como as mulheres podem se enfeitar licitamente para conservar sua dignidade pessoal ou tambeacutem para acrescentar algo mais que agrade ao marido segue-se que os fabricantes de tais produtos natildeo pecam excercendo esse mister salvo se vierem a inventar novidades exageradas e estranhasrdquo 43 Idem Ibidem I-II 37 4 C ldquoRespondeo dicendum quod tristitia inter omnes animae passiones magis corpori nocetrdquo 44 Idem Ibidem I-II 38 2 ad 2 ldquoEt ideo per risum et alios effectus laetitiae augetur laetitia []rdquo 45 Idem Ibidem I-II 38 1 C ldquoSicut igitur quaelibet quies corporis remedium affert contra quamlibet fatigationem ex quacumque causa innaturali provenientem ita quaelibet delectatio remedium affert ad mitigandam quamlibet tristitiam ex quocumque procedatrdquo

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ajudam a sair da tristeza porque dividem o fardo dela conosco Estas razotildees satildeo coligidas por Tomaacutes

A primeira eacute que como eacute proacuteprio da tristeza acabrunhar e isso tem razatildeo de um certo peso do qual o que estaacute acabrunhado procura aliviar-se Quando algueacutem vecirc os outros contristados pela tristeza que sente imagina que aquele peso esteja sendo dividido com outros que se esforccedilam para aliviaacute-lo dele e assim suporta melhor o peso da tristeza o que acontece com os carregadores de pesos materiais mdash A segunda razatildeo a melhor eacute que pelo fato de os amigos se entristecerem com ele percebe que ele eacute amado por eles o que eacute deleitaacutevel como se disse Portanto jaacute que todo prazer alivia a tristeza como tambeacutem se disse acima segue-se que o amigo compassivo alivia a tristeza46

Quando natildeo dar lugar agraves laacutegrimas e se permitir ficar triste

tambeacutem pode ser um ldquosanto remeacutediordquo contra a tristeza O Frade de Roccasecca acreditava que seguir os atos proacuteprios de cada momento como rir quando se estaacute alegre chorar quando se estaacute triste ou gemer quando se estaacute doente eacute sempre agradaacutevel e mitiga as dores

Porque a accedilatildeo que conveacutem ao homem segundo sua disposiccedilatildeo do momento eacute sempre agradaacutevel O choro e os gemidos satildeo accedilotildees que convecircm aos que estatildeo tristes ou doentes Por isso se tornarm deleitaacuteveis para eles Como todo prazer alivia a tristeza ou dor de

46 Idem Ibidem I-II 38 3 C ldquoQuarum prima est quia cum ad tristitiam pertineat aggravare habet rationem cuiusdam oneris a quo aliquis aggravatus alleviari conatur Cum ergo aliquis videt de sua tristitia alios contristatos fit ei quasi quaedam imaginatio quod illud onus alii cum ipso ferant quasi conantes ad ipsum ab onere alleviandum et ideo levius fert tristitiae onus sicut etiam in portandis oneribus corporalibus contingit Secunda ratio et melior est quia per hoc quod amici contristantur ei percipit se ab eis amari quod est delectabile ut supra dictum est Unde cum omnis delectatio mitiget tristitiam sicut supra dictum est sequitur quod amicus condolens tristitiam mitigetrdquoIdem Ibidem I-II 38 3 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod in utroque amicitia manifestatur scilicet et quod congaudet gaudenti et quod condolet dolentirdquo ldquoPortanto deve-se dizer que a amizade se manifesta nos dois casos quando se alegra com quem se alegra e quando se compadece com quem padecerdquo

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certo modo como foi dito segue-se que pelo choro e pelos gemidos se alivia a tristeza47

E quando natildeo haacute mais o que se fazer banhar-se e dormir

pode ser um lenitivo contra a tristeza e certas doenccedilas Um opositor levanta a seguinte objeccedilatildeo ldquoCom efeito a tristeza se localiza na alma Ora o sono e o banho pertencem ao corpo Logo nada podem fazer para aliviar a tristezardquo48 Ante esta sentenccedila mdash tipicamente ldquodualistardquo mdash Tomaacutes responde ldquo[] deve-se dizer que a devida disposiccedilatildeo do corpo enquanto eacute sentida causa prazer e consequentemente alivia a tristezardquo49 No Sed Contra o Aquinate cita Agostinho que alude ao fato de que o corpo mdash e os prazeres que a ele se referem mdash estatildeo em iacutentima relaccedilatildeo com o bem-estar da alma

Agostinho diz ldquoEu ouvia dizer que a palavra banho vem de que expulsa a ansiedade da almardquo E mais adiante ldquoDormi e acordei e me encontrei que boa parte de minha dor estava aliviadardquo50

Os exemplos poderiam continuar mas julgamos que estes

sejam suficientes para atestar como o Boi Mudo da Siciacutelia pensa a vida humana segundo a virtude como constituiacuteda por uma espeacutecie

47 Idem Ibidem I-II 38 2 C ldquoSecundo quia semper operatio conveniens homini secundum dispositionem in qua est sibi est delectabilis Fletus autem et gemitus sunt quaedam operationes convenientes tristato vel dolenti Et ideo efficiuntur ei delectabiles Cum igitur omnis delectatio aliqualiter mitiget tristitiam vel dolorem ut dictum est sequitur quod per planctum et gemitum tristitia mitigeturrdquo Idem Ibidem ldquoEt propter hoc quando homines qui sunt in tristitiis exterius suam tristitiam manifestant vel fletu aut gemitu vel etiam verbo mitigatur tristitiardquo ldquoAssim quando os homens que estatildeo na tristeza a manifestam externamente por choro ou gemido ou mesmo por palavras a tristeza fica mitigadardquo 48 Idem Ibidem I-II 38 5 1 ldquoPraeterea idem effectus non videtur causari ex contrariis causis Sed huiusmodi cum sint corporalia repugnant contemplationi veritatis quae est causa mitigationis tristitiae ut dictum est Non ergo per huiusmodi tristitia mitigaturrdquo 49 Idem Ibidem I-II 38 5 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod ipsa debita corporis dispositio inquantum sentitur delectationem causat et per consequens tristitiam mitigatrdquo 50 Idem Ibidem I-II 38 5 SC ldquoSed contra est quod Augustinus dicit IX Confess audieram balnei nomen inde dictum quod anxietatem pellat ex animo et infra dormivi et evigilavi et non parva ex parte mitigatum inveni dolorem meumrdquo

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de simbiose entre alma e corpo que se perfaz somente quando alma e corpo interagem como um todo uno Eacute apenas tendo bem presente esta conjugaccedilatildeo que podemos abordar as virtudes Antes poreacutem jaacute eacute tempo de falarmos especificamente sobre as paixotildees pois as virtudes morais natildeo tecircm outra tarefa senatildeo comedi-las 53 AS PAIXOtildeES DA ALMA

Por paixatildeo entende-se aqui toda mudanccedila corporal decorrente do apetite sensiacutevel mdash que definiremos formalmente no proacuteximo toacutepico mdash o qual se desdobra em apetite concupisciacutevel e irasciacutevel51 O concupisciacutevel considera o bem absolutamente e a sua primeira paixatildeo eacute o amor que eacute certa complacecircncia no bem segue-se ao amor o seu contraacuterio ou seja o oacutedio ou repugnacircncia ao mal oposto52 Se o bem estaacute ausente o amor daacute lugar ao desejo ou concupiscecircncia assim como o oacutedio se o mal estaacute ausente daacute lugar agrave fuga ou aversatildeo53 Se o bem estaacute presente haacute o termo do apetite que estaacute no prazer ou alegria sendo a alegria que eacute como

51 Idem Ibidem I-II 22 3 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut iam dictum est passio proprie invenitur ubi est transmutatio corporalis Quae quidem invenitur in actibus appetitus sensitivi []rdquo ldquoComo jaacute dito existe propriamente paixatildeo onde haacute transmutaccedilatildeo do corpo e esta se encontra nos atos do apetite sensiacutevel []rdquo 52 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoBonum ergo primo quidem in potentia appetitiva causat quandam inclinationem seu aptitudinem seu connaturalitatem ad bonum quod pertinet ad passionem amoris Cui per contrarium respondet odium ex parte malirdquo ldquoDesse modo o bem causa primeiramente na potecircncia apetitiva uma certa inclinaccedilatildeo ou aptidatildeo ou conaturalidade para o bem e isso pertence agrave paixatildeo do amor ao qual por contrariedade corresponde o oacutedio por parte do malrdquo Idem Ibidem I-II 29 1 C ldquoSicut autem omne conveniens inquantum huiusmodi habet rationem boni ita omne repugnans inquantum huiusmodi habet rationem mali Et ideo sicut bonum est obiectum amoris ita malum est obiectum odiirdquo ldquoMas como tudo o que eacute conveniente enquanto tal tem razatildeo de bem do mesmo modo tudo o que eacute repugnante enquanto tal tem natureza de mal Portanto assim como o bem eacute objeto do amor do mesmo modo o mal eacute objeto do oacutediordquo Idem Ibidem I-II 29 2 C ldquoUnde necesse est quod amor sit prior odio et quod nihil odio habeatur nisi per hoc quod contrariatur convenienti quod amaturrdquo ldquoLogo eacute necessaacuterio que o amor seja anterior ao oacutedio e que soacute se odeie o que eacute contraacuterio ao bem conveniente que se amardquo 53 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoSecundo si bonum sit nondum habitum dat ei motum ad assequendum bonum amatum et hoc pertinet ad passionem desiderii vel concupiscentiae Et ex opposito ex parte mali est fuga vel abominatiordquo ldquomdash Em segundo lugar o bem ainda natildeo possuiacutedo lhe daacute o movimento para conseguir o bem amado o que pertence agrave paixatildeo do desejo ou da concupiscecircncia e por contrariedade e quanto ao mal estaacute a fuga ou a aversatildeordquo

278 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino a ldquoconsciecircnciardquo do prazer proacutepria somente dos seres racionais pois neles haacute a possibilidade por exemplo de se ter um gozo corporal que cause repulsa agrave razatildeo de haver prazeres que natildeo tragam suavidade agrave alma54 se eacute o mal contraacuterio que estaacute presente o termo do apetite eacute a dor ou tristeza sendo a tristeza a qual eacute como a ldquoconsciecircnciardquo da dor exclusiva dos seres racionais pois se pode sentir dor sem que isso se apresente como indigno ou cause repuacutedio agrave razatildeo55 Do quanto dissemos ateacute aqui jaacute se pode inferir que a primeira paixatildeo a qual desencadeia todas as outras eacute o amor como o proacuteprio Tomaacutes assinala em vaacuterias ocasiotildees56 Natildeo

54 Idem Ibidem I-II 31 3 C ldquoSed nomen gaudii non habet locum nisi in delectatione quae consequitur rationem unde gaudium non attribuimus brutis animalibus sed solum nomen delectationis [] Quamvis non semper de omnibus sit gaudium quandoque enim aliquis sentit aliquam delectationem secundum corpus de qua tamen non gaudet secundum rationemrdquo ldquoMas a palavra alegria soacute se emprega para prazeres consecutivos agrave razatildeo assim natildeo atribuiacutemos alegria aos animais irracionais mas apenas o prazer [] Embora nem sempre haja alegria a respeito de tudo pois agraves vezes algueacutem sente certo prazer segundo o corpo sem que se alegre segundo a razatildeordquo 55 Idem Ibidem I-II 35 2 C ldquoSola igitur illa delectatio quae ex interiori apprehensione causatur gaudium nominatur ut supra dictum est Et similiter ille solus dolor qui ex apprehensione interiori causatur nominatur tristitia Et sicut illa delectatio quae ex exteriori apprehensione causatur delectatio quidem nominatur non autem gaudium ita ille dolor qui ex exteriori apprehensione causatur nominatur quidem dolor non autem tristitiardquo ldquoPortanto soacute o prazer causado por uma apreensatildeo interior se chama alegria como foi dito Igualmente soacute a dor causada por apreensatildeo interior se chama tristeza E como prazer causado pela apreensatildeo exterior se chama prazer e natildeo alegria assim a dor causada por apreensatildeo exterior se chama dor e natildeo tristezardquo 56 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoTertio cum adeptum fuerit bonum dat appetitus quietationem quandam in ipso bono adepto et hoc pertinet ad delectationem vel gaudium Cui opponitur ex parte mali dolor vel tristitiardquo ldquomdash Terceiro obtido o bem daacute-lhe um certo repouso no bem possuiacutedo o que pertence ao prazer ou alegria a que se opotildee do lado do mal a dor ou a tristezardquo Idem Ibidem I-II 25 2 C ldquoIpsa autem aptitudo sive proportio appetitus ad bonum est amor qui nihil aliud est quam complacentia boni motus autem ad bonum est desiderium vel concupiscentia quies autem in bono est gaudium vel delectatio Et ideo secundum hunc ordinem amor praecedit desiderium et desiderium praecedit delectationemrdquo ldquoOra a aptidatildeo ou proporccedilatildeo do apetite ao bem eacute o amor que natildeo eacute mais do que a complacecircncia no bem enquanto o movimento para o bem eacute o desejo ou concupiscecircncia e por fim o repouso no bem eacute a alegria ou prazerrdquo Idem Ibidem I-II 25 2 ad 1 ldquoNos autem ut plurimum per effectum cognoscimus causam Effectus autem amoris quando quidem habetur ipsum amatum est delectatio quando vero non habetur est desiderium vel concupiscentiardquo ldquoOra comumente conhecemos a causa pelo efeito Portanto o efeito do amor quando o objeto amado jaacute eacute possuiacutedo eacute prazer quando poreacutem ainda natildeo eacute possuiacutedo eacute desejo ou concupiscecircnciardquo Idem Ibidem I-II 26 2 C ldquoPrima ergo immutatio appetitus ab appetibili vocatur amor qui nihil est aliud quam complacentia appetibilis et ex hac complacentia sequitur motus in appetibile qui est desiderium et ultimo quies quae est gaudiumrdquo ldquoA primeira mudanccedila do apetite pelo objeto apeteciacutevel se chama amor que natildeo eacute senatildeo a complacecircncia no objeto apeteciacutevel da qual resulta o movimento para esse objeto que eacute o desejo e por uacuteltimo o repouso que eacute a alegriardquo

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resta duacutevida pois que da retidatildeo do amor que deve aspirar a bens verdadeiros dependeraacute a retidatildeo dos nossos atos Por isso o Aquinate fala que o amor propriamente humano eacute uma dileccedilatildeo porque pressupotildee uma eleiccedilatildeo Podemos escolher o que e a quem amar E a caridade natural eacute aquela que acresce ao amor o apreccedilo porque o homem pode prezar e estimar o objeto do seu beneplaacutecito57 Mas para que essa decisatildeo ocorra com correccedilatildeo haacute que se ter uma reta razatildeo isto eacute uma razatildeo capaz de propor bens verdadeiros agrave vontade

O irasciacutevel natildeo considera o bem absolutamente senatildeo sob a razatildeo de aacuterduo Por isso eacute evidente que se o bem estaacute presente natildeo haacute nenhuma paixatildeo no irasciacutevel58 mas se ele estaacute ausente tem-se a esperanccedila que diz respeito a um bem futuro que se apresenta como alcanccedilaacutevel59 e o desespero que se daacute quando um

57 Idem Ibidem I-II 26 3 C ldquoDifferenter tamen significatur actus per ista tria Nam amor communius est inter ea omnis enim dilectio vel caritas est amor sed non e converso Addit enim dilectio supra amorem electionem praecedentem ut ipsum nomen sonat Unde dilectio non est in concupiscibili sed in voluntate tantum et est in sola rationali natura Caritas autem addit supra amorem perfectionem quandam amoris inquantum id quod amatur magni pretii aestimatur ut ipsum nomen designatrdquo ldquoEssas trecircs palavras exprimem o ato de diversas maneiras Assim o mais geral deles eacute o amor pois toda dileccedilatildeo ou caridade eacute amor mas natildeo inversamente A dileccedilatildeo acrescenta ao amor uma eleiccedilatildeo precedente como a proacutepria palavra indica Por isso a dileccedilatildeo natildeo estaacute no concupisciacutevel mas somente na vontade e apenas na natureza racional A caridade por sua vez acrescenta ao amor uma certa perfeiccedilatildeo na medida em que se tem grande apreccedilo por aquilo que se ama como a proacutepria palavra o indicardquo 58 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoIn passionibus autem irascibilis praesupponitur quidem aptitudo vel inclinatio ad prosequendum bonum vel fugiendum malum ex concupiscibili quae absolute respicit bonum vel malum [] Respectu autem boni adepti non est aliqua passio in irascibili quia iam non habet rationem ardui ut supra dictum estrdquo ldquoAs paixotildees do irasciacutevel poreacutem jaacute pressupotildeem a aptidatildeo ou inclinaccedilatildeo a buscar o bem ou a evitar o mal proacuteprias do concupisciacutevel que visa o bem e o mal absolutamente [] Com respeito poreacutem ao bem possuiacutedo natildeo haacute no irasciacutevel nenhuma paixatildeo porque natildeo existe nesse caso a razatildeo de aacuterduo como jaacute foi dito []rdquo 59 Idem Ibidem I-II 40 2 C ldquoEt secundum hoc spes est motus appetitivae virtutis consequens apprehensionem boni futuri ardui possibilis adipisci scilicet extensio appetitus in huiusmodi obiectumrdquo ldquoAssim a esperanccedila eacute o movimento da potecircncia apetitiva subsequumlente agrave apreensatildeo do bem futuro aacuterduo e possiacutevel de ser obtido eacute a extensatildeo do apetite para esse objetordquo Idem Ibidem I-II 40 4 C ldquoObiectum autem spei quod est bonum arduum habet quidem rationem attractivi prout consideratur cum possibilitate adipiscendi et sic tendit in ipsum spes quae importat quendam accessumrdquo ldquoO objeto da esperanccedila que eacute o bem aacuterduo tem a razatildeo de atrativo enquanto se considera possiacutevel alcanccedilaacute-lo e assim tende para ele a esperanccedila que implica uma certa aproximaccedilatildeordquo Idem Ibidem I-II 40 5 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est spei

280 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino bem futuro se apresenta como inalcanccedilaacutevel60 No caso do mal ausente temos o temor que o evita por medo de que ele sobrevenha e de que seja irresistiacutevel61 e a audaacutecia que contraacuteria ao temor enfrenta o mal iminente porque acredita que lhe pode oferecer resistecircncia debelaacute-lo6263 Poreacutem se o mal estaacute presente daacute-se a ira que eacute o desejo esperanccediloso de punir quem nos impocircs algum mal64 Vecirc-se que a potecircncia irasciacutevel se desperta como uma espeacutecie de defensora da concupisciacutevel porque visa de algum modo repelir os entraves postos ao encalccedilo do bem desejaacutevel65 Daiacute se deduz tambeacutem que o amor natildeo eacute somente a primeira paixatildeo

obiectum est bonum futurum arduum possibile adipiscirdquo ldquoComo se disse antes o objeto da esperanccedila eacute o bem futuro aacuterduo e possiacutevel de obter-serdquo 60 Idem Ibidem I-II 40 4 C ldquoSed secundum quod consideratur cum impossibilitate obtinendi habet rationem repulsivi quia ut dicitur in III Ethic cum ventum fuerit ad aliquid impossibile tunc homines discedunt Et sic respicit hoc obiectum desperatiordquo ldquoMas enquanto se considera impossiacutevel obtecirc-lo tem a razatildeo de repulsivo pois como diz o livro III da Eacutetica lsquoQuando os homens chegam a algo impossiacutevel entatildeo se afastamrsquo Eacute este o objeto do desesperordquo 61 Idem Ibidem I-II 41 2 C ldquoSicut enim obiectum spei est bonum futurum arduum possibile adipisci ita obiectum timoris est malum futurum difficile cui resisti non potestrdquo ldquoCom efeito como o objeto da esperanccedila eacute um bem futuro aacuterduo de ser obtido assim o objeto do temor eacute o mal futuro difiacutecil ao qual natildeo se pode resistirrdquo 62 Idem Ibidem I-II 45 1 C ldquoIllud autem quod maxime distat a timore est audacia timor enim refugit nocumentum futurum propter eius victoriam super ipsum timentem sed audacia aggreditur periculum imminens propter victoriam sui supra ipsum periculumrdquo ldquoO que dista mais do temor eacute a audaacutecia o temor evita o dano futuro por pensar que este vai vencecirc-lo a audaacutecia afronta o perigo iminente porque acredita na sua vitoacuteria sobre o perigordquo 63 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoEt respectu boni nondum adepti est spes et desperatio Respectu autem mali nondum iniacentis est timor et audaciardquo ldquoAssim em relaccedilatildeo ao bem ainda natildeo possuiacutedo estaacute a esperanccedila e o desespero em relaccedilatildeo ao mal natildeo presente o temor e a audaacuteciardquo 64 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoSed ex malo iam iniacenti sequitur passio iraerdquo ldquo[] mas do mal jaacute presente resulta a paixatildeo da irardquo Idem Ibidem I-II 46 1 C ldquoNon enim insurgit motus irae nisi propter aliquam tristitiam illatam et nisi adsit desiderium et spes ulciscendi []rdquo ldquoNatildeo surge o movimento da ira a natildeo ser por causa de alguma tristeza sofrida e se natildeo houver tambeacutem o desejo e a esperanccedila de vinganccedilardquo 65 Idem Ibidem I 81 2 C ldquoPatet etiam ex hoc quod irascibilis est quasi propugnatrix et defensatrix concupiscibilis dum insurgit contra ea quae impediunt convenientia quae concupiscibilis appetit et ingerunt nociva quae concupiscibilis refugit Et propter hoc omnes passiones irascibilis incipiunt a passionibus concupiscibilis et in eas terminantur []rdquo ldquoDisso fica claro tambeacutem que a potecircncia irasciacutevel eacute uma espeacutecie de combatente defensor da concupisciacutevel insurgindo-se contra aquilo que impede o que eacute conveniente que a concupisciacutevel deseja e contra aquilo que causa dano do qual essa uacuteltima foge Por conseguinte todas as paixotildees irasciacuteveis tecircm origem nas paixotildees concupisciacuteveis e nelas terminamrdquo

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do concupisciacutevel mas absolutamente falando jaacute que as demais estaratildeo sempre no seu encalccedilo

Ora estas paixotildees satildeo da natureza humana natildeo haacute como eliminaacute-las nem eacute reto querer isso em si mesmas elas natildeo satildeo nem boas nem maacutes Contudo como o homem eacute dotado de razatildeo e vontade importa que ele as submeta agrave reta razatildeo e agrave vontade natildeo tentando as tolher mas governando-as politicamente como diz o Aquinate

Deve-se dizer que como diz o Filoacutesofo no livro I da Poliacutetica a razatildeo na qual estaacute a vontade move por seu impeacuterio o irasciacutevel e o concupisciacutevel natildeo por um primado despoacutetico como o servo eacute movido por seu senhor mas por um primado real e poliacutetico como os homens livres satildeo regidos por seus governantes podendo opor-se a eles66

Sob esta consideraccedilatildeo a saber enquanto as paixotildees podem

ser imperadas pela razatildeo e pela vontade elas passam a ser voluntaacuterias e podem entatildeo ser boas ou maacutes de acordo com a sua conformidade ou natildeo com a razatildeo E isso natildeo eacute de se estranhar porque temos de saber lidar com o que sentimos a fim de colocarmos a nossa sensibilidade a nosso favor Por exemplo a experiecircncia precisa ser bem usada porque ela nos pode livrar do desespero enquanto lanccedila fora o receio e os recalques do inaacutebil afianccedila-nos que em determinada situaccedilatildeo encontramo-nos aptos para realizar o bem aacuterduo67 Mas a experiecircncia pode tambeacutem nos desiludir ou desenganar e tambeacutem aqui se bem moderada ela

66 Idem Ibidem I-II 9 2 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod sicut philosophus dicit in I Polit ratio in qua est voluntas movet suo imperio irascibilem et concupiscibilem non quidem despotico principatu sicut movetur servus a domino sed principatu regali seu politico sicut liberi homines reguntur a gubernante qui tamen possunt contra movererdquo 67 Idem Ibidem I-II 40 5 C ldquo[] per experientiam homo acquirit facultatem aliquid de facili faciendi et ex hoc sequitur spes Unde Vegetius dicit in libro de re militari nemo facere metuit quod se bene didicisse confiditrdquo ldquo[] pela experiecircncia o homem adquire a capacidade de fazer algo com facilidade e disso resulta a esperanccedila Por isso diz Vegeacutecio lsquoNingueacutem receia fazer o que confia ter aprendido bemrdquo

282 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino pode nos poupar de desgastes inuacuteteis dando-nos conta de que natildeo adianta agirmos com contumaacutecia para revertermos determinada situaccedilatildeo68 A experiecircncia deve ser usada ainda para treinar os jovens pois eles por natildeo conhecerem os percalccedilos da vida podem facilmente fiar-se em sua capacidade aleacutem do que eacute devido e tornarem-se semelhantes aos estuacutepidos e desajuizados que acreditam poder tudo69 Ademais paixotildees como a esperanccedila se bem ordenadas podem concorrer para o nosso bem porque a clareza de que um bem eacute aacuterduo mas possiacutevel pode a um soacute tempo aticcedilar a atenccedilatildeo e impedir o retardo da accedilatildeo para consegui-lo70 O temor tambeacutem precisa ser moderado do contraacuterio ele nos leva agrave preguiccedila pois um bem aacuterduo pode causar desacircnimo por ser oneroso71 Ainda aqui os mais experientes podem e devem adestrar os inexperientes uma vez que a falta de costume pode levar os jovens a fazer uma apreciaccedilatildeo enganosa do desafio calculando ser

68 Idem Ibidem I-II 40 5 C ldquoQuia sicut per experientiam fit homini existimatio quod aliquid sibi sit possibile quod reputabat impossibile ita e converso per experientiam fit homini existimatio quod aliquid non sit sibi possibile quod possibile existimabatrdquo ldquomdash Do mesmo modo a experiecircncia pode ser causa da falta de esperanccedila pois como pela experiecircncia o homem pode pensar que lhe seja possiacutevel o que antes julgava impossiacutevel inversamente pode pela experiecircncia julgar impossiacutevel o que antes pensava ser possiacutevelrdquo 69 Idem Ibidem I-II 40 6 C ldquoEx amplitudine autem cordis est quod aliquis ad ardua tendat Et ideo iuvenes sunt animosi et bonae spei Similiter etiam illi qui non sunt passi repulsam nec experti impedimenta in suis conatibus de facili reputant aliquid sibi possibile Unde et iuvenes propter inexperientiam impedimentorum et defectuum de facili reputant aliquid sibi possibile Et ideo sunt bonae spei [] Et propter eandem rationem etiam omnes stulti et deliberatione non utentes omnia tentant et sunt bonae speirdquo ldquoIgualmente quem natildeo sofreu rejeiccedilatildeo nem experimentou obstaacuteculos em suas tentativas julga facilmente que as coisas satildeo possiacuteveis Por isso os jovens pela falta de experiecircncia dos obstaacuteculos e das deficiecircncias facilmente julgam que as coisas lhes satildeo possiacuteveis E por isso tecircm boa esperanccedila [] mdash Pela mesma razatildeo todos os estuacutepidos e os estouvados se atrevem a tudo e tecircm boa esperanccedilardquo 70 Idem Ibidem I-II 40 8 C ldquoSed per hunc modum experientia potest etiam esse causa defectus spei Quia sicut per experientiam fit homini existimatio quod aliquid sibi sit possibile quod reputabat impossibile ita e converso per experientiam fit homini existimatio quod aliquid non sit sibi possibile quod possibile existimabatrdquo ldquoA esperanccedila por si ajuda a accedilatildeo intensificando-a E por dois motivos 1 em razatildeo do seu objeto que eacute o bem aacuterduo possiacutevel A consideraccedilatildeo do aacuterduo excita a atenccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do possiacutevel natildeo retarda o esforccedilo Daiacute se segue que o homem age intensamente por causa da esperanccedila []rdquo 71 Idem Ibidem I-II 41 4 C ldquoEt sic causatur segnities cum scilicet aliquis refugit operari propter timorem excedentis laborisrdquo ldquoDaiacute surge a preguiccedila quando se recusa a agir por causa do temor do trabalho excessivordquo

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ele muito mais aacuterduo do que realmente eacute e deixando por conseguinte de conquistarem um bem que estava ao seu alcance natildeo fosse o equiacutevoco da imaginaccedilatildeo72 E os exemplos poderiam multiplicar-se mas o que eacute mais importante reter neste momento eacute que o prazer natildeo pode ser posto de lado porque ele aperfeiccediloa a accedilatildeo jaacute que quando agimos com deleite agimos com mais atenccedilatildeo afinco e perseveranccedila 73 Aliaacutes isso eacute um corolaacuterio espontacircneo pois para Tomaacutes natildeo haacute ldquopaixotildees do corpordquo de um lado e ldquopaixotildees da almardquo de outro uma vez que alma humana eacute o princiacutepio da vida racional animal e vegetal Afora o que haacute de inadequado nas palavras tudo em noacutes animalidade e racionalidade estaacute interligado natildeo isolado Do quanto dissemos segue-se que as paixotildees enquanto estatildeo sob o impeacuterio da razatildeo e da vontade podem ser boas ou maacutes em virtude da sua conformidade ou natildeo com a mesma razatildeo e vontade Acerca da moralidade das paixotildees afirma Tomaacutes

As paixotildees da alma podem ser consideradas de duas maneiras primeiro em si mesmas segundo enquanto dependem do impeacuterio da razatildeo e da vontade Se pois as paixotildees forem consideradas em si mesmas ou seja enquanto movimentos do apetite irracional desse modo natildeo haacute nelas bem ou mal moral o que depende da razatildeo conforme foi dito antes Mas se forem consideradas enquanto dependem do impeacuterio da razatildeo e da vontade entatildeo nelas haacute bem e mal moral pois o apetite sensitivo

72 Idem Ibidem ldquoSecundo ratione dissuetudinis quia scilicet aliquod malum inconsuetum nostrae considerationi offertur et sic est magnum nostra reputationerdquo ldquomdash 2 em razatildeo da falta de costume Quando um mal insoacutelito se oferece agrave nossa consideraccedilatildeo e assim eacute grande para nossa apreciaccedilatildeo Haacute entatildeo estupor produzido por uma imagem insoacutelitardquo 73 Idem Ibidem I-II 33 3 C ldquo[] cum autem attentio fortiter inhaeserit alicui rei debilitatur circa alias res vel totaliter ab eis revocaturrdquo ldquo[] porque fazemos com mais atenccedilatildeo aquilo em que nos deleitamos e a atenccedilatildeo facilita a accedilatildeordquo Idem Ibidem I-II 33 4 C ldquoRespondeo dicendum quod delectatio [] operationem perficiat [] Indirecte autem inquantum scilicet agens quia delectatur in sua actione vehementius attendit ad ipsam et diligentius eam operaturrdquo ldquoO prazer aperfeiccediloa a accedilatildeo [] Indiretamente enquanto o agente porque se deleita em sua accedilatildeo presta-lhe mais atenccedilatildeo e a realiza com mais diligecircnciardquo Idem Ibidem I-II 37 1 C ldquo[] qui quanto maior fuerit magis retinet intentionem animi ne omnino feratur ad doloremrdquo ldquoQuanto maior este amor mais reteacutem a atenccedilatildeo do espiacuterito para que natildeo se deixe entregar agrave dorrdquo

284 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

estaacute mais proacuteximo da razatildeo e da vontade do que os membros exteriores cujos movimentos e atos satildeo bons ou maus moralmente na medida em que satildeo voluntaacuterios Por conseguinte com muito maior razatildeo tambeacutem as paixotildees enquanto voluntaacuterias podem ser chamadas de boas ou maacutes moralmente74

Cumpre agora determo-nos com maior cuidado na

estrutura do ato humano a fim de que conheccedilamos melhor como a pessoa daacute agrave luz o ato livre condiccedilatildeo de possibilidade tanto da virtude quanto do viacutecio 54 A ESTRUTURA DO ATO HUMANO

Com efeito toda forma possui uma tendecircncia natural para o seu fim O fogo por exemplo tende a subir a terra tende para o centro Chamamos esta tendecircncia apetite natural Haacute poreacutem os seres dotados de conhecimento Estes possuem uma inclinaccedilatildeo natildeo soacute em virtude de sua forma mas tambeacutem no que concerne ao objeto conhecido Por conhecerem o fim enquanto atrativo distendem-se para o que lhes eacute condicente Ora o conhecimento comporta dois niacuteveis o sensitivo e o intelectivo A tendecircncia que se segue agrave simples sensaccedilatildeo nominamos apetite sensiacutevel a que se segue ao conhecimento intelectual apetite intelectivo ou vontade75

74 Idem Ibidem I-II 24 1 C ldquoRespondeo dicendum quod passiones animae dupliciter possunt considerari uno modo secundum se alio modo secundum quod subiacent imperio rationis et voluntatis Si igitur secundum se considerentur prout scilicet sunt motus quidam irrationalis appetitus sic non est in eis bonum vel malum morale quod dependet a ratione ut supra dictum est Si autem considerentur secundum quod subiacent imperio rationis et voluntatis sic est in eis bonum et malum morale Propinquior enim est appetitus sensitivus ipsi rationi et voluntati quam membra exteriora quorum tamen motus et actus sunt boni vel mali moraliter secundum quod sunt voluntarii Unde multo magis et ipsae passiones secundum quod sunt voluntariae possunt dici bonae vel malae moraliterrdquo 75 Idem Ibidem I-II 26 1 C ldquoEst enim quidam appetitus non consequens apprehensionem ipsius appetentis sed alterius et huiusmodi dicitur appetitus naturalis Res enim naturales appetunt quod eis convenit secundum suam naturam non per apprehensionem propriam sed per apprehensionem instituentis naturam ut in I libro dictum est Alius autem est appetitus consequens apprehensionem ipsius appetentis sed ex necessitate non ex iudicio libero Et talis est appetitus sensitivus in brutis qui tamen in hominibus aliquid libertatis participat inquantum obedit rationi Alius autem est appetitus consequens apprehensionem appetentis secundum liberum iudicium Et talis est appetitus

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Quanto agrave vontade cabe discriminar Tal como o intelecto assente aos primeiros princiacutepios assim a vontade adere necessariamente agrave beatitude seu fim uacuteltimo Poreacutem haacute coisas sem as quais podemos ser felizes A estas a vontade natildeo adere necessariamente Mas natildeo eacute tudo Da mesma forma que por vezes o nosso intelecto anui a proposiccedilotildees decorrentes dos seus primeiros princiacutepios mas sem reconhecer-lhes a necessidade a saber de forma contingente assim tambeacutem acontece com a vontade Tambeacutem esta pode natildeo aquiescer necessariamente agraves coisas que conduzem ao fim ainda que elas sejam necessaacuterias agrave consecuccedilatildeo do fim e isto por natildeo reconhecer a conexatildeo necessaacuteria entre o meio e o fim76

De posse destes pressupostos podemos distinguir os graus do ato humano Comecemos pela intenccedilatildeo Esta consiste naquele ato uacutenico pelo qual a vontade inclina-se ao fim proposto e aos meios que reconhece como condizentes com este fim77 Como

rationalis sive intellectivus qui dicitur voluntasrdquo ldquoOra haacute um apetite natildeo consequumlente agrave apreensatildeo do que apetece mas agrave de outrem e este se chama apetite natural As coisas naturais desejam o que lhes conveacutem por natureza natildeo por apreensatildeo proacutepria mas pela apreensatildeo do autor da natureza como se disse na I Parte mdash Haacute aleacutem disso outro apetite consequumlente agrave apreensatildeo do que apetece mas por necessidade e natildeo por um juiacutezo livre e tal eacute o apetite sensitivo dos animais irracionais que nos homens participa de alguma liberdade enquanto obedece agrave razatildeo mdash Enfim haacute outro apetite consequumlente agrave apreensatildeo do que apetece por um juiacutezo livre e tal eacute o apetite racional ou intelectivo e este se chama vontaderdquo 76 Idem Ibidem I 82 2 C ldquoSimiliter etiam est ex parte voluntatis Sunt enim quaedam particularia bona quae non habent necessariam connexionem ad beatitudinem quia sine his potest aliquis esse beatus et huiusmodi voluntas non de necessitate inhaeret Sunt autem quaedam habentia necessariam connexionem ad beatitudinem quibus scilicet homo Deo inhaeret in quo solo vera beatitudo consistit Sed tamen antequam per certitudinem divinae visionis necessitas huiusmodi connexionis demonstretur voluntas non ex necessitate Deo inhaeret nec his quae Dei suntrdquo ldquoO mesmo acontece com a vontade Haacute bens particulares que natildeo tecircm relaccedilatildeo necessaacuteria com a bem-aventuranccedila porque se pode ser bem-aventurado sem eles A tais bens a vontade natildeo adere necessariamente Mas haacute outros bens que tecircm uma relaccedilatildeo necessaacuteria com a bem-aventuranccedila satildeo aqueles pelos quais o homem adere a Deus em quem somente se encontra a verdadeira bem-aventuranccedila Todavia antes que a necessidade dessa conexatildeo seja demonstrada pela certeza da visatildeo divina a vontade natildeo adere necessariamente nem a Deus nem agraves coisas que satildeo de Deusrdquo 77 Idem Ibidem I-II 12 2 C ldquoSicut in motu quo itur de a in c per b c est terminus ultimus b autem est terminus sed non ultimus Et utriusque potest esse intentiordquo ldquoAssim no movimento pelo qual se vai de A a C por B C eacute o termo uacuteltimo B eacute termo mas natildeo o uacuteltimo E a intenccedilatildeo pode referir-se a ambosrdquo Idem Ibidem I-II 12 3 C ldquoEst enim intentio non solum finis ultimi ut dictum est sed etiam finis medii Simul autem intendit aliquis et finem proximum et ultimum sicut confectionem

286 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino descobre estes meios A resposta a este questionamento conhece desdobramentos Antes de mais daacute-se o conselho ou deliberaccedilatildeo nele a razatildeo inquire acerca dos meios concernentes a um fim proposto No tirociacutenio da inquisiccedilatildeo apoacutes ldquosabatinarrdquo as vaacuterias possibilidades a razatildeo formula juiacutezos que natildeo satildeo senatildeo ldquoestrateacutegiasrdquo para alcanccedilar o fim a que aspira78 Em seguida a vontade compraz-se nos meios considerados pela razatildeo A este beneplaacutecito chamamos consentimento79 Apoacutes isso a menos que haja um soacute juiacutezo ocorre a eleiccedilatildeo ou a escolha de um destes juiacutezos ou seja de uma destas ldquoestrateacutegiasrdquo80 Finalmente segue o impeacuterio da razatildeo que intima ou adverte dando-nos um preceito ou

medicinae et sanitatemrdquo ldquoComo foi dito natildeo haacute intenccedilatildeo somente do fim uacuteltimo mas tambeacutem dos meios para o fim Pode-se ter intenccedilatildeo ao mesmo tempo do fim proacuteximo e do fim uacuteltimo como elaborar o remeacutedio e a curardquo 78 Idem Ibidem I-II 14 1 C ldquoIn rebus autem dubiis et incertis ratio non profert iudicium absque inquisitione praecedente Et ideo necessaria est inquisitio rationis ante iudicium de eligendis et haec inquisitio consilium vocatur Propter quod philosophus dicit in III Ethic quod electio est appetitus praeconsiliatirdquo ldquoA razatildeo natildeo profere juiacutezos sobre as coisas duacutebias e incertas sem preacutevia investigaccedilatildeo Por isso eacute necessaacuteria a investigaccedilatildeo da razatildeo antes do julgamento do que se vai eleger Esta investigaccedilatildeo chama-se deliberaccedilatildeo Por isso diz o Filoacutesofo no livro III da Eacutetica lsquoA eleiccedilatildeo eacute apetite do previamente deliberadorsquordquo 79 Idem Ibidem I-II 15 3 C ldquoSed appetitus eorum quae sunt ad finem praesupponit determinationem consilii Et ideo applicatio appetitivi motus ad determinationem consilii proprie est consensus Unde cum consilium non sit nisi de his quae sunt ad finem consensus proprie loquendo non est nisi de his quae sunt ad finemrdquo ldquoMas o apetite das coisas que satildeo para o fim pressupotildee determinaccedilatildeo da deliberaccedilatildeo Por isso a aplicaccedilatildeo do movimento apetitivo agrave determinaccedilatildeo da deliberaccedilatildeo eacute propriamente o consentimento Por conseguinte como a deliberaccedilatildeo eacute apenas sobre as coisas que satildeo para o fim o consentimento propriamente falando eacute somente sobre as coisas que satildeo para o fimrdquo 80 Idem Ibidem I-II 15 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod electio addit supra consensum quandam relationem respectu eius cui aliquid praeeligitur et ideo post consensum adhuc remanet electio Potest enim contingere quod per consilium inveniantur plura ducentia ad finem quorum dum quodlibet placet in quodlibet eorum consentitur sed ex multis quae placent praeaccipimus unum eligendo Sed si inveniatur unum solum quod placeat non differunt re consensus et electio sed ratione tantum ut consensus dicatur secundum quod placet ad agendum electio autem secundum quod praefertur his quae non placentrdquo ldquoDeve-se dizer que a eleiccedilatildeo acrescenta ao consentimento uma relaccedilatildeo com respeito agravequilo para o que se escolheu previamente algo e por isso apoacutes o consentimento ainda permanece a eleiccedilatildeo Mas pode acontecer que pela deliberaccedilatildeo encontrem-se muitas coisas que levam ao fim e se qualquer uma delas agrada nelas se consente Todavia entre as muitas coisas que agradam escolhemos uma a ser eleita Mas se houver uma soacute que agrade o consentimento e a eleiccedilatildeo natildeo se diferenciam por distinccedilatildeo real mas por distinccedilatildeo de razatildeo Assim consentimento se diz enquanto agrada para agir eleiccedilatildeo enquanto se prefere agraves coisas que natildeo agradamrdquo

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movendo-nos agrave accedilatildeo De sorte que se na eleiccedilatildeo livremente se opta por um meio ou outro no impeacuterio a razatildeo ordena que se execute o meio escolhido em detrimento dos outros81 Sucede ao impeacuterio a accedilatildeo82 Cumpre dizer que o impeacuterio natildeo eacute algo coercitivo porque eacute precedido e depende jaacute vimos do escrutiacutenio da deliberaccedilatildeo e da eleiccedilatildeo83 Trata-se pois de um ato interno da razatildeo ldquoO impeacuterio como foi dito nada mais eacute do que o ato da razatildeo ordenante para se fazer alguma coisardquo84

Ora fazer com que a intenccedilatildeo a deliberaccedilatildeo o consentimento a eleiccedilatildeo e o impeacuterio sigam a reta razatildeo eacute tarefa das virtudes e disso dependeraacute a bondade ou a maliacutecia de nossas accedilotildees Por isso tendo estudado a estrutura do ato livre podemos afinal conhecer como ele se torna virtuoso ou vicioso

81 Idem Ibidem I-II 17 1 C ldquoImperare autem est quidem essentialiter actus rationis imperans enim ordinat eum cui imperat ad aliquid agendum intimando vel denuntiando sic autem ordinare per modum cuiusdam intimationis est rationis Sed ratio potest aliquid intimare vel denuntiare dupliciter Uno modo absolute quae quidem intimatio exprimitur per verbum indicativi modi sicut si aliquis alicui dicat hoc est tibi faciendum Aliquando autem ratio intimat aliquid alicui movendo ipsum ad hoc et talis intimatio exprimitur per verbum imperativi modi puta cum alicui dicitur fac hocrdquo ldquoImperar eacute pois essencialmente ato da razatildeo porque o que impera ordena o que eacute imperado para agir intimando ou advertindo Assim sendo ordenar mediante intimaccedilatildeo pertence agrave razatildeo Ela intima ou adverte de dois modos Primeiro absolutamente eacute o que faz por um verbo no indicativo como se algueacutem dissesse a outro Isso deves fazer Outras vezes a razatildeo intima algo a algueacutem movendo-o para tal E essa intimaccedilatildeo a faz usando o verbo no imperativo dizendo Faz issordquo 82 Idem Ibidem I-II 17 3 C ldquoImperium autem non est simul cum actu eius cui imperatur sed naturaliter prius est imperium quam imperio obediatur et aliquando etiam est prius tempore Unde manifestum est quod imperium est prius quam ususrdquo ldquoO impeacuterio poreacutem natildeo eacute simultacircneo com o ato daquele que recebeu a ordem mas naturalmente eacute anterior a que seja obedecido e agraves vezes anterior no tempordquo 83 Idem Ibidem I-II 17 3 ad 1 ldquoQuia post determinationem consilii quae est iudicium rationis voluntas eligit et post electionem ratio imperat ei per quod agendum est quod eligitur et tunc demum voluntas alicuius incipit uti exequendo imperium rationis quandoque quidem voluntas alterius cum aliquis imperat alteri quandoque autem voluntas ipsius imperantis cum aliquis imperat sibi ipsirdquo ldquoDepois da determinaccedilatildeo da deliberaccedilatildeo que eacute um juiacutezo da razatildeo a vontade efetua a eleiccedilatildeo A seguir a razatildeo impera ao que deve realizar aquilo que finalmente foi eleito e a vontade de algueacutem comeccedila a usar executando o impeacuterio da razatildeordquo 84 Idem Ibidem I-II 17 5 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est imperium nihil aliud est quam actus rationis ordinantis cum quadam motione aliquid ad agendumrdquo

288 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino 55 AS VIRTUDES 551 A BONDADE E A MALIacuteCIA DO ATO HUMANO

Levando em consideraccedilatildeo os resultados alcanccedilados no toacutepico acima e antes de passarmos agrave temaacutetica da virtude importa agora sabermos como recai a bondade ou a maliacutecia sobre a accedilatildeo A moralidade da accedilatildeo eacute definida pelo ato interior pela intenccedilatildeo85 Haveraacute bondade na accedilatildeo se o fim estiver conforme a razatildeo antes maacute seraacute a accedilatildeo se o fim for contraacuterio agrave razatildeo86 Assim sendo o ato exterior eacute em uacuteltima instacircncia somente a consequecircncia do interior 87 Tomaacutes chega a citar um dito de Aristoacuteteles para arrematar a questatildeo ldquoDonde dizer o Filoacutesofo no livro V da Eacutetica Aquele que rouba para cometer adulteacuterio propriamente falando eacute mais aduacuteltero do que ladratildeordquo88 Quando a razatildeo versa sobre algo que natildeo eacute nem conveniente nem repugnante a ela damos a este objeto e ao ato correspondente o nome de indiferentes 89 A

85 Idem Ibidem I-II 19 7 C ldquoUnde cum bonitas voluntatis dependeat a bonitate voliti ut supra dictum est necesse est quod dependeat ex intentione finisrdquo ldquoPor isso por que a bondade da vontade depende da bondade do objeto que se quis como acima foi dito eacute necessaacuterio que dependa da intenccedilatildeo do fimrdquo 86 Idem Ibidem I-II 19 3 SC ldquoSed bonitas voluntatis consistit in hoc quod non sit immoderata Ergo bonitas voluntatis dependet ex hoc quod sit subiecta rationirdquo ldquoMas a bondade da vontade consiste em natildeo ser sem moderaccedilatildeo Logo a bondade da vontade depende de ser submetida agrave razatildeordquo 87 Idem Ibidem I-II 18 6 C ldquoFinis autem proprie est obiectum interioris actus voluntarii [] Et ideo actus humani species formaliter consideratur secundum finem materialiter autem secundum obiectum exterioris actusrdquo ldquoO fim eacute propriamente o objeto do ato voluntaacuterio interior [] E assim a espeacutecie de um ato humano se considera formalmente segundo o fim materialmente segundo o objeto do ato exteriorrdquo 88 Idem Ibidem I-II 18 6 C ldquoUnde philosophus dicit in V Ethic quod ille qui furatur ut committat adulterium est per se loquendo magis adulter quam furrdquo 89 Idem Ibidem I-II 18 8 C ldquoContingit autem quod obiectum actus non includit aliquid pertinens ad ordinem rationis sicut levare festucam de terra ire ad campum et huiusmodi et tales actus secundum speciem suam sunt indifferentesrdquo ldquoAcontece poreacutem que o objeto do ato natildeo inclui algo pertinente agrave ordem da razatildeo como levantar uma palha da terra ir ao campo e coisas semelhantes tais atos satildeo indiferentes segundo sua espeacutecierdquo Eacute muito importante natildeo confundir atos indiferentes com atos displicentes Por exemplo nem todo ato que procede da ignoracircncia eacute involuntaacuterio Haacute omissotildees ou atos voluntaacuterios procedentes de uma ignoracircncia tambeacutem ela voluntaacuteria Assim se tomado por uma paixatildeo ou pela forccedila de algum haacutebito desordenado um homem proceder com

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necessidade da correccedilatildeo da virtude nasce justamente do fato de que a vontade seguindo uma razatildeo errocircnea ou vencida pelas paixotildees pode tomar como conveniente agrave sua beatitude coisas que na verdade a repelem da mesma forma que o intelecto pode deduzir conclusotildees falsas de premissas verdadeiras 90 Tomaacutes afirma sem duacutevida que o intelecto propotildee o bem agrave vontade Contudo pondera o seguinte

negligecircncia em relaccedilatildeo a conhecimentos que deveria e poderia possuir agiraacute ou mesmo natildeo agiraacute com maliacutecia O agir ou ainda a omissatildeo decorrentes desta displicecircncia seratildeo pois consequecircncias de uma ignoracircncia afetada ou voluntaacuteria Notemos como Tomaacutes descreve Idem Ibidem I-II 6 8 C ldquoUno modo quia actus voluntatis fertur in ignorantiam sicut cum aliquis ignorare vult ut excusationem peccati habeat vel ut non retrahatur a pecando [] Et haec dicitur ignorantia affectata Alio modo dicitur ignorantia voluntaria eius quod quis potest scire et debet sic enim non agere et non velle voluntarium dicitur ut supra dictum est Hoc igitur modo dicitur ignorantia sive cum aliquis actu non considerat quod considerare potest et debet quae est ignorantia malae electionis vel ex passione vel ex habitu proveniens sive cum aliquis notitiam quam debet habere non curat acquirere et secundum hunc modum ignorantia universalium iuris quae quis scire tenetur voluntaria dicitur quasi per negligentiam proveniensrdquo ldquoPrimeiro porque o ato da vontade leva agrave ignoracircncia como quando se quer ignorar para se livrar da acusaccedilatildeo ou natildeo se afastar do pecado [] Esta se chama de ignoracircncia afetada mdash Segundo eacute a ignoracircncia voluntaacuteria quanto agravequilo que se deve e se pode saber pois natildeo agir nem querer neste caso eacute voluntaacuterio como foi acima dito [art 3] Nesse caso haacute ignoracircncia ou por que natildeo se considera realmente aquilo que se pode e se deve considerar ignoracircncia esta vinda de maacute eleiccedilatildeo ou de paixatildeo ou de algum haacutebito ou de algum desconhecimento daquilo que se devia ter mas que se descuidou de tecirc-lo e eacute segundo este modo a ignoracircncia das leis universais que todos devem conhecer havendo entatildeo ignoracircncia voluntaacuteria como proveniente da inteligecircnciardquo Agora se mesmo quando um homem conhece e considera o que deveria e poderia conhecer e considerar ainda assim surge um imprevisto entatildeo tal homem natildeo teraacute moralmente agido ou deixado de agir de maacute-feacute O seu agir ou natildeo agir teraacute sido involuntaacuterio Tomaacutes exemplifica Idem Ibidem ldquoSicut cum homo ignorat aliquam circumstantiam actus quam non tenebatur scire et ex hoc aliquid agit quod non faceret si sciret puta cum aliquis diligentia adhibita nesciens aliquem transire per viam proiicit sagittam qua interficit transeuntem Et talis ignorantia causat involuntarium simpliciterrdquo ldquoPor exemplo quando o homem ignora alguma circunstacircncia de um ato que natildeo deveria saber e por isso age o que natildeo faria se o soubesse Assim quando algueacutem prestada a devida atenccedilatildeo desconhecendo que um homem passava pelo caminho lanccedila sua flecha que iraacute mataacute-lo Essa ignoracircncia causa um ato absolutamente involuntaacuteriordquo 90 TOMAacuteS DE AQUINO O Apetite do Bem e a Vontade Quaestiones disputatae de veritate questatildeo 22 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Karine Moreto Massoca Satildeo Paulo EDIPRO 2015 22 6 C ldquoSecundum vero horum est respectu quorumdam obiectorum scilicet respectu eorum quae sunt ad finem et non ipsius finis et etiam secundum quemlibet statum naturae Tertium vero non est respectu omnium obiectorum sed quorumdam scilicet eorum quae sunt ad finem []rdquo ldquoCom efeito assim como de algum princiacutepio verdadeiro dado natildeo se segue uma falsa conclusatildeo a natildeo ser por alguma falsidade da razatildeo ou por assumir algo falso ou ordenando de modo falso o princiacutepio agrave conclusatildeo assim tambeacutem do que inere no apetite reto do fim uacuteltimo natildeo se pode seguir que algueacutem apeteccedila algo desordenado a natildeo ser que a razatildeo tomasse algo que natildeo seja ordenaacutevel ao fim como ordenaacutevel ao fim []rdquo

290 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Logo para que a vontade tenda para algo natildeo eacute necessaacuterio que seja o bem da coisa mas que seja apreendido na razatildeo de bem Donde o Filoacutesofo dizer no livro II da Fiacutesica ldquoO fim eacute o bem ou o que tenha aparecircncia de bemrdquo91

Por isso eacute possiacutevel que a vontade vaacute contra a reta razatildeo Agrave

razatildeo incauta pode-se solidarizar a incuacuteria da vontade Daiacute a necessidade da aquisiccedilatildeo das virtudes 552 A DEFINICcedilAtildeO DE VIRTUDE COMO HABITUS E MEIO-TERMO DA RAZAtildeO

Neste contexto a virtude humana apresenta-se como uma disposiccedilatildeo estaacutevel para agir (ldquohabitus operativusrdquo) conforme o bem verdadeiro92 Prosseguindo cabe compreender em primeiro lugar que a virtude eacute um habitus porque se as potecircncias naturais satildeo determinadas por seus atos as potecircncias racionais intelectuais ou volitivas como podem tender para vaacuterias coisas 93 satildeo determinadas natildeo por um ato isolado mas por uma disposiccedilatildeo estaacutevel adquirida por muitos atos94 Quando este habitus estaacute

91 Idem Ibidem I-II 8 1 C ldquoAd hoc igitur quod voluntas in aliquid tendat non requiritur quod sit bonum in rei veritate sed quod apprehendatur in ratione boni Et propter hoc philosophus dicit in II Physic quod finis est bonum vel apparens bonumrdquo [O itaacutelico eacute nosso] 92 Idem Ibidem I-II 55 3 C ldquoUnde virtus humana quae est habitus operativus est bonus habitus et boni operativusrdquo ldquoLogo a virtude humana que eacute um haacutebito de accedilatildeo eacute um haacutebito bom e produtor de bemrdquo Idem Ibidem I-II 55 4 C ldquo[] virtus autem est habitus semper se habens ad bonumrdquo ldquoMas a virtude eacute um haacutebito sempre voltado para o bemrdquo 93 Idem Ibidem I-II 55 1 C ldquoPotentiae autem rationales quae sunt propriae hominis non sunt determinatae ad unum sed se habent indeterminate ad multa determinantur autem ad actus per habitus sicut ex supradictis patet Et ideo virtutes humanae habitus suntrdquo ldquomdash Jaacutes as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam indeterminadamente a muitas coisas Ora eacute pelos haacutebitos que elas se determinam aos atos como se mostrou acima Por isso as virtudes humanas satildeo haacutebitosrdquo 94 Idem Ibidem I-II 51 2 C ldquo[] unde ex multiplicatis actibus generatur quaedam qualitas in potentia passiva et mota quae nominatur habitus ldquo[] os atos multiplicados geram na potecircncia passiva e movida uma qualidade que se chama haacutebitordquoIdem Ibidem I-II 51 3 C ldquoManifestum est autem quod principium activum quod est ratio non totaliter potest supervincere appetitivam potentiam in uno actu eo quod appetitiva potentia se habet diversimode et ad multa [] Unde ex hoc non totaliter vincitur appetitiva potentia ut feratur in idem ut in pluribus per modum naturae quod pertinet ad habitum virtutis Et ideo habitus virtutis non potest causari per unum actum sed

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conforme a razatildeo tem-se entatildeo a virtude e os atos da virtude mas se ele discorda da razatildeo tem-se o viacutecio e os atos viciosos 95 Da mesma forma que adquirimos e intensificamos os haacutebitos virtuosos ou viciosos pelas accedilotildees multiplicadas podemos diminuiacute-los e ateacute perdecirc-los pelas mesmas causas a saber os atos voluntaacuterios96 ou mesmo pela inatividade97

O bem do homem segundo vimos coincide com a sua natureza E o peculiar agrave sua natureza eacute a razatildeo Logo a causa e a raiz do bem do homem eacute a razatildeo98 Donde a virtude consistir numa disposiccedilatildeo estaacutevel (habitus) para agir conforme a razatildeo99 Por isso

per multosrdquo ldquoOra eacute manifesto que o princiacutepio ativo que eacute a razatildeo natildeo pode num soacute ato dominar a parte apetitiva porque esta se presta de diversas maneiras a muitas coisas [] E por isso a potecircncia apetitiva natildeo eacute vencida totalmente a ponto de na maioria das vezes ser levada de modo natural para o mesmo objeto o que pertence ao haacutebito da virtude Essa a razatildeo por que esse haacutebito natildeo pode ser causado por um uacutenico ato mas por muitosrdquo 95 Idem Ibidem I-II 54 3 C ldquoUno modo secundum convenientiam ad naturam vel etiam secundum disconvenientiam ab ipsa Et hoc modo distinguuntur specie habitus bonus et malus nam habitus bonus dicitur qui disponit ad actum convenientem naturae agentis habitus autem malus dicitur qui disponit ad actum non convenientem naturae Sicut actus virtutum naturae humanae conveniunt eo quod sunt secundum rationem actus vero vitiorum cum sint contra rationem a natura humana discordant Et sic manifestum est quod secundum differentiam boni et mali habitus specie distinguunturrdquo ldquoA primeira conforme a harmonia ou desarmonia com a natureza E assim se distinguem especificamente o bom haacutebito e o mau pois chama-se bom o haacutebito que dispotildee a atos convenientes agrave natureza do agente e mau o que dispotildee a atos natildeo convenientes a essa natureza como os atos das virtudes convecircm agrave natureza humana quando conformes agrave razatildeo ao passo que os atos viciosos sendo contra a razatildeo estatildeo em desarmonia com essa naturezardquo 96 Idem Ibidem I-II 53 2 C ldquoEt sicut ex eadem causa augentur ex qua generantur ita ex eadem causa diminuuntur ex qua corrumpuntur nam diminutio habitus est quaedam via ad corruptionem sicut e converso generatio habitus est quoddam fundamentum augmenti ipsiusrdquo ldquoE assim como aumentam pela mesma causa que os gera assim tambeacutem diminuem pela mesma causa que os destroacutei pois a diminuiccedilatildeo de um haacutebito eacute o caminho para a sua destruiccedilatildeo e inversamente a geraccedilatildeo do haacutebito eacute uma base para seu crescimentordquo 97 Idem Ibidem I-II 53 3 C ldquoCum autem aliquis non utitur habitu virtutis ad moderandas passiones vel operationes proprias necesse est quod proveniant multae passiones et operationes praeter modum virtutis ex inclinatione appetitus sensitivi et aliorum quae exterius movent Unde corrumpitur virtus vel diminuitur per cessationem ab actu ldquoQuando poreacutem natildeo se utiliza desse haacutebito virtuoso para moderar as paixotildees e accedilotildees muitas delas necessariamente sobreviratildeo sem o comedimento da virtude pela inclinaccedilatildeo do apetite sensitivo e de outros que movem exteriormente e em consequumlecircncia deixando de ser excercida a virtude desaparece ou diminuirdquo 98 Idem Ibidem I-II 66 1 C ldquoManifestum est autem ex dictis quod causa et radix humani boni est ratiordquo ldquo[] a causa e raiz do bem humano eacute a razatildeo []rdquo 99 BOEHNER GILSON Histoacuteria Da Filosofia Cristatilde Desde as Origens ateacute Nicolau de Cusa p 479 ldquoA virtude define-se como uma disposiccedilatildeo ou inclinaccedilatildeo (ldquohabitusrdquo) para agir conformemente agrave

292 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino quando praticada a virtude torna bom natildeo soacute o ato mas o proacuteprio homem pois enquanto aperfeiccediloa os seus atos realiza a sua proacutepria natureza100 jaacute que o agir eacute consecutivo da natureza Assim o ser do homem realiza-se quando este age de acordo com a razatildeo De resto para o ser humano conservar-se no ser eacute manter-se em conformidade com os ditames da razatildeo Neste sentido a praacutetica da virtude que consiste na accedilatildeo em conformidade com a razatildeo produz e conserva a harmonia do ser do homem ldquoDeve-se dizer que o homem eacute propriamente o que eacute pela razatildeo E por isso se diz que algueacutem se conteacutem quando se restringe ao que eacute racionalrdquo101

Ora sendo que a virtude consiste em adequar as paixotildees agrave regra ou medida da razatildeo deve-se considerar que toda regra ou medida pode ser ultrapassada ou simplesmente natildeo ser alcanccedilada Por isso diz-se que a regra ou medida da razatildeo eacute um meio-termo entre o excesso e a falta 102 Mas eacute preciso acrescer que esta

razatildeordquo TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 47 6 C ldquoRespondeo dicendum quod finis virtutum moralium est bonum humanum Bonum autem humanae animae est secundum rationem esse []rdquo ldquoO fim das virtudes morais eacute o bem humano Ora o bem da alma humana eacute estar conformada agrave razatildeo []rdquo 100 Idem Ibidem I-II 55 3 SC ldquoEt philosophus dicit in II Ethic quod virtus est quae bonum facit habentem et opus eius bonum redditrdquo ldquoE o Filoacutesofo diz lsquoA virtude torna bom quem a tem e boas as obras que praticarsquordquo Idem Ibidem II-II 58 3 C ldquoRespondeo dicendum quod virtus humana est quae bonum reddit actum humanum et ipsum hominem bonum facitrdquo ldquoA virtude humana torna bons os atos humanos e o proacuteprio homemrdquo 101 Idem Ibidem II-II 155 1 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod homo proprie est id quod est secundum rationem Et ideo ex hoc dicitur aliquis in seipso se tenere quod tenet se in eo quod convenit rationirdquo 102 Idem Ibidem I-II 64 1 C ldquoMensura autem et regula appetitivi motus circa appetibilia est ipsa ratio Bonum autem cuiuslibet mensurati et regulati consistit in hoc quod conformetur suae regulae sicut bonum in artificiatis est ut consequantur regulam artis Malum autem per consequens in huiusmodi est per hoc quod aliquid discordat a sua regula vel mensura Quod quidem contingit vel per hoc quod superexcedit mensuram vel per hoc quod deficit ab ea sicut manifeste apparet in omnibus regulatis et mensuratis Et ideo patet quod bonum virtutis moralis consistit in adaequatione ad mensuram rationis Manifestum est autem quod inter excessum et defectum medium est aequalitas sive conformitas Unde manifeste apparet quod virtus moralis in medio consistitrdquo ldquoOra a medida e a regra do movimento apetitivo em relaccedilatildeo aos seus objetos eacute a proacutepria razatildeo Por outro lado o bem de tudo o que eacute medido e regulado estaacute em conformar-se agrave sua regra como o bem nas obras artiacutesticas estaacute em seguir as regras da arte Consequumlentemente nesses casos o mal estaacute ao contraacuterio no desacordo de uma coisa com a sua regra ou medida E isso pode acontecer ou porque ela ultrapassa a medida ou porque fica aqueacutem dela como se vecirc claramente em tudo o que eacute medido e regulado E assim eacute oacutebvio que o bem da virtude moral consiste no ajustamento agrave medida da razatildeo

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mediania natildeo eacute uma mediocridade senatildeo o contraacuterio pois ela visa atingir a excelecircncia que eacute conformar as paixotildees agrave regra da razatildeo103

Do quanto dissemos pode parecer que Tomaacutes despreze a parte apetitiva do homem ao dizer que o bem do homem eacute ditado pela sua razatildeo Mas natildeo eacute assim A razatildeo eacute a regra porque eacute ela que nos distingue das outras espeacutecies de animais Poreacutem o homem natildeo eacute soacute inteligente senatildeo que ele apetece as coisas que conhece Assim os atos humanos que seguem o seu ser tambeacutem possuem dois princiacutepios o intelecto e o apetite104 Desta sorte toda virtude que aperfeiccediloe o agir humano inclinando-o para o bem 105 aperfeiccediloa consequentemente um destes dois princiacutepios 106 Quando a virtude aperfeiccediloa o proceder do intelecto mdash seja o especulativo seja o praacutetico mdash chamamo-la virtude intelectual107 Quando a virtude aperfeiccediloa o apetite denominamo-la virtude moral108 Para a nossa temaacutetica basta atermo-nos agraves virtudes morais E entre elas haacute as virtudes cardeais das quais procedem todas as outras As virtudes cardeais satildeo a prudecircncia que embora

mdash Mas evidentemente entre o excesso e o defeito o meio eacute a igualdade ou a conformidade e por isso eacute claro que a virtude moral consiste no meio-termordquo 103 Idem Ibidem I-II 64 1 ad 1 ldquoUnde philosophus dicit in II Ethic quod virtus secundum substantiam medietas est inquantum regula virtutis ponitur circa propriam materiam secundum optimum autem et bene est extremitas scilicet secundum conformitatem rationisrdquo ldquoAssim se entende por que o Filoacutesofo ensina que lsquoa virtude em sua substacircncia estaacute no meiorsquo enquanto impotildee regra agrave sua proacutepria mateacuteria mas lsquoeacute um extremo no que ela tem de melhor e perfeitorsquo isto eacute enquanto conforme agrave razatildeordquo 104 Idem Ibidem I-II 58 3 C ldquoPrincipium autem humanorum actuum in homine non est nisi duplex scilicet intellectus sive ratio et appetitu []rdquo ldquoOra os atos humanos soacute tecircm dois princiacutepios ou seja o intelecto ou razatildeo e o apetiterdquo 105 Idem Ibidem ldquoRespondeo dicendum quod virtus humana est quidam habitus perficiens hominem ad bene operandumrdquo ldquoA virtude humana eacute um haacutebito que aperfeiccediloa o homem para proceder bemrdquo 106 Idem Ibidem ldquoUnde omnis virtus humana oportet quod sit perfectiva alicuius istorum principiorumrdquo ldquoEacute preciso pois que toda virtude humana aperfeiccediloe um desses dois princiacutepiosrdquo 107 Idem Ibidem ldquoSi quidem igitur sit perfectiva intellectus speculativi vel practici ad bonum hominis actum erit virtus intellectualis []rdquo ldquoSe for virtude que aperfeiccediloa o intelecto especulativo ou praacutetico para o bom agir do homem a virtude seraacute intelectual []rdquo 108 Idem Ibidem ldquo[] si autem sit perfectiva appetitivae partis erit virtus moralis []rdquo ldquo[] se aperfeiccediloar a potecircncia apetitiva seraacute virtude moral []rdquo

294 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino sendo uma virtude intelectual rege ou dirige as demais virtudes morais a justiccedila a temperanccedila e a fortaleza Resume o Aquinate

Sintetizando portanto toda a mateacuteria moral no estudo das virtudes podemos reduzir todas as virtudes a sete trecircs teologais que abordaremos em primeiro lugar (q 1-46) e quatro cardeais que trataremos em seguida Entre as virtudes intelectuais uma delas eacute a prudecircncia que se arrola e enumera entre as virtudes cardeais (q 47-56) [] Quanto agraves outras virtudes morais todas se reduzem de algum modo agraves virtudes cardeais como estaacute claro pelo que acima foi dito109

Arrazoaremos mais abaixo sobre as virtudes cardeais jaacute

que as virtudes teologais pertencem ao acircmbito estritamente teoloacutegico Antes poreacutem de passarmos ao toacutepico das virtudes cardeais cabe esclarecermos algo Eacute caro a Tomaacutes o tema da conexatildeo das virtudes de tal sorte que quem natildeo possui por exemplo a prudecircncia tampouco possuiraacute as demais virtudes morais 553 A CONEXAtildeO DAS VIRTUDES

Com o fito de situarmos bem esta questatildeo cumpre termos em mente alguns dados jaacute arrolados neste texto Sabemos que

109 Idem Ibidem II-II Proacutelogo ldquoSic igitur tota materia morali ad considerationem virtutum reducta omnes virtutes sunt ulterius reducendae ad septem quarum tres sunt theologicae de quibus primo est agendum aliae vero quatuor sunt cardinales de quibus posterius agetur Virtutum autem intellectualium una quidem est prudentia quae inter cardinales virtutes continetur et numeratur ars vero non pertinet ad moralem quae circa agibilia versatur cum ars sit recta ratio factibilium ut supra dictum est aliae vero tres intellectuales virtutes scilicet sapientia intellectus et scientia communicant etiam in nomine cum donis quibusdam spiritus sancti unde simul etiam de eis considerabitur in consideratione donorum virtutibus correspondentium Aliae vero virtutes morales omnes aliqualiter reducuntur ad virtutes cardinales ut ex supradictis patet unde in consideratione alicuius virtutis cardinalis considerabuntur etiam omnes virtutes ad eam qualitercumque pertinentes et vitia opposita Et sic nihil moralium erit praetermissumrdquo Idem Ibidem II-II 123 23 C ldquoUnde inter virtutes cardinales prudentia est potior secunda iustitia tertia fortitudo quarta temperantia Et post has ceterae virtutesrdquo ldquoDaiacute a seguinte classificaccedilatildeo das virtudes cardeais primeiro a prudecircncia segundo a justiccedila terceiro a fortaleza quarto a temperanccedila Depois vecircm as outras virtudesrdquo

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apoacutes o pecado de origem embora quanto agrave sua essecircncia a nossa natureza tenha permanecido iacutentegra natildeo se pode negar que o exerciacutecio das virtudes tornou-se claudicante por causa do divoacutercio estabelecido entre os apetites inferiores e a razatildeo De modo que nem o concupisciacutevel eacute facilmente temperado nem o irasciacutevel se deixa sem mais moderar-se pela fortaleza Assim o homem tende a ser subjugado pelo concupisciacutevel e irasciacutevel Ademais estabeleceu-se mesmo entre razatildeo e vontade uma rebeliatildeo uma vez que a vontade apoacutes a queda dos nossos primeiros pais tende a pelejar contra a razatildeo a fim de ceder aos caprichos dos apetites inferiores Pelo que o Aquinate conclui que se no estado de integridade era possiacutevel a praacutetica das virtudes naturais sem o auxiacutelio da graccedila no estado atual mesmo no que toca ao plano natural o auxiacutelio da graccedila eacute requerido Algumas passagens emblemaacuteticas e particularmente elucidativas podem ser citadas com proveito

Portanto deve-se dizer que se a natureza humana tivesse permanecido iacutentegra prevaleceria nela a inclinaccedilatildeo da razatildeo Mas na natureza corrompida o que prevalece eacute a inclinaccedilatildeo da concupiscecircncia que domina no homem Por esta razatildeo o homem eacute mais inclinado a suportar sofrimentos por causa daquilo em que a concupiscecircncia encontra seu prazer desde agora do que a aturar adversidades em vista de bens futuros desejados segundo a razatildeo110

No estado de integridade com respeito agrave capacidade da potecircncia operativa o homem podia com suas forccedilas naturais querer e fazer o bem proporcionado agrave sua natureza como eacute o bem da virtude adquirida mas natildeo um bem que a ultrapassa como eacute o bem da virtude infusa No estado de corrupccedilatildeo o homem falha naquilo que lhe eacute possiacutevel pela sua natureza a tal ponto que ele

110 Idem Ibidem II-II 136 3 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod in natura humana si esset integra praevaleret inclinatio rationis sed in natura corrupta praevalet inclinatio concupiscentiae quae in homine dominatur Et ideo pronior est homo ad sustinendum mala in quibus concupiscentia delectatur praesentialiter quam tolerare mala propter bona futura quae secundum rationem appetuntur quod tamen pertinet ad veram patientiamrdquo

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natildeo pode mais por suas forccedilas naturais realizar totalmente o bem proporcionado agrave sua natureza111

Assim no estado de integridade o homem tinha necessidade de uma forccedila acrescentada gratuitamente agravequela de sua natureza unicamente para realizar e querer o bem sobrenatural No estado de corrupccedilatildeo tem necessidade disso para duas coisas primeiro para que seja curado e depois para realizar o bem da ordem sobrenatural isto eacute o bem meritoacuterio112

Daiacute para Tomaacutes ser imperioso que ateacute para que

cumpramos integralmente o bem que nos eacute conatural tenhamos o auxiacutelio da virtude teologal da caridade E isso natildeo nos deve causar espanto pois Tomaacutes eacute um teoacutelogo cristatildeo para ele o fim absolutamente uacuteltimo do homem eacute a visatildeo beatiacutefica de Deus Ora este fim ultrapassa o que eacute devido agrave nossa natureza Desta sorte soacute podemos alcanccedilaacute-lo se formos socorridos pela caridade que eacute uma virtude natildeo adquirida mas infusa Sem ela as demais virtudes natildeo se encontram dispostas a nos ordenar ao nosso fim verdadeiramente uacuteltimo Estamos no limiar de uma moral teoloacutegica Neste sentido eacute interessante coligirmos algumas passagens que atestem isso

Deve-se dizer que o fim eacute na accedilatildeo o que eacute o princiacutepio no conhecimento especulativo Assim como natildeo pode haver ciecircncia absolutamente verdadeira sem uma exata avaliaccedilatildeo do princiacutepio primeiro e indemonstraacutevel assim tambeacutem natildeo pode haver absolutamente verdadeira justiccedila ou verdadeira castidade se

111 Idem Ibidem I-II 109 2 C ldquoSed in statu naturae integrae quantum ad sufficientiam operativae virtutis poterat homo per sua naturalia velle et operari bonum suae naturae proportionatum quale est bonum virtutis acquisitae non autem bonum superexcedens quale est bonum virtutis infusae Sed in statu naturae corruptae etiam deficit homo ab hoc quod secundum suam naturam potest ut non possit totum huiusmodi bonum implere per sua naturaliardquo 112 Idem Ibidem ldquoSic igitur virtute gratuita superaddita virtuti naturae indiget homo in statu naturae integrae quantum ad unum scilicet ad operandum et volendum bonum supernaturale Sed in statu naturae corruptae quantum ad duo scilicet ut sanetur et ulterius ut bonum supernaturalis virtutis operetur quod est meritorium Ulterius autem in utroque statu indiget homo auxilio divino ut ab ipso moveatur ad bene agendumrdquo

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faltar a ordenaccedilatildeo devida para o fim produzida pela caridade embora algueacutem se comporte com retidatildeo em tudo o mais113

Deve-se dizer que a caridade eacute comparada ao fundamento e agrave raiz por nela se sustentarem e nutrirem todas as outras virtudes mas natildeo no sentido em que fundamento e raiz tecircm razatildeo de causa material114

Deve-se dizer que a caridade eacute considerada o fim das outras virtudes porque as ordena para o seu fim proacuteprio E sendo a matildee a que concebe em si mesma por um outro pode-se dizer que a caridade eacute a matildee das outras virtudes porque pelo desejo do fim uacuteltimo concebe os atos das demais virtudes imperando-os115

Eacute digno de nota que em toda esta argumentaccedilatildeo Tomaacutes

nunca perde de vista que haacute uma perfeiccedilatildeo quanto ao tempo tal como a discriminamos no terceiro capiacutetulo Esta perfeiccedilatildeo proacutepria agrave ordem natural podemos vivenciaacute-la sem precisar necessariamente praticar com heroiacutesmo todas as virtudes naturais isto eacute sem precisar por uma necessidade absoluta da graccedila Com efeito tantos pagatildeos chegaram a esta perfeiccedilatildeo Em outros termos para a perfeiccedilatildeo que requer a vida na civitas eacute suficiente que pratiquemos as virtudes morais o quanto for necessaacuterio para a convivecircncia entre os homens deixando de lado aqueles viacutecios que tolhem a coexistecircncia harmoniosa que a vida em comum exige Tomaacutes prevecirc esta perfeiccedilatildeo

113 Idem Ibidem II-II 23 7 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod cum finis se habeat in agibilibus sicut principium in speculativis sicut non potest esse simpliciter vera scientia si desit recta aestimatio de primo et indemonstrabili principio ita non potest esse simpliciter vera iustitia aut vera castitas si desit ordinatio debita ad finem quae est per caritatem quantumcumque aliquis se recte circa alia habeatrdquo 114 Idem Ibidem II-II 23 8 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod caritas comparatur fundamento et radici inquantum ex ea sustentantur et nutriuntur omnes aliae virtutes et non secundum rationem qua fundamentum et radix habent rationem causae materialisrdquo 115 Idem Ibidem II-II 23 8 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod caritas dicitur finis aliarum virtutum quia omnes alias virtutes ordinat ad finem suum Et quia mater est quae in se concipit ex alio ex hac ratione dicitur mater aliarum virtutum quia ex appetitu finis ultimi concipit actus aliarum virtutum imperando ipsosrdquo

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Eacute evidente pois pelo que foi dito que soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e de modo absoluto devem ser chamadas virtudes porque ordenam bem o homem ao fim absolutamente uacuteltimo As outras virtudes ou seja as adquiridas satildeo virtudes em sentido relativo e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem a um fim uacuteltimo natildeo em sentido absoluto mas soacute em determinado gecircnero []116

Kenny confirma este entendimento ao afirmar que esta

linha de argumentaccedilatildeo justifica-se e autoriza-nos a falar de uma eacutetica tomasiana que pode ser lida por qualquer filoacutesofo secular

Somente aqueles que partilham da feacute de Sto Tomaacutes na visatildeo beatiacutefica como culminaccedilatildeo de uma vida virtuosa podem ingressar completamente no sistema moral que ele apresenta Mas em grande parte graccedilas ao suporte aristoteacutelico de sua reflexatildeo moral muito de sua reflexatildeo de toacutepicos morais individuais eacute altamente instrutivo tambeacutem para o filoacutesofo secular117

Ora estes ldquotoacutepicos morais individuaisrdquo que podem ser

ldquoaltamente instrutivosrdquo ao filoacutesofo secular satildeo a nosso ver as virtudes cardeais Assim a conexatildeo das virtudes natildeo implica que a ordem proacutepria de cada uma seja suprimida

Como filosofia e teologia distintas mas conexas representam dois graus de conhecimento cada um autocircnomo mas ordenado ao outro assim as virtudes naturais mantecircm todo o seu valor e a sua autonomia embora o seu fim terreno deva ser ordenado ao fim superior e supremo da beatitude eterna118

116 Idem Ibidem I-II 65 2 C ldquoPatet igitur ex dictis quod solae virtutes infusae sunt perfectae et simpliciter dicendae virtutes quia bene ordinant hominem ad finem ultimum simpliciter Aliae vero virtutes scilicet acquisitae sunt secundum quid virtutes non autem simpliciter ordinant enim hominem bene respectu finis ultimi in aliquo genere non autem respectu finis ultimi simpliciterrdquo 117 KENNY Op Cit p 300 118 VASOLI Op Cit p 310 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCome filosofia e teologia distinte ma connesse rappresentano due gradi di conoscenza ognuno autonomo ma lrsquouno ordinato allrsquoaltro cosiacute anche le virtuacute naturali mantengono tutto il loro valore e la loro autonomia anche se il loro fine terreno devrsquoessere ordinato al fine superiore e supremo della beatitudine eternardquo

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Chegamos assim agrave certeza de que na siacutentese de Tomaacutes as virtudes eacuteticas naturais tecircm a sua autonomia salvaguardada Elas seratildeo o resultado de uma boa ldquopoliacuteticardquo da nossa razatildeo e vontade com os nossos apetites inferiores No resumo que se segue elencaremos apenas as definiccedilotildees das virtudes cardeais sugerindo alguns exemplos119 554 AS VIRTUDES CARDEAIS

Entre as virtudes cardeais a primeira eacute a prudecircncia A ela cabe aperfeiccediloar o uso praacutetico e adequado de um conhecimento jaacute adquirido Na verdade a prudecircncia consiste na reta razatildeo do que deve ser feito Como trata de accedilotildees circunstanciais e contingentes e como consiste na reta razatildeo do agir120 mais do que aperfeiccediloar a deliberaccedilatildeo ou a eleiccedilatildeo a prudecircncia aperfeiccediloa o impeacuterio o qual ordena que faccedilamos o que devemos fazer e precede imediatamente a accedilatildeo Destarte a prudecircncia precipuamente faz com que decidamos bem o que devemos fazer hic et nunc121 Em razatildeo

119 Natildeo caberia reiteramos discorrer sobre as virtudes teologais Natildeo obstante os tratados consagrados a elas sejam ricos de conceitos filosoacuteficos por se tratarem de virtudes infusas e natildeo adquiridas entendemos que elas pertencem ao menos em Tomaacutes a um discurso estritamente teoloacutegico De todo modo houve quem magistralmente soube perceber as riquezas filosoacuteficas escondidas nos tratados dedicados agraves virtudes teologais PIEPER Josef Crer Esperar e Amar Antropologia do Crer Trad Luiz Jean Lauand Disponiacutevel em lthttpsformadorcatolicowordpresscom20160922crer-esperar-e-amargt 120 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 57 4 C ldquoCuius differentiae ratio est quia ars est recta ratio factibilium prudentia vero est recta ratio agibiliumrdquo ldquoA razatildeo dessa diferenccedila eacute que a arte eacute a lsquorazatildeo reta das coisas factiacuteveisrsquo enquanto que a prudecircncia eacute lsquoa razatildeo reta de nosso agirrsquordquo 121 Idem Ibidem II-II 47 8 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est recta ratio agibilium ut supra dictum est Unde oportet quod ille sit praecipuus actus prudentiae qui est praecipuus actus rationis agibilium Cuius quidem sunt tres actus Quorum primus est consiliari quod pertinet ad inventionem nam consiliari est quaerere ut supra habitum est Secundus actus est iudicare de inventis et hic sistit speculativa ratio Sed practica ratio quae ordinatur ad opus procedit ulterius et est tertius actus eius praecipere qui quidem actus consistit in applicatione consiliatorum et iudicatorum ad operandum Et quia iste actus est propinquior fini rationis practicae inde est quod iste est principalis actus rationis practicae et per consequens prudentiaerdquo ldquoA prudecircncia eacute a reta razatildeo do que deve ser feito jaacute foi dito Portanto eacute necessaacuterio que o ato principal da prudecircncia seja o ato principal da razatildeo orientado ao que deve ser feito Nela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ao qual compete a descoberta porque deliberar eacute procurar como foi dito acima O segundo ato eacute o julgamento relativo ao que foi descoberto o que eacute funccedilatildeo da razatildeo especulativa Mas

300 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino disso ela eacute uma virtude especialiacutessima porque se ldquoO fim das virtudes morais eacute o bem humanordquo122 e o bem da vida humana consiste na accedilatildeo ldquo[] estar conformada agrave razatildeordquo123 uma vez que a prudecircncia eacute a reta razatildeo do agir ldquoA prudecircncia eacute a virtude mais necessaacuteria agrave vida humana pois viver bem consiste em agir bemrdquo124 Ademais sendo recta ratio agibilium a prudecircncia torna-se de algum modo o fim proacuteprio de toda virtude moral125

Como a decisatildeo prudencial consagra as etapas anteriores que estruturam o ato humano pois realiza de modo benfazejo a intersecatildeo entre elas Carlos Josaphat celebra a prudecircncia como a virtude que integra o homem consigo mesmo ldquoO ser humano prudente eacute como um soberano que manda em seu reino interiorrdquo126 Natildeo soacute mas sendo que os nossos atos e as suas consequecircncias atingem aqueles e aquilo que estatildeo sob nosso governo ou dependem de noacutes pode-se dizer que a prudecircncia tambeacutem realiza uma conjunccedilatildeo harmoniosa dos homens uns com os outros e com as coisas ldquoSer prudente eacute bem governar bem governar-se e bem governar aqueles e aquilo que depende de noacutesrdquo127 Todos estes dados convergem para a seguinte definiccedilatildeo de prudecircncia ldquo[] a virtude do governo de si e dos outrosrdquo128 sempre com o objetivo de levar o outro a unificar-se

a razatildeo praacutetica ordenada agrave accedilatildeo efetiva vai mais longe e eacute seu terceiro ato comandar Este ato consiste em aplicar agrave accedilatildeo o resultado obtido na descoberta e no julgamento E porque este ato estaacute mais proacuteximo do fim da razatildeo praacutetica segue-se que este eacute o ato principal da razatildeo praacutetica e consequumlentemente da prudecircnciardquo 122 Idem Ibidem II-II 47 6 C ldquoRespondeo dicendum quod finis virtutum moralium est bonum humanumrdquo 123 Idem Ibidem ldquoBonum autem humanae animae est secundum rationem esse []rdquo 124 Idem Ibidem I-II 57 5 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est virtus maxime necessaria ad vitam humanam Bene enim vivere consistit in bene operarirdquo 125 Idem Ibidem II-II 47 7 C ldquoRespondeo dicendum quod hoc ipsum quod est conformari rationi rectae est finis proprius cuiuslibet moralis virtutis []rdquo ldquoA conformidade com a reta razatildeo eacute o fim proacuteprio de toda virtude moralrdquo 126 JOSAPHAT Op Cit p 568 127 Idem Op Cit 128 Idem Op Cit p 570

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Outra virtude cardeal eacute a justiccedila Como a qualquer outra virtude tambeacutem a ela cabe tornar bons os atos humanos129 E o ato humano soacute eacute bom quando estiver conforme a razatildeo130 Ora justiccedila designa igualdade e nada eacute igual a si mesmo131 Destarte agrave virtude da justiccedila compete ordenar as nossas relaccedilotildees com os outros132 Ela consiste em fazer com que cada qual decirc ao outro o que lhe eacute devido133

No que toca estritamente agrave virtude cardeal da justiccedila haacute duas espeacutecies134 a justiccedila comutativa que abrange toda sorte de intercacircmbios realizados entre as partes de um todo social por exemplo entre duas pessoas 135 e a justiccedila distributiva que abrange toda forma de relaccedilatildeo que o todo estabelece com as suas partes136 No caso da justiccedila distributiva ela se realiza quando

129 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 58 3 C ldquoUnde cum iustitia operationes humanas rectificet manifestum est quod opus hominis bonum redditrdquo ldquoOra como a justiccedila retifica as accedilotildees humanas eacute claro que as torna boasrdquo 130 Idem Ibidem ldquoActus enim hominis bonus redditur ex hoc quod attingit regulam rationis secundum quam humani actus rectificanturrdquo ldquoPois o ato humano se torna bom ao atingir a regra da razatildeo que o retificardquo 131 Idem Ibidem II-II 58 2 C ldquo[] nihil enim est sibi aequale sed alteri []rdquo ldquoPois nada eacute igual a si mesmo mas a um outrordquo 132 Idem Ibidem ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est cum nomen iustitiae aequalitatem importet ex sua ratione iustitia habet quod sit ad alterum []rdquo ldquo[] o nome de justiccedila implica igualdade por isso em seu conceito mesmo a justiccedila comporta relaccedilatildeo com outremrdquo 133 Idem Ibidem I-II 60 3 C ldquo[] iustitiam enim pertinere videtur ut quis debitum reddat []rdquo ldquo[] cabe agrave justiccedila parece pagar a cada um o que deverdquo 134 Idem Ibidem II-II 61 1 C ldquoEt ideo duae sunt iustitiae species scilicet commutativa et distributivardquo ldquoHaacute portanto duas espeacutecies de justiccedila a comutativa e a distributivardquo Tomaacutes fala ainda de uma justiccedila geral que consiste em ordenar as relaccedilotildees dos membros com o todo social E como este ordenamento eacute estabelecido pelas leis chama-se esta justiccedila tambeacutem justiccedila legal Idem Ibidem II-II 58 5 C ldquoEt quia ad legem pertinet ordinare in bonum commune ut supra habitum est inde est quod talis iustitia praedicto modo generalis dicitur iustitia legalis []rdquo ldquoE como compete agrave lei ordenar o homem ao bem comum como jaacute foi dito essa justiccedila geral eacute chamada legal []rdquo 135 Idem Ibidem II-II 61 1 C ldquoUnus quidem partis ad partem cui similis est ordo unius privatae personae ad aliam Et hunc ordinem dirigit commutativa iustitia quae consistit in his quae mutuo fiunt inter duas personas ad invicemrdquo Uma de parte a parte agrave qual corresponde a relaccedilatildeo de uma pessoa privada a oura Tal relaccedilatildeo eacute dirigida pela justiccedila comutativa que visa o intercacircmbio muacutetuo entre duas pessoasrdquo 136 Idem Ibidem ldquoAlius ordo attenditur totius ad partes et huic ordini assimilatur ordo eius quod est commune ad singulas personas Quem quidem ordinem dirigit iustitia distributiva quae est

302 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ocorre uma igualdade de proporcionalidade geomeacutetrica isto eacute quando o que preside daacute a cada qual o que lhe eacute devido do que eacute comum segundo a sua relevacircncia para o bem comum137 no caso da justiccedila comutativa que se daacute entre iguais deve-se estabelecer uma igualdade aritmeacutetica a saber quantitativa138

Mas os deacutebitos satildeo diversos Logo agrave virtude da justiccedila se anexam outras virtudes conforme os diferentes tipos de deacutebitos existentes139 Por exemplo pela virtude da religiatildeo buscamos dar a Deus o que lhe eacute devido por nos ter criado pela piedade endereccedilamos o nosso amor aos pais e agrave paacutetria pela gratidatildeo dedicamos aos nossos benfeitores uma disposiccedilatildeo de habitual solicitude140

distributiva communium secundum proportionalitatemrdquo ldquoA outra relaccedilatildeo eacute do todo agraves partes a ela se assemelha a relaccedilatildeo entre o que eacute comum e cada uma das pessoas A esta segunda relaccedilatildeo se refere a justiccedila distributiva que reparte o que eacute comum de maneira proporcionalrdquo 137 Idem Ibidem II-II 61 2 C ldquoEt ideo in iustitia distributiva non accipitur medium secundum aequalitatem rei ad rem sed secundum proportionem rerum ad personas ut scilicet sicut una persona excedit aliam ita etiam res quae datur uni personae excedit rem quae datur alii Et ideo dicit philosophus quod tale medium est secundum geometricam proportionalitatem in qua attenditur aequale non secundum quantitatem sed secundum proportionemrdquo ldquoAssim na justiccedila distributiva o meio-termo natildeo se considera por uma igualdade de coisa a coisa poreacutem segundo uma proporccedilatildeo das coisas agraves pessoas de sorte que se uma pessoa eacute superior agrave outra assim tambeacutem o que lhe eacute dado excederaacute o que eacute dado agrave outra Por isso o Filoacutesofo declara que esse meio-termo se considera segundo uma lsquoproporcionalidade geomeacutetricarsquo em que a igualdade natildeo eacute de quantidade mas de proporccedilatildeordquo 138 Idem Ibidem ldquoSed in commutationibus redditur aliquid alicui singulari personae propter rem eius quae accepta est ut maxime patet in emptione et venditione in quibus primo invenitur ratio commutationis Et ideo oportet adaequare rem rei ut quanto iste plus habet quam suum sit de eo quod est alterius tantundem restituat ei cuius est Et sic fit aequalitas secundum arithmeticam medietatem quae attenditur secundum parem quantitatis excessum []rdquo ldquoAo contraacuterio nas comutaccedilotildees daacute-se algo a uma pessoa particular por causa de uma coisa que dela se recebeu o que eacute da maior evidecircncia nas compras e vendas nas quais primeiro se manifesta a noccedilatildeo de comutaccedilatildeo Eacute entatildeo necessaacuterio igualar uma coisa agrave outra E assim se algueacutem guarda aleacutem do que eacute seu um tanto de outrem deve restituir-lhe exatamente essa diferenccedila Dessa forma se realiza a igualdade segundo uma meacutedia lsquoaritmeacuteticarsquo estabelecida por um excedente quantitativo igual []rdquo 139 Idem Ibidem I-II 60 3 C ldquoSed debitum non est unius rationis in omnibus [] Et secundum has diversas rationes debiti sumuntur diversae virtutes []rdquo ldquomdash Mas a razatildeo de deacutebito natildeo eacute a mesma em todas as situaccedilotildees [] E a essas diferentes razotildees de deacutebito correspondem diferentes virtudesrdquo 140 Idem Ibidem ldquo[] puta religio est per quam redditur debitum Deo pietas est per quam redditur debitum parentibus vel patriae gratia est per quam redditur debitum benefactoribus et sic de aliisrdquo ldquoPor exemplo a religiatildeo eacute a virtude pela qual damos a Deus o que lhes eacute devido a piedade pela qual damos aos pais e agrave paacutetria o que lhe eacute devido a gratidatildeo aos benfeitores e assim tambeacutem as demais virtudesrdquo

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Quando falamos de justiccedila eacute importante natildeo nos esquecermos de que estamos a falar realmente de uma virtude e natildeo de um mero cumprimento de leis ou obrigaccedilotildees Trata-se para Tomaacutes de uma vontade habitual mdash constante e perpeacutetua mdash de dar a cada um o que lhe eacute de direito141 Neste sentido a justiccedila se apresenta como a descoberta do outro enquanto detentor de direitos ela eacute pois a vitoacuteria sobre o egocentrismo142 Acerca deste toacutepico natildeo podemos senatildeo ceder a palavra a Carlos Josaphat

O sentido da justiccedila se constitui e se afirma primordialmente como o ldquosentido do outrordquo Na evoluccedilatildeo na marcha para a plena humanizaccedilatildeo de cada indiviacuteduo e de toda a sociedade emerge e haacute de dominar a percepccedilatildeo a aceitaccedilatildeo do outro O outro surge e haacute de ser reconhecido natildeo apenas na sua diferenccedila do eu que o considera mas tambeacutem na sua originalidade singular no seu valor incomparaacutevel de ser humano O ldquooutrordquo passa a ser visto e acatado como ldquogenterdquo [] Na sua verdade e densidade humanas agrave luz do sentido eacutetico da justiccedila mdash o ldquooutrordquo eacute reconhecido e aceito como uma ldquopessoardquo []143

Agrave temperanccedila mdash outra virtude cardeal mdash cumpre regular os

nossos atos internos para que natildeo se rendam ao iacutempeto das

141 Idem Ibidem II-II 58 1 C ldquoEt si quis vellet in debitam formam definitionis reducere posset sic dicere quod iustitia est habitus secundum quem aliquis constanti et perpetua voluntate ius suum unicuique tribuitrdquo ldquoPara dar a essa definiccedilatildeo sua devida forma bastaria dizer lsquoA justiccedila eacute o haacutebitus pelo qual com vontade constante e perpeacutetua se daacute a cada um o seu direitorsquordquo 142 JOSAPHAT Op Cit p 580 ldquoA justiccedila emerge assim como uma conquista como um triunfo constante sobre todo apetite ou desejo que torne o homem escravo das coisas e do seu egocentrismordquo PIEPER Josef As virtudes fundamentais Trad Narino e Silva e Beckert da Assumpccedilatildeo Editorial Aster Lisboa 1960 p 93 ldquoDistinguir o proacuteprio do alheio mdash isso eacute a justiccedilardquo [O itaacutelico eacute nosso] 143 JOSAPHAT Op Cit pp 585-586 Josef Pieper quando estuda a justiccedila comutativa daacute uma definiccedilatildeo de justiccedila menos vibrante mas natildeo menos de acordo com o pensamento de Tomaacutes PIEPER As virtudes fundamentais p 111 ldquoO que isto quer dizer sem romantismos e sem ilusotildees eacute que a exigecircncia contida na ideia de uma iustitia commutativa consiste em reconhecer precisamente o estranho mdash o semelhante que na realidade eacute estranho ou eacute por noacutes interiormente sentido como tal e talvez ateacute dum momento para o outro por noacutes visto como uma lsquoconcorrecircnciarsquo ou uma ameaccedila aos nossos proacuteprios interesses o estranho a quem nada se pede de quem natildeo se gosta a quem natildeo ocorre oferecer coisa alguma e ao qual tem antes de se oferecer resistecircncia mdash para lhe dar soacute o que lhe pertence nada menos e nada mais isto eacute a justiccedilardquo [O segundo itaacutelico eacute nosso]

304 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino paixotildees que costumam inclinar-nos para o que eacute contraacuterio agrave razatildeo144 Jaacute agrave fortaleza pertence firmar as nossas accedilotildees no que eacute racional natildeo permitindo que o temor do perigo ou o medo do sofrimento nos impeccedilam de agir conforme a reta razatildeo145 Assim temos que a temperanccedila educa o concupisciacutevel a fortaleza o irasciacutevel Longe pois de suprimir a nossa sensibilidade as virtudes morais conduzem-nos a um uso disciplinado dela

Agora seria a ocasiatildeo de passarmos a tratar de cada uma das virtudes cardeais dos viacutecios opostos etc Contudo natildeo tencionamos isso Aqui apenas elencaremos algumas notas Para exemplificar falaremos da crueldade e da ferocidade bem como do assalto das paixotildees desordenadas na aprendizagem Crueldade vem de crueza146 Satildeo ditos crueacuteis aqueles que embora tendo motivos para punir algueacutem natildeo tecircm medida ao fazecirc-lo147 Tomaacutes afirma ldquoA crueldade ao contraacuterio visa agrave culpa daquele que eacute castigado mas se excede no modo de punirrdquo148 Jaacute a ferocidade recebe este nome pela semelhanccedila que os que a possuem tecircm com as feras 149 Diferentemente dos crueacuteis os ferozes punem natildeo

144 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 61 2 C ldquoUno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantiardquo ldquo[] quando a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos de temperanccedila []rdquo 145 Idem Ibidem ldquoAlio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo ldquo[] quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortalezardquo 146 Idem Ibidem II-II 159 1 C ldquoRespondeo dicendum quod nomen crudelitatis a cruditate sumptum esse videturrdquo ldquoCrueldade eacute palavra que parece derivada de cruezardquo 147 Idem Ibidem II-II 157 1 ad 3 ldquoUnde dicit Seneca in II de Clem quod crudeles vocantur qui puniendi causam habent modum non habentrdquo ldquoPor isso diz Secircneca lsquochamam-se crueacuteis os que tecircm motivo para punir mas natildeo tecircm medidas no fazecirc-lordquo 148 Idem Ibidem II-II 159 2 C ldquoSed crudelitas attendit culpam in eo qui punitur sed excedit modum in puniendordquo 149 Idem Ibidem ldquoRespondeo dicendum quod nomen saevitiae et feritatis a similitudine ferarum accipitur quae etiam saevae dicuntur Huiusmodi enim animalia nocent hominibus ut ex eorum corporibus pascantur non ex aliqua iustitiae causa cuius consideratio pertinet ad solam rationemrdquo ldquoOs termos lsquoseviacuteciarsquo e lsquoferocidadersquo vecircm da semelhanccedila com as feras tambeacutem chamadas sevas pois

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visando agrave culpa mas somente ao prazer de ver o sofrimento alheio 150 Raciocina Tomaacutes este prazer natildeo eacute humano mas animalesco ldquoTrata-se eacute claro de uma bestialidade pois esse prazer natildeo eacute humano mas de ferasrdquo151 Noutro lugar o Aquinate precisa que os que gostam de castigar os seus semelhantes sem razatildeo assemelham-se agraves feras por natildeo terem o natural sentimento de amor que todo homem deve ter por outro homem Por isso satildeo chamados ferozes

E quanto aos que gostam de castigar os outros mesmo sem motivo pode-se chamaacute-los de selvagens ou ferozes por natildeo terem aquele sentimento humano pelo qual o homem ama naturalmente o homem152

Nosso pensador acena ainda para os males que uma

sensibilidade malsatilde pode causar impedindo inclusive a educaccedilatildeo e a convivecircncia na civitas Por exemplo quando natildeo moderadas pela razatildeo as paixotildees podem causar bloqueio agrave proacutepria aprendizagem Assim quem natildeo se conteacutem e provoca excessiva dor e tristeza ao estudante acaba prejudicando a sua aprendizagem pois ningueacutem pode aprender algo novo sentindo muita dor e se a dor for realmente muito intensa inabilita ateacute

esses animais atacam os homens para se alimentarem com sua carne e natildeo o fazem por alguma causa justa cuja consideraccedilatildeo se refere unicamente agrave razatildeordquo 150 Idem Ibidem ldquoEt ideo proprie loquendo feritas vel saevitia dicitur secundum quam aliquis in poenis inferendis non considerat aliquam culpam eius qui punitur sed solum hoc quod delectatur in hominum cruciaturdquo ldquo[] a ferocidade ou seviacutecia eacute atribuiacuteda aos que ao punirem algueacutem natildeo visam agrave culpa da pessoa mas soacute ao proacuteprio prazer do sofrimento alheiordquo 151 Idem Ibidem ldquoEt sic patet quod continetur sub bestialitate nam talis delectatio non est humana sed bestialis []rdquo 152 Idem Ibidem II-II 157 1 ad 3 ldquoQui autem in poenis hominum propter se delectantur etiam sine causa possunt dici saevi vel feri quasi affectum humanum non habentes ex quo naturaliter homo diligit hominemrdquo

306 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mesmo a memoacuteria do que jaacute foi aprendido153 Pode-se pensar que com dor nem o professor pode lecionar sobre o que sabe

Tambeacutem eacute evidente que para aprender algo novo se exige estudo e esforccedilo com grande atenccedilatildeo [] Por isso se a dor for intensa o homem eacute impedido de poder aprender E a dor pode intensificar-se a ponto de natildeo permitir enquanto dura que o homem pense em coisas que aprendera antes154

Se a dor ou tristeza eacute moderada pode acidentalmente ajudar a aprender enquanto retira o excesso de prazeres Mas por si impede o estudo e se for intensa suprime de todo155

Tomaacutes mdash professor que sempre foi mdash considera um viacutecio o

haacutebito daqueles que corrigem os outros com menoscabo difamando-os ou inquietando-os Resoluto sobre estes sentencia ldquoAo contraacuterio eacute vicioso reparar nos erros do proacuteximo para menosprezaacute-lo difamaacute-lo ou simplesmente inquietaacute-lo sem proveito algumrdquo156 Decerto que a correccedilatildeo eacute necessaacuteria mas esta deve ser fruto de uma sensibilidade temperada pela razatildeo157

153 Aliaacutes a melhor ldquoreceitardquo para uma boa memoacuteria eacute amar o que se faz Idem Ibidem I-II 47 2 C ldquo[] ea enim quae magna aestimamus magis memoriae infigimusrdquo ldquoAs coisas que julgamos importantes fixamos melhor na memoacuteriardquo 154 Idem Ibidem I-II 37 1 C ldquoSimiliter etiam manifestum est quod ad addiscendum aliquid de novo requiritur studium et conatus cum magna intentione [] Et ideo si sit dolor intensus impeditur homo ne tunc aliquid addiscere possit Et tantum potest intendi quod nec etiam instante dolore potest homo aliquid considerare etiam quod prius scivitrdquo 155 Idem Ibidem I-II 37 1 ad 2 ldquoSi ergo dolor seu tristitia fuerit moderata per accidens potest conferre ad addiscendum inquantum aufert superabundantiam delectationum Sed per se impedit et si intendatur totaliter aufertrdquo 156 Idem Ibidem II-II 167 2 ad 3 ldquoSed quod aliquis intendit ad consideranda vitia proximorum ad despiciendum vel detrahendum vel saltem inutiliter inquietandum est vitiosumrdquo 157 Idem Ibidem ldquoAd tertium dicendum quod prospicere facta aliorum bono animo vel ad utilitatem propriam ut scilicet homo ex bonis operibus proximi provocetur ad melius vel etiam ad utilitatem illius ut scilicet corrigatur si quid ab eo agitur vitiose secundum regulam caritatis et debitum officii est laudabile []rdquo ldquoDeve-se dizer que eacute louvaacutevel atentar com boa intenccedilatildeo para o que os outros fazem se for para utilidade proacutepria vendo as boas accedilotildees alheias como estiacutemulo a ser melhores ou se for para a utilidade do proacuteximo para que este seguindo as regras da caridade e do seu dever do ofiacutecio se corrija no que estiver praticando de malrdquo

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Com estes exemplos mdash tirados do tratado acerca da temperanccedila da Summa Theologiae mdash queremos mais uma vez pontuar que as virtudes natildeo visam tolher a nossa sensibilidade mas harmonizaacute-la humanizaacute-la a fim de tornar possiacutevel a fundaccedilatildeo de um mundo de uma ambiecircncia capaz de hospedar os homens

Para o escacircndalo de alguns de seus contemporacircneos o Aquinate defende que o homem natildeo tem trecircs almas mas apenas uma forma substancial uma alma intelectiva que acumula as funccedilotildees vegetativas sensitivas e intelectivas Eis uma passagem paradigmaacutetica

Deve-se pois dizer que nenhuma outra forma substancial existe no homem senatildeo a alma intelectiva E que ela assim como virtualmente conteacutem a alma sensitiva e a alma vegetativa assim tambeacutem conteacutem todas as formas inferiores e ela realiza por si soacute tudo o que as formas menos perfeitas realizam nos outros158

Destarte ldquo[] deve-se dizer que no homem a alma

sensitiva intelectiva e vegetativa eacute numericamente a mesmardquo159 Eacute pois uma uacutenica e mesma forma intelectiva ldquo[] a forma pela qual o homem eacute um ente em ato um corpo um ser vivo um animal e um homemrdquo160 Conclui ainda Tomaacutes ldquo[] Soacutecrates natildeo eacute homem por uma alma e animal por outra mas por uma soacute e mesma almardquo161 Ora as virtudes visam precisamente direcionar a nossa sensibilidade para que ela natildeo se manifeste de forma animalesca

158 Idem Ibidem I 76 4 C ldquoUnde dicendum est quod nulla alia forma substantialis est in homine nisi sola anima intellectiva et quod ipsa sicut virtute continet animam sensitivam et nutritivam ita virtute continet omnes inferiores formas et facit ipsa sola quidquid imperfectiores formae in aliis faciuntrdquo 159 Idem Ibidem I 76 3 C ldquoSic ergo dicendum quod eadem numero est anima in homine sensitiva et intellectiva et nutritivardquo 160 Idem Ibidem I 76 6 ad 1 ldquoUna enim et eadem forma est per essentiam per quam homo est ens actu et per quam est corpus et per quam est vivum et per quam est animal et per quam est homordquo 161 Idem Ibidem I 76 3 C ldquo[] ita nec per aliam animam Socrates est homo et per aliam animal sed per unam et eandemrdquo

308 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mas de maneira racional afinada com a complexidade do nosso ser

Estamos cientes de que restaria muito por ser desenvolvido neste capiacutetulo mas nosso objetivo era apenas sinalizar para a existecircncia de uma leitura em chave filosoacutefica de uma parte que integra a teologia moral de Tomaacutes de Aquino Esta leitura eacute possiacutevel porque Tomaacutes natildeo pensa que o pecado tenha corrompido a natureza humana enquanto tal Em razatildeo disso o homem mdash para o Aquinate mdash eacute sempre capaz de adquirir as virtudes naturais ao menos o necessaacuterio para ser um bom cidadatildeo Ora uma vez que existe a possibilidade de uma vivecircncia eacutetica no acircmbito restrito do humano mdash o que procuramos estabelecer com definiccedilotildees e exemplos neste capiacutetulo e ao longo do nosso texto mdash eacute possiacutevel tambeacutem haver uma inquiriccedilatildeo de cunho filosoacutefico acerca da eacutetica Pois bem no capiacutetulo quarto verificamos que esta inquiriccedilatildeo da razatildeo sobre os pilares de uma eacutetica humana isto eacute estritamente filosoacutefica Tomaacutes pensou poder ser integrada no bojo mesmo da sua sabedoria teoloacutegica e isto sem nenhum prejuiacutezo no que tange agrave unidade da ciecircncia teoloacutegica visto que esta natildeo pode descurar das coisas naturais pois eacute por meio delas mdash maacutexime do homem mdash que aprouve a Deus revelar-Se Tendo pois estabelecido a existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica integrada agrave teologia moral do Aquinate pensamos poder passar agraves consideraccedilotildees finais deste trabalho

Conclusatildeo

No primeiro capiacutetulo mostramos que a filosofia nasce do thaỹma (θαῦμα) tendo este vocaacutebulo grego neutro a significaccedilatildeo de estupor espanto assombro do homem ao se deparar com a sua ignoracircncia com a sua vulnerabilidade e com a precariedade da sua existecircncia Para sair deste estado de indigecircncia o homem busca entatildeo um conhecimento incancelaacutevel que natildeo se pode ocultar busca em uma palavra a alḗtheia (ἀλήθεια) E como a busca Busca-a atraveacutes do poacutelemos (πόλεμος) do diaacutelogos (διάλογος) Mediante o diaacutelogos nasce a epistḗmē (ἐπιστήμη) que natildeo eacute senatildeo um saber que ldquopara em peacuterdquo justamente porque passou pelo crivo do diaacutelogos Assim a palavra filosofia (φιλοσοφία) conteacutem fiacutelos (φίλος) que deriva de filiacutea (φιλία) termo que designa um amor de curadoria e sofiacutea (σοφία) que vem de safḗs (σαφής) nome que designa o que eacute claro luminoso A filosofia pode entatildeo ser definida como a procura constante da sabedoria que se possui quando da posse da verdade isto eacute da luz incontrovertida a qual por sua vez seraacute como que o unguento a mitigar o nosso medo da dor da desventura e da morte Daiacute que a filosofia nasce tambeacutem como ẽthos (ἦθος) enquanto este termo exprime a pretensatildeo intriacutenseca ao homem de construir um espaccedilo humano distinto do da fyacutesis (φύσις) ou seja de construir uma ambiecircncia humana um mundo habitaacutevel para o homem Ora a filosofia entendida como busca da verdade eacute assumida pelos medievais inclusive por Tomaacutes e tambeacutem para eles o filosofar soacute se perfaz mediante a disputatio que eacute como os latinos expressam por assim dizer a ideia do diaacutelogos grego

Mas a eacutetica soacute se constitui como ldquociecircnciardquo e como um ramo da filosofia praacutetica em Aristoacuteteles Disto tratou o nosso segundo capiacutetulo Eacute Aristoacuteteles que a partir da semacircntica de dois termos dotou a eacutetica de uma racionalidade proacutepria De fato o termo ldquoethosrdquo pode ser grafado e entendido de dois modos Primeiro como ἦθος (ẽthos) com um η inicial Quando assim escrito

310 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino nomeia a morada do homem o haacutebitat humano enquanto tal Segundo como ἔθος (eacutethos) com um ε inicial e entatildeo designa haacutebito isto eacute a disposiccedilatildeo estaacutevel para agir de determinada maneira Unindo estas duas acepccedilotildees podemos construir o seguinte raciociacutenio pelos haacutebitos isto eacute pelo ἔθος (eacutethos) o homem torna-se capaz de construir a sua ambiecircncia o seu ἦθος (ẽthos) Desta sorte a ēthikḗ mdash ciecircncia do ẽthos (ἦθος) e do eacutethos (ἔθος) mdash pode ser definida como a ciecircncia que estuda quais satildeo os haacutebitos (heacutexeis) que permitem ao homem construir o seu mundo

Sendo a eacutetica uma ciecircncia que pretende entender o que significa viver como homem ela precisa compreender antes o que eacute o homem Ora o homem eacute um animal dotado de loacutegos Loacutegos entendido enquanto fala linguagem capacidade de ir aleacutem da simples emissatildeo de voz para a palavra significativa Esta concepccedilatildeo revela ser o homem um zȭon politikoacuten isto eacute um ente essencialmente comunicativo capaz de pensar o bem e o mal o justo e o injusto com os seus semelhantes Pois bem a poacutelis (πόλις) nasce justamente como o resultado de homens que criam koinōniacutea (κοινωνία) porquanto comungam de princiacutepios cuja conquista soacute se daacute quando exercem o seu loacutegos De mais a mais uma vez que o homem eacute um zȭon politikoacuten a ēthikḗ seraacute mdash se quiser ser uma ldquociecircncia humanardquo mdash uma ldquociecircncia poliacuteticardquo (ἐπιστήμη πολιτικήepistḗmē politikḗ) De resto sendo os atos humanos flexiacuteveis e variaacuteveis a ēthikḗ seraacute uma ciecircncia que comporta flutuaccedilotildees Trataraacute do que ocorre quase sempre mas natildeo sempre

Nos capiacutetulos seguintes apontamos os conceitos basilares de que Tomaacutes se serve para assumir estas noccedilotildees em seu pensamento Buscamos sem pretender expor sistematicamente aclarar como esta conceptualidade da eacutetica antiga mdash preponderantemente da aristoteacutelica mdash estaacute presente na teologia moral do Aquinate Com este intuito mostramos como nas Quaestiones disputatae De Virtutibus mdash escrito contemporacircneo ao Comentaacuterio agrave Eacutetica e agrave redaccedilatildeo da IIa parte da Summa mdash o Aquinate ao tratar das virtudes cardeais define-as como cardeais

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exatamente por serem como a dobradiccedila que gira uma porta mediante a qual adentramos por assim dizer na casa do homem isto eacute na vida propriamente humana Parece-nos que com isso Tomaacutes retoma a metaacutefora do ἦθος (ẽthos) e a concepccedilatildeo de ēthikḗ como o estudo de quais satildeo os haacutebitos que condicionam o homem a construir o seu mundo permitindo assim que nasccedila no bojo de sua teologia moral uma reflexatildeo filosoacutefica acerca da eacutetica Mas as semelhanccedilas natildeo param por aiacute

A fim de darmos um remate agrave tentativa de formular uma concepccedilatildeo de eacutetica procuramos estabelecer a distinccedilatildeo mdash conhecida pelos gregos mdash entre ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) Verificamos que zōḗ diz vida enquanto capacidade efetiva de viver e de viver de certa maneira Jaacute biacuteos nomina o exerciacutecio mesmo de viver e de viver de certa maneira Biacuteos fala portanto de certo estilo de vida de um jeito de viver habitual Biacuteos em uma palavra eacute a vida vivida o ato mesmo de viver Em Aristoacuteteles o biacuteos proacuteprio do homem eacute a vida segundo o loacutegos que se desdobra na vida da poacutelis Tambeacutem em Tomaacutes observamos que a vida proacutepria do homem eacute a vida segundo a ratio que se perfaz pelo exerciacutecio da linguagem (locutio) a qual estabelecendo a comunicaccedilatildeo entre os homens consolida entre eles a comunhatildeo que constitui a civitas A linguagem enquanto comunicativa visto que racional passa a ser entatildeo um lugar privilegiado na obra moral de Tomaacutes porque acena para a possibilidade de se pensar uma eacutetica filosoacutefica dotada de consistecircncia

Ademais a vida propriamente humana mdash para Tomaacutes mdash eacute a vida eacutetica que eacute necessariamente vida poliacutetica Donde tanto para o Aquinate quanto para Aristoacuteteles a vida mdash entendida como zōḗ mdash eacute algo dado pela natureza mas a vida compreendida como biacuteos eacute obra de nossas matildeos dos nossos haacutebitos Neste sentido sinaliza Mondin ldquo[] o homem eacute uma realidade essencialmente projetual um projeto aberto para definir-se e realizar-serdquo1 E a eacutetica mdash que se

1 MONDIN Battista Os Valores Fundamentais Trad Jacinta Turolo Gargia Satildeo Paulo EDUSC 2005 pp 159-160

312 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino exerce na dinacircmica do ato livre mdash natildeo eacute senatildeo o realizar-se do homem que com os seus semelhantes constroacutei a sua proacutepria ldquobiosferardquo a sua felicidade Dito de outro modo a eacutetica se apresenta como a tentativa de o homem construir uma ambiecircncia um vivarium humano Destarte uma vez msid a experiecircncia eacutetica se apresenta como dotada de certa suficiecircncia posto que filha do homem

A virtude eacute condiccedilatildeo sine qua non para alcanccedilar o proacuteprio verdadeiro bem o fim uacuteltimo a felicidade e o que se quer dizer com essas palavras eacute plena realizaccedilatildeo de si mesmo do proacuteprio ser do proacuteprio projeto de humanidade []2

Algo que gostariacuteamos ainda de destacar eacute a abertura que a

ratio dos latinos herda do loacutegos grego Para ambos a verdade eacute sob certo aspecto filha do tempo Por conseguinte a eacutetica enquanto ciecircncia eacute um projeto inacabado uma reflexatildeo a ser completada a cada geraccedilatildeo O proacuteprio exerciacutecio da ratio que se perfaz pela linguagem natildeo comporta exaustatildeo O raciacuteocinio eacute um ato dinacircmico por essecircncia Explica Tomaacutes

Conhecer eacute simplesmente apreender a verdade inteligiacutevel Raciocinar eacute ir de um objeto conhecido a um outro em vista de conhecer a sua verdade inteligiacutevel [] Os homens [] chegam ao conhecimento da verdade inteligiacutevel procedendo de um elemento a outro e por isso satildeo chamados racionais3

Pela passagem acima pode-se constatar que o Aquinate

distingue o conhecer do raciocinar O conhecimento que eacute a apreensatildeo da verdade inteligiacutevel eacute sempre o fim o raciocinar eacute o ldquocomordquo o homem conhece vale dizer passando de uma verdade agrave

2 Idem Ibidem p 160 3 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 79 8 C ldquoIntelligere enim est simpliciter veritatem intelligibilem apprehendere Ratiocinari autem est procedere de uno intellecto ad aliud ad veritatem intelligibilem cognoscendam [] Homines autem ad intelligibilem veritatem cognoscendam perveniunt procedendo de uno ad aliud ut ibidem dicitur et ideo rationales dicunturrdquo

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outra Notemos entatildeo que Aquino pensa o conhecimento natildeo como algo estaacutetico mas dinacircmico ou seja como um movimento pelo qual a partir de verdades jaacute conhecidas chegamos a verdades ainda por noacutes desconhecidas A falar com exaccedilatildeo na concepccedilatildeo de Tomaacutes ser racional a saber conhecer de um modo humano consiste justamente em conhecer passando de uma verdade agrave outra sem perder o encadeamento e isto vale para a razatildeo praacutetica a qual consiste no exerciacutecio que nos daacute a conhecer a regra e a medida da nossa natureza Poreacutem eacute importante notar que este exerciacutecio de descoberta pelo raciociacutenio deve ser feito pela mediaccedilatildeo da linguagem que eacute por definiccedilatildeo comunicativa Em uma palavra eacutetica natildeo se faz sozinho E isto nos leva a dizer que a construccedilatildeo da eacutetica enquanto ciecircncia inicia-se ou melhor deveria iniciar-se no exerciacutecio mesmo de ser eacutetico ou seja no ato mesmo de nos abrirmos agrave possibilidade de pela linguagem descobrirmos que o que nos une mdash a lei natural mdash eacute maior do que o que nos separa4 Por outro lado conforme jaacute acenamos a eacutetica eacute uma ciecircncia que se mostra como um movimento que se aperfeiccediloa pelo labor das geraccedilotildees Neste sentido Aristoacuteteles afirma algo interessante em sua Metafiacutesica

[] de fato se cada um pode dizer algo a respeito da realidade e se tomada individualmente essa contribuiccedilatildeo pouco ou nada acrescenta ao conhecimento da verdade todavia da uniatildeo de todas as contribuiccedilotildees individuais decorre um resultado consideraacutevel [] Ora eacute justo ser gratos natildeo soacute agravequeles com os quais dividimos as opiniotildees mas tambeacutem agravequeles que

4 Enrico Berti afirma que a condiccedilatildeo para se fazer eacutetica com excelecircncia com virtude eacute fazecirc-la em muacutetua colaboraccedilatildeo BERTI Novos Estudos Aristoteacutelicos III Filosofia Praacutetica p 177 ldquoAleacutem disso como vimos Aristoacuteteles diz explicitamente que para o filoacutesofo eacute seguramente melhor ter colaboradores de modo que a colaboraccedilatildeo na filosofia eacute preferiacutevel agrave solidatildeo e tendo em vista ser a felicidade o que haacute de mais preferiacutevel em absoluto a felicidade suprema para o filoacutesofo natildeo eacute a solidatildeo mas a colaboraccedilatildeo com os outros filoacutesofosrdquo Citemos o texto do Estagirita sobre este assunto ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 12 1172 a 1-5 ldquoE daquilo que a existecircncia significa para cada classe de homens daquilo que para eles daacute valor agrave vida disso mesmo desejam ocupar-se em companhia de seus amigos Por isso alguns bebem juntos outros jogam dados juntos outros associam-se nos exerciacutecios atleacuteticos na caccedila ou no estudo da filosofia [συμφιλοσοφοῦσιν] []rdquo

314 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

expressaram opiniotildees ateacute mesmo superficiais tambeacutem eles com efeito deram alguma contribuiccedilatildeo agrave verdade enquanto ajudaram a formar nosso haacutebito especulativo5

Ora estas consideraccedilotildees de Aristoacuteteles que Tomaacutes retoma

fazem-nos pensar que tanto o loacutegos quanto a ratio implicam intrinsecamente tradiccedilatildeo (traditio) isto eacute natildeo soacute a capacidade de passar de um conhecimento a outro mas ainda de transmitir o empoacuterio do saber de uma geraccedilatildeo para outra a fim de que esta o aprofunde Aliaacutes estes apontamentos valem especialmente para a ldquociecircncia eacuteticardquo jaacute que o objeto de estudo da eacutetica eacute fundamentalmente os atos humanos e sendo estes naturalmente por demais elaacutesticos a ciecircncia que os estuda convida os homens a sempre retomarem a reflexatildeo sobre eles Sob esta oacutetica a eacutetica mdash ldquociecircncia dos costumesrdquo mdash nunca pode perder de vista o horizonte da tradiccedilatildeo Em outras palavras natildeo eacute possiacutevel fazer eacutetica filosoacutefica sem estar mdash de algum modo mdash inserido na tradiccedilatildeo E o lugar propiacutecio para que a tradiccedilatildeo natildeo se perca e prevaleccedila como um ponto de partida para o aprimoramento da reflexatildeo eacutetica eacute a educaccedilatildeo Lima Vaz indica isso numa passagem que julgamos de todo emblemaacutetica para ser omitida

A tradicionalidade ou o poder-ser transmitido eacute pois um constitutivo essencial do ethos e decorre necessariamente do ponto de vista da anaacutelise filosoacutefica da relaccedilatildeo dialeacutetica que se estabelece entre o ethos como costume e o ethos como haacutebito singularizado na praxis eacutetica Natildeo haacute sentido em se falar de um ethos estritamente individual pois a perenidade do ethos efetivada e atestada na tradiccedilatildeo tem em mira exatamente resgatar a existecircncia efecircmera e contingente do indiviacuteduo empiacuterico [] atraveacutes da sua suprassunccedilatildeo na universalidade do ethos ou na continuidade da tradiccedilatildeo eacutetica Entendida nessa sua essencialidade com relaccedilatildeo ao ethos a tradiccedilatildeo eacute a relaccedilatildeo intersubjetiva primeira na esfera eacutetica eacute a relaccedilatildeo que se

5 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica II 993 b 1-15 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005

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estabelece entre a comunidade educadora e o indiviacuteduo que eacute educado justamente para se elevar ao niacutevel das exigecircncias do universal eacutetico ou do ethos da comunidade6

O que esperamos ter esclarecido neste trabalho eacute que a

Summa Theologiae de Tomaacutes de Aquino conteacutem mdash em sua IIa parte mdash um todo (totus) filosoacutefico de cunho eacutetico integrado agrave totalidade (totum) da sua teologia moral sem que isto acarrete uma quebra de unidade porque a feacute pressupotildee o conhecimento natural e a graccedila natildeo tolhe mas aperfeiccediloa a natureza Para transitarmos por este tema tivemos de frequentar outras obras de Tomaacutes e mesmo autores gregos particularmente Aristoacuteteles de quem o Aquinate assume mdash natildeo sem originalidade mdash grande parte do pensamento eacutetico Ao final deste trabalho julgamos poder dizer o que Chesterton afirma de Tomaacutes

Em termos humanos foi ele quem salvou o elemento humano na teologia cristatilde ainda que tenha usado por conveniecircncia alguns elementos da filosofia pagatilde Mas como jaacute se disse enfaticamente o elemento humano tambeacutem eacute cristatildeo 7

De fato com Tomaacutes o pensamento cristatildeo torna-se capaz

de dialogar com o profano ou melhor torna-se capaz de integrar-se ao laico sem abrir matildeo de seus direitos e sem querer suprimir o do outro Nada explica melhor este movimento de respeito agraves duas ordens distintas do que o dito de Jesus ldquoDai pois o que eacute de Ceacutesar a Ceacutesar e o que eacute de Deus a Deusrdquo (Mt 2221) Com efeito aplicando esta maacutexima evangeacutelica em sua obra entendemos que o Aquinate tornou-se portador de uma palavra secular ateacute mesmo no acircmbito da eacutetica Mario dal Pra quando estuda a doutrina eacutetico-poliacutetica de Tomaacutes natildeo deixa de ressaltar este aspecto

6 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 19 7 CHESTERTON Op Cit p 260

316 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

[] Quanto agrave visatildeo de mundo Tomaacutes introduz no pensamento cristatildeo uma atitude antiteacutetica agravequela da tradiccedilatildeo platocircnico-agostiniana os expoentes desta uacuteltima natildeo poderatildeo senatildeo condenar uma visatildeo que a seu ver distancia Deus do homem e do mundo e apresenta a feacute somente como termo integrativo de uma natureza em si mesma subsistente e determinada8

A nosso ver natildeo se trata de distanciar Deus do homem e

do mundo Ao contraacuterio foi precisamente enquanto religioso e fiel ao dito de Cristo de natildeo tomar de Ceacutesar o que pertence a Ceacutesar que Tomaacutes nunca deixou de dialogar com outras tradiccedilotildees inclusive natildeo religiosas pois reconhecia nelas expressotildees da mesma natureza criada por Deus

O que todavia mais impressiona em Tomaacutes eacute a tenacidade com a qual continuou a buscar e a procurar ler traduccedilotildees de textos filosoacuteficos gregos e aacuterabes ateacute os uacuteltimos anos de sua vida movido por uma curiosidade intelectual natildeo comum e por um sentido de real abertura para com todas as tradiccedilotildees do pensamento tambeacutem aquelas preacute-cristatildes e natildeo cristatildes9

Aleacutem disso a partir do conceito de razatildeo tal como o

trabalhamos no texto a saber como uma capacidade de se expressar de forma significativa e comunicativa pensamos que a conceptualidade filosoacutefica da eacutetica tomasiana possa ser revisitada e proposta mdash de forma inteligiacutevel mdash a todos os homens De fato nos uacuteltimos cinquenta anos estaacute ocorrendo algo inaudito isto eacute Tomaacutes

8 PRA Mario dal Sommario di Storia della Filosofia La Filosofia Antica e Medievale Firenze La Nuova Italia 1990 p 308 v 1 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] quanto alla visione del mondo Tommaso introduce nel pensiero cristiano un atteggiamento antitetico a quello della tradizione platonico-agostiniana gli esponenti di questultima non possono che condannare una visione della realtagrave che a loro avviso allontana Dio dalluomo e dal mondo e prospetta la fede solo come termine integrativo duna natura in se stessa sussistente e determinatardquo 9 ESPOSITO PORRO Filosofia Antica e Medievale v 1 p 367 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCiograve che tuttavia piugrave colpisce in Tommaso egrave la tenacia con cui ha continuato a cercare di procurarsi e di leggere traduzioni di testi filosofici greci e arabi fino agli ultimi anni della sua vita mosso da una curiositagrave intellettuale assolutamente non comune e da un senso di reale apertura verso tutte le tradizioni di pensiero anche quelle precristiane o non-cristianerdquo

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vem perdendo dentro do ambiente catoacutelico a sua ateacute entatildeo absoluta preeminecircncia que parecia imarcesciacutevel Mas este acontecimento mdash como nota Anthony Kenny mdash eacute acompanhado por outro fenocircmeno qual seja a obra de Tomaacutes estaacute imiscuindo-se nas instituiccedilotildees seculares com uma forccedila estimulante e inesperada Nas palavras do estudioso

Por outro lado a desvalorizaccedilatildeo de Sto Tomaacutes nas fronteiras do catolicismo tem sido acompanhada por uma revalorizaccedilatildeo do santo nas universidades seculares em vaacuterias regiotildees do mundo Nos primeiros anos do seacuteculo XXI natildeo eacute exagerado falar de um renascimento do tomismo mdash natildeo um tomismo confessional mas um estudo de Tomaacutes que transcende os limites natildeo apenas da Igreja Catoacutelica como tambeacutem do proacuteprio cristianismo10

Ora o nosso trabalho mdash ancorado nas palavras de Kenny mdash

buscou justamente evidenciar a presenccedila desta eacutetica natildeo confessional ou seja uma eacutetica filosoacutefica porque fundada somente na especulaccedilatildeo racional no bojo da teologia moral de Tomaacutes A britacircnica Philippa Foot uma das filoacutesofas analiacuteticas mais notaacuteveis do nosso tempo e pioneira nas pesquisas de metaeacutetica trilhando seus proacuteprios caminhos chegou agrave mesma conclusatildeo em relaccedilatildeo agrave Summa

Em minha opiniatildeo a Summa Theologica eacute uma das melhores fontes das quais dispomos para a filosofia moral e aleacutem disso os

10 KENNY Op Cit p 99 Nesse tempo que nos separa do Conciacutelio Vaticano II os proacuteprios pensadores de inspiraccedilatildeo catoacutelica jaacute comeccedilaram a fazer um mea-culpa admitindo que na sede de modernizar o pensamento filosoacutefico-teoloacutegico de cunho cristatildeo natildeo souberam separar o joio do trigo no que toca agraves interpretaccedilotildees de Tomaacutes Um deles confessa ldquodesoladordquo VENTIMIGLIA Giovanni Distinctio Realis Ontologie aristotelico-tomiste nella prima metagrave del Novecento Lugano EUPRESS FTL 2012 p 8 ldquoSuccede che il mondo veramente moderno nel frattempo ha riscoberto tutta la profonditagrave delle cosiddette questione obsolete del vecchio tomismordquo ldquoSucede que o mundo verdadeiramente moderno neste iacutenterim redescobriu toda a profundidade das assim chamadas questotildees obsoletas do velho tomismordquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] Em outras palavras no juiacutezo deste estudioso o pensamento de Tomaacutes eacute mais atual e mais apto para dialogar com o mundo moderno do que a ldquonouvelle theologierdquo

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escritos eacuteticos de santo Tomaacutes satildeo uacuteteis tanto para o ateu quanto para o catoacutelico ou para um outro crente cristatildeo11

A nosso ver mesmo as reflexotildees estritamente teoloacutegicas de

Tomaacutes estatildeo prenhes de filosofia Tentemos exprimir-nos agora com exemplos Tomemos a sua teologia do pecado original Quando os nossos primeiros pais pecaram aconteceram duas coisas A primeira foi que o homem perdeu a justiccedila original virtude excedente agrave sua natureza a segunda foi que esta mesma natureza embora enfraquecida permaneceu iacutentegra no que lhe eacute constitutivo a razatildeo e a tendecircncia natural agrave virtude ainda que esta uacuteltima tenha sido diminuiacuteda Ora permanecendo iacutentegras em sua raiz 12 as faculdades humanas continuaram dignas de

11 FOOT Philippa Virtues and Vices and Other Essays in Moral Philosophy Oxford 19981 pp XI-XII In MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 76 Por exemplo a temaacutetica da eacutetica que concebe este mundo como a nossa casa comum permanece atual e foi o tema escolhido para a mais recente Enciacuteclica do Papa Francisco Laudato Sirsquo sobre o cuidado da casa comum de maio de 2015 Na percepccedilatildeo do Pontiacutefice esta temaacutetica eacute de interesse de todos os homens De fato nas paacuteginas da Enciacuteclica o Papa alerta que inobstante tenhamos coisas que nos distingam ao menos uma tarefa pertence a todos noacutes a saber a de natildeo deixar que esta terra se torne um espaccedilo inoacutespito luacutegubre Vide FRANCISCO Papa Laudato Sirsquo Disponiacutevel lt httpw2vaticanvacontentfrancescoptencyclicalsdocumentspapa-francesco_20150524_enciclica-laudato-sihtmlgt 12 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 85 2 C ldquoEt ideo aliter est dicendum quod praedicta inclinatio intelligitur ut media inter duo fundatur enim sicut in radice in natura rationali et tendit in bonum virtutis sicut in terminum et finem Dupliciter igitur potest intelligi eius diminutio uno modo ex parte radicis alio modo ex parte termini Primo quidem modo non diminuitur per peccatum eo quod peccatum non diminuit ipsam naturam ut supra dictum est Sed diminuitur secundo modo inquantum scilicet ponitur impedimentum pertingendi ad terminum Si autem primo modo diminueretur oporteret quod quandoque totaliter consumeretur natura rationali totaliter consumpta Sed quia diminuitur ex parte impedimenti quod apponitur ne pertingat ad terminum manifestum est quod diminui quidem potest in infinitum quia in infinitum possunt impedimenta apponi secundum quod homo potest in infinitum addere peccatum peccato non tamen potest totaliter consumi quia semper manet radix talis inclinationisrdquo ldquoEacute preciso pois explicar de outra maneira A inclinaccedilatildeo predita concebe-se como um meio entre duas coisas ela tem um fundamento uma raiz na natureza racional e tende ao bem da virtude como a um termo e a um fim Por conseguinte a diminuiccedilatildeo pode se conceber de duas maneiras do lado da raiz e do lado do termo Do lado da raiz o pecado natildeo produz nenhuma dimininuiccedilatildeo pois que ele natildeo diminui a proacutepria natureza como foi dito Mas do lado do termo haacute uma diminuiccedilatildeo enquanto se potildee um impedimento para chegar ao termo Se houvesse diminuiccedilatildeo pela raiz deveria alguma vez desaparecer totalmente tendo desaparecido totalmente a natureza racional Mas porque haacute diminuiccedilatildeo pelo impedimento posto para natildeo chegar ao termo eacute claro que isso pode ir ao infinito porque os obstaacuteculos podem ser postos ao infinito uma vez que o homem pode acrescentar ao

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confiabilidade em sua funccedilatildeo proacutepria Em outros termos o homem pode natildeo somente conhecer a verdade consoante a sua natureza senatildeo tambeacutem adquirir as virtudes naturais e alcanccedilar certa beatitude sem o auxiacutelio da graccedila Nisso percebemos que a teologia do pecado original em Tomaacutes eacute uma fresta uma espeacutecie de fenda para uma reflexatildeo filosoacutefica autocircnoma porquanto ao mesmo tempo que afirma ter o homem perdido os dons preternaturais salvaguarda os atributos da natureza humana

Outro exemplo eacute quando Tomaacutes veda ao homem a visatildeo do bem supremo nesta vida De fato se o homem natildeo pode ver o bem supremo (Deus) nesta vida ele tem acesso somente a bens relativos parciais ou seja bens por um lado mas natildeo bens por outro 13 Eacute certo outrossim que o homem natildeo conhece necessariamente nem sequer os bens necessaacuterios agrave beatitude Ora isso torna o seu juiacutezo praacutetico e a sua vontade indeterminados quanto a estes bens Dito doutro modo ele pode querer ou natildeo querer qualquer bem mais ainda pode agir ou natildeo agir em relaccedilatildeo a qualquer um destes bens E aqui reside o livre-arbiacutetrio o qual daacute ao homem o domiacutenio sobre os seus atos e o ser senhor de si entregue ao seu conselho o homem eacute pai de suas accedilotildees como o eacute de seus filhos Nasce entatildeo de um teoacutelogo e no seio mesmo da sua teologia a possibilidade de uma ldquocultura laicardquo Sob este aspecto pode-se ateacute dizer que a maacutexima ldquophilosophia ancilla theologiaerdquo eacute invertida em Tomaacutes ldquotheologia ancilla

infinito pecado sobre pecado Entretanto a inclinaccedilatildeo natildeo pode desaparecer completamente pois sempre fica a raizrdquo [Os itaacutelicos satildeo nossos] 13 Idem Ibidem I 82 2 C ldquoSed tamen antequam per certitudinem divinae visionis necessitas huiusmodi connexionis demonstretur voluntas non ex necessitate Deo inhaeret nec his quae Dei sunt Sed voluntas videntis Deum per essentiam de necessitate inhaeret Deo sicut nunc ex necessitate volumus esse beati Patet ergo quod voluntas non ex necessitate vult quaecumque vultrdquo ldquoTodavia antes que a necessidade dessa conexatildeo seja demonstrada pela certeza da visatildeo divina a vontade natildeo adere necessariamente nem a Deus nem agraves coisas que satildeo de Deus Mas a vontade daquele que vecirc Deus em sua essecircncia adere necessariamente a Deus da mesma maneira que agora queremos necessariamente ser felizes Eacute evidente portanto que a vontade natildeo quer necessariamente tudo o que ela querrdquo

320 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino philosophiaerdquo14 E foi precisamente isto que quisemos mostrar a saber que tal respeito pelo secular sai da pena de um religioso

Por traacutes destes exemplos vislumbramos enfim a tarefa principal do saacutebio ou seja alcanccedilar uma visatildeo integral da coisa uma visatildeo prospectiva E uma visatildeo prospectiva natildeo contempla apenas o conjunto senatildeo a relaccedilatildeo das partes com o todo Mas a relaccedilatildeo da parte com o todo natildeo eacute nem a parte nem o todo mas eacute a forma como a parte se relaciona com o todo O olhar humano eacute capaz de ver natildeo somente a parte e o todo mas a ordenaccedilatildeo da parte no todo Uma casa e uma fileira de tijolos satildeo ambas um conjunto de tijolos Poreacutem para aquele que consegue ver a disposiccedilatildeo da parte em relaccedilatildeo ao todo a casa eacute algo distinto de uma simples montanha de tijolos porque afinal a ordenaccedilatildeo das partes na casa eacute diversa da de um amontoado de tijolos Ora um homem quando consegue ver com periacutecia a disposiccedilatildeo da parte em relaccedilatildeo ao todo de sua proacutepria obra destaca-se dela porque se torna capaz de criar ou ao menos entrever uma nova forma de ordem entre as partes uma nova casa por exemplo Materialmente falando a Summa Theologiae de Tomaacutes abarca um conjunto de questotildees muito semelhantes com as sumas e outros gecircneros literaacuterios de seu tempo Talvez ateacute o modo como o Aquinate relaciona ou ordena as partes de sua teologia natildeo seja o que mais a destaque das outras teologias O que diferencia a Summa de Tomaacutes das outras eacute que o Aquinate consegue entrever como por um ldquoponto de fugardquo de sua inteligecircncia que a filosofia a mesma que na sua teologia eacute uma parte que se relaciona com o todo teoloacutegico pode constituir ela proacutepria um todo Ele consegue ver dentro de sua visatildeo no caso da sua visatildeo da relaccedilatildeo entre filosofia e teologia outra visatildeo qual seja a de uma ordem filosoacutefica autocircnoma Este ldquoponto de fugardquo jaacute transparece em sua obra por exemplo quando Tomaacutes rejeita a evidecircncia para noacutes da existecircncia

14 Vide o interessante artigo que mostra que esta inversatildeo jaacute existe em Boaventura COLLI Andrea Theologia ancilla Philosophiae Una lettura dellrsquoItinerarium Disponiacutevel em lthttprivisteunimiitindexphpDoctorVirtualisarticleview73122gt

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de Deus Em filosofia ou se demonstra que Deus existe ou Sua existecircncia permanece uma incoacutegnita 15 Esta visatildeo permitiu ao Aquinate a nosso juiacutezo entrever ldquomundos possiacuteveisrdquo com um olhar que ultrapassava a proacutepria cristandade Em outras palavras ele foi um saacutebio natildeo somente porque conseguiu ordenar ofiacutecio proacuteprio do saacutebio16 mas tambeacutem porque entreviu outras ordens possiacuteveis e mesmo coexistentes e assim pocircde eleger dentre vaacuterias alternativas uma Em uma palavra Tomaacutes escolheu ser teoacutelogo natildeo por falta de opccedilatildeo mas porque quis17

Natildeo buscamos portanto com este trabalho mdash e isto seria antes a ruiacutena do nosso texto mdash transformar Tomaacutes de Aquino num ldquofiloacutesofo purordquo um moderno Ao contraacuterio nosso foco foi tornar patente como um religioso e teoacutelogo como Tomaacutes que viveu no seacuteculo XIII foi tambeacutem um filoacutesofo ou melhor um ldquofilosofanterdquo18 e em moral soube acolher e debater com o secular bem como admitiu a existecircncia de uma eacutetica que sem eliminar as diferenccedilas pode ser compartilhada pelo homo religiosus e pelo homo profanus De toda maneira se ao menos tivermos conseguido ser persuasivos ao optar por comeccedilarmos dos

15 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 2 1 C ldquoDico ergo quod haec propositio Deus est quantum in se est per se nota est quia praedicatum est idem cum subiecto Deus enim est suum esse ut infra patebit Sed quia nos non scimus de Deo quid est non est nobis per se nota sed indiget demonstrari per ea quae sunt magis nota quoad nos []rdquo ldquoDigo portanto que a proposiccedilatildeo Deus existe enquanto tal eacute evidente por si porque nela o predicado eacute idecircntico ao sujeito Deus eacute seu proacuteprio ser como ficaraacute claro mais adiante Mas como natildeo conhecemos a essecircncia de Deus esta proposiccedilatildeo natildeo eacute evidente para noacutes precisa ser demonstrada por meio do que eacute mais conhecido para noacutes []rdquo 16 Idem Suma Contra os Gentios I I 1 [2] ldquoUnde inter alia quae homines de sapiente concipiunt a philosopho ponitur quod sapientis est ordinarerdquo ldquo[] entre outras funccedilotildees que os homens atribuem ao saacutebio a de que pertence ao saacutebio ordenar eacute proposta pelo Filoacutesofo (I Metafiacutesica 2 982a Cmt 2 42-43)rdquo 17 Vide a abordagem de Barzaghi que aplica o conceito de ldquoponto de fugardquo agrave teologia de Tomaacutes BARZAGHI Giuseppe La Fuga Il gioco dellimmagine Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=HALef5f18Iogt 18 GILSON Eacutetienne A existecircncia na filosofia de Santo Tomaacutes de Aquino Trad Geraldo Pinheiro Machado e Gilda Lessa Rev Guilherme Nery Pinto Satildeo Paulo Livraria duas cidades 1962 p 8 ldquoSe um teoacutelogo julgasse conveniente recorrer agrave Filosofia nos seus trabalhos teoloacutegicos como foi o caso de S Tomaacutes de Aquino natildeo era normalmente chamado lsquofiloacutesoforsquo e sim philosophans theologus (teoacutelogo filosofante) ou simplesmente philosophans (um filosofante)rdquo

322 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino primoacuterdios e de Aristoacuteteles antes de verificarmos a sua ressonacircncia em Tomaacutes de que natildeo se pode fazer filosofia seguindo o esquema de Proclo a Descartes deve-se passar como por um salto jaacute nos daremos por satisfeito19 De resto fazemos nossas as palavras de Giovanni Reale

E entatildeo natildeo soacute eacute loucura renunciar a filosofar mas eacute tambeacutem loucura devendo inexoravelmente filosofar acreditar que se pode limitar ao hoje jaacute que o presente natildeo eacute inteligiacutevel sem o passado do qual nasce e ademais natildeo eacute nunca verdadeiramente atual ou soacute eacute ilusoriamente atual porque atual natildeo eacute o momento que foge mas o que resiste aleacutem do momento e no limite soacute o eterno eacute verdadeiramente atual20

Entre outras razotildees tambeacutem estas justificam mdash a nosso ver

mdash o inusitado e entusiasmante renascimento (renaissance) do pensamento do Aquinate no acircmbito laico Restaria expor de forma sistemaacutetica esta eacutetica mas isto jaacute seria outra empresa de focirclego

19 DE BONI Luis Alberto Estudar Filosofia Medieval In Idem Filosofia Medieval Textos Porto Alegre EDIPUCRS 2000 p 8 ldquoA histoacuteria dos estudos de Filosofia Medieval natildeo eacute tatildeo longa e pode ser relativamente bem datada O Renascimento a Reforma e o Iluminismo voltaram-se conscientemente contra a Idade Meacutedia Este principalmente partiu de um preconceito era necessaacuterio deixar de lado tudo o que foi escrito como Filosofia entre a Antiguumlidade e os tempos modernos Eacute ceacutelebre o dito de que entre o fechamento da Academia Platocircnica por Justiniano em 529 e o lsquoDiscurso sobre o Meacutetodorsquo de Descartes em 1637 existe um vazio de 1108 anos A afirmaccedilatildeo pode parecer estranha para o leitor moderno mas foi no espiacuterito dela que se fundou o Curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da USP na deacutecada de 30 no esquema ceacutelebre Sprung uumlber das Mittelalter (o salto por sobre a Idade Meacutedia) passava-se de Proclo a Descartes com a maior naturalidade Transcorreu meio seacuteculo antes que se criasse a cadeira de Filosofia Medieval na mais renomada instituiccedilatildeo de ensino superior do Brasilrdquo 20 REALE Giovanni Histoacuteria da Filosofia grega e romana vol IV Aristoacuteteles Trad Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 195

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Para saber mais

Exortaccedilatildeo ao estudo deixada por Tomaacutes de Aquino

ldquoTerceira quando diz lsquoE o tempo eacute um bom inventor ou colaborador de tais tarefasrsquo etc mostra de que modo o homem eacute ajudado pelo dito E diz sobre essas coisas que o tempo parece ser como um descobridor ou um bom colaborador para o que estaacute bem circunscrito Natildeo de fato que o tempo por si mesmo tenha algo para aquele que age mas na medida em que as coisas satildeo feitas no tempo De fato se algueacutem procedendo no tempo investigar a verdade o tempo ajudaraacute a encontrar a verdade e quanto a um mesmo homem que depois veja o que natildeo via antes e tambeacutem quanto aos diversos homens como quando algueacutem capta as coisas que descobriram os seus predecessores e acrescenta algo E por esse modo satildeo feitos os acreacutescimos nas artes dos quais em princiacutepio pouco foi inventado e depois atraveacutes de diversos homens pouco a pouco atingiu uma grande quantidade porque pertence a qualquer homem acrescentar o que falta ao considerado pelos predecessores Se poreacutem ao contraacuterio se deixa de lado o exerciacutecio do estudo o tempo eacute antes causa de esquecimento como se diz no livro quarto da Fiacutesica e quanto a um homem que se entrega agrave negligecircncia esquece-se do que sabia e de tantas outras coisas diversas Por isso vemos que muitas ciecircncias ou artes que vigoraram entre os antigos cessaram pouco a pouco no esquecimento pelo teacutermino do estudordquo [TOMAacuteS DE AQUINO Comentaacuterio de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica a Nicocircmaco I-III o bem e as virtudes Trade Rev Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rio de Janeiro Mutuus 20015 v I I Lect 11 ndeg 3-4 O itaacutelico eacute nosso]

1) Haacute um site francoacutefono (Aquinas) todo ele dedicado ao Aquinate e idealizado

por dominicanos ligados agrave Universiteacute de Fribourg (Suiacuteccedila) que se preocupou em corrigir as legendas para facilitar o acesso dos que tecircm pouca familiaridade com a liacutengua francesa Neste site haacute cursos de iniciaccedilatildeo ao pensamento de Tomaacutes oferecidos gratuitamente on-line Basta se inscrever

httpsiaquinascom a) No que toca agrave filosofia aos que se interessarem indico particularmente as

liccedilotildees sobre antropologia filosoacutefica tomasiana de Franccedilois-Xavier Putallaz

340 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

httpswwwyoutubecomwatchlist=PLoF9tICw5xHMFru4TuxUim_cLoO6fHgphampv=yIPpc6c0H8s

2) Haacute um canal no Youtube chamado Civilisation chreacutetienne que vem registrando as famosas journeacutees thomistes de onde saem fasciacuteculos que estatildeo em sintonia com a Commissio Leonina hoje presidida pelo dominicano italiano Adriano Oliva o qual organiza tambeacutem estas journeacutees junto com Laurent Lemoine OP httpswwwyoutubecomwatchv=W6YYqSL34qgamplist=PLp1nhiHAIwkg2

fu08nXsKWzLlAsBK2j56 3) Haacute um viacutedeo (com legendas ativas) ilustrativo e divertido que apresenta

Tomaacutes tal como ele eacute um pensador de estilo ldquosuave luacutecido civil e judiciosordquo (Anthony Kenny)

httpswwwyoutubecomwatchv=GJvoFf2wCBU 4) No canal da Editrice La Scuola haacute uma interessante seacuterie de entrevistas

imaginaacuterias Nesta os grandes estudiosos italianos dos filoacutesofos claacutessicos entrevistam os seus autores Assim Giovanni Reale entrevista Platatildeo Enrico Berti Aristoacuteteles Umberto Eco Tomaacutes de Aquino e assim por diante Aprecio o que Eco potildee na boca do Aquinate mas com ressalvas Divulgo a bela iniciativa httpswwwyoutubecomwatchv=c_Dg4cXD0qIamplist=PLTpVCciFlnXaE4

7aN4p_bltIKYxAkTJvkampindex=43

5) Haacute uma seacuterie de encontros promovida pela Associazione Culturale Benedetto XVI sobre a histoacuteria da filosofia ocidental Esta seacuterie foi denominada Il viaggio dei filosofi Ela estaacute dividida em quatro etapas A primeira foi dedicada ao Genio dei Greci Alguns encontros destas etapas estatildeo total ou parcialmente disponiacuteveis no Youtube O que segue abaixo eacute uma apresentaccedilatildeo da primeira etapa e toca em alguns dos conceitos-chave dos primoacuterdios da filosofia Um dos expositores eacute o professor Luigi Girlanda um dos idealizadores do projeto

httpswwwyoutubecomwatchv=DqCaF2s1SUMampt=1s 6) Existe um site chamado Cattedra Rosmini ligado ao Rosmini Institute ao

Istituto di Studi Filosofici di Lugano e agrave Facoltagrave di Teologia di Lugano que se dedica a disponibilizar cursos congressos e conferecircncias on-line sobre Rosmini metafiacutesica claacutessica ldquotomismo analiacuteticordquo etc Haacute vaacuterios estudos por

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exemplo sobre a atualidade do chamado argumento ontoloacutegico de Anselmo Destacaria

a) O videocurso (dez liccedilotildees) de Alain de Libera mdash em italiano mdash sobre Lrsquoidentitagrave personale nella filosofia medievale ldquoO argumento do curso eacute aquele da lsquoidentidade pessoalrsquo na filosofia moderna (Descartes e Locke) e no medievo (um problema filosoacutefico-teoloacutegico) O curso trata da pessoa da personalidade e do sujeito na filosofia e teologia antiga e medieval tocando temas como o lsquosujeito da accedilatildeorsquo na escolaacutestica e na filosofia moderna (Tomaacutes de Aquino Locke Kant Reid)rdquo(A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismolidentita-personale-nella-filosofia-medievale

b) O videocurso (dez liccedilotildees) Filosofia Pratica ministrado por Enrico Berti ldquoPor que eacute atual a filosofia praacutetica O curso eacute principalmente baseado em comentaacuterios de passagens de autores que vatildeo de Platatildeo a Gadamer contidos no livro lsquoE Berti Filosofia pratica 2004 Guidarsquordquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa) O curso procura mostrar entre outras coisas quando e como se originou a identificaccedilatildeo entre a froacutenēsis e a filosofia praacutetica Berti defende que a filosofia praacutetica em Aristoacuteteles eacute uma ciecircncia distinta da froacutenēsis que natildeo eacute uma ciecircncia

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismofilosofia-pratica c) O videocurso (dez liccedilotildees) Le prove dellrsquoesistenza di Dio nella filosofia classica

ministrado por Enrico Berti ldquoO curso se propotildee a ilustrar as principais provas da existecircncia de Deus elaboradas por alguns filoacutesofos que se podem considerar claacutessicos ou seja Aristoacuteteles Anselmo de Aosta e Tomaacutes de Aquino A propoacutesito de cada um deles seratildeo ilustradas e discutidas tambeacutem as retomadas ou as criacuteticas desenvolvidas por alguns filoacutesofos modernos (Descartes Leibniz Kant Hegel) e por alguns filoacutesofos contemporacircneos que se reportam agrave lsquometafiacutesica claacutessicarsquo (S Vanni Rovighi G Bontadini M Gentile)rdquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa) httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismole-prove-dellesistenza-

di-dio-nella-filosofia-classica

d) O videocurso (dez liccedilotildees) La teologia razionale nella filosofia analitica ministrado por Mario Micheletti ldquoO curso tem como objeto o renascimento jaacute faz ao menos vinte anos da teologia racional no interior daquela filosofia

342 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

analiacutetica que inicialmente tinha sido ateia e inimiga declarada da metafiacutesica O curso em particular ilustraraacute as principais formulaccedilotildees das provas da existecircncia de Deus em alguns filoacutesofos analiacuteticos contemporacircneos pondo o acento sobretudo na reelaboraccedilatildeo em chave modal da prova ontoloacutegica e sobre as novas apresentaccedilotildees do argumento cosmoloacutegico e da lsquoteologia naturalrsquo e os desenvolvimentos da apologeacutetica negativardquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismola-teologia-razionale-nella-filosofia-analitica

e) ldquoNesta entrevista o Prof G Ventimiglia discute com o Prof E Berti sobre temas comuns e sobre as diferenccedilas entre a ontologia aristoteacutelica e a [ontologia] analiacutetica contemporacircnea Detecircm-se tambeacutem em uma particular corrente da ontologia analiacutetica que mostra segundo Berti uma concepccedilatildeo univocista do ser Vem abordada ainda a questatildeo da difiacutecil acolhida da ontologia analiacutetica no interior do pensamento cristatildeordquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismodifferenze-tra-lontologia-aristotelica-e-quella-analitica-contemporanea

f) ldquoA importacircncia destas videoconferecircncias estaacute em particular no fato de que naquela ocasiatildeo o professor Berti declarou publicamente depois de ter ouvido a conferecircncia de Varzi natildeo ter mais nenhuma espeacutecie de reserva sobre a ontologia e sobre a metafiacutesica analiacutetica Trata-se portanto em certo sentido de um documento histoacuterico porque pela primeira vez um grande estudioso da chamada metafiacutesica claacutessica declara encontrar-se completamente lsquoem casarsquo na metafiacutesica analiacutetica e reconhece que os grandes temas da metafiacutesica aristoteacutelica estatildeo de novo vivos no atual debate em acircmbito analiacuteticordquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismometafisica-classica-e-metafisica-analitica-oggi1564731804205-1b711eb7-c8fb

g) O videocurso Dio come Essere (duas liccedilotildees) ldquoNa primeira parte do curso dada pelo prof E Berti examinam-se as criacuteticas de PT Geach e A Kenny agrave concepccedilatildeo de Deus como Esse ipsum subsistens professada por Tomaacutes de Aquino e se reconstroacutei a origem de tais criacuteticas nas objeccedilotildees feitas por Aristoacuteteles agrave doutrina de um ente que tenha por essecircncia o ser mesmo por ele atribuiacuteda a Platatildeo Com este propoacutesito se leem e se comentam as passagens da Metafiacutesica (livro III e livro X) nas quais Aristoacuteteles desenvolve

Saacutevio Laet de Barros Campos | 343

tais objeccedilotildees Depois segue-se o desenvolvimento da concepccedilatildeo de Deus como ser em Fiacutelon em Plotino no comentaacuterio ao Parmecircnides atribuiacutedo a Porfiacuterio e nos primeiros filoacutesofos cristatildeos Finalmente examina-se a posiccedilatildeo assumida a este respeito por Tomaacutes de Aquino destacando nela a presenccedila de duas concepccedilotildees diversas do ser de Deus uma que reduz tal ser agrave simples existecircncia outra ao contraacuterio que o concebe como o somatoacuterio de todas as perfeiccedilotildees Enquanto a primeira concepccedilatildeo eacute exposta agraves criacuteticas de Aristoacuteteles e dos filoacutesofos analiacuteticos a segunda eacute subtraiacuteda (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa) Mesmo natildeo aderindo agraves criacuteticas dirigidas a Tomaacutes divulgo a existecircncia da discussatildeo httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismodio-come-essere-prof-

berti h) Intervenccedilatildeo de Enrico Berti por ocasiatildeo do Convegno Internazionale di

Filosofia Dio come Essere Metafisiche classiche e metafisiche analitiche O encontro foi promovido pelo Istituto di Studi Filosofici e Giornale di Metafisica de Lugano em maio de 2015 A intervenccedilatildeo eacute intitulada Argomenti aristotelici contro lrsquoesistencia di un Essere per essenza Novamente ressalto que natildeo concordo com as criacuteticas dirigidas a Tomaacutes de Aquino apenas registro a existecircncia do debate

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismodio-come-essere i) Enfim haacute uma intervenccedilatildeo de Berti no Convegno Internazionale di filosofia

Esistenza e Identitagrave O evento foi realizado pela Universitagrave Cattolica del Sacro Cuore de Milatildeo em maio de 2014 A intervenccedilatildeo eacute intitulada Una possibile interpretazione della metafisica classica

httpswwwrosminiinstituteitla-rosminianaconvegniesistenza-e-identita1560948369274-c01298b3-999e

7) Haacute um debate acerca da atualidade do pensamento de Tomaacutes o qual foi realizado a partir da apresentaccedilatildeo do livro Tommaso drsquoAquinomdash un profilo storico-filosofico (Carocci 2012 Esta obra possui uma ediccedilatildeo brasileira pela Loyola e estaacute indicada na bibliografia) de Pasquale Porro que se encontra publicado num canal do Youtube O diaacutelogo foi promovido pelo Centro Culturale di Milano Participaram da mesa Costantino Esposito o mediador Pasquale Porro o autor Onorato Grassi e Luca Bianchi os arguidores ambos medievalistas e expertos em Tomaacutes de Aquino

httpswwwyoutubecomwatchv=-NoXLrVoLUsampt=2530s

344 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

8) Existem vaacuterias intervenccedilotildees de Enrico Berti registradas em vaacuterios canais do Youtube Elenco apenas algumas

a) Aristotele e la philia httpswwwyoutubecomwatchv=-u1CQpAMtVg

b) La giustizia nella filosofia antica httpswwwyoutubecomwatchv=vUfJuCMaSeEampt=18s

c) Logos e techne nella filosofia antica httpswwwyoutubecomwatchv=9rOBUFLzovcampt=6s

d) Podcast dia-logando (Enrico Bertimdash PlatoneAristoteleParmenide) httpswwwyoutubecomwatchv=KGBrdgcuS4camplist=PL4D5B514D3F616

19F

e) Heidegger e letica aristotelica httpswwwyoutubecomwatchv=seHJS2hjRFU

f) Encontro de Apresentaccedilatildeo da nova traduccedilatildeo da Metafiacutesica de Aristoacuteteles feita por Enrico Berti A ediccedilatildeo que conta tambeacutem com introduccedilatildeo e notas do tradutor eacute da editora Laterza A parte mais instigante do encontro eacute a fala do erudito Berti explica que procurou afastar-se das traduccedilotildees que pretendiam transformar a Metafiacutesica numa teologia racional Esta tendecircncia de fazer da Metafiacutesica uma espeacutecie de teologia racional segundo Berti remonta ao ceacutelebre comentaacuterio agrave Metafiacutesica de Alexandre de Afrodiacutesia Ora este comentaacuterio sempre segundo o estudioso influenciou as antigas traduccedilotildees da obra e mesmo as interpretaccedilotildees que ela recebeu durante seacuteculos

httpswwwyoutubecomwatchv=i7NNekWgE_k g) Apresentaccedilatildeo do livro ldquoVeritagrave e comparazione in Aristotelerdquo (Venezia

Istituto Veneto di Scienze 2014) de Matteo Cosci com prefaacutecio de Enrico Berti O volume na verdade eacute a tese de doutorado do autor defendida na Universitagrave degli Studi di Padova sob a supervisatildeo de Enrico Berti No link abaixo a parte mais interessante satildeo as consideraccedilotildees iniciais de Berti

httpswwwyoutubecomwatchv=nQYC8zAJljMampt=233s h) Num encontro intitulado ldquoMente e Neuroscienzerdquo haacute uma intervenccedilatildeo de

Berti a uacuteltima de uma seacuterie sobre o tema ldquoMente e anima due entitagraverdquo Nela dialogando com autores contemporacircneos ele tenta mostrar a atualidade do conceito de psykhḗ de Aristoacuteteles como forma do corpo como ldquoato primeiro de um corpo fiacutesico que tem a vida em potecircnciardquo Apenas penso

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que a questatildeo da imortalidade da alma ao contraacuterio do que diz Berti eacute uma questatildeo filosoacutefica

httpswwwyoutubecomwatchv=-BcUVrWQcEAampt=4441s i) Veritagrave come conformitagrave mdash Dialogo tra Filosofia e Scienza

httpswwwyoutubecomwatchv=nycGmKFQDxo j) Una Filosofia metafisica

httpswwwyoutubecomwatchv=QZrAa1NqMGgampt=115s k) Intervista a Enrico Berti (Penso que o termo thaỹma diz mais do que fala

Berti na sua resposta O seu livro In principio era la meravigliamdash Le grandi questioni della filosofia antica editado pela Laterza possui uma traduccedilatildeo brasileira pela Loyola No princiacutepio era a maravilhamdash As grandes questotildees da filosofia antiga)

httpswwwyoutubecomwatchv=I_Mj1orEsck l) Intervista a Enrico Berti (O livro de Berti Sumphilosopheinmdash La vita

nellAccademia di Platone lanccedilado pela Laterza natildeo possui ateacute o momento uma ediccedilatildeo brasileira)

httpswwwyoutubecomwatchv=g95dIipDXcU m) Enrico Berti mdashPolitica di Aristotele

httpswwwyoutubecomwatchv=0b6T-pHeu4oampt=320s n) Tradurre o tradire la Metafisica di Aristotele ndash Lectio Prof Berti

httpswwwyoutubecomwatchv=l7CdFtiPi-wampt=1356s o) La ragione allrsquoinfinito

httpswwwyoutubecomwatchv=Ls4BPxnI5jkampt=748s p) Hegel e o livro Lambda da Metafiacutesica

httpswwwyoutubecomwatchv=HVsMA7WdbJkampt=1315s q) Enrico Berti ndash Il linguaggio nel pensiero di Aristotele

httpswwwyoutubecomwatchv=Wb-rMYubITUampt=344s r) Haacute vaacuterias liccedilotildees de Berti registradas no canal Festival filosofia

a) Sobre a amizade como virtude poliacutetica na Eacutetica a Nicocircmaco

httpswwwyoutubecomwatchv=ivO5S-DqpYU

b) Ainda sobre a amizade na Eacutetica a Nicocircmaco

httpswwwyoutubecomwatchv=xqLHT5k6Me4ampt=1107s

c) Sobre o tempo na Fiacutesica de Aristoacuteteles

httpswwwyoutubecomwatchv=2EahUfK474Uampt=906s

d) Sobre a megalopsykhiacutea na Eacutetica a Nicocircmaco

346 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

httpswwwyoutubecomwatchv=pfEiMEpTPQYampt=340s

e) Sobre a Poliacutetica de Aristoacuteteles Vejo com reserva o fato de Berti natildeo aceitar o termo comunidade para ajudar a entender o termo poacutelis Salva reverentia penso que desde que se esclareccedila o que se entende por comunidade esta palavra pode prestar bons serviccedilos

httpswwwyoutubecomwatchv=FL1o0yHEq58ampt=278s

f) Sobre a poiacuteēsis na Eacutetica a Nicocircmaco

httpswwwyoutubecomwatchv=fgZYPWkJop4ampt=956s

g) Sobre a verdade na Metafiacutesica de Aristoacuteteles

httpswwwyoutubecomwatchv=RhjX5OvPVeYampt=297s

h) Sobre o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo como fundamento da verdade

httpswwwyoutubecomwatchv=Wd_et-c0LOIampt=598s 9) Haacute finalmente uma conferecircncia particularmente ilustrativa de Enrico Berti

sobre o realismo de Aristoacuteteles Il realismo di Aristotele vecchio o nuovo A conferecircncia ocorreu durante o ciclo ldquoRealisms New and Oldrdquo promovido pelo filoacutesofo italiano Maurizio Ferraris que estaacute ligado agrave corrente denominada ldquoNuovo Realismordquo Berti fez a sua intervenccedilatildeo a partir de uma obra de Hilary Putnam traduzida para o italiano La filosofia nellrsquoetagrave della scienza Trad Luciana Ceri et al Bologna Il Mulino 2012 Neste livro o filoacutesofo americano dedica o capiacutetulo XII a Aristoacuteteles La mente di Aristotele e la mente contemporanea Na paacutegina 276 afirma Putnam ldquoPara Aristoacuteteles segundo a interpretaccedilatildeo que defendo na percepccedilatildeo e no pensamento a parte intelectiva da alma estaacute em contato direto com as propriedades das coisas pensadas Para usar a linguagem contemporacircnea os democritianos e os estoicos tinham uma teoria lsquorepresentacionalrsquo da percepccedilatildeo enquanto (segundo penso) os aristoteacutelicos eram lsquorealistas diretosrsquo Na concepccedilatildeo aristoteacutelica existem sem duacutevida algumas dificuldades Essas derivam do essencialismo implicado na noccedilatildeo aristoteacutelica de lsquoformarsquo e se agravam se sustentamos que a forma do objeto esteja na mente quando pensamos o objeto assim como quando o percebemos No caso do pensamento a forma da qual fala Aristoacuteteles parece ser aquilo que ele considera a lsquoessecircnciarsquo e encontro seacuterias

Saacutevio Laet de Barros Campos | 347

dificuldades na ideia de que podemos pensar somente coisas das quais conhecemos a lsquoessecircnciarsquo Mas Gisela Striker me sugeriu que no caso da percepccedilatildeo eacute improvaacutevel que Aristoacuteteles tenha em mente uma noccedilatildeo tatildeo rigorosa de forma Eacute plausiacutevel que a forma recebida na percepccedilatildeo seja simplesmente a forma sensiacutevel mdash a cor a forma a consistecircncia o som ou qualquer outra coisa Se interpretamos Aristoacuteteles deste modo ele parece dizer simplesmente que na percepccedilatildeo estamos conscientes das propriedades sensiacuteveis das coisas externas mdash da sua forma da sua cor e assim por dianterdquo (A traduccedilatildeo livre eacute nossa) Berti natildeo soacute concorda com Putnam como vai aleacutem

httpswwwyoutubecomwatchv=by8x28LAkm4ampt=4069s 10) Minhas monografias de conclusatildeo de licenciatura e de especializaccedilatildeo em

Filosofia pela UFMT foram em Tomaacutes de Aquino Ambas estatildeo publicadas pela Editora Fi e se encontram gratuitamente disponiacuteveis em PDF

httpswwweditorafiorg2526savio 11) Mantenho faz quase dez anos um site chamado Filosofante Nele trabalho

de forma introdutoacuteria questotildees concernentes ao pensamento do Aquinate httpwwwfilosofanteorgfilosofante

  • Agradecimentos
  • Lista de transliteraccedilotildees0F gregas1F
    • TRANSLITERACcedilAtildeO DOS DITONGOS
    • Transliteraccedilatildeo dos espiacuteritos brandos e aacutesperos
      • Sumaacuterio
      • Prefaacutecio
      • Apreciaccedilatildeo
      • Apresentaccedilatildeo
        • O legado tomista eacute pois imenso e se me perguntarem qual de suas obras eacute a mais importante direi que eacute a Suma Teoloacutegica E direi mais eacute a obra filosoacutefico teoloacutegica mais importante produzida pela Idade Meacutedia Isso natildeo desqualifica outras obras del
        • Voltemos agrave Suma Teoloacutegica A maior obra de Tomaacutes de Aquino e a mais importante obra do pensamento medieval natildeo surgiu de um grande projeto Frei Tomaacutes estava lecionando no Studium generale que a Ordem Dominicana acabava de criar em Roma Nada que se
        • Uma breve exposiccedilatildeo para principiantes acabou recebendo o nome de summa (resumo apanhado) uma summa que provocaria admiraccedilatildeo e respeito atraveacutes dos seacuteculos Em cerca de seis anos de 1268 a 1273 - apesar de muitos trabalhos entre os quais aleacutem de
        • A obra foi dividida em trecircs partes A primeira delas trata de Deus em si da Trindade e da criaccedilatildeo E quem natildeo recorre a ela quando deseja encontrar provas sobre a existecircncia de Deus (questatildeo 3) ou quando se pergunta sobre o que vem a ser esta criatu
        • A segunda parte eacute a mais longa ocupando cerca de 35 do total da obra Eacute dedicada toda ela agrave Moral enquanto regresso do homem para Deus Eacute a parte onde mais o autor apela para a Filosofia e para redigi-la eacute evidente que leu antes e comentou a Eacuteti
        • Concordo com os muitos que dizem ser a segunda parte da Suma Teoloacutegica o mais importante tratado de Eacutetica escrito ateacute hoje A Eacutetica Filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que o leitor encontraraacute a seguir confirma o que estou dizendo
        • Luis Alberto De Boni
          • Introduccedilatildeo
          • Capiacutetulo I
          • Filosofia e Eacutetica
            • 11 Do mito agrave filosofia o ldquothaỸmardquo como princiacutepio do filosofar
            • 12 Filosofia e ldquoalḖtheiardquo a filosofia como ldquofiliacuteardquo agrave ldquosofiacuteardquo
            • 13 A filosofia como ldquotheōriacuteardquo o nascimento da ldquoepistḖmērdquo pelo proceder do ldquodiaacutelogosrdquo
            • 14 Tomaacutes de Aquino e a ldquoFilosofiacuteardquo do ldquodiaacutelogosrdquo agrave ldquodisputatiordquo
              • Capiacutetulo II
              • A eacutetica enquanto ciecircncia em Aristoacuteteles
                • 21 Contextualizaccedilatildeo Histoacuterica da Eacutetica
                • 22 Preacircmbulos antropoloacutegicos e a Definiccedilatildeo de eacutetica
                • 23 TEacuteLOS E EYDAIMONIacuteA
                • 24 Eacutergon AretḖ e Kakiacutea
                • 25 PROAIacuteRESIS E BOYacuteLEYSIS
                • 26 Virtudes dianoeacuteticas e eacuteticas o conceito de justo meio quanto agraves virtudes eacuteticas
                • 27 O papel da amizade na eacutetica
                • 28 Contornos acerca do conceito de EYDAIMONIacuteA
                • 29 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA CIEcircNCIA EacuteTICA
                • 291 Froacutenēsis e epistḗmē
                • 292 A epistḗmē ēthikḗ enquanto epistḗmē politikḗ
                  • Capiacutetulo III
                  • A recepccedilatildeo da eacutetica aristoteacutelica na
                  • teologia moral de Tomaacutes
                    • 31 Contextualizaccedilatildeo criacutetica Tomaacutes como auCtor
                    • 32 O conceito de natureza em Tomaacutes
                    • 33 A concepccedilatildeo TOMASIANA DA EacuteTICA
                    • 34 O papel da razatildeo da Linguagem e da Lei na eacutetica TOMASIANA
                    • 341 Eacutetica das virtudes e lei natural
                    • 342 Eacutetica e direito
                    • 35 Civitas e beatitudo ou felicitas em Tomaacutes
                    • 36 DO livre-arbiacutetrio distintivo do ato humano Agrave pessoa
                    • 361 A pessoa
                    • 362 O bem uacutetil honesto e deleitaacutevel
                    • 37 A amizade
                    • 38 A racionalidade proacutepria DA eacutetica
                    • 381 Prudecircncia e filosofia praacutetica
                    • 382 Os eacutendoxa em Tomaacutes de Aquino
                      • Tomando por base estes pressupostos podemos considerar como funciona a razatildeo na eacutetica tomasiana
                        • 383 A racionalidade proacutepria da eacutetica tomasiana
                          • Capiacutetulo IV
                          • O conceito de Teologia em Tomaacutes de Aquino
                            • 41 O conceito de Teologia como ciecircncia em Tomaacutes
                            • 42 O ldquoobjetordquo da Teologia
                            • 43 O papel da filosofia na Teologia tomasiana
                            • 44 A face humana da Teologia TOMASIANA
                            • 45 Os ldquopreacutestimosrdquo da filosofia agrave Teologia
                            • 46 O MODO DE PROCEDER de Tomaacutes
                              • Capiacutetulo V
                              • Toacutepicos da Eacutetica Filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino
                                • 51 O que eacute o homem
                                • 52 A eacutetica INTEGRADA de Tomaacutes
                                • 53 As paixotildees da alma
                                • 54 A estrutura do ato humano
                                • 55 As virtudes
                                • 551 A bondade e a maliacutecia do ato humano
                                • 552 A definiccedilatildeo de virtude como habitus e meio-termo da razatildeo
                                • 553 A conexatildeo das virtudes
                                • 554 As virtudes cardeais
                                  • Conclusatildeo
                                  • Referecircncias
                                    • A) Fontes PRIMAacuteRIAS
                                    • B) FONTES SECUNDAacuteRIAS
                                      • Para saber mais
Page 2: Epedagogia · 2020. 3. 29. · Diagramação e capa: Lucas Fontella Margoni Arte de capa: Detalhe do Retrato de Santo Tomas de Aquino, por P. Joos van Gent e Berruguetee O padrão

Direccedilatildeo Editorial

Lucas Fontella Margoni

Comitecirc Cientiacutefico

Prof Dr Angelo Aparecido Zanoni Ramos

Profordf Drordf Maria Cristina Theobaldo

Prof Dr Luis Alberto De Boni

Prof Dr Aloir Pacini SJ

Saacutevio Laet de Barros Campos

A eacutetica filosoacutefica em

TOMAacuteS DE AQUINO

2ordf ediccedilatildeo - Revisada e Atualizada

φ editora fi

Diagramaccedilatildeo e capa Lucas Fontella Margoni Arte de capa Detalhe do Retrato de Santo Tomas de Aquino por P Joos van Gent e Berruguetee O padratildeo ortograacutefico o sistema de citaccedilotildees e referecircncias bibliograacuteficas satildeo prerrogativas do autor Da mesma forma o conteuacutedo da obra eacute de inteira e exclusiva responsabilidade de seu autor

Todos os livros publicados pela Editora Fi estatildeo sob os direitos da Creative Commons 40 httpscreativecommonsorglicensesby40deedpt_BR

httpwwwabecbrasilorgbr Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP) CAMPOS Saacutevio Laet de Barros A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino [recurso eletrocircnico] Saacutevio Laet de Barros Campos -2ordf Ediccedilatildeo - Porto Alegre RS Editora Fi 2017 347 p ISBN - 978-85-5696-251-5 Disponiacutevel em httpwwweditorafiorg 1 Eacutetica Filosoacutefica 2 Teologia Moral 3 Aristoacuteteles 4 Tomaacutes de Aquino I Tiacutetulo

CDD-170

Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico 1 Eacutetica 170

A Jesus Eucariacutestico agrave Santiacutessima Virgem

ao glorioso Santo Tomaacutes de Aquino aos meus amados e inestimaacuteveis pais Armando e Darci agrave minha querida e insubstituiacutevel madrinha Luzia Maria [in memoriam] agrave pequena Amanda

Rodrigues [in memoriam] garotinha digna de ser amada agrave minha diletiacutessima tia-avoacute Irmatilde Denise Marie [in memoriam] Irmatildes Azuis e aos mestres Prof Dr

Peter Buumlttner Prof Dr Joseacute Jivaldo Lima e Prof Dr Luiz Jean Lauand

Agradecimentos

Ao professor Dr Angelo Aparecido Zanoni Ramos e agrave Profordf Drordf Maria Cristina Theobaldo por ter-nos pacientemente orientado como tambeacutem pela valiosa amizade compreensatildeo apoio em todos os momentos e dedicaccedilatildeo ao ofiacutecio de ensinar de que somente satildeo capazes aqueles verdadeiramente dignos de serem chamados mestres

Aos examinadores Prof Dr Luis Alberto De Boni Prof Dr Roberto Hofmeister Pich e Prof Dr Aloir Pacini SJ que gentilmente cederam parte de seu valioso tempo para a leitura e avaliaccedilatildeo deste trabalho e ao Coordenador do Programa Prof Dr Tiegue Vieira Rodrigues pelo precioso auxiacutelio e atenccedilatildeo em todos os momentos ao Prof Dr Gabriel Mograbi ao Prof Dr Silas Borges Monteiro agrave Profordf Drordf Sara Pozzer da Silveira ao Prof Dr Wendell Lopes ao Prof Dr Walter Gomide ao Prof Dr Roberto de Barros Freire agrave Drordf Michella Lopes Velaacutesquez agrave Drordf Daniela Piau de Lima Maitelli ao Prof Dr Fabio di Clemente graccedilas ao qual comecei a tomar contato com a tradiccedilatildeo filosoacutefica italiana ao Prof Vito Nunziante (meu mestre de italiano) que pacientemente revisou vaacuterias das minhas traduccedilotildees e ao Prof Otaacutevio de Lima e Silva (meu professor de grego e revisor teacutecnico do grego deste trabalho) pelo apoio e inestimaacutevel auxiacutelio que sempre nos dispensaram

Aos meus pais amigos e colegas (em especial agrave senhora Nasla Rodrigues Gonccedilalves de Saboacuteia Campos pela receptividade a Joatildeo Paulo Martins Juliano Xavier e Fernanda Marcia da Luz Rondon) que muito nos auxiliaram e cujo incentivo ajuda praacutetica apoio moral e acolhida nunca poderatildeo ser suficientemente retribuiacutedos

Agrave CAPES agecircncia financiadora da pesquisa sem a qual o nosso estudo e este trabalho natildeo teriam sido possiacuteveis

ldquoConstatemos que mesmo para os contemporacircneos o

tomismo tinha um cariz propriamente filosoacutefico Possuiacutea tambeacutem um certo ar de Renascimentordquo

Paul Vignaux

ldquo[Tomaacutes] pensa que a razatildeo se se manteacutem aderente agrave sua ordem atinge a verdade ateacute onde eacute capaz sem depender em nada da feacuterdquo

Henry Dumeacutery

ldquoAgrave sua proacutepria maneira a Summa Theologiae eacute

uma obra-prima da literatura filosoacuteficardquo

Anthony Kenny

ldquoO mestre natildeo deve portanto fazer mais que levar o disciacutepulo ao conhecimento daquilo que lhe eacute desconhecido seguindo o mesmo

percurso pelo qual teria chegado sozinho (ou pelo qual outros chegam sozinhos) ou seja deve explicar com sinais apropriados (palavras) o percurso que a razatildeo eacute capaz de realizar sozinha A aprendizagem natildeo eacute portanto senatildeo uma forma de descoberta

guiada de fora e que sempre se apoia na proacutepria razatildeo natural do disciacutepulo

Se assim natildeo fosse isto eacute se o mestre natildeo confiasse nos princiacutepios naturais que estatildeo presentes nele como em seu

disciacutepulo esse uacuteltimo natildeo adquiriria verdadeiramente ciecircncia limitar-se-ia a crer em alguma coisa ou a

consideraacute-la verdadeira natildeo a compreendecirc-la ou desenvolveria feacute ou opiniatildeo mas natildeo exatamente ciecircnciardquo

Pasquale Porro

Lista de transliteraccedilotildees1 gregas2 Αα = Aa Ββ = Bb

Γγ = Gg Δδ = Dd

Εε = Ee Ζζ = Zz

Ηη = Ēē Θθ = Th (como no inglecircs think)

Ιι = Ii Κκ = Kk

Λλ = Ll Μμ = Mm

Νν = Nn Ξξ = Xx (como em taacutexi)

Οο = Oo Ππ = Pp

Ρρ = Rr Σσ = Ss

Σς (forma final) = Ss Ττ = Tt

Υυ = Yy (como o ldquourdquo francecircs) Φφ = Ff

Χχ = Kh (como em carro) Ψψ = Ps

Ωω = Ōō

1 Transliteraccedilatildeo eacute um ldquoato ou efeito de transliterarrdquo com a funccedilatildeo de ldquorepresentar uma letra de um (vocaacutebulo) por uma letra diferente no correspondente vocaacutebulo de outra liacutenguardquo (AULETE Caldas Transliteraccedilatildeo In______ Dicionaacuterio Contemporacircneo da Liacutengua Portuguesa 5 ed Rio de Janeiro Delta 1970 p 3629 v 5) De forma simplificada eacute a substituiccedilatildeo de um caractere da liacutengua de origem para outro da liacutengua de destino Eacute oriunda do latim trans (aleacutem) + litera (letra) (Idem Op Cit) 2 Compomos aqui uma lista de transliteraccedilotildees greco-portuguesas que convencionalmente adotamos ao longo deste trabalho Nem todas as transliteraccedilotildees apresentadas aqui satildeo usadas no texto O que pretendemos eacute oferecer uma ferramenta completa para possibilitar ao leitor reconhecer os termos gregos em portuguecircs

VOGAIS ACENTUADAS3

ᾶ = atilde ά = aacute ὰ = agrave έ = eacute ὲ = egrave ῆ = ẽ ή = ḗ ὴ = ḕ ῖ = ĩ ί = iacute ὶ = igrave ό = oacute ὸ = ograve ῦ = ỹ ύ = yacute ὺ = ỳ ῶ = ȭ ώ = ṓ ὼ = ṑ TRANSLITERACcedilAtildeO DOS DITONGOS αι = ai ΑΙ = AI ει = ei ΕΙ = EI οι = oi ΟΙ = OI υι = yi ΥΙ = YI αυ = ay ΑΥ = AY ευ = ey ΕΥ = EY ηυ = ēy ΗΥ = ĒY ου = oy ΟΥ = OY ωυ = ōy ΩΥ = OY TRANSLITERACcedilAtildeO DOS ESPIacuteRITOS BRANDOS E AacuteSPEROS ἁ = ha ἀ = α ἑ = he ἐ = e ἡ = hē ἠ = ē ἱ = hi ἰ = i ὁ = ho ὀ = o ὑ = hy ὐ = y ὡ = hō ὠ = ō

3 Os acentos foram mantidos em portuguecircs da mesma forma graacutefica que aparece em grego na esteira das observaccedilotildees apresentadas por Antocircnio Freire (FREIRE Antocircnio Gramaacutetica grega 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 pp 4-9)

Sumaacuterio Prefaacutecio 17 Apreciaccedilatildeo - Frei Carlos Josaphat 19 Apresentaccedilatildeo - Luis Alberto De Boni 21 Introduccedilatildeo 27 Capiacutetulo I 49 Filosofia e Eacutetica 11 Do mito agrave filosofia o ldquothaỹmardquo como princiacutepio do filosofar 50 12 Filosofia e ldquoalḗtheiardquo a filosofia como ldquofiliacuteardquo agrave ldquosofiacuteardquo 54 13 A filosofia como ldquotheōriacuteardquo o nascimento da ldquoepistḗmērdquo pelo proceder do ldquodiaacutelogosrdquo 59 14 Tomaacutes de Aquino e a ldquoFilosofiacuteardquo do ldquodiaacutelogosrdquo agrave ldquodisputatiordquo 66 Capiacutetulo II 75 A eacutetica enquanto ciecircncia em Aristoacuteteles 21 Contextualizaccedilatildeo Histoacuterica da Eacutetica 76 22 Preacircmbulos antropoloacutegicos e a Definiccedilatildeo de eacutetica 80 23 Teacutelos e Eydaimoniacutea 90 24 Eacutergon Aretḗ e Kakiacutea 92 25 Proaiacuteresis e boyacuteleysis 96 26 Virtudes dianoeacuteticas e eacuteticas o conceito de justo meio quanto agraves virtudes eacuteticas 98 27 O papel da amizade na eacutetica 101 28 Contornos acerca do conceito de Eydaimoniacutea 112 29 A racionalidade proacutepria da ciecircncia eacutetica 123 291 Froacutenēsis e Epistḗmē 123 292 A Epistḗmē Ēthikḗ enquanto Epistḗmē Politikḗ 128 Capiacutetulo III 149 A recepccedilatildeo da eacutetica aristoteacutelica na teologia moral de Tomaacutes 31 Contextualizaccedilatildeo criacutetica Tomaacutes como auctor 149 32 O conceito de natureza em Tomaacutes 153 33 A concepccedilatildeo tomasiana da eacutetica 160 34 O papel da razatildeo da Linguagem e da Lei na eacutetica tomasiana 162 341 Eacutetica das virtudes e lei natural 171

342 Eacutetica e direito 177 35 Civitas e beatitudo ou felicitas em Tomaacutes 181 36 Do livre-arbiacutetrio distintivo do ato humano agrave pessoa 188 361 A pessoa 200 362 O bem uacutetil honesto e deleitaacutevel 203 37 A amizade 211 38 A racionalidade proacutepria da eacutetica 218 381 Prudecircncia e filosofia praacutetica 218 382 Os eacutendoxa em Tomaacutes de Aquino 227 383 A racionalidade proacutepria da eacutetica tomasiana 232 Capiacutetulo IV 237 O conceito de Teologia em Tomaacutes de Aquino 41 O conceito de Teologia como ciecircncia em Tomaacutes 238 42 O ldquoobjetordquo da Teologia 241 43 O papel da filosofia na Teologia tomasiana 241 44 A face humana da Teologia tomasiana 250 45 Os ldquopreacutestimosrdquo da filosofia agrave Teologia 254 46 O modo de proceder de Tomaacutes 258 Capiacutetulo V 261 Toacutepicos da Eacutetica Filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino 51 O que eacute o homem 261 52 A eacutetica integrada de Tomaacutes 266 53 As paixotildees da alma 277 54 A estrutura do ato humano 284 55 As virtudes 288 551 A bondade e a maliacutecia do ato humano 288 552 A definiccedilatildeo de virtude como habitus e meio-termo da razatildeo 290 553 A conexatildeo das virtudes 294 554 As virtudes cardeais 299 Conclusatildeo 309 Referecircncias 323 A) Fontes Primaacuterias 323 B) Fontes Secundaacuterias 327 Para saber mais 339

Prefaacutecio

Eacute com alegria que apresento a segunda ediccedilatildeo de A Eacutetica Filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Trata-se da minha dissertaccedilatildeo de mestrado em filosofia pela UFMT (2016) aprovada com louvor Segue o texto revisado e corrigido com desvelo por mim Fiz um esforccedilo hercuacuteleo a fim de sanar quaisquer impropriedades e imprecisotildees que ainda restassem Reli-o sob a oacutetica filosoacutefica e histoacuterica depois sob a gramatical e estiliacutestica Revisei conferindo com os originais as citaccedilotildees em liacutengua portuguesa em seguida revisei as em liacutengua estrangeira e suas respectivas traduccedilotildees Tambeacutem conferi a bibliografia ampliando-a e atualizando os links consultados A abundacircncia de citaccedilotildees eacute apenas um convite agrave leitura e para que todos participem da mesma emoccedilatildeo que sinto ao ler Tomaacutes O texto vem enriquecido por uma Apresentaccedilatildeo do professor Luis Alberto de Boni que fez parte da minha Banca e a quem agradeccedilo penhoradamente Para esta segunda ediccedilatildeo natildeo posso deixar de expressar a diacutevida moral de gratidatildeo que contraiacute com o autor do livro Paradigma Teoloacutegico de Tomaacutes de Aquino nosso frei Carlos Josaphat que neste interregno gentilmente fez uma Apreciaccedilatildeo do trabalho e me ofereceu a sua preciosa amizade Deixo meu muito obrigado agraves senhoras Maria de Lourdes Mendes e Lilian Contreira que singela e amavelmente possibilitaram o meu contato com o frei Carlos Sem ter sofrido nenhuma mudanccedila substancial gostaria de que o texto fosse lido ou relido nesta versatildeo revisitada e atualizada E se pudesse resumir em poucas palavras o que pretendi com esta perquiriccedilatildeo usaria os mesmos termos de Anthony Kenny em reposta a Bertrand Russell Este uacuteltimo em sua Histoacuteria da filosofia ocidental afirmava haver pouco do espiacuterito filosoacutefico em Tomaacutes por supor que Aquino jaacute soubesse de antematildeo mdash em virtude de sua adesatildeo agrave feacute catoacutelica mdash o que buscava descobrir com um argumento Ao que Kenny responde em sua Uma nova histoacuteria da filosofia ocidental

18 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Julgamos um filoacutesofo pelo fato de seus raciociacutenios serem acertados ou natildeo natildeo em funccedilatildeo de onde pela primeira vez se elucidou em relaccedilatildeo agraves suas premissas ou de como pela primeira vez passou a crer em suas conclusotildees A hostilidade a Aquino com base em sua posiccedilatildeo oficial no catolicismo eacute assim injustificada ainda que compreensiacutevel mesmo para filoacutesofos seculares (KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental Filosofia Medieval Trad Edson Bini Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 v 2 p 98)

Inobstante a minha consagraccedilatildeo ao estudo uma devoccedilatildeo

aprovaccedilatildeo oniacutemoda natildeo existe Se o texto se ressente ainda de lacunas e ambiguidades isto se deve seja a questotildees de espaccedilo seja em razatildeo dos meus limites Por esta segunda e derradeira ediccedilatildeo agradeccedilo de modo especial ao editor e colega Lucas Margoni que pacientemente acompanhou os tracircmites de toda esta induacutestria Por fim tomando distacircncia despeccedilo-me deste trabalho certo de que nele entreguei o melhor de mim naquele momento

Sempre Saacutevio Laet

Apreciaccedilatildeo

A mensagem que vocecirc jaacute enviou e jaacute elaborou eacute de extraordinaacuteria riqueza Vocecirc leva muito longe a pesquisa e a sua elaboraccedilatildeo Ousaria dizer que na perspectiva globalizada em que vocecirc se coloca natildeo tiacutenhamos ateacute agora um trabalho dessa natureza e levado adiante com tal conjunto de qualidades

No centro do seu trabalho estaacute a obra-prima de Tomaacutes a Suma de Teologia bem como a Suma Contra os Gentios Um estudo deste nuacutecleo de suas pesquisas e da condensaccedilatildeo agrave qual vocecirc jaacute chegou seraacute um bom ponto de partida para todos os que se interessam por esse campo da ciecircncia sagrada

Gostaria quase de dizer que natildeo se trata apenas de uma contribuiccedilatildeo importante eu a considero original e singular pelo seu conteuacutedo pelo empenho visado de ir sempre ao essencial e de recorrer a todos os meios para valorizar este essencial Para isso o estudioso do tomismo da Teologia claacutessica do cristianismo e de modo geral quem se interessa pela religiatildeo cristatilde conta hoje com sua contribuiccedilatildeo como sendo a mais completa a mais bem ordenada de elementos analisados como conveacutem

Temos assim em matildeos um estudo que se pode considerar substancialmente acabado anunciado como sendo a demonstraccedilatildeo da existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica aristoteacutelica estruturando intelectualmente a teologia moral de Tomaacutes de Aquino

A partir desse projeto preciso e jaacute bem realizado vai surgindo outro muito promissor que assume condensa enriquece e aperfeiccediloa os estudos jaacute existentes sobre o tema Todo universo da moral teoloacutegica de Tomaacutes eacute oferecido de maneira mais completa e rigorosa ordenado em torno da metafisica da ldquomateacuteria e formardquo Sugeri que se aprofundasse essa anaacutelise recorrendo agrave noccedilatildeo mais profunda e universal de ldquoato e potecircnciardquo Tenho para mim que a metafiacutesica do Ato puro (e infinito) de Deus e do ato e potecircncia nas criaturas constitui a base da construccedilatildeo filosoacutefica de Tomaacutes por ele integrada em toda a sua siacutentese filosoacutefica e teoloacutegica

20 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

O estudo dessa conjunccedilatildeo ldquoatopotecircnciardquo veio ampliar e aprimorar a imensa e valiosa siacutentese elaborada a partir ldquoda mateacuteria e formardquo por Saacutevio Laet Ele propotildee uma compreensatildeo muito rica e atualizada da Suma de Tomaacutes utilizando o que haacute de melhor nos tomistas de ontem e de hoje acrescentando a novidade de sua proacutepria reflexatildeo servida por um meacutetodo original susceptiacutevel de oferecer uma nova visatildeo do tomismo

Frei Carlos Josaphat OP

Satildeo Paulo 20 de outubro de 2017

Apresentaccedilatildeo

Inicio esse texto citando o luterano Rudolf von Ihering um dos maiores juristas do seacuteculo XIX Ao preparar a segunda ediccedilatildeo de A finalidade do Direito (Zweck im Recht) obra que todo o jurista conhece resolveu acrescentar uma nota que ateacute hoje eacute citada Ele a inicia agradecendo ao padre catoacutelico D Haoff que lhe indicara alguns textos referentes ao direito provenientes de Tomaacutes de Aquino algueacutem cuja obra lhe era ateacute entatildeo desconhecida E prossegue ldquoEsse padre provou-me atraveacutes de citaccedilotildees de Tomaacutes de Aquino que esse grande espiacuterito jaacute havia reconhecido plenamente o momento realiacutestico-praacutetico social e tambeacutem histoacuterico da Eacutetica No que se refere a mim natildeo posso recusar a acusaccedilatildeo de desconhecimento que D Haoff me faz mas com um peso bem maior essa acusaccedilatildeo atinge os filoacutesofos modernos e os teoacutelogos luteranos que perderam a oportunidade de valer-se dos grandiosos pensamentos desse homem Admirado eu me pergunto como foi possiacutevel que tais verdades depois de terem sido escritas caiacuteram em tatildeo grande esquecimento por parte da nossa ciecircncia protestante Quantos descaminhos ela poderia ter evitado se as houvesse tomado a seacuterio De minha parte se jaacute as houvesse conhecido talvez eu natildeo tivesse escrito todo meu livro pois as ideias fundamentais e era com elas que eu me preocupava encontram-se jaacute naquele portentoso pensador com plena clareza e expressas com termos lapidaresrdquo1

1 Derselbe weist mir durch Zitate aus Thomas ab Aquino nach dass dieser grosse Geist das realistisch-praktische und gesellschaftlische Moment des Sittlichen ebenso wie das historiche bereits vollkommen richtig erkannt hatte Den Vorwurf der Unkenntnis den er fuumlr mich daran knupft kann ich nicht von mir ablehnen aber mit ungleich schwererem Gewicht als mich trifft er die modernen Philosophen und protestantischen Theologen die es versaumlumt haben sich die grossartigen Gedanken dieses Mannes zunutze zu machen Staunend frage ich mich wie war es motildeglich dass solche Wahrheiten nachdem sie einmal ausgesprochen waren bei unserer protestantischen Wissenschaft so gaumlnzlich in Vergessenheit geraten konten Welche Irrwege haumltte sie sich ersparen koumlnne wenn sie dieselben beherzigt hatte Ich meinerseits haumltte vielleicht mein ganzes Buch nicht geschrieben wenn ich sie gekannt hatte denn die Grundgedanken um die es mir zu tun war finden sich schon bei jenem gewaltigen Denker in vollendeter Klarheit und praumlgnantester Fassung ausgesprochen (RUDOLF von IHERING Zweck im Recht 4a ed 1905 c IX n 161 nota 2 p 125)

22 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Para evitar polecircmicas situemos esse texto em seu tempo Quando Ihering escreveu sua obra as divergecircncias entre catoacutelicos e luteranos (e demais reformados) eram grandes ainda estavam sangrando as feridas abertas pelo embate entre a Reforma e a Contra-Reforma No decorrer do tempo sempre houve quem procurou se aproximar do oponente como foram por exemplo os casos dos protestantes H Grotius e G W Lebniz Na Igreja Catoacutelica no iniacutecio do seacuteculo XIX houve tambeacutem os que tentaram aproximaccedilatildeo dialogando com filoacutesofos luteranos mas acabaram sendo condenados por Roma foram os casos dos padres G Hermes e A Guumlnther considerados hoje como precursores de muitas ideias inovadores aceitas pela Igreja No decliacutenio do seacuteculo XIX a Histoacuteria comeccedilou a tomar outros rumos Enfim o seacuteculo XX conheceu o Movimento Ecumecircnico (uma iniciativa dos diversos ramos evangeacutelicos) e da parte da Igreja Catoacutelica o Conciacutelio Ecumecircnico Vaticano II levou a uma grande abertura para com os ldquoirmatildeos separadosrdquo Hoje os catoacutelicos leem M Lutero R Bultmann O Cullman e K Barth do mesmo modo como os luteranos leem Tomaacutes de Aquino K Rahner H de Lubac e Bernard Lonergan

Tomaacutes de Aquino foi um dos grandes filoacutesofos de todos os

tempos2 Legou-nos uma obra imensa que desde 1882 vem sendo publicada em ediccedilatildeo criacutetica Satildeo previstos ao todo 50 volumes sendo alguns deles divididos em dois ou trecircs Neles encontram-se cerca de 40 mil citaccedilotildees o que fez Umberto Eco dizer que um outro autor que apresentasse tantas citaccedilotildees acabaria fazendo um pastiche

2 Sobre a vida e a obra de Tomaacutes de Aquino cfr J-P Torrell Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 2011C Josaphat Paradigma Teoloacutegico de Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2012

Saacutevio Laet de Barros Campos | 23

Trata-se pois de uma produccedilatildeo imensa agrave qual a de poucos pensadores posteriores pode ser comparada Algueacutem poderaacute dizer a respeito que se tratava de um frade que natildeo precisava se preocupar com o modo de ganhar a vida e que por isso dedicou todo seu tempo ao ofiacutecio de professor Na resposta a isso devem ser feitas duas observaccedilotildees Em primeiro lugar Tomaacutes natildeo foi apenas professor Ele foi missionaacuterio deslocou-se de um local para outro por ordem dos superiores e assim percorreu a peacute ndash como deviam fazer os frades mendicantes ndash cerca de 10 mil quilocircmetros entre Itaacutelia Alemanha e Franccedila Assumiu diversos cargos dentro da Ordem Dominicana e trabalhou tambeacutem como assessor na corte papal entatildeo situada em Orvieto Em segundo lugar eacute preciso levar em conta os anos que dedicou agrave vida acadecircmica A expectativa de vida na Idade Meacutedia estava longe daquela de hoje Houve alguns poucos mestres de seu tempo que tiveram uma longa vida Alberto Magno faleceu aos 80 anos Rogeacuterio Bacon aos 78 Egiacutedio Romano e Guilherme de Moerbeke aos 71 A maioria poreacutem partiu bem antes Marsiacutelio de Paacutedua aos 63 Ockham aos 62 Alexandre de Hales aos 58 Satildeo Boaventura aos 57 Dante e Godofredo de Fontaines aos 56 Henrique de Gand aos 53 E entatildeo chega a vez dos jovens Pedro de Joatildeo Olivi faleceu aos 50 anos Tomaacutes de Aquino aos 4950 Duns Scotus aos 42 Joatildeo Quidort aos 41 e Siacuteger de Brabante aos 40

Santo Tomaacutes nasceu em 12241225 e faleceu em 07031274 Por volta de 1250 sendo assistente de Alberto Magno em Colocircnia publicou o Comentaacuterio sobre Isaiacuteas e em 1273 na qualidade de professor em Naacutepoles deixou inesperadamente de escrever Isso significa que sua vida acadecircmica durou cerca de 23 anos Noutras palavras teve 23 anos para produzir sua obra imensa a maior da Idade Meacutedia Homem de memoacuteria fora do comum e de inteligecircncia aguda era capaz de ditar ao mesmo tempo para trecircs ou quatro secretaacuterios ndash algo raro de que Ceacutesar e Napoleatildeo tambeacutem eram capazes Contam seus bioacutegrafos que muitas vezes um dos secretaacuterios velava noite a fora pois podia

24 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino acontecer que ele acordasse e entatildeo dissesse ldquoEscreve frei Fulanordquo e laacute ficava ele a ditar madrugada a dentro C Wolf E Husserl e M Heidegger trecircs grandes pensadores da modernidade legaram-nos uma imensa produccedilatildeo intelectual cada um deles contando para tanto com cerca de 60 anos de vida acadecircmica E no entanto Frei Tomaacutes com parcos 23 anos de magisteacuterio rivaliza com eles

O legado tomista eacute pois imenso e se me perguntarem qual de suas obras eacute a mais importante direi que eacute a Suma Teoloacutegica E direi mais eacute a obra filosoacutefico teoloacutegica mais importante produzida pela Idade Meacutedia Isso natildeo desqualifica outras obras dele como a Suma contra gentiles a seacuterie de Quaestiones disputatae e outras mais E tambeacutem natildeo deprecia as de outros autores Alexandre de Hales (+ 1245) por exemplo serviu de modelo e teve grande significado para Tomaacutes pois foi o primeiro a escrever uma Summa Theologiae na qual repensou autores cristatildeos do passado como Agostinho e Dioniacutesio recuperou outros como Anselmo e Bernardo e tambeacutem deu espaccedilo para natildeo- cristatildeos como Aristoacuteteles Avicena e Averroacuteis que naquela eacutepoca estavam sendo traduzidos A obra tomasiana tambeacutem natildeo obnubilou a de conterracircneos e poacutesteros Citemos por exemplo o franciscano Joatildeo Duns Scotus (+1308) que muitos equiparam a Tomaacutes e cujas ideias influenciaram Suaacuterez Wolf Kant Pierce Heidegger Zubiri e muitos outros

Voltemos agrave Suma Teoloacutegica A maior obra de Tomaacutes de Aquino e a mais importante obra do pensamento medieval natildeo surgiu de um grande projeto Frei Tomaacutes estava lecionando no Studium generale que a Ordem Dominicana acabava de criar em Roma Nada que se comparasse com os Studia de Paris Colocircnia ou Naacutepoles E os alunos tambeacutem natildeo se comparavam com os dos outros centros Vendo que comentar o Livro das Sentenccedilas de

Saacutevio Laet de Barros Campos | 25

Pedro Lombardo como fizera em Paris era exigir demais daqueles jovens que acabavam ldquono teacutedio e na confusatildeordquo ele resolveu entatildeo redigir algo mais simples E dizia numa introduccedilatildeo de 20 linhas ldquoEsforccedilando-nos por evitar esses e outros defeitos tentaremos confiantes no divino auxiacutelio expor breve e lucidamente o que respeita agrave doutrina sagrada na medida em que a mateacuteria o comportardquo

Uma breve exposiccedilatildeo para principiantes acabou recebendo o nome de summa (resumo apanhado) uma summa que provocaria admiraccedilatildeo e respeito atraveacutes dos seacuteculos Em cerca de seis anos de 1268 a 1273 - apesar de muitos trabalhos entre os quais aleacutem de aulas de dirigir questotildees disputadas e de escrever outros livros estatildeo 12 comentaacuterios a obras de Aristoacuteteles salientando-se a Eacutetica a Fiacutesica e a Metafiacutesica - Tomaacutes redigiu com auxiacutelio de seus secretaacuterios a Summa Theologiae um volumoso compecircndio (satildeo 4445 paacuteginas na ediccedilatildeo brasileira de Alexandre Correa 19801981) recheado por centenas de citaccedilotildees biacuteblicas e de autores de todas as proveniecircncias

A obra foi dividida em trecircs partes A primeira delas trata de Deus em si da Trindade e da criaccedilatildeo E quem natildeo recorre a ela quando deseja encontrar provas sobre a existecircncia de Deus (questatildeo 3) ou quando se pergunta sobre o que vem a ser esta criatura racional que eacute o homem (qq 7- 89) A terceira parte ficou incompleta (seus auxiliares haveriam de concluiacute-la) Ela trata de Cristo nosso Redentor e dos sacramentos (ateacute a Confissatildeo) A piedade do autor dos hinos Pange lingua e Adoro te devote encanta a leitura da Cristologia

A segunda parte eacute a mais longa ocupando cerca de 35 do total da obra Eacute dedicada toda ela agrave Moral enquanto regresso do homem para Deus Eacute a parte onde mais o autor apela para a Filosofia e para redigi-la eacute evidente que leu antes e comentou a Eacutetica a Nicocircmaco da qual dispunha jaacute da nova traduccedilatildeo de Roberto Grosseteste acompanhada dos comentaacuterios de Eustraacutecio e Miguel de Eacutefeso e acabava de ser comentada pela segunda vez por seu

26 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Mestre Alberto Magno E como natildeo poderia deixar de ser tinha agrave sua frente tambeacutem o comentaacuterio de Averroacuteis Permito-me ressaltar trecircs temas tratados nessa parte Em primeiro lugar a pergunta sobre o fim uacuteltimo do homem que eacute a felicidade (qq 1-5) em segundo lugar o tratado a respeito dos atos humanos (qq 7-48) enfim o claacutessico tratado De lege (Sobre a Lei) (qq 90-97) que se tornou um verdadeiro manual de estudos juriacutedicos

Concordo com os muitos que dizem ser a segunda parte da Suma Teoloacutegica o mais importante tratado de Eacutetica escrito ateacute hoje A Eacutetica Filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que o leitor encontraraacute a seguir confirma o que estou dizendo

Luis Alberto De Boni

Introduccedilatildeo

A proposta deste trabalho eacute mostrar a existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica no bojo da teologia moral de Tomaacutes de Aquino em sua mais acabada formulaccedilatildeo vale dizer a IIa parte da Summa Theologiae A fim de delimitar a nossa temaacutetica importa fazermos algumas consideraccedilotildees Natildeo pretendemos expor sistematicamente a eacutetica filosoacutefica tomasiana mas apenas atestar que ela existe Nem tencionamos apresentar um Tomaacutes unicamente filoacutesofo ou mero comentador de Aristoacuteteles Chesterton mdash em sua obra sobre o Aquinate mdash assevera que ele era reconhecido como um autor (auctor) mesmo entre os seus coetacircneos

Um arguto observador contemporacircneo de Tomaacutes de Aquino afirmou que este ldquopoderia sozinho restaurar toda a filosofia se ela tivesse sido queimada pelo fogordquo Eacute por isso que se diz que Tomaacutes foi um homem original uma mente criativa ele poderia ter criado seu proacuteprio universo a partir de pedras e paus mesmo sem os manuscritos de Aristoacuteteles ou de Agostinho1

Ademais eacute inegaacutevel que Frei Tomaacutes eacute antes de tudo um

teoacutelogo e as suas obras magnas satildeo sumas de teologia sendo inclusive a sua moral fundamentalmente uma moral teoloacutegica Natildeo haacute como apagar a afirmaccedilatildeo feita na Summa Contra Gentiles

Por isso sirvo-me aqui das palavras de Hilaacuterio Estou consciente de que o principal ofiacutecio da minha vida eacute referente a Deus de modo que toda palavra minha e todos os meus sentidos dele falem (I Sobre a Trindade 37 PL 10 48 D)2

1 CHESTERTON Satildeo Tomaacutes de Aquino e Satildeo Francisco de Assis Trad Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonccedilalves Rio de Janeiro Ediouro 2003 p 316 2 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios Trad Odilatildeo Moura Rev Luis A De Boni Porto Alegre Sulina 1990 I II 2 [9] ldquo[] ut enim verbis Hilarii utar ego hoc vel praecipuum vitae meae officium debere me Deo conscius sum ut eum omnis sermo meus et sensus loquaturrdquo

28 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

O que buscamos evidenciar eacute que integrada agrave sua teologia moral mdash constituindo parte da sua sabedoria teoloacutegica mdash haacute uma conceptualidade filosoacutefica tambeacutem no acircmbito da eacutetica Eis o nosso escopo mostrar que sem prejuiacutezo da teologia propriamente dita Tomaacutes integra agrave sua sabedoria teoloacutegica uma eacutetica filosoacutefica a qual permanece mdash ainda que integrada a uma teologia moral mdash genuinamente filosoacutefica Como diz Carlos Josaphat

O paradigma de Tomaacutes confere portanto agrave eacutetica uma consistecircncia universal primordialmente humana racional suscetiacutevel de uma elaboraccedilatildeo filosoacutefica Mas semelhante projeto de plena realizaccedilatildeo humana pelas virtudes morais eacute chamado a se inserir no projeto teoloacutegico []3

O nosso desafio consiste pois em demonstrar que Tomaacutes

prevecirc uma eacutetica filosoacutefica decerto que esta se encontra em sua siacutentese teoloacutegica de uma forma tensa algures com uma audaacutecia ainda vacilante mas alhures deixando-se manifestar com uma ousadia que natildeo se furta aos olhos de um leitor inquieto

Em todo caso atrevo-me a apresentar as afliccedilotildees e vacilaccedilotildees de Santo Tomaacutes como mais um elo dessa longa caminhada da humanidade cristatilde na busca de uma justa secularizaccedilatildeo isto eacute de uma adequada autonomia das realidades profanas4

3 JOSAPHAT Carlos Paradigma teoloacutegico de Tomaacutes de Aquino sabedoria e arte de questionar verificar debater e dialogar chaves de leitura da Suma de Teologia Rev Iranildo Bezzera Lopes e Maacutercia Elisa Rodrigues Satildeo Paulo Paulus 2012 p 458 4 SARANYANA JosepndashIgnasi La Filosofiacutea Medieval Desde sus oriacutegenes patristicos hasta la escolaacutestica barroca 2 ed EUNSA Pamplona 2007 p 293 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEn todo caso me atrevo a presentar las cuitas y vacilaciones de Santo Tomaacutes como un eslaboacuten maacutes de esa larga caminata de la humanidad cristiana en busca de una justa secularizacioacuten es decir de una adecuada autonomiacutea de las realidades profanasrdquo Numa recente ediccedilatildeo biliacutengue da Summa Contra Gentiles o estudioso Mauriacutelio Joseacute de Oliveira Camello na introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo cita uma inquietante apreciaccedilatildeo de Alain de Libera sobre a obra em questatildeo LIBERA Alain de Tomaacutes de Aquino mdash Suma contra os gentios Satildeo Paulo Mandarim 1996 p 515 In CAMELLO Mauriacutelio Joseacute de Oliveira Introduccedilatildeo Geral Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2015 p 24 ldquo[] a organizaccedilatildeo de detalhe de Contra os Gentios o emaranhado de seus desenvolvimentos as muacuteltiplas digressotildees que o perpassam as mudanccedilas de perspectivas as transiccedilotildees disciplinares que sutilmente a trabalham fazem com que natildeo se saiba sempre se tratamos com uma suma de teologia ou com uma suma de filosofiardquo O teoacutelogo espanhol Luis Francisco Ladaria em sua Introduzione alla Antropologia Teologica ao expor a estrutura da

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Gilson em uma passagem emblemaacutetica tambeacutem acolhe esta possibilidade quando admite que se o Aquinate tivesse querido teria em matildeos instrumentos suficientes para construir tambeacutem uma eacutetica exclusivamente filosoacutefica

Se tivesse querido santo Tomaacutes teria podido escrever uma metafiacutesica uma cosmologia uma psicologia e uma moral concebidas de acordo com um plano estritamente filosoacutefico No entanto eacute um fato e nada mais que suas obras sistemaacuteticas satildeo sumas de teologia e que por conseguinte a filosofia que expotildeem nos eacute oferecida segundo uma ordem teoloacutegica5

Analisemos com maior detenccedila a passagem que acabamos

de ler Com efeito a ordem das obras sistemaacuteticas de Tomaacutes mdash conforme assinala Gilson mdash eacute certamente teoloacutegica porque afinal Tomaacutes de Aquino eacute um teoacutelogo Poreacutem como tambeacutem acentua o historiador francecircs a filosofia que expotildee nestas obras natildeo eacute menos filosoacutefica por causa disso Desta sorte admite nosso estudioso Tomaacutes teria podido adotar um plano estritamente filosoacutefico Gilson acresce ainda que o fato de o Aquinate natildeo ter optado por uma ordem filosoacutefica eacute somente mdash e tatildeo somente mdash a escolha de um teoacutelogo natildeo uma ldquonecessidade intriacutensecardquo Imediatamente antes da citaccedilatildeo acima reconhece

Portanto nessa obra filosoacutefica a influecircncia confessa da teologia eacute certa e eacute a teologia mesma que forneceraacute um plano Natildeo que houvesse uma necessidade intriacutenseca6

antropologia tomasiana na Summa Theologiae verificou nela a predominacircncia de questotildees filosoacuteficas Por fim considerou o Breviloquium de Satildeo Boaventura mais proacuteximo do que hoje se entende por teologia Afirma ele acerca da antropologia da Summa LADARIA Luis Francisco Introduccedilatildeo agrave Antropologia Teoloacutegica Trad Roberto Leal Ferreira 7 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 18 ldquoEm muitos desses pontos as questotildees filosoacuteficas predominam em ampla medida sobre as teoloacutegicasrdquo Sobre o Breviloquium de Satildeo Boaventura ajuiacuteza Ladaria Idem Op Cit p 20 ldquoCertamente natildeo pode deixar de ser admirada a estrutura dessa obra sem duacutevida mais proacutexima dos tratados modernos que a Sumardquo 5 GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Trad Eduardo Brandatildeo Rev Carlos Eduardo Silveira Matos Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 657 [Os itaacutelicos satildeo nossos] 6 Idem Ibidem

30 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

De posse desta certeza a saber de que quando fazia filosofia Tomaacutes era realmente filoacutesofo Chesterton pocircde tambeacutem concluir ldquoNatildeo seraacute mais possiacutevel esconder de ningueacutem que Satildeo Tomaacutes foi um dos principais libertadores do intelecto humanordquo7 De fato em diversas obras mdash tanto anteriores quanto concomitantes agrave Suma de Teologia mdash Tomaacutes sempre demonstrou distinguir com clareza uma argumentaccedilatildeo filosoacutefica de uma teoloacutegica Isso natildeo nos parece nada casual Por volta dos anos 12641265 quando da redaccedilatildeo do quarto livro da Contra Gentiles ao passar a abordar as verdades essencialmente reveladas ele discrimina

Ora nos livros precedentes falou-se de Deus segundo o conhecimento das coisas divinas a que pode chegar pelas criaturas a razatildeo natural [] Resta pois o que deve ser dito das coisas que nos foram reveladas por Deus e que excedem o intelecto humano8

Pode-se constatar por esta passagem que o Frade de

Roccasecca mdash na supracitada obra mdash consagra um livro agrave parte para falar das verdades que excedem a razatildeo e destaca um capiacutetulo inteiro para advertir que passaraacute a tratar deste tema Do mesmo periacuteodo eacute a primeira parte do Compendium Theologiae obra que Tomaacutes dedica a Reginaldo de Piperno seu confrade e disciacutepulo Num dado momento desse tratado faz questatildeo de separar o que vem antes do que viraacute depois E afirma isso nestes termos

Tudo poreacutem o que acima se disse de Deus foi considerado sutilmente por muitos filoacutesofos gentios conquanto alguns tenham errado acerca disso e os que entre eles disseram verdade natildeo puderam chegar a ela senatildeo com dificuldades e apoacutes longa e

7 CHESTERTON Op Cit p 202 8 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios IV I 7 [3347] ldquoQuia igitur debilis erat Dei cognitio ad quam homo per vias praedictas intellectuali quodam quasi intuitu pertingere poterat ex superabundanti bonitate ut firmior esset hominis de Deo cognitio quaedam de seipso hominibus revelavit quae intellectum humanum exceduntrdquo

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laboriosa investigaccedilatildeo Deus poreacutem nos comunicou na doutrina da religiatildeo cristatilde coisas que eles natildeo puderam alcanccedilar acerca das quais a feacute cristatilde nos instrui para aleacutem do senso humano9

Mesmo nos opuacutesculos escritos quando a redaccedilatildeo da

Summa Theologiae jaacute corria reaparece a mesma sensibilidade de Tomaacutes para distinguir a argumentaccedilatildeo racional da fundada na feacute No polecircmico De unitate intellectus contra averroistas mdash que data de 1270 mdash o Aquinate jaacute no fim do tratado faz uma declaraccedilatildeo importante ldquoEis em suma o que redigimos para destruir os erros referidos natildeo servindo-nos dos dogmas da feacute mas dos argumentos e das afirmaccedilotildees dos proacuteprios filoacutesofosrdquo 10 No opuacutesculo De Substantiis Separatis redigido no ano seguinte ele destaca sem desunir a parte filosoacutefica da teoloacutegica afirmando

Como jaacute se expocircs aquilo que os principais filoacutesofos Platatildeo e Aristoacuteteles julgaram sobre as substacircncias imateriais no tocante agraves suas origens condiccedilatildeo de natureza distinccedilatildeo e ordem de governo e aquilo em que os outros em erro deles discordaram resta expor o que afirma a religiatildeo cristatilde acerca de cada ponto11

Ora o nosso trabalho natildeo tem outro propoacutesito senatildeo

evidenciar os caminhos pelos quais Tomaacutes sem deixar de ser teoacutelogo e muito menos cristatildeo mdash e aqui estaacute o novo mdash conseguiu

9 TOMAacuteS DE AQUINO Compecircndio de Teologia Trad Carlos Nougueacute Porto Alegre Concreta 2015 I 36 ldquoHaec autem quae in superioribus de Deo tradita sunt a pluribus quidem gentilium philosophis subtiliter considerata sunt quamvis nonnulli eorum circa praedicta erraverint et qui in iis verum dixerunt post longam et laboriosam inquisitionem ad veritatem praedictam vix pervenire potuerunt Sunt autem et alia nobis de Deo tradita in doctrina Christianae religionis ad quam pervenire non potuerunt circa quae secundum Christianam fidem ultra humanum sensum instruimurrdquo 10 TOMAacuteS DE AQUINO A Unidade do Intelecto Contra os Averroiacutestas Trad Maacuterio Santiago de Carvalho Lisboa Ediccedilotildees 70 1999 V 120 ldquoHaec igitur sunt quae in destructionem praedicti erroris conscripsimus non per documenta fidei sed per ipsorum philosophorum rationes et dictardquo 11 TOMAacuteS DE AQUINO Sobre os Anjos Trad Luiz Astorga Rev Carlos Nougueacute Rio de Janeiro Seacutetimo Selo 2006 XVII 91 ldquoQuia igitur ostensum est quid de substantiis spiritualibus praecipui philosophi Plato et Aristoteles senserunt quantum ad earum originem conditionem naturae distinctionem et gubernationis ordinem et in quo ab eis alii errantes dissenserunt restat ostendere quid de singulis habeat Christianae religionis assertiordquo

32 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino conceber uma eacutetica que atendo-se ao que a razatildeo pode admitir espera permanecer aberta e pronta para ser reproposta a todos os homens porque inteligiacutevel a todos 12 Esta pretensatildeo de universalidade eacutetica estaacute no iniacutecio do proacuteprio pensar eacutetico e eacute uma constante jaacute nos antigos Como frisa Mario Vegetti trata-se de uma dificuldade que natildeo foi trazida exclusivamente talvez nem principalmente seja pela cultura escravista seja pelo advento da religiatildeo Na percepccedilatildeo do estudioso italiano a dificuldade de uma eacutetica universal estaacute calcada em razotildees de cunho filosoacutefico

Portanto a eacutetica antiga experimentou evidentemente as exigecircncias de universalizaccedilatildeo da subjetividade moral do valor e da norma poreacutem sempre bateu em retirada diante das dificuldades de pensar ateacute o fundo essas exigecircncias diante da impossibilidade de construir um projeto de valorizaccedilatildeo e libertaccedilatildeo referente a todos os homens e ao homem todo [] Eacute provavelmente verdadeiro poreacutem insuficiente debitar esse xeque-mate da eacutetica antiga na conta do contexto da sociedade escravista e dos seus enraizados efeitos de pensamento e de consciecircncia Do ponto de vista filosoacutefico haacute talvez razotildees mais profundas embora natildeo isentas de relaccedilatildeo com aquele contexto13

Retornando a Tomaacutes e levando em conta estas premissas

advertimos que a nossa abordagem sobre o pensamento eacutetico do Aquinate natildeo seraacute por assim dizer canocircnica Tampouco a literatura que frequentamos foi a tradicional sem nenhum desdouro em relaccedilatildeo a esta14 E isto se justifica pelo fato de que o tradicionalismo nunca foi a marca do nosso autor Seu tempo natildeo o tinha como um ldquoanjo das escolasrdquo antes fixando-nos no ldquoTomaacutes

12 JOSAPHAT Op Cit p 640 ldquoTomaacutes incorpora sem dificuldade a mensagem espiritual do Evangelho em sua elaboraccedilatildeo de uma eacutetica universal e autenticamente humanardquo (Os itaacutelicos satildeo nossos) 13 VEGETTI Mario A Eacutetica dos Antigos Trad Joseacute Bortolini Rev Tiago Joseacute Risi Leme et al Satildeo Paulo Paulus 2014 pp 26-27 14 Uma siacutentese das linhas de interpretaccedilatildeo de Tomaacutes pode ser consultada em SANTOS Ivanaldo A diferenccedila entre tomismo tradicional e tomismo tradicionalista In Aquinate n 28 2015 pp 35-56

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histoacutericordquo temos que este de certa forma esteve muito mais proacuteximo de um ldquoheterodoxordquo do que de um ldquosantordquo

[] Tomaacutes natildeo foi entendido por seus contemporacircneos como um campeatildeo da ortodoxia e [] a sua habilidade filosoacutefica mesmo no campo teoloacutegico natildeo esteve sempre sob a inspiraccedilatildeo da moderaccedilatildeo da conciliaccedilatildeo e do irenismo15

Tanto em vida quanto depois da morte o seu pensamento

soacute se consolidou apoacutes intensa pugna Ao contraacuterio do que comumente se pensa no tempo de Tomaacutes a sua obra foi quase sempre causa de contradiccedilatildeo seu pensamento longe de apaziguar os acircnimos o mais das vezes trouxe polecircmica e muitos dos seus contemporacircneos natildeo o receberam16 Guido de Ruggiero em seu estudo sobre a filosofia tomasiana realccedila este aspecto

[] Natildeo certamente no iniacutecio porque na sua primeira apariccedilatildeo a filosofia de Tomaacutes encontrou um ambiente igualmente cheio de concitado fervor [] As polecircmicas antitomistas daquela eacutepoca tecircm para noacutes um grande interesse porque nos mostram claramente que os adversaacuterios de Tomaacutes ainda natildeo desarmados

15 PORRO Pasquale Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico Trad Orlando Soares Moreira Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 132 16 Numa passagem assaz ilustrativa Boehner e Gilson descrevem como foi tensa a recepccedilatildeo da obra do Aquinate naqueles idos BOEHNER Philotheus GILSON Eacutetienne Histoacuteria Da Filosofia Cristatilde Desde as Origens ateacute Nicolau de Cusa Trad Raimundo Vier 7 ed Petroacutepolis Vozes 2000 pp 482-483 ldquoVisto de fora o seu primeiro destino deve ser qualificado de malogro A corrente conservadora mdash sob a lideranccedila dos mestres franciscanos Joatildeo Peckham Joatildeo Pedro Olivi Rogeacuterio Marston etc dos dominicanos Roberto Kilwardby arcebispo de Cantuaacuteria e Pedro de Tarantaise bem como de alguns representantes do clero secular tais como Henrique de Gand e Estecircvatildeo Tempier arcebispo de Paris mdash pronunciou-se contra vaacuterias doutrinas de S Tomaacutes e principalmente contra a tese da unicidade da forma do homem julgando dever qualificaacute-las pelo menos de suspeitas Pouco apoacutes a condenaccedilatildeo de algumas proposiccedilotildees tomistas por Estecircvatildeo Tempier apareceu um Correctorium fratris Thomae da autoria de Guilherme de la Mare contendo uma anaacutelise criacutetica de 118 proposiccedilotildees colhidas dos escritos do Aquinate e nomeadamente da Summa [] Um edito promulgado em 1282 interdizia aos franciscanos a leitura da Summa a menos que tivessem agrave matildeo o Correctorium de Guilherme de la Mare []rdquo Eacute bom reforccedilar que em 1277 o bispo Eacutetienne Tempier condenou 219 teses Entre estas pelo menos nove eram inequivocamente de Tomaacutes E esta condenaccedilatildeo soacute foi revogada explicitamente em 1325 dois anos apoacutes a sua canonizaccedilatildeo em 18 de julho de 1323 NASCIMENTO Carlos Arthur R Santo Santo Tomaacutes de Aquino o Boi Mudo da Siciacutelia Satildeo Paulo EDUC 1992 pp 50 e 84

34 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

pela embaraccedilosa santidade de seu inimigo viram com perspicaacutecia quais deixas hereacuteticas estavam nas suas doutrinas17

Outros autores tambeacutem destacam que a princiacutepio as

inovaccedilotildees de Tomaacutes natildeo foram reconhecidas como ortodoxas dentro da Igreja do seu tempo o que fez com que o Aquinate vivesse sempre como um viandante natildeo conseguindo se estabelecer nenhures nem em Paris nem na Itaacutelia18

[] Tomaacutes de Aquino foi um pensador fortemente original e inovador frequentemente em contraste com muitas das posiccedilotildees comumente aceitas em seu tempo a ponto de suscitar reaccedilotildees muito violentas no interior da proacutepria Igreja da eacutepoca [] de atrair mais de uma suspeita sobre a completa ortodoxia das suas posiccedilotildees (trecircs anos depois da sua morte foi com efeito ateacute

17 RUGGIERO Guido de La Filosofia del Cristianesimo Bari Larteza 1967 pp 620-621 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoNon certamente allrsquoinizio percheacute al suo primo apparire la filosofia de Tommaso trovograve un ambiente anchrsquoesso pieno di concitato fervore [] Le polemiche anti-tomiste di quellrsquoepoca hanno per noi un grande interesse percheacute ci mostrano chiaramente che gli avversari di Tommaso non ancora disarmati dalla ingombrante santitagrave del nemico videro con perspicacia quali spunti eretici fossero nelle sue dottrinerdquo Em recente ediccedilatildeo brasileira uma Histoacuteria Ecumecircnica da Igreja organizada por estudiosos das mais diversas confissotildees cristatildes registra que a ldquocanonizaccedilatildeordquo da obra do Aquinate eacute um fenocircmeno da modernidade Acresce ainda que este uso ldquotriunfalistardquo da obra de Tomaacutes nunca foi ponto paciacutefico nem sequer entre os seus seguidores KAUFMANN Thomas [et al] Histoacuteria Ecumecircnica da Igreja 2 Da alta Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio da Idade Moderna Trad Irineu Rabuske Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola Paulus Satildeo Leopoldo Editora Sinodal 2014 p 111 ldquoA incomparaacutevel histoacuteria de sucesso da doutrina de Tomaacutes na Idade Moderna que alguns de seus admiradores atuais tambeacutem lamentam como sendo uma histoacuteria de apropriaccedilotildees indevidas natildeo deve levar ao engano de que sua audaz tentativa de intermediaccedilatildeo a princiacutepio apenas apresentava uma opccedilatildeo entre o pensamento moderno daquela eacutepoca e a tradiccedilatildeo teoloacutegica cristatilde ao lado de outras sendo aleacutem disso alvo de fortes contestaccedilotildeesrdquo COPLESTON Frederick Filosofia Medieval uma introduccedilatildeo Trad Wilson Filho Ribeiro de Almeida Curitiba Livraria Danuacutebio Editora 2017 p 101 ldquoMas embora Santo Tomaacutes gradualmente tenha vindo a ser o doutor oficial da ordem dominicana ele nunca se tornou durante a Idade Meacutedia o filoacutesofo oficial catoacutelico Eacute incorreto dizer que mesmo agora o tomismo como tal seja imposto oficialmente a todos os filoacutesofos catoacutelicos mas eacute inegaacutevel que desde a carta enciacuteclica Aeterni Patris do papa Leatildeo XIII Santo Tomaacutes desfruta de uma posiccedilatildeo na Igreja Catoacutelica que natildeo foi concedida a nenhum outro filoacutesofordquo 18 Eacute bem verdade que as ordens mendicantes tinham um forte caraacuteter missionaacuterio o que implicava que o frade vivesse como um viajor LENZENWEGER Josef STOCKMEIER Peter [et al] Histoacuteria da Igreja Catoacutelica Trad Fredericus Stein Rev Joseli N Brito 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2006 p 171 ldquoO ambular de um convento para outro visto como exceccedilatildeo senatildeo como algo suspeito desde os tempos de Satildeo Bento tornou-se agora o princiacutepio do apostolado Alberto Magno trabalhou em Paacutedua Estrasburgo Colocircnia Wuumlrzburg Regensburg Paris etcrdquo No entanto isso natildeo explica a nosso ver os interstiacutecios ocorridos durante o magisteacuterio de Tomaacutes soacute com transferecircncias

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mesmo aberto um procedimento poacutestumo contra as suas doutrinas)19

De sorte que a visatildeo que temos hoje do Aquinate depois de

tantos seacuteculos nos quais o seu pensamento foi assumido e usado pela Igreja e natildeo obstante as tentativas recentes de conhececirc-lo mais a fundo ainda se pode dizer miacuteope20

Na verdade o proacuteprio Tomaacutes estava cocircnscio de que tinha um modo de pensar a tradiccedilatildeo que era soacute seu Em A unidade do intelecto contra os averroiacutestas opuacutesculo jaacute citado acima ele afirma com descortino ldquo[] o pensar tem o modo de ser daquele que pensa []rdquo21 Em seguida conclui ldquo[] eacute de fato aqui que a ciecircncia

19 ESPOSITO Costantino PORRO Pasquale Filosofia Antica e Medievale 2 ed Roma-Bari Laterza 2010 p 338 v 1 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoTommaso drsquoAquino egrave stato un pensatore fortemente originale e innovativo spesso in contrasto con molte delle posizioni comunemente accettate ai suoi tempi fino al punto di suscitare reazioni molto violente allrsquointerno della stessa Chiesa dellrsquoepoca [] di attirare piugrave di un sospetto sulla completa ortodossia delle sue posizioni (tre anni dopo la sua morte fu in effetti perfino aperto un procedimento postumo contro le sue dottrine)rdquo Numa recente traduccedilatildeo brasileira da Historie des Dogmes que conta com a direccedilatildeo de Bernard Sesbouumleacute o mesmo apresenta Tomaacutes de Aquino natildeo agrave guisa de um ldquoteoacutelogo tradicionalrdquo como era de se esperar mas antes como um daqueles que promoveram o conturbado ingresso de Aristoacuteteles na sacra ciecircncia SESBOUumlEacute Bernard THEOBALD Christoph Histoacuteria dos Dogmas A Palavra da Salvaccedilatildeo Trad Aldo Vannucchi Rev Albertina Pereira Leite Piva e Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2006 v 4 p 82 ldquoNo seacuteculo XIII Aristoacuteteles eacute a paixatildeo das Universidades lsquoo filoacutesoforsquo lsquoa autoridade intelectualrsquo Santo Tomaacutes cita-o nesses termos pronto para uma lsquoexplicaccedilatildeo muito respeitosarsquo (expositio reverentialis) quando lhe percebe alguma afirmaccedilatildeo incompatiacutevel com a feacute cristatilde Essa coragem de introduzir o enfoque filosoacutefico no ensino da ciecircncia sacra iraacute lhe render suspeitas e ateacute mesmo condenaccedilatildeordquo COPLESTON Filosofia Medieval uma introduccedilatildeo p 87 ldquoO homem que realmente tentou juntar o sistema filosoacutefico de Aristoacuteteles e a teologia cristatilde em um todo harmonioso foi o frade dominicano Santo Tomaacutes de Aquino Voltando-se para traacutes a olhar o cenaacuterio medieval atraveacutes dos seacuteculos que se passaram desde que Santo Tomaacutes viveu e escreveu pode-se esquecer que ele foi um inovador e que parecia aos seus contemporacircneos um pensador lsquoavanccediladorsquordquo 20 Pasquale Porro propotildee uma linha interpretativa de Aquino que nos apraz exclusive o aparente desinteresse pelo que o texto de Tomaacutes tem a nos dizer hoje PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 352 ldquoO que de fato faltou a boa parte do tomismo do seacuteculo XX foi exatamente a devida atenccedilatildeo ao modo como Tomaacutes chegou a determinadas conclusotildees confrontando-as natildeo com abstratas tradiccedilotildees de pensamento (aristotelismo platonismo averroiacutesmo etc) mas com textos bem identificaacuteveis [] Ao contraacuterio talvez seria mais simples ou pelo menos mais profiacutecuo tentar separar definitivamente o confronto direto com os escritos de Tomaacutes das vicissitudes do tomismo e sobretudo do neotomismo do seacuteculo XX como aliaacutes as pesquisas realizadas nos uacuteltimos dececircnios jaacute comeccedilaram a fazer de modo amplordquo [O itaacutelico eacute nosso] 21 TOMAacuteS DE AQUINO A Unidade do Intelecto Contra os Averroiacutestas V 107 p 151 ldquo[] sequitur quod intelligere sit secundum modum intelligentis []rdquo

36 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino se individualiza em mim e em tirdquo 22 De todo modo temos consciecircncia de que o fato de natildeo optarmos pela via tradicional de exposiccedilatildeo pode fazer surgir muitos questionamentos e eacute escusado dizer que natildeo teremos espaccedilo para responder a todos Alguns deles todavia parecem-nos fundamentais Assim esquematizamos o nosso texto em cinco capiacutetulos

Se estamos a falar de eacutetica filosoacutefica eacute mister considerarmos o que eacute eacutetica e o que eacute filosofia bem como qual a razatildeo de associarmos ambas Sabemos que a filosofia nasceu na Greacutecia Sendo assim qualquer trabalho que pretenda ser cuidadoso tem de retornar agravequela aurora grega que nunca se obliterou nem conheceu ocaso Luminosas satildeo as palavras de Enrico Berti neste sentido

ldquoClaacutessicordquo significa o que vale sempre o que conserva sempre seu valor para aleacutem das modas que mudam A filosofia grega eacute claacutessica porque jamais envelhece mas conserva todo o frescor do que eacute originaacuterio Todo o mundo grego foi considerado por exemplo por Hegel a expressatildeo da juventude da humanidade As figuras com que ele se abre e se encerra satildeo respectivamente segundo Hegel Aquiles e Alexandre ambos heroacuteis mortos jovens que por isso se tornaram emblemaacuteticos Ningueacutem com efeito jamais poderaacute representar um Aquiles velho ou um Alexandre velho O mesmo se deve dizer da filosofia grega da qual beberam direta ou indiretamente todas as filosofias seguintes e da qual continuaratildeo a extrair a seiva vital as filosofias ainda por vir23

Assim o nosso primeiro capiacutetulo eacute consagrado agrave

investigaccedilatildeo de como nasce a filosofia na Greacutecia Esperamos nele tornar patente como a interrogaccedilatildeo filosoacutefica mdash desde o seu comeccedilo mdash abriga em si uma indagaccedilatildeo eacutetica ou melhor uma ldquofenomenologia do eacutethosrdquo Aqui tambeacutem nos esforccedilaremos por

22 Idem Ibidem V 109 p 153 ldquo[] quantum enim ad hoc individuatur scientia in me et in illordquo 23 BERTI Enrico No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga Trad Fernando Soares Moreira Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 16 [O itaacutelico eacute nosso]

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evidenciar que o modo como os gregos fizeram filosofia eacute assumido pelos medievais inclusive por Tomaacutes Com isso temos o propoacutesito de acentuar o elo existente entre o dia uacutetil do pensamento nascido na Greacutecia e a reflexatildeo medieval maacutexime no pensamento do Aquinate Assegurando isto pensamos poder incluir a filosofia de Aquino na esteira daquela ldquoclassicidaderdquo que natildeo se pode obnubilar sem prejuiacutezo agrave proacutepria filosofia Importa lembrar que neste capiacutetulo recorreremos com alguma constacircncia agraves etimologias e agrave filologia O preliminar semacircntico no estudo da eacutetica filosoacutefica eacute recomendado por Lima Vaz de forma precisa

Um estudo sobre Eacutetica que se pretenda filosoacutefico deve dedicar-se preliminarmente a delinear o contorno semacircntico dentro do qual o termo Eacutetica seraacute designado e a definir assim em primeira aproximaccedilatildeo o objeto ao qual se aplicaratildeo suas investigaccedilotildees e suas reflexotildees bem como a caracterizar a natureza e a estabelecer os limites do tipo de conhecimento a ser praticado no estudo da Eacutetica24

No entanto para natildeo sobrecarregarmos o texto com uma

quaestio nominis os termos eacutetica e moral seratildeo livremente tomados como sinocircnimos25 A eacutetica poreacutem natildeo se resume a uma ldquofenomenologia do eacutethosrdquo senatildeo que pode ser bem definida como ldquo[] a ciecircncia do ethosrdquo26 E quem deu a ela este status de ldquociecircnciardquo colocando-a num ramo bem definido da ldquofilosofia praacuteticardquo foi Aristoacuteteles Quando fala do nascimento da eacutetica filosoacutefica Lima Vaz mdash referindo-se a Aristoacuteteles mdash se expressa com meridiana clareza ldquoA Eacutetica alcanccedila assim seu estatuto de saber

24 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 p 11 25 Idem Ibidem p 14 ldquoVemos assim que a evoluccedilatildeo semacircntica paralela de Eacutetica e Moral a partir de sua origem etimoloacutegica natildeo denota nenhuma diferenccedila significativa entre esses dois termos []rdquo 26 Idem Ibidem p 17

38 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino autocircnomo e passa a ocupar um lugar preponderante na tradiccedilatildeo cultural e filosoacutefica do Ocidenterdquo27

Se a nossa intenccedilatildeo eacute trabalhar a existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino e se pretendemos salientar certa continuidade entre os gregos e Tomaacutes cumpre traccedilarmos mdash ao menos em linhas gerais mdash o itineraacuterio da eacutetica aristoteacutelica contemplada com maior clareza na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o nosso segundo capiacutetulo Esta segunda aproximaccedilatildeo eacute muito bem delimitada por alguns conceitos-chave os quais tecircm as suas raiacutezes na semacircntica de dois termos ἦθος (ẽthos)28 mdash grafado com o η inicial mdash que designa a ldquocasa do homemrdquo e ἔθος (eacutethos)29 mdash com um ε inicial mdash que significa haacutebito isto eacute a disposiccedilatildeo estaacutevel para agir de determinada maneira Podemos dizer que estes dois termos constituem a ldquoespinha dorsalrdquo do nosso trabalho pois eacute deles que adveacutem a nossa definiccedilatildeo de ēthikḗ como reflexatildeo acerca de quais satildeo aqueles haacutebitos (ἔθος) que permitem ao homem construir o seu proacuteprio haacutebitat (ἦθοςẽthos) Mostrar como Tomaacutes assume esta concepccedilatildeo grega e aristoteacutelica eacute um dos nossos objetivos preciacutepuos Sobre a importacircncia capital destas noccedilotildees vale citar a reflexatildeo de Lima Vaz

Na liacutengua filosoacutefica grega ethike procede do substantivo ethos que receberaacute duas grafias distintas designando matizes diferentes da mesma realidade ethos (com eta inicial) designa o conjunto de costumes normativos da vida de um grupo social ao passo que ethos (com epsilon) refere-se agrave constacircncia do comportamento do indiviacuteduo cuja vida eacute regida pelo ethos- costume Eacute pois a realidade histoacuterico-social dos costumes e sua

27 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura 4 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 12 28 CHANTRAINE Pierre Ἦθος [ẽthos] In ______ Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque histoire des mots Paris Eacuteditions Klincksieck 1968 p 407 O etimoacutelogo afirma que o termo diz estada habitual morada de animais 29 BAILLY A ἔθος [eacutethos] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 247 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt CHANTRAINE εἴωθα In Op Cit p 327 A forma nominativa usual eacute ἔθος na acepccedilatildeo de haacutebito costume

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presenccedila no comportamento dos indiviacuteduos que eacute designada pelas duas grafias do termo ethos Nesse seu uso que iraacute prevalecer na linguagem filosoacutefica ethos (eta) eacute a transposiccedilatildeo metafoacuterica da significaccedilatildeo original com que o vocaacutebulo eacute empregado na liacutengua grega usual e que denota a morada o covil ou o abrigo dos animais donde o termo moderno de Etologia ou estudo do comportamento animal A transposiccedilatildeo metafoacuterica do ethos para o mundo humano dos costumes eacute extremamente significativa e eacute o fruto de uma intuiccedilatildeo profunda sobre a natureza e sobre as condiccedilotildees de nosso agir (praxis) ao qual ficam confiadas a edificaccedilatildeo e preservaccedilatildeo de nossa verdadeira residecircncia no mundo como seres inteligentes e livres a morada do ethos cuja destruiccedilatildeo significaria o fim de todo sentido para a vida propriamente humana30

Esta longa passagem que escolhemos citar in extenso

praticamente resume a razatildeo do capiacutetulo segundo e tambeacutem de todo o nosso trabalho a eacutetica entendida como aquela ciecircncia que permite ao homem conhecer quais satildeo os haacutebitos que lhe possibilitam construir a sua casa ou abrigo na fyacutesis (φύσις)

Do ponto de vista de sua plena auto-realizaccedilatildeo o ser humano antes de habitar no oikos da natureza deve morar no seu oikos espiritual mdash no mundo da cultura mdash que eacute constitutivamente eacutetico31

Ora esta reflexatildeo acerca dos costumes chamada eacutetica

baseia-se num exerciacutecio peculiar do λόγος loacutegos que mdash como veremos no texto mdash eacute antes de mais entendido como fala linguagem capacidade de comunicaccedilatildeo capacidade de criar uma linguagem koinḗ (κοινή) e por ela uma comunhatildeo (κοινωνίαkoinōniacutea) uma comunidade entre os homens Assim a

30 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 13 A Etologia eacute a ciecircncia que estuda os haacutebitos dos animais e a sua acomodaccedilatildeo agraves condiccedilotildees do ambiente Os cientistas Karl von Frisch Konrad Lorenz ambos austriacuteacos e Nikolas Tinbergen holandecircs ganharam o Precircmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1973 por terem criado esta nova ciecircncia 31 Idem Ibidem p 40

40 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino eacutetica apresenta-se natildeo como obra de um homem ou mesmo de uma geraccedilatildeo mas fundamentalmente como uma ldquociecircncia poliacuteticardquo (ἐπιστήμη πολιτικήepistḗmē politikḗ) 32 que deve ser sempre retomada e aprofundada a cada nova geraccedilatildeo Nisto reside a importacircncia de pensar a eacutetica a partir de uma tradiccedilatildeo posto que seria impossiacutevel mdash e de uma insensatez caprichosa mdash pretender fundar a cada geraccedilatildeo uma nova concepccedilatildeo de eacutetica Lima Vaz afirma com clareza

Um primeiro traccedilo se faz visiacutevel no ethos nessa sua condiccedilatildeo de espaccedilo habitaacutevel do mundo onde a comunidade humana pode lanccedilar raiacutezes e crescer Assim como a casa material deve ser construiacuteda sobre peacutetreos fundamentos para permanecer de peacute e durar assim o ethos dos diversos grupos humanos manifesta uma extraordinaacuteria capacidade de resistir agrave usura do tempo e agraves mudanccedilas advindas de tradiccedilotildees estranhas O ethos eacute constitutivamente tradicional pois o ser humano natildeo conseguiria refazer continuamente sua morada espiritual Trata-se de um legado mdash o mais precioso mdash que as geraccedilotildees se transmitem (tradere traditio) ao longo do tempo e que mostra por outro lado uma natildeo menos extraordinaacuteria capacidade de assimilaccedilatildeo de novos valores e de adaptaccedilatildeo a novas situaccedilotildees33

32 O termo usado por Aristoacuteteles na Poliacutetica eacute filosofia poliacutetica ARISOacuteTELES Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo Amaral Carlos Gomes Lisboa Vega 1998 III 12 1282 b 20 ldquo[] Isto levanta uma dificuldade e implica uma filosofia poliacutetica [φιλοσοφίαν πολιτικήν]rdquo 33 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 40 A convicccedilatildeo de que a histoacuteria desconhece comeccedilos absolutos eacute assumida por Tomaacutes e pode ser bem atestada em suas obras Afirma Sofia Vanni Rovighi acerca do Aquinate ROVIGHI Sofia Vanni Storia della filosofia medievale Dalla Patristica al secolo XIV Milano Vita amp Pensiero 2011 p 104 ldquoE S Tommaso era profondamente persuaso che la filosofia fosse una progressiva scoperta di una unica veritagrave accessibile ad ogni ricercatore di buona volontagrave Moltissimi suoi articoli premettono alla soluzione del problema una breve storia delle soluzioni [] storia che segue sempre questo schema i presocratici hanno dato un primo abbozzo di soluzione che si egrave determinato e perfezionato prima nellambito stesso della filosofia presocratica si egrave arricchito specialmente con Platone ha raggiunto unulteriore compiutezza con Aristotelerdquo ldquoE Santo Tomaacutes estava profundamente persuadido de que a filosofia fosse uma progressiva descoberta de uma uacutenica verdade acessiacutevel a todo pesquisador de boa vontade Muitos de seus artigos antepotildeem agrave soluccedilatildeo dos problemas uma breve histoacuteria das soluccedilotildees precedentes [] histoacuteria que segue sempre este esquema os preacute-socraacuteticos deram um primeiro esboccedilo de soluccedilatildeo que foi determinado e aperfeiccediloado primeiro no acircmbito da proacutepria filosofia preacute-socraacutetica enriqueceu-se especialmente com Platatildeo [e] alcanccedilou uma ulterior perfeiccedilatildeo com Aristoacutetelesrdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] O proacuteprio Tomaacutes assegura TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica Trad Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira et al Satildeo Paulo Loyola 2001 I 44 2 C

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Aqui cabe um breve parecircntese Afinal por que natildeo comeccedilar com Tomaacutes Por que todo este preacircmbulo Tomaacutes natildeo se basta Na verdade a Idade Meacutedia pode ser tudo menos autossuficiente Como observa o filoacutesofo francecircs Reacutemi Brague o traccedilo mais essencial daquilo que hoje convencionamos chamar Idade Meacutedia eacute a consciecircncia da sua insuficiecircncia Os medievais latinos mdash e Tomaacutes de Aquino natildeo eacute uma exceccedilatildeo mdash nunca deixaram de se reconhecer dependentes dos antigos Por isso jamais cessaram de buscar fora de si a saber nos claacutessicos e mesmo noutras culturas (judaica grega e aacuterabe) as suas raiacutezes Ora esta consciecircncia ininterrupta de que inclusive em filosofia dever-se-ia buscar nos ldquoprimeiros filoacutesofosrdquo os proacuteprios fundamentos fez com que os medievais mdash tambeacutem Tomaacutes de Aquino mdash se tornassem os verdadeiros herdeiros da Antiguidade porque devedores dela Do nosso ponto de vista natildeo haacute como pensar a Idade Meacutedia latina inclusive Tomaacutes senatildeo como um aprimoramento um aprofundamento um desenvolvimento e finalmente um prolongamento do pensamento judaico grego e aacuterabe34 Daiacute a razatildeo do introito O medievo eacute por natureza uma continuidade e uma realidade multiacutevoca

Para tomar emprestado satildeo ainda necessaacuterias duas condiccedilotildees Eacute necessaacuterio primeiramente se dar conta de que se erra Eacute necessaacuterio em seguida aceitar ir procurar fora de si o que os outros inventaram Eacute necessaacuterio aceitar sentir-se inferior Isso exige certa coragem Seria mais faacutecil recusar-se a reconhecer-se inferior recusar-se a confessar-se necessitado [] Ora essa atitude mdash aceitar-se secundaacuterio relativamente a fontes anteriores

ldquoRespondeo dicendum quod antiqui philosophi paulatim et quasi pedetentim intraverunt in cognitionem veritatisrdquo ldquoOs filoacutesofos antigos penetraram pouco a pouco e quase passo a passo no conhecimento da verdaderdquo 34 A propoacutesito do uso das fontes por Tomaacutes Carlos Josaphat nota um aparente ldquoparadoxordquo que vale a pena citar JOSAPHAT Op Cit p 113 ldquoAbaixo das Sagradas Escrituras Agostinho e Aristoacuteteles satildeo as referecircncias mais citadas por Tomaacutes de Aquino em toda a Suma Paradoxalmente quanto mais este Doutor avanccedila em quantidade de citaccedilotildees e na correlaccedilatildeo que estabelece entre essas duas fontes uma filosoacutefica e outra teoloacutegica tanto mais se afirma sua originalidade singularrdquo

42 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

e exteriores delas haurir sem a esperanccedila de uma assimilaccedilatildeo total mdash eacute me parece a que marca a Idade Meacutedia inteira35

Esse sentimento de inferioridade na Idade Meacutedia natildeo eacute senatildeo uma atitude entre outras Eacute me parece a essa atitude que a Idade Meacutedia deve simplesmente a sua existecircncia Eacute a ela que a Idade Meacutedia deve o ser ela mesma A Idade Meacutedia eacute essa eacutepoca em que para retomar uma imagem ceacutelebre se soube que se era apenas um anatildeo empoleirado nos ombros de gigantes [] Essa humildade era necessaacuteria para aceitar ir haurir nas fontes Foi isso o que a Idade Meacutedia natildeo cessou de fazer Os historiadores nos desembaraccedilaram da imagem de uma Idade Meacutedia obscura para substituiacute-la por aquela de uma seacuterie ininterrupta de renascimentos Arrisquemo-lo a Idade Meacutedia eacute uma eacutepoca talvez a uacutenica eacutepoca da histoacuteria que jamais aceitou ser uma Idade Meacutedia Sempre quis ser um renascimento desde o iniacutecio36

Os medievais souberam ir procurar fora de si fora de sua experiecircncia imediata junto aos antigos e mesmo fora de sua tradiccedilatildeo proacutepria no mundo aacuterabe informaccedilotildees culturais Souberam aprimoraacute-las desenvolvecirc-las prolongaacute-las Mas sem jamais esquecer que o que tomavam emprestado vinha de fora Sem jamais esquecer tampouco que a fonte permanecia fora37

Delongamo-nos pois na justificaccedilatildeo destes dois primeiros

capiacutetulos no anseio de sinalizar que eles natildeo satildeo fortuitos ocasionais mas ao contraacuterio basilares para o nosso trabalho Com efeito apontar para o fato de que Tomaacutes mdash sem negar as peculiaridades do seu pensamento mdash permanece vinculado a uma tradiccedilatildeo a qual insere a sua reflexatildeo filosoacutefica na histoacuteria do pensamento eacutetico-filosoacutefico jaacute que a perda deste horizonte tradicional comprometeria a proacutepria noccedilatildeo de eacutetica como ldquociecircncia do ethosrdquo eacute primordial para noacutes Natildeo economizamos citar Vaz

35 BRAGUE Reacutemi Mediante a Idade Meacutedia Filosofias medievais na cristandade no judaiacutesmo e no islatilde Trad Edson Bini Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 63 36 Idem Ibidem p 64 37 Idem Ibidem p 65

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nestas linhas mdash e que nos seja permitido citaacute-lo ainda em alguns momentos do nosso texto mdash porque nos parece ser ele quem com maior refinamento conseguiu pensar a eacutetica tomasiana por um caminho que leva em conta estes preacircmbulos Nosso plano para os proacuteximos capiacutetulos eacute perceber o ressoar do quanto dissemos na proacutepria obra do Aquinate

Assim jaacute no terceiro capiacutetulo envidaremos esforccedilos para fazer ver como Tomaacutes recebe a Eacutetica a Nicocircmaco Nosso propoacutesito eacute exprimir quais as razotildees que levam o Aquinate a recepcionar mdash em sua obra teoloacutegica mdash a conceptualidade filosoacutefica do Estagirita Trilhando esta via exporemos em primeiro lugar os fatos histoacutericos que colocam em relevo como a eacutetica de Aristoacuteteles influenciou a redaccedilatildeo da IIa parte da Summa Theologiae Em seguida fixaremos os conceitos propriamente ditos pelos quais Tomaacutes justifica o ato de lanccedilar matildeo de um filoacutesofo da antiguidade pagatilde para conceber a sua teologia moral

Destacamos como a grande coluna deste capiacutetulo o fato de o Aquinate retomar mdash a seu modo mdash atraveacutes da sua definiccedilatildeo de virtudes cardeais a metaacutefora do ἦθος (ẽthos) como a morada do homem bem como a concepccedilatildeo de eacutetica como uma reflexatildeo mediante a qual o homem pensa de que forma pode inaugurar uma vida propriamente humana atraveacutes das suas accedilotildees Outro conceito que destacaremos entre os demais por sua importacircncia eacute o de ratio que parece realmente recuperar o de λόγος (loacutegos) enquanto o Aquinate o concebe como a capacidade de o homem situar na ldquovozrdquo (vox) a ldquopalavrardquo (verbum) que expressa um conceito a saber a palavra dotada de significado distinta por isso mesmo da sem significado ldquoA palavra que natildeo eacute significativa natildeo pode ser chamada de verbordquo38 O verbum portanto eacute um tipo especial de signum signum que por natureza se define como ldquo[] o meio de chegar ao conhecimento de outra coisardquo39 Destarte o

38 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 34 1 C ldquoVox autem quae non est significativa verbum dici non potestrdquo 39 Idem Ibidem III 60 4 C ldquoSignum autem est per quod aliquis devenit in cognitionem alteriusrdquo

44 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino verbum diz mais do que a simples vox ldquo[] a palavra humana [humanum verbum] assume voz [vocem assumit] para dar-se a conhecer sensivelmente aos homensrdquo40 Ora quando esta palavra entendiacutevel e encarnada na vox torna-se entendida por outros homens temos a ldquolinguagemrdquo (locutio) como ficaraacute claro no decorrer do texto E quando pela ldquolinguagemrdquo (locutio) os homens conseguem descobrir que certas regras das suas accedilotildees satildeo inerentes agrave sua natureza alcanccedilamos propriamente o que podemos chamar um exerciacutecio de razatildeo (ratio) praacutetica o qual torna possiacutevel que os homens comunguem a vida uns dos outros constituindo assim a civitas e a gecircnese da eacutetica enquanto ciecircncia

No quarto capiacutetulo trataremos de outro ponto central eacute possiacutevel haver uma eacutetica filosoacutefica numa teologia moral Como pode subsistir num tratado teoloacutegico mdash sem romper a sua unidade mdash uma eacutetica filosoacutefica A esta questatildeo que julgamos de grande relevacircncia buscaremos responder tentando definir qual eacute o conceito de teologia que Tomaacutes elabora

Para o quinto e uacuteltimo capiacutetulo planejamos o seguinte definir alguns conceitos-chave da eacutetica filosoacutefica tomasiana aleacutem de exemplificar alguns momentos desta mesma eacutetica sem contudo pretendermos expocirc-la sistematicamente como jaacute advertimos no comeccedilo

Na conclusatildeo procuraremos recolher os principais resultados da nossa pesquisa Nela empenhar-nos-emos por ressaltar a natildeo exaustividade do nosso trabalho os problemas que ele deliberadamente deixa em aberto e como o fato desta ldquoincompletuderdquo ser justamente o que o torna mdash assim esperamos mdash aproveitaacutevel a outros pesquisadores que pretendam retomaacute-lo agrave sua maneira

Aleacutem das fontes mdash evidentemente nosso aporte teoacuterico principal mdash figuram tambeacutem em nosso texto outros referenciais

40 Idem Compecircndio de Teologia I 219 ldquo [] Sicut autem humanum verbum vocem assumit ut sensibiliter hominibus innotescat []rdquo

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teoacutericos Os principais satildeo as obras de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz jaacute citadas nesta introduccedilatildeo Todavia podemos distinguir nosso aparato teoacuterico tambeacutem por capiacutetulos No primeiro capiacutetulo uma preleccedilatildeo do filoacutesofo e filoacutelogo italiano Emanuele Severino seraacute a nossa acircncora conceitual para as etimologias gregas sem que com isso deixemos mdash quando oportuno mdash de citar as fontes

Aqui cabe outra advertecircncia quando na transliteraccedilatildeo dos vocaacutebulos gregos natildeo seguirmos a Sociedade Brasileira de Estudos Claacutessicos (SBEC) eacute porque optamos por uma disciplina alternativa porquanto as gramaacuteticas natildeo satildeo consensuais ao apresentarem a conversatildeo dos caracteres gregos para o portuguecircs e a transliteraccedilatildeo apresentada pela SBEC natildeo segue a Nova Reforma Ortograacutefica41 onde o acreacutescimo das letras k w e y muito tem facilitado a transposiccedilatildeo dos termos para o nosso idioma42 Nossa proposta consta na lista de transliteraccedilotildees gregas a qual seguiremos homogeneamente Natildeo privilegiamos a forma foneacutetica neste trabalho mas a graacutefica43 Os aparatos teacutecnicos relativos ao grego (gramaacuteticas e dicionaacuterios) seratildeo mencionados no decurso do proacuteprio texto e na bibliografia final

41 SOCIEDADE BRASILEIRA DE ESTUDOS CLAacuteSSICOS Alfabeto grego In AUBENQUE Pierre O problema do ser em Aristoacuteteles Trad Cristiana de Souza Agostini Diocleacutezio Domingos Faustino Rev Caio Pereira 1 ed Satildeo Paulo Paulus 2012 p 7 (Coleccedilatildeo Filosofia) 42 A volta dessas letras possibilita que na transliteraccedilatildeo possamos reconhecer a palavra original devido agrave equivalecircncia inequiacutevoca que a inserccedilatildeo destas letras proporciona Um bom exemplo disso eacute o uso que as gramaacuteticas gregas em liacutengua portuguesa fazem do y na transliteraccedilatildeo como na palavra οὐσία Note que apesar de o y grego (υ) ter a forma visual semelhante ao nosso u portuguecircs basta que se coloque em caixa alta para perceber a distinccedilatildeo (ΟΥΣΙΑ = οὐσία) Constata-se assim que satildeo letras diferentes Como o portuguecircs brasileiro natildeo continha k w e y natildeo havia uma letra em nosso alfabeto que pudesse representar o υ grego Com a Nova Reforma Ortograacutefica as letras k w e y comeccedilaram a vigorar e doravante podemos fazer a correspondecircncia graacutefica equivalente ao grego do υ (y) ao inveacutes de usar o u como sempre ocorreu Como a SBEC natildeo alterou seu sistema transliteraacuterio apoacutes a Nova Reforma Ortograacutefica optamos por fazer uso do y contrariamente agrave literatura vigente mesmo quando os termos apresentam foneticamente o som de u como nos ditongos proacuteprios (FREIRE Op Cit p 7) 43 Por exemplo a conjunccedilatildeo aditiva ldquoerdquo se escreve kaiacute em grego mas se lecirc ldquokaacuteirdquo Isso ocorre porque no grego nem sempre a tocircnica recai sobre a vogal acentuada como no caso dos ditongos proacuteprios acentuados cujo acento demarca a semivogal e natildeo a vogal como eacute de costume pronunciar em portuguecircs (ex reacuteu) (FREIRE Op Cit pp 9-10)

46 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Tambeacutem optamos por destacar com itaacutelico os termos em latim e as transliteraccedilotildees do grego mas conservamos normalmente as palavras gregas com seus caracteres originais para facilitar a identificaccedilatildeo e distinccedilatildeo de alguns sinais que se confundem em itaacutelico como as aspiraccedilotildees (lsquo e rsquo) e o acento agudo (acute) Sempre que houver algum termo grego que possa causar duacutevida quanto agrave escrita seraacute acompanhado pela referecircncia em que nos apoiamos

No segundo capiacutetulo algumas obras de Aristoacuteteles mdash particularmente a Eacutetica a Nicocircmaco44 mdash seratildeo o nosso suporte principal aleacutem de uma preleccedilatildeo e vaacuterias obras do principal estudioso italiano de Aristoacuteteles na atualidade Enrico Berti

No terceiro quarto e quinto capiacutetulos o nosso apoio fundamental seraacute a Suma de Teologia de Tomaacutes e algumas obras do Boi Mudo compostas antes ou durante a sua redaccedilatildeo Entre estas destacamos a Summa Contra Gentiles 45 cuja redaccedilatildeo precedeu a da Summa Theologiae46 e o Compendium Theologiae47 O fato de natildeo nos atermos agrave Suma de Teologia deve-se ao consenso hoje estabelecido de que natildeo se pode mdash sem perda de perspectivas mdash interpretar a Summa sem recorrer a outras obras do mesmo periacuteodo ou precedentes Jaacute em um estudo de Martin Grabmann mdash um dos mais dedicados leitores da Summa Theologiae da primeira metade do seacuteculo passado mdash existe este indicativo Depois de acenar para a importacircncia capital da Summa declara

44 A Ēthikagrave Nikomaacutekheia (Ἠθικὰ Νικομάχεια) seraacute citada habitualmente a partir da traduccedilatildeo brasileira consignada na Coleccedilatildeo Os Pensadores conforme indicaremos no decorrer do texto Os termos gregos mais importantes seratildeo citados entre colchetes a partir da ediccedilatildeo biliacutengue espanhola de Mariacutea Arauacutejo e Juliaacuten Mariacuteas Quando poreacutem a traduccedilatildeo brasileira for por alguma razatildeo insatisfatoacuteria traduziremos a partir da versatildeo espanhola colocando o original espanhol no rodapeacute 45 Utilizaremos a ediccedilatildeo biliacutengue da Summa contra Gentiles (1258 a 1264) na traduccedilatildeo brasileira de Odilatildeo Moura revista recentemente (1996) por Luis Alberto De Boni 46 Transitaremos pela ediccedilatildeo biliacutengue da Summa Theologiae na sua nova traduccedilatildeo brasileira das Ediccedilotildees Loyola que resultou no aparecimento de nove volumes entre os anos de 2001 a 2006 47 Frequentaremos o Compendium Theologiae em duas ediccedilotildees A primeira e jaacute citada nesta introduccedilatildeo eacute uma ediccedilatildeo biliacutengue vertida para o vernaacuteculo por Carlos Nougueacute Tambeacutem trafegaremos por uma traduccedilatildeo mais antiga de Odilatildeo Moura (1977) Doravante sempre que usarmos a ediccedilatildeo biliacutengue faremos a ressalva a fim de distinguir as duas ediccedilotildees

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Pelo contraacuterio para a investigaccedilatildeo cientiacutefica que escruta um a um os problemas da doutrina tomista no ponto de vista histoacuterico e especulativo as demais obras do Aquinate satildeo tambeacutem uma fonte indispensaacutevel e por outra parte inesgotaacutevel Consagrados a trabalhos de pormenor exerceram estes escritos maior influecircncia sobre o pensamento e a obra de S Tomaacutes e em consequumlecircncia sobre o nascimento a elaboraccedilatildeo e o acabamento da poderosa siacutentese que encontramos na Suma Teoloacutegica seu estudo lanccedilaraacute pois uma viva luz sobre a proacutepria Suma e ajudar-nos-aacute a melhor penetrar-lhe o sentido [] Quem desejar conhecer e aclarar o lado aristoteacutelico da Suma Teoloacutegica e portanto seu fundamento filosoacutefico essencial deve seguir ao mesmo tempo o Aquinate em seu laboratoacuterio filosoacutefico nos comentaacuterios sobre Aristoacuteteles onde forja os instrumentos de sua especulaccedilatildeo48

Ressaltamos que as principais passagens das obras

tomasianas seratildeo citadas de forma biliacutengue sempre com o latim no rodapeacute O original latino seraacute sempre citado a partir do texto Taurino editado em 1953 e transferido automaticamente por Roberto Busa em fitas magneacuteticas e uma vez mais revisto e ordenado por Enrique Alarcoacuten 49 Ademais nos supracitados capiacutetulos comparecem ainda os comentadores de Tomaacutes Entre eles mencionamos a historiadora da filosofia medieval Sofia Vanni

48 GRABMANN Martinho Introduccedilatildeo agrave Suma Teoloacutegica de Santo Tomaacutes de Aquino Trad Francisco Lage Pessocirca Rio de Janeiro Editora Vozes 1994 pp 29-30 [O itaacutelico eacute nosso] Tambeacutem Gilson salienta a necessidade do recurso a outras obras de Tomaacutes quando se quer aprofundar as posiccedilotildees da Summa Theologiae Vale a transcriccedilatildeo GILSON A Filosofia na Idade Meacutedia p 655 ldquoA exposiccedilatildeo completa mas tatildeo simplificada quanto possiacutevel da filosofia tomista se encontra na primeira e segunda partes da Suma teoloacutegica Eacute aiacute nessas questotildees expressamente redigidas por santo Tomaacutes para os principiantes que conveacutem buscar uma primeira iniciaccedilatildeo a seu pensamento A Summa contra os gentios conteacutem a mesma doutrina mas pretende fundaacute-la tatildeo completamente quanto possiacutevel numa demonstraccedilatildeo racional Eacute aiacute pois que se deve buscar a discussatildeo aprofundada dos problemas resolvidos na Suma teoloacutegica eles satildeo retomados examinados sob todos os acircngulos submetidos agrave prova de inuacutemeras objeccedilotildees e eacute somente depois de ter triunfado sobre essas muacuteltiplas provas de resistecircncia que as soluccedilotildees satildeo definitivamente consideradas verdadeiras Enfim para os casos em que um novo aprofundamento dos problemas pareccedila necessaacuterio deve-se procurar tanto nas Questotildees disputadas como nos Quodlibeta O conhecimento de certas questotildees disputadas como as Quaestiones de Veritate ou o De Potentia por exemplo natildeo eacute menos indispensaacutevel do que o das duas Sumas para quem quiser penetrar ateacute o fundo do pensamento de santo Tomaacutesrdquo 49 CORPUS THOMISTICUM Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorggt

48 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Rovighi e o medievalista francecircs Eacutetienne Gilson Em cada capiacutetulo colocamos agrave vista do leitor as referecircncias bibliograacuteficas Cada capiacutetulo apresenta tambeacutem uma introduccedilatildeo as devidas subdivisotildees uma conclusatildeo mdash logicamente parcial mdash assim como um fio condutor que o liga ao proacuteximo Na dinacircmica que resolvemos dar agrave nossa exposiccedilatildeo encontramos por vezes a necessidade de aprofundar temas jaacute tratados em capiacutetulos anteriores e a voltar a passagens jaacute citadas Quando isso ocorrer procuraremos justificar a razatildeo do nosso retorno agrave temaacutetica e ao periacuteodo Toda esta nossa propedecircutica quer atestar que mesmo quando fazemos digressotildees nossa direccedilatildeo eacute sempre para Tomaacutes e a nossa temaacutetica tal como a tentamos circunscrever nesta introduccedilatildeo tambeacutem remonta ao Aquinate

Capiacutetulo I Filosofia e Eacutetica

Uma vez que trataremos da eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino julgamos pertinente determo-nos por um instante na relaccedilatildeo existente entre filosofia e eacutetica a fim de estabelececirc-la E para que a nossa abordagem natildeo fique fechada no medievo mas se torne um texto mais aberto optamos por nos reportar primeiramente aos gregos mostrando em seguida como Tomaacutes mdash agrave sua maneira mdash retorna a eles Neste capiacutetulo portanto eacute nosso propoacutesito patentear que a filosofia nasce tambeacutem como ἦθος (ẽthos) 1 mdash com o η inicial mdash entendendo por este termo a pretensatildeo humana de construir um espaccedilo na ldquofyacutesisrdquo (φύσις) habitaacutevel para o homem

O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do ethos [] A metaacutefora da morada e do abrigo indica justamente que a partir do ethos o espaccedilo do mundo torna-se habitaacutevel para o homem2

Para tanto focaremos em alguns conceitos-chave Antes de

tudo abordaremos o ldquothaỹmardquo (θαῦμα) como origem do filosofar Em seguida discorreremos acerca da etimologia da palavra ldquofilosofiacuteardquo (φιλοσοφία) entendida como ldquofiliacuteardquo (φιλία) agrave ldquosofiacuteardquo (σοφία) que se desabrocha na persecuccedilatildeo e consecuccedilatildeo da

1 A bem da verdade a filosofia nasce poliacutetica no sentido de que ela nasce na e com a poacutelis nasce da poacutelis A filosofia comeccedila na Agoraacute [Ἀγορά] na praccedila sua gecircnese coincide pois com a do espaccedilo puacuteblico Como afirma Petrucciani a argumentaccedilatildeo filosoacutefica em seu iniacutecio eacute um fenocircmeno eminentemente urbano PETRUCCIANI Stefano Modelos de Filosofia Poliacutetica Trad Joseacute Raimundo Vidigal Satildeo Paulo Paulus 2014 p 37 ldquoA cidade-estado grega eacute o lugar no qual aparece pela primeira vez aquela novidade radical que eacute a discussatildeo poliacutetica no espaccedilo puacuteblico Com ela e junto com ela nascem aquelas praacuteticas que tecircm sido caracteriacutesticas por toda a histoacuteria da civilizaccedilatildeo ocidental como o discurso argumentativo a filosofia o debate poliacutetico o pensamento poliacuteticordquo 2 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura pp 12-13 Esta concepccedilatildeo de ẽthos precisa mdash sem duacutevida mdash ser completada Faremos este complemento no proacuteximo capiacutetulo mas desde jaacute podemos fixar que esta acepccedilatildeo de ἦθος (ẽthos) eacute bem atestada pelos filoacutelogos mais renomados (CHANTRAINE ἦθος [ẽthos] In Op Cit p 407)

50 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ldquoalḗtheiardquo (ἀλήθεια) luz inconteste Depois falaremos da filosofia como ldquotheōriacuteardquo (θεωρία) isto eacute como contemplaccedilatildeo que se daacute quando da posse da ldquoalḗtheiardquo que alcanccedilada atraveacutes do ldquodiaacutelogosrdquo (διάλογος) e esquematizada daacute origem agrave ldquoepistḗmērdquo (ἐπιστήμη)

Em todo este percurso projetamos acenar como Tomaacutes acolhe mdash agrave sua maneira mdash estes conceitos Mas cumpre deixarmos algo claro Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo esgotar a temaacutetica do nascimento da filosofia tampouco exaurir a riqueza dos conceitos arrolados nem a sua ressonacircncia em Tomaacutes Pretendemos apenas assinalar que a filosofia nasce tambeacutem como interrogaccedilatildeo acerca do ἦθος (ẽthos) mdash no sentido que por ora demos a este termo mdash e como o Aquinate segundo percebemos concebe-a assim A nossa fonte mdash maacutexime quanto agraves etimologias mdash seraacute a preleccedilatildeo de Emanuele Severino I Presocratici e la nascita della filosofia que integra a primeira seacuterie da coletacircnea Il Caffegrave Filosofico3 Quanto a Tomaacutes suas obras seratildeo a nossa fonte Passemos a considerar o thaỹma 11 DO MITO Agrave FILOSOFIA O ldquoTHAỸMArdquo COMO PRINCIacutePIO DO FILOSOFAR

Diz Aristoacuteteles na Metafiacutesica que a filosofia nasce do thaỹma (θαῦμα)4 O termo thaỹma comodamente traduzido por

3 I PRESOCRATICI e la nascita della filosofia Apresentado por Emanuele Severino Roma La repubblica e Lrsquoespresso 2009 1 DVD (90 min) widescreen color (Collana Il Caffegrave Filosofico v 1) Aqui vale uma advertecircncia seguiremos Emanuele Severino mormente enquanto filoacutelogo e estudioso dos primoacuterdios da filosofia sem desconhecer que ele tambeacutem eacute um eminente filoacutesofo Mas enquanto filoacutesofo suas conclusotildees satildeo o mais das vezes antiteacuteticas agraves dos autores que privilegiaremos 4 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 10 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 ldquoDe fato os homens comeccedilaram a filosofar agora como na origem por causa da admiraccedilatildeo [θαυμάζεινthaymaacutezein] na medida em que inicialmente ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples []rdquo Observemos a razatildeo da admiraccedilatildeo ficavam perplexos assustados ou assombrados diante das dificuldades mais simples Ademais importa ressaltarmos que Aristoacuteteles aqui daacute realce a um dito de Platatildeo PLATOacuteN Teeteto Trad Aacutelvaro Vallejo Campos Rev Fernando Garciacutea Romero Madrid Editorial Gredos 1992 t V 155 d ldquoQuerido amigo parece que Teodoro no se ha equivocado al juzgar tu condicioacuten natural pues experimentar eso que llamamos la admiracioacuten es muy caracteriacutestico del filosofo Eacuteste y no otro efetivamente es la origen de la filosofiacuteardquo ldquoSoacutecrates mdash Querido amigo parece que Teodoro natildeo se equivocou ao julgar sua condiccedilatildeo natural pois

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ldquomaravilhardquo evoca muito mais do que comumente se pensa a saber um indiviacuteduo que se admira diante de algo que antes simplesmente natildeo lhe causava espanto algum No original thaỹma quer dizer ldquomedordquo ldquoterrorrdquo5 Mas medo de quecirc Sobretudo da dor da infelicidade e da morte Em razatildeo disso a filosofia nasce tambeacutem do terror isto eacute do medo do homem em face da dor e da morte

Entretanto este caminho conheceu preacircmbulos Diante do estupor causado pelos fenocircmenos da natureza por vezes terrificantes e ateacute ameaccediladores o homem de antanho a priori sem recursos acurados para explicaacute-los comeccedilou por atribuiacute-los agrave vontade arbitraacuteria de figuras humanas que se lhe apresentavam como mais potentes do que ele A estas figuras humanas denominou deuses Por isso os deuses foram os que por primeiro passaram a dar sentido a todos os fenocircmenos naturais e a ser a explicaccedilatildeo natural do homem ante a precariedade da sua existecircncia tatildeo contingente quanto agraves coisas que o cercam A respeito do ldquomedordquo do homem ao perceber a sua contingecircncia Selvaggi assinala

Se com efeito o mundo existia quando outros ldquoeusrdquo natildeo existiam e continua a existir quando eles natildeo existem mais natildeo eram

experimentar isso que chamamos admiraccedilatildeo eacute muito caracteriacutestico do filoacutesofo Isto e natildeo outra coisa efetivamente eacute a origem da filosofiardquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 5 CHANTRAINE θαῦμα [thaỹma] In Op Cit p 424 BAILLY θαῦμα [thaỹma] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais p 413 Paris Librairie Hachette 1901 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Ambos os linguistas atestam existir a acepccedilatildeo do termo thaỹma como maravilha objeto de espanto e de admiraccedilatildeo mas tambeacutem de assombro monstruoso A propoacutesito tambeacutem Tomaacutes fala de um temor que causa admiraccedilatildeo TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 41 4 C ldquoMalum autem quod in exterioribus rebus consistit triplici ratione potest excedere hominis facultatem ad resistendum Primo quidem ratione suae magnitudinis cum scilicet aliquis considerat aliquod magnum malum cuius exitum considerare non sufficit Et sic est admiratiordquo ldquoO mal que estaacute nas coisas exteriores pode ultrapassar a capacidade do homem de trecircs maneiras 1 em razatildeo de sua grandeza Quando algueacutem considera um grande mal e natildeo consegue ver como sair dele Haacute entatildeo admiraccedilatildeo []rdquo Mais adiante nas respostas agraves objeccedilotildees o Aquinate afirma que esta espeacutecie de temor que eacute causa de admiraccedilatildeo eacute o princiacutepio do filosofar Idem Ibidem I-II 41 4 ad 5 ldquoUnde admiratio est principium philosophandi []rdquo ldquoPor isso a admiraccedilatildeo eacute o princiacutepio do filosofar []rdquo

52 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

necessaacuterios para o mundo satildeo temporais e satildeo contingentes porque o mundo ldquopode existirrdquo sem eles e de fato existia ou existe Mas o que vale para os outros vale tambeacutem para mim que lhes sou semelhante Portanto tambeacutem eu natildeo sou necessaacuterio para o mundo sou temporal e contingente e o mundo o mundo real que eacute o ldquomeurdquo mundo pode existir sem mim6

Mas o fato eacute que com estas primeiras espeacutecies de narraccedilatildeo

mdash mỹthos (μῦθος)7 em grego significa exatamente narraccedilatildeo mdash o homem tentava dar sentido ao seu assombro ante os fenocircmenos naturais ao mesmo tempo que buscava responder agrave sua vulnerabilidade diante deles Hoje conhecemos estas narraccedilotildees pelo nome de mitologia A princiacutepio eram apenas tradiccedilotildees orais Todavia na Greacutecia Homero e Hesiacuteodo mdash valendo-se de uma linguagem poeacutetica mdash comeccedilaram a consignar estas narraccedilotildees incorporando-as desta sorte ao registro da histoacuteria Aqui eacute muito importante notarmos o marco que a mitologia daacute porquanto doravante o homem natildeo procura mais defender-se da dor e da morte mdash e de tudo o que ameaccedila a sua vida mdash somente mediante ldquoteacutecnicasrdquo rudimentares ou procedimentos meramente ldquopraacuteticosrdquo mas tambeacutem buscando adquirir um senso do mundo que de certa forma sirva de proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade Em outras palavras o homem comeccedila a valer-se mdash de uma forma nova mdash do loacutegos (λόγος) para viver (deveras natildeo ainda o loacutegos filosoacutefico) Reiteramos que isso eacute marcante porque o fato de dar sentido agraves coisas e agrave proacutepria existecircncia passa a servir como uma espeacutecie de ldquoremeacutediordquo ao homem que se sente ameaccedilado Aristoacuteteles chega a dizer que quem ama o mito jaacute eacute sob certo aspecto filoacutesofo

6 SELVAGGI Filippo Filosofia do Mundo Cosmologia Filosoacutefica Trad Alexander A Macintyre Rev H C de Lima Vaz Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1988 p 28 7 O termo mỹthos eacute encontrado de formas diversas nos dicionaacuterios ora com circunflexo ora com acento agudo como trazem os dicionaacuterios de grego moderno (MANIATOGLOU Maria da Piedade Faria Dicionaacuterio grego-portuguecircs 1 ed Porto Porto Editora 2010 p 906) Damos preferecircncia para a grafia mais antiga segundo a etimologia do grego claacutessico como eacute encontrada na obra de CHANTRAINE Μῦθος [mỹthos] Op Cit p 735

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Ora quem experimenta a sensaccedilatildeo de duacutevida e de admiraccedilatildeo reconhece que natildeo sabe e eacute por isso que tambeacutem aquele que ama o mito eacute de certo modo filoacutesofo o mito com efeito eacute constituiacutedo por um conjunto de coisas admiraacuteveis8

Eacute necessaacuterio acentuarmos ainda outro aspecto o homem

vive o mito natildeo como uma faacutebula e a escrita miacutetica em forma de poesia natildeo diminui em nada a forccedila que o mito exerce sobre ele Por isso eacute preciso esclarecermos que quando se diz que o mito eacute uma narraccedilatildeo poeacutetica isto natildeo significa de forma alguma que o homem vetusto o acolhe como uma faacutebula antes ele o recebe como algo produzido (poeacutetico vem de poiacuteēsis [ποίησις] = produccedilatildeo) por ele mesmo a partir da observaccedilatildeo de fatos atestaacuteveis e a fim de responder agrave precariedade existencial com a qual se depara e que o assombra a todo instante

Acontece poreacutem mdash e vale salientarmos que isto eacute peculiar ao gecircnio grego mdash que os mitos aos poucos vatildeo-se tornando insuficientes porque no final das contas todos eles satildeo passiacuteveis de ser negados visto que se respondem agrave sorte infausta do homem pelas representaccedilotildees fantaacutesticas natildeo respondem a ela com o rigor de um raciociacutenio irrefutaacutevel Nasce entatildeo o desejo de saber9 isto eacute de adquirir um conhecimento tatildeo soacutelido quanto indestrutiacutevel ou seja um conhecimento que natildeo seja mais negaacutevel nem passiacutevel de ser desmentido E adquirir este saber eacute mister pois sem ele o homem pode sempre volver ao estado de ldquoescravordquo do medo da dor e da morte pela duacutevida Por isso urge a aquisiccedilatildeo deste saber seguro e irrefutaacutevel que possa resguardar o homem do temor do infortuacutenio e da morte

Ora esta procura constante por um saber indefectiacutevel apresenta-se tambeacutem como a busca de algo a que os gregos

8 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 15 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 9 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 980 a In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 ldquoTodos os homens por natureza tendem ao saberrdquo

54 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino chamaram verdade e que natildeo eacute senatildeo a marca primeira do proacuteprio filosofar Portanto a filosofia nasce existencial uma vez que por ela o homem espera encontrar o remeacutedio definitivo que o ajude a se libertar da escravidatildeo da dor da desdita e da morte Mas a filosofia exprime-se ainda como ἦθος (ẽthos) entendendo sempre por este termo a pretensatildeo de o homem produzir (poiacuteēsis [ποίησις] = produccedilatildeo)10 por meio de um modo de portar-se ante o mundo e ante os seus semelhantes um espaccedilo humano que ainda natildeo estaacute dado Para consumaacute-lo o homem teraacute de passar do ldquoloacutegos miacuteticordquo ao filosoacutefico e assim chegar agrave reflexatildeo que constituiraacute a Eacutetica enquanto ciecircncia do eacutethos Lima Vaz indica este processo de forma feliz

Eacute pois no espaccedilo do ethos que o logos torna-se compreensatildeo e expressatildeo do ser do homem como exigecircncia radical de dever-ser ou do bem Assim na aurora da filosofia grega Heraacuteclito entendeu o ethos na sua sentenccedila ceacutelebre ethos antrocircpo daiacutemocircn O ethos eacute na concepccedilatildeo heracliacutetica regido pelo logos e eacute nessa obediecircncia ao logos que se datildeo os primeiros passos em direccedilatildeo agrave Eacutetica como saber racional do ethos assim como iraacute entendecirc-la a tradiccedilatildeo filosoacutefica do Ocidente11

Prossigamos na nossa tentativa de entender como o

itineraacuterio da eacutetica comeccedila a se delinear a partir da especulaccedilatildeo grega 12 FILOSOFIA E ldquoALḖTHEIArdquo A FILOSOFIA COMO ldquoFILIacuteArdquo Agrave ldquoSOFIacuteArdquo

Diziacuteamos acima acerca da importacircncia da busca da verdade Mas o que eacute a verdade Para o grego antigo a verdade eacute

10 Natildeo precisamos carregar a tinta todas as vezes que usamos o termo grego poiacuteēsis a fim de opor o fazer (obra que transita do sujeito para o objeto) ao agir (obra que termina no sujeito) Podemos entender o ldquoagirrdquo tambeacutem como uma produccedilatildeo construccedilatildeo De qualquer forma voltaremos com maior detenccedila a esta questatildeo numa nota que se encontra no proacuteximo capiacutetulo 11 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13

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alḗtheia (ἀλήθεια) O ldquoαrdquo aqui eacute uma partiacutecula privativa 12 enquanto lḗthē (λήθη)13 significa ldquoesquecimentordquo Logo alḗtheia eacute o que natildeo se pode esquecer porque patente evidente manifesto14 Diziacuteamos ainda que quem busca a verdade eacute o filoacutesofo Mas o que eacute a filosofiacutea (φιλοσοφία) Este termo eacute comumente traduzido e explicado por ldquoamor agrave sabedoriardquo Poreacutem isso natildeo basta para dizecirc-lo em seu sentido mais profundo Com efeito que amor eacute este Fiacutelos (φίλος) deriva de filiacutea (φιλία) que significa um amor de atenccedilatildeo de cuidado de curadoria Sofiacutea (σοφία) por seu lado vem

12 FREIRE Antocircnio Op Cit p 266 13 CHANTRAINE λήθη [lḗthē] In Op Cit p 636 Chantraine remete o leitor ao verbo λανθάνω Idem Λανθάνω [lanthaacutenō] Op Cit p 618 Tambeacutem Bailly usa do mesmo expediente BAILLY Λανθάνω [lanthaacutenō] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 516 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Os dois estudiosos preveem o significado de lḗthē como o que estaacute oculto escondido bem como o que eacute ignorado esquecido negligenciado No final da Repuacuteblica na narrativa do mito de Er lḗthē eacute o nome dado agrave planiacutecie de cujo rio as almas eram obrigadas a beber a aacutegua e as que bebiam mais do que deviam se esqueciam de tudo PLATOacuteN Repuacuteblica Trad Conrado Eggers Lan Rev Alberto Del Pozo Ortiz Madrid Editorial Gredos 1986 t IV X 621 a-b ldquoDespueacutes de que pasaron tambieacuten las demaacutes marcharon todos hacia la planicie del Olvido a traveacutes de un calor terrible y sofocante En efecto la planicie estaba desierta de aacuterboles y de cuanto crece de la tierra Llegada la tarde acamparon a la orilla del riacuteo de la Desatencioacuten cuyas aguas ninguna vasija puede retenerlas Todas las almas estaban obligadas a beber una medida de agua pero a algunas no las preservaba su sabiduriacutea de beber maacutes allaacute de la medida y asiacute tras beber se olvidaban de todordquo ldquoDepois passaram tambeacutem as demais marcharam todas para a planiacutecie do Esquecimento [lḗthē] atraveacutes de um calor terriacutevel e sufocante Com efeito a planiacutecie estava deserta de aacutervores e de tudo quanto cresce da terra Chegada a tarde acamparam agrave margem do rio da Desatenccedilatildeo cujas aacuteguas nenhuma vasilha pode retecirc-las Todas as almas estavam obrigadas a beber uma medida de aacutegua poreacutem a algumas natildeo as preservava a sua sabedoria de beber aleacutem da medida e assim depois de beber esqueciam-se de tudordquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 14 MOLINARO Aniceto Metafiacutesica curso sistemaacutetico Trad Joatildeo Paixatildeo Netto e Roque Frangiotti Rev Zolferino Tonon Satildeo Paulo Paulus 2014 pp 16-17 ldquoAleacutetheia significa etimologicamente natildeo escondimento a condiccedilatildeo daquilo que eacute na luz inegaacutevelrdquo Uma passagem do Fedro mostra com clareza a oposiccedilatildeo entre alḗtheia e lḗthē PLATOacuteN Fedro Trad Eacute Lledoacute Iacutentildeigo Rev Carlos Garciacutea Editorial Gredos Madrid 1988 t III 248 c ldquoCualquier alma que en el sequito de lo divino haya vislumbrado algo de lo verdadero estara indemne hasta el proximo giro y simpre que haga lo mismo estara libre de dano Pero cuando por no haber podido seguirlo no lo ha visto y por cualquier azaroso suceso se va gravitando llena de olvido y dejadez debido a este lastre pierde las alas y cae a tierrardquo ldquoQualquer alma que no seacutequito do divino tenha vislumbrado algo do verdadeiro estaraacute indene ateacute a proacutexima roda e sempre que faccedila o mesmo estaraacute livre do dano Poreacutem quando por natildeo haver podido segui-lo natildeo o viu e por qualquer evento desafortunado vai gravitando cheia de esquecimento [λήθηlḗthē] e negligecircncia devido a este lastro perde as asas e cai na terrardquo [A traduccedilatildeo eacute nossa]

56 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino de safḗs (σαφής)15 que significa claro luminoso O fḗs de safḗs vem de fȭs (φῶς) que designa luz Daiacute por exemplo a nossa palavra ldquofoto-grafiardquo (φωτο-γραφία) = grafia da luz Por conseguinte sofiacutea eacute o que natildeo se esconde o que essencialmente se mostra e o que precisamente por natildeo poder ser negado por ser uma luz inexpugnaacutevel natildeo pode ser tomado como uma mera ilusatildeo passando a figurar como um saber imorredouro Entatildeo o que eacute a filosofia Eacute a busca cuidadosa eacute a vontade de alcanccedilar a sofiacutea a saber a claridade a luz que se mostra e que natildeo se esconde e que por isso natildeo pode ser negada Por outro lado jaacute sabemos que a verdade (alḗtheia) eacute a que possui estes predicados Sendo assim a filosofia eacute a procura contiacutenua da sabedoria que se possui quando da posse da verdade isto eacute da luz incontrovertida16 a qual por sua vez seraacute como que a ldquoterapiardquo para o nosso medo da dor da desventura e da morte

Pela busca da verdade o homem tenta destacar-se daquilo que o rodeia e escapar agraves vicissitudes da sua proacutepria existecircncia a fim de construir um haacutebitat que lhe seja proacuteprio Assim sendo temos que a filosofia mdash mesmo com uma preponderante valecircncia teoreacutetica mdash nasce tambeacutem com uma exigecircncia ldquoeacuteticardquo que eacute muito mais do que mera necessidade ldquopragmaacuteticardquo (ldquotecnocratardquo diriacuteamos hoje) ao contraacuterio trata-se da afirmaccedilatildeo do homem enquanto homem que busca fazer um mundo onde possa viver humanamente Falamos pois de uma exigecircncia existencial

Este sentido de um lugar de estada permanente e habitual de um abrigo protetor constitui a raiz semacircntica que daacute origem agrave significaccedilatildeo do ethos como costume esquema praxeoloacutegico duraacutevel estilo de vida e accedilatildeo [] O domiacutenio da physis ou reino

15 CHANTRAINE σαφής [safḗs] In Op Cit p 991 BAILLY Σάφα [Saacutefa] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 782 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Ambos os autores falam de safḗs como o que eacute claro manifesto luminoso 16 MOLINARO OpCit p 16 ldquoA filosofia nesse caso eacute amor procura cuidado interesse por tudo o que por estar na luz do ser eacute absolutamente inegaacutevel eacute amor agrave verdade irrefutaacutevelrdquo

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da necessidade eacute rompido pela abertura do espaccedilo humano do ethos no qual iratildeo inscrever-se os costumes os haacutebitos as normas os valores e as accedilotildees17

Voltando ao tema da filosofia afirmaacutevamos que ela se

configura mdash desde os seus primoacuterdios mdash essencialmente como a busca da verdade Tomaacutes de Aquino retoma esta concepccedilatildeo quando assevera ldquo[] o estudo da filosofia natildeo eacute para que seja conhecido o que os homens pensaram mas para conhecer qual eacute a verdade das coisasrdquo18 Dito de outra forma podemos afirmar que a filosofia mdash em sua gecircnese mdash apresenta-se como uma busca ininterrupta pelo fundamento do devir ou seja o ldquoserrdquo Por isso tambeacutem a filosofia mostra-se mdash desde o seu iniacutecio mdash desejosa de conhecer a causa primeira de todas as coisas De sorte que ela aspira a ser uma ldquociecircnciardquo um conhecimento dotado de racionalidade proacutepria de controle proacuteprio Tambeacutem este rigor eacute muito bem frisado por Tomaacutes quando diz ldquo[] as liccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo recebidas por causa da autoridade de quem as diz mas por causa da razatildeo do que se diz []rdquo19 Alhures afirma ainda o Aquinate

Outra disputa eacute a do professor nas escolas natildeo para remover o erro mas para instruir os ouvintes e levaacute-los agrave intelecccedilatildeo da verdade que se apresenta Entatildeo eacute necessaacuterio apoiar-se em razotildees que procurem a raiz da verdade e faccedilam saber como seja

17 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13 18 TOMAacuteS DE AQUINO De caelo Lib 1 22 n8 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgccm1htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] quia studium philosophiae non est ad hoc quod sciatur quid homines senserint sed qualiter se habeat veritas rerumrdquo Idem Suma Teoloacutegica I 107 2 C ldquoNon enim pertinet ad perfectionem intellectus mei quid tu velis vel quid tu intelligas cognoscere sed solum quid rei veritas habeatrdquo ldquoCom efeito natildeo pertence agrave perfeiccedilatildeo de meu intelecto saber o que tu queres ou conheces mas somente qual eacute a verdade da coisa Conhecer o que o outro pensa natildeo eacute algo insosso inoacutecuo eacute parar nas opiniotildees subjetivas sem se chegar agrave verdade 19 TOMAacuteS DE AQUINO Super De Trinitate pars 1 q 2 a 3 ad 8 Disponiacutevel em lt httpwwwcorpusthomisticumorgcbthtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoAd octavum dicendum quod in quantum sacra doctrina utitur philosophicis documentis propter se non recipit ea propter auctoritatem dicentium sed propter rationem dictorum []rdquo

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verdadeiro o que eacute dito De outro modo se um mestre determina uma questatildeo por autoridades nuas o ouvinte ficaraacute certificado de que eacute assim mas natildeo adquiriraacute nenhuma ciecircncia e inteligecircncia e se retiraraacute vazio [vacuus abscedet]20

Aleacutem disso a filosofia nasce ainda mdash ratificamos mdash

existencial porque de algum modo procedente do terror do homem ante a morte iminente terror este que o faz buscar construir mdash atraveacutes de um loacutegos (λόγος) cada vez mais depurado mdash uma habitaccedilatildeo que o distinga daquilo que o ameaccedila um abrigo A bem da verdade a filosofia nasce ontoloacutegica e existencial ao mesmo tempo A perspectiva existencial enraiacuteza-se na perplexidade do homem perante o devir das coisas e dele proacuteprio enquanto a perspectiva ontoloacutegica consiste na resposta adequada do homem frente a esta anguacutestia resposta esta que se encontra na aquisiccedilatildeo da verdade vale dizer da sabedoria que natildeo eacute senatildeo o ser enquanto fundamento do real Temos entatildeo que o aspecto existencial e o ontoloacutegico embora distintos satildeo indissociaacuteveis Em uma palavra atraveacutes do loacutegos mdash que lhe confere acesso ao ser mdash o homem busca produzir uma ambiecircncia onde possa viver segundo o lugar que lhe cabe na hierarquia dos seres

Outrossim eacute preciso notar tambeacutem como a filosofia aspira mdash desde o seu princiacutepio mdash a um caraacuteter ldquosocialrdquo e como o ẽthos que ela reclama abriga mdash a um soacute tempo mdash uma valecircncia individual e social uma vez que o que estaacute em jogo eacute a construccedilatildeo de um mundo onde todos os homens possam viver humanamente ldquoA experiecircncia primeira do ethos revela por outro lado uma estrutura dual caracteriacutestica e constitutiva o ethos eacute

20 TOMAacuteS DE AQUINO Quodlibet IV q 9 a 3 co Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgq04htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoQuaedam vero disputatio est magistralis in scholis non ad removendum errorem sed ad instruendum auditores ut inducantur ad intellectum veritatis quam intendit et tunc oportet rationibus inniti investigantibus veritatis radicem et facientibus scire quomodo sit verum quod dicitur alioquin si nudis auctoritatibus magister quaestionem determinet certificabitur quidem auditor quod ita est sed nihil scientiae vel intellectus acquiret et vacuus abscedetrdquo

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inseparavelmente social e individualrdquo 21 O filoacutesofo italiano Salvatore Natoli concebe a eacutetica antes de mais como o exerciacutecio do homem virtuoso a esculpir o mundo humano tornando esta terra capaz de hospedar a comunidade humana a fim de que haja um espaccedilo que seja um abrigo seguro para a estada desta comunidade A eacutetica eacute pois o criar as possibilidades de uma habitaccedilatildeo um tornar possiacutevel o existir do homem enquanto homem Ora nenhum ser humano sozinho pode criar esta morada para os seus semelhantes Daiacute a face social irrenunciaacutevel da eacutetica

O ser humano vive no mundo porque algueacutem o pocircs nele vive porque algueacutem o acolhe Encontra-se portanto desde o iniacutecio situado numa rede de relaccedilotildees da qual natildeo pode prescindir A eacutetica corresponde ao modo como os seres humanos habitam a terra e por isso antes mesmo de estar relacionada ao dever tem a ver com o habitar e em sentido estrito com o existir De fato a palavra grega eacutethos aleacutem de significar costume mdash justamente costume moral mdash tambeacutem significa estadia sede morada [] Ao vir ao mundo o ser humano toma posiccedilatildeo nele entra em relaccedilotildees de pertencimento [] A eacutetica coincide portanto com o pertencimento e ao mesmo tempo com o sentir-se parte22

Mas tentemos entender melhor como este aspecto dual

apontado acima jaacute se encontra nas origens da filosofia 13 A FILOSOFIA COMO ldquoTHEŌRIacuteArdquo O NASCIMENTO DA ldquoEPISTḖMĒrdquo PELO PROCEDER DO ldquoDIAacuteLOGOSrdquo

O que se segue quando o homem se depara com a verdade Inebriado por esta luz nasce nele a theōriacutea (θεωρία) termo costumeiramente traduzido por contemplaccedilatildeo Poreacutem uma vez mais a traduccedilatildeo reclama esclarecimentos Na Greacutecia antiga

21 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 58 22 NATOLI Salvatore Filosofia e formaccedilatildeo do caraacuteter Trad Marcelo Perine Rev Iranildo B Lopes Satildeo Paulo Paulus 2008 pp 71-72

60 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino theōriacutea significava antes de mais festa Theōriacutea eacute antes de qualquer coisa espetaacuteculo23 Pois bem a theōriacutea filosoacutefica natildeo eacute senatildeo a ldquofestardquo pela descoberta da verdade Eacute o homem absorto ante a claridade de uma luz inabarcaacutevel Como Platatildeo narra na Repuacuteblica o espetaacuteculo do filoacutesofo eacute a posse da verdade24 Diante da verdade natildeo haacute mais o que se temer nem a dor nem a infelicidade nem a morte Theōriacutea portanto trata-se de uma espeacutecie de celebraccedilatildeo salviacutefica na qual o homem se encontra em condiccedilotildees de superar o medo da dor e da morte e isto de uma vez por todas ou seja de uma forma incontestaacutevel sem a incerteza que a mitologia comportava Sendo assim nada mais inexato do que ler theōriacutea como algo puramente abstrato Falamos isto sim de um evento mdash ao mesmo tempo mdash profundamente existencial e ontoloacutegico Chamamos theōriacutea pois a um acontecimento feliz posto que por ele o homem celebra o encontro da ldquomedicinardquo para a sua existecircncia enferma Dizendo agora positivamente a filosofia tem sua arkhḗ (ἀρχή) num paacutethos (πάθος) pela eydaimoniacutea (εὐδαιμονία) isto eacute pela felicidade que soacute se perfaz quando se estaacute sob a eacutegide de um saber indestrutiacutevel de uma luz inconfundiacutevel

Digamos ainda que os antigos gregos tinham um nome para este conhecimento vivificante Designavam-no epistḗmē (ἐπιστήμη) Geralmente traduz-se o vocaacutebulo simplesmente por

23 CHANTRAINE 2 θέω [theacuteō] Θεωρέω [theōreacuteō] In Op Cit p 433 BAILLY θέω [theacuteō] Θεωρέω [theōreacuteō] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 433 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Uma das acepccedilotildees primeiras deste termo eacute justamente a de assistir a uma festa religiosa bem como ser espectator dos jogos oliacutempicos 24 PLATOacuteN Repuacuteblica V 475 e ldquomdash Entonces a quieacutenes llamas verdaderamente filoacutesofos mdash A quienes aman el espectaacuteculo de la verdadrdquo ldquo[Glauco] mdash Entatildeo a quem chama lsquoverdadeiramente filoacutesofosrsquo [Soacutecrates] mdash Agravequeles que amam o espetaacuteculo da verdaderdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] Lembremo-nos de que θεωρία (theōriacutea) vem do verbo θεωρέω (theōreacuteō) que significa examinar ou inspecionar com a inteligecircncia Na verdade θεωρέω (theōreacuteō) eacute um verbo composto do substantivo θέα (theacutea) que possui o sufixo -α de accedilatildeo ou resultado da accedilatildeo e significa a accedilatildeo de olhar um aspecto ou objeto e ὁράω (horaacuteō) que eacute um verbo que tambeacutem diz olhar observar e entender θεωρέω (theōreacuteō) por conseguinte eacute a accedilatildeo daquele que lanccedila o seu olhar examinador sobre um objeto ou aspecto a fim de especulaacute-lo com a sua inteligecircncia e contemplaacute-lo quando o encontra (PEREIRA Isidoro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 2 ed Porto Livraria Apostolado da Imprensa 1957 p 248 BAILLY A Dicionnaire grec franccedilais 6 ed Paris Librairie Hachette 1979 p 919) No caso da θεωρία (theōriacutea) filosoacutefica este objeto ou aspecto eacute a verdade

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ldquoconhecimentordquo ou ldquociecircnciardquo Mas o fato eacute que ele natildeo eacute qualquer conhecimento ldquoEpiacuterdquo (ἐπί)25 significa ldquosobrerdquo e iacutestamai (ἴσταμαι)26 ldquoestar em peacuterdquo Em outras palavras a nomenclatura epistḗmē fala-nos de um saber que permanece ldquoem peacuterdquo porque sustentado ldquosobrerdquo uma argumentaccedilatildeo racional que atraveacutes do poacutelemos (πόλεμος) do diaacutelogos (διάλογος) alcanccedilou a verdade (alḗtheia) alcanccedilou a sabedoria (sofiacutea)27 Em virtude disso ldquoepistḗmērdquo eacute um conhecimento fundado na verdade acerca da existecircncia humana a partir de uma visatildeo eminente

Contra a nossa argumentaccedilatildeo neste passo poderia levantar-se a objeccedilatildeo segundo a qual a filosofia nasce como uma busca do saber pelo saber e natildeo com uma finalidade ldquoutilitaristardquo como poderia ser interpretada a construccedilatildeo de um mundo humano Neste sentido poderia ser evocada a ceacutelebre passagem da Metafiacutesica de Aristoacuteteles onde se afirma que a filosofia eacute a busca desinteressada do saber A passagem da Metafiacutesica ei-la

De modo que se os homens filosofaram para libertar-se da ignoracircncia eacute evidente que buscavam o conhecimento unicamente em vista do saber e natildeo por alguma utilidade praacutetica E o modo como as coisas se desenvolveram o demonstra quando jaacute se possuiacutea praticamente tudo de que se necessitava para a vida e

25 BAILLY ἐπί [epiacute] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 326 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Bailly fala do termo epiacute como um estar ldquoagrave superfiacutecie derdquo 26 CHANTRAINE ἵτεμι [hiacutetemi] In Op Cit p 470 Chantraine precisa que o termo ἵτεμι (hiacutetemi) eacute derivado exatamente de ἴσταμαι [iacutestamai] que significa endireitar situar deter colocar na balanccedila pesar fixar etc Aristoacuteteles fala de ldquoepistḗmērdquo ligando-a a esta acepccedilatildeo ARISTOacuteTELES Fiacutesica Trad Guillermo R De Echandiacutea Rev Alberto Bernabeacute Pajares Madrid Editorial Gredos 1995 VII 3 247b 10 ldquoTampoco la aquisicioacuten inicial de conocimiento es una generacioacuten o una alteracioacuten pues decimos que la razoacuten conoce y piensa justamente cuando estaacute en reposo y en quietud []rdquo ldquoTampouco a aquisiccedilatildeo inicial de conhecimento [epistḗmē] eacute uma geraccedilatildeo ou uma alteraccedilatildeo pois dizemos que a razatildeo conhece e pensa justamente quando estaacute em repouso [ὴρεμεῖνēremeĩn] e em quietude []rdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 27 MOLINARO Op Cit p 16 ldquoEpisteacuteme eacute a palavra grega para ciecircncia Mas examinando a fundo o que os gregos pensaram com esta palavra constata-se que significa estar (=steacuteme de iacutestemi) sobre (=epigrave) si mesma impondo-se sobre (=epigrave) tudo o que pretende e presume negar o seu estar O significado de estar eacute o da inegabilidade e da irremovibilidade da indubitabilidade e da incontrovertibilidade []rdquo

62 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

tambeacutem para o conforto e para o bem-estar entatildeo se comeccedilou a buscar essa forma de conhecimento Eacute evidente portanto que natildeo o buscamos por nenhuma vantagem que lhe seja estranha e mais ainda eacute evidente que como chamamos livre o homem que eacute fim para si mesmo e natildeo estaacute submetido a outros assim soacute esta ciecircncia dentre todas as outras eacute chamada livre pois soacute ela eacute fim para si mesma28

O periacuteodo eacute claro e natildeo comporta dubiedade No entanto o

que defendemos natildeo se opotildee em nada a ele pois o ẽthos (ἦθος) do qual falamos a saber a ldquomorada do homemrdquo estaacute longe de ser algo que insira mdash nas origens do filosofar mdash uma visatildeo ldquopragmatistardquo ou ldquoutilitaristardquo Estamos a falar antes de algo intriacutenseco ao ser humano O ẽthos fala de uma ldquocasa espiritualrdquo afigura-se como a busca da proacutepria possibilidade da existecircncia humana isto eacute de o homem existir enquanto homem enquanto ser distinto dos ldquodeusesrdquo e do mundo ldquoinfra-humanordquo da fyacutesis (φύσις) Esta ponderaccedilatildeo eacute muito bem acentuada por Lima Vaz

O ethos eacute a morada do animal e passa a ser a lsquocasarsquo (oikos) do ser humano natildeo jaacute a casa material que lhe proporciona fisicamente abrigo e proteccedilatildeo mas a casa simboacutelica que o acolhe espiritualmente e da qual irradia para a proacutepria casa material uma significaccedilatildeo propriamente humana entretecida por relaccedilotildees afetivas eacuteticas e mesmo esteacuteticas que ultrapassam suas finalidades puramente utilitaacuterias e a integram plenamente no plano humano da cultura Do ponto de vista de sua plena auto-realizaccedilatildeo o ser humano antes de habitar no oikos da natureza deve morar no seu oikos espiritual mdash o mundo da cultura mdash que eacute constitutivamente eacutetico29

Mas voltando ao enredo perguntamo-nos como

alcanccedilamos este conhecimento sobre o qual falamos mais acima e

28 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 20-25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 29 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 pp 39-40

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que denominamos epistḗmē Segundo jaacute acenamos atraveacutes do diaacutelogo (διάλογος) O termo diaacute (διά) geralmente eacute traduzido como ldquoatraveacutesrdquo 30 enquanto loacutegos (λόγος) eacute tomado como palavra discurso pensamento31 Todavia diaacute conteacutem a partiacutecula dirsquo (διrsquo)32 que indica divisatildeo33 e no caso especiacutefico diferenccedila entre dois loacutegoi (λόγοι) que se separam e se distanciam por se contrastarem e se dissociam justamente por natildeo possuiacuterem num mesmo termo a verdade Esta ldquodivisatildeordquo para os gregos eacute a causa de uma espeacutecie de distensatildeo intelectual que eacute constitutiva do proacuteprio diaacutelogo Por meio dela o diaacutelogo acontece O ldquoquecircrdquo do diaacutelogo estaacute exatamente nisto num conhecimento que se produz e se fundamenta enquanto se estende por meio de argumentos que se contrastam Longe de ser uma concordacircncia o diaacutelogo pressupotildee uma discordacircncia e se inicia por ela Alguns dos diaacutelogos platocircnicos alongam-se alargam-se e como que se tornam cada vez mais claros luminosos a partir das respostas que Soacutecrates daacute agraves objeccedilotildees que satildeo levantadas ao seu proacuteprio pensamento Eacute pois do diaacutelogo assim concebido como duas ldquofalasrdquo (loacutegoiλόγοι) que se contrastam que nasce a epistḗmē isto eacute a clareza o esclarecimento a certeza inabalaacutevel sobre uma determinada tese Natildeo haacute o que negar soacute dilatamos o nosso

30 FREIRE Antocircnio Op Cit p 209 31 A palavra logos eacute derivada de um radical ldquolegrdquo que forma o verbo falar dizer (BAILLY λέγω [leacutegō] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 528 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt) MOLINARO Op Cit p 15 ldquoLoacutegos derivado de leacutego o termo natildeo significa apenas palavra mas sobretudo pensamento eacute daiacute que proveacutem a loacutegica O pensamento eacute o viacutenculo a unificaccedilatildeo De quecirc Do serrdquo 32 Tanto o διά quanto o διrsquo (forma suprimida) podem ser encarados como adveacuterbio (separando dividindo) ou como preposiccedilatildeo (PEREIRA Op Cit p 127 FREIRE Op Cit p 209) Como preposiccedilatildeo possuem dois casos genitivo e acusativo Como genitivo significam atraveacutes de como geralmente satildeo traduzidos (PEREIRA 1957 Op Cit p 127) Como acusativo podem indicar a causa (por causa de) e podem servir como elemento identificador de um gecircnero literaacuterio em particular como eacute o caso das etiologias Tambeacutem no caso acusativo podem significar com o auxiacutelio de (PEREIRA Op Cit p 127) Como substantivo parecem seguir a linha de acepccedilatildeo do adveacuterbio dividindo separando dispersando dum e doutro lado de onde provecircm diretamente os vocaacutebulos divisatildeo separaccedilatildeo distanciamento O διrsquo enquanto elisatildeo de διά tambeacutem eacute amparado pela gramaacutetica grega de Antocircnio Freire (FREIRE Op Cit p 275) e pelo dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidoro Pereira (PEREIRA Op Cit p 127) 33 Idem Op Cit p 127

64 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino pensamento soacute alcanccedilamos um saber inequiacutevoco quando pensamos por contrastes Saltam-nos agrave vista as palavras de Platatildeo na Repuacuteblica

[] Aquele que natildeo pode distinguir a Ideia do Bem com a razatildeo abstraindo-a das demais e natildeo pode atravessar todas as dificuldades como em meio a uma batalha nem aplicar-se a esta busca mdash natildeo segundo a aparecircncia senatildeo segundo a essecircncia mdash e tampouco fazer a marcha por todos estes lugares com um raciociacutenio que natildeo decaia natildeo diraacutes que semelhante homem possui o conhecimento do Bem em si nem de nenhuma outra coisa boa34

Tomaacutes tambeacutem falava disso

Se algueacutem quiser escrever contra isto ser-me-aacute aceitabiliacutessimo Com efeito natildeo haacute modo melhor de descobrir a verdade e confutar a falsidade do que resistir contraditando35

De mais a mais assim como nos tribunais natildeo se pode julgar sem ouvir as razotildees de ambas as partes assim tambeacutem eacute necessaacuterio que quem deve estudar filosofia para ter um melhor julgamento ouccedila todas as razotildees e as duacutevidas dos adversaacuterios36

34 PLATOacuteN Repuacuteblica VII 534 b-c [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] aquel que no pueda distinguir la Idea del Bien con la razoacuten abstrayeacutendola de las demaacutes y no pueda atravesar todas las dificultades como en medio de la batalla ni aplicar-se a esta buacutesqueda mdash no seguacuten la apariencia sino seguacuten la esencia mdash y tampoco hacer la marcha por todos estos lugares con un razonamiento que no decaiga no diraacutes que semejante hombre posee el conocimiento del Bien en siacute ni de ninguna otra cosa buena []rdquo 35 TOMAacuteS DE AQUINO De perfectione cap 26 Disponiacutevel em lt httpwwwcorpusthomisticumorgoaphtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoSi quidam vero contra haec rescribere voluerint mihi acceptissimum erit Nullo enim modo melius quam contradicentibus resistendo aperitur veritas et falsitas confutatur []rdquo 36 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 3 1 n 5 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp03htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoSicut autem in iudiciis nullus potest iudicare nisi audiat rationes utriusque partis ita necesse est eum qui debet audire philosophiam melius se habere in iudicando si audierit omnes rationes quasi adversariorum dubitantiumrdquo ARISTOacuteTELES Metafiacutesica III 1 995 b In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 ldquoAdemais quem ouviu as razotildees opostas como num processo estaacute necessariamente em melhor condiccedilatildeo de julgarrdquo

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Do quanto dissemos resta concluir que a filosofia eacute o lugar onde nasceraacute a eacutetica enquanto ciecircncia do ẽthos Em razatildeo disso a indagaccedilatildeo acerca do ẽthos caberaacute sempre mdash e primariamente mdash ao labor filosoacutefico Afirma Lima Vaz

[] tendo sido a Filosofia a forma originaacuteria com que historicamente se constituiu a ciecircncia do ethos e que persistimos em considerar a uacutenica forma adequada que nos permite pensar os fundamentos racionais desta ciecircncia37

Ora se a filosofia se perfaz atraveacutes do diaacutelogos tal qual o

entendemos acima como duas falas (loacutegoiλόγοι) que se contrastam a eacutetica mdash ciecircncia do ẽthos mdash iraacute pressupor sempre de algum modo a poacutelis (πόλις) isto eacute vaacuterios (πολύς) homens que compareccedilam agrave Agoraacute (Ἀγορά) com o seu loacutegos Acentua Vaz ldquoComo primeiro desses traccedilos apresenta-se sem duacutevida a estrutura dual do ethos ou seja a sua dupla face social e individualrdquo38 Sobre a importacircncia fundamental do ldquodiaacutelogosrdquo para a eacutetica o mesmo estudioso afirma noutro lugar

Somente nesse horizonte eacute possiacutevel o encontro com o Outro Ora esse encontro eacute em sua forma elementar uma interlocuccedilatildeo em que duas razotildees se comunicam diaacute-logos O diaacutelogo eacute fundamentalmente um evento de natureza eacutetica e eacute por ele que a estrutura intersubjetiva do agir eacutetico primeiramente se realiza39

Ademais pelo fato de em filosofia a verdade se dar mdash

prevalentemente mdash pelo poacutelemos (πόλεμος) do diaacutelogos (διάλογος) resta que a ciecircncia do ẽthos nunca estaraacute acabada e seraacute sempre um conhecimento mdash decerto cientiacutefico agrave sua maneira mdash poreacutem incompleto e aberto a novos aprofundamentos Jaacute dizia Aristoacuteteles acerca da sabedoria praacutetica ldquo[] e tambeacutem o tempo

37 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 35 38 Idem Ibidem p 39 39 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Eacutetica e Direito Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 pp 248-249

66 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino parece ser um bom descobridor e colaborador nessa espeacutecie de trabalhordquo40 Salienta tambeacutem Lima Vaz

O ethos natildeo eacute uma grandeza imoacutevel no tempo mas como a proacutepria cultura da qual eacute a dimensatildeo normativa e prescritiva revela um surpreendente dinamismo de crescimento adaptaccedilatildeo e recriaccedilatildeo de valores quando os chamados ldquoconflitos eacuteticosrdquo desencadeiam no seu seio a siacutendrome da crise cujo desfecho eacute em geral a invenccedilatildeo de uma nova forma eacutetica de vida41

Ao longo deste capiacutetulo jaacute comeccedilamos a mostrar como as

notas presentes na gecircnese do filosofar foram livremente assumidas por Tomaacutes de Aquino Gostariacuteamos agora de aprofundar isso tentando nos aproximar da estrutura do pensamento de Tomaacutes na sua siacutentese final a Summa Theologiae Com isso queremos atestar como a obra do Aquinate eacute um projeto aberto e vivo Agrave fecundidade dos diaacutelogos de Platatildeo os medievais mdash maacutexime Tomaacutes mdash propuseram o terreno natildeo menos feacutertil das disputas 14 TOMAacuteS DE AQUINO E A ldquoFILOSOFIacuteArdquo DO ldquoDIAacuteLOGOSrdquo Agrave ldquoDISPUTATIOrdquo

Sem pretendermos ser exaustivos queremos enfatizar que a Summa Theologiae e tambeacutem as outras obras do Aquinate comportam um conhecimento filosoacutefico que eacute buscado atraveacutes de uma forma que consideramos similar ao procedimento grego do diaacutelogos a saber a disputatio Assim a estrutura da Summa apresenta-se como um contiacutenuo lidar com reacuteplicas e treacuteplicas uma obra que soacute se perfaz pelo tirociacutenio das objeccedilotildees justamente porque nela parecem palpitar ainda as disputas Trata-se de um pensamento que se dilata um discurso que soacute se torna polido quando submetido agrave sabatina das ldquodiscordacircnciasrdquo Na Summa os

40 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Trad Leonel Vallandro Gerd Bornheim 1 ed Satildeo Paulo Abril SA Cultural e Industrial 1973 II 7 1098 a 20 41 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 41

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argumentos se expandem quando contraditos e a clareza soacute resplandece quando a resposta se distende em respostas agraves objeccedilotildees Nela o contraditoacuterio eacute sempre uma oportunidade de aprofundamento Jaacute Aristoacuteteles na Metafiacutesica assevera acerca desta necessidade de se reconhecer preacutevia e cuidadosamente as dificuldades que uma questatildeo comporta antes de tomaacute-la em consideraccedilatildeo Afirma que os que natildeo se resguardam preliminarmente neste sentido tornam-se guias cegos que natildeo tendo tido a precauccedilatildeo de saber de onde partiram tampouco estatildeo aptos para distinguir se alcanccedilaram ou natildeo uma meta Tomaacutes comentando o mesmo trecho da Metafiacutesica aduz que eacute preciso cultivar uma espeacutecie de ldquoduacutevida metoacutedicardquo para se atingir a verdade Esta ldquoduacutevida metoacutedicardquo eacute exatamente o contraacuterio daquela que duvida sem escutar a palavra dos seus opositores De mais a mais que forma melhor haacute para se avaliar as dificuldades de uma questatildeo do que ser provocado pelas objeccedilotildees O filoacutesofo precisa ser provado pelas objeccedilotildees necessita delas para que se previna contra os assaltos da imaginaccedilatildeo e se ponha ao abrigo de uma sorte de precipitaccedilatildeo que pode conduzi-lo agrave desafortunada realidade de natildeo demonstrar o que se propocircs Ouccedilamos Aristoacuteteles e em seguida o comentaacuterio de Tomaacutes

Ora para quem pretende resolver bem um problema eacute uacutetil perceber adequadamente a dificuldade que ele comporta a boa soluccedilatildeo final consiste na resoluccedilatildeo das dificuldades previamente estabelecidas Quem ignora um noacute natildeo poderaacute desataacute-lo e a dificuldade encontrada pelo pensamento manifesta a dificuldade existente nas coisas De fato enquanto duvidamos estamos numa condiccedilatildeo semelhante a quem estaacute amarrado em ambos os casos eacute impossiacutevel ir adiante Por isso eacute preciso que primeiro sejam examinadas todas as dificuldades tanto por essas razotildees como porque os que pesquisam sem primeiro ter examinado as dificuldades assemelham-se aos que natildeo sabem aonde devem ir Ademais estes natildeo satildeo capazes de saber se encontraram ou natildeo o que buscam pois natildeo lhes eacute claro o fim que devem alcanccedilar

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enquanto isso eacute claro para quem antes compreendeu as dificuldades42

E primeiro disse [Aristoacuteteles] que agravequeles dispostos a investigar a verdade importa preparar bem o trabalho isto eacute duvidar convenientemente antes de fazecirc-lo ou seja considerar corretamente quais satildeo os pontos duvidosos E isto porque o que suceder agrave investigaccedilatildeo da verdade nada mais eacute do que a soluccedilatildeo das duacutevidas anteriormente postas43

E a Summa segue este caminho Mostra-se como uma obra

sem fecho porque potencialmente refutaacutevel e capaz de refutar um cume sim mas aberto a um horizonte sem fim diversa portanto da imagem que nos adveacutem do famoso deliacuterio de Braacutes Cubas44 Nada haacute nela de cadaveacuterico senatildeo o contraacuterio a Summa permanece em constante vicejar e pulsar como que esperando uma nova objeccedilatildeo Aliaacutes mesmo os por vezes densos comentaacuterios de Tomaacutes a Aristoacuteteles tambeacutem jaacute causavam este tipo de admiraccedilatildeo R Bongli um natildeo adepto do pensamento de Tomaacutes que traduziu parte da Metafiacutesica de Aristoacuteteles para o italiano no seacuteculo XIX acerca do Comentaacuterio de Tomaacutes agrave Metafiacutesica do Estagirita jaacute dizia

Grande figura verdadeiramente Santo Tomaacutes Que pensamento agudo e soacutelido Quanta clareza e equiliacutebrio Natildeo haacute dificuldade que o desencoraje questatildeo que o afaste obstaacuteculo que o detenha

42 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica III 1 995 b In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 43 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 3 1 n 2 Disponiacutevel lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp03htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] et primo dicit quod volentibus investigare veritatem contingit prae opere idest ante opus bene dubitare idest bene attingere ad ea quae sunt dubitabilia Et hoc ideo quia posterior investigatio veritatis nihil aliud est quam solutio prius dubitatorumrdquo 44 ASSIS Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas 9 ed Satildeo Paulo Aacutetica 1982 p 19 In NASCIMENTO Carlos Arthur R Santo Tomaacutes de Aquino o Boi Mudo da Siciacutelia Satildeo Paulo EDUC 1992 pp 87-88 ldquoLogo depois senti-me transformado na Summa Theologica de S Tomaacutes impressa num volume e encadernada em marroquim com fechos de prata e estampas ideacuteia esta que me dava ao corpo a mais completa imobilidade e ainda agora me lembra que sendo as minhas matildeos os fechos do livro e cruzando-as eu sobre o ventre algueacutem as descruzava (Virgiacutelia decerto) porque a atitude lhe dava a imagem de um defuntordquo

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Tentar compreender natildeo eacute para ele uma curiosidade mas uma obrigaccedilatildeo e o esforccedilo da inteligecircncia o demonstra mas natildeo o anuncia Jamais um desprezo uma maldiccedilatildeo uma trapaccedila uma ira uma reprovaccedilatildeo um riso para os seus adversaacuterios de qualquer espeacutecie sempre pronto a discutir seguro de suas armas sem ser pretensioso45

Mesmo no seacuteculo XX Tomaacutes ainda eacute lembrado como um

dos mais penetrantes inteacuterpretes de Aristoacuteteles Eloquente eacute o testemunho de Jaeger a este respeito

Os comentaacuterios de Santo Tomaacutes a Aristoacuteteles revelam um novo esforccedilo de concentraccedilatildeo para chegar a compreender quer o espiacuterito quer a letra de um autor novo que apresenta seacuterias dificuldades ao especialista e obstaacuteculos insuperaacuteveis ao leitor meacutedio despreparado [] natildeo haacute nada de comparaacutevel agrave seriedade e agrave tenacidade da feliz tentativa de Santo Tomaacutes de penetrar o sentido das obras do grande filoacutesofo a cuja anaacutelise e interpretaccedilatildeo ele dedicou uma parte tatildeo grande da sua vida Natildeo encontramos exemplos deste tipo de compreensatildeo mdash que eacute ao mesmo tempo particular e geral no estilo de ensaio mas mesmo assim absolutamente objetiva mdash nem mesmo considerando os seacuteculos do mais culto humanismo46

Tambeacutem nosso contemporacircneo o historiador italiano da

filosofia Giovanni Reale natildeo sendo tampouco um seguidor de Tomaacutes por ocasiatildeo do seu Comentaacuterio agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles confessa que as ldquointuiccedilotildees geniaisrdquo do Aquinate natildeo envelheceram inclusive do ponto de vista histoacuterico natildeo podem ser relegadas ao passado

E particularmente natildeo sendo tomista minha escolha de Tomaacutes

45 BONGLI R Metafisica drsquoAristotele volgarizzata e commentata da R Bonghi Livros I-VI Turim 1854 In REALE Giovanni Metafiacutesica vol I Ensaio introdutoacuterio Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 pp 18-19 46 JAEGER Werner Umanesimo e Teologia Milano Corsi dei Servi 1958 pp 35-36 In MONDIN Battista A Grandeza e Atualidade de Satildeo Tomaacutes de Aquino Trad Antocircnio Angonese Satildeo Paulo EDUSC 1998 p 15

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foi determinada justamente pela verificaccedilatildeo de sua excelecircncia objetiva e utilidade inclusive do ponto de vista histoacuterico47

Portanto a Summa e as Questotildees Disputadas de Tomaacutes

natildeo satildeo senatildeo partes que se desdobram em questotildees que por sua vez desmembram-se em artigos que por seu lado desdobram-se em argumentos e respostas agraves objeccedilotildees48 Por isso a Summa natildeo eacute algo inerme ou inerte ao contraacuterio em seu proacuteprio constituir-se ela aparece como um vigoroso movimento no qual a verdade se desvela com o fito de ser simplesmente dita Seus argumentos porquanto provindos direta ou indiretamente do ensino satildeo verdadeiros sinalizadores (Notemos que o verbo ensinar [insignare insignire] significa precisamente ldquosinalizarrdquo)49 e soacute o satildeo ratificamos enquanto Tomaacutes os recolhe das Disputas escolares do seu tempo cujo dinamismo exige um pensar que soacute se desabrocha e se consolida trabalhando com os ldquocontraditoacuteriosrdquo Por essa razatildeo a obra de Tomaacutes mostra-se como o ensino da verdade a desenvolver-se em permanente erudiccedilatildeo erudiccedilatildeo que segundo nos sugerem os proacuteprios termos dos quais proveacutem o vocaacutebulo (ldquoexrdquoldquoruderdquo) eacute um lanccedilar para fora tudo quanto nos embrutece um polir tudo quanto se encontre em noacutes em estado bruto O Aquinate em diversos momentos aponta para isso

Por isso ele [Aristoacuteteles] diz que eacute necessaacuterio amar tanto aquele de quem seguimos a opiniatildeo quanto aquele de quem a rejeitamos

47 REALE Giovanni Metafiacutesica vol I Ensaio introdutoacuterio Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 p 19 48 Ainda nesta mesma linha recordemos que em latim ldquoplicardquo significa dobra Daiacute a nossa palavra ldquocomplicadardquo significar antes de qualquer coisa algo natildeo visto porque dobrado e redobrado Natildeo nos esqueccedilamos ademais de que o termo ldquoexrdquo em latim significa o mais das vezes ldquopara forardquo Donde o nosso termo ldquoexplicarrdquo denotar antes de tudo lanccedilar para fora as dobras desdobrar desfazer as dobras a fim de que o leitor ou o ouvinte possam ver o que antes as dobras natildeo lhes permitiam ver Acerca da etimologia do termo ldquoexplicarrdquo vide LAUAND Luiz Jean As dobras da liacutengua Disponiacutevel em lthttpwwwjeanlauandcomLPo76htmgt 49 LAUAND Luiz Jean RUBIO Juliana Bassana As razotildees da liacutengua cultura e ensino de inglecircs CEMOrOC-FeuspIJI-Universidade do Porto Notandum 30 set-dez 2012 p 88

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De fato ambos aplicaram-se agrave inquiriccedilatildeo da verdade e um e outro nos ajudaram50

[Os pensadores foram tambeacutem ajudados] indiretamente quando os erros dos primeiros acerca da verdade deram ocasiatildeo para os seus poacutesteros exercitarem uma discussatildeo mais diligente que tem por finalidade resultar num maior esclarecimento da verdade Eacute verdadeiramente justo agradecer a todos aqueles que nos ajudaram na aquisiccedilatildeo de tatildeo grande bem que eacute o conhecimento da verdade51

Eis pois de que Tomaacutes queremos nos aproximar em nosso

estudo Estar com o Aquinate mdash atraveacutes das suas obras mdash eacute estar aberto agrave verdade venha ela de onde vier Quando consultado por um confrade sobre como se adquire a sabedoria Aquino mdash entre outras coisas mdash recomendou-lhe ldquoQue natildeo atentes a quem disse mas ao que de bom se diga guardando-o na memoacuteriardquo52 Na Summa afirma sem pestanejar

Portanto deve-se dizer que toda verdade [omne verum] dita por quem quer que seja [quocumque dicatur] vem do Espiacuterito Santo enquanto infunde em noacutes a luz natural e nos daacute a moccedilatildeo

50 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 12 9 n 14 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp12htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] ideo dicit quod oportet amare utrosque scilicet eos quorum opinionem sequimur et eos quorum opinionem repudiamus Utrique enim studuerunt ad inquirendam veritatem et nos in hoc adiuveruntrdquo 51 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 2 1 n 15 e 16 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp02htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] indirecte vero inquantum priores errantes circa veritatem posterioribus exercitii occasionem dederunt ut diligenti discussione habita veritas limpidius appareret Est autem iustum ut his quibus adiuti sumus in tanto bono scilicet cognitione veritatis gratias agamusrdquo TOMAacuteS DE AQUINO Sentencia De anima lib 1 2 n 15 In NUNES Ruy Afonso da Costa Histoacuteria da educaccedilatildeo na Idade Meacutedia 2ordf ed Satildeo Paulo Kiacuterion 2018 p 270 ldquoDe qua scilicet anima intendentes ad praesens necesse est accipere opiniones antiquorum quicumque sint qui aliquid enunciaverunt de ipsa Et hoc quidem ad duo erit utile Primo quia illud quod bene dictum est ab eis accipiemus in adiutorium nostrum Secundo quia illud quod male enunciatum est cavebimusrdquo ldquoDevem escutar-se as opiniotildees dos Antigos por vetustas que sejam pois assim podemos apropriar-nos do que falaram certo e evitar o que disseram de errocircneordquo 52 TOMAacuteS DE AQUINO O modo de estudar 13 In TOMAacuteS DE AQUINO Opuacutesculos Filosoacuteficos Trad Paulo Faitanin Rev Esteve Jaulent Satildeo Paulo Sita-Brasil 2009 v 1 ldquo[] non respicias a quo audias sed quidquid boni dicatur memoriae recomenda []rdquo

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necessaacuteria para entender e exprimir esta verdade [intelligendum et loquendum veritatem]53

O Boi Mudo em vaacuterios momentos da sua imensa obra

sinaliza para um movimento que consiste justamente num progresso ininterrupto do pensar que se daacute por um aprofundamento e natildeo por uma substituiccedilatildeo do que jaacute foi conquistado 54 Ora sobretudo em eacutetica urge esta atitude de abertura como ainda voltaremos a ver no decorrer deste trabalho a eacutetica enquanto ciecircncia fundamentalmente se perfaz pelo ldquodiaacutelogosrdquo dos gregos ou pela ldquodisputatiordquo dos medievais E este debate realiza-se natildeo somente entre noacutes mas tambeacutem quando debatemos com as geraccedilotildees que nos precederam Como anotildees em ombros de gigantes de acordo com a sugestiva imagem de Bernardo de Chartres tambeacutem Tomaacutes acreditava que soacute podemos ver mais longe quando natildeo nos esquecemos do que eacute passado pelo tempo mas perene pela validade Todavia eacute preciso acentuar a cada geraccedilatildeo o condatildeo o muacutenus de aprofundar-se na verdade sem nunca pretender exauri-la

[] De fato se algueacutem procedendo no tempo investigar a verdade o tempo ajudaraacute a encontrar a verdade e quanto a um mesmo homem que depois veja o que natildeo via antes e tambeacutem quanto aos diversos homens como quando algueacutem capta as coisas que descobriram os seus predecessores e acrescenta algo

53 Idem Suma Teoloacutegica I-II 109 1 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod omne verum a quocumque dicatur est a spiritu sancto sicut ab infundente naturale lumen et movente ad intelligendum et loquendum veritatemrdquo 54 MARITAIN Jacques Sete Liccedilotildees Sobre o Ser Trad Nicolaacutes Nyimi Companaacuterio 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2001 p 17 ldquoOnde predomina ao contraacuterio o aspecto misteacuterio trata-se de penetrar sempre mais no mesmo O espiacuterito permanece no lugar gravita em torno de um centro ou penetra cada vez melhor uma mesma densidade Eacute um progresso no mesmo lugar um progresso por aprofundamento Eacute desta forma que no lsquoaumentorsquo intensivo dos haacutebitos a inteligecircncia diz Joatildeo de Santo Tomaacutes natildeo deixa de mergulhar no objeto no mesmo objeto vehementius et profundius mais veementemente e mais profundamente Deste modo podemos ler e reler sempre o mesmo livro ler e reler a Biacuteblia e a cada vez ocorre uma descoberta nova e mais profunda Claro estaacute que na vida da humanidade uma tradiccedilatildeo intelectual a continuidade estaacutevel de uma doutrina fundada sobre princiacutepios que natildeo mudam satildeo a condiccedilatildeo de tal progressordquo

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E por esse modo satildeo feitos os acreacutescimos nas artes dos quais em princiacutepio pouco foi inventado e depois atraveacutes de diversos homens pouco a pouco atingiu uma grande quantidade porque pertence a qualquer homem acrescentar o que falta ao considerado pelos predecessores55

Da parte da razatildeo porque parece ser natural da razatildeo humana chegar gradualmente do imperfeito ao perfeito Por isso vemos nas ciecircncias especulativas que aqueles que por primeiro filosofaram transmitiram algumas coisas imperfeitas que depois pelos poacutesteros se tornaram mais perfeitas56

Estabelecidos estes pressupostos eacute tempo de darmos mais

um passo no recorte do nosso trabalho Procuraremos definir com maior detenccedila e exaccedilatildeo o termo ldquoethosrdquo57 bem como qual o significado da ēthikḗ (ἠθική) concebida como ldquociecircncia do ethosrdquo

55 TOMAacuteS DE AQUINO Comentaacuterio de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica a Nicocircmaco I-III o bem e as virtudes Trade Rev Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rio de Janeiro Mutuus 20015 v I I Lect 11 ndeg 3 ldquoSi enim aliquis tempore procedente det se studio investigandae veritatis iuvatur ex tempore ad veritatem inveniendam et quantum ad unum et eumdem hominem qui postea videbit quod prius non viderat et etiam quantum ad diversos utpote cum aliquis intuetur ea quae sunt a praedecessoribus adinventa et aliquid superaddit Et per hunc modum facta sunt additamenta in artibus quarum a principio aliquid modicum fuit adinventum et postmodum per diversos paulatim profecit in magnam quantitatem quia ad quemlibet pertinet superaddere id quod deficit in consideratione praedecessorumrdquo 56 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 97 1 C ldquoEx parte quidem rationis quia humanae rationi naturale esse videtur ut gradatim ab imperfecto ad perfectum perveniat Unde videmus in scientiis speculativis quod qui primo philosophati sunt quaedam imperfecta tradiderunt quae postmodum per posteriores sunt magis perfecta Ita etiam est in operabilibus Nam primi qui intenderunt invenire aliquid utile communitati hominum non valentes omnia ex seipsis considerare instituerunt quaedam imperfecta in multis deficientia quae posteriores mutaverunt instituentes aliqua quae in paucioribus deficere possent a communi utilitaterdquo 57 Esta eacute a forma como Lima Vaz habitualmente grafa o vocaacutebulo

Capiacutetulo II A eacutetica enquanto ciecircncia em Aristoacuteteles

Aristoacuteteles como jaacute frisamos antes foi o fundador da Eacutetica enquanto ldquociecircnciardquo enquanto parte da filosofia Foi ele quem distinguiu os ramos das ciecircncias filosoacuteficas mdash teoreacuteticas praacuteticas e poieacuteticas mdash bem como definiu o campo das mesmas1 Sendo assim como diz Enrico Berti

[] Aristoacuteteles pode ser considerado o fundador do conceito de filosofia praacutetica entendida como ciecircncia diferente das teoreacuteticas poreacutem munida de racionalidade proacutepria2

Embora o gecircnero literaacuterio adotado por Aristoacuteteles natildeo seja

o diaacutelogo suas obras mdash inclusive a Ēthikagrave Nikomaacutekheia (Ἠθικὰ Νικομάχεια) mdash adotam um estilo no qual o autor mdash antes de tomar posiccedilatildeo mdash dialoga com os seus predecessores e mesmo com o senso comum Acerca do ldquomeacutetodordquo de Aristoacuteteles temos a assertiva de Berti

Com efeito os proacuteprios tratados escolaacutesticos de Aristoacuteteles tecircm um andamento nada sistemaacutetico e demonstrativo mas consistem inteiramente de discussotildees de problemas argumentaccedilotildees a favor e contra cada soluccedilatildeo contiacutenuas objeccedilotildees e refutaccedilotildees que em muitos casos deixam a discussatildeo completamente aberta Em siacutentese trata-se de uma espeacutecie de institucionalizaccedilatildeo escolaacutestica do meacutetodo socraacutetico e platocircnico3

1 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica VI 1 1025 b 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquo[] todo conhecimento racional eacute ou praacutetico [πρακτική] ou produtivo [ποιητική] ou teoreacutetico [θεωρητική] []rdquo 2 BERTI Enrico Perfil de Aristoacuteteles Trad Joseacute Bortolini Rev Iranildo Bezerra Lopes Caio Pereira Satildeo Paulo Paulus 2012 p 158 3 Idem Ibidem p 30

76 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Nosso objetivo neste capiacutetulo natildeo eacute expor a Eacutetica Nicomaqueia mas esboccedilar os seus grandes momentos sobretudo com o fito de evidenciar que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma eacutetica humana Para esta empresa valemo-nos de uma preleccedilatildeo de Enrico Berti mdash filoacutesofo italiano e dedicado leitor de Aristoacuteteles mdash sobre a Eacutetica a Nicocircmaco A liccedilatildeo de Berti fora ministrada no auditoacuterio da Societagrave Filosofica Italiana com o tiacutetulo Lrsquoetica in Aristotele De mais a mais para natildeo interrompermos o texto optamos por registrar vaacuterias citaccedilotildees em rodapeacute A propoacutesito o fato de usarmos a preleccedilatildeo de Berti para expormos alguns toacutepicos da Eacutetica natildeo significa que a tomamos como nossa fonte primaacuteria que seraacute sempre a proacutepria obra do Estagirita Recorremos a Berti a fim de nos servirmos da sua invulgar capacidade de siacutentese jaacute que soacute buscamos Aristoacuteteles para relacionaacute-lo com Tomaacutes o nosso verdadeiro objeto de pesquisa

A ordem da nossa exposiccedilatildeo seraacute a seguinte primeiro uma contextualizaccedilatildeo histoacuterica em seguida alguns preacircmbulos antropoloacutegicos nos daratildeo ensejo para circunscrevermos a noccedilatildeo de eacutetica em Aristoacuteteles dando continuidade consideraremos os conceitos de teacutelos e eydaimoniacutea no toacutepico seguinte trataremos dos conceitos de eacutergon aretḗ e kakiacutea depois abordaremos as concepccedilotildees de proaiacuteresis e boyacuteleysis a fim de conhecermos qual eacute a natureza das accedilotildees passiacuteveis de virtude ou de viacutecio Havendo dado estes passos definiremos e distinguiremos as virtudes eacuteticas das dianoeacuteticas passaremos entatildeo a discorrer sobre o papel da amizade na eacutetica de Aristoacuteteles por fim voltaremos ao tema da eydaimoniacutea com o intento de aprofundaacute-lo e trataremos da racionalidade proacutepria da eacutetica aristoteacutelica Sigamos com uma sucinta contextualizaccedilatildeo histoacuterica da Eacutetica 21 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO HISTOacuteRICA DA EacuteTICA

Aristoacuteteles escreveu alguns livros sobre eacutetica Eacutetica Nicomaqueia ou tambeacutem Eacutetica a Nicocircmaco a Grande Eacutetica (de

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autenticidade duvidosa) a Eacutetica Eudecircmica e a Poliacutetica A mais completa mdash como jaacute adiantamos mdash e que se tornou tambeacutem a mais famosa eacute justamente a Eacutetica a Nicocircmaco Observemos que esta obra dividida em dez livros foi escrita por Aristoacuteteles antes de mais para o seu filho Nicocircmaco4 Natildeo a escreveu portanto a um ldquocidadatildeordquo qualquer mas a seu dileto A Eacutetica natildeo nasce pois como uma ldquoobra acadecircmicardquo e sim como ldquoconselhosrdquo de um pai para o seu filho ldquoconselhosrdquo que tinham por finalidade que o filho fosse feliz na vida Isto eacute um fato muito revelador Aristoacuteteles fala da poacutelis sim fala do cidadatildeo sim mas a sua Eacutetica nasce de um pai educando o seu filho para o bem viver Nasce num ambiente familiar diriacuteamos hoje natildeo numa universidade nem sequer numa escola Quis a sorte que esta obra se tornasse a de maior sucesso de nosso filoacutesofo Por milecircnios vem sendo assim

Para entendermos esta obra magna devemos reportar-nos ao contexto histoacuterico em que ela foi concebida isto eacute agrave antiga Greacutecia no seacuteculo IV antes de Cristo Talvez a primeira coisa que temos de levar em conta eacute que os gregos natildeo obstante fossem um povo religioso e tivessem uma religiatildeo natildeo possuiacuteam como os outros povos um livro que transmitisse uma revelaccedilatildeo de Deus Eles natildeo tinham um livro que lhes fosse apresentado como a proacutepria palavra de Deus Fato notaacutevel porque distingue os gregos do povo hebreu e da religiatildeo hebraica outro tronco da nossa civilizaccedilatildeo De fato a religiatildeo hebraica se fundamenta na Torah que natildeo eacute senatildeo a Lei de Deus consignada em cinco livros Pentateuco em grego Para o hebreu Deus natildeo eacute somente o Criador do homem e de todas as coisas mas tambeacutem o Legislador Logo a moral judaica eacute uma moral fundada na Lei de Deus ditada pelo

4 Nicocircmaco era o nome do pai de Aristoacuteteles meacutedico afortunado porque a serviccedilo do rei Amintas da Macedocircnia O Estagirita o perdeu ainda jovem PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave Filosofia de Aristoacuteteles Trad Gabriel Hibon Benocircni Ramos Satildeo Paulo Paulus 2002 p 9 ldquoSeu pai Nicocircmaco que parece ter vindo de Messecircnia era meacutedico ceacutelebre foi chamado agrave corte de Pela e foi meacutedico pessoal do rei Amintas III pai de Filipe [] Morreu antes de ter tempo de formar o filho em sua arterdquo Quando Aristoacuteteles teve o seu filho deu-lhe o nome do avocirc Idem Op Cit p 12 ldquoE sabemos que ao morrer Piacutetia ele desposou Herpillis que lhe deu um filho Nicocircmaco []rdquo

78 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mesmo Deus a Moiseacutes e registrada na Torah O quanto se disse dos judeus pode-se dizer mutatis mutandis da religiatildeo cristatilde e islacircmica porque ambas satildeo tambeacutem portadoras de uma moral fundada na Revelaccedilatildeo de um Deus que eacute tambeacutem um Legislador5

ldquoNo princiacutepio era o Logosrdquo diz o incipit do evangelho de Joatildeo que os cristatildeos interpretaram como ldquoNo princiacutepio era o Verbordquo ou seja ldquoa Palavrardquo ldquo[] e o Logos estava voltado para Deus e o Logos era Deusrdquo continua Joatildeo indicando com clareza de que ldquoPalavrardquo se trata Para os cristatildeos com efeito o princiacutepio eacute constituiacutedo por Deus entendido como Palavra que cria todas as coisas mas tambeacutem pela proacutepria palavra de Deus ou seja pela revelaccedilatildeo com que Ele se manifestou aos homens Esse uacuteltimo significado vale para todas as religiotildees pelo menos para as monoteiacutestas6

Os gregos quando pensavam em moral natildeo faziam

referecircncia a uma lei fundada numa revelaccedilatildeo divina justamente porque natildeo a tinham Decerto que entre os helecircnicos havia leis mas estas procediam das diversas cidades Cada uma delas tinha as suas proacuteprias leis Deste modo a concepccedilatildeo grega de moral natildeo eacute a de uma seacuterie de ditames ou prescriccedilotildees reveladas por um Deus legislador E a Eacutetica de Aristoacuteteles natildeo eacute exceccedilatildeo agrave regra Aliaacutes eacute o fato mesmo de ela natildeo ser uma eacutetica revelada que confere a ela uma atualidade inalienaacutevel Afirma Berti numa de suas obras mais recentes

Para os antigos gregos as coisas natildeo eram assim Como todos os povos tambeacutem os gregos tinham uma religiatildeo mas na base dela natildeo havia nenhuma revelaccedilatildeo natildeo havia nenhum livro natildeo havia nada que dissesse o que havia no ldquoprinciacutepiordquo Eles tinham os poemas de Homero a Iliacuteada e a Odisseia que falam dos deuses e os poemas de Hesiacuteodo especialmente a Teogonia que tratam da

5 Esta eacute uma asserccedilatildeo geral natildeo universal Como veremos no terceiro capiacutetulo num autor cristatildeo como Tomaacutes de Aquino a lei tem o papel de educadora de disciplinadora mas natildeo de fundamento do agir eacutetico 6 BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 10

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genealogia desses deuses mas natildeo os consideravam livros revelados obra dos deuses mas sim obra dos poetas dos ldquoteoacutelogosrdquo nos quais se podia acreditar se a proacutepria cidade o exigia ou ateacute natildeo acreditar7

Com efeito num tempo onde as religiotildees se digladiam e

vivemos a realidade patente do ateiacutesmo e do agnosticismo religioso a Eacutetica do Estagirita se oferece como uma eminecircncia entre crentes e natildeo crentes porque escrita fora do contexto de crenccedila e descrenccedila Assim a Eacutetica de Aristoacuteteles natildeo eacute a teologia moral predominante na cristandade medieval mas tambeacutem natildeo coincide com o ldquohumanismordquo ou ldquoracionalismordquo que prevalecem na eacutetica moderna A Eacutetica a Nicocircmaco eacute uma eacutetica humana integralmente humana fundada num certo modo de exercer a razatildeo humana E exatamente por isso vale dizer precisamente por natildeo admitir ldquoclichecircsrdquo ela pode ser reproposta a todos os homens de hoje crentes e natildeo crentes Nisto reside justamente a sua atualidade os homens de hoje num tempo onde cada vez mais entendemos que natildeo podemos viver isolados precisam de algo que os una Noutra obra em que trata da presenccedila de Aristoacuteteles no seacuteculo XX Enrico Berti esclarece que a ldquoteologia racionalrdquo de Aristoacuteteles natildeo abarca a existecircncia de um Deus concebido como Legislador supremo tampouco a sua filosofia praacutetica se fundamenta nesta ideia

Em todo caso natildeo se trata de uma fundaccedilatildeo teoloacutegica natildeo porque Aristoacuteteles exclua da sua filosofia (teoreacutetica) uma teologia (racional) mas porque o conceito de Deus delineado pela sua teologia natildeo eacute o de um Deus que domina isto eacute que prescreve aos homens uma lei da qual se possam deduzir as normas morais na medida em que Deus como ele mesmo afirma ldquonatildeo tem necessidade de nadardquo Nisto consiste a atualidade da filosofia praacutetica de Aristoacuteteles isto eacute a sua capacidade de corresponder agraves exigecircncias da vida cotidiana de uma eacutepoca como a presente

7 Idem Ibidem

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caracterizada pela interdependecircncia entre os homens de todo o planeta e entre as proacuteprias geraccedilotildees que se sucedem no tempo8

Dando prosseguimento passemos a considerar alguns

toacutepicos da antropologia de Aristoacuteteles que nos ajudaratildeo a compreender a sua concepccedilatildeo de eacutetica 22 PREAcircMBULOS ANTROPOLOacuteGICOS E A DEFINICcedilAtildeO DE EacuteTICA

Os gregos conheciam dois termos para designar vida ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) Zōḗ indica vida entendida como capacidade efetiva de viver (enteleacutekheia) e de viver de certa forma biacuteos antes indica o exerciacutecio mesmo de viver (eneacutergeia) e de viver de certa forma Biacuteos diz pois certo gecircnero de vida ldquoestilordquo de vida ou jeito de viver habitual Em uma palavra biacuteos indica a vida vivida9 Na

8 BERTI Enrico Aristoacuteteles no seacuteculo XX Trad Dion Davi Macedo Rev Mauriacutecio Balthazar Leal Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1997 pp 283-284 9 A distinccedilatildeo entre ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) natildeo eacute rigorosa em Aristoacuteteles Aqui no entanto ancorados em Berti consideramos esta distinccedilatildeo que o estudioso prevecirc Ele nos remete por exemplo a um passo do De Anima que julga elucidar esta distinccedilatildeo ARISTOacuteTELES Sobre a Alma Trad Ana Maria Loacutelio Rev Tomaacutes Calvo Martinez Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2010 (Obras Completas de Aristoacuteteles) II 1 20-25 ldquo[] eacute no ente em que a alma existe que existem quer o sono quer a vigiacutelia e esta eacute anaacuteloga ao exerciacutecio do saber enquanto o sono eacute anaacutelogo agrave posse deste sem exerciacuteciordquo ζωή (zōḗ) portanto designa a vida sem as suas operaccedilotildees sem a sua atividade como no sono βίος (biacuteos) eacute a vida enquanto atividade como quando estamos em vigiacutelia O termo βίος (biacuteos) tambeacutem eacute usado para designar um gecircnero de vida como Aristoacuteteles assevera num passo da Eacutetica a Nicocircmaco Idem Eacutetica a Nicocircmaco I 5 1095 b 15-20 ldquoA julgar pela vida que os homens levam em geral a maioria deles e os homens de tipo mais vulgar parecem (natildeo sem um certo fundamento) identificar o bem ou a felicidade com o prazer e por isso amam a vida dos gozos [βίος ὰπολαυστικόςbiacuteos apolaystikoacutes] Pode-se dizer com efeito que existem trecircs tipos principais de vida a que acabamos de mencionar a vida poliacutetica [βίος πολιτικόςbiacuteos politikoacutes] e a contemplativa [βίος θεωρητικόςbiacuteos theōrētikoacutes]rdquo Fermani confirma esta distinccedilatildeo partindo de uma anaacutelise semacircntica de zōḗ e biacuteos Zōḗ jaacute eacute viver mas eacute um simples estar vivo enquanto biacuteos avoca uma atividade a vida vivida que acaba se configurando como um modus vivendi FERMANI Arianna A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles Trad Renato Ambrosio Rev Tarcila Donaacute et al Satildeo Paulo Paulus 2015 pp 52-53 ldquoPorque se eacute verdade que como seres humanos estamos todos ligados pelo simples fato de viver isto eacute pelo fato de termos uma zoeacute (que eacute aquela vida que segundo os gregos compartilhamos tambeacutem com os animais e os deuses) cada homem vivendo realiza um biacuteos isto eacute um modus vivendi um modo singular de estar no mundordquo Reeve atenua a distinccedilatildeo mas a manteacutem Zōḗ eacute a vida num sentido mais global Zōḗ indica tanto o ato de nutrir-se crescer reproduzir-se sentir e entender quanto a potecircncia para realizar estes atos Jaacute biacuteos indica os tipos especiacuteficos de vida eacute a vida que se encontra por exemplo descrita nas histoacuterias naturais e nas

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Eacutetica a Nicocircmaco biacuteos aponta para o modo especiacutefico de vida de um ser No caso do homem por exemplo a vida segundo o loacutegos

A mesma doutrina se encontra na Eacutetica a Nicocircmaco em que aparece para indicar o tipo de vida melhor o termo βίος que significa a vida vivida medida por certo arco de tempo e pode ser precisamente de gecircnero diferente Existem assim o gecircnero de vida vivido pelas plantas os gecircneros de vida vividos pelos animais [] e os muitos tipos de vida vividos pelos homens []10

A fim de entendermos melhor a distinccedilatildeo feita acima entre

ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) seraacute proveitoso compreendermos o conceito de alma para Aristoacuteteles Na concepccedilatildeo do filoacutesofo de Estagira a alma eacute antes de tudo o princiacutepio de vida (ζωήzōḗ) de um corpo fiacutesico que possui a vida em potecircncia ldquoPor isso a alma eacute o primeiro acto de um corpo natural que possui vida em potecircnciardquo11 Ela eacute o ato (ἐντελέχειαenteleacutekheia) que torna um corpo vivo Assim se a alma da planta daacute-lhe capacidade para que se nutra e a alma dos animais para que sintam percebam e se movam a alma humana capacita efetivamente o homem para que chegue ao exerciacutecio de certo tipo de vida (βίοςbiacuteos) a saber segundo o loacutegos (λόγος) Esta precisatildeo do conceito de vida torna-se

biografias REEVE CDC Accedilatildeo contemplaccedilatildeo e felicidade Um ensaio sobre Aristoacuteteles Trad Celiacutelia Camargo Bartoltti Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 pp 277-278 ldquoDuas palavras gregas correspondem agrave traduccedilatildeo lsquovidarsquo zocircecirc e bios Zocircecirc refere-se aos tipos de processos de vida estudados por bioacutelogos zooacutelogos e outros cientistas (incluindo psicoacutelogos e teoacutelogos) crescimento e reproduccedilatildeo satildeo processos desse tipo assim como percepccedilatildeo e entendimento Portanto zocircecirc eacute ambiacuteguo significando ou o potencial para crescer reproduzir-se perceber ou o processo ou atividade de crescer reproduzir-se perceber e entender Bios refere-se ao tipo de vida que um historiador natural ou bioacutegrafo poderia investigar mdash a vida da lontra a vida de Peacutericles mdash e assim a uma duraccedilatildeo ao longo da qual algueacutem possui zocircecirc como uma potencialidaderdquo 10 BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos II Fiacutesica Antropologia e Metafiacutesica Trad Silvana Cobucci Leite Ceciacutelia Camargo Bartalotti Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2011 p 169 11 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 1 412 a 25 Idem Ibidem II 412 a 15-20 ldquoA alma portanto tem de ser necessariamente uma substacircncia no sentido de forma de um corpo natural que possui vida em potecircnciardquo

82 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino relevante quando pensamos que Aristoacuteteles afirma que a poacutelis surge para preservar a vida e promover a vida boa que eacute justamente a vida segundo o loacutegos ldquoFormada a princiacutepio para preservar a vida [ζῆνzẽn] a cidade subsiste para assegurar a boa vida [εὖ ζῆνeỹ zẽn]rdquo12

Tragamos a lume outra distinccedilatildeo acerca do proacuteprio termo ato Tanto ἐντελέχειαenteleacutekheia quanto ἐνέργειαeneacutergeia significam ato 13 Poreacutem enquanto enteleacutekheia numa primeira acepccedilatildeo significa o ldquoato primeirordquo isto eacute a capacidade efetiva de viver eneacutergeia significa o ldquoato segundordquo ou seja o exerciacutecio mesmo desta capacidade de viver a atividade a vida vivida como jaacute dissemos acima Ademais o termo eneacutergeia tem uma peculiaridade a saber aponta para uma atividade continuada prolongada constante ininterrupta no sentido de que natildeo se extingue mas perdura mesmo apoacutes ter alcanccedilado o resultado14 A todos os seres vivos eacute dado o ldquoato primeirordquo em sua primeira acepccedilatildeo mas cada um tem de construir mdash conforme a sua natureza mdash o seu ldquoato segundordquo o qual lhe eacute especiacutefico Mas haacute aleacutem disso como jaacute acenamos uma segunda acepccedilatildeo do termo enteleacutekheia Enteleacutekheia designa tambeacutem a perfeiccedilatildeo alcanccedilada pela eneacutergeia do eacutergon eacutergon que significa funccedilatildeo e sobre o qual voltaremos a falar mais adiante15 A alma mdash falando com exaccedilatildeo mdash eacute enteleacutekheia na

12 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 2 1252 b 29-30 13 Haacute passagens em suas obras eacute preciso advertir em que Aristoacuteteles parece abandonar a distinccedilatildeo entre ἐντελέχειαenteleacutekheia e ενέργειαeneacutergeia 14 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 372 ldquoEneacutergeia eacute um termo que natildeo aparece no corpus platonicum O substantivo que remete ao verbo energeacuteō (lsquoestou ativorsquo lsquoestou em atividadersquo lsquoajorsquo lsquoproduzorsquo) e aos adjetivos energeacutes (lsquooperantersquo lsquoeficazrsquo lsquooperosorsquo lsquoativorsquo lsquoeneacutergicorsquo ldquoprodutivordquo) e energoacutes (lsquoativorsquo lsquoeficazrsquo) significa lsquoforccedilarsquo lsquoeficaacuteciarsquo lsquoatividadersquo lsquoaccedilatildeorsquo lsquoobrarsquo lsquoenergiarsquo Essa lsquoatividadersquo ou lsquocapacidade de agirrsquo possui na realidade uma peculiaridade essencial a natildeo exauribilidade a capacidade de se conservar de se manter em vida mesmo depois de ter alcanccedilado o objetivordquo [O itaacutelico eacute nosso] 15 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica IX 8 1050 a 20 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado 2 ed Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquoA operaccedilatildeo [ἔργον] eacute fim [τέλος] e o ato [ἐνέργεια] eacute operaccedilatildeo [ἔργον] por isso tambeacutem o ato [ἐνέργεια] eacute dito em relaccedilatildeo com a operaccedilatildeo [ἔργον] que tende ao mesmo significado de enteleacutequeia [ἐντελέχειαν]rdquo

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sua primeira acepccedilatildeo apontada acima ldquoMas lsquoactorsquo diz-se em dois sentidos num como o eacute o saber no outro como o eacute o exerciacutecio do saber Eacute evidente que a alma eacute acto no sentido em que o eacute o saberrdquo16

Logo depois ele esclarece que a forma eacute ato [ἐντελέχεια] e distingue dois significados de ato correspondentes respectivamente agrave posse de uma capacidade por exemplo a ciecircncia e ao exerciacutecio dela A alma eacute ato no primeiro sentido ou seja ldquoato primeirordquo de um corpo natural que tem a vida em potecircncia o que significa que ela eacute a posse efetiva por parte de um corpo natural da capacidade de viver A vida portanto seraacute ato no segundo sentido ou seja como exerciacutecio da capacidade constituiacuteda pela alma quer dizer como atividade [ἐνέργεια]17

Com efeito eacute somente quando conhecemos o biacuteos

enquanto ato mesmo de viver o qual se desabrocha num modus vivendi numa maneira habitual de viver que se coloca o problema da eacutetica18 Mas para apreendermos o que o Estagirita entende por eacutetica eacute mister considerarmos o termo ldquoethosrdquo Este termo conforme jaacute acenamos remonta a uma transliteraccedilatildeo de dois vocaacutebulos gregos de significaccedilatildeo distinta 19 O primeiro ἦθος (ẽthos) grafado com o η inicial designa por assim dizer a morada do homem ou seja o ambiente habitaacutevel ao homem enquanto tal Nas palavras de Lima Vaz nesta acepccedilatildeo ldquoO ethos eacute a casa do

16 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 412 a 20 17 BERTI Novos Estudos Aristoteacutelicos II Fiacutesica Antropologia e Metafiacutesica p 164 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 7 1098 a 5 ldquoE como a lsquovida do elemento racionalrsquo tambeacutem tem dois significados devemos esclarecer aqui que nos referimos agrave vida no sentido de atividade pois esta parece ser a acepccedilatildeo mais proacutepria do termordquo 18 O biacuteos evoca uma vida plasmada FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 53 ldquoEacute somente a partir de nosso biacuteos isto eacute da vida que nunca pode ser separada da sua forma daquela orientaccedilatildeo daquela direccedilatildeo que a vida tomou e pela qual foi plasmada que podemos fazer a pergunta sobre a felicidaderdquo 19 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 12 ldquoO termo ethos eacute uma transliteraccedilatildeo dos dois vocaacutebulos gregos ethos (com eta) e ethos (com eacutepsilon)rdquo

84 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino homemrdquo20 Todavia em grego diz-se tambeacutem ἔθος (eacutethos) com um ε inicial significando desta feita haacutebito isto eacute a disposiccedilatildeo estaacutevel para agir de determinada maneira21 Ora unindo estas duas concepccedilotildees temos que pelos haacutebitos (habitus em latim ἕξις [heacutexis] em grego) mdash pelo ἔθος (eacutethos) enfim mdash o homem torna-se capaz de construir o seu mundo vale dizer o seu haacutebitat proacuteprio o seu ἦθος (ẽthos) desta sorte entendido como aquelas disposiccedilotildees estaacuteveis que permitem ao homem moldar a sua morada sobre a terra Haacute entatildeo na ldquofenomenologia do ethosrdquo uma espeacutecie de obra poieacutetica (poiacuteēsis [ποίησις] = produccedilatildeo)22 pois ela pressupotildee que o

20 Idem Ibidem 21 Idem Ibidem p 14 ldquoA segunda acepccedilatildeo de ethos (eacutepsilon inicial) diz respeito ao comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos [] [] o ethos (eacutepsilon inicial) designa o processo geneacutetico do haacutebito ou da disposiccedilatildeo habitual para agir de uma certa maneira []rdquo 22 Observemos que se deve ter cuidado ao tentar aproximar ēthikḗ e poiacuteēsis em Aristoacuteteles porquanto na distinccedilatildeo dos ramos das ciecircncias mdash teoreacuteticas praacuteticas e poieacuteticas mdash ele define bem o campo de cada uma ARISTOacuteTELES Metafiacutesica VI 1025 b 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado 2 ed Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquo[] todo conhecimento racional eacute ou praacutetico [πραχτιχή] ou produtivo [ποιητιχέ] ou teoreacutetico [θεωρητιχή] []rdquo Na proacutepria Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles diferencia atividade de produccedilatildeo ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 1 1094 a 5 ldquoMas observa-se entre os fins uma certa diferenccedila alguns satildeo atividades [ἐνέργειαιeneacuterγειαι] outros satildeo produtos [ἔργαeacuterga] distintos das atividades que os produzemrdquo Noutro lugar Aristoacuteteles precisa ainda que eacute necessaacuteria esta diferenciaccedilatildeo para que natildeo se confunda eacutetica e arte pois enquanto a primeira eacute um agir a segunda eacute um produzir Idem Ibidem VI 4 1140 a 15 ldquoDiferindo pois o produzir [ποίησιςpoiacuteēsis] e o agir [πρᾶξιςpratildexis] a arte [τέχνηνteacutekhnēn] deve ser uma questatildeo de produzir e natildeo de agirrdquo Mas eacute preciso ponderar bem este e outros textos Na primeira passagem citada da Eacutetica [I 1 1094 a 5] Aristoacuteteles usa o termo ldquoἔργαrdquo distinguindo-o de ldquoἐνέργειαιrdquo Contudo em seguida ao delimitar a accedilatildeo eacutetica fala que ela consiste numa atividade [ενέργεια] segundo a funccedilatildeo ou a obra [ἔργον] proacutepria do homem Eacute inegaacutevel a plurivocidade com que os termos satildeo empregados Pois bem considerando todos estes prolegocircmenos o que devemos reter parece ser o seguinte stricto sensu a atividade [ενέργειαeneacutergeia] eacute uma accedilatildeo [πρᾶξιςpratildexis] distinta daquela accedilatildeo produtiva que Aristoacuteteles define como ποίησις [poiacuteēsis] a qual eacute proacutepria da arte [τέχνηteacutekhnē] Todavia pensamos poder valer-nos da mesma polissemia agrave qual Aristoacuteteles recorre permanentemente para afirmarmos que lato sensu a ēthikḗ pode ter uma acepccedilatildeo de poiacuteēsis quando se entende que ela tambeacutem se traduz como a possibilidade de o homem mediante os atos virtuosos ldquoproduzirrdquo um mundo humano e ldquoconstruir-serdquo a si mesmo De resto ocorre-nos que isto seja mesmo necessaacuterio pois se o agir eacutetico natildeo for sob nenhum aspecto transeunte transformador da realidade na qual se insere podemos deveras cair num ldquosolipsismordquo caprichoso e assim perdermos a ligaccedilatildeo fundante em Aristoacuteteles entre eacutetica e poliacutetica Por fim as accedilotildees belas e justas satildeo o legado que o cidadatildeo deixa para a poacutelis Aliaacutes o proacuteprio Aristoacuteteles quando faz eacutetica natildeo deixa de evocar os ditos e feitos dos grandes homens Numa passagem ele diz que a obra de um homem manifesta em ato o que ele eacute em potecircncia Idem Ibidem IX 7 1168 a 5 ldquoE isso tem raiacutezes

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homem seja capaz de construindo-se e construindo o seu mundo destacar-se do mundo da fyacutesis (φύσις) sem separar-se dele Sintetiza Lima Vaz

A metaacutefora da morada e do abrigo indica justamente que a partir do ethos o espaccedilo do mundo torna-se habitaacutevel para o homem O domiacutenio da physis ou o reino da necessidade eacute rompido pela abertura do espaccedilo humano do ethos no qual iratildeo inscrever-se os costumes os haacutebitos as normas e os interditos os valores e as accedilotildees Por conseguinte o espaccedilo do ethos enquanto espaccedilo humano natildeo eacute dado ao homem mas por ele construiacutedo ou incessantemente reconstruiacutedo23

Ora a ἠθική (ēthikḗ) natildeo eacute senatildeo a ciecircncia que estudaraacute

quais satildeo estes haacutebitos pelos quais o homem pode se tornar artiacutefice da sua vida (βίοςbiacuteos) demiurgo do seu mundo Portanto a ēthikḗ mdash ciecircncia do ẽthos (ἦθος) mdash pode tambeacutem ser considerada a ciecircncia do eacutethos (ἔθος) vale lembrar dos haacutebitos (ἕξειςheacutexeis) que permitiratildeo ao homem construir o seu haacutebitat (ἦθος) O Estagirita parece fazer referecircncia a isso quando diz no comeccedilo do livro β da Eacutetica

[] enquanto a virtude moral eacute adquirida em resultado do haacutebito donde ter-se formado o seu nome (ἠθική) por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ἔθος (haacutebito)24

Eacute interessante seguindo ainda Lima Vaz introduzirmos

nova distinccedilatildeo mdash se bem que tecircnue mdash entre eacutethos e heacutexis Esta distinccedilatildeo natildeo eacute de todo infundada Poreacutem eacute preciso acrescer que entre ambos haacute tambeacutem uma continuidade Eacutethos (ἔθος) diz o processo geneacutetico no qual o sujeito pela pratildexis mdash o termo πρᾶξις (pratildexis) indica accedilatildeo mdash constante e reiterada vai acostumando-se a

profundas na natureza das coisas pois o que ele [o homem] eacute em potecircncia [δυνάμειdynaacutemei] sua obra [ἔργον] o manifesta em ato [ὲνεργείᾳenergeiacutea]rdquo 23 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13 24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 1 1103 a 15

86 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino agir de determinada maneira ateacute que adquira o haacutebito (ἕξιςheacutexis) mdash disposiccedilatildeo estaacutevel mdash que eacute o termo desta circularidade Em outras palavras o eacutethos eacute o que instaura na pratildexis humana o haacutebito o qual inaugura por sua vez a vida eacutetica a vida humana Afirma Vaz

Mas se o ethos (eacutepsilon inicial) designa o processo geneacutetico do haacutebito ou da disposiccedilatildeo habitual para agir de uma certa maneira o termo dessa gecircnese do ethos mdash sua forma acabada e o seu fruto mdash eacute designado pelo termo hexis que significa haacutebito como possessatildeo estaacutevel [] Haacute pois uma circularidade entre os trecircs momentos costume (ethos) accedilatildeo (praxis) haacutebito (ethos-hexis) na medida em que o costume eacute fonte de accedilotildees tidas como eacuteticas e a repeticcedilatildeo destas accedilotildees acaba por plasmar os haacutebitos25

Se mdash como dissemos acima mdash o biacuteos especiacutefico do homem eacute

o loacutegos antes de adentrarmos na Eacutetica importa delinearmos o que seja o loacutegos O loacutegos eacute antes de tudo a capacidade que o homem tem de falar Em vez de simplesmente emitir voz mdash flatus vocis diratildeo os latinos mdash o homem pode ir aleacutem da simples expressatildeo de dor e prazer nominando o que eacute dor e o que eacute prazer significando o que lhe causa dor e prazer e chegando assim ao discernimento do que eacute justo e injusto bem e mal Ora para Aristoacuteteles isto eacute o loacutegos maacutexime no seu comportamento praacutetico Assim para o Estagirita eacute o loacutegos que cria a poacutelis porque o loacutegos mdash enquanto linguagem mdash eacute inteligiacutevel e portanto comunicaacutevel capaz de criar comunhatildeo entre os homens26

A natureza conforme dizemos nada faz ao desbarato e soacute o homem de entre todos os seres vivos possui a palavra [λόγος] Assim enquanto a voz indica prazer ou sofrimento e nesse sentido eacute tambeacutem atributo de outros animais (cuja natureza tambeacutem atinge sensaccedilotildees de dor e de prazer e eacute capaz de as

25 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura pp 14 -15 26 O proacuteprio verbo do qual vem loacutegos λέγω indica no grego arcaico uma accedilatildeo que cria ligame relaccedilatildeo Chantraine fala de ajuntamento reuniatildeo CHANTRAINE 2 λέγω [leacutegō] In Op Cit p 625

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indicar) o discurso [λόγος] serve para tornar claro o uacutetil e o prejudicial e por conseguinte o justo e o injusto Eacute que perante os outros seres vivos o homem tem as suas peculiaridades soacute ele sente o bem e o mal o justo e o injusto eacute a comunidade desses sentimentos que constitui a famiacutelia e a cidade27

O medievalista Reacutemi Brague lendo esta passagem da

Poliacutetica coloca em revelo a importacircncia da linguagem mdash enquanto comunicaccedilatildeo mdash para a constituiccedilatildeo da poacutelis Ele daacute ecircnfase agrave ideia de que natildeo eacute prioritariamente o fato de vivermos num mesmo espaccedilo geograacutefico nem o de intercambiarmos propriedades nem os laccedilos de famiacutelia que nos tornam ciacutevicos Antes o que nos faz consortes no acircmbito poliacutetico eacute a comunhatildeo que mediante o dinamismo da linguagem estabelecemos em torno dos valores ciacutevicos

O que eacute comum para o homem natildeo eacute um conjunto de propriedades passivamente constatadas Eacute o que ele coloca em comum por meio de um processo ativo A linguagem eacute o lugar dessa colocaccedilatildeo em comum [] na linguagem a comunidade eacute resultado da comunicaccedilatildeo28

Mas o que o constitui como espaccedilo [o espaccedilo poliacutetico] sua abertura eacute de ordem linguiacutestica A vida da poacutelis certamente seraacute tecida por trocas entre seus membros Mas o ato por meio do qual os cidadatildeos reconhecem uns aos outros como concidadatildeos eacute um ato de linguagem Eacute pois legiacutetimo que a comunidade seja aqui o objeto de uma comunicaccedilatildeo portanto de um ato de comunicaccedilatildeo29

Tambeacutem comentando a mesma passagem da Poliacutetica

Mario Vegetti ressalta que nela a concepccedilatildeo de loacutegos como

27 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 5-15 28 BRAGUE Reacutemi Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Rev Dayane Cristina Pal Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007 p 175 29 Idem Ibidem [O colchetes satildeo nossos]

88 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino linguagemrazatildeo e por conseguinte meio de comunicaccedilatildeo entre os homens eacute bem atestada e digna de destaque

A proacutepria posse do logos a linguagemrazatildeo especiacutefica do homem tem essencialmente uma destinaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica ela serve com efeito ldquopara comunicar o uacutetil e o nocivo portanto tambeacutem o justo e o injustordquo (Pol I 2 1253a 9ss)30

De mais a mais se ldquo[] ser para todos os seres vivos eacute

viver []rdquo31 uma vez que o homem eacute um animal dotado de loacutegos mdash loacutegos entendido enquanto fala linguagem mdash o seu ser eacute viver como um ldquoanimal falanterdquo E como esta fala o torna capaz de expressar os estados da sua alma o homem pode ser definido tambeacutem como um ldquoanimal simboacutelicordquo Outrossim como eacute capaz de dar significado agraves coisas ele pode ser ainda chamado ldquoanimal significanterdquo

O que define o homem eacute mais que tudo a palavra [] Por conseguinte o homem eacute mais propriamente um animal dotado de palavra ou de linguagem [] o homem poderia ser definido como animal simboacutelico [] o homem poderia ser definido como animal semacircntico ou significante32

Enfim exatamente por ser capaz de significar valorar e

comunicar o homem eacute por natureza um animal poliacutetico De fato ldquo[] se o homem eacute ciacutevico eacute porque ele tambeacutem eacute provido de logosrdquo33

[] o homem [ἄνθρωποςaacutenthrōpos] eacute por natureza [φύσειfyacutesei] um ser vivo poliacutetico [ζῷον πολιτικόνzȭon

30 VEGETTI Op Cit p 223 31 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 415 b 10 32 BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 169 33 BRAGUE Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia 169

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politikoacuten] Aquele que por natureza e natildeo por acaso natildeo tiver cidade seraacute um ser decaiacutedo ou sobre-humano34

E ser um zȭon politikoacuten significa ser capaz de pensar o bem

e o mal o justo e o injusto com os seus semelhantes Donde a poacutelis (πόλις) ser justamente o resultado de homens que entram em comunhatildeo (κοινωνίαkoinōniacutea) porque comungam de princiacutepios cuja conquista se daacute pelo consoacutercio entre eles o qual acontece atraveacutes do loacutegos ldquoTornar comum eacute entrar em acordo sobre o que seraacute comum E eacute entrar em acordo por meio da linguagemrdquo35 Daiacute Aristoacuteteles dizer do homem ldquo[] soacute ele sente o bem e o mal o justo e o injusto eacute a comunidade destes sentimentos que produz a famiacutelia e a cidaderdquo36 Observa ainda Brague

De fato lemos o que constitui esses grupos satildeo menos seus componentes que o fato de que certas noccedilotildees sejam comuns E essas noccedilotildees e junto com elas o ser-em-comum soacute se tornam visiacuteveis no meio que constitui o logos Eacute poliacutetica toda relaccedilatildeo que se estabelece porque seus termos satildeo dotados de logos Eacute pois no caso da poacutelis que vemos mais claramente aflorar sob a comunidade como grupo um tipo determinado de ser-em-comum37

Ora uma vez que a ēthikḗ pode ser concebida tambeacutem

uma ciecircncia do eacutethos ou seja dos haacutebitos (heacutexeis) que permitiratildeo ao homem construir o seu haacutebitat (ἦθος) e jaacute que o homem eacute um zȭon politikoacuten a ēthikḗ seraacute naturalmente uma ldquociecircncia poliacuteticardquo (ἐπιστήμη πολιτικήepistḗmē politikḗ) O proacuteprio Aristoacuteteles assim introduz o seu estudo

34 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 5 35 BRAGUE Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia 173 36 ARISTOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 15 37 BRAGUE Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia p 169

90 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Tais satildeo por conseguinte os fins visados pela nossa investigaccedilatildeo pois que isso pertence agrave ciecircncia poliacutetica [μέθοδος πολιτικήmeacutethodos politikḗ] numa das acepccedilotildees do termo38

Agora podemos traccedilar em linhas gerais os grandes

momentos da Eacutetica Nicomaqueia indicando as suas passagens mais emblemaacuteticas Passemos a trabalhar dois conceitos basilares da eacutetica de Aristoacuteteles teacutelos e eydaimoniacutea39 23 TEacuteLOS E EYDAIMONIacuteA

O que Aristoacuteteles propotildee em sua Eacutetica No livro I da Eacutetica ele afirma de suacutebito que toda accedilatildeo humana tende para um fim (τέλοςteacutelos) ao mesmo tempo que reconhece que haacute uma multidatildeo de fins porque muitas satildeo as accedilotildees do homem40 Observa ainda que o que eacute fim numa accedilatildeo pode tornar-se meio noutra e que portanto haacute uma hierarquia dos bens como haacute dos fins41 Reconhece tambeacutem que na ordem dos fins deve haver um fim uacuteltimo ao qual todos os outros deveratildeo estar subordinados como meios pois ningueacutem agiria se natildeo houvesse um fim propriamente dito Qual eacute este fim Eacute o bem supremo o oacutetimo42 Em grego diz-

38 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 2 1094 a 10 39 Como jaacute advertimos seguiremos de perto Enrico Berti BERTI Enrico Lrsquoetica in Aristotele Disponiacutevel em lthttpwwwyoutubecomwatchv=fnsrqOiq6BMgt Outra siacutentese do pensamento Aristoteacutelico com a qual somente recentemente tomamos contato enconta-se em OTFRIED Houmlffe Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 40 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 1 1094 a 5 ldquoOra como satildeo muitas as accedilotildees [πολλῶν δὲ πράξεων] artes e ciecircncias muitos [πολλά] satildeo os seus fins [τέλη]rdquo 41 Idem Ibidem I 1 1094 a 5-15 ldquoMas quando tais artes se subordinam a uma uacutenica faculdade mdash assim como a selaria e as outras artes que se ocupam com os aprestos dos cavalos se incluem na arte da equitaccedilatildeo e esta juntamente com todas as accedilotildees militares na estrateacutegia haacute outras artes que tambeacutem se incluem em terceiras mdash em todas elas os fins das artes fundamentais devem se preferidos a todos os fins subordinados porque estes uacuteltimos satildeo procurados a bem dos primeirosrdquo 42 Idem Ibidem I 2 1094 a 15-20 ldquoSe pois para as coisas que fazemos existem um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais eacute desejado no interesse desse fim e se eacute verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito e inuacutetil e vatildeo seria o nosso desejar) evidentemente tal fim seraacute o bem [τἀγαθόν] ou antes o sumo bem [ἄριστον]rdquo

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se ἄριστον (aacuteriston) que quer dizer bem supremo porquanto superlativo de ἀγαθόν (agathoacuten) que eacute bem Mas qual eacute este bem supremo que direta ou indiretamente eacute buscado em todas as accedilotildees humanas Digamos desde jaacute a felicidade em grego εὐδαιμονία (eydaimoniacutea)43 Eacute para sermos felizes que fazemos tudo o que fazemos A eydaimoniacutea eacute tanto o fim uacuteltimo quanto o primeiro princiacutepio de nossas accedilotildees ldquoE tambeacutem parece ser assim pelo fato de ser ela um primeiro princiacutepio [ἀρχή] pois eacute tendo-a em vista que fazemos tudo o que fazemos [πάντα πάντες πράττομεν]rdquo44 Aqui temos um primeiro corolaacuterio para Aristoacuteteles a eacutetica eacute uma disciplina filosoacutefica que reflete sobre como eacute possiacutevel ao homem alcanccedilar a felicidade

Mas em que consiste a felicidade Para responder a esta pergunta Aristoacuteteles potildee-se primeiramente a observar o que se entende comumente por felicidade Estaraacute a felicidade numa vida de prazeres como alguns a entendem ou na busca das riquezas do poder e das honras como pensam outros E depois de arrolar estas e outras opiniotildees o Estagirita retoma a palavra para dizer que nenhuma dessas asserccedilotildees responde com argumentos adequados o que ele busca saber o que eacute a felicidade45 Na verdade a pesquisa se prolonga ateacute o uacuteltimo livro De forma que soacute no livro X Aristoacuteteles nos daraacute a sua definiccedilatildeo final de felicidade Evidentemente que natildeo poderemos segui-lo pari passu neste capiacutetulo Teremos de ir abreviando os seus caminhos Dando continuidade fixemos a atenccedilatildeo em trecircs conceitos tambeacutem fundantes da eacutetica aristoteacutelica eacutergon aretḗ e kakiacutea

43 Idem Ibidem I 4 1095 a 15-20 ldquoVerbalmente quase todos estatildeo de acordo pois tanto o vulgo como os homens de cultura superior dizerm ser esse fim a felicidade [εὐδαιμονίαν] e identificam o bem viver e o bem agir com o ser feliz [εὐδαιμονεῖν]rdquo 44 Idem Ibidem I 12 1102 a 45 Idem Ibidem I 7 1097 a 15 ldquoVoltemos novamente ao bem que estamos procurando e indaguemos o que eacute ele [τί ποτrsquo ἂν εἴη] []rdquo

92 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino 24 EacuteRGON ARETḖ E KAKIacuteA

Outro conceito importante para compreendermos mdash in nuce mdash o que Aristoacuteteles entende por felicidade eacute o de ἔργον (eacutergon) que significa funccedilatildeo obra (em latim opus) O Estagirita afirma que cada homem tem o seu eacutergon a sua funccedilatildeo Assim o eacutergon do escultor eacute construir estaacutetuas o eacutergon do arquiteto eacute construir casas ou templos o que toca flauta tem como sua funccedilatildeo (eacutergon) tocar flauta etc46 Em seguida Aristoacuteteles coloca a seguinte questatildeo haveraacute um eacutergon que toque natildeo a um homem em particular mas ao homem enquanto tal ao homem enquanto homem Qual eacute a funccedilatildeo do homem propriamente dito O primeiro esboccedilo de uma resposta a esta importante questatildeo eacute o seguinte se o homem possui um eacutergon que lhe seja especiacutefico este deve consistir na realizaccedilatildeo da sua potencialidade proacutepria ou seja deve consistir na realizaccedilatildeo da capacidade que eacute especiacutefica do homem47 E a verdade eacute que o homem possui algo que lhe eacute peculiar Natildeo eacute deveras o alimentar-se porque isto ele tem em comum com as plantas tampouco eacute a sensibilidade porque esta ele compartilha com os animais Entatildeo qual a capacidade que distingue o homem destes seres e na qual pode residir o seu eacutergon Aristoacuteteles natildeo pestaneja em dizer o λόγος e loacutegos significa antes de tudo palavra linguagem como jaacute sabemos O homem eacute o uacutenico animal dotado de palavra Por isso o eacutergon proacuteprio do homem enquanto homem eacute o loacutegos e tudo o que esteja em conexatildeo com ele48

46 Idem Ibidem I 7 1097 b 25 ldquoPois assim como para um flautista um escultor ou um pintor e em geral para todas as coisas que tecircm funccedilatildeo [ἔργον] ou atividade considera-se que o bem e o lsquobem feitorsquo residem na funccedilatildeo [ἔργῳ] o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma funccedilatildeo [ἔργον]rdquo 47 Idem Ibidem I 7 1097 b 30 ldquoA vida parece ser comum ateacute agraves proacuteprias plantas mas agora estamos procurando o que eacute peculiar ao homemrdquo 48 Idem Ibidem I 7 1098 a 5 [] A funccedilatildeo [ἔργον] do homem [ἀνθρώπου] eacute uma atividade [ἐνέργεια] da alma [ψυχῆς] que segue ou que implica um princiacutepio racional [λόγου] []rdquo

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Mas neste passo da argumentaccedilatildeo ele introduz outro conceito de primeira grandeza para a sua eacutetica a saber o de virtude Aqui haacute que se ter cuidado Nos dias de hoje a palavra virtude estaacute muito vinculada a certa concepccedilatildeo ldquomoralistardquo qual seja a de ldquobom comportamentordquo Entretanto a palavra que Aristoacuteteles usa para significar virtude eacute ἀρετή (aretḗ) que vem da raiz ἀρίς da qual proveacutem tambeacutem ἄριστον (aacuteriston) que significa oacutetimo Assim sendo aretḗ (virtude) indica a capacidade que o homem tem de realizar da melhor forma possiacutevel mdash com excelecircncia mdash o seu ἔργον (eacutergon) isto eacute a sua funccedilatildeo a qual eacute o λόγος (loacutegos) e tudo quanto seja conexo com ele 49 Como eacute virtuoso o escultor que faz bem a sua estaacutetua o arquiteto que constroacutei bem a sua casa e o flautista que toca bem a sua flauta eacute virtuoso o homem que usa bem ou seja exercita da melhor forma possiacutevel o ἔργον (eacutergon) que lhe eacute especiacutefico vale dizer o loacutegos (λόγος) De fato uma coisa eacute fazer uma boa accedilatildeo outra adicional eacute fazecirc-la bem eis a aretḗ 50 E o que compete ao homem Compete ao homem que por meio de seu loacutegos (λόγος) crie koinōniacutea (κοινωνία) viacutenculos humanos laccedilos humanos E praticar esta accedilatildeo da melhor forma possiacutevel eacute realizaacute-la com aretḗ com excelecircncia Mas o que temos ateacute aqui Uma eacutetica cujo ponto nevraacutelgico estaacute

49 Sem o estigma do ldquoperfeccionismordquo podemos dizer que Aristoacuteteles eacute um ldquoperfeccionistardquo Adquirimos a perfeiccedilatildeo da virtude eacutetica treinando praticando E quando esta pratildexis torna-se heacutexis a atividade eacute facilitada destravada torna-se aacutegil O exerciacutecio do eacutergon fica mais ceacutelere menos moroso sem desleixo Ora esta perfeiccedilatildeo a ser perseguida se chama aretḗ Idem Ibidem II 2 1104 a 30-1104 b ldquoO mesmo ocorre com as virtudes tornamo-nos temperantes abstendo-nos de prazeres e eacute depois de nos tornarmos tais que somos mais capazes dessa abstenccedilatildeo E igualmente no toca agrave coragem pois eacute habituando-se a desprezar e arrostar coisas terriacuteveis que nos tornamos bravos e depois de nos tornarmos tais somos mais capazes de lhes fazer frenterdquo 50 Idem Ibidem I 7 1098 a 5 10 e 15 ldquoOra se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma que segue ou que implica um princiacutepio racional e se dizemos que lsquoum tal-e-talrsquo e lsquoum bom tal-e-talrsquo tecircm uma funccedilatildeo que eacute a mesma em espeacutecie (por exemplo um tocador de lira e um bom tocador de lira e assim em todos os casos sem maiores discriminaccedilotildees sendo acrescentada ao nome da funccedilatildeo a eminecircncia com respeito agrave bondade mdash pois a funccedilatildeo de um tocador de lira eacute tocar lira e a de um bom tocador de lira eacute fazecirc-lo bem) se realmente assim eacute [] o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de uma virtude com a melhor e mais completardquo

94 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino num conceito de felicidade que consiste na plena realizaccedilatildeo das capacidades (δυνάμειςdynaacutemeis) humanas

Observemos pois que toda virtude ou excelecircncia natildeo soacute coloca em boa condiccedilatildeo a coisa de que eacute a excelecircncia como tambeacutem faz com que a funccedilatildeo dessa coisa seja bem desempenhada Por exemplo a excelecircncia do olho torna bons tanto o olho como a sua funccedilatildeo pois eacute graccedilas agrave excelecircncia do olho que vemos bem Analogamente a excelecircncia de um cavalo tanto o torna bom em si como bom na corrida [] Portanto se isto vale para todos os casos a virtude do homem tambeacutem seraacute a disposiccedilatildeo de caraacuteter que o torna bom e que o faz desempenhar bem a sua funccedilatildeo51

Um homem eacutetico eacute pois aquele que se empenha em

realizar da melhor forma possiacutevel isto eacute com virtude com aretḗ o seu eacutergon a saber aquilo que lhe compete enquanto homem E o seu eacutergon eacute que ultrapassando o que o separa dos seus pares ele busque permanentemente mdash mediante o loacutegos (λόγος) mdash criar koinōniacutea (κοινωνία) entre os homens comunhatildeo em torno de alguns valores que exatamente porque descobertos em comunidade consolidam-na

Como ante um pianista que executa uma peccedila com perfeiccedilatildeo dizemos que pianista virtuoso Ou de uma sinfocircnica que toca com perfeiccedilatildeo um tema dizemos que execuccedilatildeo feliz Assim devemos dizer diante de um homem que pela mediaccedilatildeo do loacutegos (λόγος) procura continuamente criar koinōniacutea (κοινωνία) entre os seus semelhantes que homem feliz Que homem virtuoso Eacute neste sentido que podemos afirmar que a eacutetica aristoteacutelica eacute uma eacutetica bela porque concebida como uma espeacutecie de poiacuteēsis (ποίησις) como a bela obra de toda uma vida que busca constantemente mdash atraveacutes do loacutegos (λόγος) mdash fazer com que os homens comunguem a vida uns dos outros O proacuteprio Aristoacuteteles registra como objeto da sua ldquociecircncia poliacuteticardquo as belas accedilotildees ldquoOra as accedilotildees belas (τὰ

51 Idem Ibidem II 6 1106 a 15-20 Com estes exemplos tirados da vida cotidiana Aristoacuteteles mostra que adestrar as nossas accedilotildees torna a sua praacutetica aleacutem de mais eficaz mais prazerosa

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καλάtagrave kalaacute) e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga []rdquo52 Noutra passagem o Estagirita diz que o fim da vida poliacutetica e da proacutepria ciecircncia poliacutetica eacute ser fautora de cidadatildeos virtuosos capazes de accedilotildees boas e belas

[] o objetivo da vida poliacutetica [πολιτικῆςpolitikẽs] eacute o melhor dos fins e essa ciecircncia dedica o melhor de seus esforccedilos a fazer com que os cidadatildeos sejam bons e capazes de nobres accedilotildees [τῶν καλῶνtȭn kalȭn]53

Tambeacutem Berti mdash ao estudar a ldquociecircncia poliacuteticardquo de

Aristoacuteteles a qual engloba a eacutetica e a poliacutetica propriamente dita mdash define-a como o estudo das accedilotildees belas e justas

Aqui Aristoacuteteles descreve com muita clareza aquilo que denominamos a intenccedilatildeo topoloacutegica proacutepria da ciecircncia poliacutetica ela se ocupa das accedilotildees belas isto eacute nobres e justas54

Ao chegar a este ponto parece que dissemos tudo quanto

possa ser dito sobre a Eacutetica E no entanto abordamos apenas e sinteticamente o livro I Em seguida Aristoacuteteles reflete no fato de que o homem eacute capaz de muitas accedilotildees e que portanto haacute muitas virtudes Jaacute sabemos que fundamentalmente a virtude estaacute em realizar bem uma accedilatildeo Mas e se a realizamos mal Ora se agimos mal caiacutemos no viacutecio O termo que nosso autor usa para designar viacutecio eacute κακία (kakiacutea) que vem de κακός (kakoacutes) e que significa o que eacute mau bruto rude Daiacute que para Aristoacuteteles viciosa eacute toda accedilatildeo humana que vai aleacutem ou fica aqueacutem do que poderia e deveria

52 Idem Ibidem I 3 1094 b 10-15 53 Idem Ibidem I 9 1099 b 30 Idem Ibidem I 8 1098 b 20 ldquoSendo assim as accedilotildees virtuosas [] satildeo boas e nobres [καλαίkalaiacute] e possuem no mais alto grau cada um destes atributos []rdquo As accedilotildees virtuosas natildeo soacute satildeo belas mas possuem o atributo da beleza no mais alto grau Aristoacuteteles chama o temperante ldquoamigo do belordquo Idem Ibidem I 8 1099 a 10 ldquo[] os amantes do que eacute nobre [φιλοκάλοιςfilokaacutelois] se comprazem em coisas que tecircm aquela qualidade []rdquo 54 BERTI Enrico As razotildees de Aristoacuteteles Trad Dion Davi Macedo Rev Renato Rocha Carlos 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 p 121

96 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ser como veremos mais abaixo55 Mas quais satildeo as accedilotildees que satildeo propriamente passiacuteveis de virtude ou de viacutecio 25 PROAIacuteRESIS E BOYacuteLEYSIS

A virtude diz respeito agraves accedilotildees das quais o homem eacute o princiacutepio motor56 E o homem eacute o princiacutepio motor daquelas accedilotildees sobre as quais ele exerce a sua escolha (προαίρεσιςproaiacuteresis) por meio de uma deliberaccedilatildeo (βούλευσιςboyacuteleysis) A deliberaccedilatildeo e a escolha mdash esta uacuteltima fruto da deliberaccedilatildeo mdash por sua vez tratam dos meios exequiacuteveis para se alcanccedilar o fim57 Por isso as accedilotildees passiacuteveis de virtudes mdash e consequentemente de viacutecios58 mdash satildeo as factiacuteveis isto eacute as que estatildeo em nosso poder e que escolhemos59 mdash agrave guisa de meio mdash para chegarmos a um fim60 Do quanto dissemos temos que as accedilotildees eacuteticas satildeo aquelas que procedem de noacutes que nascem de noacutes porque filhas de nossas escolhas deliberadas Desta sorte para Aristoacuteteles a eacutetica trata daquelas accedilotildees das quais ldquo[] o homem [ἄνθρωπον] seja um princiacutepio [ἀρχήν] motor e pai [γεννητήν] de suas accedilotildees [πράξεων] como o eacute de seus filhosrdquo61 Por isso na concepccedilatildeo de nosso filoacutesofo cada

55 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 6 1106 b 35-1107 a 5 ldquoA virtude [ἀρετή] eacute pois uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξις] [] E eacute um meio-termo [μεσότες] entre dois viacutecios [κακιῶν] um por excesso e outro por falta pois que enquanto os viacutecios ou vatildeo muito longe ou ficam aqueacutem do que eacute conveniente no tocante agraves accedilotildees e paixotildees a virtude encontra e escolhe o meio-termordquo 56 Idem Ibidem III 3 1112 b 30 ldquoParece pois como jaacute ficou dito que o homem eacute um princiacutepio motor de accedilotildeesrdquo 57 Idem Ibidem III 3 1112 b 30 ldquoCom efeito o fim natildeo pode ser objeto de deliberaccedilatildeo mas apenas o meiordquo Idem Ibidem III 3 1112 b 10 ldquoNatildeo deliberamos acerca de fins mas a respeito de meiosrdquo 58 Idem Ibidem II 1 1103 b 5 ldquoAinda mais eacute das mesmas causas e pelos mesmos meios que se gera e se destroacutei toda virtude []rdquo 59 Idem Ibidem III 3 1113 a 10 ldquoSendo pois o objeto da escolha uma coisa que estaacute ao nosso alcance e que eacute desejada apoacutes deliberaccedilatildeo a escolha eacute um desejo deliberado de coisas que estatildeo ao nosso alcance []rdquo 60 Idem Ibidem III 5 1113 b 5 ldquoSendo pois o fim aquilo que desejamos e o meio aquilo acerca do qual deliberamos e que escolhemos as accedilotildees relativas ao meio devem concordar com a escolha e ser voluntaacuterias Ora o exerciacutecio da virtude diz respeito aos meios Por conseguinte a virtude estaacute em nosso poder do mesmo modo que o viacutecio []rdquo 61 Idem Ibidem III 5 1113 b 15

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accedilatildeo eacutetica afigura-se como um novo nascimento pois se ldquoDeliberamos sobre coisas que estatildeo ao nosso alcance e podem ser realizadasrdquo62 ou seja sobre coisas que natildeo estatildeo determinadas deliberamos acerca de coisas que ldquo[] em noacutes estaacute igualmente o fazecirc-las ou natildeo as fazerrdquo63 A eacutetica nos coloca assim ante o ineacutedito o imprevisiacutevel e por ela o homem mdash senhor de suas accedilotildees mdash faz-se e cria o mundo em que habita De sorte que a vida eacutetica eacute como uma segunda natureza64 e a felicidade obra de nossas matildeos pois ldquo[] ningueacutem eacute involuntariamente feliz [μακάριοςmakaacuterios] []rdquo65 O raciociacutenio eacute simples se estaacute em nosso poder agir ou natildeo agir de forma virtuosa ou viciosa estaacute em nosso poder tambeacutem sermos virtuosos ou viciosos Ademais se a virtude e o viacutecio geram em noacutes como uma segunda natureza estaacute ao nosso alcance ainda sermos bons ou maus justos ou injustos valentes ou covardes pois em grande medida transformamo-nos naquilo que fazemos naquilo que escolhemos ser

[] quando depende de noacutes o agir tambeacutem depende o natildeo agir e vice-versa de modo que quando temos o poder de agir quando isso eacute nobre tambeacutem temos o de natildeo agir quando eacute vil e se estaacute em nosso poder o natildeo agir quando isso eacute nobre tambeacutem estaacute o agir quando isso eacute vil Logo depende de noacutes praticar atos nobres ou vis e se eacute isso que se entende por ser bom ou mau entatildeo depende de noacutes sermos virtuosos ou viciosos66

Isso pois eacute o que tambeacutem ocorre com as virtudes pelos atos que praticamos em nossas relaccedilotildees com os homens nos tornamos justos ou injustos pelo que fazemos em presenccedila do perigo e pelo

62 Idem Ibidem III 3 1112 a 30 63 Idem Ibidem III 1 1110 a 15 64 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel Nascimento Pena Rev Levi Condinho 2 ed Lisboa Biblioteca de Autores Claacutessicos 2005 v VIII I 11 1370 a 5ldquo[] o haacutebito eacute de algum modo semelhante agrave natureza []rdquo 65 Idem Eacutetica a Nicocircmaco III 5 1113 b 15 66 Idem Ibidem III 5 1113 b 10

98 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

haacutebito do medo ou da ousadia nos tornamos valentes ou covardes67

Aubenque e Zingano dois importantes comentadores

repisam o que acabamos de dizer

Ele pretende dizer que a virtude eacute uma disposiccedilatildeo que exprime uma decisatildeo da qual somos princiacutepio que engaja nossa liberdade nossa responsabilidade nosso meacuterito o adjetivo προαιρετικός designa a diferenccedila especiacutefica que separa a virtude moral que nos eacute imputaacutevel da virtude natural cuja posse natildeo nos concede nenhum meacuterito porque natildeo concerne agrave nossa proaiacuteresis68

Graccedilas agrave razatildeo deliberativa sou senhor de minhas accedilotildees como as disposiccedilotildees satildeo geradas pelas accedilotildees sou em parte causa de minhas disposiccedilotildees Ora as disposiccedilotildees praacuteticas constituem o que se pode chamar de natureza praacutetica do agente e os fins aparecem ao agente em funccedilatildeo de sua natureza (praacutetica) por conseguinte em uma certa medida sou causa do fato que certos fins apareccedilam para mim69

Toquemos ainda que concisamente na distinccedilatildeo que

Aristoacuteteles estabelece entre virtudes dianoeacuteticas e virtudes eacuteticas e a partir de que criteacuterio ele concebe o conceito de justo meio 26 VIRTUDES DIANOEacuteTICAS E EacuteTICAS O CONCEITO DE JUSTO MEIO QUANTO AgraveS VIRTUDES EacuteTICAS

Do livro II da Eacutetica a Nicocircmaco ateacute o livro VII encontra-se o que podemos chamar tratado acerca das virtudes e dos viacutecios opostos Aristoacuteteles divide as virtudes em duas ordens haacute as virtudes eacuteticas tambeacutem chamadas virtudes de caraacuteter ou morais e

67 Idem Ibidem II 1 1103 b 10-15 68 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad Marisa Lopes Rev Siacutelvio Rosa Filho 2 ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2008 pp 193-194 69 ZINGANO Marco Estudos de Eacutetica Antiga 2 ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009 pp 319-320

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as virtudes dianoeacuteticas70 O substantivo dianoeacutetica vem do verbo διὰ-νοεῖν (diagrave-noeĩn) que significa discorrer raciocinar Lembremos ainda que o substantivo νοῦς (noỹs) designa inteligecircncia Daiacute que as virtudes dianoeacuteticas satildeo as virtudes racionais ou intelectuais A elas cabe nos conduzir ao conhecimento da verdade71 A alma humana eacute pois uma alma intelectiva Mas observemos com atenccedilatildeo a alma humana natildeo eacute soacute intelectiva ela eacute uma alma intelectiva que acumula as funccedilotildees vegetativa e sensitiva Haacute portanto uma soacute alma que acumula estas trecircs funccedilotildees

E de entre os seres que possuem sensibilidade uns possuem a faculdade de se moverem de lugar outros natildeo Por fim um pequeno nuacutemero de animais possui raciociacutenio e pensamento discursivo De entre os seres pereciacuteveis os que possuem raciociacutenio possuem tambeacutem as restantes faculdades mas nem todos os que possuem cada uma daquelas dispotildeem de raciociacutenio []72

As virtudes referentes agrave correccedilatildeo da razatildeo satildeo justamente

as virtudes dianoeacuteticas conforme jaacute evidenciamos Poreacutem o homem repetimos natildeo eacute soacute razatildeo Ele sente e se nutre Todavia o que haacute de melhor no homem eacute a razatildeo Desta sorte natildeo seraacute feliz o homem cuja sensibilidade e prazeres se contrapuserem agrave razatildeo As virtudes que devem harmonizar aqueles comportamentos que natildeo satildeo apenas racionais mas dizem respeito agrave sensibilidade satildeo denominadas virtudes eacuteticas73 ou de caraacuteter74 Eacute neste contexto que

70 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 1 1103 a 15 ldquoSendo pois de duas espeacutecies a virtude intelectual e moral []rdquo 71 Idem Ibidem VI 2 1139 a 25 ldquoQuanto ao intelecto contemplativo e natildeo praacutetico nem produtivo o bom e o mau estado satildeo respectivamente a verdade e a falsidade []rdquo 72 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 3 415 a 5 73 Idem Eacutetica a Nicocircmaco VI 2 1139 a 25-30 ldquoOra esta espeacutecie de intelecto e de verdade eacute praacutetica [] [] mas da parte praacutetica e intelectual o bom estado eacute a concordacircncia da verdade com o reto desejordquo

100 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino surge a famosa definiccedilatildeo de virtude de Aristoacuteteles como o justo meio (μεσότηςmesoacutetēs) entre dois extremos o excesso e a falta75

Por exemplo a virtude do guerreiro eacute ser corajoso ou seja natildeo se furtar agrave luta quando se tem uma causa nobre Contudo a eminecircncia da virtude da coragem proacutepria do guerreiro fica entre o viacutecio por excesso da temeridade que consiste em natildeo saber reconhecer os riscos que devem ser ponderados antes da guerra e o viacutecio da covardia que eacute simplesmente a falta de coragem para se encarar a luta quando isto se faz necessaacuterio O mesmo se pode dizer da virtude da generosidade entre o extremo da avareza e o excesso da prodigalidade haacute precisamente a virtude da generosidade Estes exemplos satildeo importantes a fim de entendermos que o justo meio natildeo eacute algo mediacuteocre como se pode pensar mas uma eminecircncia que se sobrepotildee ao excesso e agrave falta

E assim no que toca agrave sua substacircncia e agrave definiccedilatildeo que lhe estabelece a essecircncia a virtude eacute mediania com referecircncia ao sumo bem e ao mais justo eacute poreacutem um extremo76

As principais virtudes eacuteticas satildeo a fortaleza ou coragem

(ἀνδρείαandreiacutea) que eacute como vimos o justo meio em relaccedilatildeo aos sentimentos de medo e confianccedila a temperanccedila (σωφροσύνηsōfrosyacutenē) que eacute o justo meio em relaccedilatildeo aos prazeres e dores77 Contudo entre as virtudes eacuteticas Aristoacuteteles destaca a justiccedila (δικαιοσύνηdikaiosyacutenē) Esta consiste na equidade ldquo[] o justo eacute equumlitativo como aliaacutes pensam todos

74 Idem Ibidem II 5 1106 a 10 ldquoPor conseguinte se as virtudes natildeo satildeo paixotildees nem faculdades soacute resta uma alternativa a de que sejam disposiccedilotildees de caraacuteterrdquo 75 Idem Ibidem II 6 1106 b 25 ldquoOra a virtude diz respeito agraves paixotildees e accedilotildees em que o excesso eacute uma forma de erro assim como a carecircncia ao passo que o meio-termo eacute uma forma de acerto digna de louvor []rdquo 76 Idem Ibidem II 6 1107 a 5 77 Idem Ibidem II 7 1107 b 5 ldquoEm relaccedilatildeo aos sentimentos de medo e de confianccedila a coragem eacute o meio-termo [] Com relaccedilatildeo aos prazeres e dores mdash natildeo todos e menos no que tange agraves dores mdash o meio-termo eacute a temperanccedila e o excesso eacute a intemperanccedilardquo

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mesmo sem discussatildeordquo78 Haacute segundo Aristoacuteteles dois tipos de justiccedila a distributiva na qual se realiza uma igualdade geomeacutetrica que consiste em o governante dar do que eacute comum a cada qual segundo os seus meacuteritos e a comutativa ou corretiva que se realiza mediante uma igualdade aritmeacutetica que consiste na correccedilatildeo das comutas entre os indiviacuteduos79 Interessante eacute notar que estas virtudes eacuteticas satildeo conexas Por exemplo a virtude intelectual da froacutenēsis eacute conexa com a virtude eacutetica da sōfrosyacutenē Para expressar esta conexatildeo Aristoacuteteles chega a indicar que a sōfrosyacutenē teria este nome porque eacute ela que salva (σώζωsṓzō) a froacutenēsis ldquoE por isso mesmo damos agrave temperanccedila o nome de σωφροςύνη subentendendo que ela preserva a nossa sabedoria σώζουσα τήν φρόνησω [sṓzoysa tḗn froacutenēsō]rdquo80

Restaria muito por dizer mas nossa intenccedilatildeo era tatildeo somente fazer uma concisa apresentaccedilatildeo das virtudes eacuteticas Poreacutem ainda natildeo falamos acerca do papel da amizade na eacutetica aristoteacutelica 27 O PAPEL DA AMIZADE NA EacuteTICA

Eacute a amizade uma virtude Haacute quem pense que sim e alegue a seu favor que Aristoacuteteles dedica dois livros da Eacutetica a Nicocircmaco agrave temaacutetica Ademais para os que defendem esta posiccedilatildeo algumas passagens desta obra parecem tratar a filiacutea como heacutexis e aretḗ 81 Uma linha diversa reclama que Aristoacuteteles nunca aplica agrave

78 Idem Ibidem V 3 1131 a 10 79 Idem Ibidem V 4 1131 b 25-30-1132 a ldquoCom efeito a justiccedila que distribui posses comuns estaacute sempre de acordo com a proporccedilatildeo mencionada acima (e mesmo quando se trata de distribuir os fundos comuns de uma sociedade ela se faraacute segundo a mesma razatildeo que guardam entre si os fundos empregados no negoacutecio pelos diferentes soacutecios) e a injusticcedila contraacuteria a esta espeacutecie de injusticcedila eacute a que viola a proporccedilatildeo Mas a justiccedila nas transaccedilotildees entre um homem e outro eacute efetivamente uma espeacutecie de igualdade e a injusticcedila uma espeacutecie de desigualdade natildeo de acordo com essa espeacutecie de proporccedilatildeo todavia mas de acordo com uma proporccedilatildeo aritmeacuteticardquo 80 Idem Ibidem VI 5 1140 b 10 81 BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos III Filosofia Praacutetica Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 136 ldquoA amizade mdash e isso eacute notoacuterio mdash eacute a virtude (sim a

102 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino amizade a mesoacutetēs cuja funccedilatildeo eacute a de definir uma virtude eacutetica pelo que concluem que a amizade natildeo eacute virtude embora a implique82 Natildeo nos pronunciaremos sobre a questatildeo deixando-a adrede em aberto Para o nosso propoacutesito basta seguirmos o Filoacutesofo quanto ao papel da amizade na vida eacutetica o qual natildeo eacute como veremos um papel de somenos Antes de tudo para Aristoacuteteles a amizade eacute uma paixatildeo da alma

Devemos considerar agora o que eacute a virtude [ἀρετή] Visto que na alma se encontram trecircs espeacutecies de coisas mdash paixotildees [πάθη] faculdades e disposiccedilotildees de caraacuteter [ἕξεις] mdash a virtude deve pertencer a uma destas Por paixotildees [πάθη] entendo os apetites a coacutelera o medo a audaacutecia a inveja a alegria a amizade [φιλίαν] []83

Todavia no comeccedilo do livro VIII o Estagirita parece definir

a amizade como aretḗ ou algo que a implique

amizade eacute uma virtude natildeo conveacutem esquececirc-lo) da qual Aristoacuteteles fala mais longamente em suas obras consagrando-lhe dois livros inteiros da Eacutetica a Nicocircmaco e um livro da Eacutetica a Eudemo para natildeo falar da Grande eacutetica ou Grande moral de autenticidade duvidosardquo BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 294 ldquoAleacutem disso segundo Aristoacuteteles a amizade eacute uma virtude isto eacute uma forma de excelecircncia um bem []rdquo 82 HOBUSS J ldquoEthica Nicomachea 1165b 13-14 filia e mudanccedila de caraacuteterrdquo In Dissertatio n 36 2012 pp 177 -185 ldquoNo livro VIII Aristoacuteteles comeccedila com uma afirmaccedilatildeo que identifica a amizade com a virtude recuando logo em seguida e sublinhando que se natildeo eacute uma virtude ao menos envolve virtude Na realidade jamais Aristoacuteteles indica que a amizade seja uma virtude e se se observa o tratamento da virtude nos livros VIII e IX da EN ele jamais daacute a esta o mesmo tratamento que daacute agraves virtudes morais ou seja ela nunca eacute tratada nesses livros como uma mediedade entre o excesso e a falta Nem nesses livros nem no resto da EN pois nas passagens onde aparece a φιλία como uma mediedade ente o excesso e a falta (1108b 26-30 1126b 20-28) o contexto faz com que se traduza φιλία como lsquoamabilidadersquo Na primeira passagem o que peca por excesso eacute um obsequioso ou um lisonjeador e o que peca por falta eacute um importuno ou grosseiro na segunda a mediedade natildeo tem um nome proacuteprio mas se parece de certo modo com a amizaderdquo WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Giachini Rev Renato da Rocha e Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 230 ldquoTambeacutem a breve indicaccedilatildeo da teoria do mesotes (1158 a 10 ss) apenas reforccedila a impressatildeo de que natildeo se pode classificar a amizade como uma arete [] Assim a uacutenica referecircncia clara estabelecida por Aristoacuteteles entre amizade e arete eacutetica consiste no fato de que natildeo haacute amizade em sentido verdadeiro e proacuteprio sem que as pessoas envolvidas na relaccedilatildeo de amizade possuam arete eacuteticardquo 83 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 5 1105 b 20-25

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Depois do que dissemos segue-se naturalmente uma discussatildeo da amizade [φιλίας] visto que ela eacute uma virtude [ἀρετή] ou implica virtude [ἀρετής] sendo aleacutem disso sumamente necessaacuteria agrave vida84

Para entendermos a questatildeo precisamos ter presente que

filiacutea eacute um termo grego a priori de significado muito amplo empregado para expressar toda sorte de afetos humanos Poreacutem pelo contexto do tratado aristoteacutelico existe uma compreensatildeo de filiacutea que soacute se realiza quando haacute uma benevolecircncia reciacuteproca e habitual entre as pessoas e eacute a esta benevolecircncia muacutetua entre os homens que Aristoacuteteles chama propriamente amizade

Ora as pessoas amam por trecircs razotildees Para o amor dos objetos inanimados natildeo usamos a palavra ldquoamizaderdquo pois natildeo se trata de amor muacutetuo nem um deseja o bem ao outro (seria com efeito ridiacuteculo se desejaacutessemos bem ao vinho se algo lhe desejamos eacute que se conserve para que continuemos dispondo dele) no tocante aos amigos poreacutem diz-se que devemos desejar-lhes o bem no interesse deles proacuteprios Mas aos que desejam bem dessa forma soacute atribuiacutemos benevolecircncia se o desejo natildeo eacute reciacuteproco a benevolecircncia quando reciacuteproca torna-se amizade [φιλίαν]85

E assim como a amizade [φίλιας] depende mais do amar do que do ser amado e satildeo os que amam os seus amigos que satildeo louvados o amar parece ser a virtude caracteriacutestica dos amigos [φίλων ἀρετὴ τὸ φιλεῖν] de modo que soacute aqueles que amam na medida justa satildeo amigos duradouros e soacute a amizade desses resiste ao tempo86

O Estagirita distingue pois o amor entendido como

paacutethos por exemplo quando se manifesta como eacuterōs do amor enquanto filiacutea stricto sensu De fato eacute soacute a filiacutea entendida stricto

84 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 5 85 Idem Ibidem VIII 2 1155 b 25-30 86 Idem Ibidem VIII 8 1159 a 30-35

104 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino sensu que ele considera uma disposiccedilatildeo de caraacuteter isto eacute heacutexis visto que envolve proaiacuteresis e consiste como jaacute dissemos num amor muacutetuo Fato eacute que sem amigos verdadeiros ningueacutem consegue viver ainda que possua todos os outros bens o que torna a amizade um bem indispensaacutevel agrave eydaimoniacutea ldquoPorque sem amigos ningueacutem escolheria viver ainda que possuiacutesse todos os outros bensrdquo87

Ora dir-se-ia que o amor eacute um sentimento e a amizade [φιλία] eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξει] porque se pode sentir amor mesmo pelas coisas inanimadas mas o amor muacutetuo envolve escolha [προαιρέσεως] e a escolha [προαίρεσις] procede de uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξεως] E os homens desejam bem agravequeles a quem amam por eles mesmos natildeo por efeito de um sentimento [πάθος] mas de uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξιν]88

Se quisermos ser mais precisos podemos distinguir com

Aristoacuteteles trecircs tipos de amizade Uma que se baseia no prazer outra que se funda na utilidade que um tem para o outro finalmente a mais perfeita e a mais rara a amizade propriamente dita a qual se baseia no fato mesmo de o outro ser quem eacute vale dizer virtuoso Esta uacuteltima forma de filiacutea acumula tambeacutem o prazer e a utilidade mas natildeo se alicerccedila neles89 Eacute rara porque exige tempo concoacuterdia e familiaridade90 As demais formas de amizade satildeo ditas amizades apenas acidentalmente porque logo que o prazer e a utilidade se esvaem elas se dissolvem Com efeito

87 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 5 88 Idem Ibidem VIII 5 1157 b 25-35 89 Idem Ibidem VIII 6 1158 b 5 ldquoEacute por sua semelhanccedila com a amizade da virtude que parecem ser amizades (pois uma delas envolve prazer e a outra utilidade e estas caracteriacutesticas pertencem tambeacutem agrave amizade dos virtuosos) []rdquo 90 Exige diriacuteamos hoje provas de confianccedila ateacute que confirmada a mesma amizade fique ela blindada contra as caluacutenias Idem Ibidem VIII 4 1157 a 20 ldquoA amizade entre os bons e soacute ela tambeacutem eacute invulneraacutevel agrave caluacutenia pois natildeo damos ouvidos facilmente agraves palavras de qualquer um a respeito de um homem que durante muito tempo submetemos agrave prova e eacute entre os bons que satildeo encontradas a confianccedila o sentimento expresso pelas palavras lsquoele nunca me faria uma deslealdadersquo e todas as outras coisas que se requerem numa verdadeira amizaderdquo

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amizades baseadas tatildeo somente no prazer ou na utilidade podem existir tambeacutem entre os viciosos jaacute a amizade propriamente dita soacute entre os virtuosos91 Haacute passagens particularmente elucidativas a este respeito

Haacute assim trecircs espeacutecies de amizade [] Ora os que se amam por causa de sua utilidade natildeo se amam por si mesmos [] Idecircntica coisa se pode dizer dos que se amam por causa do prazer [] De forma que essas amizades satildeo apenas acidentais pois a pessoa amada natildeo eacute amada por ser o homem que eacute mas porque proporciona algum bem ou prazer Eis por que tais amizades se dissolvem facilmente se as partes natildeo permanecem iguais a si mesmas com efeito se uma das partes cessa de ser agradaacutevel ou uacutetil a outra deixa de amaacute-la92

A amizade perfeita eacute a dos homens que satildeo bons e afins na virtude pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons e satildeo bons em si mesmos Ora os que desejam bem aos seus amigos por eles mesmos satildeo os mais verdadeiramente amigos porque o fazem em razatildeo da sua proacutepria natureza e natildeo acidentalmente93

Uma tal amizade eacute como seria de esperar permanente jaacute que eles encontram um no outro todas as qualidades que os amigos devem possuir [] E agrave amizade entre homens bons pertencem todas as qualidades que mencionamos [prazer utilidade] [] Mas eacute natural que tais amizades natildeo sejam muito frequumlentes pois que tais homens satildeo raros Acresce que uma amizade dessa espeacutecie exige tempo e familiaridade [] Os que natildeo tardam a mostrar mutuamente sinais de amizade desejam ser amigos mas natildeo o satildeo a menos que ambos sejam estimaacuteveis e o saibam

91 Idem Ibidem VIII 4 1157 b ldquoDividindo-se pois a amizade nestas espeacutecies os maus seratildeo amigos com vistas na utilidade ou no prazer e a esse respeito se assemelharatildeo um ao outro mas os bons seratildeo amigos por eles mesmos isto eacute em razatildeo da sua bondade Esses pois satildeo amigos no sentido absoluto do termo e os outros o satildeo acidentalmente e por uma semelhanccedila com os primeirosrdquo 92 Idem Ibidem VIII 3 1156 a 5-20 93 Idem Ibidem VIII 3 1156 b 5-10

106 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

porque o desejo da amizade pode surgir depressa mas a amizade natildeo94

Como jaacute vimos apenas a filiacutea que se baseia no querer bem

ao outro como a si mesmo implica perfeiccedilatildeo ldquoEsta espeacutecie de amizade pois eacute perfeita (τελεία) []rdquo95 Ademais eacute esta forma de amizade calcada na virtude que inobstante rara deve ser buscada adquirida e conservada na e pela poacutelis Trata-se como jaacute dito de um haacutebito (heacutexis) que natildeo se perde com a distacircncia esta soacute interrompe a atividade (eneacutergeia) natildeo o haacutebito salvo se durar muito tempo

A distacircncia natildeo rompe a amizade [φιλίαν] em absoluto mas apenas a sua atividade [ἐνέργειαν] Todavia se a ausecircncia dura muito tempo parece realmente fazer com que os homens esqueccedilam a sua amizade daiacute o proveacuterbio ldquolonge dos olhos longe do coraccedilatildeordquo96

Aristoacuteteles fala ainda por assim dizer de outras espeacutecies

de amizade no bojo da proacutepria poacutelis entre pai e filho velho e jovem governante e suacutedito etc Poreacutem todas estas espeacutecies de amizade mdash inclusive a que eacute segundo a virtude mdash oriundas de comunidades mais particulares pressupotildeem a poacutelis como a parte supotildee o todo 97 Por isso tais amizades soacute podem ser buscadas vividas e conservadas no horizonte da mesma poacutelis que abarca todas

94 Idem Ibidem VIII 3 1156 b 15-30 95 Idem Ibidem VIII 4 1156 b 30 96 Idem Ibidem VIII 5 1157 b 10 97 Idem Ibidem VIII 9 1160 a 5-10 ldquoOra todas as formas de comunidade [κοινωνίαι] satildeo como partes da comunidade poliacutetica [πολιτικῆς] []rdquo Idem Ibidem VIII 9 1160 a 20 ldquoMas todos parecem incluir-se na comunidade poliacutetica [πολιτική] que natildeo visa agrave vantagem imediata mas ao que eacute vantajoso para a vida no seu todo []rdquo Idem Ibidem VIII 9 1160 a 25-30 ldquoTodas as comunidades [κοινωνίαι] por conseguinte parecem fazer parte da comunidade poliacutetica [πολιτικῆς] e as espeacutecies particulares de amizade devem corresponder agraves espeacutecies particulares de comunidaderdquo

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De qualquer maneira destas formas de amizade exceto a que eacute segundo a virtude natildeo satildeo um fim em si mesmas senatildeo meio visto que se tomadas como um fim elas tendem agrave degeneraccedilatildeo porque envolvem desigualdade ldquoTambeacutem nas amizades que se baseiam na superioridade surgem dissenccedilotildees pois cada qual espera obter mais proveito delas mas quando isso natildeo acontece a amizade se dissolverdquo 98 Por exemplo na relaccedilatildeo governantesuacutedito nem sempre eacute faacutecil manter a proporcionalidade que iguala os desiguais e conserva a amizade Em razatildeo disso como jaacute dissemos a filiacutea que deve ser querida inclusive no acircmbito da poacutelis eacute sempre a que traraacute um maior proveito comum99 a saber a amizade segundo a virtude entre pares Ora a constituiccedilatildeo que melhor propicia a amizade segundo a virtude eacute a que se baseia na meritocracia visto que nela se estabelece uma igualdade segundo a virtude e desta sorte ela fomenta a amizade perfeita que eacute a filiacutea entre irmanados na virtude

A amizade de irmatildeos eacute como a de camaradas porquanto satildeo iguais e proacuteximos uns dos outros pela idade e tais pessoas em geral assemelham-se nos sentimentos e no caraacuteter E tambeacutem eacute semelhante a esta a amizade apropriada ao governo timocraacutetico [τιμοκρατικήν] pois numa tal constituiccedilatildeo o ideal eacute serem os cidadatildeos iguais e equumlitativos e por isso o governo eacute assumido por turnos numa base de igualdade E a amizade [φιλία] apropriada a esta constituiccedilatildeo corresponde agrave que descrevemos100

Tendo presente o que dissemos ateacute aqui sobre a amizade

passemos a considerar o seu papel na eacutetica Friedo Ricken em O

98 Idem Ibidem VIII 14 1163 a 20-25 99 Idem Ibidem VIII 9 1160 a 10 ldquo[] e eacute por causa da vantagem que a comunidade poliacutetica parece ter-se formado e perdurar pois esse eacute o objetivo que os legisladores se propotildeem e chamam justo o que concorre para a vantagem comumrdquo 100 Idem Ibidem VIII 11 1161 a 25 Eacute claro que em qualquer forma de governo corrompida supressa a justiccedila suprime-se tambeacutem a possibilidade de amizades verdadeiras Idem Ibidem VIII 11 1161 a 30 ldquoNas formas de desvio poreacutem como mal existe justiccedila tambeacutem eacute rara a amizaderdquo

108 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino bem-viver em comunidade na parte dedicada agrave poliacutetica de Aristoacuteteles frisa que eacute soacute pela experiecircncia de uma sadia convivecircncia desde a famiacutelia ateacute a poacutelis que chegamos a conhecer e a nomear os autecircnticos valores humanos

Para ele os valores e regras surgem a partir da experiecircncia da convivecircncia bem-sucedida [] A experiecircncia no trato com as pessoas nos leva a uma visatildeo das regras a que devemos obedecer para que a convivecircncia humana seja bem-sucedida Os valores ou regras morais mdash num resumo provisoacuterio da minha interpretaccedilatildeo mdash mostram-se como tais quando promovem a comunidade eles satildeo reconhecidos em comunidades humanas elementares por causa de suas experiecircncias de vida101

Noutro passo da mesma obra Ricken estende para a poacutelis

de forma mais especiacutefica a concepccedilatildeo de que eacute somente a convivecircncia que nos faz descobrir e vivenciar o justo e o injusto Ele faz a sua exegese a partir de uma passagem da Poliacutetica jaacute citada neste texto [I 2 1253 a 5-15]

O espantoso nessa tese eacute a relaccedilatildeo de consequecircncia nela formulada a pergunta pelo benefiacutecio e pelo prejuiacutezo natildeo pode ser separada da pergunta de como o benefiacutecio e o prejuiacutezo satildeo distribuiacutedos a pergunta pela distribuiccedilatildeo do benefiacutecio e do prejuiacutezo eacute um aspecto da racionalidade do objetivo pois este soacute pode ser alcanccedilado em conjunto pelas pessoas Elas natildeo podem se reunir para realizar juntas um benefiacutecio sem perguntar como esse benefiacutecio e os esforccedilos necessaacuterios vinculados a ele seratildeo distribuiacutedos A cooperaccedilatildeo soacute pode ser estaacutevel sob a condiccedilatildeo de ser dada a essa pergunta uma resposta satisfatoacuteria a todos os envolvidos Portanto a necessidade do justo pode ser fundamentada assim parece com ajuda do conceito de comunidade102

101 RICKEN Friedo O bem-viver em comunidade A vida boa segundo Platatildeo e Aristoacuteteles Trad Inecircs Antocircnia Lohbauer Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 pp 125-126 102 Idem Ibidem p 147

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A fim de constatarmos nos proacuteprios textos do Estagirita esta realidade basta lermos o que eacute dito sobre o homem a saber que ele eacute por natureza [fyacutesei] um vivente poliacutetico (zȭon politikoacuten) Isto implica que o homem natildeo eacute autossuficiente Por isso para Aristoacuteteles aquele que for incapaz de criar koinōniacutea mais ainda quem natildeo sente esta necessidade natildeo vive segundo a sua natureza

Quem for incapaz de se associar ou que natildeo sente essa necessidade por causa de sua auto-suficiecircncia natildeo faz parte de qualquer cidade e seraacute um bicho ou um deus103

Mas qual a melhor forma de convivecircncia Que nome dar agrave

convivecircncia virtuosa Ora a melhor forma de convivecircncia eacute a amizade pois nela sem abandonarmos o nosso ldquoeurdquo estendemo-lo pois o amigo eacute como outro ldquoeurdquo com quem compartilhamos palavras pensamentos e gestos Assim o bem viver do amigo seraacute o nosso bem viver e vice-versa E a ldquoconsciecircnciardquo do bem viver do amigo promoveraacute tambeacutem o nosso bem viver e vice-versa Cria-se pois uma circularidade na qual a felicidade individual existe mas de forma indissociaacutevel da coletiva

Ele [o homem] necessita por conseguinte ter consciecircncia tambeacutem da existecircncia do seu amigo e isso se verificaraacute se viverem em comum e compartilharem suas discussotildees e pensamentos pois isso eacute ο que o conviacutevio parece significar no caso do homem e natildeo como para o gado o pastar juntos no mesmo lugar Se portanto o ser eacute desejaacutevel em si mesmo para o homem sumamente feliz [] e o ser de seu amigo eacute mais ou menos idecircntico ao seu um amigo seraacute uma das coisas desejaacuteveis104

103 ARISTOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 25 104 Idem Eacutetica a Nicocircmaco IX 9 1170 b10-15

110 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

A amizade gera cooperaccedilatildeo parece mesmo ativar e dilatar a dimensatildeo poliacutetica do homem pois um amigo antecipa-se ao outro para fazer-lhe participar do seu gozo e adianta-se em ajudaacute- lo antes que este lhe peccedila auxiacutelio A dinacircmica da amizade se por um lado leva-nos a ajudar o amigo a carregar os seus pesos por outro leva-nos a natildeo querer sobrecarregaacute-lo com as nossas desditas

Segundo parece pois deveriacuteamos convocar sem demora os nossos amigos a compartilhar a nossa ventura (pois as pessoas de caraacuteter benfazejo satildeo nobres) mas hesitar em chamaacute-los nos dias de infortuacutenio pois que de nossos males devemos dar-lhes uma parte tatildeo pequena quanto possiacutevel mdash donde a frase jaacute basta o meu infortuacutenio Acima de tudo devemos chamar nossos amigos quando eles podem sem grande trabalho prestar-nos um grande serviccedilo Inversamente eacute decoroso acorrer sem ser convidado em auxiacutelio dos que foram colhidos pela adversidade (pois eacute caracteriacutestico de um amigo prestar serviccedilos e especialmente aos que deles necessitam e que natildeo os solicitaram uma tal accedilatildeo eacute mais nobre e mais apraziacutevel a ambos) []105

A amizade segundo a virtude nota ainda Enrico Berti a

partir de uma passagem da Eacutetica a Nicocircmaco106 que citaremos abaixo gera accedilotildees desinteressadas O amigo verdadeiro estaacute disposto a com alegria abrir matildeo de muitos bens pelos quais os homens lutam mdash riquezas honras etc mdash e ateacute da sua proacutepria vida pelo bem de seu amigo ou de sua paacutetria Ora esta espeacutecie de accedilatildeo abnegada e doadora que adveacutem da amizade segundo a virtude eacute a face bela da eacutetica

105 Idem Ibidem IX 11 1171 b 15-20 106 Trata-se de uma recente videoliccedilatildeo na qual Enrico Berti comenta uma tese de doutorado da qual ele foi um dos examinadores A tese eacute Aristotele e il bello Poesis praxis theoria A autora da referida tese Lisa Bressan A tese que se transformou em livro foi defendida em 2012 na Universitagrave di Padova No trabalho a autora defende que o belo em Aristoacuteteles estaacute presente natildeo soacute na poiacuteēsis mas tambeacutem na praacutexis e na theōriacutea BERTI Enrico La natura del bello nel pensiero di Aristotele Disponiacutevel em lt httpswwwyoutubecomwatchv=coiO_Fpo6z4gt

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Do homem bom tambeacutem eacute verdadeiro dizer que pratica muitos atos no interesse de seus amigos e de sua paacutetria e se necessaacuterio daacute a vida por eles Com efeito um tal homem de bom grado renuncia agrave riqueza agraves honras e em geral aos bens que satildeo objetos de competiccedilatildeo ganhando para si a nobreza [τὸ καλόν]107

A partir deste contexto entendemos a razatildeo por que a

grande virtude do poliacutetico seraacute sempre a de patrocinar e favorecer a amizade entre os homens pois dela todas as virtudes inclusive a justiccedila mdash que ela aperfeiccediloa mdash parecem dimanar fluir para a poacutelis A experiecircncia da amizade faz a poacutelis ganhar em altruiacutesmo unidade e estabilidade

[] se a vida eacute desejaacutevel e particularmente desejaacutevel para os homens bons porque para eles a existecircncia eacute boa e apraziacutevel [] e se o homem virtuoso eacute para o amigo tal como eacute para si proacuteprio (porquanto o amigo eacute um outro ldquoeurdquo) mdash se tudo isso eacute verdadeiro assim como o seu proacuteprio ser eacute desejaacutevel para cada homem igualmente (ou quase igualmente) o eacute o de seu amigo108

A amizade tambeacutem parece manter unidos os Estados e dir-se-ia que os legisladores tecircm mais amor agrave amizade do que agrave justiccedila pois aquilo a que visam acima tudo eacute agrave unanimidade que tem pontos de semelhanccedila com a amizade e repelem o facciosismo como se fosse o seu maior inimigo E quando os homens satildeo amigos natildeo necessitam de justiccedila ao passo que os justos necessitam tambeacutem da amizade e considera-se que a mais genuiacutena forma de justiccedila eacute uma espeacutecie de amizade109

Natildeo estamos mdash eacute claro mdash a identificar ou confundir

amizade e justiccedila mas a ressaltar a confluecircncia das duas Na verdade a justiccedila eacute a principal das virtudes eacuteticas porque o oacutetimo eacute aquele que exerce a virtude natildeo soacute em relaccedilatildeo a si mesmo mas em relaccedilatildeo a outrem e aacuterdua eacute esta funccedilatildeo ldquo[] o melhor natildeo eacute o

107 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 8 1169 a 15-20 108 Idem Ibidem IX 9 1170 b 5 109 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 20-25

112 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que exerce a sua virtude para consigo mesmo mas para com um outro pois que difiacutecil tarefa eacute essardquo110 O que ocorre eacute que a amizade intensifica a justiccedila pelo que haacute uma sincronia entre elas

E as imposiccedilotildees da justiccedila tambeacutem parecem aumentar com a intensidade da amizade o que implica que a amizade e a justiccedila existem entre as mesmas pessoas e satildeo coexistensivas111

A amizade em suma natildeo tolhe mas aperfeiccediloa a justiccedila

Mais ainda ldquo[] considera-se que a mais genuiacutena forma de justiccedila eacute uma espeacutecie de amizaderdquo112 Desta sorte praticar e promover habitualmente e da melhor forma possiacutevel a sadia convivecircncia entre os homens mdash que culmina na amizade mdash pela qual descobrimos nominamos e experienciamos juntos o beneacutefico e o prejudicial eacute agir com aretḗ eacute ser virtuoso

Chega o momento de darmos novos contornos ao conceito-chave da Eacutetica o de eydaimoniacutea 28 CONTORNOS ACERCA DO CONCEITO DE EYDAIMONIacuteA

A felicidade numa primeira acepccedilatildeo consiste no exerciacutecio dos atos das virtudes numa atividade portanto Neste sentido eacute claro que sendo virtuoso o homem pode ser feliz hic et nunc Contudo a εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) mdash termo a rigor intraduziacutevel mdash fala stricto sensu do exerciacutecio de toda uma vida que inobstante eventuais vicissitudes e infortuacutenios foi habitualmente bem vivida digna de ser vivida porque se desabrochou e se desdobra como uma constante e duradoura atividade das virtudes Aliaacutes como pontuamos acima o proacuteprio termo eneacutergeia evoca uma atividade que se conserva que se manteacutem Neste sentido eacute que a eydaimoniacutea

110 Idem Ibidem V 1 1130 a 5 111 Idem Ibidem VIII 9 1160 a 5 112 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 25

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pode ser tomada como o conjunto dinacircmico de toda uma vida Aristoacuteteles diz acerca da condiccedilatildeo da eydaimoniacutea

Porque como dissemos haacute mister natildeo soacute de uma virtude completa mas tambeacutem de uma vida completa jaacute que muitas mudanccedilas ocorrem na vida e eventualidades de toda sorte o mais proacutespero pode ser viacutetima de grandes infortuacutenios na velhice como se conta de Priacuteamo no Ciclo Troiano e a quem experimentou tais vicissitudes e terminou miseravelmente ningueacutem chama feliz113

Portanto se a felicidade eacute uma atividade a vida feliz por

assim dizer eacute a vida vivida em sua completude Aliaacutes aqui reside a razatildeo uacuteltima de o termo que traduz felicidade ser exatamente εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) Na verdade em grego εὖ (eỹ) significa bom e δαίμων (daiacutemōn) natildeo diz simplesmente divindade mas tambeacutem fortuna114 De modo que εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) nomina uma ldquoboa fortunardquo Cumpre poreacutem termos presente que definir a felicidade como ldquoboa fortunardquo natildeo significa confiaacute-la ao acaso ou confundi-la com uma vida de excessos115 Significa isto sim saber que para aleacutem das virtudes tambeacutem a fortuna corrobora para nos dar as condiccedilotildees que nos permitem realizar os atos virtuosos sem os quais natildeo podemos ser ou permanecer felizes116 Neste sentido

113 Idem Ibidem I 9 1100 a 5 114 O termo εὖ [eỹ] eacute uma preposiccedilatildeo etimoloacutegica e quer dizer bem bom conveniente agradaacutevel Faz parte da maioria das composiccedilotildees terminoloacutegicas em grego (FREIRE Op Cit p 267 BAILLY εὖ [eỹ] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 369 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt CHANTRAINE ἐύς [eyacutes] In Op Cit p 246) Conjugada com o termo δαίμον (daiacutemon) que significa ldquopotecircncia divina [] deus destino [] a fortuna o acasordquo forma a palavra eydaimoniacutea (BAILLY δαίμον [daiacutemon] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 149 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt CHANTRAINE δαίμον [daiacutemon] In Op Cit p 246) 115 O proacuteprio Aristoacuteteles pondera ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VII 13 1153 b 20-25 ldquoE pelo fato de necessitarmos da fortuna [τύχης] como de outras coisas alguns identificam a boa fortuna [εὺτυχία] com a felicidade [εὺδαίμονιᾳ] mas sucede que a proacutepria boa fortuna quando em excesso eacute um obstaacuteculo e talvez jaacute natildeo mereccedila o nome de boa fortuna [εὺτυχίαν] pois que o seu limite eacute fixado com referecircncia agrave felicidade [εὺδαίμονιαν]rdquo 116 Idem Ibidem I 10 1101 a 15-20 ldquoEm verdade o futuro nos eacute impenetraacutevel enquanto a felicidade afirmamos noacutes eacute um fim e algo de final a todos os respeitos Sendo assim chamaremos felizes

114 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino talvez seja mais correto entender o daiacutemon de eydaimoniacutea na acepccedilatildeo socraacutetica soacute que em vez de identificar este daiacutemon com uma espeacutecie de ldquoanjo da guardardquo como parece fazer Platatildeo melhor seraacute identificaacute-lo com a froacutenēsis aristoteacutelica que a todo momento parece ldquoconspirarrdquo com as condiccedilotildees exteriores mdash dadas pela fortuna mdash a fim de que tudo concorra para o bem do froacutenimos (φρόνιμος) ldquo[] sem virtude [ἀρετῆςaretēs] natildeo eacute faacutecil carregar com elegacircncia os bens da fortuna [εὐτυχήματαeytykhḗmata]rdquo117 Nas passagens que se seguem na primeira Fermani coleta as principais interpretaccedilotildees semacircnticas de daiacutemon e eydaimoniacutea tentando sintetizaacute-las na segunda Reeve arrazoa qual delas parece estar mais proacutexima de Aristoacuteteles

Entatildeo podemos dizer que o daiacutemon pode ser visto de dois modos 1) como aquele que atribui um destino que estabelece uma sorte 2) como o proacuteprio destino ou seja simultaneamente como o guia do ser humano e como o proacuteprio ser humano no maacuteximo de suas pontecialidades (visto que ldquoa funccedilatildeo daiacutemon eacute ser o portador da divindade potencial do homemrdquo) ldquoEacutethos anthroacutepoi daiacutemonrdquo ldquoa iacutendole eacute o daiacutemon iacutentimo do homemrdquo escreveu Heraacuteclito []rdquo Nesse sentido somente o homem que cultivou seu daiacutemon tem a possibilidade de atingir a eudaimoniacutea isto eacute de encontrar a proacutepria plenitude a realizaccedilatildeo de seu proacuteprio teacutelos Em outras palavras na eudaimoniacutea a vida se reencontrou o daiacutemon identificou a sua morada o homem finalmente estaacute em sua proacutepria casa118

Etimologicamente a palavra eudaimoniacutea significa ter um bom (eu) espiacuterito (daimocircn) um anjo da guarda poderiacuteamos dizer Assim Soacutecrates usa o termo to daimonion para se referir agrave voz ou sinal que o continha se ele estivesse prestes a fazer algo natildeo

agravequeles dentre os seres humanos vivos em que essas condiccedilotildees [condiccedilotildees exteriores] se realizem ou estejam destinadas a realizar-se mdash mas homens felizesrdquo Idem Ibidem X 7 1177 b 20-25 ldquo[] segue-se que essa seraacute a felicidade completa do homem se ele tiver uma existecircncia completa quanto agrave duraccedilatildeo []rdquo 117 Idem Ibidem IV 3 1124 a 30 118 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 44

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aconselhaacutevel (Platatildeo Apologia 40a) Aleacutem disso essa voz ou sinal eacute claramente distinto de sua proacutepria razatildeo ou consciecircncia uma vez que lhe daacute conselhos de natureza profeacutetica natildeo prudencial [] Aristoacuteteles tambeacutem localiza o entendimento divino na cabeccedila e faz a analogia das raiacutezes de uma planta com a cabeccedila de um animal de modo que a proacutepria planta torna-se um animal de cabeccedila para baixo [] Mas nosso entendimento ainda que divino em origem e amado pelos deuses natildeo eacute profeacutetico embora possa nos ajudar a planejar o futuro []119

De modo que a rigor soacute no final da vida o homem vai

poder dizer mdash com certeza e propriedade mdash que eacute eydaiacutemōn (εὐδαίμων)

Mas eacute preciso ajuntar ldquonuma vida completardquo Porquanto uma andorinha natildeo faz veratildeo nem um dia tampouco e da mesma forma um dia ou um breve espaccedilo de tempo natildeo faz um homem feliz e venturoso120

Vegetti referindo-se agrave passagem na qual Aristoacuteteles afirma

que nem uma andorinha nem um dia fazem veratildeo adota esta acepccedilatildeo de eydaimoniacutea como uma vida tomada em sua inteireza

Pode-se falar de felicidade diz Aristoacuteteles somente se ela natildeo eacute condiccedilatildeo esporaacutedica mas ocupa todo o arco de uma vida mesmo se natildeo eacute necessaacuterio esperar a morte []121

Neste mesmo sentido Enrico Berti ao falar da felicidade

eacutetica em Aristoacuteteles a define distinguindo-a da ldquofelicidade sobrenaturalrdquo mdash como a das religiotildees monoteiacutestas mdash e da ldquofelicidade hedonistardquo e fugaz como as atuais ldquoA felicidade eacute uma caracteriacutestica da vida humana isto eacute da vida vivida neste mundo

119 REEVE Op Cit pp 261-262 120 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 7 1098 a 15 121 VEGETTI Op Cit p 213

116 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino com alma e corpo e da vida toda isto eacute natildeo soacute de uma de suas fasesrdquo122

Importa observarmos ainda que a felicidade natildeo consiste numa vida isenta de intempeacuteries Antes Aristoacuteteles adverte que a vida virtuosa requer lutas reclama persistecircncia e perseveranccedila ldquoPensa-se que a vida feliz eacute virtuosa Ora uma vida virtuosa exige esforccedilo e natildeo consiste em divertimentordquo 123 Haacute passagens inclusive em que o Estagirita assevera que se bem recebidos os reveses podem calibrar o nosso caraacuteter moldaacute-lo os infortuacutenios quando acolhidos da forma devida talham a nossa vida melhor dispondo-a para as virtudes Os incidentes natildeo interrompem ao contraacuterio cifram a nossa felicidade

Se as atividades satildeo como dissemos o que daacute caraacuteter agrave vida nenhum homem feliz pode tornar-se desgraccedilado porquanto jamais praticaraacute atos odiosos e vis Com efeito o homem verdadeiramente bom e saacutebio suporta com dignidade pensamos noacutes todas as contingecircncias da vida e sempre tira o maior proveito das circunstacircncias como um general que faz o melhor uso possiacutevel do exeacutercito sob o seu comando ou um bom sapateiro faz os melhores calccedilados com o couro que lhe datildeo e do mesmo modo com todos os outros artiacutefices E se assim eacute o homem feliz nunca pode tornar-se desgraccedilado []124

E tampouco seraacute ele versaacutetil e mutaacutevel pois nem se deixaraacute desviar facilmente do seu venturoso estado por quaisquer desventuras comuns mas somente por muitas e grandes []125

Todavia natildeo se pode deixar de notar como se vecirc pela

desdita de Priacuteamo que embora a felicidade comporte tambeacutem desalentos podem ocorrer desventuras tatildeo intensas que tornem

122 BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 288 123 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 7 1177 a Idem Ibidem X 6 1176 b 25 ldquoA felicidade natildeo reside por conseguinte na recreaccedilatildeo []rdquo 124 Idem Ibidem I 10 1100 b 30-35 a 1101 a 5 125 Idem Ibidem I 10 1101 a 10

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impossiacuteveis as condiccedilotildees necessaacuterias para que ela aconteccedila inclusive no acircmbito teoacuterico Na verdade eacute por reconhecer as disposiccedilotildees da natureza humana na sua integridade que Aristoacuteteles admite a necessidade de uma seacuterie de bens exteriores natildeo em excesso mas em boa dosagem para se alcanccedilar a felicidade Em outros termos eacute por isso como antes jaacute observamos que o Estagirita insiste no papel da fortuna para a consecuccedilatildeo da felicidade

Mas o homem feliz como homem que eacute tambeacutem necessita de prosperidade exterior porquanto a nossa natureza natildeo basta a si mesma para os fins da contemplaccedilatildeo nosso corpo tambeacutem precisa gozar de sauacutede de ser alimentado e cuidado Natildeo se pense todavia que o homem para ser feliz necessite de muitas ou de grandes coisas soacute porque natildeo pode ser supremamente feliz sem bens exteriores A auto-suficiecircncia e a accedilatildeo natildeo implicam excesso e podemos praticar atos nobres sem sermos donos da terra e do mar126

[] e haacute coisas cuja ausecircncia empana a felicidade como a nobreza de nascimento uma boa descendecircncia a beleza Com efeito o homem de muito feia aparecircncia ou mal-nascido ou solitaacuterio e sem filhos natildeo tem muitas probabilidades de ser feliz e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigos127

Tambeacutem Vegetti ao se deparar com as passagens acima

citadas aponta para o importante papel da fortuna para a persecuccedilatildeo da felicidade

Poreacutem eacute certo que a felicidade precisa de alguma dose de boa sorte e como precisa de condiccedilotildees e bens externos em razatildeo da sua dimensatildeo intrinsecamente puacuteblica ativa e temporal128

126 Idem Ibidem X 8 1178 b 30-35 - 1179 a 127 Idem Ibidem I 8 1009 b 5 128 VEGETTI Op Cit p 214

118 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Natildeo nos podemos esquecer ademais da complexa relaccedilatildeo entre hedonḗ e eydaimoniacutea em Aristoacuteteles Na Academia de Platatildeo da qual Aristoacuteteles fez parte durante vinte anos aconteceu um debate acalorado sobre o prazer Houve quem o defendesse irrestritamente e quem o rejeitasse sem mais Aristoacuteteles matiza o tema Para ele o prazer segue a atualizaccedilatildeo de uma tendecircncia da nossa natureza seja ela qual for129 Ora quando esta atualizaccedilatildeo eacute feita consoante uma escolha prudente ela eacute boa quando natildeo eacute ruim Haacute mesmo aqueles prazeres que satildeo neutros130 De maneira que o prazer quando congecircnere aos atos de virtude natildeo soacute natildeo os impede como os aperfeiccediloa e intensifica131 Entre estes prazeres tambeacutem os corporais natildeo devem ser rechaccedilados Debalde tentam argumentar os que defendem que o prazer corporal eacute um mal Basta pensar nas dores que se opotildeem aos prazeres do corpo Satildeo estas maacutes Se sim o contraacuterio delas a saber o prazer eacute bom porque o contraacuterio do mau eacute o bom132 Por isso malgrado haja prazeres nocivos quem afirma que um homem pode ser feliz mesmo em meio a dores atrozes natildeo sabe o que diz

129 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 4 1174 b 30 ldquoNa medida pois em que tanto o objeto inteligiacutevel ou sensiacutevel como a faculdade discriminadora ou contemplativa forem tais como conveacutem a atividade seraacute acompanhada de prazer [ἡδονή] []rdquo 130 Idem Ibidem X 5 1175 b 20-30 ldquoOra assim como as atividades diferem com respeito agrave bondade ou maldade e umas satildeo dignas de escolha outras devem ser evitadas e outras ainda satildeo neutras o mesmo sucede com os prazeres [ἡδοναί] pois cada atividade tem o seu prazer [ἡδονή] proacuteprio O prazer proacuteprio a uma atividade digna eacute bom e o prazer proacuteprio a uma atividade indigna eacute mau []rdquo 131 Idem Ibidem VII 12 1153 a 20 ldquoNem a sabedoria praacutetica [φρονήσει] nem qualquer estado do ser eacute impedido pelo prazer [ἡδονή] que ele proporciona Satildeo os prazeres estranhos que tecircm um efeito impeditivo visto que os prazeres advindos do pensar e do aprender nos fazem pensar e aprender ainda maisrdquo Idem Ibidem X 5 1175 a 35 ldquoE assim os prazeres [ἡδοναί] intensificam as atividades e o que intensifica uma coisa lhe eacute congecircnere mas coisas diferentes em espeacutecie tecircm propriedades diferentes em espeacuteciesrdquo 132 Idem Ibidem VII 14 1154 a 5-10 ldquoCom respeito aos prazeres corporais os que dizem que alguns prazeres satildeo muito dignos de escolha a saber os nobres poreacutem natildeo os corporais isto eacute aqueles a que se dedica o homem intemperante devem examinar por que nesse caso as dores contraacuterias satildeo maacutes Porquanto o contraacuterio do mau eacute bomrdquo

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Os que dizem que o homem torturado no cavalete ou aquele que sofre grandes infortuacutenios eacute feliz se for bom estatildeo disparatando [οὐθὲν λέγουσιν] quer falem a seacuterio quer natildeo133

Agreguemos outro elemento essencial agrave felicidade humana

em Aristoacuteteles Trata-se do que noacutes modernos chamamos ldquoconsciecircnciardquo (conscientia) Aristoacuteteles usa o termo aiacutesthēsis (αἴσθησις) que numa primeira acepccedilatildeo significa sensaccedilatildeo percepccedilatildeo Poreacutem pelo contexto natildeo haacute como natildeo notar certa proximidade com o termo latino conscientia De toda forma para Aristoacuteteles a felicidade consuma-se quando o homem tem a percepccedilatildeo ou toma ldquoconsciecircnciardquo de que age com correccedilatildeo de que eacute bom ldquoOra jaacute vimos que o seu ser eacute desejaacutevel porque ele percebe a sua proacutepria bondade e uma tal percepccedilatildeo eacute agradaacutevel em si mesmardquo134 Tal movimento integra-o tornando-o por assim dizer amigo de si mesmo Natildeo pode haver homem feliz sem uma ldquoconsciecircnciardquo conciliada ou reconciliada com as suas proacuteprias escolhas A busca desta integraccedilatildeo eacute pois uma exortaccedilatildeo aristoteacutelica repisada por seus comentadores Algumas passagens satildeo emblemaacuteticas As duas primeiras citadas abaixo satildeo da Eacutetica na seguinte Reeve mostra que a eydaimoniacutea envolve o homem todo natildeo podendo ocorrer por exemplo se houver o reato da consciecircncia

133 Idem Ibidem VII 13 1153 b 15-20 Tatildeo conatural o prazer eacute agrave natureza humana que Aristoacuteteles chega a dizer que algueacutem se ameaccedilado a ser submetido a uma dor tenaz e atrozmente desumana pratica uma accedilatildeo que natildeo deveria para natildeo a sofrer embora natildeo seja digno de louvor eacute digno de indulgecircncia Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Mariacutea Arauacutejo y Juliaacuten Mariacuteas Madrid Instituto de Estudios Politicos 1970 (Ed Biliacutengue) III 1 1110 a 25 ldquoEn algunos casos si bien no se tributan alabalizas se tiene indulgencia cuando uno hace lo que no debe sometido a una presioacuten que rebasa la naturaleza humana y que nadie podria soportarrdquo ldquoEm alguns casos se bem que natildeo se tributem louvores tem-se indulgecircncia quando algueacutem faz o que natildeo deve submetido a uma pressatildeo que ultrapassa a natureza humana e que ningueacutem poderia suportarrdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 134 Idem Ibidem IX 9 1170 b 5-10 Alhures Aristoacuteteles vale-se dos termos syacutenesis [σύνεσις] e syneiacutedesis [συνείδεσις]

120 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

[] devemos envidar todos os esforccedilos para evitar a maldade e procurar ser bons porque soacute assim podemos ser amigos de noacutes mesmos e dos outros135

Portanto o homem bom deve ser amigo de si mesmo (pois ele proacuteprio lucraraacute com a praacutetica de atos nobres ao mesmo tempo que beneficiaraacute os seus semelhantes) []136

Em alguns aspectos portanto a eudaimonia aristoteacutelica poderia ser mais bem traduzida como ldquobem-estarrdquo ou ldquoprosperidaderdquo mdash embora pareccedila estranho se preocupar em esperar ateacute que a pessoa morra para poder dizer se ela era proacutespera Uma vantagem de usar ldquofelicidaderdquo em vez dessas alternativas de qualquer modo eacute precisamente que ela ressalta a importacircncia de um estado emocional favoraacutevel mdash de endosso e envolvimento mdash para a vida eudacircimon O necessaacuterio aleacutem disso eacute que aquilo que evoca esse estado emocional seja o melhor bem para um ser humano mdash um viver ativo de acordo com a virtude em que o estado seja realizado e expresso137

Fermani afinal conclui que desde a sua semacircntica o

termo eydaimoniacutea justamente porque implica integraccedilatildeo designa stricto sensu uma experiecircncia que ata a vida toda

[] Assim em toda eudaimoniacutea se desvela o percurso originaacuterio que toda existecircncia empreende para se unir a si mesma o sentido daquele complexo e cansativo itineraacuterio que todo ser humano deve percorrer na direccedilatildeo da conquista plena de si da realizaccedilatildeo de seu proacuteprio daiacutemon ou seja literalmente da proacutepria eu-daiacutemonia O que parece remeter a outro aspecto fundamental da eudaimoniacutea aquele da duraccedilatildeo da estabilidade da permanecircncia todas caracteriacutesticas que faltam agraves outras palavras com as quais os gregos denominaram a felicidade Um indiviacuteduo pode ser oacutelbios e eutykheacutes por breves momentos mas eacute eudaiacutemon por

135 Idem Ibidem IX 4 1166 b 25 136 Idem Ibidem IX 8 1169 a 10 137 REEVE Op Cit p 264

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toda a vida como emerge da tradiccedilatildeo filosoacutefica e literaacuteria ateacute o final do seacuteculo V a C138

Como pudemos observar jaacute nas citaccedilotildees acima este tornar-

se amigo de si mesmo leva-nos agravequele ciacuterculo virtuoso segundo o qual o homem feliz porque amigo de si mesmo consegue temperar todas as suas accedilotildees de sorte que passa a ser beneacutefico e natildeo prejudicial aos outros Em uma palavra o homem que vive virtuosamente na poacutelis eacute aquele que sabe governar politicamente antes de mais os seus proacuteprios apetites segundo o dito da Poliacutetica ldquoA alma governa o corpo com autoridade de senhor enquanto a inteligecircncia exerce uma autoridade poliacutetica ou reacutegia sobre o apetiterdquo139 Esta eacute a felicidade eacutetica que Aristoacuteteles prevecirc ela eacute deveras inferior agrave especulativa mas nem por isso deixa de ser uma forma de eydaimoniacutea aliaacutes eacute a eydaimoniacutea propriamente humana

Mas em grau secundaacuterio [δευτέρωςdeuteacuterōs] a vida de acordo com a outra espeacutecie de virtude eacute feliz porque as atividades que concordam com esta condizem com a nossa condiccedilatildeo humana [ἀνθρωπικαίanthrōpikaiacute]140

Outrossim Aristoacuteteles apresenta a felicidade como uma

realidade fundamentalmente polimorfa Os que tecircm temperamento especulativo seratildeo felizes especulando aqueles cujos humores convidam agrave vivecircncia eacutetica devem persegui-la ldquo[] e para cada homem a atividade [ἐνέργεια] que concorda com a sua disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξις] eacute a mais desejaacutevel []rdquo141 E na verdade por mais

138 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 45 139 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 5 1254 b 5 140 Idem Eacutetica a Nicocircmaco X 8 1178 a 5-10 141 Idem Ibidem X 6 1176 b 25 Para uma discussatildeo sobre os diversos tipos de felicidade em Aristoacuteteles vide o artigo de Fermani muito bem embasado por uma farta documentaccedilatildeo das fontes e dos comentadores contemporacircneos mais abalizados FERMANI Arianna Aristoacuteteles e a felicidade Flexibilidade e versatilidade existencial In MIGLIORI Maurizio FERMANI Arianna [Orgs] Platatildeo

122 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que a vida especulativa seja εὐδαιμονέστατος [eydaimoneacutestatos] para aquele que natildeo eacute chamado agrave especulaccedilatildeo a menos que queira negar a si mesmo o que natildeo eacute proacuteprio do virtuoso deve escolher outro caminho para ser eydaiacutemon

Porquanto a existecircncia eacute boa [ἀγαθόν] para o homem virtuoso [σπουδαίῳ] e cada um deseja para si o que eacute bom ao passo que ningueacutem desejaria possuir o mundo inteiro se para tanto lhe fosse preciso tornar-se uma outra pessoa [] Tal homem soacute deseja essas coisas com a condiccedilatildeo de continuar sendo o que eacute142

A eacutetica do Estagirita noacutes a enxergamos como a ciecircncia que

nos ensina ldquoa arte de viverrdquo melhor visualizamo-la como a ciecircncia que estuda a ldquoarte de saber viver bemrdquo de bem viver Berti vecirc a felicidade mdash coroa da eacutetica em Aristoacuteteles mdash ldquo[] como uma plenitude (fulfilment) plena realizaccedilatildeo de si lsquoflorescimento de todas as capacidades humanasrsquo vida florescenterdquo143

Procuremos agora entender mais de perto a forma de racionalidade da eacutetica de Aristoacuteteles

e Aristoacuteteles Dialeacutetica e loacutegica Trad Ivone C Benedetti Rev Sandra Garcia Custoacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2012 pp 126-171 142 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 4 1166 a 15-20 143 BERTI Aristoacuteteles no seacuteculo XX p 275 NATALI Carlo Aristoacuteteles Trad Maria da Graccedila Gomes de Pina Rev Tarsila Donaacute Iranildo Bezerra Lopes e Leidson de Farias Barros Satildeo Paulo Paulus 2016 pp 277-278 ldquoAristoacuteteles entende por lsquofelicidadersquo uma condiccedilatildeo objetiva do homem (I 6) Essa natildeo consiste num estado de intensa alegria autoconsciente e prolongado por toda a existecircncia mas num estado de lsquoautorrealizaccedilatildeorsquo como na expressatildeo lsquouma vida realizadarsquo Com isso queremos dizer agir de modo oportuno sair-se bem na proacutepria atividade especiacutefica Portanto a felicidade eacute um modo de estar em atividade e as suas componentes satildeo as accedilotildees humanas lsquosegundo a virtudersquordquo

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29 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA CIEcircNCIA EacuteTICA 291 FROacuteNĒSIS E EPISTḖMĒ

Antes de mais parece-nos necessaacuterio precisar o entorno no qual Aristoacuteteles pensa a sua filosofia praacutetica Para tanto importa observarmos que o Estagirita no livro VI da Eacutetica afirma que a alma possui por assim dizer duas partes ldquo[] a que concebe uma regra ou princiacutepio racional e a privada de razatildeordquo144 Em seguida subdivide a parte racional em teoacuterica e praacutetica ou seja ldquo[] uma pela qual contemplamos as coisas cujas causas determinantes satildeo invariaacuteveis e outra pela qual contemplamos as coisas variaacuteveisrdquo145 A parte da razatildeo teoacuterica possui trecircs haacutebitos a saber o noỹs (νοῦς) haacutebito (heacutexis) dos princiacutepios conhecidos intuitivamente 146 a epistḗmē (ἐπιστήμη) ou ciecircncia que eacute o haacutebito do raciociacutenio ou de silogizar (trata-se portanto do haacutebito demonstrativo 147) e a ldquosofiacuteardquo (σοφία) a qual eacute a aretḗ da razatildeo teoacuterica que consiste na conjugaccedilatildeo de conhecimento cientiacutefico com conhecimento intuitivo A sofiacutea resulta pois da combinaccedilatildeo de epistḗmē com noỹs

De quanto se disse resulta claramente que a sabedoria filosoacutefica eacute um conhecimento cientiacutefico combinado com a razatildeo intuitiva daquelas coisas que satildeo as mais elevadas por natureza Por isso dizemos que Anaxaacutegoras Tales e os homens semelhantes a eles possuem sabedoria filosoacutefica mas natildeo praacutetica quando os vemos ignorar o que lhes eacute vantajoso []148

144 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VI 1 1139 a 5 145 Idem Ibidem 146 Idem Ibidem VI 6 1141a 5 ldquo[] soacute resta uma alternativa que seja a razatildeo intuitiva que apreende os primeiros princiacutepiosrdquo 147 Idem Ibidem VI 3 1139 b 30-35 ldquoEm suma o conhecimento cientiacutefico eacute um estado que nos torna capazes de demonstrar []rdquo 148 Idem Ibidem VI 7 1141 b 1-5

124 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Na razatildeo praacutetica haacute a froacutenēsis (φρόησις) mdash aretḗ desta ordem mdash sabedoria praacutetica que consiste no haacutebito de bem deliberar acerca das coisas humanas (tagrave anthrṓpina) isto eacute de deliberar segundo o que eacute razoaacutevel para o bem viver em geral149 e a teacutekhnē (τέχνη) que eacute o haacutebito de produzir150 Como grande exemplo de um homem dotado de froacutenēsis Aristoacuteteles cita Peacutericles Foi Peacutericles um filoacutesofo Decerto que natildeo Poreacutem era dotado de prudecircncia poliacutetica porquanto tomava as decisotildees corretas151 Disso decorre que a filosofia praacutetica natildeo eacute a froacutenēsis mas uma forma de epistḗmē inscrita na pratildexis cuja consecuccedilatildeo se daacute pelo estabelecimento a partir dos fatos humanos dos princiacutepios praacuteticos e o raciociacutenio a partir deles Afirma Aristoacuteteles ldquoQue a sabedoria praacutetica [froacutenēsis] natildeo se identifica com o conhecimento cientiacutefico [epistḗmē] eacute evidente []rdquo152

A froacutenēsis enfim natildeo pode ser ciecircncia mdash ratificamos mdash porque ela versa sobre os meios tendo um conhecimento apenas

149 Idem Ibidem VI 7 1141 b 5-10 ldquoA sabedoria praacutetica [froacutenēsis] pelo contraacuterio versa sobre coisas humanas [τὰ ἀνθρώπιναtagrave anthrṓpina] e coisas que podem ser objeto de deliberaccedilatildeo pois dizemos que essa eacute acima de tudo a obra do homem dotado de sabedoria praacutetica deliberar bemrdquo Idem Ibidem VI 5 1140 a 25 ldquoOra julga-se que eacute cunho caracteriacutestico de um homem dotado de sabedoria praacutetica o poder deliberar bem sobre o que eacute bom e conveniente para ele natildeo sob um aspecto particular [] mas sobre aquelas coisas que contribuem para a vida boa em geralrdquo Aristoacuteteles chega a distinguir formas de froacutenēsis Ela pode ser exercida por exemplo no acircmbito poliacutetico por meio da correccedilatildeo das leis e dos decretos no acircmbito domeacutestico e no acircmbito pessoal A froacutenēsis pode consistir entatildeo no bom governo da cidade da casa e de si mesmo Idem Ibidem VI 8 1141 b 20-30 ldquoA sabedoria poliacutetica e a praacutetica satildeo a mesma disposiccedilatildeo mental mas sua essecircncia natildeo eacute a mesma Da sabedoria que diz respeito agrave cidade a sabedoria praacutetica que desempenha um papel controlador eacute a sabedoria legislativa enquanto a que se relaciona com os assuntos da cidade como particulares dentro do seu universal eacute conhecida pela denominaccedilatildeo geral de lsquosabedoria poliacuteticarsquo e se ocupa com a accedilatildeo e a deliberaccedilatildeo pois um decreto eacute algo a ser executado sob a forma de um ato individual [] A sabedoria praacutetica tambeacutem eacute identificada especialmente com aquela de suas formas que diz respeito ao proacuteprio homem ao indiviacuteduo e essa eacute conhecida pela denominaccedilatildeo geral de lsquosabedoria praacuteticarsquo Das outras espeacutecies uma eacute chamada administraccedilatildeo domeacutestica []rdquo 150 Idem Ibidem VI 4 1140 a 30 ldquoLogo como jaacute dissemos a arte eacute uma disposiccedilatildeo que se ocupa de produzir envolvendo o reto raciociacuteniordquo 151 Idem Ibidem VI 5 1140 b 10 ldquoDaiacute atribuirmos sabedoria praacutetica a Peacutericles e homens como ele porque percebem o que eacute bom para si mesmos e para os homens em geral pensamos que os homens dotados de tal capacidade satildeo bons administradores de casas e de Estadosrdquo 152 Idem Ibidem VI 9 1142 a 20

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espontacircneo do fim 153 Jaacute a epistḗmē politikḗ que Aristoacuteteles pretende fundar busca refletir sobre o teacutelos da vida eacutetica a saber a eydaimoniacutea Uma prova do que dissemos eacute que o Estagirita discrimina a peculiaridade desta ciecircncia Diferentemente da medicina onde o meacutedico que pratica eacute tambeacutem aquele que ensina a ēthikḗ pode ser ensinada por quem natildeo a vive Eacute o caso justamente dos sofistas Mas mesmo os sofistas natildeo a ensinam com retidatildeo pois a confundem com a retoacuterica ou com algo inferior Duas passagens exemplificam esta preocupaccedilatildeo de Aristoacuteteles

Ou haveraacute uma diferenccedila manifesta entre a estadiacutestica [πολιτικῆς] e as outras ciecircncias e artes Nas outras vemos que as mesmas pessoas as praticam e se oferecem para ensinaacute-las como por exemplo os meacutedicos e os pintores Mas enquanto os sofistas pretendem ensinar poliacutetica natildeo satildeo eles que a praticam e sim os poliacuteticos que parecem fazecirc-lo graccedilas a uma espeacutecie de habilidade ou experiecircncia [ἐμπειρίᾳ] e natildeo pelo raciociacutenio [διανοίᾳ]154

Mas aqueles sofistas que professam a arte parecem estar muito longe de ensinaacute-la Com efeito para exprimir-nos em termos gerais esses homens nem sequer sabem que espeacutecie de coisa ela eacute nem sobre o que versa De outro modo natildeo a teriam classificado como idecircntica agrave retoacuterica ou mesmo inferior a esta nem julgariam faacutecil legislar mediante uma compilaccedilatildeo das leis mais bem reputadas155

Pelas passagens acima citadas fica claro que Aristoacuteteles

reconhece que um eacute o poliacutetico (πολιτικόςpolitikoacutes) ou o prudente (φρόνιμοςfroacutenimos) e outro eacute o que reflete com detenccedila sobre a eacutetica Um diriacuteamos hoje eacute o homem eacutetico outro por exemplo eacute o

153 Idem Ibidem VI 12 1144 a 5-10 ldquoPor outro lado a obra de um homem soacute eacute perfeita quando estaacute de acordo com a sabedoria praacutetica [φρόνεσιν] e com a virtude moral [ὴθικὴν ἀρετὴν] esta faz com que seja reto o nosso propoacutesito [σκοπὸν] aquela [φρόνησις] com que escolhamos os devidos meiosrdquo 154 Idem Ibidem X 9 1180 b 30-35 a 1181 a 155 Idem Ibidem X 9 1181 a 1-15

126 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ldquoprofessor de eacuteticardquo Infelizmente as duas coisas natildeo satildeo idecircnticas e a ciecircncia pode existir sem a praacutetica Seja como for Aristoacuteteles natildeo concorda com o modo de proceder dos sofistas que acabam por negar agrave eacutetica o status de ciecircncia Em razatildeo disso o Estagirita opta por tomar um caminho proacuteprio na construccedilatildeo de uma epistḗmē politikḗ A Eacutetica a Nicocircmaco eacute apenas o primeiro passo neste caminho pois ela se encerra com um convite agrave poliacutetica [politikḗ]

Ora os nossos antecessores nos legaram sem exame este assunto da legislaccedilatildeo Por isso talvez convenha estudaacute-lo noacutes mesmos assim como a questatildeo da constituiccedilatildeo em geral a fim de completar da melhor maneira possiacutevel a nossa filosofia da natureza humana [ἀνθρώπεια φιλοσοφία] Em primeiro lugar pois se alguma coisa foi bem exposta em detalhe pelos pensadores que nos antecederam passemo-la em revista depois agrave luz das constituiccedilotildees que noacutes mesmos coligimos examinaremos que espeacutecies de influecircncias preservam e destroem os Estados que outras tecircm os mesmos efeitos sobre os tipos particulares de constituiccedilatildeo e a que causas [αἰτίας] se deve o fato de serem umas bem e outras mal aplicadas Apoacutes estudar essas coisas teremos uma perspectiva mais ampla dentro da qual talvez possamos distinguir qual eacute a melhor constituiccedilatildeo como deve ser ordenada cada uma e que leis e costumes lhe conveacutem utilizar a fim de ser a melhor possiacutevel156

Natildeo haacute como natildeo notar no passo acima que fecha a Eacutetica a

Nicocircmaco uma espeacutecie de ldquodiscurso do meacutetodordquo acerca do que o proacuteprio filoacutesofo denomina filosofia humana (ἀνθρώπεια φιλοσοφίαanthrṓpeia filosofiacutea) Mas pensemos a que Aristoacuteteles chama epistḗmē Talvez seja oportuno acompanhar o Estagirita pois para ele o saber comporta niacuteveis O primeiro eacute a percepccedilatildeo sensorial aiacutesthēsis (αἴσθησις) ou sensaccedilatildeo Trata-se do conhecimento que se tem quando da presenccedila da coisa ante os nossos sentidos maacutexime o da visatildeo ldquoDe fato eles amam as sensaccedilotildees por si mesmas independentemente da sua utilidade e

156 Idem Ibidem X 9 1181 b 10-20

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amam acima de tudo a sensaccedilatildeo da visatildeordquo157 O segundo niacutevel do conhecimento eacute o da recordaccedilatildeo que se daacute pela memoacuteria quando nos lembramos do objeto mesmo ele natildeo estando mais presente ldquoPor isso estes uacuteltimos satildeo mais inteligentes e mais aptos a aprender do que aqueles que natildeo tecircm capacidade de recordar [μνήμηmnḗmē]rdquo158 O terceiro nisto se distingue do segundo a saber diz respeito natildeo a esta ou agravequela memoacuteria mas sim em se possuir um conjunto de recordaccedilotildees sobre um mesmo objeto ldquoDe fato muitas recordaccedilotildees [πολλαὶ μνῆμαιpollaigrave mnẽmai] do mesmo objeto na memoacuteria chegam a constituir uma experiecircncia [ἐμπειρίαςempeiriacuteas] uacutenicardquo 159 Um niacutevel superior de conhecimento eacute a ciecircncia (epistḗmē) e a arte (teacutekhnē) O que Aristoacuteteles diz da teacutekhnē na passagem da Metafiacutesica que ora analisamos pode aplicar-se agrave epistḗmē Por isso tambeacutem a epistḗmē se daacute quando a partir da experiecircncia da empeiriacutea construiacutemos juiacutezos que valem para todos os casos Assim acontece por exemplo com o meacutedico que pela experiecircncia ajuiacuteza-se de que certa moleacutestia deve ser sempre tratada com certo tipo de medicamento 160 Para sermos mais precisos enquanto a experiecircncia consiste num saber o ldquoquecircrdquo num conhecer o fato individual a epistḗmē consiste num saber 0 ldquoporquecircrdquo isto eacute num conhecer a causa de aquele fato ocorrer sempre ou ldquoo mais das vezesrdquo Portanto a epistḗmē daacute-se propriamente quando do

157 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 908 a In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 158 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 980 a 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 159 ARISTOacuteTELES I 1 980 b 25 Metafiacutesica In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 160 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 981 a 5 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquoCom efeito os homens adquirem ciecircncia [επιστήμηepistḗmē] e arte [τέχνηteacutekhnē] por meio da experiecircncia A arte [τέχνη] se produz quando de muitas observaccedilotildees da experiecircncia forma-se um juiacutezo geral e uacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos semelhantesrdquo

128 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino conhecimento da causa Afirma Aristoacuteteles ldquoOs empiacutericos conhecem o puro dado de fato mas natildeo o seu porquecirc ao contraacuterio os outros conhecem o porquecirc e a causardquo161 Ora na uacuteltima passagem da Eacutetica (citada acima) o nosso filoacutesofo diz procurar a aitiacutea (αἰτία) do bem e do mal o ldquoporquecircrdquo do justo e do injusto Logo ele procura fazer uma epistḗmē ēthikḗ Pode-se mesmo dizer que esta epistḗmē ēthikḗ eacute uma forma de sapiecircncia (σοφίαsofiacutea) Com efeito a sofiacutea se distingue das outras ciecircncias porque especula acerca das causas primeiras162 Ora a ēthikḗ ou epistḗmē politikḗ especula sobre a causa uacuteltima das coisas humanas (tagrave anthrṓpina) Por outro lado deve-se ter o cuidado de ponderar que ldquo[] uma vez [que] o homem (ἄνθρωποςaacutenthrōpοs) natildeo eacute a melhor coisa do mundordquo 163 a sofiacutea das coisas humanas (tagrave anthrṓpina) seraacute sempre uma sabedoria relativa

Mas como chegamos agrave ēthikḗ enquanto epistḗmē politikḗ 292 A EPISTḖMĒ ĒTHIKḖ ENQUANTO EPISTḖMĒ POLITIKḖ

Diziacuteamos acima que a virtude eacutetica consiste no justo meio (mesoacutetēs) entre o excesso e a falta Ora este meacutetron este loacutegos encontra-se encarnado no froacutenimos no spoydaĩos (σπουδαῖος) Destarte para Aristoacuteteles quando se quer fazer uma filosofia humana (anthroacutepeia filosofiacutea) deve-se comeccedilar olhando natildeo para Deus ou para uma Revelaccedilatildeo divina mas justamente para as coisas humanas (tagrave anthrṓpina) Seratildeo os ditos e feitos do froacutenimos o objeto de reflexatildeo desta ciecircncia Em outros termos uma ciecircncia

161 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 981 a 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 162 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 5-10 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquoDo que foi dito resulta que o nome do objeto de nossa investigaccedilatildeo refere-se a uma uacutenica ciecircncia esta deve especular [θεωρητικήνtheōrētikeacuten] sobre os princiacutepios primeiros [πρώτων ἀρχῶνproacutetōn arkhotilden] e as causas [αἴτιῶνaiacutetiȭn] pois o bem e o fim das coisas eacute uma causardquo 163 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VI 7 1141 a 20

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dos biacuteon praacutexeōn teraacute de principiar dos eacutendoxa (ἔνδοξα)164 vale dizer daquelas coisas que satildeo ditas por todos e vividas pelo froacutenimos importa refletir sobre elas mas natildeo soacute sobre elas senatildeo tambeacutem sobre os ditos dos filoacutesofos a fim de transformaacute-los em epistḗmē mediante uma argumentaccedilatildeo dialeacutetica165 Aristoacuteteles natildeo deixa de recorrer aos eacutendoxa pois segundo ele natildeo pode haver consenso duradouro entre teses conflitantes uma vez que soacute a verdade concorda com a verdade

Haacute quem objete a isso dizendo que o fim visado por todas as coisas natildeo eacute necessariamente bom mas podemos estar certos de que tais pessoas natildeo fazem mais do que disparatar [οὐθὲν λέγουσιν = dizer coisa sem sentido] Porquanto noacutes dizemos que aquilo que todos pensam eacute a verdade e o homem que atacar essa crenccedila natildeo teraacute outra coisa mais digna de creacutedito para sustentar em lugar dela166

Devemos consideraacute-lo no entanto natildeo soacute agrave luz da nossa consideraccedilatildeo mas tambeacutem do que a seu respeito se costuma dizer [λεγομένων] pois com uma opiniatildeo verdadeira [ἀληθεῖ] todos os dados se harmonizam mas com uma opiniatildeo falsa [ψευδεῖ] os fatos natildeo tardam a entrar em conflito [διαφωνεῖ]167

Ora jaacute que o froacutenimos eacute o ldquolaboratoacuteriordquo do filoacutesofo praacutetico

conveacutem determo-nos um momento nele Dentro desta perspectiva faz sentido a questatildeo de que modo o loacutegos eacute exercido no acircmbito da razatildeo praacutetica Como o froacutenimos estabelece o justo meio

164 Um artigo de Berti pode ser consultado com proveito para um aprofundamento acerca dos ἔνδοξα BERTI Enrico O valor epistemoloacutegico dos ἔνδοξα segundo Aristoacuteteles In BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos I Epistemologia loacutegica e dialeacutetica Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Rev Renato Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 pp 370-387 165 Acerca do uso cientiacutefico da dialeacutetica na Eacutetica de Aristoacuteteles vide o artigo de Berti acompanhado de uma bibliografia autorizada BERTI Enrico O uso cientiacutefico da dialeacutetica de Aristoacuteteles In BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos I Epistemologia loacutegica e dialeacutetica Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Rev Renato Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 pp 312-330 166 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 2 1172 b 35 e 1173 [O itaacutelico eacute nosso] 167 Idem Ibidem I 8 1098 b 10 [O itaacutelico eacute nosso]

130 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino (μεσότηςmesoacutetēs) em suas accedilotildees Precisamente pelo loacutegos Mas atentemos para o fato de o loacutegos de Aristoacuteteles natildeo ser uma coisa mecacircnica Com efeito o justo meio natildeo eacute o mesmo para todos os homens Um exemplo bem simples a nutriccedilatildeo O justo meio entre o excesso e a falta de nutriccedilatildeo para um atleta certamente natildeo seraacute o mesmo que para um franzino em desenvolvimento Eacute neste sentido que a razatildeo deve intervir para ponderar sobre as diferentes circunstacircncias Outrossim natildeo nos devemos esquecer de que o justo meio eacute estabelecido em relaccedilatildeo a noacutes Dito doutra forma quanto ao objeto seis seraacute sempre o justo meio entre dez e dois pois a distacircncia entre ambos eacute quatro Mas isso eacute algo ldquoautomaacuteticordquo Nas coisas da vida certa quantidade de alimento pode ser razoaacutevel para um franzino mas natildeo para um atleta

Por meio-termo no objeto entendo aquilo que eacute equumlidistante de ambos os extremos e que eacute um soacute e o mesmo para todos os homens e por meio-termo relativamente a noacutes o que natildeo eacute nem demasiado nem demasiadamente pouco mdash e este natildeo eacute um soacute e o mesmo para todos Por exemplo se dez eacute demais e dois eacute pouco seis eacute o meio-termo considerado em funccedilatildeo do objeto porque excede e eacute excedido por uma quantidade igual esse nuacutemero eacute intermediaacuterio de acordo com uma proporccedilatildeo aritmeacutetica Mas o meio-termo relativamente a noacutes natildeo deve ser considerado assim se dez libras eacute demais para uma determinada pessoa comer e duas libras eacute demasiadamente pouco natildeo se segue daiacute que o treinador prescreveraacute seis libras porque isso tambeacutem eacute talvez demasiado para a pessoa que deve comecirc-lo ou demasiadamente pouco mdash demasiadamente pouco para Milo e demasiado para o atleta principiamente O mesmo se aplica agrave corrida e agrave luta Assim um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta buscando o meio-termo e escolhendo-o mdash o meio-termo natildeo no objeto mas relativamente a noacutes168

No uacuteltimo seacuteculo muito se questionou se Aristoacuteteles

conseguiu com esta forma de ldquopesquisa de campordquo fundamentar a

168 Idem Ibidem II 6 1106 a 25-35 ndash 1106 b 5

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eacutetica enquanto epistḗmē A ideia de que o Estagirita termina na froacutenēsis e de que esta natildeo eacute uma epistḗmē mas uma espeacutecie de sagacidade ou sensatez parece ser a interpretaccedilatildeo preponderante Os que defendem esta posiccedilatildeo frisam que olhando para o froacutenimos natildeo se pode deduzir dele nenhuma regra ou princiacutepio moral mas tatildeo somente decisotildees que dizem respeito a circunstacircncias irredutivelmente individuais 169 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo envolvermo-nos nesta questatildeo Importa-nos entender somente como Aristoacuteteles pretendeu demonstrar que a eacutetica eacute uma forma de epistḗmē Se esta fundamentaccedilatildeo eacute vaacutelida para outras correntes natildeo eacute da nossa alccedilada tratar aqui A bem dizer seria anacrocircnico esperar que Aristoacuteteles previsse todas as objeccedilotildees e as respondesse jaacute que a eacutetica se aperfeiccediloa com o tempo como o proacuteprio Aristoacuteteles atesta em passagem jaacute citada Tentemos uma vez mais apenas seguir o Filoacutesofo

Afirmamos acima que a eacutetica enquanto epistḗmē de certa forma fundamenta-se no froacutenimos Ora a froacutenēsis diz Aristoacuteteles eacute normativa ldquoCom efeito a prudecircncia [φρόνησις] eacute normativa [ἐπιτακτική] que se deve fazer [δεῖ πράττειν] ou natildeo tal eacute o fim [τέλος] a que se propotildee []rdquo170 De fato se ela consiste em bem deliberar (εὐβουλίαeyboyliacutea) acerca dos meios exequiacuteveis para se atingir o bem o teacutelos a eydaimoniacutea ela tambeacutem escolhe e decide (proaiacuteresis) em cada circunstacircncia o que se deve ou natildeo se deve fazer Em outros termos ela potildee diante do agente um deacuteon um

169 BRUumlLLMANN Philipp A teoria do bem na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Milton Camargo Mota Rev Sandra Garcia Custoacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 p 196 ldquoEstaacute provavelmente certa a afirmaccedilatildeo de que Aristoacuteteles eacute um lsquoceacutetico sobre regrasrsquo Sua eacutetica representa uma posiccedilatildeo contraacuteria a abordagens que tentam reduzir a moral ao menor nuacutemero possiacutevel de princiacutepios e no caso ideal a um soacute princiacutepio O caso individual desempenha um papel decisivo para a avaliaccedilatildeo moral Todavia parece-me precipitado interpretar a figura do virtuoso como resposta aristoteacutelica a uma eacutetica legalistardquo Wolf atribui esta predominacircncia da questatildeo sobre a oposiccedilatildeo entre ldquoeacutetica das virtudesrdquo e ldquoeacutetica deontoloacutegicardquo em Aristoacuteteles a certo vieacutes kantiano que se misturou agrave leitura de Aristoacuteteles WOLF Op Cit p 66 ldquoNesse meio-tempo poreacutem alguns filoacutesofos da moral chegaram agrave concepccedilatildeo de que seria possiacutevel superar certas carecircncias presentes na vigente teoria moral kantiana se fossem completadas ou substituiacutedas por uma moral das virtudesrdquo 170 Idem Eacutetica a Nicoacutemaco VI 10 1143 a 5-10 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEn efecto la prudencia es normativa queacute se debe hacer o no tal es el fin que se propone []rdquo

132 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino noacutemos um kanṓn Certo isso natildeo eacute epistḗmē pois estamos diante de uma razatildeo que calcula ou delibera171 em cada circunstacircncia como se deve ou natildeo agir nesta ou naquela circunstacircncia e soacute haacute epistḗmē mdash e aqui citamos os Segundos Analiacuteticos mdash acerca do que deve ser sempre ou o mais das vezes

Com efeito todo raciociacutenio se faz mediante proposiccedilotildees necessaacuterias ou mediante proposiccedilotildees ltque se datildeogt na maior parte das vezes e se as proposiccedilotildees satildeo necessaacuterias tambeacutem o eacute a conclusatildeo se as proposiccedilotildees se datildeo na maior parte das vezes tambeacutem a conclusatildeo172

Antes de mais eacute preciso fazer a ressalva de que aquele que

quer se tornar um froacutenimos simplesmente um ldquohomem eacuteticordquo natildeo olha e natildeo precisa olhar para o froacutenimos com o fito de encontrar nele um kanṓn Antes olha para o froacutenimos a fim de aprender a bem deliberar e a descobrir por si mesmo como ser froacutenimos Com outras palavras o indiviacuteduo busca aprender como ldquo[] agir lsquocomo se ele fosse uma norma e uma medida dessas coisasrsquo []rdquo173 e isto natildeo porque natildeo haja um meacutetron objetivo mas sim porque este meacutetron eacute descoberto e assumido pelo froacutenimos enquanto passa pelo crivo da escolha (proaiacuteresis) deliberada a qual faz com que cada indiviacuteduo seja pai de suas accedilotildees como de seus filhos e ipso facto virtuoso ou vicioso Eis a passagem claacutessica a este respeito e que em parte jaacute citamos acima

171 Idem Eacutetica a Nicocircmaco VI 1 1139 a 10-15 ldquoChamemos cientiacutefica [ἐπιστημονικόν] a uma dessas partes e calculativa [λογιστικόν] agrave outra pois o mesmo satildeo deliberar [βουλεύσθαι] e calcular [λογίζεσθαι] mas ningueacutem delibera sobre o invariaacutevel Por conseguinte a calculativa eacute uma parte da faculdade que concebe um princiacutepio racionalrdquo 172 ARISTOacuteTELES Analiacuteticos Segundos I 87 b 20-25 In ______ Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) Trad Miguel Candel Sanmartiacuten Rev Quintiacuten Racionero Madrid Editorial Gredos 1995 v II p 384 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEn efecto todo razonamiento se hace mediante proposiciones necesarias o mediante proposiciones ltque se dangt la mayor parte de las veces y si las proposiciones son necesarias tambieacuten lo es la conclusioacuten si las proposiciones se dan la mayor parte de las veces tambieacuten la conclusioacutenrdquo 173 BRUumlLLMANN Op Cit p 192

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A virtude [ἀρετή] eacute pois uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξις] relacionada com a escolha [προαιρετική] e consiste numa mediania [μεσότετι] isto eacute a mediania relativa a noacutes a qual eacute determinada por um princiacutepio racional [λόγῳ] proacuteprio do homem dotado de sabedoria praacutetica [πρόνιμος]174

O que ocorre poreacutem eacute que a ēthikḗ pode ser tambeacutem

tomada como uma epistḗmē Ora agravequele que a procura sob esta consideraccedilatildeo cumpre pesquisar com maior minudecircncia as constantes presentes nas accedilotildees deliberadas do froacutenimos ou seja alguns atos que habitualmente se apresentam como virtuosos e outros que geralmente se apresentam como viciosos Como deve ele proceder para perceber estas ldquoreincidecircnciasrdquo Aristoacuteteles assinala que a eacutetica mdash enquanto ciecircncia mdash deve partir dos fatos passar pelo poacutelemos do diaacutelogos a fim de por meio dele estabelecer a razoabilidade dos eacutendoxa (ἔνδοξα) que nada mais satildeo do que as opiniotildees comuns acerca do que concerne agrave vida humana e que existem por assim dizer em ldquocarne e ossordquo no froacutenimos refutando (ἔλεγχοςeacutelegkhos) as objeccedilotildees (ἀπορίαιaporiacuteai) que se levantam contra eles (eacutendoxa) Citemos um exemplo do proacuteprio Aristoacuteteles ldquoAs carnes leves satildeo saudaacuteveisrdquo ldquoa carne das aves eacute leverdquo ldquologo a carne das aves eacute saudaacutevelrdquo A premissa maior deste silogismo praacutetico eacute ldquoAs carnes leves satildeo saudaacuteveisrdquo A menor ldquoAs carnes das aves satildeo levesrdquo E a conclusatildeo do que se deve fazer eacute ldquoAs carnes das aves satildeo saudaacuteveisrdquo e por conseguinte devem ser preferidas 175 Transpondo-nos para o plano da eacutetica podemos ponderar Para o

174 Idem Ibidem II 6 1106 b 35-1107 a Eacute por isso que se Aristoacuteteles atribui ao ensino o aprendizado da virtude intelectual eacute ao haacutebito que ele atribui a aquisiccedilatildeo da virtude moral Idem Ibidem II 1 11093 a 15 ldquoSendo pois de duas espeacutecies a virtude intelectual e moral a primeira por via de regra gera-se e cresce graccedilas ao ensino mdash por isso requer experiecircncia e tempo enquanto a virtude moral eacute adquirida em resultado do haacutebito []rdquo Em outras palavras quando se trata de eacutetica para Aristoacuteteles aprende-se fazendo praticando Idem Ibidem II 1 1103 a 30 ldquoCom efeito as coisas que temos de aprender antes de poder fazecirc-las aprendemo-las fazendo []rdquo 175 Idem Ibidem VI 7 1141 b15-20 ldquo[] porque se um homem soubesse que as carnes leves satildeo digestiacuteveis e saudaacuteveis mas ignorasse que espeacutecies de carnes satildeo leves esse homem natildeo seria capaz de produzir a sauacutede poderia pelo contraacuterio produzi-la o que sabe ser saudaacutevel a carne de galinhardquo

134 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino froacutenimos basta saber o que se deve praticar interessa-lhe apenas a conclusatildeo Jaacute para o filoacutesofo eacutetico o que importa eacute antes de qualquer coisa a premissa maior Ela seraacute a oportunidade de ele saber por exemplo que o homem deseja ser saudaacutevel porque deseja viver e viver bem E a partir daiacute dialeticamente ele chegaraacute ao teacutelos do homem que eacute a eydaimoniacutea Como jaacute dito trata-se de um procedimento dialeacutetico

A exemplo do que fizemos em todos os outros casos passaremos em revista os fatos observados [φαινόμενα] e apoacutes discutir as dificuldades [διαπορήσαντας] trataremos de provar [δεικνύναι] se possiacutevel a verdade de todas as opiniotildees comuns [ἔνδοξα] a respeito desses afetos da mente mdash ou se natildeo todas pelo menos do maior nuacutemero e das mais autorizadas porque se refutarmos as objeccedilotildees e deixarmos intatas as opiniotildees comuns [ἔνδοξα] teremos provado [δεδειγμένον] suficientemente a tese176

Podemos observar nesta passagem que os eacutendoxa isto eacute as

opiniotildees comuns natildeo satildeo os fainoacutemena ou seja aquilo que pura e simplesmente aparece mas sim as constantes inseridas naquilo que aparece e que satildeo chamadas precisamente opiniotildees comuns (eacutendoxa) Aristoacuteteles busca estabelecer os eacutendoxa depurando-os das posiccedilotildees contraacuterias ldquo[] porque a soluccedilatildeo de uma dificuldade [ἀπορίας] eacute o encontro da verdade rdquo177 Natildeo haacute como natildeo ver neste movimento a tentativa de se fazer uma epistḗmē ēthikḗ pois ningueacutem que quisesse ser apenas um froacutenimos dar-se-ia ao trabalho de ir ao encalccedilo de tais justificativas Ademais podemos notar que esta epistḗmē ēthikḗ se apresenta como uma epistḗmē politikḗ pois satildeo as opiniotildees comuns (eacutendoxa) a saber vaacutelidas

176 Idem Ibidem VII 1 1145 b 1-5 177 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco [A traduccedilatildeo eacute nossa] VII 2 1146 b 5 ldquo[] porque la solucioacuten de una dificultad es el hallazgo de la verdadrdquo

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para todos ou para muitos e que se encontram encarnadas no froacutenimos que devem ser demonstradas dialeticamente178

De toda forma eacute a partir destas ldquoreincidecircnciasrdquo ou dos eacutendoxa retomados pela argumentaccedilatildeo dialeacutetica e que podemos chamar noacutemoi (νόμοι) mas que o homem comum e virtuoso vive e conhece apenas como virtudes que aquele que se esmera por fazer ldquociecircncia eacuteticardquo comeccedila a elaborar discursos sobre a natureza humana a virtude e o viacutecio e aborda questotildees como a da ldquopsicologia do agirrdquo do teacutelos da eydaimoniacutea coisas que o froacutenimos e o politikoacutes ratificamos natildeo tecircm necessidade de conhecer de forma douta Certamente a epistḗmē que deriva desta pesquisa natildeo teraacute nem a precisatildeo da matemaacutetica nem a finalidade teoacuterica da matemaacutetica e da fiacutesica De fato se Aristoacuteteles afirma que a eacutetica eacute uma ciecircncia natildeo afirma que ela seja uma ciecircncia como eacute por exemplo a filosofia primeira senatildeo que por tratar das accedilotildees humanas ela precisa comportar certa flexibilidade certa elasticidade De modo que deve haver um kanṓn (κανών) e jaacute sabemos de onde a princiacutepio ele vem e como chegamos a ele Entretanto como as escolhas dos homens satildeo muacuteltiplas e complexas este kanṓn certamente conheceraacute exceccedilotildees No entanto que haacute este kanṓn este deacuteon estes noacutemoi na epistḗmē ēthikḗ de Aristoacuteteles ele proacuteprio ressalta quando fala desta ciecircncia

Mas natildeo teraacute o seu conhecimento porventura grande influecircncia sobre a nossa vida [βίος] Semelhantes a arqueiros que tecircm um alvo certo para a sua pontaria natildeo alcanccedilaremos mais facilmente aquilo que nos cumpre alcanccedilar [τοῦ δέοντος]179

Ora como a poliacutetica utiliza as demais ciecircncias [ἐπιστεμῶν] e por outro lado legisla [νομοθετούσης] sobre o que devemos [δεῖ] e o que natildeo devemos fazer [πράττειν] a finalidade dessa ciecircncia deve

178 Sobre a demonstraccedilatildeo dialeacutetica e sobre o papel dos eacutendoxa em Aristoacuteteles vide ainda BERTI Enrico Contradiccedilatildeo e dialeacutetica nos antigos e nos modernos Trad Joseacute Bortolini Rev Tiago Joseacute Risi Leme Satildeo Paulo Paulus 2013 pp 198-213 179ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 2 1094 a 20-25

136 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

abranger as das outras de modo que essa finalidade seraacute o bem humano [τὰνθρώπινον ἀγαθόν]180

Estaacute claro pelo que jaacute dissemos ateacute aqui que aquilo que o

loacutegos estabelece no acircmbito de uma epistḗmē ēthikḗ eacute vaacutelido geralmente natildeo universalmente Assim eacute porque o objeto da eacutetica natildeo eacute o das ciecircncias teoreacuteticas onde as coisas satildeo sempre da mesma maneira o objeto da eacutetica por serem as accedilotildees humanas comporta um niacutevel de certeza que nos permite pensaacute-las boas ou maacutes tatildeo somente na maioria das vezes porquanto envolvem escolhas e circunstacircncias que podem variar ad infinitum Seriacuteamos insensatos pois e autodestruidores da ciecircncia eacutetica se buscaacutessemos aplicar a ela o mesmo niacutevel de certeza que aplicamos agraves ciecircncias teoreacuteticas Leiamos o Estagirita em duas passagens emblemaacuteticas a este respeito

Nossa discussatildeo seraacute adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o assunto pois natildeo se deve exigir a precisatildeo em todos os raciociacutenios por igual assim como natildeo se deve buscaacute-la nos produtos de todas as artes mecacircnicas Ora as accedilotildees belas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga admitem grande variedade e flutuaccedilotildees de opiniotildees [] E em torno dos bens haacute uma flutuaccedilatildeo semelhante [] Ao tratar pois de tais assuntos e partindo de tais premissas devemos contentar-nos em indicar a verdade aproximadamente e em linhas geais e ao falar de coisas que satildeo verdadeiras apenas em sua maior parte e com base em premissas da mesma espeacutecie soacute poderemos tirar conclusotildees da mesma natureza E eacute dentro do mesmo espiacuterito que cada proposiccedilatildeo deveraacute ser recebida pois eacute proacuteprio do homem culto buscar a precisatildeo em cada gecircnero de coisas apenas na medida em que a admite a natureza do assunto [] Sirvam pois de prefaacutecio estas observaccedilotildees sobre o estudante a espeacutecie de tratamento a ser esperado e o propoacutesito da investigaccedilatildeo181

180 Idem Ibidem I 2 1094 b 5 181 Idem Ibidem I 3 1094 a 10-25 e 109 a 10

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Devemos igualmente recordar o que se disse antes e natildeo buscar a precisatildeo em todas as coisas por igual mas em cada classe de coisas apenas a precisatildeo que o assunto comportar e que for apropriada agrave investigaccedilatildeo182

Entretanto pensamos natildeo haver dito tudo pois ateacute agora

soacute falamos dos noacutemoi que dizem respeito ao teacutelos mas que natildeo satildeo o teacutelos do homem E a nosso ver existe um princiacutepio eacutetico que regula e rege todas as virtudes que incidem sobre a vida eacutetica isto eacute um princiacutepio pelo qual todas elas mdash a froacutenēsis a dikaiosyacutenē a andreiacutea a sōfrosyacutenē etc mdash se norteiam Este princiacutepio que no comeccedilo deste capiacutetulo jaacute nomeamos eacute a koinōniacutea Todas as virtudes eacuteticas tendem como para seu teacutelos agrave koinōniacutea que eacute por assim dizer outro nome da eydaimoniacutea eacutetica Em uma palavra a koinōniacutea eacute o teacutelos da natureza humana Por isso o kanṓn o noacutemos o deacuteon da ēthikḗ de Aristoacuteteles eacute simpliciter criar koinōniacutea E haacute passagens em que Aristoacuteteles afirma existir esta lei comum esta

182 Idem Ibidem I 7 1098 a 25 As leis inclusive natildeo podem ser executadas com um rigor caprichoso ao contraacuterio tambeacutem elas devem ser algo versaacuteteis isto eacute elaboradas com congruecircncia e aplicadas por homens equacircnimes Idem Ibidem V 10 1137 b 15-30 ldquoPortanto quando a lei [νόμος] se expressa universalmente e surge um caso que natildeo eacute abrangido pela declaraccedilatildeo universal eacute justo uma vez que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade corrigir a omissatildeo mdash em outras palavras dizer o que o proacuteprio legislador teria dito se estivesse presente e que teria incluiacutedo na lei se tivesse conhecimento do caso E essa eacute a natureza do equumlitativo uma correccedilatildeo da lei [νόνομ] quando ela eacute deficiente em razatildeo da sua universalidade E mesmo eacute esse o motivo por que nem todas as coisas satildeo determinadas pela lei [νόνομ] em torno de algumas eacute impossiacutevel legislar de modo que se faz necessaacuterio um decreto Com efeito quando a coisa eacute indefinida a regra [κανών] eacute indefinida []rdquo A questatildeo eacute que o legislador e a regra sempre vatildeo ldquofalharrdquo em alguma circunstacircncia Aristoacuteteles eacute bastante claro nos exemplos Idem Ibidem IX 2 1164 b 30-35 ndash 1165 ldquo[] e em geral eacute mais certo retribuir benefiacutecios do que obsequiar amigos e antes de fazer um empreacutestimo a um amigo devemos pagar o nosso credor Mas talvez nem isto seja sempre verdadeiro por exemplo deve um homem que foi resgatado das matildeos dos bandidos resgatar em troca o que o libertou seja ele quem for (ou pagar-lhe se ele natildeo foi capturado mas exige pagamento) ou em vez disso deve resgatar o seu pai Dir-se-ia que o certo eacute resgatar o pai mesmo de preferecircncia a si proacutepriordquo Na verdade o ldquoerrordquo natildeo estaacute na inexatidatildeo da lei nem em quem a elabora porque a incerteza reside nos proacuteprios fatos que variam indefinidamente Idem Ibidem V 10 1137 b 15 ldquoNos casos pois em que eacute necessaacuterio falar de modo universal mas natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo corretamente a lei considera o caso mais usual se bem que natildeo ignore a possibilidade de erro E nem por isso tal modo de proceder deixa de ser correto pois o erro natildeo estaacute na lei nem no legislador mas na natureza da proacutepria coisa jaacute que os assuntos praacuteticos satildeo dessa espeacutecie por naturezardquo Talvez o equiacutevoco esteja em imaginar que o noacutemos seja algo que nos dispense de um julgamento responsaacutevel e proporcional a cada circunstacircncia A lei natildeo pode ser feita nem aplicada por autocircmatos

138 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino justiccedila natural conhecida tacitamente por todos os homens vaacutelida para todos os homens desde tempos imemoriais uma forma de ldquolei naturalrdquo que se exprime como uma ldquoamizade naturalrdquo de todo homem para com todo homem uma espeacutecie de filantropia na melhor acepccedilatildeo do termo Na Retoacuterica o nosso filoacutesofo diz ldquoChamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todosrdquo183 Um pouco mais adiante na mesma obra ele escreve

Pois haacute na natureza um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo como por exemplo mostra a Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu E como diz Empeacutedocles acerca de natildeo matar o que tem vida pelo facto de isso natildeo ser justo para uns e injusto para outros Mas a lei universal estende-se largamente atraveacutes do eacuteter e da incomensuraacutevel terra184

Tambeacutem na Eacutetica Aristoacuteteles se expressa acerca deste

princiacutepio comum e natural

Da justiccedila poliacutetica uma parte eacute natural [φυσικόν] e outra parte legal natural [φυσικὸν] aquela que tem a mesma forccedila onde quer que seja [πανταχοῦ] e natildeo existe em razatildeo de pensarem os homens desde ou daquele modo legal a que de iniacutecio eacute indiferente mas deixa de secirc-lo depois que foi estabelecida185

Membros da mesma raccedila a sentem uns pelos outros e especialmente os homens por isso louvamos os amigos de seu semelhante [φιλανθρώπους] Ateacute em nossas viagens podemos ver

183 Idem Retoacuterica I 10 1368 b 184 Idem Ibidem I 13 1373 b 185 Idem Eacutetica a Nicocircmaco V 7 1134 b 15-20 [O iaacutelico eacute nosso]

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quanto cada homem eacute chegado e caro a todos os outros [ἄνθρωπος ἀνθρώπῳ καὶ φίλον]186

Enquanto escravo pois natildeo se pode ser seu amigo mas enquanto homem isso eacute possiacutevel pois parece haver uma certa justiccedila entre um homem qualquer e outro homem qualquer [δίκαιον παντὶ ἀνθρώπῳ ρπὸς πάντα] que tenham condiccedilotildees para participar de um sistema juriacutedico ou ser partes num ajuste logo pode haver amizade [φίλια] com ele na medida em que eacute um homem [ἄνθρωπος]187

Por conseguinte se a causa proacutexima da ēthikḗ enquanto

epistḗmē eacute a observaccedilatildeo do froacutenimos e o estabelecimento dos eacutendoxa a sua causa remota eacute esta lei comum esta justiccedila natural Em outros termos as ldquoconstantesrdquo vaacutelidas apenas geralmente e que comportam variaccedilatildeo as quais aquele que faz filosofia praacutetica nota nos feitos do froacutenimos e nos ditos comuns (eacutendoxa) mdash e que o froacutenimos experiencia apenas como virtudes e natildeo como noacutemoi mdash se reduzem e conduzem a um noacutemos universal um kanṓn que natildeo conhece variaccedilatildeo e que se chama koinōniacutea E haacute mais Os princiacutepios imediatamente deduzidos deste princiacutepio universal a saber aqueles que satildeo conditio sine qua non para se criar koinōniacutea tambeacutem natildeo variam Aristoacuteteles natildeo os olvida tanto que elenca accedilotildees que ele considera intrinsecamente maleacutevolas E considerar determinadas accedilotildees como intrinsecamente maacutes significa como o proacuteprio Aristoacuteteles o diz que elas seratildeo sempre e em todo lugar maacutes

Mas nem toda accedilatildeo e paixatildeo admite um meio-termo pois algumas tecircm nomes que jaacute de si mesmos implicam maldade como o despeito o despudor a inveja e no campo das accedilotildees o adulteacuterio o furto o assassiacutenio Todas essas coisas e outras semelhantes implicam nos proacuteprios nomes que satildeo maacutes em si

186 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 20 [O itaacutelico eacute nosso] 187 Idem Ibidem VIII 11 1161 b 5 [Os itaacutelicos satildeo nossos]

140 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

mesmas e natildeo o seu excesso ou deficiecircncia Nelas jamais pode haver retidatildeo mas unicamente o erro188

Do quanto jaacute dissemos decorre que uma ēthikḗ que natildeo

seja politikḗ isto eacute que natildeo crie koinōniacutea entre os homens natildeo eacute condizente com a natureza humana pois o homem exatamente por ser zȭon logikoacuten (ζῷον λογικόν)189 eacute zȭon politikoacuten Natildeo sem razatildeo Aristoacuteteles afirma que a epistḗmē politikḗ eacute a arkhḗ da epistḗmē ēthikḗ

O estudo do prazer e da dor pertence ao campo do filoacutesofo poliacutetico [πολιτικὴν φιλοσοφοῦντος] pois ele eacute o arquiteto do fim com vistas no qual dizemos que uma coisa eacute maacute e outra eacute boa em absoluto190

Apoacutes termos dissertado sobre as diversas passagens da

Eacutetica e de outras obras de Aristoacuteteles que atestam o que temos afirmado acreditamos poder citar Richard Bodeacuteuumls o qual designa a poliacutetica precisamente como coroa da eacutetica aristoteacutelica

No fundo ter e perseguir uma meta uacuteltima para um indiviacuteduo eacute ter uma ldquopoliacuteticardquo e ordenar seus assuntos do mesmo modo que a cidade ordena os assuntos de todos Para Aristoacuteteles haacute aqui mais que uma simples analogia pois o fim uacuteltimo da poliacutetica natildeo pode ser formalmente diferente do que eacute visado pelos indiviacuteduos isoladamente Pelo contraacuterio o que daacute sentido agrave poliacutetica o que justifica em seus princiacutepios a ordem e as leis que ela proclama eacute precisamente o que daacute sentido agrave existecircncia dos indiviacuteduos para os quais essas leis satildeo feitas Em outras palavras a poliacutetica eacute definitivamente a maneira pela qual os indiviacuteduos reunidos na cidade pretendem dar sentido agrave sua existecircncia Ela responde pois agrave meta visada por cada um dos concidadatildeos e prescreve soberanamente em funccedilatildeo dessa meta o que cada um deve realizar Isso eacute o mesmo que dizer que a sagacidade que tem de

188 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 6 1107 a 5-15 189 Idem Poliacutetica I 2 1253 a 9-10 190 Idem Eacutetica a Nicocircmaco VII 11 1152 b

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ser colocada em accedilatildeo por cada um para atingir seu proacuteprio bem e dar um sentido perfeitamente racional agrave sua proacutepria existecircncia natildeo difere essencialmente da inteligecircncia poliacutetica que tem de ser colocada em accedilatildeo para organizar uma cidade na qual cada um pode atingir seu proacuteprio bem Essa convicccedilatildeo no filoacutesofo explica por que as questotildees de que ele trata nas Eacuteticas de maneira a estabelecer de modo criacutetico em que consiste o soberano bem do homem satildeo questotildees que ele apresenta com a cor de uma busca explicitamente chamada de ldquopoliacuteticardquo (Eacutet Nic 1094 b 11) e que ele dirige implicitamente aos legisladores Essa mesma convicccedilatildeo daacute tambeacutem a entender que as outras questotildees de que trata a coletacircnea de textos intitulada A Poliacutetica se reduzem a explicar como o soberano bem do homem pode ser atingido e preservado para cada homem dentro das sociedades que ele forma com os outros Para Aristoacuteteles natildeo existe nenhum conflito de princiacutepio entre as aspiraccedilotildees do indiviacuteduo e as do Estado (cidade) desde que o fim uacuteltimo de ambos seja formalmente idecircntico191

Um ponto no qual conveacutem insistir eacute que Aristoacuteteles mdash nem

de longe mdash considera a eacutetica ldquoterra de ningueacutemrdquo Para ele reafirmamos a eacutetica eacute uma forma de epistḗmē mais precisamente uma ldquociecircncia poliacuteticardquo Contudo diferentemente das ciecircncias teoreacuteticas ela eacute uma ciecircncia que tem uma finalidade praacutetica a saber conhecer o que torna os homens bons e felizes e quem sabe tornaacute-los Distingue-se pois das ldquociecircncias teoreacuteticasrdquo em razatildeo de natildeo visar ao saber por si mesmo mas aos fatos (πρᾶγμαpratildegma) agrave pratildexis onde mdash com um olhar ldquodoacutecilrdquomdash quer perscrutar o que eacute bom o que eacute mau o que eacute o bem e o que eacute o mal Eacute um modo diverso de se exercer a racionalidade Reiteramos que ela natildeo visa ao saber por si mesmo decerto que quer descobrir o quecirc e o porquecirc mas para uma finalidade conhecer o que torna e quiccedilaacute tornar os homens virtuosos Aristoacuteteles noutra passagem significativa deixa isso claro

191 BODEacuteUumlS Richard Aristoacuteteles A justiccedila e a cidade Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Rev Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007 p 14 [Os itaacutelicos satildeo nossos]

142 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Uma vez que a presente investigaccedilatildeo natildeo visa ao conhecimento teoacuterico como as outras mdash porque natildeo investigamos para saber o que eacute a virtude mas a fim de nos tornarmos bons do contraacuterio nosso estudo seria inuacutetil mdash devemos examinar agora a natureza dos atos isto eacute como devemos praticaacute-los []192

O Estagirita natildeo se cansa de dizer que a eacutetica eacute a ldquociecircnciardquo

dos fatos da vida (βίον πράξεωνbiacuteon praacutexeōn) Assim quando justifica a razatildeo pela qual o jovem natildeo estaacute bem disposto para esta ldquociecircnciardquo afirma ldquoCom efeito ele natildeo tem experiecircncia dos fatos da vida e eacute em torno desses que giram as nossas discussotildeesrdquo193 Haacute outras passagens eloquentes neste sentido

[] Tratando-se de sentimentos [πάθεσι] e de accedilotildees [πράξεσι] as palavras [λόγοι] natildeo inspiram tanta confianccedila como os fatos [ἔργων] e em consequecircncia quando as primeiras discrepam do que se percebe pelos sentidos satildeo desprezadas como falsas e desacreditam por sua vez a verdade194

[] Tratando-se de questotildees praacuteticas [πρακτικοῖς] julga-se pelos fatos [ἔργων] e pela vida [βίου] que satildeo nelas o principal Eacute preciso portanto considerar o que temos dito referindo-os aos fatos [ἔργα] e agrave vida [βίον] e aceitaacute-los se estaacute em harmonia com os fatos [ἔργοις] poreacutem consideraacute-los mera teoria [λόγους] se discrepa deles195

192 Idem Ibidem II 2 1103 b 25-30 193 Idem Ibidem X 2 1095 a e 1173 a 194 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco X 1 1172 a 35 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[hellip] trataacutendose de sentimientos y de acciones las palabras no inspiran tanta confianza como los hechos y en consecuencia cuando las primeras discrepan de lo que se percibe por los sentidos son despreciadas como falsas y desacreditan a la vez la verdadrdquo 195 Idem Ibidem X 8 1179 a 15-20 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] trataacutendose de cuestiones praacutecticas se juzga por los hechos y por la vida que son en nellas lo principal Es preciso por tanto considerar lo que llevamos dicho refirieacutendolo a los hechos y a la vida y aceptarlo si estaacute en harmoniacutea con los hechos pero considerarlo como mera teoriacutea si discrepa de ellosrdquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 143

E Berti precisa que com este conceito de ldquociecircncia poliacuteticardquo ou eacutetica Aristoacuteteles nos insere no ldquomundo da vidardquo funda pois as assim chamadas ldquociecircncias humanasrdquo

O seu ponto de partida eacute o quecirc o fato a experiecircncia a vida vivida os bons costumes e ela parte destes para buscar os princiacutepios isto eacute o fim supremo [] Com efeito a filosofia praacutetica de Aristoacuteteles fornece um exemplo de discurso que concerne aos mais importantes problemas humanos problemas que se referem ao assim chamado ldquomundo da vidardquo que se diferencia no meacutetodo dos discursos das ciecircncias propriamente ditas e todavia natildeo estaacute privado de racionalidade proacutepria isto eacute de controlabilidade proacutepria []196

Nasce assim a eacutetica aristoteacutelica como epistḗmē do ἦθος

(ẽthos) e do ἔθος (eacutethos) Distinta do que poderiacuteamos chamar uma ldquoeacutetica religiosardquo visto que ela se configura como uma reflexatildeo acerca de como o homem pode construir-se e construir o seu haacutebitat proacuteprio precisamente enquanto distinto do mundo dos deuses e do mundo da fyacutesis (φύσις) Natildeo haacute mdash nesse contexto mdash uma divindade que ajude o homem a se construir e a construir o mundo humano Natildeo haacute uma divindade legisladora que puna ou premie O homem exclusiva e integralmente mdash com a experiecircncia e com a razatildeo mdash eacute quem deve construir a sua felicidade que natildeo estaacute num momento fugaz de prazer mdash como nas eacuteticas hedonistas mdash mas tambeacutem natildeo estaacute noutro mundo mdash como nas eacuteticas teoloacutegicas mdash senatildeo que se encontra num mundo que ele proacuteprio teraacute ao menos em parte de construir Esta produccedilatildeo dar-se-aacute mediante o exerciacutecio das virtudes virtudes estas que ele descobriraacute olhando para o prudente (froacutenimos) proacuteximo a ele e homem como ele e natildeo para Deus para uma lei divina

Mas em todas as coisas o que parece a um homem bom eacute considerado como sendo realmente tal Se isto eacute correto como se

196 BERTI Perfil de Aristoacuteteles p 162

144 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

afigura ser e a virtude e o homem bom [καλῶςkalȭs] como tais satildeo a medida [μέτρονmeacutetron] de todas as coisas seratildeo verdadeiros prazeres os que lhe parecerem tais e verdadeiramente agradaacuteveis as coisas em que ele se deleitar197

Enrico Berti repristina o pensamento eacutetico de Aristoacuteteles

que temos visto ateacute aqui

Concluindo essa exposiccedilatildeo devemos observar que a eacutetica aristoteacutelica eacute confirmada como sendo essencialmente fundada sobre o conceito de fim uacuteltimo do homem Esse fim eacute concebido de forma exclusivamente humana sem implicaccedilotildees de ordem metafiacutesica ou teoloacutegica De fato a felicidade com a qual ele eacute identificado natildeo eacute como frequentemente se acreditou ldquocontemplaccedilatildeo de Deusrdquo nem exclusivamente busca de Deus [] Portanto se trata de eacutetica exclusivamente humana e ao mesmo tempo integralmente humana que leva em conta todas as dimensotildees do homem e ao mesmo tempo estabelece exata hierarquia entre elas []198

Antes de terminarmos importa ratificarmos um

esclarecimento jaacute delineado Quando pensamos ao longo do capiacutetulo o agir eacutetico tambeacutem como um ato poieacutetico natildeo o fazemos confundindo o haacutebito da teacutekhnē com o da froacutenēsis ou com o da sofiacutea Estaacute sempre bem presente ante os nossos olhos a passagem inequiacutevoca do livro VI da Eacutetica

[] de sorte que a capacidade raciocinada de agir difere da capacidade raciocinada de produzir Daiacute tambeacutem o natildeo se incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacute produzir nem produzir eacute agir199

197 ARISOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 5 1176 a 15-20 198 BERTI Perfil de Aristoacuteteles pp 181-182 199 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VI 4 1140 a 5

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Usamos o termo poiacuteēsis num sentido estendido valendo-nos da mesma polissemia utilizada por Aristoacuteteles De fato este estender-se eacute usado pelo proacuteprio Aristoacuteteles no acircmbito da filosofia praacutetica Ele diz num passo

Eacute assim que a sabedoria filosoacutefica produz [ποιοῦσιpoioỹsi] felicidade porque sendo ela uma parte da virtude inteira torna um homem feliz pelo fato de estar na sua posse e de atualizar-se200

Ao comentar esta passagem Berti tambeacutem entende que

Aristoacuteteles usa o termo poiacuteēsis num sentido estendido ldquoAleacutem disso ele observa que elas [sofiacuteafroacutenēsis] satildeo tambeacutem produtivas e precisamente a sapiecircncia [sofiacutea] produz a felicidaderdquo201 Na verdade haacute uma razatildeo especiacutefica para empregar o termo poieacutetico tambeacutem em eacutetica Eacute que em Aristoacuteteles o eacutethos deixa de ser apenas um caraacuteter dado pela natureza e passa a ser um caraacuteter impresso em noacutes por nossos proacuteprios haacutebitos isto eacute por aquelas accedilotildees que oriundas de nossas escolhas deliberadas tecircm em noacutes a sua causa Em outras palavras como jaacute dissemos acima noacutes nos tornamos aquilo que praticamos ldquo[] tornamo-nos justos praticando atos justos e assim com a temperanccedila a bravura etcrdquo202 Assim o homem passa a ser de certa forma causa de si ldquo[] cada homem eacute de certo modo responsaacutevel [αἴτιοςaiacutetios] pela sua disposiccedilatildeo de acircnimo [ἕξεώςheacutexeṓs] []rdquo203 Destarte cada homem acaba contribuindo para produzir ao seu derredor uma ambiecircncia (ethos) pela qual tambeacutem eacute responsaacutevel

A afirmaccedilatildeo da responsabilidade do homem em face a seus proacuteprios atos vai transformar o significado e o valor atribuiacutedos ao

200 Idem Ibidem VI 12 1144 a 5 201 BERTI Perfil de Aristoacuteteles p 173 202 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 1 1103 b 203 Idem Ibidem III 5 114 b

146 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

ethos Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles repete que o ethos eacute o resultado de nossos atos adquire-se tal ou tal disposiccedilatildeo eacutetica agindo de tal ou tal maneira Realizando coisas justas assumem-se bons haacutebitos e o caraacuteter torna-se justo inversamente agindo de maneira intemperante adquire-se o haacutebito de ceder aos desejos e tornamo-nos intemperantes O caraacuteter natildeo eacute mais o que recebe suas determinaccedilotildees da natureza da educaccedilatildeo da idade da condiccedilatildeo social eacute o produto da seacuterie de atos dos quais sou o princiacutepio Posso pois ser declarado ldquoautorrdquo (aiacutetios) de meu caraacuteter como o sou de meus atos do mesmo modo que meus atos podem ser objeto de um elogio meu caraacuteter pode ser objeto de louvor Viacutecios e virtudes natildeo satildeo simples traccedilos psicoloacutegicos adquiridos tecircm significado moral porque pertencem ao campo do que depende de noacutes Esta responsabilidade testemunha a seriedade da accedilatildeo Quando ajo natildeo faccedilo somente algo de pontual pelo que terei que responder escolho o que vou ser204

Uma passagem que gostariacuteamos de comentar porque

exemplifica a relaccedilatildeo que estabelecemos entre ēthikḗ e poiacuteēsis diz o seguinte

Isso porque a existecircncia eacute para todos os homens uma coisa digna de ser escolhida e amada ora noacutes existimos em virtude da atividade [ἐνεργείᾳ] (isto eacute vivendo e agindo) e a obra [ἐνεργείᾳ] eacute em certo sentido uma produtora de atividade [ποιήσας τὸ ἔργου] portanto o artiacuteficie ama a sua obra [ἔργου] porque ama a existecircncia E isso tem raiacutezes profundas na natureza das coisas pois o que ele eacute em potecircncia [δυνάμει] sua obra [ἔργου] o manifesta em ato [ἐνεργείᾳ]205

Tem-se pela passagem acima que o homem de certo

modo eacute eacutergon em certo sentido ele eacute uma obra em marcha Com efeito se existir eacute uma atividade mui digna e o obrar alarga esta atividade entatildeo obrar com aretḗ eacute existir intensivamente Por isso

204 VERGNIEgraveRES Solange Eacutetica e poliacutetica em Aristoacuteteles physis ethos nomos Trad Marcondes Cesar Satildeo Paulo Paulus 1998 p 105 205 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 7 1168 a 5-10

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todos aqueles que amam a sua existecircncia natildeo deixam de obrar Existindo constroem construindo existem Existir eacute fazer a si mesmo porque os nossos haacutebitos (heacutexeis) oriundos da atividade (eneacutergeia) do nosso eacutergon perfazem o nosso caraacuteter (eacutethos) Existir eacute produzir aleacutem disso a ambiecircncia (ẽthos) que nos cerca porquanto os nossos atos se difundem (maacutexime quando virtuosos satildeo difusivos) irradiando-se nela Na verdade a aretḗ porque qualifica o obrar torna o existir humano que se define como zȭon politikoacuten intenso E a reta atualizaccedilatildeo do zȭon politikoacuten eacute a koinōniacutea Por isso criar koinōniacutea na pluralidade de suas formas manifesta a natureza humana

Fazer de si mesmo a sua proacutepria obra significa entatildeo literalmente realizar-se cumprir a si mesmo pocircr-se em ato ou seja dar forma ao que se eacute somente em potecircncia E eacute exatamente por meio da eneacutergeia naquela eneacutergeia naquele agir proacuteprio do homem em que o proacuteprio homem tem a possibilidade de exprimir a sua humanidade que o ser humano se realiza como eacutergon que o indiviacuteduo se torna obra206

O termo desta expansatildeo eacute a morte207 e eacute justamente aqui

que temos tambeacutem que passar a indagar como Tomaacutes de Aquino para quem a morte eacute branda porque natildeo eacute o fim pocircde acolher a eacutetica de Aristoacuteteles num contexto teoloacutegico

206 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 388 207 Idem Ibidem p 93 ldquoEntatildeo a morte como finis e como teacutelos eacute o que potildee termo agrave existecircncia o que faz com que ela acabe mas tambeacutem o que atribuindo-lhe um limite delimita um territoacuterio circunscreve uma regiatildeo um horizonte no interior do qual a vida humana pode desdobrar-serdquo

Capiacutetulo III A recepccedilatildeo da eacutetica aristoteacutelica na

teologia moral de Tomaacutes

Nas paacuteginas seguintes pretendemos apontar aqueles conceitos que permitiram a Tomaacutes acolher no acircmbito da sua teologia moral uma conceptualidade filosoacutefica A fim de levarmos a termo este objetivo julgamos pertinente nos resguardarmos de dois equiacutevocos O primeiro mdash e talvez o mais ingecircnuo mdash eacute imaginar que Tomaacutes foi tatildeo somente um filoacutesofo ou que tenha aceitado in totum todos os corolaacuterios da eacutetica aristoteacutelica Se assim fosse melhor seria ficarmos com Aristoacuteteles e natildeo com um comentador dele1 Tomaacutes eacute antes de tudo um teoacutelogo e mesmo a parte da Suma de Teologia que dedica agrave eacutetica sem duacutevida integra a sua teologia moral O segundo equiacutevoco eacute pensar que por ser um teoacutelogo e por natildeo ter parado na ldquoeacutetica naturalrdquo de Aristoacuteteles o Aquinate tenha renunciado agrave razatildeo filosoacutefica quando pensou as grandes questotildees eacuteticas Nem uma coisa nem outra Entendemos antes que em alguns momentos o Aquinate tenha sido ateacute mais realista e moderado do que o proacuteprio Estagirita Demos ensejo a uma breve contextualizaccedilatildeo criacutetica que justifique a nossa abordagem neste capiacutetulo 31 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO CRIacuteTICA TOMAacuteS COMO AUCTOR

Haacute hoje um consenso de que Tomaacutes redigiu o seu famoso Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco durante seu segundo periacuteodo de

1 Imaginar que Tomaacutes foi um mero repetidor de Aristoacuteteles a ponto de se cogitar que a leitura de Aristoacuteteles possa substituir ou suprir a de Tomaacutes eacute uma tese que natildeo encontra sustentaccedilatildeo Natildeo sem razatildeo Maritain concordava com o parecer de Gilson sobre este assunto MARITAIN Jacques Le paysan de la Garrone Un vieux laique Srsquointerrogue Paris Descleacutee de Brower 1966 p 197 In MOURA Odilatildeo Introduccedilatildeo agrave Suma contra os Gentios Porto Alegre EDIPUCRS 1996 p 9 ldquoEacute um enorme erro mdash Gilson tem razatildeo quando insiste nisso mdash o dizer como repetem tantos professores de Filosofia que a Filosofia de santo Tomaacutes eacute a Filosofia de Aristoacuteteles []rdquo

150 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ensino parisiense mais especificamente entre os anos de 1271 a 12722 Parece natildeo haver mais duacutevidas tambeacutem quanto ao fato de que este Comentaacuterio influenciou sobremodo a redaccedilatildeo da IIa parte da Summa Theologiae a qual provavelmente se iniciou depois das feacuterias de 12713 A isto podemos acrescer outro dado importante qual seja a finalidade do comentaacuterio de Tomaacutes agrave Eacutetica Atualmente se sabe que ele natildeo buscou fazer uma expositio desta obra vale dizer um comentaacuterio aprofundado que se ativesse agrave literalidade do texto Tomaacutes natildeo pretendeu simplesmente conhecer o que Aristoacuteteles disse nem devemos esperar do Aquinate uma leitura do Estagirita que esteja de acordo com os instrumentos criacuteticos de nossa eacutepoca e isso por duas razotildees A primeira porque ele obviamente desconhecia estes elementos A segunda porque a sua finalidade natildeo era conhecer Aristoacuteteles como um historiador mas sim como um saacutebio Em uma palavra trata-se de um pensador que comenta outro pensador natildeo simplesmente para conhececirc-lo mas para pensaacute-lo4

No capiacutetulo anterior pudemos verificar que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute exclusivamente humana no sentido de que se ateacutem ao que a razatildeo pode admitir Descobrimos ainda que esta eacutetica eacute por isso mesmo diversa da teologia moral da Idade Meacutedia que abriga em si componentes extraiacutedos da Revelaccedilatildeo cristatilde Mas agora eacute preciso aduzirmos que natildeo houve uma uacutenica teologia moral na Idade Meacutedia senatildeo teologias morais E a de Tomaacutes sem se coincidir eacute a que mais se aproxima da eacutetica de Aristoacuteteles5 E se

2 TORRELL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Sua pessoa e sua obra Trad Luiz Paulo Rouanet Rev Saulo Krieger et al 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 265 3 Idem Ibidem 4 Idem Ibidem pp 265 e 266 5 Eacute necessaacuterio acrescer que o comentaacuterio de Tomaacutes agrave Eacutetica que prepara a siacutentese da Summa Theologiae deve muito agrave convivecircncia com Alberto Magno seu mestre o qual tambeacutem comentou a Eacutetica no mesmo periacuteodo em que Tomaacutes seguia os seus cursos no Studium de Colocircnia Aliaacutes o Aquinate na qualidade de assistente participou ativamente da redaccedilatildeo do comentaacuterio Frisa Lima Vaz VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo aacute Eacutetica Filosoacutefica 1 pp 208-209 ldquo[] Santo Alberto Magno foi sem duacutevida o maior inteacuterprete latino de Aristoacuteteles no seacuteculo XIII tendo comentado a maior parte do Corpus Aristotelicum entatildeo conhecido No que diz respeito agrave Eacutetica foi igualmente o

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aproxima natildeo agrave guisa de um mero ldquocomentaacuteriordquo do filoacutesofo grego mdash conforme jaacute acenamos mdash mas como uma obra que perfilha as consideraccedilotildees de outra a fim de trazer a lume o seu proacuteprio pensamento6 Em uma palavra Tomaacutes eacute um auctor que usa de uma auctoritas no caso Aristoacuteteles para trazer agrave luz as suas proacuteprias ideias7 Sobre isso assinala Jeauneau

Por aqui vemos mdash mas os exemplos abundam mdash com que liberdade S Tomaacutes adapta aos seus fins o pensamento de Aristoacuteteles Professa pelo Filoacutesofo a admiraccedilatildeo mais sincera Mas natildeo eacute um arqueoacutelogo cuja uacutenica ambiccedilatildeo se limitasse agrave restauraccedilatildeo dum glorioso passado Pensa para o seu tempo com uma constante preocupaccedilatildeo de actualidade Haacute mesmo qualquer coisa de revolucionaacuterio no seu empreendimento Os contemporacircneos natildeo se enganaram E se certos admiradores de S Tomaacutes propuseram fazer do tomismo um relicaacuterio ideal dos

primeiro a expor sistematicamente uma eacutetica fundada na experiecircncia e na reta razatildeo e a mostrar sua compatibilidade com a moral revelada Os problemas eacuteticos ocupam um lugar relevante na produccedilatildeo literaacuteria de Alberto Magno desde seu Comentaacuterio ao livro das Sentenccedilas agrave tardia Summa Theologiae Em particular deve-se mencionar o De natura boni a Summa de Bonno fazendo parte da primeira Summa Theologiae a Summa de Creaturis contendo um De Homine e os comentaacuterios agrave Eacutetica de Nicocircmaco a Lectura in libros Ethicorum Aristotelis redigida por seu assististente Tomaacutes de Aquino no tempo do magisteacuterio de Alberto no Studium dominicano de Colocircnia (1248-1252) e os Commentarii in libros Ethicorum Aristotelis em forma de paraacutefrase redigidos provavelmente entre 1256 e 1270 O pensamento eacutetico medieval deve a Alberto Magno uma mais rigorosa fixaccedilatildeo conceptual de algumas de suas categorias fundamentais que iratildeo ser utilizadas e aprofundadas por seu disciacutepulo Tomaacutes de Aquinordquo Citemos ainda Roberto Grosseteste que entre 1246 e 1247 traduziu a Eacutetica Foi a traduccedilatildeo de Grosseteste a utilizada por Alberto e Tomaacutes Lembrando que esta traduccedilatildeo foi revisada e completada em 1260 talvez por Guilherme de Moerbeke Tomaacutes usou esta segunda ediccedilatildeo 6 Natildeo se pode esquecer ademais da influecircncia decisiva que categorias filosoacuteficas tomadas de Agostinho desempenharam na estruturaccedilatildeo da eacutetica filosoacutefica tomasiana Como diz Lima Vaz Idem Ibidem p 216 ldquoA Eacutetica de Tomaacutes de Aquino obedecendo ao modelo que prevalece em Toda Eacutetica claacutessica desde Platatildeo e que vimos genialmente transposto para o universo cristatildeo na Eacutetica agostiniana eacute uma eacutetica da perfeiccedilatildeo e da ordem Essas duas categorias de natureza mostram-se como fundamentais na Ontologia tomaacutesica encontram em sua Antropologia uma realizaccedilatildeo exemplar e por conseguinte orientaratildeo em profundidade a construccedilatildeo da Eacuteticardquo 7 GILSON A Filosofia na Idade Meacutedia p 627 ldquoCom efeito na Idade Meacutedia distinguia-se entre o escriba (scriptor) que soacute eacute capaz de recopiar as obras de outrem sem nada modificar o compilador (compilator) que acrescenta ao que copia mas sem que seja coisa sua o comentador (commentator) que potildee coisa sua no que escreve mas soacute acrescenta ao texto o necessaacuterio para tornaacute-lo inteligiacutevel e enfim o autor (auctor) cujo objetivo principal eacute expor suas proacuteprias ideacuteias soacute apelando para as ideacuteias alheias a fim de confirmar as suas []rdquo [O itaacutelico eacute nosso]

152 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

conservantismos de toda a espeacutecie poderatildeo ter retido a letra mas natildeo penetraram seguramente o espiacuterito8

Esta proximidade conjugada com uma ultrapassagem de

horizontes entre Tomaacutes e Aristoacuteteles ocorreu de acordo com o nosso entendimento sobretudo por uma razatildeo perpassa toda a obra do Aquinate o axioma que ele formula logo na primeira questatildeo da Suma de Teologia ldquo[] a graccedila natildeo suprime a natureza mas a aperfeiccediloa []rdquo9 Assim em sua obra o que haacute de humano nunca eacute tolhido mas assumido Por isso ele pocircde acolher Aristoacuteteles Contudo o componente humano eacute deveras aperfeiccediloado pela graccedila e pelo prodigioso poder especulativo do nosso pensador Em outros termos em Tomaacutes o componente humano eacute integrado agrave Revelaccedilatildeo mas sem ser suprimido por esta

Respondo dizendo que os dons da graccedila satildeo de tal modo acrescidos agrave natureza que eles natildeo a suprimem senatildeo que mais a aperfeiccediloam Eis porque a luz da feacute que eacute gratuitamente infusa em noacutes natildeo destroacutei a luz natural da razatildeo que nos eacute divinamente dada10

Lima Vaz condensa

Em nenhum momento os textos tomaacutesicos inflectem no sentido de uma eacutetica puramente humana ou entatildeo mais aristoteacutelica do que cristatilde o pensamento eacutetico que encontramos na Summa Mesmo o comentaacuterio da Eacutetica de Nicocircmaco rigorosamente filosoacutefico se permite abrir clareiras por onde filtra alguma luz

8 JEAUNEAU Eacutedouard A Filosofia Medieval Trad Joatildeo Afonso dos Santos Lisboa Ediccedilotildees 70 1986 p 85 9 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 8 ad 2 ldquo[] gratia non tollat naturam sed perficiat []rdquo 10 TOMAacuteS DE AQUINO Super De Trinitate pars 1 q 2 a 3 co 1 Disponiacutevel em lt httpwwwcorpusthomisticumorgcbthtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoResponsio Dicendum quod dona gratiarum hoc modo naturae adduntur quod eam non tollunt sed magis perficiunt unde et lumen fidei quod nobis gratis infunditur non destruit lumen naturalis rationis divinitus nobis inditumrdquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 153

que vem da Teologia A segunda chave que devemos denominar igualmente necessaacuteria ex hypothesi eacute a chave filosoacutefica A hipoacutetese eacute aqui em uacuteltima instacircncia a opccedilatildeo fundamental de Tomaacutes de Aquino que orienta toda a sua obra e que afirma a autonomia relativa da razatildeo e a vigecircncia de suas leis loacutegicas e de seu alcance ontoloacutegico em toda construccedilatildeo intelectual mdash de modo eminente na Teologia mdash segundo o axioma gratia non destruit naturam sed perficit Ora a mais alta obra da razatildeo eacute a Filosofia e segundo a convicccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino e da maioria dos doutores medievais ningueacutem aproximou-se tanto quanto Aristoacuteteles do ideal do saber filosoacutefico A partir pois da necessidade teoacuterica da integraccedilatildeo da razatildeo filosoacutefica na edificaccedilatildeo da ciecircncia teoloacutegica e da necessidade histoacuterica de receber de Aristoacuteteles os instrumentos e as categorias fundamentais dessa razatildeo o Aquinatense natildeo hesita em utilizar amplamente e profundamente a Eacutetica de Nicocircmaco interpretando-a livremente segundo as exigecircncias da moral Evangeacutelica na grandiosa construccedilatildeo intelectual de uma Eacutetica cristatilde levada a cabo na IIa parte da Summa Theologiae11

Uma vez que ldquoa graccedila natildeo tolhe a naturezardquo passemos a

trabalhar aquele que nos parece ser o conceito primordial de nossa exposiccedilatildeo qual seja o de natureza 32 O CONCEITO DE NATUREZA EM TOMAacuteS

Tomando por base os pressupostos jaacute anteriormente estabelecidos tentemos refletir em primeiro lugar acerca do que nos possa fazer pensar que natildeo haja espaccedilo numa teologia cristatilde como a de Tomaacutes para o exerciacutecio de uma racionalidade filosoacutefica A primeira objeccedilatildeo que nos vem agrave mente e que Tomaacutes mesmo se fez eacute a natureza racional mdash cuja obra maior eacute a filosofia mdash natildeo foi corrompida pelo pecado Se sim como podemos pensar que o homem mdash abandonado agraves suas proacuteprias forccedilas mdash seja capaz de virtudes Tomaacutes natildeo se esquiva da dificuldade Ele argumenta no

11 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 pp 214-215

154 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino estado de integridade mdash antes do pecado mdash havia trecircs bens concernentes agrave natureza humana Satildeo eles os princiacutepios constitutivos dela (o homem eacute definido como um animal racional) a inclinaccedilatildeo para a virtude e a justiccedila original que eacute um dom sobrenatural Pelo pecado ldquo[] o primeiro natildeo eacute nem tirado nem diminuiacutedo []rdquo12 Conforme afirma Tomaacutes ldquo[] o pecado natildeo pode tirar completamente do homem que seja racional porque jaacute natildeo seria capaz de pecadordquo13 Gilson comentando esta passagem chega a dizer que ldquoSupor o contraacuteriordquo mdash isto eacute que o pecado corrompeu a natureza humana enquanto tal mdash ldquoseria admitir que o homem poderia continuar sendo homem deixando de ser homemrdquo14 O terceiro bem de fato foi totalmente subtraiacutedo do homem Mas observemos que este terceiro bem natildeo eacute considerado pelo Aquinate como algo devido agrave natureza humana No Compendium Theologiae ele o denomina ldquo[] virtude excedente agrave sua condiccedilatildeo natural []rdquo15 Finalmente o segundo bem o do

12 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 85 1 C ldquoPrimum igitur bonum naturae nec tollitur nec diminuitur per peccatumrdquo 13 Idem Ibidem I-II 85 2 C ldquoPer peccatum autem non potest totaliter ab homine tolli quod sit rationalis quia iam non esset capax peccatirdquo 14 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad Eduardo Brandatildeo Rev Tessa Moura Lacerda Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 p 171 15 TOMAacuteS DE AQUINO Compecircndio de Teologia Trad Odilatildeo Moura 2 ed Porto Alegre EDIPUCRS 1996 I CLXXXVI 2 Na ediccedilatildeo biliacutengue a traduccedilatildeo permanece mais fiel ao original latino Idem Ibidem I 186 ldquoErat igitur hoc ex virtute superiori scilicet Dei qui sicut animam rationabilem corpori coniunxit omnem proportionem corporis et corporearum virtutum cuiusmodi sunt vires sensibiles transcendentem ita dedit animae rationali virtutem ut supra conditionem corporis ipsum continere posset et vires sensibiles secundum quod rationali animae competebat Ut igitur ratio inferiora sub se firmiter contineret oportebat quod ipsa firmiter sub Deo contineretur a quo virtutem praedictam habebat supra conditionem naturaerdquo ldquoEra pois uma virtude superior [virtute superiori] ou seja a de Deus que assim como uniu ao corpo uma alma racional que transcende toda a proporccedilatildeo do corpo e das virtudes corporais como as virtudes sensiacuteveis assim tambeacutem deu agrave alma racional a virtude de sobre a condiccedilatildeo do corpo poder contecirc-lo e agraves virtudes sensiacuteveis segundo o que competia agrave alma racional A fim pois de que a razatildeo contivesse firmemente sob si as coisas inferiores era necessaacuterio que ela mesma se contivesse firmemente sob Deus do qual tinha a referida virtude sobre a condiccedilatildeo da naturezardquo Na Summa Tomaacutes natildeo eacute menos claro quanto a isso Idem Suma Teoloacutegica I 95 1 C ldquoErat enim haec rectitudo secundum hoc quod ratio subdebatur Deo rationi vero inferiores vires et animae corpus Prima autem subiectio erat causa et secundae et tertiae quandiu enim ratio manebat Deo subiecta inferiora ei subdebantur ut Augustinus dicit Manifestum est autem quod illa subiectio corporis ad animam et inferiorum virium ad rationem non erat naturalis alioquin post peccatum mansisset cum etiam in

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meio a saber a inclinaccedilatildeo natural para a virtude foi ldquo[] apenas diminuiacutedo pelo pecadordquo16 Ao que Gilson conclui ldquoAssim o pecado natildeo poderia acrescentar nada agrave natureza humana nem nada lhe retirarrdquo17 Eacute a mesma conclusatildeo a que chega Vasoli ldquo[] natildeo se deve esquecer de que a filosofia tomista legitima assim a existecircncia de uma natureza conclusa e autossuficiente dotada de leis proacuteprias e processos necessaacuterios proacutepriosrdquo18 Em siacutentese ldquo[] pelo pecado natildeo eacute tirado o bem natural que pertence agrave espeacutecierdquo19 Diante disso a eacutetica de Tomaacutes mdash mesmo sendo fundamentalmente uma teologia moral mdash natildeo precisa considerar o homem como um ente totalmente depravado 20 E por isso mesmo ela se abre a consideraccedilotildees proacuteprias de uma eacutetica filosoacutefica Jaacute nas Quaestiones disputatae de veritate o Aquinate dizia que o homem perdendo a justiccedila original mdash que era uma virtude excedente agrave sua natureza

Daemonibus data naturalia post peccatum permanserint ut Dionysius dicit cap IV de Div Nom Unde manifestum est quod et illa prima subiectio qua ratio Deo subdebatur non erat solum secundum naturam sed secundum supernaturale donum gratiae non enim potest esse quod effectus sit potior quam causardquo ldquoEssa retidatildeo consistia em que a razatildeo estava submetida a Deus as forccedilas inferiores agrave razatildeo e o corpo agrave alma A primeira dessas submissotildees era a causa a um tempo da segunda e da terceira Pois enquanto a razatildeo estivesse submetida a Deus os inferiores lhe permaneciam submissos como afirma Agostinho Aliaacutes eacute claro que essa submissatildeo do corpo agrave alma e das forccedilas inferiores agrave razatildeo natildeo era natural de outra sorte teria persistido depois do pecado pois entre os democircnios tambeacutem os elementos naturais permaneceram depois do pecado como diz Dioniacutesio Por consequumlecircncia eacute claro que tambeacutem a primeira submissatildeo a da razatildeo a Deus natildeo era somente natural mas um dom sobrenatural da graccedila natildeo eacute possiacutevel que o efeito seja superior agrave causardquo 16 Idem Ibidem I-II 85 I C ldquoSed medium bonum naturae scilicet ipsa naturalis inclinatio ad virtutem diminuitur per peccatumrdquo 17 GILSON O Espiacuterito da Filosofia Medieval p 171 18 VASOLI Cesare Storia della filosofia II La filosofia medioevale Milano Feltrinelli 1961 p 311 [A traduccedilatildeo eacute nossa] p 311 ldquo[] non si deve dimenticare che la filosofia tomistica legittima cosiacute lrsquoesistencia di una natura conclusa ed autosufficiente dotada di leggi proprie e di propri processi necessarirdquo 19 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios IV LII 13 [3888] ldquoPer peccatum enim non tollitur bonum naturae quod ad speciem naturae pertinet []rdquo 20 O infiel ou qualquer que natildeo esteja em estado de graccedila natildeo estaacute fadado a fazer o mal em tudo quanto faz Idem Suma Teoloacutegica II-II 10 4 C ldquoLogo eacute claro que os infieacuteis natildeo podem fazer boas obras que decorram da graccedila isto eacute obras meritoacuterias entretanto podem de algum modo praticar boas obras para as quais basta o bem da natureza Portanto natildeo pecam necessariamente em tudo o que fazem mas sempre que fazem alguma obra procedente da infidelidade entatildeo pecamrdquo

156 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino um dom concedido pela liberalidade divina mdash natildeo passou a ser portador de uma natureza absolutamente prevaricada senatildeo que voltou a contar somente com o que lhe convinha naturalmente

Com efeito o que foi concedido ao homem no primeiro estado para que a razatildeo totalmente dominasse as potecircncias inferiores tambeacutem a alma e o corpo natildeo proveio do poder dos princiacutepios naturais mas do poder da justiccedila original acrescentada agrave natureza pela liberalidade divina Com efeito suprimida tal justiccedila pelo pecado o homem voltou ao estado que lhe convinha por seus princiacutepios naturais21

Haacute uma vexata quaestio que decorre do quanto jaacute dissemos

e que deve ser tratada sob pena de todo o nosso esforccedilo ser vatildeo Trata-se de saber mdash e o proacuteprio Aquinate se questiona acerca disso mdash se as virtudes eacuteticas ou morais (mos em latim) podem existir em noacutes sem a caridade Aqui segundo pensamos o gecircnio especulativo de Tomaacutes se manifesta de forma exemplar Depois de dizer que as virtudes naturais natildeo existem em noacutes por natureza salvo ldquo[] em estado de aptidatildeo e incoativamente []rdquo 22 mas devem ser adquiridas pela repeticcedilatildeo dos atos conducentes a elas23 conclui

Conforme foi dito acima as virtudes morais enquanto obram um bem em ordem a um fim que natildeo excede a capacidade natural humana podem ser adquiridas pelos atos humanos E assim

21 TOMAacuteS DE AQUINO A sensualidade Quaestiones disputatae de veritate questatildeo 25 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Beatriz Rodrigues de Lima Satildeo Paulo Edipro 2015 25 7 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoQuod enim homini in primo statu collatum fuit ut ratio totaliter inferiores vires contineret et anima corpus non fuit ex virtute principiorum naturalium sed ex virtute originalis iustitiae ex divina liberalitate superadditae Qua quidem iustitia per peccatum sublata homo rediit ad statum convenientem sibi per principia sua naturalia []rdquo 22 Idem Suma Teoloacutegica I-II 63 1 C ldquoSic ergo patet quod virtutes in nobis sunt a natura secundum aptitudinem et inchoationem []rdquo 23 Idem Ibidem I-II 63 2 C ldquoPortanto a virtude humana ordenada para o bem que eacute medido pela regra da razatildeo humana pode ser causada pelos atos humanos enquanto esses atos procedem da razatildeo de cujo poder e controle depende o referido bemrdquo

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adquiridas podem existir sem a caridade como existiram em muitos pagatildeos24

Isto exposto toda a questatildeo gira em torno do que Tomaacutes

fala em seguida acerca destas mesmas virtudes morais

Mas enquanto obram um bem em ordem ao fim uacuteltimo sobrenatural eacute que atingem perfeita e verdadeiramente a razatildeo da virtude e natildeo podem ser adquiridas pelos atos humanos mas satildeo infundidas por Deus E essas virtudes morais natildeo podem existir sem a caridade25

Eis o impasse como entender que as virtudes possam

existir em noacutes de forma imperfeita se a virtude se define justamente como uma excelecircncia O Aquinate natildeo pode simplesmente desdizer o que jaacute disse ou seja que as virtudes morais podem existir sem a caridade tanto que existiram em muitos pagatildeos Ele dirime a dificuldade saindo do plano da univocidade Perfeito diz-se de muitos modos No De Virtutibus Tomaacutes arrola trecircs modos de perfeiccedilatildeo Haacute uma perfeiccedilatildeo absoluta agrave qual nada falta de toda perfeiccedilatildeo possiacutevel haacute uma perfeiccedilatildeo segundo a natureza que existe no caso do homem hipoteticamente naquele que consegue desenvolver toda perfeiccedilatildeo possiacutevel agrave sua natureza e haacute finalmente uma perfeiccedilatildeo segundo o tempo que existe naquele que possui a perfeiccedilatildeo proporcional a um determinado tempo e condiccedilatildeo

24 Idem Ibidem I-II 65 2 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est virtutes morales prout sunt operativae boni in ordine ad finem qui non excedit facultatem naturalem hominis possunt per opera humana acquiri Et sic acquisitae sine caritate esse possunt sicut fuerunt in multis gentilibusrdquo 25 Idem Ibidem [O itaacutelico eacute nosso] ldquoSecundum autem quod sunt operativae boni in ordine ad ultimum finem supernaturalem sic perfecte et vere habent rationem virtutis et non possunt humanis actibus acquiri sed infunduntur a Deo Et huiusmodi virtutes morales sine caritate esse non possuntrdquo

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[] como quando dizemos que uma crianccedila eacute perfeita porque tem de acordo com aquela idade todos os elementos que se requerem para que chegue a ser um homem adulto26

A perfeiccedilatildeo absoluta mdash continua Tomaacutes no corpo do

mesmo artigo que trata da caridade mdash soacute Deus a possui A perfeiccedilatildeo segundo a natureza o homem pode tecirc-la mas natildeo nesta vida E a perfeiccedilatildeo quanto ao tempo o homem pode possuiacute-la nesta vida Ora aplicando isto mutatis mutandis ao tema das virtudes morais devemos dizer que a perfeiccedilatildeo que podemos ter delas sem a caridade eacute uma perfeiccedilatildeo segundo o tempo isto eacute o homem pode praticaacute-las de forma perfeita para satisfazer a vida poliacutetica a que elas se ordenam e agrave qual ele eacute chamado por natureza Isso eacute possiacutevel porque se por um lado mdash apoacutes o pecado mdash o ldquo[] homem falha naquilo que lhe eacute possiacutevel pela sua natureza a tal ponto que ele natildeo pode mais por suas forccedilas naturais realizar totalmente o bem proporcionado agrave sua naturezardquo27 por outro o bem comum que eacute aquilo que o homem busca na vida poliacutetica mdash agrave qual as virtudes eacuteticas o ordenam mdash tambeacutem natildeo reclama dele necessariamente o ato de todas as virtudes nem pretende coibir

26 TOMAacuteS DE AQUINO A Caridade a Correccedilatildeo Fraterna e a Esperanccedila Trad Paulo Faitanin Bernardo Veiga Satildeo Paulo Ecclesiae 2013 2 10 C ldquoPerfectum secundum tempus dicimus quando nihil deest alicui eorum quae natum est habere secundum tempus illud sicut dicimus puerum perfectum quia habet ea quae requiruntur ad hominem secundum aetatem illamrdquo Na Summa Tomaacutes fala do virtuoso como dotado de uma ldquoperfeiccedilatildeo deficienterdquo se comparada com a divina Idem Suma Teoloacutegica II-II 161 1 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod perfectum dicitur aliquid dupliciter Uno modo simpliciter in quo scilicet nullus defectus invenitur nec secundum suam naturam nec per respectum ad aliquid aliud Et sic solus Deus est perfectus cui secundum naturam divinam non competit humilitas sed solum secundum naturam assumptam Alio modo potest dici aliquid perfectum secundum quid puta secundum suam naturam vel secundum statum aut tempus Et hoc modo homo virtuosus est perfectus Cuius tamen perfectio in comparatione ad Deum deficiens invenitur []rdquo ldquoDeve-se dizer que de duas maneiras se atesta que um ser eacute perfeito Primeiro absolutamente quando nele nenhum defeito existe nem em si mesmo nem em relaccedilatildeo a outros seres Neste sentido perfeito eacute soacute Deus a cuja natureza divina natildeo cabe a humildade mas soacute pela natureza assumida mdash Segundo em sentido relativo por exemplo quanto agrave sua natureza ou quanto agrave sua condiccedilatildeo ou ainda quanto ao tempo Nesse sentido o homem virtuoso eacute perfeito malgrado sua perfeiccedilatildeo seja deficiente comparada com Deus []rdquo 27 Idem Ibidem I-II 109 2 C ldquoSed in statu naturae corruptae etiam deficit homo ab hoc quod secundum suam naturam potest ut non possit totum huiusmodi bonum implere per sua naturaliardquo

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todos os viacutecios Tomaacutes natildeo eacute afeito a represaacutelias Aliaacutes segundo ele querer reprimir toda sorte de pecados pode incitar a viacutecios maiores ldquoDeve-se dizer que agraves vezes como foi dito natildeo eacute bom corrigir o pecado para que ele natildeo fique piorrdquo28 De sorte que agraves vezes conclui o Aquinate noutro trecho o remeacutedio eacute tolerar para que as coisas natildeo fiquem ainda piores ldquo[] como diz Agostinho lsquoSuprime as meretrizes da sociedade humana e perturbaraacutes tudo com a libidinagemrsquordquo29 O fato eacute que a lei natildeo visa a coibir todos viacutecios ou a preceituar todas as virtudes

E assim pela lei humana natildeo satildeo proibidos todos os viacutecios dos quais se abstecircm os virtuosos mas tatildeo-soacute os mais graves dos quais eacute possiacutevel agrave maior parte dos homens se abster e principalmente aqueles que satildeo em prejuiacutezo dos outros sem cuja proibiccedilatildeo a sociedade humana natildeo pode conservar-se []30

A lei humana poreacutem natildeo preceitua sobre todos os atos de todas as virtudes mas apenas sobre aqueles que satildeo ordenaacuteveis ao bem comum ou imediatamente como quando algumas coisas se fazem diretamente em razatildeo do bem comum ou mediatamente como quando satildeo ordenadas pelo legislador algumas coisas pertencentes agrave boa disciplina por meio da qual os cidadatildeos satildeo

28 Idem Ibidem II-II 150 1 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod aliquando correctio peccatoris est intermittenda ne fiat inde deterior ut supra dictum estrdquo 29 Idem Ibidem II-II 10 11 C ldquo[] sicut Augustinus dicit in II de ordine aufer meretrices de rebus humanis turbaveris omnia libidinibusrdquo 30 Idem Ibidem I-II 96 2 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoEt ideo lege humana non prohibentur omnia vitia a quibus virtuosi abstinent sed solum graviora a quibus possibile est maiorem partem multitudinis abstinere et praecipue quae sunt in nocumentum aliorum sine quorum prohibitione societas humana conservari non posset sicut prohibentur lege humana homicidia et furta et huiusmodirdquo Nas respostas agraves objeccedilotildees o Aquinate chega a dizer que embora a lei mire a virtude quando se tenta pela lei fazer com que a multidatildeo se abstenha de suacutebito de todos os males esta pretensatildeo acaba por gerar um colapso social Idem Ibidem I-II 96 2 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod lex humana intendit homines inducere ad virtutem non subito sed gradatim Et ideo non statim multitudini imperfectorum imponit ea quae sunt iam virtuosorum ut scilicet ab omnibus malis abstineant Alioquin imperfecti huiusmodi praecepta ferre non valentes in deteriora mala prorumperent []rdquo ldquoDeve-se dizer que a lei humana tenciona induzir os homens agrave virtude natildeo de suacutebito mas gradualmente E assim natildeo impotildee imediatamente agrave multidatildeo dos imperfeitos aquelas coisas que satildeo jaacute dos virtuosos como por exemplo que se abstenham de todos os males De outro modo os imperfeitos natildeo podendo suportar tais preceitos se lanccedilariam a males piores []rdquo

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formados para que conservem o bem comum da justiccedila e da paz31

Mas entatildeo natildeo eacute necessaacuteria a caridade para a consecuccedilatildeo

do bem comum Novamente Tomaacutes natildeo se deixa levar pela univocidade Necessaacuterio segundo o Aquinate pode ser entendido de duas formas

[] ou porque sem ele algo natildeo pode existir por exemplo o alimento eacute necessaacuterio para a conservaccedilatildeo da vida humana ou porque com ele se chega ao fim de modo melhor e mais conveniente por exemplo o cavalo eacute necessaacuterio para viajar32

Quanto ao primeiro modo de necessidade pode-se dizer

que a caridade natildeo eacute necessaacuteria agrave persecuccedilatildeo do bem comum jaacute que este natildeo exige nem uma perfeiccedilatildeo segundo a natureza nem visa a coibir todos os viacutecios Quanto ao segundo modo de necessidade parece evidente que a caridade eacute necessaacuteria pois com a sua correccedilatildeo podemos chegar ao bem viver de forma melhor e mais completa Tendo presentes estes conceitos fundantes passemos a aplicaacute-los agrave eacutetica tal como concebida por Tomaacutes 33 A CONCEPCcedilAtildeO TOMASIANA DA EacuteTICA

No opuacutesculo Quaestiones disputatae De Virtutibus que data da mesma eacutepoca do Comentaacuterio agrave Eacutetica portanto entre 1271 e 1272 mdash ao disputar sobre as virtudes cardeais ou seja a prudecircncia a justiccedila a fortaleza e a temperanccedila mdash Tomaacutes afirma serem elas

31 Idem Ibidem I-II 96 3 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoNon tamen de omnibus actibus omnium virtutum lex humana praecipit sed solum de illis qui sunt ordinabiles ad bonum commune vel immediate sicut cum aliqua directe propter bonum commune fiunt vel mediate sicut cum aliqua ordinantur a legislatore pertinentia ad bonam disciplinam per quam cives informantur ut commune bonum iustitiae et pacis conserventrdquo 32 Idem Ibidem III 1 2 C ldquoRespondeo dicendum quod ad finem aliquem dicitur aliquid esse necessarium dupliciter uno modo sine quo aliquid esse non potest sicut cibus est necessarius ad conservationem humanae vitae alio modo per quod melius et convenientius pervenitur ad finem sicut equus necessarius est ad iterrdquo

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ditas cardeais porque satildeo como a dobradiccedila que gira uma porta no sentido de que eacute por meio do exerciacutecio delas que o homem eacute como que introduzido no humano isto eacute numa vida condizente com a sua natureza enquanto tal Aquino daacute tal valecircncia a estas virtudes morais que diz ser a vida praacutetica qual seja a vida moral mdash na qual elas como que nos entronizam mdash a vida propriamente humana sendo a vida que se apega unicamente aos sentidos bestial e a vida contemplativa sobre-humana Vemos aqui que o Aquinate com a analogia da dobradiccedila que gira uma porta aproxima-se muito da metaacutefora do ἤθος (ḗthos) como a casa do homem bem como de uma concepccedilatildeo da ἠθική (ēthikḗ) como a ciecircncia do eacutethos Em outros termos Tomaacutes concebe que a eacutetica tenha de forma irrevogaacutevel uma face humana destinada agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica Tomemos as palavras do proacuteprio autor

Respondo dizendo que ldquocardealrdquo se diz da dobradiccedila na qual se gira a porta [] Por isso se chamam virtudes cardeais aquelas nas quais se fundam a vida humana pela qual se entra pela porta A vida humana poreacutem eacute a proporcionada ao homem No entanto em relaccedilatildeo ao homem se encontra primeiramente uma certa natureza sensitiva na qual coincide com a dos animais irracionais A razatildeo praacutetica que eacute proacutepria do homem se encontra conforme o seu grau e o intelecto especulativo que natildeo se encontra de modo perfeito no homem assim como se encontra nos anjos mas segundo uma certa participaccedilatildeo da alma Por isso a vida contemplativa natildeo eacute propriamente humana mas sobre-humana Contudo a vida voluptuosa que se apega aos bens sensiacuteveis natildeo eacute humana mas bestial Logo a vida propriamente humana eacute a vida ativa que consiste no exerciacutecio das virtudes morais E por isso satildeo chamadas propriamente de virtudes cardeais aquelas pelas quais de algum modo a vida moral se funda e se altera assim como em certos princiacutepios de tal vida33

33 TOMAacuteS DE AQUINO As Virtudes Morais Trad Paulo Faitanin Bernardo Veiga Satildeo Paulo Ecclesiae 2012 5 1 C [Os itaacutelicos satildeo nossos] ldquoRespondeo Dicendum quod cardinalis a cardine dicitur in quo ostium vertitur [] Unde virtutes cardinales dicuntur in quibus fundatur vita humana per quam in ostium introitur vita autem humana est quae est homini proportionata In hoc homine autem invenitur primo quidem natura sensitiva in qua convenit cum brutis ratio practica quae est homini propria secundum suum gradum et intellectus speculativus qui non

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Neste sentido pensamos poder afirmar que Tomaacutes permanece fiel ao ideal da eacutetica antiga inclusive da aristoteacutelica No nosso entendimento a leitura da eacutetica aristoteacutelica pelo Aquinate corresponde por assim dizer ao exerciacutecio que ele empreende para girar a dobradiccedila da porta que o possibilita adentrar na casa do homem a qual tem o seu alicerce exatamente nas virtudes cardeais as principais virtudes relacionadas agrave vida eacutetica Mas qual eacute o papel da razatildeo na formulaccedilatildeo da eacutetica tomasiana 34 O PAPEL DA RAZAtildeO DA LINGUAGEM E DA LEI NA EacuteTICA TOMASIANA

A razatildeo faculta ao homem a capacidade de ir aleacutem da simples ldquoemissatildeo de vozrdquo para a comunicaccedilatildeo pela palavra (verbum) pela linguagem (locutio) A falar com maacutexima exaccedilatildeo Tomaacutes distingue a palavra enquanto simples ldquoemissatildeo de vozrdquo do verbum que segundo o Aquinate eacute uma palavra dotada de significado Em passagem jaacute citada ele afirma ldquoA palavra [vox=voz] que natildeo eacute significativa natildeo pode ser chamada de verbo [verbum=palavra]rdquo34 Sendo pois a palavra [verbum] uma voz dotada de significado temos que a ldquosimples vozrdquo eacute uma peculiaridade dos seres vivos em geral mdash ldquo[] nenhum ente inanimado tem vozrdquo35 mdash enquanto a palavra (verbum) eacute exclusiva dos seres racionais Desta sorte na concepccedilatildeo de Aquino a palavra (verbum) eacute obra da razatildeo36 A partir desta visatildeo de razatildeo como a

perfecte in homine invenitur sicut invenitur in Angelis sed secundum quamdam participationem animae Ideo vita contemplativa non est proprie humana sed superhumana vita autem voluptuosa quae inhaeret sensibilibus bonis non est humana sed bestialis Vita ergo proprie humana est vita activa quae consistit in exercitio virtutum moralium et ideo proprie virtutes cardinales dicuntur in quibus quodammodo vertitur et fundatur vita moralis sicut in quibusdam principiis talis vitae []rdquo 34 Idem Suma Teoloacutegica I 34 1 C ldquoVox autem quae non est significativa verbum dici non potestrdquo 35 TOMAacuteS DE AQUINO Sentencia De anima Lib 2 18 n 1 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcan2htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoNullum autem inanimatum habet vocemrdquo 36 Idem Suma Teoloacutegica I 34 1 C Sic igitur primo et principaliter interior mentis conceptus verbum dicitur secundario vero ipsa vox interioris conceptus significativa []rdquo ldquoVerbo

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capacidade de se expressar de forma significativa pensamos que a conceptualidade filosoacutefica da eacutetica tomasiana recupera mdash a seu modo mdash o fundamento da eacutetica aristoteacutelica Mesmo os leitores mais tradicionais de Tomaacutes reconhecem que a linguagem desempenha um papel preponderante no seu pensamento poliacutetico ldquoMas o sinal mais evidente da natureza social do homem eacute a faculdade de exprimir as suas ideias aos outros homens por meio da linguagemrdquo37 No De Regno Tomaacutes afirma ter sido a linguagem o fator fundante da vida poliacutetica

Isto se patenteia com muita evidecircncia no ser proacuteprio do homem usar da linguagem pela qual pode exprimir totalmente a outrem o seu conceito [] Eacute pois o homem mais comunicativo que qualquer outro animal gregaacuterio como o grou a formiga e a abelha38

Porro comentando esta passagem natildeo deixa duacutevidas ldquoA

comunidade poliacutetica fundamenta-se tambeacutem na linguagem pois o homem eacute absolutamente o animal lsquomais comunicativorsquordquo 39 Destarte pela razatildeo o homem torna-se capaz de dizer o que eacute bem e o que eacute mal de distinguir as accedilotildees justas das injustas Poreacutem exatamente por esta razatildeo ser comunicaacutevel estaacute inscrita na proacutepria natureza humana que a consecuccedilatildeo destes valores mdash bemmal justoinjusto mdash soacute se pode dar em comunhatildeo com outros

[verbum=palavra] portanto significa primeira e principalmente o conceito interior da mente Em segundo lugar a palavra que exprime o conceito interiorrdquo 37 COPLESTON Frederick Storia della Filosofia Vol II La Filosofia Medioevale da Agostino a Escoto Trad A Balestrieri Sacchi Rev Enzo Maccagnolo Brescia Paideia 1971 p 524 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoMa il segno piugrave evidente della natura sociale dellrsquouomo egrave la facoltagrave di esprimere le sue idee ad altri uomini per mezzo del linguaggiordquo 38 TOMAacuteS DE AQUINO Do reino ou do governo dos priacutencipes ao Rei de Chipre Trad Arlindo Veiga dos Santos Rev Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento I II In Escritos Poliacuteticos de Santo Tomaacutes de Aquino Rio de Janeiro Vozes 1997 (Claacutessicos do pensamento poliacutetico) p 127 ldquoHoc etiam evidentissime declaratur per hoc quod est proprium hominis locutione uti per quam unus homo aliis suum conceptum totaliter potest exprimere [] Magis igitur homo est communicativus alteri quam quodcumque aliud animal quod gregale videtur ut grus formica et apisrdquo 39 PORRO Tomaacutes de Aquino Um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 209

164 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino homens De sorte que o discernimento do que eacute justo e do que eacute injusto deve ser celebrado quando os homens comungam da vida uns dos outros Eacute assim que nasce a civitas No Comentaacuterio agrave Poliacutetica Tomaacutes argumenta

Vemos com efeito que se certos animais tecircm a voz ou o grito apenas o homem tem a linguagem (locutio) [] A palavra humana serve para significar o que eacute uacutetil e o que eacute nocivo e tambeacutem o justo e o injusto Justiccedila e injusticcedila consistem em que alguns se ajustam ou natildeo em mateacuteria de utilidade ou de nocividade A palavra eacute pois proacutepria aos homens porque em comparaccedilatildeo aos animais lhes eacute proacuteprio ter o conhecimento do bem e do mal do justo e do injusto e de outras realidades desse gecircnero que podem ser significadas pela palavra (sermo)40

Uma vez que a palavra foi dada ao homem pela natureza e uma vez que ela eacute ordenada a permitir a ldquocomunicaccedilatildeordquo entre os homens em mateacuteria de utilidade e nocividade de justiccedila e de injusticcedila e de outros valores semelhantes segue-se mdash dado que a natureza nada faz em vatildeo mdash que eacute natural aos homens ldquocomunicarrdquo entre si sobre essas realidades Ora eacute precisamente a ldquocomunicaccedilatildeordquo nesses valores que constitui a famiacutelia e a cidade o homem eacute pois por natureza um ser domeacutestico e poliacutetico41

Nem podemos dizer que esta seja uma posiccedilatildeo que o

Aquinate assume enquanto comentarista de Aristoacuteteles jaacute que ele a

40 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia libri Politicorum Lib 1 1 n 28 e 29 In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 336 ldquoVidemus enim quod cum quaedam alia animalia habeant vocem solus homo supra alia animalia habeat loquutionem [] Sed loquutio humana significat quid est utile et quid nocivum Ex quo sequitur quod significet iustum et iniustum Consistit enim iustitia et iniustitia ex hoc quod aliqui adaequentur vel non aequentur in rebus utilibus et nocivis Et ideo loquutio est propria hominibus quia hoc est proprium eis in comparatione ad alia animalia quod habeant cognitionem boni et mali ita et iniusti et aliorum huiusmodi quae sermone significari possuntrdquo 41 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia libri Politicorum Lib 11 n 29 In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 336 ldquoCum ergo homini datus sit sermo a natura et sermo ordinetur ad hoc quod homines sibiinvicem communicent in utili et nocivo iusto et iniusto et aliis huiusmodi sequitur ex quo natura nihil facit frustra quod naturaliter homines in his sibi communicent Sed communicatio in istis facit domum et civitatem Igitur homo est naturaliter animal domesticum et civilerdquo

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retoma em suas obras de siacutentese Na Summa Contra Gentiles ele define que ldquo[] o homem eacute naturalmente animal poliacutetico e socialrdquo 42 Mas tentemos aprofundar o que buscamos dizer Quando Tomaacutes pensa na lei por exemplo ele a pensa como regra e medida dos atos humanos43 afirmando que esta regra estaacute na razatildeo ldquoA regra e a medida dos atos humanos eacute com efeito a razatildeo []rdquo44 E diz mais ao afirmar que a razatildeo eacute ldquo[] o primeiro princiacutepio dos atos humanos []rdquo45 Noutro lugar mdash depois de destacar que no homem se encontram muitas coisas mdash sublinha que ldquoA razatildeo no homem ocupa o lugar do que domina e natildeo do que estaacute submetido agrave dominaccedilatildeordquo46 Entretanto haacute mais Ao propugnar que a razatildeo eacute a regra dos atos humanos discrimina tambeacutem o que de especiacutefico a razatildeo dita ao homem E entre outras coisas a razatildeo dita ao homem ldquo[] que viva em sociedade [] que natildeo ofenda aqueles com os quais deve conviver []rdquo47

Todavia o Aquinate natildeo para por aiacute Quando deseja definir qual eacute a obra proacutepria da razatildeo assinala de forma coerente ldquo[] a linguagem obra proacutepria da razatildeo []rdquo48 Desta sorte se a regra dos atos humanos eacute a razatildeo sendo a obra proacutepria dela a linguagem isto eacute a capacidade de comunicaccedilatildeo e por conseguinte de criar comunhatildeo entre os homens torna-se claro que o que a razatildeo nos ordena de mais proacuteprio eacute viver em comunidade Logo qualquer ordenaccedilatildeo ulterior da razatildeo ou seja qualquer lei ldquo[] por primeiro e principalmente visa a ordenaccedilatildeo ao bem

42 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios III LXXXV 10 [2607] ldquoHomo naturaliter est animal politicum vel sociale []rdquo 43 Idem Suma Teoloacutegica I-II 90 1 C ldquo[] lex quaedam regula est et mensura actuum []rdquo 44 Idem Ibidem ldquoRegula autem et mensura humanorum actuum est ratio []rdquo 45 Idem Ibidem ldquoPrimum principium actuum humanorum []rdquo 46 Idem Ibidem I 96 2 C ldquoRatio autem in homine habet locum dominantis et non subiecti dominiordquo 47 Idem Ibidem I-II 94 2 C ldquo[] quod in societate vivat [] quod alios non offendat cum quibus debet conversari []rdquo 48 Idem Ibidem I 91 3 ad 3 ldquo[] locutionem quae est proprium opus rationis []rdquo

166 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino comumrdquo49 De acordo com Tomaacutes ldquoComo pois cada homem eacute parte da cidade eacute impossiacutevel que um homem seja bom a menos que seja bem proporcionado ao bem comum []rdquo50 Assim toda lei soacute tem valor de lei se for instituiacuteda pela multidatildeo ou por quem a representa Neste sentido se o legislador for um deacutespota ldquoDeve-se dizer que a lei tiracircnica uma vez que natildeo eacute segundo a razatildeo natildeo eacute simplesmente lei mas antes certa perversidade da leirdquo51 Em outras palavras soacute pode haver lei quando ela eacute constituiacuteda pela comunicaccedilatildeo da linguagem vale dizer pela comunhatildeo de valores que nasce desta comunicaccedilatildeo Diz Tomaacutes

Ordenar poreacutem algo para o bem comum eacute ou de toda a multidatildeo ou de algueacutem que faz as vezes de toda a multidatildeo E assim constituir a lei ou pertence a toda a multidatildeo ou pertence agrave pessoa puacuteblica que tem o cuidado de toda a multidatildeo52

Abbagnano ao comentar esta passagem da Suma afirma

ldquoSanto Tomaacutes desta forma explicitamente afirmou a origem popular das leisrdquo53 Aliaacutes o proacuteprio Tomaacutes acena para isso

Se com efeito eacute uma multidatildeo livre que pode fazer-se a lei o consenso de toda a multidatildeo para algo a observar-se que o costume manifesta eacute mais do que a autoridade do priacutencipe que

49 Idem Ibidem I-II 90 3 C ldquo[] primo et principaliter respicit ordinem ad bonum commune []rdquo 50 Idem Ibidem I-II 92 1 ad 3 ldquoCum igitur quilibet homo sit pars civitatis impossibile est quod aliquis homo sit bonus nisi sit bene proportionatus bono communi []rdquo 51 Idem Ibidem I-II 92 1 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod lex tyrannica cum non sit secundum rationem non est simpliciter lex sed magis est quaedam perversitas legisrdquo 52 Idem Ibidem I-II 90 3 C ldquoOrdinare autem aliquid in bonum commune est vel totius multitudinis vel alicuius gerentis vicem totius multitudinis Et ideo condere legem vel pertinet ad totam multitudinem vel pertinet ad personam publicam quae totius multitudinis curam habet Quia et in omnibus aliis ordinare in finem est eius cuius est proprius ille finisrdquo 53 ABBAGNANO Nicola Storia della Filosofia La Filosofia Antica la Patristica e la Escolastica Torino UTET Libreria 2003 p 581 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoS Tommaso ha cosiacute esplicitamente affermato lrsquoorigine popolare delle leggirdquo

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natildeo tem poder de fazer a lei a natildeo ser enquanto gere a pessoa da multidatildeo54

Contudo podemos nos perguntar no caso de transferir

para o priacutencipe a missatildeo de legislar a multidatildeo natildeo se estaacute alienando da sua missatildeo proacutepria De modo algum Urge que entendamos ao menos em suas linhas gerais como Tomaacutes pensa o governo Natildeo se tem duacutevida de que para ele havendo acomodaccedilatildeo para tanto o governo de um soacute eacute o melhor de todos os regimes Poreacutem o governo de um soacute natildeo significa pura e simplesmente que somente uma pessoa venha a deter todo o poder55 Antes a autoridade constituiacuteda (o priacutencipe ou o rei) natildeo pode assegurar o bem comum do povo sem o povo Por conseguinte eacute de suma importacircncia que aquele que governa junte a si mdash de todas as partes do corpo social mdash os que possam conjuntamente colaborar na busca do bem comum Ora isto leva o Aquinate a optar na verdade por uma espeacutecie de regime misto como o melhor

O priacutencipe rei ou de qualquer modo que se o designe natildeo pode assegurar o bem comum do povo senatildeo apoiando-se nele Por conseguinte deve buscar a colaboraccedilatildeo de todas as forccedilas sociais para o bem comum para dirigi-las e uni-las Daiacute nasce o que o mesmo Santo Tomaacutes denomina um ldquoregime bem dosadordquo que eacute o que considera melhor56

54 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 97 3 ad 3 ldquoSi enim sit libera multitudo quae possit sibi legem facere plus est consensus totius multitudinis ad aliquid observandum quem consuetudo manifestat quam auctoritas principis qui non habet potestatem condendi legem nisi inquantum gerit personam multitudinisrdquo 55 GILSON Eacutetienne Introduccioacuten a La Filosofiacutea de Santo Tomaacutes de Aquino Trad Alberto Oteiza Quirno Buenos Aires Ediciones Descleacutee de Brouwer 1951 pp 458-459 ldquoPor lo dicho debemos entender que el mejor de los regiacutemenes poliacuteticos es el que somete el cuerpo social al gobierno de uno solo pero no que el mejor reacutegimen sea el gobierno del Estado por uno solordquo ldquoPelo que foi dito devemos entender que o melhor dos regimes poliacuteticos eacute o que submete o corpo social ao governo de um soacute poreacutem natildeo que o melhor regime seja o governo do Estado por um soacuterdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 56 Idem Ibidem p 459 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEl priacutencipe rey o de cualquier modo con que se lo designe no puede asegurar el bieacuten comuacuten del pueblo sino apoyaacutendose en eacutel Por conseguiente debe buscar la colaboracioacuten de todas as fuerzas sociales para el bien comuacuten para dirigirlas y unirlasrdquo Assim fica esclarecido que Tomaacutes nunca defendeu uma monarquia no sentido moderno do termo Longe dele por exemplo defender uma monarquia absolutista fundada no direito de sangue Idem

168 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Mas como este regime misto funcionaria Duas coisas seriam necessaacuterias para o seu bom funcionamento a primeira conforme jaacute referimos eacute que todos os cidadatildeos de alguma forma participem da autoridade A segunda consiste em determinar o modo adequado segundo o qual se deve distribuir esta mesma autoridade Tal distribuiccedilatildeo deve ser feita consoante a virtude Assim sendo o proacuteprio rei ou priacutencipe seria eleito como cabeccedila de todo o corpo segundo a sua virtude Abaixo dele e igualmente conforme as suas virtudes seriam eleitos tambeacutem alguns chefes Mas o fato de apenas alguns participarem diretamente da autoridade natildeo excluiria tampouco o resto do povo do governo pois estes chefes poderiam ser escolhidos dentre o povo e pelo povo57

Eis em suas linhas gerais qual seria o melhor regime para Tomaacutes porque conteacutem mdash ldquobem dosadordquo mdash o melhor de cada um dos regimes justos Da monarquia o fato de que um soacute preside Da aristocracia porque o povo tambeacutem delega certo poder a alguns cidadatildeos de acordo com as suas virtudes Da democracia porque estes deputados a chefes do povo satildeo eleitos dentre o povo e pelo

Ibidem ldquoEste reacutegimen no se parece en nada a las monarquiacuteas absolutas fundadas en el derecho de la sangre que han pretendido a veces justificarse en la autoridad de Santo Tomaacutes de Aquinordquo ldquoEste regime natildeo se parece em nada com as monarquias absolutistas fundadas no direito de sangue que pretenderam agraves vezes justificar-se na autoridade de Santo Tomaacutesrdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 57 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 105 1 C ldquoRespondeo dicendum quod circa bonam ordinationem principum in aliqua civitate vel gente duo sunt attendenda Quorum unum est ut omnes aliquam partem habeant in principatu per hoc enim conservatur pax populi et omnes talem ordinationem amant et custodiunt [] Aliud est quod attenditur secundum speciem regiminis vel ordinationis principatuum [] Unde optima ordinatio principum est in aliqua civitate vel regno in qua unus praeficitur secundum virtutem qui omnibus praesit et sub ipso sunt aliqui principantes secundum virtutem et tamen talis principatus ad omnes pertinet tum quia ex omnibus eligi possunt tum quia etiam ab omnibus eligunturrdquo ldquoDuas coisas devem ser consideradas acerca da boa ordenaccedilatildeo dos priacutencipes numa cidade ou povo Uma das quais eacute que todos tenham alguma parte no principado Com efeito por meio disso conserva-se a paz do povo e todos amam e guardam tal ordenaccedilatildeo [] Outra coisa eacute o que se considera segundo a espeacutecie de regime ou de ordenaccedilatildeo dos priacutencipes [] Donde a melhor ordenaccedilatildeo dos priacutencipes numa cidade ou reino eacute aquela na qual um eacute posto como chefe com poder o qual a todos preside e sob o mesmo estatildeo todos os que governam com poder e assim tal principado pertence a todos quer porque podem ser escolhidos dentre todos quer porque tambeacutem satildeo escolhidos por todosrdquo [Os itaacutelicos satildeo nossos]

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povo58 Assim o fato de o povo eleger o rei ou o priacutencipe natildeo o aliena da missatildeo de legislar

Eacute preciso ratificar ainda que Tomaacutes de Aquino natildeo eacute um ldquoconvencionalistardquo Ele admite como temos visto que haacute uma lei natural uma lei racional comum a todos os homens O que queremos frisar eacute que ele natildeo deixa de defender tambeacutem que esta lei soacute pode ser descoberta pelos homens quando eles comungam da vida uns dos outros e instituem leis pela mediaccedilatildeo da linguagem (locutio) obra proacutepria da ratio Dito de outro modo pela ldquolocutiordquo daacute-se um exerciacutecio da ldquorazatildeo praacuteticardquo que nos faz chegar por deduccedilatildeo agraves disposiccedilotildees mais particulares da lei natural que satildeo justamente as leis humanas conforme atesta o proacuteprio Aquinate

[] assim tambeacutem dos preceitos da lei natural como de alguns princiacutepios comuns e indemonstraacuteveis eacute necessaacuterio que a razatildeo humana proceda para dispor mais particularmente algumas coisas E estas disposiccedilotildees particulares descobertas segundo a razatildeo humana dizem-se leis humanas []59

Natildeo obstante a lei precise ainda de outros requisitos para

ser efetivada como lei humana este eacute o seu cerne um movimento pelo qual os homens pela mediaccedilatildeo da linguagem descobrem juntos atraveacutes do exerciacutecio das virtudes e do raciociacutenio alguns valores dos quais podem comungar porque inerentes agrave sua natureza Reacutemi Brague ao lidar com estas passagens conclui que a lei natildeo nasce como algo imposto ao homem de fora mas sim como

58 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 105 1 C ldquoTalis enim est optima politia bene commixta ex regno inquantum unus praeest et aristocratia inquantum multi principantur secundum virtutem et ex democratia idest potestate populi inquantum ex popularibus possunt eligi principes et ad populum pertinet electio principumrdquo ldquoTal eacute com efeito o melhor governo bem combinado de reino enquanto um soacute preside de aristocracia enquanto muitos governam com poder e de democracia isto eacute com o poder do povo enquanto os priacutencipes podem ser eleitos dentre as pessoas do povo e ao povo pertence a eleiccedilatildeo dos priacutencipesrdquo 59 Idem Ibidem I-II 91 3 C ldquo[] ita etiam ex praeceptis legis naturalis quasi ex quibusdam principiis communibus et indemonstrabilibus necesse est quod ratio humana procedat ad aliqua magis particulariter disponenda Et istae particulares dispositiones adinventae secundum rationem humanam dicuntur leges humanae []rdquo

170 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino algo que lhe eacute proposto pela vivecircncia em comum e pela atividade da ldquoratiordquo que ele assume como seu no dinamismo razatildeovontade

Mas em toda a extensatildeo do termo [ratio] fica uma ideacuteia de uma capacidade de tornar seu de se apropriar do que eacute dado Podemos nos inserir numa ordem e natildeo nos submeter a ela apenas podemos compreender uma forma de agir e natildeo imitaacute-la servilmente apenas E em contrapartida essa ratio diz Tomaacutes eacute proposita agrave criatura racional Podemos traduzir esta palavra por ldquopropostardquo mas desde que se entenda como ldquoposta peranterdquo em todo caso natildeo imposta pelo alto60

Ora eacute este exerciacutecio racional precipuamente que leva a

ato o habitus natural dos primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica que Tomaacutes denomina sindeacuterese

Por conseguinte os princiacutepios da ordem da accedilatildeo de que somos dotados naturalmente natildeo pertencem a uma potecircncia especial mas a um haacutebito natural especial que chamamos sindeacuterese Por isso se diz que a sindeacuterese incita ao bem e condena o mal na medida em que noacutes mediante os primeiros princiacutepios buscamos descobrir e julgamos o que encontramos61

E o ato do habitus da sindeacuterese que se daacute de forma

privilegiada quando os homens pelo raciociacutenio descobrem que alguns valores satildeo intriacutensecos agrave sua natureza eacute denominado por Tomaacutes consciecircncia ldquoMas pelo fato de o habitus ser princiacutepio do ato agraves vezes se atribui o nome de consciecircncia ao primeiro haacutebito natural isto eacute agrave sindeacutereserdquo62 Na verdade eacute deste exerciacutecio que

60 BRAGUE Reacutemi A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila Trad Luacutecia Pereira de Souza Rev Sandra G Custoacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2009 p 291 61 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 79 12 C ldquoUnde et principia operabilium nobis naturaliter indita non pertinent ad specialem potentiam sed ad specialem habitum naturalem quem dicimus synderesim Unde et synderesis dicitur instigare ad bonum et murmurare de malo inquantum per prima principia procedimus ad inveniendum et iudicamus inventardquo 62 Idem Ibidem I 79 13 C ldquoQuia tamen habitus est principium actus quandoque nomen conscientiae attribuitur primo habitui naturali scilicet synderesi []rdquo

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acabamos de tentar descrever que nasce a civitas e o conceito de beatitude natural no Aquinate Mas antes de passarmos ao proacuteximo toacutepico importa esclarecermos um ponto 341 EacuteTICA DAS VIRTUDES E LEI NATURAL

Estamos a falar de uma eacutetica das virtudes ou de uma eacutetica dos princiacutepios de obrigaccedilatildeo do direito natural A questatildeo faz sentido mas eacute preciso ponderar que talvez esta natildeo seja a sua melhor formulaccedilatildeo A pergunta correta seria a uma eacutetica das virtudes opotildee-se a existecircncia de uma lei natural A princiacutepio de fato parece mesmo que a lei nos eacute imposta de fora Nesta direccedilatildeo diz Tomaacutes ldquoJaacute o princiacutepio que move exteriormente ao bem eacute Deus que nos instrui pela lei []rdquo63 Poreacutem o que eacute a lei A lei jaacute pudemos constatar ldquo[] eacute algo que pertence agrave razatildeordquo64 Ora a razatildeo eacute o que especifica a natureza humana Assim tanto a virtude quanto a lei natural dispotildeem-nos a seguir a nossa natureza Neste sentido a lei natural natildeo nos eacute imposta de fora nem nos eacute dada de uma soacute vez como um decaacutelogo inscrito em ldquotaacutebuas de pedrardquo Ela se quisermos permanecer na imagem biacuteblica estaacute inscrita em ldquotaacutebuas de carnerdquo a saber em nossos ldquocoraccedilotildeesrdquo

O homem natildeo eacute apenas capaz de conhecer a lei moral natural como lei de seu dever mas essa mesma lei o obriga tambeacutem de uma maneira racionalmente fundamentada a estar ativamente soliacutecito de si e de seu proacuteximo A razatildeo humana eacute assim a faculdade propriamente legisladora do homem ela estaacute na origem do dever Nenhuma espeacutecie de obrigaccedilatildeo pode ser

63 Idem Ibidem I-II 90 ldquoPrincipium autem exterius movens ad bonum est Deus qui et nos instruit per legem []rdquo A traduccedilatildeo de ldquoinstruitrdquo por ldquoinstruirdquo eacute equiacutevoca e induz a erro BRAGUE A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila p 289 ldquoPela lei Deus nos instruit (latim) o que de forma alguma deve ser traduzido em francecircs pelo falso cognato lsquoinstruirsquo mas por lsquoprovecircrsquo natildeo se trata de ensinar aos homens o que eles devem fazer mas de provecirc-los de instrumentos para que possam fazecirc-lordquo [O itaacutelico eacute nosso] 64 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 90 1 C ldquoUnde relinquitur quod lex sit aliquid pertinens ad rationemrdquo

172 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

imposta ao homem que natildeo seja ditada por sua razatildeo pois o dever moral fundamenta-se exclusivamente numa intuiccedilatildeo interior e natildeo numa ordem imposta de fora Num vago paralelo com o conceito kantiano de razatildeo praacutetica pode-se falar aqui de uma autonomia moral da razatildeo mas sem esquecer que em teologia o ponto de partida eacute a ordem da criaccedilatildeo e que para Tomaacutes de Aquino o fundamento uacuteltimo se entende com base na Sabedoria divina65

Ora descobrimos as leis da nossa razatildeo quando esta

conhece as suas proacuteprias regras captando-as na experiecircncia da vida virtuosa bem como no ldquocoloacutequiordquo com os nossos coetacircneos e com aqueles que nos precederam ldquoCom efeito quando se trata de accedilotildees e paixotildees humanas em que a experiecircncia vale mais que tudo os exemplos movem mais que as palavrasrdquo66 Por isso Tomaacutes afirma que ldquo[] tambeacutem pelos atos maximamente multiplicados que constituem o costume pode a lei ser mudada e expostardquo67 Isto nos faz perceber que o Aquinate natildeo tem um conceito de todo estaacutetico da lei mas dinacircmico Muitas coisas foram e podem na lida com a experiecircncia humana ser acrescidas agrave lei ldquo[] muitas coisas com efeito foram acrescentadas agrave lei natural uacuteteis para a vida humana tanto pela lei divina quanto tambeacutem pelas leis humanasrdquo68 Natildeo soacute mas no tempo que inexoravelmente corre esta lei mdash salvo em seus princiacutepios primeiros e incoerciacuteveis mdash pode tambeacutem ser olvidada pelos homens

65 LEacuteCRIVAIN Ph SESBOUumlEacute Bernard [et al] Histoacuteria dos Dogmas O homem e sua Salvaccedilatildeo Trad Orlando Soares Moreira Rev Sheila Tonon Fabre e Cristina Peres 3 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 v 2 p 463 66 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 34 1 C ldquoIn operationibus enim et passionibus humanis in quibus experientia plurimum valet magis movent exempla quam verbardquo 67 Idem Ibidem I-II 97 3 C ldquoUnde etiam et per actus maxime multiplicatos qui consuetudinem efficiunt mutari potest lex et exponi []rdquo 68 Idem Ibidem I-II 94 5 C ldquoEt sic nihil prohibet legem naturalem mutari multa enim supra legem naturalem superaddita sunt ad humanam vitam utilia tam per legem divinam quam etiam per leges humanasrdquo

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Quanto poreacutem aos outros preceitos segundos pode a lei natural ser destruiacuteda dos coraccedilotildees dos homens ou por causa das maacutes persuasotildees do mesmo modo como no especulativo acontecem os erros a respeito das conclusotildees necessaacuterias ou tambeacutem em razatildeo dos costumes depravados e haacutebitos corruptos como entre alguns natildeo se reputavam pecados os latrociacutenios ou tambeacutem os viacutecios contra a natureza []69

De tudo quanto jaacute dissemos decorre qual corolaacuterio

espontacircneo que o fundamento da eacutetica tomasiana eacute a experiecircncia da virtude Em outros termos natildeo satildeo as leis que fundam o cataacutelogo das accedilotildees virtuosas ao contraacuterio eacute a vivecircncia das virtudes que permite ao homem reconhecer a lei da sua natureza e codificaacute-la O ato virtuoso portanto natildeo significa pura e simplesmente seguir os ditames de um coacutedigo mas agir de acordo com a proacutepria natureza no parto que eacute o ato livre70 Se natildeo houvesse accedilotildees virtuosas que fossem expressotildees da lei natural natildeo haveria como reconhecer com clareza os ditames da nossa natureza A assertiva de Tomaacutes quanto ao conhecimento da lei natural portanto natildeo difere da sua teoria do conhecimento a qual comeccedila sempre com a

69 Idem Ibidem I-II 94 6 C ldquoQuantum vero ad alia praecepta secundaria potest lex naturalis deleri de cordibus hominum vel propter malas persuasiones eo modo quo etiam in speculativis errores contingunt circa conclusiones necessarias vel etiam propter pravas consuetudines et habitus corruptos []rdquo 70 Klaus Demmer em sua Introduccedilatildeo agrave Teologia Moral afirma que soacute o ato livre personifica os valores no sentido de que soacute ele torna aquela norma por assim dizer propriedade de quem a pratica e por conseguinte expressatildeo de sua liberdade Com o ato livre proacuteprio da pessoa a regra eacute assimilada a um ldquoeurdquo o ditame ganha um caraacuteter extraordinaacuterio torna-se se assim pudermos expressar-nos imprevisiacutevel justamente porque livre DEMMER Klaus Introduccedilatildeo agrave Teologia Moral Trad Pier Luigi Cabra Rev Sandra Garcia 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007 p 79 ldquoAs normas se satisfazem apenas agrave primeira vista com uma accedilatildeo ordinaacuteria enquanto as obras extraordinaacuterias encontram abundante espaccedilo na medida em que o indiviacuteduo se esforccedila para se tornar uma personalidade moral desenvolvendo uma fisionomia inconfundiacutevel que em sua relaccedilatildeo com a norma supera o mero cumprimento material e que eacute posta agrave prova sobretudo nas relaccedilotildees interpessoais Se a virtude natildeo chega a formar o coraccedilatildeo ela natildeo atinge seu objetivordquo Eacute pelo ato humano tal como tentamos descrever que a lei eacute reconhecida como inerente agrave natureza humana e eacute com a observaccedilatildeo dos atos humanos que uma lei natural pode vir a ser assumida como lei humana e positiva Natildeo eacute pois pela mera obrigaccedilatildeo que tomamos nota de que um ditame eacute uma lei ao contraacuterio eacute pela espontaneidade com o qual o ditame eacute cumprido no ato livre isto eacute no ato virtuoso que atestamos o seu valor E mesmo quando o ldquodeverrdquo se apresenta como um ldquodeverrdquo eacute somente quando eacute assumido livremente que temos um ato virtuoso

174 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino maacutexima de cunho aristoteacutelico ldquo[] todo o nosso conhecimento se origina a partir dos sentidosrdquo71 Dito de outro modo tambeacutem o nosso conhecimento da lei natural origina-se pela experiecircncia da vida virtuosa Tomaacutes noutro passo cita um exemplo

[] se aqueles que ensinavam que todos os prazeres satildeo maus fossem flagrados desfrutando de algum prazer os homens seriam levados mais ainda ao prazer pelo exemplo de seu comportamento deixando de lado a doutrina de suas palavras72

Aleacutem disso toda lei positiva soacute existe e tem razatildeo de ser

quando se baseia na lei natural a qual por sua vez eacute descoberta jaacute o sabemos pela nossa proacutepria experiecircncia das virtudes ou pela observaccedilatildeo dos que vivem ou viveram uma vida virtuosa Daiacute o Aquinate poder dizer acerca da lei humana ldquoSe contudo algo discorda da lei natural jaacute natildeo seraacute lei mas corrupccedilatildeo da leirdquo73 Fato eacute que o papel da lei no trato com a virtude eacute sempre ancilar porque se os legisladores soacute aprendem a legislar olhando para os exemplos e modelos de vida virtuosa a lei jaacute formulada tambeacutem pode e deve servir agrave virtude educando para ela isto eacute ensinando os homens enquanto os adestra aos atos virtuosos sendo enfim uma espeacutecie de propedecircutica que treina e prepara para a liberdade responsaacutevel Assinala Tomaacutes ldquoComo a virtude eacute lsquoaquela que torna bom quem a possuirsquo segue-se que o efeito proacuteprio da lei eacute tornar bons aqueles aos quais eacute dada []rdquo 74 MacIntyre observa justamente

71 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 9 C ldquo[] quia omnis nostra cognitio a sensu initium habetrdquo 72 Idem Ibidem I-II 34 1 C ldquo[] si illi qui docent omnes delectationes esse malas deprehendantur aliquas delectationes suscipere magis homines ad delectationes erunt proclives exemplo operum verborum doctrina praetermissardquo 73 Idem Ibidem I-II 95 2 C ldquoSi vero in aliquo a lege naturali discordet iam non erit lex sed legis corruptiordquo 74 Idem Ibidem I-II 92 1 C ldquoCum igitur virtus sit quae bonum facit habentem sequitur quod proprius effectus legis sit bonos facere eos quibus datur []rdquo

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Compreender a aplicaccedilatildeo de regras como parte do exerciacutecio das virtudes significa compreender o sentido de seguir as regras uma vez que se pode compreender o exerciacutecio das virtudes somente nos termos da funccedilatildeo que elas exercem na formaccedilatildeo do tipo de vida que eacute o uacutenico no qual se pode conseguir o telos humano As regras que satildeo os preceitos negativos da lei natural natildeo fazem mais que pocircr limites agravequele tipo de vida e desse modo soacute parcialmente definem o tipo de bondade ao qual aspirar Separadas de seu papel para a definiccedilatildeo e formaccedilatildeo de todo um modo de vida elas se tornam apenas uma seacuterie de proibiccedilotildees arbitraacuterias75

As regras satildeo necessaacuterias mas mdash observa MacIntyre mdash nenhuma espeacutecie de regra nem as negativas inviolaacuteveis nem as prescriccedilotildees positivas ldquopodem constituir sozinhas um guia suficiente para a accedilatildeordquo de modo que ldquosaber como agir virtuosamente implica sempre algo mais que simplesmente seguir uma regrardquo76

Eleonore Stump tambeacutem se pronunciou acerca da relaccedilatildeo

entre virtude e lei natural em Tomaacutes

Eacute um erro considerar a teoria tomasiana da eacutetica como construiacuteda sobre leis Antes de tudo embora a lei natural seja uma codificaccedilatildeo da eacutetica as leis natildeo fundam a eacutetica mas se limitam a exprimir o que se funda na natureza das coisas ou nos acordos convencionais entre os seres humanos Em segundo lugar o modo pelo qual Tomaacutes estrutura sua teoria eacutetica natildeo se funda em leis ou regras Ao contraacuterio satildeo as virtudes que constituem o princiacutepio que estrutura sua exposiccedilatildeo da eacutetica Aleacutem disso tambeacutem na descriccedilatildeo e anaacutelise das virtudes ele dedica pouquiacutessimo espaccedilo agraves regras que codificam aquelas virtudes ou prescrevem o modo pelo qual agiria uma pessoa virtuosa77

75 MACINTYRE A Three rival versions of moral enquiry Duckworth London 1990 p 139 In MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 68 76 MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 69 77 STUMP E Aquinas Routhedge London-New York 2003 pp 310-311 In MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 70 A lei humana conquanto natildeo seja uma sucedacircnea

176 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Anthony Kenny acredita que Tomaacutes supera a oposiccedilatildeo entre eacutetica das virtudes e lei natural e esta superaccedilatildeo estaacute no fato de que a lei eacute antes de tudo a natureza do homem a sua razatildeo e eacute descoberta pela proacutepria razatildeo quando a sua ordem inteligiacutevel torna-se palpaacutevel concretizada no dinamismo do ato livre

Tomaacutes de Aquino procura conciliar eacutetica aristoteacutelica com biacuteblica da maneira que se segue Para Aristoacuteteles eacute a razatildeo que fixa a meta da accedilatildeo e fornece o criteacuterio pelo qual as accedilotildees devem ser consideradas virtuosas ou viciosas na Biacuteblia o criteacuterio eacute estabelecido por um coacutedigo de leis Natildeo haacute nenhum conflito sustenta Tomaacutes de Aquino porque a lei eacute um produto da razatildeo78

Se entendermos que a lei natural prevecirc o exerciacutecio da razatildeo

para se estabelecer enquanto tal compreenderemos tambeacutem o

da virtude desempenha natildeo o negamos um papel importante em Tomaacutes a saber o de ser pedagoga A lei positiva pode ser uma forma didaacutetica de o homem aprender a reconhecer em seus atos aquilo que promove e aquilo que natildeo promove a sua natureza Eacute uma disciplina que faz o homem conhecer os seus proacuteprios limites E natildeo haacute nisso heteronomia alguma Satildeo intriacutensecos agrave lei o precircmio e o castigo Podemos entender melhor isso comparando o comportamento das coisas naturais com as humanas Naquelas as que observam a reta ordem alcanccedilam necessariamente a conservaccedilatildeo e as que a transgridem naturalmente sofrem a destruiccedilatildeo Pois bem entre os homens segue-se algo anaacutelogo somente que o castigo ou o precircmio satildeo estabelecidos e aplicados de acordo com a natureza humana a qual estaacute votada agrave liberdade Tem-se entatildeo que eacute um legislador quem deliberadamente impotildee a quem infringiu ou cumpriu a lei por meio de um ato voluntaacuterio o castigo ou o precircmio Assim nas coisas humanas natildeo haacute castigo ou precircmio senatildeo para quem tem consciecircncia de que estaacute sendo punido ou premiado em vista do restabelecimento ou permanecircncia da reta ordem Em outras palavras quem eacute punido eacute punido por natildeo ter seguido a lei da sua natureza E o precircmio natildeo eacute senatildeo apanaacutegio de quem seguiu a sua natureza Idem Suma Contra os Gentios III CXL 3 [3148] ldquoSicut igitur res naturales cum in eis debitus ordo naturalium principiorum et actionum servatur sequitur ex necessitate naturae conservatio et bonum in ipsis corruptio autem et malum cum a debito et naturali ordine receditur ita etiam in rebus humanis oportet quod cum homo voluntarie servat ordinem legis divinitus impositae consequatur bonum non velut ex necessitate sed ex dispensatione gubernantis quod est praemiari et e converso malum cum ordo legis fuerit praetermissus et hoc est punirirdquo ldquoAssim pois nas coisas naturais quando nelas eacute conservada a devida ordenaccedilatildeo dos princiacutepios naturais e das accedilotildees haacute necessariamente conservaccedilatildeo da natureza e do bem mas haveraacute corrupccedilatildeo e mal se forem desviadas do devido fim e da ordem natural Analogicamente tambeacutem nas coisas humanas quando o homem segue voluntariamente a ordenaccedilatildeo imposta pela lei divina eacute necessaacuterio que ele consiga o bem natildeo por necessidade mas pela dispensa do governante e isto eacute ser premiado mas em contraacuterio obteraacute o mal se a ordem da lei for desobedecida e isto eacute ser punidordquo 78 KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental Filosofia Medieval Trad Edson Bini Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 v 2 pp 300-301

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porquecirc de o direito natural natildeo excluir uma eacutetica das virtudes pois esta se fundamenta no ato livre que tem a sua raiz no juiacutezo racional acerca dos bens contingentes 342 EacuteTICA E DIREITO

Para Tomaacutes o justo consiste sempre numa certa relaccedilatildeo de igualdade que implica certa alteridade ldquo[] o direito ou o justo vem a ser uma obra ajustada a outrem segundo certo modo de igualdaderdquo79 Ora de dois modos pode-se estabelecer a igualdade na alteridade Primeiro pode a igualdade ser fundada na natureza mesma da coisa por exemplo quando dou uma importacircncia para receber o equivalente A isto chamamos direito natural80 O direito natural por sua vez apresenta uma subdivisatildeo Aplicando-se agravequilo que em virtude da sua proacutepria natureza eacute ajustado ou proporcional a outrem o direito natural eacute estabelecido pela proacutepria natureza Poreacutem para Tomaacutes e aqui estaacute o cerne do argumento uma coisa pode ser naturalmente justa a outrem de duas maneiras Em primeiro lugar em si mesma e absolutamente falando Assim o macho eacute naturalmente ajustado agrave fecircmea para dela gerar filhos e o pai ao seu filho para que o nutra81 Em segundo lugar diz-se que

79 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 57 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est ius sive iustum est aliquod opus adaequatum alteri secundum aliquem aequalitatis modumrdquo 80 Idem Ibidem II-II 57 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est ius sive iustum est aliquod opus adaequatum alteri secundum aliquem aequalitatis modum Dupliciter autem potest alicui homini aliquid esse adaequatum Uno quidem modo ex ipsa natura rei puta cum aliquis tantum dat ut tantundem recipiat Et hoc vocatur ius naturalerdquo ldquoComo jaacute foi dito o direito ou o justo vem a ser uma obra ajustada a outrem segundo certo modo de igualdade Ora isto pode realizar-se de duas maneiras 1 em virtude da natureza mesma da coisa Por exemplo se algueacutem daacute tanto para receber tanto isso se chama o direito naturalrdquo 81 Idem Ibidem II-II 57 3 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est ius sive iustum naturale est quod ex sui natura est adaequatum vel commensuratum alteri Hoc autem potest contingere dupliciter Uno modo secundum absolutam sui considerationem sicut masculus ex sui ratione habet commensurationem ad feminam ut ex ea generet et parens ad filium ut eum nutriatrdquo ldquoComo se disse o direito ou o justo natural eacute o que por natureza eacute ajustado ou proporcional a outrem Ora isso se pode dar de duas maneiras primeiro segundo a consideraccedilatildeo absoluta da coisa em si mesma Assim o macho por natureza estaacute adaptado agrave fecircmea para dela gerar filhos e o pai ao filho para que o nutrardquo

178 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino uma coisa eacute naturalmente ajustada agrave outra natildeo em si mesma mas tendo em conta certas consequecircncias Por exemplo o direito agrave propriedade privada Absolutamente falando um campo considerado unicamente em si mesmo estaacute destinado a todos os homens Todavia visto sob o ponto de vista do seu cultivo ele pertence propriamente agravequele que pode tornaacute-lo mais produtivo Destarte o direito agrave propriedade privada natildeo eacute um direito natural absoluto e em si mesmo82 Absolutamente falando natural eacute a destinaccedilatildeo universal dos bens No entanto a propriedade privada continua sendo tambeacutem um direito natural se se considera que tambeacutem eacute de direito natural aquilo que cai sob a consideraccedilatildeo da razatildeo que eacute parte da natureza humana Na verdade eacute exatamente isto que distingue o direito natural comum ao gecircnero animal isto eacute aos homens e aos demais animais do direito natural das gentes que eacute comum somente agrave espeacutecie humana Neste sentido sendo o homem um animal racional os bens que satildeo por ele queridos levando em conta a consideraccedilatildeo da razatildeo mdash que prevecirc as consequecircncias da utilizaccedilatildeo destes mesmos bens mdash tambeacutem pertencem ao direito natural Portanto o direito natural tambeacutem pressupotildee a observaccedilatildeo dos fatos e a intervenccedilatildeo da razatildeo

Ora apreender as coisas de maneira absoluta natildeo conveacutem apenas ao homem mas tambeacutem aos animais Eis por quecirc o direito chamado natural no primeiro sentido nos eacute comum a noacutes e aos animais [] Ora considerar alguma coisa confrontando-a com

82 Idem Ibidem ldquoAlio modo aliquid est naturaliter alteri commensuratum non secundum absolutam sui rationem sed secundum aliquid quod ex ipso consequitur puta proprietas possessionum Si enim consideretur iste ager absolute non habet unde magis sit huius quam illius sed si consideretur quantum ad opportunitatem colendi et ad pacificum usum agri secundum hoc habet quandam commensurationem ad hoc quod sit unius et non alterius []rdquo ldquoSegundo algo eacute naturalmente adaptado a outrem natildeo segundo a razatildeo absoluta da coisa em si mas tendo em conta as suas consequumlecircncias por exemplo a propriedade privada Com efeito a considerar tal campo de maneira absoluta nada tem que o faccedila pertencer a um indiviacuteduo mais do que a outro Poreacutem considerado sob o acircngulo da oportunidade de cultivaacute-lo ou de seu uso paciacutefico tem certa conveniecircncia que seja de um e natildeo de outro []rdquo

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suas consequumlecircncias eacute proacuteprio da razatildeo Portanto isso eacute natural ao homem segundo a razatildeo natural que dita esse proceder83

O segundo modo de se estabelecer a igualdade nas relaccedilotildees

entre os homens eacute por convenccedilatildeo o que ocorre por exemplo quando algueacutem dando uma coisa daacute-se por satisfeito ao receber outra Ora esta convenccedilatildeo tambeacutem pode ocorrer de dois modos A convenccedilatildeo ou o comum acordo pode dar-se entre duas pessoas privadas ou pode encerrar um caraacuteter social Entre duas pessoas em particular acontece quando elas estabelecem as regras de suas permutas Assim uma pessoa se daacute por satisfeita quando em troca de um produto que ela possui recebe determinado valor pecuniaacuterio A convenccedilatildeo assume um caraacuteter social quando o povo ou o priacutencipe que o representa estabelece que algo seja adequado e proporcional a outrem Pois bem este direito que se encontra fundado numa convenccedilatildeo eacute chamado direito positivo84 Sobre a

83 Idem Ibidem ldquoAbsolute autem apprehendere aliquid non solum convenit homini sed etiam aliis animalibus Et ideo ius quod dicitur naturale secundum primum modum commune est nobis et aliis animalibus Considerare autem aliquid comparando ad id quod ex ipso sequitur est proprium rationis Et ideo hoc quidem est naturale homini secundum rationem naturalem quae hoc dictatrdquo Eacute bem verdade por exemplo que todo mundo nasceu nu Por isso eacute um direito natural o homem ficar nu Contudo diz Tomaacutes a razatildeo humana que eacute parte da natureza humana inventou as vestes e a natureza nada diz de contraacuterio agraves vestes Por isso passou a ser um direito humano ter vestes apropriadas e natildeo precisar andar nu e nada haacute nisso de antinatural Idem Ibidem I-II 94 5 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod aliquid dicitur esse de iure naturali dupliciter Uno modo quia ad hoc natura inclinat sicut non esse iniuriam alteri faciendam Alio modo quia natura non induxit contrarium sicut possemus dicere quod hominem esse nudum est de iure naturali quia natura non dedit ei vestitum sed ars adinvenitrdquo ldquoDeve-se dizer que algo eacute dito de direito natural de dois modos De um modo porque a isso inclina a natureza como natildeo dever fazer injuacuteria a outrem De outro modo porque a natureza natildeo induziu ao contraacuterio como podemos dizer que estar o homem nu eacute de direito natural porque a natureza natildeo lhe deu a veste mas a arte inventourdquo 84 Idem Ibidem II-II 57 2 C ldquoAlio modo aliquid est adaequatum vel commensuratum alteri ex condicto sive ex communi placito quando scilicet aliquis reputat se contentum si tantum accipiat Quod quidem potest fieri dupliciter Uno modo per aliquod privatum condictum sicut quod firmatur aliquo pacto inter privatas personas Alio modo ex condicto publico puta cum totus populus consentit quod aliquid habeatur quasi adaequatum et commensuratum alteri vel cum hoc ordinat princeps qui curam populi habet et eius personam geritrdquo ldquo2 Por convenccedilatildeo ou comum acordo Por exemplo quando algueacutem se daacute por satisfeito de receber tanto O que se pode dar de dois modos primeiro por uma convenccedilatildeo particular quando pessoas privadas firmam entre si um pacto segundo por uma convenccedilatildeo puacuteblica quando todo o povo consente que algo seja tido como adequado ou proporcionado a outrem ou assim o ordena o priacutencipe que governa o povo e o representardquo

180 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino flexibilidade e a natureza dos acordos que acontecem no direito positivo esclarece Gilson

Dois homens podem entender-se para estabelecer que o gozo de uma propriedade valha certa quantidade de dinheiro todo um povo pode entender-se para fixar uma escala de preccedilos os representantes do povo ou o chefe do Estado podem fazecirc-lo com validez em seu nome Estas decisotildees criam relaccedilotildees de equivalecircncia mais flexiacuteveis que as de estrita igualdade natural o direito que se origina em virtude de tais convenccedilotildees se denomina ldquodireito positivordquo85

Eacute necessaacuterio afirmar por fim a primazia do direito natural

sobre o direito positivo Em que sentido se baseia esta primazia No sentido de que o direito positivo natildeo pode ser estabelecido em contradiccedilatildeo com o direito natural Por exemplo de nenhuma forma estaacute no poder dos homens tornar liacutecito mdash por qualquer convenccedilatildeo que seja mdash o roubo o adulteacuterio ou qualquer coisa intrinsecamente desordenada86 Mas vale lembrar que o direito natural natildeo se coloca sem a atividade racional

Estamos jaacute nos contornos que esboccedilam a possibilidade de uma eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes Tendo desfeito o cipoal que parecia contrapor uma eacutetica das virtudes agrave lei natural tomemos em consideraccedilatildeo o conceito de felicidade

85 GILSON Introduccioacuten a La Filosofiacutea de Santo Tomaacutes de Aquino p 426 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoDos hombres pueden entenderse para convenir que el goce de una propiedad valga cierta cantidad de dinero todo un pueblo puede entenderse para fijar una escala de precios los representantes del pueblo o el jefe de Estado pueden hacerlo con validez en su nombrerdquo 86 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 57 2 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod voluntas humana ex communi condicto potest aliquid facere iustum in his quae secundum se non habent aliquam repugnantiam ad naturalem iustitiam Et in his habet locum ius positivum Unde philosophus dicit [] Sed si aliquid de se repugnantiam habeat ad ius naturale non potest voluntate humana fieri iustum puta si statuatur quod liceat furari vel adulterium committere ldquoDeve-se dizer que a vontade humana por uma convenccedilatildeo comum pode tornar justa uma coisa entre aquelas que em nada se oponham agrave justiccedila natural [] Mas se algo de si mesmo se opotildee ao direito natural natildeo se pode tornar justo por disposiccedilatildeo da vontade humana Se por exemplo se decretasse que eacute liacutecito roubar ou cometer adulteacuteriordquo

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35 CIVITAS E BEATITUDO OU FELICITAS EM TOMAacuteS

Como toda eacutetica antiga tambeacutem a eacutetica medieval incluindo a de Tomaacutes satildeo fundadas na busca da εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) em latim beatitudo ou felicitas ldquoCom efeito o fim uacuteltimo do homem [] chama-se felicidade ou beatituderdquo 87 Tal eacute a importacircncia deste conceito que Lima Vaz afirma que da noccedilatildeo de beatitude depende a proacutepria possibilidade de uma leitura filosoacutefica da eacutetica medieval inclusive a tomasiana

A noccedilatildeo de beatitude herdada da Eacutetica claacutessica mas profundamente transformada segundo a tradiccedilatildeo agostiniana pela Revelaccedilatildeo cristatilde torna-se assim a noccedilatildeo matricial de toda a Eacutetica tomaacutesica ficando a depender da sua interpretaccedilatildeo os juiacutezos diversos que sobre ela tecircm sido propostos88

Ora o Aquinate distingue uma beatitude imperfeita que

pode ser alcanccedilada nesta vida mdash porque proporcionada agrave natureza humana mdash de uma beatitude perfeita que eacute a visatildeo de Deus e que natildeo pode ser alcanccedilada nesta vida nem sem a graccedila porque transcende a natureza humana89 Diz Tomaacutes ldquoDuas satildeo as bem-aventuranccedilas a imperfeita que se tem nesta vida e a perfeita que consiste na visatildeo de Deusrdquo90 E precisa noutro lugar

[] a felicidade ou bem-aventuranccedila humana eacute dupla uma eacute proporcional agrave natureza humana ou seja pode o homem consegui-la pelos princiacutepios de sua natureza a outra supera sua

87 Idem Suma Contra os Gentios III XXV 13 [2068] ldquoUltimus autem finis hominis et cuiuslibet intellectualis substantiae felicitas sive beatitudo nominatur []rdquo 88 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 220 89 Por exemplo se nos propuseacutessemos discorrer sobre a beatitude perfeita ou felicidade uacuteltima do homem teriacuteamos de afirmar com Tomaacutes que ela natildeo consiste nos atos das virtudes morais ou no ato da prudecircncia TOMAacuteS DE AQUINO Suma contra os gentios III XXXIV-XXXV Ela reside soacute na visatildeo de Deus face a face Idem Ibidem XXXVII 90 Idem Suma Teoloacutegica I-II 4 5 C ldquoRespondeo dicendum quod duplex est beatitudo una imperfecta quae habetur in hac vita et alia perfecta quae in Dei visione consistitrdquo

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natureza e soacute pode ser alcanccedilada por graccedila divina por certa participaccedilatildeo da divindade []91

Ao prever a existecircncia de uma beatitude imperfeita

consentacircnea agrave natureza humana e que por conseguinte pode ser alcanccedilada pelo homem nesta vida a partir dos princiacutepios de sua natureza Tomaacutes admite a nosso juiacutezo a possibilidade de uma eacutetica filosoacutefica no proacuteprio bojo de sua teologia moral Nas palavras do Aquinate

A bem-aventuranccedila imperfeita que nesta vida se pode ter o homem pode adquiri-la por seus dons naturais do mesmo modo que a virtude em cuja accedilatildeo ela consiste92

Falta dizer no entanto que esta beatitude imperfeita eacute

aquela que se daacute no acircmbito da civitas a qual em Tomaacutes natildeo eacute fruto do pecado mas procede da proacutepria natureza humana porque o homem eacute por natureza um animal poliacutetico Neste sentido a civitas mdash e o governo poliacutetico que lhe segue mdash existiriam mesmo sem o pecado O que natildeo existiria natildeo fosse o pecado mdash e o que pode existir agora mdash eacute a possibilidade de um governo tiracircnico O Frade de Roccasecca aponta para isso com clareza

Assim algueacutem domina a outro como livre quando o dirige para o proacuteprio bem daquele que eacute dirigido ou para o bem comum E haveria tal domiacutenio do homem sobre o homem no estado de inocecircncia por dois motivos Primeiro porque o homem eacute

91 Idem Ibidem I-II 62 1 C ldquoEst autem duplex hominis beatitudo sive felicitas ut supra dictum est Una quidem proportionata humanae naturae ad quam scilicet homo pervenire potest per principia suae naturae Alia autem est beatitudo naturam hominis excedens ad quam homo sola divina virtute pervenire potest secundum quandam divinitatis participationem []rdquo 92 Idem Ibidem I-II 5 5 C ldquoRespondeo dicendum quod beatitudo imperfecta quae in hac vita haberi potest potest ab homine acquiri per sua naturalia eo modo quo et virtus in cuius operatione consistit []rdquo ABBAGNANO Op Cit p 580 ldquoLe virtuacute intellettuali e morali sono virtuacute umane esse conducono alla felicitagrave che lrsquouomo puograve conseguire con le stesse forze naturali in questa vitardquo ldquoAs virtudes intelectuais e morais satildeo virtudes humanas essas conduzem agrave felicidade que o homem pode conseguir com as proacuteprias forccedilas naturais nesta vidardquo [A traduccedilatildeo eacute nossa]

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naturalmente um animal social portanto os homens viveriam socialmente no estado de inocecircncia Natildeo poderia haver uma vida social de muitos a natildeo ser que algueacutem presidisse tendo a intenccedilatildeo do bem comum93

Natildeo sendo consequecircncia do pecado Tomaacutes concebe a

civitas como tendo uma finalidade proacutepria a saber o bem viver E pensa o governo poliacutetico como aquele que conduz a multidatildeo a este bem comum que eacute justamente aquela felicidade conforme a natureza Mas tentemos entender melhor como o Frade Dominicano concebe a civitas Segundo Storck na concepccedilatildeo de Tomaacutes a civitas se diferencia das famiacutelias e aldeias enquanto eacute uma comunidade de homens que busca um fim mais alto ou seja um fim que excede o da mera sobrevivecircncia o bem viver94 Este fim o homem o alcanccedila pela sua razatildeo razatildeo esta que o adverte da impossibilidade de alcanccedilar este mesmo fim sem consortes A propoacutesito diz o Aquinate no opuacutesculo De Regno

Foi poreacutem o homem criado sem a preparaccedilatildeo de nada disso pela natureza e em lugar de tudo coube-lhe a razatildeo pela qual pudesse granjear por meio das proacuteprias matildeos todas essas coisas para o que eacute insuficiente um homem soacute Por cuja causa natildeo poderia um homem levar suficientemente a vida por si Logo eacute natural ao homem viver na sociedade de muitos95

93 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 96 4 C ldquoTunc vero dominatur aliquis alteri ut libero quando dirigit ipsum ad proprium bonum eius qui dirigitur vel ad bonum commune Et tale dominium hominis ad hominem in statu innocentiae fuisset propter duo Primo quidem quia homo naturaliter est animal sociale unde homines in statu innocentiae socialiter vixissent Socialis autem vita multorum esse non posset nisi aliquis praesideret qui ad bonum commune intenderet []rdquo 94 STORCK Alfredo Carlos O Indiviacuteduo e a Ordem Poliacutetica na Dimensatildeo da Civitas In DE BONI (Org) Idade Media Eacutetica e Poliacutetica Porto Alegre EDIPUCRS 1996 FILOSOFIA-38 p 326 ldquoPortanto a civitas tem como primeira caracteriacutestica que a diferencia das formas preacute-poliacuteticas de associaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo de suas partes para um fim superior agrave mera sobrevivecircncia podemos chamaacute-lo bem viverrdquo 95 TOMAacuteS DE AQUINO Do reino ou do governo dos priacutencipes ao Rei de Chipre Trad Arlindo Veiga dos Santos Rev Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento I II In Escritos Poliacuteticos de Santo Tomaacutes de Aquino Rio de Janeiro Vozes 1997 (Claacutessicos do pensamento poliacutetico) p 127 ldquoHomo autem institutus est nullo horum sibi a natura praeparato sed loco omnium data est ei ratio per quam sibi

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Ora natildeo eacute possiacutevel abarcar um homem todas essas coisas pela razatildeo Por onde eacute necessaacuterio ao homem viver em multidatildeo para que um seja ajudado por outro []96

Por isso ldquoA civitas eacute para Santo Tomaacutes uma criaccedilatildeo

coletiva dos homensrdquo97 ou seja uma obra produzida construiacuteda feita por homens concordes Na civitas cada um e todos trabalham mdash cada qual dentro de funccedilotildees determinadas98 mdash em prol do bem comum que nada mais eacute do que a realizaccedilatildeo da natureza humana 99 Homens vivendo em comunidade com o fim de alcanccedilar o bem especiacutefico da sua natureza eis a civitas De sorte que ela mdash ratifica Storck mdash natildeo eacute uma consequecircncia do pecado mas sim a atualizaccedilatildeo de uma disposiccedilatildeo da proacutepria natureza humana100

Ora como o pecado natildeo corrompeu a natureza humana enquanto tal esta ordem natural da qual emerge a civitas natildeo foi quebrada nem perdeu a sua ldquoautonomiardquo Pelo que mdash para Tomaacutes mdash a civitas e o seu governo gozam de certa ldquoautonomiardquo frente ao proacuteprio poder eclesial Com efeito como tanto o poder secular quanto o eclesial procedem diretamente de Deus segue-se que o poder secular natildeo proveacutem do eclesial tendo assim ldquoautonomiardquo perante ele No Comentaacuterio agraves Sentenccedilas mdash obra de juventude mdash o Frade Mendicante jaacute previa esta ldquoautonomiardquo com clareza

haec omnia officio manuum posset praeparare ad quae omnia praeparanda unus homo non sufficit Nam unus homo per se sufficienter vitam transigere non posset Est igitur homini naturale quod in societate multorum vivatrdquo 96 Idem Ibidem ldquoNon est autem possibile quod unus homo ad omnia huiusmodi per suam rationem pertingat Est igitur necessarium homini quod in multitudine vivat ut unus ab alio adiuvetur []rdquo 97 STORCK Op Cit p 327 98 Idem Op Cit ldquoResulta disto que no interior da civitas natildeo somente eacute possiacutevel que os indiviacuteduos possam alcanccedilar uma quantidade de bens maior do que os necessaacuterios para a mera sobrevivecircncia como tambeacutem lhes sobraraacute tempo para se dedicarem a atividades mais nobresrdquo 99 Idem Op Cit p 328 ldquoSegundo Santo Tomaacutes a civitas natildeo eacute essencialmente coercitiva mas cooperativa ou seja eacute o resultado dos esforccedilos compartilhados para se alcanccedilar um bem comumrdquo 100 Idem Op Cit ldquoAs accedilotildees humanas instauradoras da comunidade poliacutetica possuem sua raiz na natureza humana de sorte que a criaccedilatildeo da civitas pode ser entendida como a atualizaccedilatildeo de uma disposiccedilatildeo naturalrdquo

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O poder espiritual e o poder secular derivam ambos do poder divino eis por que o poder secular soacute se subordina ao poder espiritual agrave medida que foi submetido por Deus isto eacute no que respeita ao estatuto das almas nesse domiacutenio mais vale obedecer ao poder espiritual que ao poder secular Mas no que concerne ao bem poliacutetico mais vale obedecer ao poder secular que ao poder espiritual segundo o que se diz em Mateus 22 21 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesarrdquo101

101 TOMAacuteS DE AQUINO Super Sent Lib 2 d 44 q 2 a 3 expos ad 4 In TORRELL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Sua pessoa e sua obra Trad Luiz Paulo Rouanet Rev Saulo Krieger et al 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 16 ldquoAd quartum dicendum quod potestas spiritualis et saecularis utraque deducitur a potestate divina et ideo intantum saecularis potestas est sub spirituali inquantum est ei a Deo supposita scilicet in his quae ad salutem animae pertinent et ideo in his magis est obediendum potestati spirituali quam saeculari In his autem quae ad bonum civile pertinent est magis obediendum potestati saeculari quam spirituali secundum illud Matth 22 21 reddite quae sunt Caesaris Caesarirdquo Nesta citaccedilatildeo vemos que a posiccedilatildeo de Tomaacutes natildeo se alinhava agrave visatildeo teocraacutetica do seu tempo De fato nos anos que precederam o Comentaacuterio agraves Sentenccedilas de Tomaacutes o Papa Inocecircncio IV que faleceu em 1254 aprofundando a teoria da ldquoplenitudo potestatisrdquo que havia inicialmente sido proposta por Gregoacuterio VII dentro dos limites da Igreja e que depois foi estendida por Inocecircncio III tambeacutem ao acircmbito laico jaacute havia proposto ainda que apenas teoricamente uma forma de teocracia nunca vista POTESTAgrave Gian Luca VIAN Giovanni Histoacuteria do Cristianismo Trad Orlando Soares Moreira Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 p 183 ldquoNo quadro do conflito Inocecircncio IV jurista de formaccedilatildeo chegou a teorizar a ilegitimidade de qualquer poder que natildeo se fundasse em Cristo passando pelo reconhecimento papal Nessa perspectiva o poder dos soberanos natildeo cristatildeos eacute como tal ilegiacutetimo Desse modo Inocecircncio IV ampliava para aleacutem das fronteiras da cristandade as prerrogativas reivindicadas pelo papa como vigaacuterio de Cristo teorizando que na linha do direito toda criatura dotada de razatildeo lhe estava submetidardquo Mas afinal e se houver conflito entre as duas instacircncias a saber a civil e a eclesiaacutestica Tomaacutes prevecirc que as leis podem ser injustas de dois modos Primeiro quando atentam contra o bem humano E isso ocorre nos seguintes casos quando o legislador legifera em causa proacutepria por exemplo onerando os suacuteditos para proveito proacuteprio quando exorbita da sua funccedilatildeo legiferando sobre o que excede a sua competecircncia finalmente quando natildeo distribui congruamente as obrigaccedilotildees Nestes casos natildeo se trata de leis mas de violecircncias Tais regras pois natildeo obrigam no foro da consciecircncia salvo se se obedece a elas para evitar um mal maior TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 96 4 C ldquoEt huiusmodi magis sunt violentiae quam leges quia sicut Augustinus dicit in libro de Lib Arb lex esse non videtur quae iusta non fuerit Unde tales leges non obligant in foro conscientiae nisi forte propter vitandum scandalum vel turbationem propter quod etiam homo iuri suo debet cedere []rdquo ldquoE essas satildeo mais violecircncias que leis pois como diz Agostinho lsquoNatildeo parece ser lei a que natildeo for justarsquo Portanto tais leis natildeo obrigam no foro da consciecircncia a natildeo ser talvez para evitar o escacircndalo ou a perturbaccedilatildeo em razatildeo do que o homem deve ceder do seu direito []rdquo Segundo as leis podem ser injustas tambeacutem quanto ao bem divino por exemplo quando o legislador ordena a idolatria Nestes casos de nenhum modo eacute liacutecito ao suacutedito observar tais leis Idem Ibidem ldquoEt tales leges nullo modo licet observare []rdquo ldquoE tais leis de modo algum eacute liacutecito observar []rdquo A propoacutesito parece ser a previsatildeo de um direito divino que supera mas natildeo tolhe o direito humano que daacute agrave civitas de Tomaacutes um horizonte diferente do da poacutelis de Aristoacuteteles

186 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Emanuele Severino autor jaacute citado neste trabalho quando estuda Tomaacutes de Aquino comeccedila analisando precisamente como o dito evangeacutelico se reflete na obra do Aquinate

Enunciando o seu princiacutepio Jesus afirma ademais que Ceacutesar mdash o Estado mdash tem a capacidade de estabelecer retamente e autonomamente o quanto lhe eacute devido De fato Jesus natildeo se intromete na elaboraccedilatildeo deste caacutelculo e dizendo para dar a Ceacutesar o que lhe respeita reconhece a retidatildeo e a autonomia de tal caacutelculo [] De modo sempre mais decisivo o pensamento medieval e sobretudo Tomaacutes de Aquino estendeu agrave relaccedilatildeo entre razatildeo e feacute os caracteres revelados pelo texto evangeacutelico a propoacutesito da relaccedilatildeo entre o ordenamento racional da sociedade (O Estado) e o ordenamento da realidade que se manifesta no interior da feacute cristatilde102

Pelas razotildees elencadas percebemos que a teologia moral de

Tomaacutes prevecirc a existecircncia de uma ldquocultura laicardquo de uma eacutetica filosoacutefica Ele proacuteprio atesta ldquoO direito divino fundado na graccedila natildeo destroacutei o direito humano que vem da razatildeo naturalrdquo103 A civitas denominada por Tomaacutes comunidade perfeita 104 tem

102 SEVERINO Emanuele La Filosofia dai Greci al nostro Tempo La Filosofia Antica e Medioevale Milano Bur 2004 p 284 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEnunciando il suo principio Gesugrave afferma inoltre che Cesare mdash lo Stato mdash abbia la capacitagrave di stabilire rettamente e autonomamente quanto gli egrave dovuto Infatti Gesugrave non si intromette nella elaborazione di questo calcolo e dicendo di dare a Cesare quel che gli spetta riconosce la rettitudine e lrsquoautonomia di tale calcolo [] In modo sempre piugrave deciso il pensiero medioevale e soprattutto Tommaso drsquoAquino hanno esteso al rapporto tra ragione e fede i caratteri rivelati dal testo evangelico a proposito del rapporto tra lrsquoordinamento razionale della societagrave (lo Stato) e lrsquoordinamento della realtagrave che si manifesta allrsquointerno della fede cristianardquo Franco Pierini historiador da Igreja tambeacutem ressalta a candente questatildeo que agitou a segunda metade do seacuteculo XIII PIERINI Franco A Idade Meacutedia Curso da Histoacuteria da Igreja Trad Joseacute Maria de Almeida Satildeo Paulo Paulus 1998 v II p 188 ldquoEntre 1260 e 1277 em particular delineia-se um momento de agudas batalhas doutrinaacuterias As questotildees em jogo satildeo teoacutericas e praacuteticas Trata-se de decidir se a verdade de feacute e as racionais devem necessariamente estar em harmonia as segundas submetidas agraves primeiras e se consequumlentemente devem tambeacutem estar de acordo as duas sociedades a eclesiaacutestica e a civil o poder pontifiacutecio e o dos soberanos seculares com a submissatildeo do Estado agrave Igrejardquo 103 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 10 10 C ldquoIus autem divinum quod est ex gratia non tollit ius humanum quod est ex naturali rationerdquo 104 Idem Ibidem I-II 90 2 C ldquo[] perfecta enim communitas civitas []rdquo ldquoesta perfeita comunidade com efeito eacute a cidade []rdquo

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exatamente por ser perfeita a capacidade de perfazer-se e eacute isto que nos autoriza a falar de uma eacutetica filosoacutefica em Aquino enquanto fruto de uma reflexatildeo acerca das condiccedilotildees de possibilidade da civitas hominis Neste sentido conclui Sciacca

Desta forma Tomaacutes funda a autonomia do saber ou a ciecircncia proacutepria do homem isto eacute a cultura ldquolaicardquo mas ao mesmo tempo inclusive porque natildeo a contrapotildee agrave sapiecircncia divina revelada exclui aquilo que seraacute o ldquolaicismordquo []105

O jesuiacuteta Copleston jaacute citado neste capiacutetulo tambeacutem

ressalta

O estado eacute uma ldquosociedade perfeitardquo (communitas perfecta) isto eacute tem a sua disposiccedilatildeo todos os meios necessaacuterios para a consecuccedilatildeo do seu fim o bonum commune ou o bem comum dos cidadatildeos106

Natildeo eacute todavia menos verdadeiro que o estado eacute uma ldquosociedade perfeitardquo autocircnoma na sua esfera107

Entretanto estas noccedilotildees de civitas e de felicidade que

acabamos de destacar natildeo existiriam sem antes Tomaacutes definir o ato humano e o que lhe confere moralidade O homem eacute chamado ao ato livre e se deixamos para agora uma breve reflexatildeo acerca do livre-arbiacutetrio foi por uma opccedilatildeo expositiva Eacute tempo de tocarmos neste tema a fim de que natildeo caiamos na tentaccedilatildeo de

105 SCIACCA Michele Federico La filosofia nel suo sviluppo storico 1 Antichitagrave e Medioevo 30 ed Edizione Cremonese Roma 1969 p 232 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCosigrave Tommaso fonda lrsquoautonomia del sapere o scienza propria dellrsquouomo cioegrave la cultura lsquolaicarsquo ma nello stesso tempo proprio percheacute non la contrappone alla sapienza divina rivelata esclude quel che saragrave il lsquolaicismorsquo []rdquo 106 COPLESTON Storia della Filosofia Vol II La Filosofia Medioevale da Agostino a Escoto p 526 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoLo stato egrave una lsquosocietagrave perfettarsquo(communitas perfecta) cioegrave ha a sua disposizione tutti i mezzi necessari per il conseguimento del suo fine il bonum commune o bene comune dei citadini rdquo 107 Idem Ibidem ldquoNon egrave tuttavia men vero che lo stato egrave una lsquosocietagrave perfettarsquo autonoma nella sua sferardquo

188 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino pensarmos que Tomaacutes encerra a sua eacutetica num ldquocomunitarismordquo que olvida a singularidade de cada ser humano A bem dizer o contraacuterio eacute que eacute verdadeiro Com Vignaux defendemos que o estreito conuacutebio entre antropologia e eacutetica em Tomaacutes eacute o melhor caminho para pensarmos em sua siacutentese uma eacutetica filosoacutefica

Digamos que o tomismo coloca como uma possibilidade essencial uma filosofia pura obra da pura razatildeo Esta ideia corresponde evidentemente a sua ideia de homem como ser dotado de uma luz natural108

Tentemos desenvolver esta ideia de homem Como jaacute

tratamos da razatildeo acentuaremos o livre-arbiacutetrio e a perfeiccedilatildeo da pessoa 36 DO LIVRE-ARBIacuteTRIO DISTINTIVO DO ATO HUMANO Agrave PESSOA

Para Tomaacutes o homem eacute vocacionado a ser livre E ser livre mdash raciocina o Aquinate mdash consiste em possuir livre-arbiacutetrio Possuiacutemos livre-arbiacutetrio mdash diz Tomaacutes mdash ldquo[] com relaccedilatildeo agraves coisas que natildeo queremos por necessidade ou por instinto naturalrdquo109 O livre-arbiacutetrio eacute pois uma capacidade de escolha de decisatildeo ldquoSomos livres enquanto podemos aceitar uma coisa rejeitada outra o que eacute escolherrdquo110 A princiacutepio natildeo importa se escolhemos bem ou mal jaacute que o livre-arbiacutetrio consiste simplesmente em poder escolher uma coisa e natildeo outra Daiacute dizer Tomaacutes ldquo[] o livre-arbiacutetrio eacute indiferente

108 VIGNAUX El pensamiento en la Edad Media Trad Tomaacutes Segovia Fondo de Cultura Econoacutemica Buenos Aires 1954 p 120 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoDigamos que lo tomismo plantea como una posibilidad esencial una filosofiacutea pura obra de pura raacutezon Esta idea corresponde evidentemente a su idea del hombre como ser dotado de una luz naturalrdquo 109 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 19 10 C ldquoRespondeo dicendum quod liberum arbitrium habemus respectu eorum quae non necessario volumus vel naturali instincturdquo 110 Idem Ibidem I 83 3 C ldquo[] ex hoc enim liberi arbitrii esse dicimur quod possumus unum recipere alio recusato quod est eligererdquo

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a escolher bem ou mal []rdquo111 Ora a escolha recai natildeo sobre o fim mas sobre os meios conducentes a ele como pontua o Aquinate ldquoA escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre os meios para o fim []rdquo112 Por exemplo o homem natildeo eacute livre para escolher ser feliz ou natildeo pois este eacute o seu fim uacuteltimo113 o que pode ocorrer mdash e agraves vezes ocorre mdash eacute ele escolher mal os meios conducentes agrave felicidade

Mas o que confere ao homem esta capacidade de escolha O que lhe daacute este poder eacute a sua razatildeo Como isso se daacute Eacute verificaacutevel que algumas coisas diz Tomaacutes agem sem julgamento Eacute o caso da pedra por exemplo que cai somente em virtude da sua forma E assim acontece com todas as coisas que satildeo destituiacutedas de conhecimento114

Haacute outras poreacutem que agem com julgamento mas eacute um julgar por instinto e por isso natildeo livre Assim a ovelha foge do lobo porque por instinto julga que ele lhe eacute nocivo O mesmo sucede com todos os animais O julgamento por instinto natildeo eacute livre porque natildeo procede de uma comparaccedilatildeo que eacute uma operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo115

111 Idem Ibidem I 83 2 C ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo 112 Idem Ibidem I 82 1 ad 3 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finem ut dicitur in III Ethicrdquo 113 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 82 1 C ldquoQuinimmo necesse est quod sicut intellectus ex necessitate inhaeret primis principiis ita voluntas ex necessitate inhaereat ultimo fini qui est beatitudo finis enim se habet in operativis sicut principium in speculativis []rdquo ldquo[] eacute necessaacuterio que assim como o intelecto adere necessariamente aos primeiros princiacutepios a vontade adira necessariamente ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila pois o fim estaacute para o agir como o princiacutepio estaacute para o conhecer []rdquo GARDEIL Henri-Dominique Iniciaccedilatildeo agrave filosofia de satildeo Tomaacutes de Aquino psicologia e metafiacutesica Trad Cristiane Negreiros Abbud Ayoub Carlos Eduardo de Oliveira 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2013 p 173 ldquo[] natildeo eacute possiacutevel para mim natildeo querer o bem como tal ou minha bem-aventuranccedilardquo 114 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 83 1 C ldquoAd cuius evidentiam considerandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut lapis movetur deorsum et similiter omnia cognitione carentiardquo ldquo[] certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm o conhecimentordquo 115 Idem Ibidem ldquoQuaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicatrdquo ldquomdash Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto naturalrdquo

190 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Com efeito no caso do homem que eacute um animal racional haacute nele um julgamento livre Ele foge de uma coisa ou a procura mediante uma comparaccedilatildeo da razatildeo e natildeo por um instinto natural Ora esta comparaccedilatildeo exercida pela razatildeo no homem eacute possiacutevel porque as suas accedilotildees particulares satildeo contingentes e desta sorte natildeo se encontram determinadas a uma uacutenica coisa Destarte pela proacutepria natureza contingente das accedilotildees particulares nelas a razatildeo pode orientar-se para alternativas diversas sem ser constrangida a nenhuma116 Realmente o julgamento livre acontece por comparaccedilatildeo e esta eacute uma operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo Mas como acontece esta comparaccedilatildeo Acontece no dizer de Tomaacutes quando a razatildeo reflete sobre o seu proacuteprio ato julga o seu proacuteprio juiacutezo acerca das coisas

No entanto julgar de seu proacuteprio juiacutezo eacute proacuteprio soacute da razatildeo que volta sobre seu proacuteprio ato e conhece as disposiccedilotildees das coisas acerca das quais julga e pelas quais julga Por isso toda raiz da liberdade estaacute constituiacuteda na razatildeo117

Noutro momento voltaremos com maior detenccedila agrave temaacutetica

da estrutura do ato humano Agora basta retermos que pelo juiacutezo racional o homem pode escapar ao determinismo dos apetites inferiores e a qualquer outro ldquomoacutevel externordquo porque a sua vontade

116 Idem Ibidem ldquoSed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid esse fugiendum vel prosequendum Sed quia iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferri [] Particularia autem operabilia sunt quaedam contingentia et ideo circa ea iudicium rationis ad diversa se habet et non est determinatum ad unumrdquo ldquoO homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute o efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos [] Como as accedilotildees particulares satildeo contingentes o julgamento da razatildeo sobre elas se refere a diversas e natildeo eacute determinado a uma uacutenicardquo 117 TOMAacuteS DE AQUINO O livre-arbiacutetrio Quaestiones disputatae de veritate Questatildeo 24 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Beatriz Rodrigues de Lima Satildeo Paulo Edipro 2105 24 2 C ldquoIudicare autem de iudicio suo est solius rationis quae super actum suum reflectitur et cognoscit habitudines rerum de quibus iudicat et per quas iudicat unde totius libertatis radix est in ratione constitutardquo

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pode sempre escolher o que lhe for apresentado pela razatildeo118 Por isso pode-se dizer ldquo[] que o homem seja dotado de livre-arbiacutetrio pelo fato mesmo de ser racionalrdquo119

Contudo eacute preciso entender bem nem mesmo ao domiacutenio da razatildeo mdash entenda-se da reta razatildeo (recta ratio)120 mdash a vontade estaacute submetida Em outros termos ela pode agir contra a reta razatildeo (recta ratio) e consoante a razatildeo errocircnea e os apetites inferiores De maneira que nem a razatildeo pode determinar necessariamente a vontade a nada mdash exceto agrave felicidade mdash porquanto no campo onde se desenvolve a accedilatildeo humana como dissemos a razatildeo soacute apresenta agrave vontade bens particulares bens relativos isto eacute coisas boas por um lado poreacutem onerosas por outro coisas portanto que podem ser queridas ou repelidas Em outras palavras um bem relativo proposto como apraziacutevel por sua razatildeo de bem natildeo deixa de esconder a sua razatildeo de natildeo bem por outro lado o mesmo bem se proposto como rejeitaacutevel

118 Na concepccedilatildeo tomasiana esclarece Franca haacute dois tipos de atos livres aqueles que procedem formalmente da vontade e aqueles que embora procedam de outras faculdades estatildeo sob o domiacutenio da vontade FRANCA Leonel A Psicologia da Feacute 7 ed Rio de Janeiro Agir Editora 1958 p 33 ldquoDe dois modos chamam-se livres os nossos atos ou porque emanam de uma faculdade formalmente livre ou porque procedem imediatamente de outra faculdade mas sob o impeacuterio de uma determinaccedilatildeo livrerdquo Livres propriamente satildeo somente os atos da vontade entretanto aquelas faculdades que estatildeo sob o impeacuterio da vontade pelo influxo que esta pode exercer sobre elas tambeacutem podem agir livremente Idem Op Cit Desta sorte com exceccedilatildeo das funccedilotildees vegetativas mdash nutriccedilatildeo assimilaccedilatildeo circulaccedilatildeo etc mdash todos os demais atos humanos podem estar sob a influecircncia da vontade Idem Op Cit pp 33-34 Por isso o movimento a visatildeo e a estudiosidade conquanto estejam reduzidos quanto aos seus princiacutepios mais imediatos a outras faculdades (muacutesculos olhos e aplicaccedilatildeo mental) podem ser determinados pelo livre-arbiacutetrio Assim podemos escolher andar ou parar de andar abrir ou fechar os olhos estudar histoacuteria ou matemaacutetica etc Com efeito Franca nada mais faz do que explicitar o que Tomaacutes registra na Summa TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 6 4 C ldquoRespondeo dicendum quod duplex est actus voluntatis unus quidem qui est eius immediate velut ab ipsa elicitus scilicet velle alius autem est actus voluntatis a voluntate imperatus et mediante alia potentia exercitus ut ambulare et loqui qui a voluntate imperantur mediante potentia motivardquo ldquoO ato da vontade eacute duplo um que lhe eacute imediato como emanado dela querer outro que eacute por ela imperado e exercido por outra potecircncia como andar falar que satildeo imperados pela vontade mas exercidos por uma potecircncia motorardquo 119 Idem Ibidem I 83 1 C ldquoEt pro tanto necesse est quod homo sit liberi arbitrii ex hoc ipso quod rationalis estrdquo 120 Querer e agir de acordo com a reta razatildeo eacute o ato proacuteprio da virtude da prudecircncia A falar com exaccedilatildeo a prudecircncia eacute a reta razatildeo do agir Idem Ibidem II-II 47 8 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est recta ratio agibilium ut supra dictum est ldquoA prudecircncia eacute a reta razatildeo do que deve ser feito jaacute foi ditordquo

192 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mostra-se tambeacutem deleitaacutevel por sua razatildeo de bem E a razatildeo e a vontade cientes deste ldquocustobenefiacuteciordquo de todos os bens relativos comportam-se em relaccedilatildeo a eles considerando os proacutes e os contras Eacute este o dilema que torna a eleiccedilatildeo humana livre e dramaacutetica Afirma Tomaacutes

Ademais como a falta de qualquer bem tem a razatildeo de natildeo-bem por isso soacute aquele bem perfeito ao qual nada falta eacute o bem que a vontade natildeo pode deixar de querer e este bem eacute bem-aventuranccedila Qualquer outro bem particular deficiente em algo do bem pode ser tido como natildeo-bem Segundo essa consideraccedilatildeo pode ser repudiado ou aprovado pela vontade que eacute capaz de se dirigir para o mesmo objeto considerado sob diversos aspectos121

Tudo aquilo que a razatildeo pode apreender como bem para isso a vontade pode tender Ademais pode a razatildeo apreender como bem natildeo somente querer ou agir como tambeacutem natildeo querer e natildeo agir Ainda em todos os bens particulares pode considerar a

121 Idem Ibidem I-II 10 2 C ldquoEt quia defectus cuiuscumque boni habet rationem non boni ideo illud solum bonum quod est perfectum et cui nihil deficit est tale bonum quod voluntas non potest non velle quod est beatitudo Alia autem quaelibet particularia bona inquantum deficiunt ab aliquo bono possunt accipi ut non bona et secundum hanc considerationem possunt repudiari vel approbari a voluntate quae potest in idem ferri secundum diversas considerationesrdquo E ainda Idem Ibidem I-II 13 6 C ldquoSolum autem perfectum bonum quod est beatitudo non potest ratio apprehendere sub ratione mali aut alicuius defectus Et ideo ex necessitate beatitudinem homo vult nec potest velle non esse beatus aut miser Electio autem cum non sit de fine sed de his quae sunt ad finem ut iam dictum est non est perfecti boni quod est beatitudo sed aliorum particularium bonorum Et ideo homo non ex necessitate sed libere eligitrdquo ldquoSomente o bem perfeito que eacute a bem-aventuranccedila natildeo pode a razatildeo apreender sob a razatildeo de mal ou de alguma deficiecircncia Daiacute que o homem necessariamente quer a bem-aventuranccedila nem pode natildeo querer ser bem-aventurado ou querer ser desgraccedilado Como a eleiccedilatildeo natildeo eacute do fim mas do que eacute para o fim como jaacute foi dito natildeo eacute do bem perfeito que eacute a bem-aventuranccedila mas de outros bens imperfeitos Por isso o homem natildeo elege necessariamente mas livrementerdquo Tambeacutem no Compecircndio de Teologia encontramos a mesma tese Segue a citaccedilatildeo a partir da ediccedilatildeo biliacutengue Idem Compecircndio de Teologia I 76 ldquoAdhuc Liberum est quod non est obligatum ad aliquid unum determinatum Appetitus autem substantiae intellectivae non est obligatus ad aliquid unum determinatum bonum sequitur enim apprehensionem intellectus quae est de bono universaliter Igitur appetitus substantiae intelligentis est liber utpote communiter se habens ad quodcumque bonumrdquo ldquoAdemais eacute livre o que natildeo eacute obrigado a uma soacute e determinada coisa Ora o apetite das substacircncias intelectivas natildeo eacute obrigado a um soacute e determinado bem segue-se com efeito da apreensatildeo do intelecto a qual eacute do bem em universal Por conseguinte o apetite da substacircncia inteligente eacute livre dado que comumente se tem para todo e qualquer bemrdquo

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razatildeo de bem de um e a deficiecircncia de algum bem que tem a razatildeo de mal Assim pode apreender cada um desses bens como capaz de ser eleito ou rejeitado Somente o bem perfeito que eacute a bem-aventuranccedila natildeo pode a razatildeo apreender sob a razatildeo de mal ou de alguma deficiecircncia Daiacute que o homem necessariamente quer a bem-aventuranccedila nem pode querer natildeo ser bem-aventurado ou querer ser desgraccedilado122

Em razatildeo disso a liberdade humana implica sempre a

traacutegica possibilidade de fazermos escolhas contraacuterias agrave reta razatildeo e em consonacircncia com os apetites inferiores e assim trairmos a nossa vocaccedilatildeo agrave beatitude De sorte que o homem estaacute entregue ao seu arbiacutetrio de modo que nem o poder poliacutetico o pode tolher desta sua liberdade antes o poder poliacutetico pressupotildee que o homem seja livre e eacute justamente isto que o distingue do poder despoacutetico Neste aspecto o poder poliacutetico natildeo eacute senatildeo uma extensatildeo da natureza livre do homem Assim como a razatildeo pode controlar os apetites inferiores integrando-os agrave sua ordem assim o poder reacutegio domina os homens conduzindo-os a um fim comum Afirma o Boi Mudo

Donde dizer o Filoacutesofo no livro I da Poliacutetica que a razatildeo eacute superior ao irasciacutevel e ao concupisciacutevel natildeo por um domiacutenio despoacutetico que eacute proacuteprio do senhor em relaccedilatildeo ao escravo mas por um domiacutenio poliacutetico e reacutegio que eacute proacuteprio dos homens livres que natildeo se submetem totalmente a domiacutenio algum123

122 Idem Suma Teoloacutegica I-II 13 6 C ldquoQuidquid enim ratio potest apprehendere ut bonum in hoc voluntas tendere potest Potest autem ratio apprehendere ut bonum non solum hoc quod est velle aut agere sed hoc etiam quod est non velle et non agere Et rursum in omnibus particularibus bonis potest considerare rationem boni alicuius et defectum alicuius boni quod habet rationem mali et secundum hoc potest unumquodque huiusmodi bonorum apprehendere ut eligibile vel fugibile Solum autem perfectum bonum quod est beatitudo non potest ratio apprehendere sub ratione mali aut alicuius defectus Et ideo ex necessitate beatitudinem homo vult nec potest velle non esse beatus aut miserrdquo 123 Idem Ibidem I-II 17 7 C ldquoEt tunc ille motus est praeter imperium rationis quamvis potuisset impediri a ratione si praevidisset Unde philosophus dicit in I Polit quod ratio praeest irascibili et concupiscibili non principatu despotico qui est domini ad servum sed principatu politico aut regali qui est ad liberos qui non totaliter subduntur imperiordquo

194 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Podemos ir mais longe Nem mesmo o poder religioso pode subjugar o livre-arbiacutetrio do homem no seu poder de decisatildeo O Aquinate chega a dizer que se a razatildeo errocircnea concebe a fornicaccedilatildeo como um bem mdash inobstante seja ela um mal em si mdash maacute seraacute a vontade que natildeo escolher fornicar porque estaraacute contrariando o juiacutezo mdash deveras errocircneo mdash da razatildeo E vai mais longe ainda Se a razatildeo apresentar agrave vontade que crer em Cristo eacute um mal mdash e a vontade mesmo assim aderir a Cristo mdash esta vontade seraacute maacute porque iraacute contrariar a razatildeo embora crer em Cristo seja necessaacuterio agrave salvaccedilatildeo Pela importacircncia desta passagem citemo-la

Por exemplo abster-se da fornicaccedilatildeo eacute um certo bem mas este bem a vontade natildeo aceita a natildeo ser que seja proposto pela razatildeo Se portanto foi proposto como mal pela razatildeo errocircnea seraacute levada a isso sob a razatildeo de mal Daiacute que a vontade seraacute maacute por querer o mal natildeo o que eacute mau por si mas o que eacute mau acidentalmente por causa da apreensatildeo da razatildeo Semelhantemente crer em Cristo eacute um bem por si e necessaacuterio para a salvaccedilatildeo Mas a vontade natildeo eacute levada a esta verdade se natildeo lhe for proposta pela razatildeo Portanto se a razatildeo a propuser como mal a vontade a aceitaraacute como mal natildeo porque seja um mal em si mas porque eacute mal acidentalmente pela apreensatildeo da razatildeo [] Portanto deve-se dizer de modo absoluto que toda vontade que discorda da razatildeo seja reta ou errocircnea eacute sempre maacute124

O que quisemos acentuar eacute que razatildeovontade satildeo de certa

forma a instacircncia uacuteltima de nossas escolhas mdash sejam estas felizes ou natildeo mdash gozando ambas na simbiose em que interagem de

124 Idem Ibidem I-II 19 5 C ldquoPuta abstinere a fornicatione bonum quoddam est tamen in hoc bonum non fertur voluntas nisi secundum quod a ratione proponitur Si ergo proponatur ut malum a ratione errante feretur in hoc sub ratione mali Unde voluntas erit mala quia vult malum non quidem id quod est malum per se sed id quod est malum per accidens propter apprehensionem rationis Et similiter credere in Christum est per se bonum et necessarium ad salutem sed voluntas non fertur in hoc nisi secundum quod a ratione proponitur Unde si a ratione proponatur ut malum voluntas feretur in hoc ut malum non quia sit malum secundum se sed quia est malum per accidens ex apprehensione rationis[] Unde dicendum est simpliciter quod omnis voluntas discordans a ratione sive recta sive errante semper est malardquo

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ldquoautonomiardquo em relaccedilatildeo aos ldquocostumesrdquo ao poder poliacutetico e ao proacuteprio domiacutenio religioso Tomaacutes resume esta sua concepccedilatildeo afirmando ldquoO motivo disso eacute que o livre difere do servo porque o livre eacute causa de si []rdquo125 Na verdade para o Aquinate somente as accedilotildees que procedem do livre-arbiacutetrio ou seja unicamente da sinergia entre razatildeo e vontade podem ser ditas accedilotildees propriamente humanas Donde a claacutessica distinccedilatildeo entre ato do homem (actus hominis) e ato humano (actus humanus)

O homem diferencia-se das criaturas irracionais porque tem o domiacutenio de seus atos Por isso somente satildeo ditas propriamente humanas aquelas accedilotildees sobre as quais o homem tem domiacutenio Ora o homem tem domiacutenio de suas accedilotildees pela razatildeo e pela vontade Donde seraacute chamada de livre-arbiacutetrio a faculdade da vontade e da razatildeo Assim sendo satildeo propriamente ditas humanas as accedilotildees que procedem da vontade deliberada Se outras accedilotildees poreacutem satildeo proacuteprias do homem poderatildeo ser chamadas de accedilotildees do homem mas natildeo satildeo propriamente humanas pois natildeo satildeo do homem enquanto homem126

Ora eacute exatamente este domiacutenio intransferiacutevel e ineludiacutevel

do ato livre que torna o homem responsaacutevel por suas accedilotildees vale dizer capaz de virtudes e de viacutecios ldquoO homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio do contraacuterio os conselhos as exortaccedilotildees os preceitos as proibiccedilotildees as recompensas e os castigos seriam vatildeosrdquo127 O livre-

125 Idem Ibidem I 96 4 C ldquoCuius ratio est quia servus in hoc differt a libero quod liber est causa sui []rdquo 126 Idem Suma Teoloacutegica I-II 1 1 C ldquoDiffert autem homo ab aliis irrationalibus creaturis in hoc quod est suorum actuum dominus Unde illae solae actiones vocantur proprie humanae quarum homo est dominus Est autem homo dominus suorum actuum per rationem et voluntatem unde et liberum arbitrium esse dicitur facultas voluntatis et rationis Illae ergo actiones proprie humanae dicuntur quae ex voluntate deliberata procedunt Si quae autem aliae actiones homini conveniant possunt dici quidem hominis actiones sed non proprie humanae cum non sint hominis inquantum est homordquo 127 Idem Ibidem I 83 1 C ldquoRespondeo dicendum quod homo est liberi arbitrii alioquin frustra essent consilia exhortationes praecepta prohibitiones praemia et poenaerdquo Este princiacutepio natildeo eacute negado em teologia pois a graccedila natildeo anula mas pressupotildee e aperfeiccediloa a natureza racional Em contextos estritamente teoloacutegicos o Aquinate afirma Idem Ibidem III 27 2 C ldquoCulpa autem non potest emundari nisi per gratiam cuius subiectum est sola creatura rationalisrdquo ldquoOra a culpa soacute pode

196 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino arbiacutetrio inaugura pois a vida eacutetica As nossas accedilotildees satildeo nossas mas por isso mesmo devemos responder por elas Aliaacutes a uacutenica coisa que nos pertence e que podemos dar ao mundo de ineacutedito satildeo os nossos atos No De veritate o Aquinate diz ldquoNo entanto natildeo podemos dar senatildeo isso que eacute nosso do que somos donos Contudo como somos donos de nossos atos pela vontade []rdquo128 Destarte para Tomaacutes pelo livre-arbiacutetrio mdash que adveacutem do consoacutercio entre razatildeo e vontade mdash o homem dono de suas accedilotildees passa a ser ele proacuteprio ldquo[] depois que ele tiver o uso da razatildeo ele comeccedila a ser ele mesmo e pode [] decidir-se por si mesmordquo129 O ato livre mdash prossegue ainda o Aquinate mdash faz o homem senhor de si pois este ato implica que conhecendo os proacutes e os contras das coisas o homem pode deixar de estar entre elas para estar diante delas130 De maneira que o homem livre natildeo pode ser compelido nem coagido mesmo a crer ldquoE entatildeo ele eacute induzido agrave feacute natildeo por coaccedilatildeo mas por persuasatildeo []rdquo131 Em suma pelo livre-arbiacutetrio o homem torna-se capaz de perfazer-se virtuoso ou vicioso jaacute que as suas potecircncias racionais soacute satildeo determinadas por suas livres e

ser purificada pela graccedila e o sujeito da graccedila eacute exclusivamente a criatura racionalrdquo Idem O livre-arbiacutetrio Quaestiones disputatae de veritate Questatildeo 24 24 1 C ldquoAd hoc enim fides astringit cum sine libero arbitrio non possit esse meritum vel demeritum iusta poena vel praemiumrdquo ldquoCom efeito a feacute tambeacutem obriga a isso pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo pode haver meacuterito ou demeacuterito justa pena ou precircmiordquo 128 TOMAacuteS DE AQUINO As paixotildees da alma Quaestiones disputatae de veritate Questatildeo 26 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Beatriz Rodrigues de Lima Satildeo Paulo Edipro 2015 26 6 C ldquoDare autem non possumus nisi id quod nostrum est cuius domini sumus Sumus autem domini nostrorum actuum per voluntatem []rdquo 129 Idem Suma Teoloacutegica II-II 10 12 C ldquoPostquam autem incipit habere usum liberi arbitrii iam incipit esse suus et potest [] sibi ipsi providererdquo 130 Eacute verdade admite Tomaacutes que natildeo eacute contraacuterio agrave razatildeo de ato livre seguir conselhos Poreacutem adverte Aquino aquele que segue conselhos sem saber tomar as suas proacuteprias decisotildees ainda natildeo eacute perfeito na virtude Idem Ibidem I-II 57 5 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod cum homo bonum operatur non secundum propriam rationem sed motus ex consilio alterius nondum est omnino perfecta operatio ipsius quantum ad rationem dirigentem et quantum ad appetitum moventem Unde si bonum operetur non tamen simpliciter bene quod est bene vivererdquo ldquoDeve-se dizer que quando o homem faz o bem natildeo pela proacutepria razatildeo mas levado pelo conselho de outrem sua obra ainda natildeo eacute totalmente perfeita nem quanto agrave razatildeo que a dirige nem quanto ao apetite que a move Portanto se o bem eacute feito natildeo o eacute absolutamente bem que eacute viver bemrdquo 131 Idem Ibidem ldquoEt tunc est inducendus ad fidem non coactione sed persuasione []rdquo

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reiteradas escolhas que se tornam disposiccedilotildees estaacuteveis as quais Tomaacutes denomina haacutebitos

Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam indeterminadamente a muitas coisas Ora eacute pelos haacutebitos que elas se determinam aos atos como se mostrou acima132

Nas Quaestiones Disputatae de Veritate o Aquinate remata

esta questatildeo dizendo que Deus deu ao homem o ser autor dos seus atos e por conseguinte do seu porvir ldquolsquoDeus deixou o homem nas matildeos de seu conselhorsquo (Sr 15 14) na medida em que ele o constituiu intendente de seus proacuteprios atosrdquo133 Noutro lugar volta a afirmar que Deus concedeu ao homem participar da Sua Providecircncia natildeo soacute como ldquoobjetordquo mas tambeacutem como ldquosujeitordquo que provecirc ldquoPor conseguinte a criatura racional participa da providecircncia natildeo somente enquanto eacute governada mas tambeacutem enquanto governa pois governa as suas proacuteprias accedilotildees e as dos outrosrdquo134 Por isso para o Aquinate atentar contra a accedilatildeo proacutepria das coisas mdash no caso do homem contra o seu livre-arbiacutetrio mdash eacute atentar contra a virtude divina ldquoLogo tirar das coisas as suas proacuteprias accedilotildees eacute diminuir a bondade divinardquo135 Importa ressaltar

132 Idem Ibidem I-II 55 1 C ldquoPotentiae autem rationales quae sunt propriae hominis non sunt determinatae ad unum sed se habent indeterminate ad multa determinantur autem ad actus per habitus sicut ex supradictis patet Et ideo virtutes humanae habitus suntrdquo 133 Idem De veritate q 5 a 5 ad 4 In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 344 ldquoAd quartum dicendum quod Deus permisit hominem in manu consilii sui inquantum constituit eum propriorum actuum provisorem []rdquo Torrell arrola outras passagens em que Tomaacutes mdash na Suma de Teologia mdash cita o versiacuteculo do Eclesiaacutestico para expressar a mesma ideia o ato humano eacute dotado de uma causalidade proacutepria 134 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios III CXIII 5 [2873] ldquoCreatura rationalis sic providentiae divinae subiacet quod non solum ea gubernatur sed etiam rationem providentiae utcumque cognoscere potest []rdquo BRAGUE A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila p 288 ldquoA criatura racional tem parte na providecircncia natildeo apenas como objeto mas tambeacutem como sujeitordquo 135 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios III LXIX 11 [2446] ldquoDetrahere ergo actiones proprias rebus est divinae bonitati derogarerdquo Idem Ibidem III LXIX 10 [2445] ldquoSed si nulla creatura habet aliquam actionem ad aliquem effectum producendum multum detrahitur perfectioni

198 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino no entanto que o fato de Tomaacutes dar ecircnfase agrave liberdade do homem natildeo o torna por assim dizer um ldquodeiacutestardquo posto que a ordem da Providecircncia dispocircs de tal forma os seres criados ldquo[] que o efeito da providecircncia divina natildeo eacute unicamente que algo aconteccedila de qualquer modo mas que aconteccedila seja de modo necessaacuterio seja de modo contingenterdquo136 Em razatildeo disso a liberdade humana natildeo estaacute fora do controle da Providecircncia nem eacute tolhida por ela inclusive na ordem da graccedila Conclui o Frade Mendicante

[] Deus tudo move segundo o modo proacuteprio de cada um [] Ora a natureza proacutepria do homem eacute estar dotado de livre-arbiacutetrio Portanto quando se trata de um indiviacuteduo que tem o uso de seu livre-arbiacutetrio a moccedilatildeo de Deus para a justiccedila natildeo acontece sem que se exerccedila este livre-arbiacutetrio137

Do que expusemos acerca do livre-arbiacutetrio decorre que o

homem eacute livre por ser racional e volitivo e sendo livre pode ter domiacutenio sobre os seus atos e responder por eles Haacute entatildeo uma realidade humana um mundo ou um haacutebitat construiacutedo pelos homens fundado por seus atos porquanto o homem eacute de certo modo providecircncia para si mesmo Ele provecirc para si e para os seus ldquo[] Deus quis comunicar a sua semelhanccedila agraves coisas natildeo soacute quanto ao ser mas tambeacutem quanto ao serem causas de outrasrdquo 138

creaturae ex abundantia enim perfectionis est quod perfectionem quam aliquid habet possit alteri communicare Detrahit igitur haec positio divinae virtutirdquo ldquoOra se nenhuma criatura tem accedilatildeo efetiva muito eacute diminuiacutedo de sua perfeiccedilatildeo pois eacute proacuteprio da excelecircncia da perfeiccedilatildeo de uma coisa poder comunicaacute-la agrave outra coisa Logo tal tese diminui a virtude divinardquo 136 Idem Suma Teoloacutegica I 22 4 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod effectus divinae providentiae non solum est aliquid evenire quocumque modo sed aliquid evenire vel contingenter vel necessariordquo 137 Idem Ibidem I-II 113 3 C ldquoDeus autem movet omnia secundum modum uniuscuiusque [] Unde et homines ad iustitiam movet secundum conditionem naturae humanae Homo autem secundum propriam naturam habet quod sit liberi arbitriirdquo 138 Idem Suma Contra os Gentios III LXX 5 [2465] ldquoNon enim hoc est ex insufficientia divinae virtutis sed ex immensitate bonitatis ipsius per quam suam similitudinem rebus communicare voluit non solum quantum ad hoc quod essent sed etiam quantum ad hoc quod aliorum causae essent []rdquo BRAGUE A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila p 288 ldquoDeus lhe delega sua providecircncia ateacute fazer coincidir Sua providecircncia com a prudecircncia palavra que na histoacuteria da

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Mais uma vez nos deparamos com a face filosoacutefica da eacutetica de Tomaacutes Comentando estas passagens Brague destaca a perspectiva poieacutetica da eacutetica tomasiana visto que nela o homem natildeo eacute soacute ldquoobjetordquo de uma realidade jaacute dada mas ldquosujeitordquo que cria a sua morada por sua capacidade de agir livremente

Este bem do homem natildeo eacute soacute um bem criado para ele mas um bem que ele eacute capaz de criar A partir do momento em que eacute percebido dessa forma o homem entra em cena como sujeito e natildeo apenas como objeto Assim penetra-se no campo da moral como teoria do bem enquanto criaacutevel pelo homem o qual se apropria desse bem na excelecircncia humana ou virtude139

Mondin define a moral exatamente como o exerciacutecio de o

homem construir-se como homem ldquoFazer o homem mdash que eacute a tarefa proacutepria da moral mdash significa fazer o homem em todas as suas dimensotildees []rdquo140 Noutro lugar ele retoma a mesma ideia ldquoA tarefa da eacutetica eacute fazer o homemrdquo141 Por fim Tomaacutes integra todos estes dados sobre o ato humano para definir o homem como pessoa Passemos agrave consideraccedilatildeo deste conceito

liacutengua constitui aliaacutes a coacutepia da primeira originaacuteria como ela do latim providentiardquo Idem Ibidem ldquoEis aqui o fruto produzido por um princiacutepio formulado fora a bondade de Deus vai ateacute transmitir ao que Ele cria Seu proacuteprio poder criadorrdquo 139 Idem Ibidem p 292 140 MONDIN Battista Definiccedilatildeo Filosoacutefica da Pessoa Humana Trad Jacinta Turolo Garcia Satildeo Paulo EDUSC 1998 p 23 141 Idem Ibidem p 37 Ao usar os verbos ldquoagordquo e ldquofaciordquo natildeo desconhecemos que eles possuem stricto sensu significaccedilotildees distintas pois o agir eacute um ato que termina na perfeiccedilatildeo do sujeito e o fazer eacute um ato transeunte que termina na perfeiccedilatildeo do objeto TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 57 4 C ldquoDiffert autem facere et agere quia ut dicitur in IX Metaphys factio est actus transiens in exteriorem materiam sicut aedificare secare et huiusmodi agere autem est actus permanens in ipso agente sicut videre velle et huiusmodirdquo ldquoFazer e agir satildeo coisas diferentes O primeiro como se diz no livro IX da Metafiacutesica eacute um ato que passa para uma mateacuteria exterior como construir cortar e outros enquanto que o segundo eacute um ato que fica no proacuteprio agente como ver querer e semelhantesrdquo Contudo lato sensu no sentido de que o agir perfaz o nosso caraacuteter e assim as nossas relaccedilotildees e o ambiente que nos circunda natildeo haacute razatildeo a nosso ver para natildeo aproximarmos o agir eacutetico de uma espeacutecie de fazer poieacutetico

200 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino 361 A PESSOA

Assim chegamos a um ponto importante da eacutetica tomasiana Afirma Tomaacutes ldquoPessoa significa o que haacute de mais perfeito em toda natureza a saber o que subsiste numa natureza racionalrdquo142 No De Potentia diz o mesmo ldquoA natureza implicada na significaccedilatildeo do nome pessoa eacute a mais digna de todas as naturezas uma vez que eacute a natureza intelectiva em toda a sua amplidatildeordquo143 E o que haacute de mais nobre no proacuteprio ser pessoa e por isso livre eacute a sua possibilidade de fazer-se

Diversamente dos outros seres vivos cujo ser eacute inteiramente produzido preacute-fabricado pela natureza o homem eacute grande em medida o artiacutefice de si mesmo [] Ele deve se construir com suas proacuteprias matildeos cultivando a si mesmo144

A liberdade eacute dada ao homem para que ele possa realizar a si mesmo seu proacuteprio ser porque ele realiza tudo aquilo que a natureza apenas comeccedilou a esboccedilar145

Pensa Battista Mondin que Tomaacutes ao definir o homem

como pessoa e ao dizer que eacute na liberdade da pessoa que se radica a vida eacutetica retoma a ideia dos antigos de que a eacutetica eacute sob certo aspecto uma ldquoarterdquo Diz o estudioso ldquoNa origem a pessoa humana eacute um projeto mais do que uma obra completa A pessoa eacute uma obra de arte a maior de todas as obras de arterdquo146 Aliaacutes o proacuteprio Tomaacutes concebe a vida eacutetica como uma vida bela Para ele a beleza

142 Idem Ibidem I 29 3 C ldquoRespondeo dicendum quod persona significat id quod est perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturardquo 143 TOMAacuteS DE AQUINO De Potentia q 9 a 1 co In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 371 ldquoNatura autem quam persona in sua significatione includit est omnium naturarum dignissima scilicet natura intellectualis secundum genus suumrdquo 144 MONDIN Definiccedilatildeo Filosoacutefica da Pessoa Humana pp 15 e 16 145 Idem Ibidem p 18 146 Idem Ibidem p 38

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espiritual consiste numa vida vivida e construiacuteda segundo a reta razatildeo

[] Do mesmo modo a beleza espiritual consiste em ter o homem comportamento e atividade bem equilibrados pelo esplendor espiritual da razatildeo Mas isso diz respeito agrave razatildeo de honesto que acabamos de declarar idecircntico agrave virtude a qual regula todas as coisas humanas de acordo com a razatildeo Por isso o honesto eacute o mesmo que a beleza espiritual []147

Com os resultados jaacute obtidos podemos aprofundar o

conceito de pessoa a fim de percebermos quais satildeo as suas implicaccedilotildees eacuteticas Segundo Garrigou-Lagrange na sua siacutentese do pensamento de Tomaacutes ldquo[] a pessoa eacute um sujeito inteligente e livre []rdquo148 Para bem compreendermos o enunciado cumpre analisarmos cada um dos termos contidos na definiccedilatildeo Antes de mais importa entendermos o que nela estaacute pressuposto a saber o conceito de substacircncia (substantia) conforme a definiccedilatildeo que Tomaacutes retoma de Boeacutecio ldquo[] a pessoa eacute segundo Boeacutecio a lsquosubstacircncia individual de uma natureza racionalrsquordquo 149 Ora a substacircncia eacute aquilo que existe por si eacute o ens per se diriam os escolaacutesticos Em outros termos a substacircncia eacute aquilo que estaacute apto para existir em oposiccedilatildeo agravequilo que natildeo pode existir por si a saber ao acidente (accidens) Este uacuteltimo por natildeo possuir um ato de ser (actus essendi) proacuteprio soacute pode subsistir na e pela substacircncia que ao contraacuterio possui um actus essendi proacuteprio150

147 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 145 2 C ldquoEt similiter pulchritudo spiritualis in hoc consistit quod conversatio hominis sive actio eius sit bene proportionata secundum spiritualem rationis claritatem Hoc autem pertinet ad rationem honesti quod diximus idem esse virtuti quae secundum rationem moderatur omnes res humanas Et ideo honestum est idem spirituali decorirdquo 148 GARRIGOU-LAGRANGE Reacuteginald La Siacutentesis Tomista Trad Eugenio S Melo Buenos Aires Ediciones Descleacutee 1946 p 247 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] la persona es un sujeto inteligente y libre []rdquo 149 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica III 2 2 C ldquo[] persona quam rationalis naturae individua substantia secundum Boetium []rdquo 150 MONDIN Battista Substacircncia In ______ Glossaacuterio dos Principais Termos Teoloacutegico-Filosoacuteficos Trad Joseacute Maria de Almeida 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 p 440

202 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Dessa anaacutelise chegamos a outro conceito fundamental Se a substacircncia possui um ato de ser proacuteprio e natildeo existe em outra coisa senatildeo em si mesma ela eacute entatildeo distinta de tudo eacute um indiviacuteduo Com efeito um indiviacuteduo como define Tomaacutes ldquo[] eacute o que eacute indiviso em si e distinto dos outrosrdquo151 De fato o universal e o particular se encontram em todos os gecircneros do ser poreacutem eacute no gecircnero substacircncia que particularmente se encontra o indiviacuteduo Enquanto os acidentes subsistem como indiviacuteduos nas substacircncias as substacircncias satildeo individuadas por si mesmas Em outras palavras se os acidentes tornam-se indivisos por existirem numa substacircncia a proacutepria substacircncia eacute indivisa em si mesma Por isso eacute ao indiviacuteduo do gecircnero substacircncia isto eacute agravequele que subsiste em si mesmo que damos formalmente o nome de hipoacutestase ou substacircncia primeira152

Todavia a pessoa natildeo eacute somente uma substacircncia individual mas como jaacute havia definido Boeacutecio uma substacircncia individual de natureza racional (individua substantia rationalis naturae) Com efeito o particular e o individual se encontram de maneira ainda mais especial e perfeita nas chamadas substacircncias racionais Isto se daacute pelo fato de as substacircncias racionais possuiacuterem o domiacutenio dos seus atos (dominium sui actus) Elas natildeo estatildeo fadadas a agir somente por causalidade natural mas podem desencadear uma causalidade proacutepria Aliaacutes eacute esta peculiaridade que distingue as substacircncias racionais das demais substacircncias elas satildeo capazes de agir por si mesmas (per se agunt) De fato denominamos pessoa (persona) precisamente a substacircncia racional que aleacutem de existir por si (ens per se) ou exatamente por isso eacute capaz em virtude da sua racionalidade de agir por si Disso

151 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 29 4 C ldquoIndividuum autem est quod est in se indistinctum ab aliis vero distinctumrdquo GILSON O Espiacuterito da Filosofia Medieval p 265 ldquoUm indiviacuteduo eacute um ser dividido de todos os outros seres e por sua vez natildeo divisiacutevel em outros seresrdquo 152 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 29 1 C ldquoSubstantia enim individuatur per seipsam sed accidentia individuantur per subiectum quod est substantia []rdquo ldquoA substacircncia com efeito eacute individuada por si mesma Mas os acidentes o satildeo pelo sujeito isto eacute pela substacircncia []rdquo

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decorre que o homem eacute uma pessoa isto eacute uma substacircncia racional resultante da uniatildeo substancial entre alma e corpo que existe e age por si Vale ceder a palavra ao proacuteprio Tomaacutes

O particular e o indiviacuteduo realizam-se de maneira ainda mais especial e perfeita nas substacircncias racionais que tecircm o domiacutenio de seus atos e natildeo satildeo apenas movidas na accedilatildeo como as outras mas agem por si mesmas Ora as accedilotildees estatildeo nos singulares Por isso entre as outras substacircncias os indiviacuteduos de natureza racional tecircm o nome especial de pessoa153

Para prosseguirmos na abordagem sobre a pessoa cumpre

que ponderemos o que eacute o bem e quais satildeo os seus desdobramentos a fim de verificarmos em qual escala se encontra a pessoa na hierarquia dos bens 362 O BEM UacuteTIL HONESTO E DELEITAacuteVEL

O bem em Tomaacutes natildeo eacute um conceito uniacutevoco mas pluriacutevoco154 Contudo abstraiacutedo relativamente dos modos como se realiza podemos defini-lo como aquilo para o qual todos tendem ou aquilo que todos desejam155 Dito isso podemos considerar a existecircncia de um bem uacutetil honesto e deleitaacutevel O bem uacutetil eacute aquele que eacute desejado como meio para se chegar a um fim isto eacute aquele que eacute apetecido tendo em vista este fim Jaacute o bem honesto eacute aquele

153 Idem Ibidem ldquoSed adhuc quodam specialiori et perfectiori modo invenitur particulare et individuum in substantiis rationalibus quae habent dominium sui actus et non solum aguntur sicut alia sed per se agunt actiones autem in singularibus sunt Et ideo etiam inter ceteras substantias quoddam speciale nomen habent singularia rationalis naturae Et hoc nomen est personardquo 154 Idem Ibidem I 5 6 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod bonum non dividitur in ista tria sicut univocum aequaliter de his praedicatum sed sicut analogum []rdquo ldquoDeve-se dizer que o bem natildeo se divide nestes trecircs gecircneros como um termo uniacutevoco atribuiacutedo igualmente a eles mas como um termo anaacutelogo [hellip]rdquo 155 Idem Ibidem I 5 1 C ldquoRatio enim boni in hoc consistit quod aliquid sit appetibile unde philosophus in I Ethic dicit quod bonum est quod omnia appetuntrdquo ldquo[] a razatildeo do bem consiste em que alguma coisa seja atrativa Por isso mesmo o Filoacutesofo no livro I da Eacutetica assim define o bem lsquoAquilo para o qual todas as coisas tendemrsquordquo

204 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que eacute desejado por si ou seja querido por si mesmo e natildeo como meio para se alcanccedilar outra coisa por isso tem razatildeo de fim e natildeo de meio O bem deleitaacutevel eacute aquele no qual repousa a vontade vale dizer eacute o termo uacuteltimo do seu movimento156 Estes bens natildeo satildeo opostos ou excludentes mas complementares entretanto pode acontecer que acidentalmente um contrarie o outro Por exemplo um bem que seja apetecido uacutenica e exclusivamente em razatildeo de ser deleitaacutevel inobstante seja deleitaacutevel pode ser desonesto Desta sorte o sexo cujo fim eacute a procriaccedilatildeo quando praticado apenas por luxuacuteria torna-se um bem desonesto Assim acontece tambeacutem com um remeacutedio amargo que eacute um bem uacutetil porque desejado tatildeo somente como meio para se alcanccedilar a sauacutede se no entanto por absurdo fosse ingerido como um fim em si mesmo tornar-se-ia desonesto157 Atendo-nos agrave definiccedilatildeo de bem exposta fica evidente

156 Idem Suma Teoloacutegica I 5 6 C ldquoRespondeo dicendum quod haec divisio proprie videtur esse boni humani Si tamen altius et communius rationem boni consideremus invenitur haec divisio proprie competere bono secundum quod bonum est Nam bonum est aliquid inquantum est appetibile et terminus motus appetitus Cuius quidem motus terminatio considerari potest ex consideratione motus corporis naturalis Terminatur autem motus corporis naturalis simpliciter quidem ad ultimum secundum quid autem etiam ad medium per quod itur ad ultimum quod terminat motum et dicitur aliquis terminus motus inquantum aliquam partem motus terminat Id autem quod est ultimus terminus motus potest accipi dupliciter vel ipsa res in quam tenditur utpote locus vel forma vel quies in re illa Sic ergo in motu appetitus id quod est appetibile terminans motum appetitus secundum quid ut medium per quod tenditur in aliud vocatur utile Id autem quod appetitur ut ultimum terminans totaliter motum appetitus sicut quaedam res in quam per se appetitus tendit vocatur honestum quia honestum dicitur quod per se desideratur Id autem quod terminat motum appetitus ut quies in re desiderata est delectatiordquo ldquoEsta divisatildeo propriamente parece ser do bem humano No entanto se consideramos a razatildeo de bem de maneira mais profunda e geral vemos que esta divisatildeo cabe propriamente ao bem enquanto tal Com efeito uma coisa eacute boa enquanto atrativa e enquanto termo do movimento do apetite Ora o termo deste movimento pode ser comparado ao do corpo fiacutesico O movimento do corpo fiacutesico termina absolutamente em seu termo uacuteltimo mas sob certo aspecto ele termina no espaccedilo intermediaacuterio por onde se vai ateacute o termo uacuteltimo que termina o movimento Assim se chama termo de um movimento o que termina uma parte do movimento O termo uacuteltimo do movimento pode-se entender de duas maneiras ou a coisa agrave qual se tende como a forma o lugar ou o repouso naquela coisa Assim no movimento do apetite chama-se uacutetil aquilo que eacute atrativo e termina o movimento sob certo aspecto como um meio pelo qual se tende para outra coisa Aquilo que eacute atrativo como uacuteltimo e termina completamente o movimento do apetite chama-se honesto por exemplo alguma coisa para a qual o apetite tende por si Por isso chama-se honesto o que eacute desejaacutevel em si mesmo Enfim aquilo que termina o movimento do apetite como repouso na coisa desejada eacute o agradaacutevelrdquo 157 Idem Ibidem I 5 6 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod haec divisio non est per oppositas res sed per oppositas rationes Dicuntur tamen illa proprie delectabilia quae nullam habent aliam

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que a razatildeo de bem se realiza mais perfeitamente naquele que eacute desejado por si mesmo a saber o bem honesto Em segundo lugar no bem deleitaacutevel onde a vontade se aquieta Por uacuteltimo no bem uacutetil no qual a razatildeo de bem se realiza de forma menos proacutepria pois ele soacute eacute desejado enquanto meio que leva a um fim158

Ora Tomaacutes admite um bem honesto relativo agrave ordem natural a saber o homem Procuremos entender Diz o Aquinate ldquoNo homem se encontram de certo modo todas as coisasrdquo159 A partir disso prossegue dizendo que sendo o homem de certa forma um microcosmo tem-se que o modo como ele domina as coisas que estatildeo nele eacute o mesmo pelo qual ele domina todas as coisas Pois bem pela razatildeo o homem se equipara aos anjos pelas potecircncias sensitivas aos animais pelas naturais agraves plantas pelo corpo agraves coisas inanimadas De sorte que a razatildeo eacute o que haacute de mais nobre no homem e eacute pela razatildeo que o homem se ordena a dominar todas as coisas do macrocosmo e consequentemente a natildeo ser dominado por nenhuma delas Em passagem jaacute citada diz Tomaacutes ldquoA razatildeo no homem ocupa o lugar do que domina e natildeo do que estaacute submetido agrave dominaccedilatildeordquo160 A questatildeo que se segue eacute esta como o homem exerce este seu domiacutenio racional sobre todas as coisas Em relaccedilatildeo agraves potecircncias sensiacuteveis a razatildeo domina dando-lhes ordens Assim o homem domina os animais dando-lhes ordens em relaccedilatildeo agraves plantas e agraves coisas inanimadas como agraves

rationem appetibilitatis nisi delectationem cum aliquando sint et noxia et inhonesta Utilia vero dicuntur quae non habent in se unde desiderentur sed desiderantur solum ut sunt ducentia in alterum sicut sumptio medicinae amarae Honesta vero dicuntur quae in seipsis habent unde desiderenturrdquo ldquoDeve-se dizer que esta divisatildeo natildeo eacute por coisas opostas mas por razotildees opostas Entretanto chama-se apropriadamente agradaacutevel aquilo cuja uacutenica razatildeo de atraccedilatildeo eacute o deleite ainda que alguma vez seja natildeo soacute nocivo como tambeacutem desonesto Chama-se uacutetil o que em si mesmo nada tem por onde ser atrativo mas eacute desejado apenas enquanto leva a outras coisas como tomar um remeacutedio amargo Pelo contraacuterio chama-se honesto o que em si mesmo tem por onde ser desejadordquo 158 Idem Ibidem I 5 6 ad 3 ldquoPer prius enim praedicatur de honesto et secundario de delectabili tertio de utilirdquo ldquoEm primeiro lugar atribui-se ao honesto em segundo ao agradaacutevel e em terceiro ao uacutetilrdquo 159 Idem Ibidem I 96 2 C ldquoRespondeo dicendum quod in homine quodammodo sunt omnia []rdquo 160 Idem Ibidem ldquoRatio autem in homine habet locum dominantis et non subiecti dominiordquo

206 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino suas potecircncias naturais e ao seu proacuteprio corpo o homem domina utilizando-os Poreacutem quando domina outros homens o homem natildeo os domina dando-lhes ordens ou utilizando-os mas sim como ldquo[] algueacutem domina a outro como livre quando o dirige para o proacuteprio bem daquele que eacute dirigido ou para o bem comumrdquo161 Nisto pois reside a dignidade da pessoa humana por ser livre e capaz de ser senhor de si o homem natildeo pode ser tomado como meio ou como servo mas deve ser sempre respeitado como fim Retomemos toda a passagem

O motivo disso eacute que o livre difere do servo porque o livre eacute causa de si como se diz no iniacutecio da Metafiacutesica o servo poreacutem eacute ordenado para outro Entatildeo algueacutem domina outrem como servo quando refere aquele que eacute dominado agrave proacutepria utilidade a saber do que domina E porque o proacuteprio bem eacute apeteciacutevel a cada um consequumlentemente eacute contristador a algueacutem ceder a outrem o bem que deveria pertencer-lhe assim tal domiacutenio natildeo pode existir sem pena dos suacuteditos162

Natildeo se trata de negar as raiacutezes cristatildes de Tomaacutes mas de

perceber como ele se utiliza de algumas verdades reveladas tambeacutem para dar ldquocidadaniardquo agrave ordem natural Todo o argumento acima esconde um estreito laccedilo com a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde na qual o homem eacute o aacutepice da criaccedilatildeo Na verdade o Aquinate reconquista em termos filosoacuteficos algumas ldquoverdades cristatildesrdquo Diz ele ldquo[] na hierarquia dos seres os menos perfeitos satildeo para os mais perfeitos []rdquo163 Em seguida revela de onde retira este argumento ldquo[] como no processo da geraccedilatildeo a natureza vai do

161 Idem Ibidem I 96 4 C ldquoTunc vero dominatur aliquis alteri ut libero quando dirigit ipsum ad proprium bonum eius qui dirigitur vel ad bonum communerdquo 162 Idem Ibidem ldquoCuius ratio est quia servus in hoc differt a libero quod liber est causa sui ut dicitur in principio Metaphys servus autem ordinatur ad alium Tunc ergo aliquis dominatur alicui ut servo quando eum cui dominatur ad propriam utilitatem sui scilicet dominantis refert Et quia unicuique est appetibile proprium bonum et per consequens contristabile est unicuique quod illud bonum quod deberet esse suum cedat alteri tantum ideo tale dominium non potest esse sine poena subiectorumrdquo 163 Idem Ibidem II-II 64 1 C ldquoIn rerum autem ordine imperfectiora sunt propter perfectiora []rdquo

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imperfeito ao perfeitordquo164 Por fim chega a exemplificar ldquo[] na geraccedilatildeo do homem primeiro existe o ser vivo depois o animal e finalmente o homemrdquo165 Aqui natildeo eacute o lugar de discutirmos os limites dos conhecimentos bioloacutegicos de Tomaacutes O que nos importa reter eacute o seguinte na argumentaccedilatildeo de Tomaacutes a ordem das coisas nos ensina que ldquo[] os seres que soacute tecircm a vida os vegetais satildeo no conjunto destinados a servir aos animais todos e os animais ao homemrdquo 166 Ora eacute deste raciociacutenio que ele deduz que ldquo[] conserva-se a vida dos animais e das plantas natildeo por causa deles mas do homemrdquo167 ou seja o homem na ordem da geraccedilatildeo natural apresenta-se como um bem querido por si mesmo um fim A bem da verdade ao discriminar o que distingue o homem dos outros seres vivos Aquino aduz ainda o mesmo argumento no qual fundamenta o seu conceito de pessoa a saber a capacidade de agir por si mesmo ldquoDeve-se dizer que os animais e as plantas natildeo tecircm a vida racional que lhes facultaria agir por eles mesmosrdquo168 E eacute soacute apoacutes esta complexa argumentaccedilatildeo e como um corolaacuterio moral e natildeo como parte dela que o Aquinate cita uma passagem do livro do Gecircnesis

Pois se lecirc no livro do Gecircnesis ldquoEis que vos dou todas as ervas e todas as aacutervores para vos servirem de sustento para voacutes e os animais da terrardquo E ainda ldquoTudo o que se move e vive vos serviraacute de alimentordquo169

164 Idem Ibidem ldquo[] sicut etiam in generationis via natura ab imperfectis ad perfecta proceditrdquo 165 Idem Ibidem ldquoEt inde est quod sicut in generatione hominis prius est vivum deinde animal ultimo autem homo []rdquo 166 Idem Ibidem ldquo[] ita etiam ea quae tantum vivunt ut plantae sunt communiter propter omnia animalia et animalia sunt propter hominemrdquo 167 Idem Ibidem II-II 64 1 ad 1 ldquo[] conservatur vita animalium et plantarum non propter seipsam sed propter hominemrdquo 168 Idem Ibidem II-II 64 1 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod animalia bruta et plantae non habent vitam rationalem per quam a seipsis agantur []rdquo 169 Idem Ibidem II-II 64 1 C ldquo[] dicitur enim Gen I ecce dedi vobis omnem herbam et universa ligna ut sint vobis in escam et cunctis animantibus Et Gen IX dicitur omne quod movetur et vivit erit vobis in cibumrdquo

208 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Com efeito ao definir o homem como pessoa Tomaacutes o coloca como imagem de Deus Natildeo sem razatildeo eacute seguindo esta linha que ele pode dizer que a perfeiccedilatildeo da pessoa conveacutem antes de mais a Deus ldquoOra tudo o que diz perfeiccedilatildeo deve ser atribuiacutedo a Deus [] Conveacutem portanto atribuir a Deus este nome pessoardquo170 Em outros termos o que o Aquinate faz natildeo eacute senatildeo traduzir em termos filosoacuteficos uma parte da teologia do homem como imagem de Deus (Gn 1 26) a saber o fato de o homem ser pessoa Pelo contexto da uacuteltima citaccedilatildeo da Summa podemos observar ainda que a imagem de Deus no homem mostra-se precisamente pelo dinamismo do ato livre o qual por sua vez eacute derivado da sua natureza racional Numa passagem agrave qual voltaremos no proacuteximo capiacutetulo Tomaacutes resume exatamente nestes termos a sua eacutetica

Afirma Damasceno que o homem eacute criado agrave imagem de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-arbiacutetrio e revestido por si de poder Apoacutes ter discorrido sobre o exemplar a saber Deus e sobre as coisas que procederam do poder voluntaacuterio de Deus deve-se considerar agora a sua imagem a saber o homem enquanto ele eacute o princiacutepio de suas accedilotildees possuindo livre-arbiacutetrio e domiacutenio sobre suas accedilotildees171

Este passo daacute-nos a conhecer que na ordem natural

exatamente enquanto imagem de Deus ou em termos filosoacuteficos enquanto pessoa capaz de ser princiacutepio de suas accedilotildees o homem eacute sempre um fim para o qual se ordenam os meios a serem escolhidos pelo diaacutelogo entre razatildeo e vontade Em outras palavras

170 Idem Ibidem I-II 29 3 C ldquoUnde cum omne illud quod est perfectionis Deo sit attribuendum eo quod eius essentia continet in se omnem perfectionem conveniens est ut hoc nomen persona de Deo dicaturrdquo 171 Idem Ibidem I-II Proacutelogo [O segundo itaacutelico eacute nosso] ldquoQuia sicut Damascenus dicit homo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et arbitrio liberum et per se potestativum postquam praedictum est de exemplari scilicet de Deo et de his quae processerunt ex divina potestate secundum eius voluntatem restat ut consideremus de eius imagine idest de homine secundum quod et ipse est suorum operum principium quasi liberum arbitrium habens et suorum operum potestatemrdquo

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o homem natildeo pode ser tomado como bem uacutetil ou simplesmente deleitaacutevel Ele eacute inclusive em teologia a seu modo um bem honesto porquanto querido por si mesmo por Deus que a ele tudo submeteu Natildeo eacute de pouca monta que Tomaacutes num ceacutelebre artigo do tratado De Homine da Summa argumenta que tendo sido o homem ldquo[] estabelecido como um intermediaacuterio entre as criaturas corruptiacuteveis e incorruptiacuteveis pois sua alma eacute por natureza incorruptiacutevel e seu corpo eacute por natureza corruptiacutevelrdquo172 ele foi querido por si mesmo enquanto indiviacuteduo e natildeo somente em virtude da perpetuaccedilatildeo da espeacutecie

Pela alma incorruptiacutevel ao contraacuterio conveacutem que a multidatildeo dos indiviacuteduos seja visada por si pela natureza ou antes pelo autor da natureza que eacute o uacutenico criador das almas humanas173

Natildeo eacute o lugar para dissertarmos sobre o complexo tema da

imortalidade da alma nem eacute preciso insistir no paradigma ldquoteiacutestardquo O que Tomaacutes quer frisar pode ser assim resumido se o agir segue o ser em ato174 e o modo de agir o modo de ser175 uma vez que o homem eacute capaz de ser senhor de suas accedilotildees pois sua razatildeo torna-o capaz de pelo juiacutezo racional preferir um bem a outro176 segue-se

172 Idem Ibidem I 98 1 C ldquoEst ergo considerandum quod homo secundum suam naturam est constitutus quasi medium quoddam inter creaturas corruptibiles et incorruptibiles nam anima eius est naturaliter incorruptibilis corpus vero naturaliter corruptibilerdquo 173 Idem Ibidem ldquoEx parte vero animae quae incorruptibilis est competit ei quod multitudo individuorum sit per se intenta a natura vel potius a naturae auctore qui solus est humanarum animarum creatorrdquo 174 Idem Suma Contra os Gentios III LXIX 10 [2450] ldquo[] agit enim unumquodque secundum quod est acturdquo ldquo[] o agir segue o ser em ato []rdquo 175 Idem Suma Teoloacutegica I 89 1 C ldquo[] modus operandi uniuscuiusque rei sequitur modum essendi ipsiusrdquo ldquo[] o modo de agir de toda coisa eacute uma consequumlecircncia de seu modo de existirrdquo 176 Idem Ibidem I 83 1 C ldquoO homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute o efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetosrdquo Uma autorizada e atualizada concepccedilatildeo do homem como pessoa mdash em larga medida devedora da siacutentese tomasiana mdash como ser livre dotado de abertura e da capacidade de transcender-se encontra-se em Lima Vaz que adentra na temaacutetica a partir de uma revalorizaccedilatildeo da especificidade da dimensatildeo

210 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que ele eacute um bem em si mesmo a saber um bem honesto Mas eacute preciso ressaltar que exaltando a dignidade da pessoa Tomaacutes natildeo se afasta de uma eacutetica das virtudes nem da eydaimoniacutea porque o bem honesto reside justamente no ldquoflorescimento da pessoa humanardquo o qual consiste na accedilatildeo de acordo com a reta razatildeo ou seja no agir virtuosamente

O honesto tem o mesmo objeto que o uacutetil e deleitaacutevel mas se distingue deles pela razatildeo pois uma coisa eacute dita honesta quando possui certo brilho por estar de acordo com os princiacutepios da razatildeo Ora o que estaacute conforme a razatildeo eacute por natureza conveniente ao homem E todo ser naturalmente se compraz com o que lhe conveacutem Assim o honesto eacute naturalmente prazeroso para o homem como prova o Filoacutesofo a propoacutesito dos atos virtuosos No entanto nem tudo o que eacute deleitaacutevel eacute honesto porque pode um bem ser conveniente aos sentidos e natildeo agrave razatildeo Nesse caso poreacutem eacute deleitaacutevel contra a ordem da razatildeo a qual aperfeiccediloa a natureza humana177

Todavia quando pensamos que estaacute tudo dito a respeito da

racionalidade humana e da incomunicabilidade do ser pessoa verificamos que o Aquinate em outros textos descobre como que outra face desta mesma racionalidade a saber a dimensatildeo da comunicabilidade ldquoA pessoa [] eacute essencialmente comunicaccedilatildeordquo178 Podemos assim retornar ao tema da civitas mas desta feita ancorados na fundamentaccedilatildeo do caraacuteter intransferiacutevel do ato humano isto eacute do homem concebido como pessoa A

pneumaacutetica do homem VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Antropologia Filosoacutefica I 7 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 pp 181-264 177 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 145 3 C ldquoRespondeo dicendum quod honestum concurrit in idem subiectum cum utili et delectabili a quibus tamen differt ratione Dicitur enim aliquid honestum sicut dictum est inquantum habet quendam decorem ex ordinatione rationis Hoc autem quod est secundum rationem ordinatum est naturaliter conveniens homini Unumquodque autem naturaliter delectatur in suo convenienti Et ideo honestum est naturaliter homini delectabile sicut de operatione virtutis philosophus probat in I Ethic Non tamen omne delectabile est honestum quia potest etiam aliquid esse conveniens secundum sensum non secundum rationem sed hoc delectabile est praeter hominis rationem quae perficit naturam ipsiusrdquo 178 MONDIN Definiccedilatildeo Filosoacutefica da Pessoa Humana p 30

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mencionada comunicabilidade proacutepria da pessoa baseada no ato livre daacute-se tambeacutem pelo que podemos denominar ldquoamizade poliacuteticardquo De fato assim como a ldquopessoardquo eacute o que existe de mais perfeito no universo a comunidade das pessoas humanas a civitas eacute a comunidade perfeita porque por ela as potencialidades da pessoa se perfazem no dinamismo do ato livre 37 A AMIZADE

Do fato de o homem natildeo poder viver tampouco viver bem sozinho segue-se que ele precisa do seu semelhante para ser feliz e construir o seu mundo Nasce entatildeo a ldquoamizade poliacuteticardquo Acerca desta amizade quando fala da felicidade da civitas afirma o Frade Dominicano

Se falamos da felicidade da vida presente como diz o Filoacutesofo no livro IX da Eacutetica o homem feliz necessita de amigos [] Necessita ainda dos amigos para praticar o bem tanto nas obras da vida ativa como nas da vida contemplativa179

Mas soacute entenderemos como se daacute este viacutenculo entre

homens se compreendermos o proacuteprio conceito de amizade Para Tomaacutes o laccedilo criado pela amizade natildeo eacute o de qualquer amor pois deve implicar benevolecircncia E benevolecircncia significa querer o bem de quem se ama180 Natildeo podemos dizer-nos amigos do vinho ou do cavalo pois deles natildeo queremos senatildeo o bem que eles nos podem dar Natildeo eacute assim na amizade Nela pensamos antes no bem que

179 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 4 8 C ldquoRespondeo dicendum quod si loquamur de felicitate praesentis vitae sicut philosophus dicit in IX Ethic felix indiget amicis non quidem propter utilitatem cum sit sibi sufficiens [] Indiget enim homo ad bene operandum auxilio amicorum tam in operibus vitae activae quam in operibus vitae contemplativaerdquo 180 Idem Ibidem II-II 23 1 C ldquo[] non quilibet amor habet rationem amicitiae sed amor qui est cum benevolentia quando scilicet sic amamus aliquem ut ei bonum velimusrdquo ldquo[] natildeo eacute qualquer amor que realiza a noccedilatildeo de amizade mas somente o amor de benevolecircncia pelo qual queremos bem a quem amamosrdquo

212 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino podemos dar ao outro do que naquele que podemos receber dele181 Por isso o indicativo da amizade eacute a reciprocidade Sem reciprocidade de amor natildeo haacute amizade verdadeira Eacute preciso pois que o amigo tambeacutem queira o nosso bem Tomaacutes chega a dizer que ldquo[] o homem considera o amigo como um outro eurdquo182 Em virtude disso a amizade consiste numa muacutetua benevolecircncia em torno da qual se funda uma comunhatildeo que se pauta em um querer o bem do outro183 Na concepccedilatildeo de Tomaacutes haacute mdash como jaacute dissemos mdash uma ldquoamizade poliacuteticardquo agrave qual todo homem se inclina naturalmente E eacute ela que condiciona a ldquovida eacuteticardquo

Aleacutem disso sendo o homem naturalmente um animal social necessita do auxiacutelio dos outros homens para alcanccedilar o seu fim Isto com efeito realiza-se com muita conveniecircncia se existe o amor muacutetuo entre os homens184

Acerca desta ldquoamizade poliacuteticardquo mdash agrave qual todos os homens

tendem por natureza mdash gostariacuteamos de citar outro texto significativo

[] Eacute natural aos homens amarem-se mutuamente Vecirc-se o sinal disto no instinto natural segundo o qual um homem auxilia outro homem qualquer nas necessidades como por exemplo

181 Idem Ibidem ldquoSi autem rebus amatis non bonum velimus sed ipsum eorum bonum velimus nobis sicut dicimur amare vinum aut equum aut aliquid huiusmodi non est amor amicitiae sed cuiusdam concupiscentiae ridiculum enim est dicere quod aliquis habeat amicitiam ad vinum vel ad equumrdquo ldquoSe poreacutem natildeo queremos o bem daquilo que amamos e antes queremos para noacutes o bem que haacute neles quando por exemplo dizemos amar o vinho ou o cavalo etc natildeo haacute amor de amizade mas um amor de concupiscecircnciardquo 182 Idem Suma Contra os Gentios IV XXI 5 [3579] ldquo[] cum homo amicum habeat ut se alterum []rdquo 183 Idem Suma Teoloacutegica II-II 23 1 C ldquoSed nec benevolentia sufficit ad rationem amicitiae sed requiritur quaedam mutua amatio quia amicus est amico amicus Talis autem mutua benevolentia fundatur super aliqua communicationerdquo ldquo[] eacute preciso que haja reciprocidade de amor pois um amigo eacute amigo de seu amigo Ora essa muacutetua benevolecircncia eacute fundada em alguma comunhatildeordquo 184 Idem Suma Contra os Gentios III CXVII 3 [2897] ldquoCum homo sit naturaliter animal sociale indiget ab aliis hominibus adiuvari ad consequendum proprium finem Quod convenientissime fit dilectione mutua inter homines existenterdquo

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afastando-o do caminho errado levantando-o na queda etc como se todo homem fosse ao homem naturalmente familiar e amigo185

Mas a amizade extravasa os limites da civitas e ganha uma

feiccedilatildeo pessoal Passamos a arrolar agora algumas caracteriacutesticas peculiares da amizade segundo Tomaacutes Quando somos amigos de algueacutem afirma o Aquinate amamos tambeacutem as pessoas e as coisas que lhes satildeo caras Se este amor eacute muito intenso amamos mesmo aqueles que nos ofendem se ao menos eles satildeo estimados pelos nossos amigos186 Aleacutem disso poder gozar da presenccedila do amigo dos seus gestos e palavras principalmente nas agruras e infortuacutenios que a vida nos reserva eacute-nos um grande consolo187 Ademais eacute mesmo natural da amizade natildeo soacute que um amigo revele ao outro os seus segredos188 senatildeo que tambeacutem o socorra em suas necessidades189 partilhando com alegria os seus bens pois na

185 Idem Idem III CXVII 5 [2899] ldquoEst autem omnibus hominibus naturale ut se invicem diligant Cuius signum est quod quodam naturali instinctu homo cuilibet homini etiam ignoto subvenit in necessitate puta revocando ab errore viae erigendo a casu et aliis huiusmodi ac si omnis homo omni homini esset naturaliter familiaris et amicusrdquo 186 Idem Suma Teoloacutegica II-II 23 1 ad 2 ldquoEt tanta potest esse dilectio amici quod propter amicum amantur hi qui ad ipsum pertinent etiam si nos offendant vel odiantrdquo ldquoE a amizade que temos por um amigo pode ser tatildeo grande que por causa dela sejam amadas as pessoas que lhe satildeo proacuteximas mesmo que elas nos ofendam ou nos odeiemrdquo 187 Idem Suma Contra os Gentios IV XXII 2 [3586] ldquoEst autem et amicitiae proprium quod aliquis in praesentia amici delectetur et in eius verbis et factis gaudeat et in eo consolationem contra omnes anxietates inveniat unde in tristitiis maxime ad amicos consolationis causa confugimusrdquo ldquoEacute tambeacutem proacuteprio da amizade deleitar-se com a presenccedila do amigo alegrar-se com as suas palavras e atos e nele encontrar o consolo de todas as contrariedades Por isso nas tristezas nos refugiamos principalmente nos amigos devido ao seu consolordquo 188 Idem Ibidem IV XXI 4 [3578] ldquoEst autem hoc amicitiae proprium quod amico aliquis sua secreta revelet Cum enim amicitia coniungat affectus et duorum faciat quasi cor unum []rdquo ldquoEacute tambeacutem proacuteprio da amizade que o amigo revele ao amigo os seus segredos Sendo que a amizade une as afeiccedilotildees e faz de dois um soacute coraccedilatildeo []rdquo 189 Idem Ibidem IV XXII 3 [3587] ldquoSimiliter autem et amicitiae proprium est consentire amico in his quae vult []rdquo ldquoPois bem como tambeacutem eacute proacuteprio da amizade consentir naquilo que o amigo quer []rdquo

214 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino amizade cada qual considera outrem como outro eu190 Na Summa Tomaacutes conclui

[] Enquanto pelos movimentos externos nos ordenamos aos outros a moderaccedilatildeo deles eacute operada pela amizade ou afabilidade que demonstra por palavras e por obras nossa solidariedade com as alegrias e as tristezas dos que vivem conosco191

Observemos que mesmo quando ganha este caraacuteter

privado a amizade tanto na poacutelis de Aristoacuteteles quanto na civitas de Tomaacutes aperfeiccediloa e intensifica a justiccedila mdash virtude social por excelecircncia A amizade eacute pois um bem indispensaacutevel agrave vida em sociedade Ela eacute remeacutedio para muitos viacutecios desagregadores tais como a difamaccedilatildeo que consiste em criar intrigas em segredo com vista a destruir a reputaccedilatildeo alheia e a adulaccedilatildeo que se excede nas adjetivaccedilotildees192 Ademais vendo no amigo outro eu eacute refreada a soberba que consiste num olhar depreciativo que soacute repara os defeitos do outro 193 Outrossim a amizade instaura uma cooperaccedilatildeo que veda ao homem tomar como conquista exclusiva

190 Idem Ibidem IV XXI 5 [3579] ldquoNon solum autem est proprium amicitiae quod amico aliquis revelet sua secreta propter unitatem affectus sed eadem unitas requirit quod etiam ea quae habet amico communicet quia cum homo amicum habeat ut se alterum necesse est quod ei subveniat sicut et sibi sua ei communicans[]rdquo ldquoNatildeo obstante natildeo eacute somente proacuteprio da amizade revelar ao amigo os segredos devido agrave uniatildeo afetiva como tambeacutem ela exige ainda que se partilhe com o amigo aquilo que se possui como o homem considera o amigo como um outro eu e deve auxiliaacute-lo como se fosse a si mesmo dando-lhe o que pertence a si []rdquo 191 Idem Ibidem II-II 168 1 ad 3 ldquoInquantum enim per exteriores motus ordinamur ad alios pertinet exteriorum motuum moderatio ad amicitiam vel affabilitatem quae attenditur circa delectationes et tristitias quae sunt in verbis et factis in ordine ad alios quibus homo convivitrdquo 192 Idem Ibidem II-II 115 1 ad 3 C ldquoQuae ei contrariatur quantum ad ea quae dicuntur non autem directe quantum ad finem quia adulator quaerit delectationem eius cui adulatur detractor autem non quaerit eius contristationem cum aliquando occulte detrahat sed magis quaerit eius infamiamrdquo ldquoHaacute contrariedade entre elas naquilo que dizem mas natildeo diretamente no que concerne ao fim porque o adulador procura o prazer daquele que estaacute sendo adulado enquanto o difamador natildeo procura tanto a tristeza da sua viacutetima pois muitas vezes ele age em segredo e busca principalmente atingir sua reputaccedilatildeordquo 193 Idem Ibidem II-II 162 3 ad 2 ldquoEt ideo quaecumque ad hoc conferant quod aliquis existimet se supra id quod est inducunt hominem ad superbiam Quorum unum est quod aliquis consideret defectus aliorum []rdquo ldquoE por isso todas as coisas que levam algueacutem agrave superestima de si mesmo levam-no agrave soberba Uma delas eacute ficar reparando os defeitos dos outros []rdquo

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sua o que recebeu como benefiacutecio corporativo194 Ela tolhe o ldquoindividualismordquo incitado tambeacutem pela soberba que consiste em desprezar os outros a fim de preocupar-se apenas com a proacutepria excelecircncia195 Natildeo somente mas a amizade inaugura a proacutepria dimensatildeo da gratuidade que se daacute quando ultrapassamos o acircmbito do ldquoestritamente justordquo isto eacute quando fazemos aleacutem do que nos eacute devido196 Instala nas relaccedilotildees humanas aleacutem disso a gratidatildeo e a gratidatildeo os viacutenculos duradouros197 A troca de benefiacutecios enseja uma muacutetua estima ldquoDaiacute a frase de Secircneca lsquoQueres pagar um benefiacutecio Recebe-o de bom gradorsquordquo198 Por fim a amizade daacute

194 Idem Ibidem II-II 162 4 C ldquoEt ideo cum aliquis aestimat bonum quod habet ab alio ac si haberet a seipso fertur per consequens appetitus eius in propriam excellentiam supra suum modumrdquo ldquoPor essa razatildeo quando algueacutem considera um bem recebido de outro como conquista sua seu apetite eacute levado a buscar a proacutepria excelecircncia aleacutem do que lhe eacute devidordquo 195 Idem Ibidem II-II 162 4 C ldquoUnde et ex hoc etiam fertur inordinate appetitus in propriam excellentiam Et secundum hoc sumitur quarta species superbiae quae est cum aliquis despectis ceteris singulariter vult viderirdquo ldquoDonde resulta tambeacutem que seu apetite eacute levado a buscar de forma desordenada a proacutepria excelecircncia dando lugar entatildeo agrave quarta espeacutecie de soberba que eacute desprezando os outros querer ser visto como o uacutenicordquo 196 Idem Ibidem II-II 106 3 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod sicut Seneca dicit in III de Benefic quandiu servus praestat quod a servo exigi solet ministerium est ubi plus quam a servo necesse beneficium est Ubi enim in affectum amici transit incipit vocari beneficiumrdquo ldquoDeve-se dizer como Secircneca lsquoEnquanto o servo se limita a fazer aquilo que se costuma exigir de um servo ele estaacute apenas cumprindo um ofiacutecio quando o que ele faz eacute mais do que se pode exigir trata-se de um benefiacutecio Porque quando faz surgir uma afeiccedilatildeo de amizade comeccedila entatildeo a se chamar benefiacuteciorsquordquo 197 Tomaacutes citando Secircneca fala que a gratidatildeo nos move a estreitar laccedilos Idem Ibidem II-II 106 3 ad 5 ldquoEt Seneca dicit in VI de Benefic multa sunt per quae quidquid debemus reddere et felicibus possumus fidele consilium assidua conversatio sermo communis et sine adulatione iucundusrdquo ldquoE Secircneca afirma lsquoHaacute vaacuterios meios de retribuir o que devemos mesmo agraves pessoas felizes conselho leal frequentaccedilatildeo assiacutedua conversa simples alegre e sem bajulaccedilatildeorsquordquo Noutro lugar tambeacutem citanto Secircneca o Aquinate afirma que a verdadeira gratidatildeo rompe com as formalidades da relaccedilatildeo credordevedor Idem Ibidem II-II 106 4 C ldquoUt enim Seneca dicit IV de Benefic qui nimis cito cupit solvere invitus debet et qui invitus debet ingratus estrdquo ldquoComo diz Secircneca lsquoquem demonstra pressa excessiva em pagar o que deve deve contra a vontade e quem se sente contrariado com uma diacutevida eacute um ingratorsquordquo A gratidatildeo diz Aquino sempre na esteira de Secircneca leva-nos a fazer o melhor juiacutezo possiacutevel de quem nos deve Idem Ibidem II-II 107 4 C ldquoPrimo namque debet non esse facilis ad ingratitudinem iudicandam quia frequenter aliquis ut Seneca dicit qui non reddidit gratus est quia forte non occurrit ei facultas aut debita opportunitas reddendirdquo ldquoPrimeiramente natildeo prejulgar facilmente a ingratidatildeo porque como diz Secircneca lsquomuitas vezes aquele que natildeo retribuiu eacute no entanto gratorsquo porque talvez natildeo tenha tido meios ou oportunidade de o fazerrdquo 198 Idem Ibidem II-II 106 4 C ldquoUnde Seneca dicit in II de Benefic vis reddere beneficium Benigne acciperdquo

216 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino vazatildeo agrave praacutetica da solidariedade assim como ao exerciacutecio de outras virtudes como a da fortaleza199 Por exemplo a amizade exercita a paciecircncia e a perseveranccedila na praacutetica do bem pois nos leva a natildeo pagar exasperadamente ingratidatildeo com ingratidatildeo bem como a nos afastar daqueles que rejeitam com persistecircncia a nossa proximidade200 Em uma palavra a amizade humaniza as relaccedilotildees entre os homens

Donde Santo Isidoro afirmar ldquoAlgueacutem eacute considerado humano porque tem para com os outros amor e afeto de consideraccedilatildeo Por isso humanidade eacute proteger-nos mutuamenterdquo mdash Por isso a amizade eacute considerada enquanto ordena o conviacutevio social como diz Aristoacuteteles201

De sorte que natildeo haacute felicidade possiacutevel nem ocasiotildees

propiacutecias agraves accedilotildees virtuosas senatildeo onde prevaleccedila a leveza de relaccedilotildees amistosas e sinceras onde o entrelace natildeo nasccedila de amenidades pueris mas de um ver no outro um fim e natildeo um meio um bem honesto e natildeo uacutetil ou oportuno202 Em passagem jaacute citada que retomamos afirma o Aquinate

199 Idem Ibidem II-II 123 5 C ldquoSed et circa pericula cuiuscumque alterius mortis fortis bene se habet praesertim quia et cuiuslibet mortis homo potest periculum subire propter virtutem puta cum aliquis non refugit amico infirmanti obsequi propter timorem mortiferae infectionis []rdquo ldquoMas o homem forte se comporta bem diante dos perigos mortais de qualquer espeacutecie principalmente porque a virtude pode expor a muitos perigos por exemplo quando algueacutem apesar do medo de contaacutegio mortal natildeo se recusa a prestar assistecircncia a um amigo doente []rdquo 200 Idem Ibidem II-II 107 4 C ldquoSecundo debet tendere ad hoc quod de ingrato gratum faciat quod si non potest primo beneficio facere forte faciet secundo Si vero ex beneficiis multiplicatis ingratitudinem augeat et peior fiat debet a beneficiorum exhibitione cessarerdquo ldquoEm segundo lugar o benfeitor deve se esforccedilar para transformar o ingrato em um agradecido se natildeo conseguir isto com um primeiro benefiacutecio talvez o consiga com um segundo Se no entando a multiplicaccedilatildeo dos benefiacutecios conseguir apenas aumentar e agravar a ingratidatildeo seraacute preciso cessar a concessatildeo de favoresrdquo 201 Idem Ibidem II-II 80 1 ad 2 ldquoDicit enim Isidorus in libro Etymol quod humanus dicitur aliquis quia habeat circa hominem amorem et miserationis affectum unde humanitas dicta est qua nos invicem tuemur Et secundum hoc amicitia sumitur prout ordinat exteriorem convictum sicut de ea philosophus tractat in IV Ethicrdquo 202 A propoacutesito Tomaacutes novamente recorrendo a Secircneca afirma que a primeira coisa que devemos nos perguntar quando recebemos um benefiacutecio eacute de quem o recebemos Idem Ibidem II-II 106 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod sicut Seneca dicit in VI de Benefic multum interest utrum aliquis

Saacutevio Laet de Barros Campos | 217

Se falamos da felicidade da vida presente como diz o Filoacutesofo no livro IX da Eacutetica o homem feliz necessita de amigos natildeo para sua utilidade pois ele se basta a si nem para seu prazer porque possui em si o perfeito prazer na accedilatildeo da virtude mas para bem agir a saber para lhes fazer o bem e para alegrar-se ao vecirc-los fazendo o bem e tambeacutem para ser por eles auxiliado na praacutetica do bem203

Aleacutem disso se Aristoacuteteles deixa em aberto se a amizade eacute

ou natildeo uma virtude para o Aquinate natildeo resta duacutevida de que ela eacute uma virtude eacutetica204 Uma vez que a justiccedila trata da nossa lida com os outros e que por natureza somos chamados a viver em comunidade saber interagir com o outro de forma afaacutevel eacute uma virtude visto que eacute insuportaacutevel pondera Tomaacutes manter um trato razoaacutevel com pessoas habitualmente desagradaacuteveis por exemplo as afeitas a contendas205 Eacute pois uma obrigaccedilatildeo natural continua

beneficium nobis det sua causa an sua et nostra Ille qui totus ad se spectat et nobis prodest quia aliter sibi prodesse non potest eo mihi loco habendus videtur quo qui pecori suo pabulum prospicit Si me in consortium admisit si duos cogitavit ingratus sum et iniustus nisi gaudeo hoc illi profuisse quod proderat mihi Summae malignitatis est non vocare beneficium nisi quod dantem aliquo incommodo afficitrdquo ldquoDeve-se dizer como Secircneca diz lsquoPara mim eacute muito importante saber se quem faz o benefiacutecio tem em vista apenas seu interesse ou o dele e o meu Aquele que pensa unicamente em si e que soacute nos oferece proveito em alguma coisa porque esta eacute a uacutenica maneira de ele proacuteprio auferir tambeacutem algum proveito me parece comparaacutevel a algueacutem que fornece alimento para seus animais Se ele me aceita como soacutecio se pensa em noacutes dois eu serei ingrato e injusto se natildeo me regozijar de vecirc-lo tirar proveito daquilo que a mim tambeacutem foi vantagem Porque eacute na realidade uma grande maldade qualificar como benefiacutecio somente aquilo que provoca algum dano para o doadorrdquo 203 Idem Ibidem I-II 4 8 C ldquoRespondeo dicendum quod si loquamur de felicitate praesentis vitae sicut philosophus dicit in IX Ethic felix indiget amicis non quidem propter utilitatem cum sit sibi sufficiens nec propter delectationem quia habet in seipso delectationem perfectam in operatione virtutis sed propter bonam operationem ut scilicet eis benefaciat et ut eos inspiciens benefacere delectetur et ut etiam ab eis in benefaciendo adiuveturrdquo 204 Idem Suma Teoloacutegica II-II 114 1 C ldquoEt ideo oportet esse quandam specialem virtutem quae hanc convenientiam ordinis observet Et haec vocatur amicitia sive affabilitasrdquo ldquoPor isso eacute necessaacuteria uma virtude especial que mantenha a harmonia desta ordem E esta virtude se chama amizade ou afabilidaderdquo 205 De fato Tomaacutes chega a citar o exemplo dado por Aristoacuteteles dos impugnadores a saber daqueles que passam o tempo todo contestando e que natildeo sabem se contentar com nada Idem Ibidem II-II 116 1 C ldquoEt sic fit litigium quod praedictae amicitiae vel affabilitati opponitur ad quam pertinet delectabiliter aliis convivere Unde philosophus dicit in IV Ethic quod illi qui ad omnia contrariantur causa eius quod est contristare neque quodcumque curantes discoli et litigiosi

218 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino o Aquinate que o homem aprenda a se entreter com os outros homens com uma habitual afabilidade Por isso para Tomaacutes a amizade eacute uma virtude social anexa agrave virtude da justiccedila

Ora assim como o homem natildeo poderia viver numa sociedade sem verdade assim tambeacutem natildeo poderia viver numa sociedade sem prazer Aristoacuteteles diz ldquoningueacutem consegue passar um dia inteiro com uma pessoa triste e sem atrativosrdquo Por isso o homem eacute obrigado por uma espeacutecie de diacutevida natural de honestidade a tornar agradaacuteveis as relaccedilotildees com os outros []206

Queremos passar a abordar a eacutetica enquanto se apresenta

como uma ldquociecircnciardquo para Tomaacutes 38 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA EacuteTICA 381 PRUDEcircNCIA E FILOSOFIA PRAacuteTICA

Tambeacutem em Tomaacutes existe uma distinccedilatildeo entre prudecircncia e filosofia praacutetica Vejamos como ele chega ao mesmo caminho jaacute percorrido por Aristoacuteteles pois soacute assim compreenderemos a racionalidade que a eacutetica tomasiana comporta O Aquinate tal como Aristoacuteteles distingue as virtudes intelectuais das morais De fato os haacutebitos da razatildeo teoacuterica satildeo aqueles que aperfeiccediloam o nosso intelecto na consecuccedilatildeo da verdade207 A verdade de dois

vocanturrdquo ldquoE assim se origina a contestaccedilatildeo que se opotildee agravequela amizade ou afabilidade que permite conviver agradavelmente com os outros Por isso Aristoacuteteles diz lsquoAqueles que contestam tudo e todo mundo com a simples finalidade de contrariar os outros sem levar em consideraccedilatildeo nada e ningueacutem satildeo chamados de rudes e contestadoresrsquordquo 206 Idem Ibidem II-II 114 2 ad 1 ldquoSicut autem non posset vivere homo in societate sine veritate ita nec sine delectatione quia sicut philosophus dicit in VIII Ethic nullus potest per diem morari cum tristi neque cum non delectabili Et ideo homo tenetur ex quodam debito naturali honestatis ut homo aliis delectabiliter convivat nisi propter aliquam causam necesse sit aliquando alios utiliter contristarerdquo 207 Idem Ibidem I-II 57 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut iam dictum est virtus intellectualis speculativa est per quam intellectus speculativus perficitur ad considerandum verum hoc enim est bonum opus eiusrdquo ldquo[] eacute pela virtude intelectual especulativa que o intelecto especulativo se aperfeiccediloa na consideraccedilatildeo da verdade jaacute que esta eacute a sua accedilatildeo boardquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 219

modos pode ser conhecida ou por si mesma ou por inquiriccedilatildeo da razatildeo 208 Quando conhecemos a verdade por si mesma conhecemo-la enquanto princiacutepio209 O habitus que aperfeiccediloa o intelecto na consideraccedilatildeo da verdade imediatamente evidente eacute chamado intelecto210 Contudo mdash continua o Aquinate mdash existem aquelas verdades que satildeo percebidas pelo intelecto somente mediante outras verdades 211 Trata-se pois daquele grupo de verdades que passa a gozar de evidecircncia apenas atraveacutes do raciociacutenio Ora entre estas verdades haacute ainda aquelas que satildeo as uacuteltimas no seu gecircnero de conhecimento e aquelas que satildeo as uacuteltimas em relaccedilatildeo a todo o conhecimento humano212 O habitus que aperfeiccediloa o intelecto na persecuccedilatildeo das verdades uacuteltimas de um determinado gecircnero chama-se ciecircncia 213 De resto jaacute que existem vaacuterios gecircneros de coisas cognosciacuteveis haveraacute tambeacutem diversos haacutebitos de ciecircncia um para cada gecircnero214 No entanto como assinalamos existem aquelas verdades que satildeo as uacuteltimas em relaccedilatildeo a todo o conhecimento humano Mas o que eacute uacuteltimo

208 Idem Ibidem ldquoVerum autem est dupliciter considerabile uno modo sicut per se notum alio modo sicut per aliud notumrdquo ldquoOra a verdade pode ser considerada de dois modos ou por si mesma ou por meio de outra verdaderdquo 209 Idem Ibidem ldquoQuod autem est per se notum se habet ut principium et percipitur statim ab intellecturdquo ldquoPor si mesma comporta-se como um princiacutepio e eacute imediatamente percebida pelo intelectordquo 210 Idem Ibidem ldquoEt ideo habitus perficiens intellectum ad huiusmodi veri considerationem vocatur intellectus qui est habitus principiorumrdquo ldquoE por isso o haacutebito que aperfeiccediloa o intelecto para essa consideraccedilatildeo da verdade chama-se intelecto que eacute o haacutebito dos princiacutepiosrdquo 211 Idem Ibidem ldquoVerum autem quod est per aliud notum non statim percipitur ab intellectu sed per inquisitionem rationis et se habet in ratione terminirdquo ldquoQuanto agrave verdade conhecida mediante outra ela natildeo eacute apreendida imediatamente pelo intelecto mas inquirida pela razatildeo e comporta-se como um termordquo 212 Idem Ibidem ldquoQuod quidem potest esse dupliciter uno modo ut sit ultimum in aliquo genere alio modo ut sit ultimum respectu totius cognitionis humanaerdquo ldquoE isso pode ser de dois modos ou eacute o uacuteltimo num determinado gecircnero ou eacute o uacuteltimo em relaccedilatildeo com todo conhecimento humanordquo 213 Idem Ibidem ldquoAd id vero quod est ultimum in hoc vel in illo genere cognoscibilium perficit intellectum scientiardquo ldquoPor fim quanto agravequilo que eacute uacuteltimo neste ou naquele gecircnero das coisas conheciacuteveis eacute a ciecircncia que aperfeiccediloa o intelectordquo 214 Idem Ibidem ldquoEt ideo secundum diversa genera scibilium sunt diversi habitus scientiarum []rdquo ldquoPor isso haveraacute tantos diferentes haacutebitos das ciecircncias quanto satildeo os diferentes gecircneros de coisas conheciacuteveis []rdquo

220 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino segundo o conhecimento do homem eacute primeiro na ordem da natureza215 Trata-se deveras daquele conhecimento que temos das causas primeiras Ora o conhecimento delas aperfeiccediloa inclusive a ciecircncia Assim sendo somente remontando agraves causas primeiras pode-se chegar a um juiacutezo mais perfeito e universal216 Com efeito o habitus que se aplica ao conhecimento destas causas eacute o da sabedoria217

Por fim haacute a prudecircncia que aperfeiccediloa o uso praacutetico do conhecimento jaacute adquirido e a arte que ldquo[] eacute lsquoa razatildeo reta das coisas factiacuteveisrsquordquo218 A prudecircncia que eacute a que mais nos interessa aqui eacute a virtude que conduz agrave perfeiccedilatildeo inclusive concretizando na accedilatildeo a deliberaccedilatildeo e a escolha dos meios conducentes ao fim Logo a prudecircncia tambeacutem eacute uma virtude intelectual219 Observemos ainda que para Tomaacutes como para Aristoacuteteles a prudecircncia trata dos meios concernentes a um fim jaacute estabelecido Por esta razatildeo uma eacute a filosofia praacutetica que eacute o conhecimento por racioniacutecio dos fins outra eacute a prudecircncia que versa sobre a aplicabilidade dos meios proporcionados a estes fins Natildeo se trata de negar a racionalidade da prudecircncia mas de atentar para o fato de que a

215 Idem Ibidem ldquo[] ideo id quod est ultimum respectu totius cognitionis humanae est id quod est primum et maxime cognoscibile secundum naturamrdquo ldquo[] o que eacute uacuteltimo relativamente a todo conhecimento humano eacute o que por natureza eacute o primeiro e o mais cognosciacutevelrdquo 216 Idem Ibidem ldquoUnde convenienter iudicat et ordinat de omnibus quia iudicium perfectum et universale haberi non potest nisi per resolutionem ad primas causasrdquo ldquoPortanto convenientemente analisa e organiza todas as coisas pois eacute remontando agraves causas primeiras que se pode ter um juiacutezo perfeito e universalrdquo 217 Idem Ibidem ldquoEt circa huiusmodi est sapientia quae considerat altissimas causas []rdquo ldquoOra sobre isso eacute que se aplica a sabedoria que considera as causas altiacutessimas []rdquo 218 Idem Ibidem I-II 57 4 C ldquo[] quia ars est recta ratio factibilium []rdquo 219 Idem Ibidem I-II 57 5 C ldquoAd id autem quod convenienter in finem debitum ordinatur oportet quod homo directe disponatur per habitum rationis quia consiliari et eligere quae sunt eorum quae sunt ad finem sunt actus rationis Et ideo necesse est in ratione esse aliquam virtutem intellectualem per quam perficiatur ratio ad hoc quod convenienter se habeat ad ea quae sunt ad finem Et haec virtus est prudentia Unde prudentia est virtus necessaria ad bene vivendumrdquo ldquoQuanto aos meios adequados a esse fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas com os meios satildeo atos da razatildeo Eacute necessaacuterio pois haver na razatildeo alguma virtude intelectual que a aperfeiccediloe para ela proceder com acerto em relaccedilatildeo com os meios Essa virtude eacute a prudecircncia virtude portanto necessaacuteria para se viver bemrdquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 221

racionalidade da filosofia praacutetica eacute distinta Enquanto o filoacutesofo praacutetico julga as coisas por um conhecimento silogiacutestico conhecendo por exemplo o que eacute ser casto e por que se deve ser casto por um raciociacutenio que parte das causas primeiras da ordem praacutetica o prudente conhece o que eacute a castidade como e por que ser casto sendo casto por uma espeacutecie de conaturalidade proacutepria do haacutebito adquirido Assim pode acontecer que quem se ocupa de filosofia praacutetica conheccedila minuciosamente o que eacute ser prudente mas natildeo o seja e o prudente que talvez natildeo tenha esse julgamento meticuloso saiba o que eacute a prudecircncia sendo prudente

Pode-se julgar por inclinaccedilatildeo como quem possui um habitus virtuoso julga com retidatildeo o que deve ser feito na linha deste habitus estando jaacute inclinado neste sentido Eis por que se ensina no livro X da Eacutetica que o homem virtuoso eacute a medida e a regra dos atos humanos Mas existe outra maneira de julgar a saber por conhecimento como o instruiacutedo em ciecircncia moral pode julgar os atos de uma virtude ainda que natildeo a possua220

Esta retidatildeo de julgamento pode existir de duas maneiras ou por um uso perfeito da razatildeo ou por uma certa conaturalidade com as coisas sobre as quais se deve julgar Assim no que diz respeito agrave castidade aquele que aprendeu a ciecircncia moral julga bem em consequumlecircncia de uma inquiriccedilatildeo racional enquanto aquele que tem o haacutebito de castidade julga bem por uma certa conaturalidade com ela221

220 Idem Ibidem I 1 6 ad 3 ldquoContingit enim aliquem iudicare uno modo per modum inclinationis sicut qui habet habitum virtutis recte iudicat de his quae sunt secundum virtutem agenda inquantum ad illa inclinatur unde et in X Ethic dicitur quod virtuosus est mensura et regula actuum humanorum Alio modo per modum cognitionis sicut aliquis instructus in scientia morali posset iudicare de actibus virtutis etiam si virtutem non haberetrdquo 221 Idem Ibidem II-II 45 2 C ldquoRectitudo autem iudicii potest contingere dupliciter uno modo secundum perfectum usum rationis alio modo propter connaturalitatem quandam ad ea de quibus iam est iudicandum Sicut de his quae ad castitatem pertinent per rationis inquisitionem recte iudicat ille qui didicit scientiam moralem sed per quandam connaturalitatem ad ipsa recte iudicat de eis ille qui habet habitum castitatisrdquo

222 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Talvez falte dizer que Tomaacutes pontua que o fato de a eacutetica ser uma ldquociecircncia praacuteticardquo natildeo significa que a melhor forma de ser eacutetico eacute possuindo esta ldquociecircncia moralrdquo Com efeito a ldquociecircncia moralrdquo inobstante tenha por objeto a praacutetica eacute ela proacutepria teoacuterica e natildeo praacutetica Por isso para o Aquinate o melhor modo de se aprender a ser prudente eacute praticando os atos da prudecircncia Daiacute ele dizer com Aristoacuteteles ldquoPor isso diz o Filoacutesofo lsquoPara a praacutetica da virtude nada ou pouco adianta o saberrsquordquo222

Chegamos assim a uma perfeita correspondecircncia entre Aristoacuteteles e Tomaacutes acerca dos haacutebitos De fato o intelecto habitus dos princiacutepios corresponde ao noỹs a ciecircncia como conhecimento via raciociacutenio das causas primeiras de cada gecircnero agrave epistḗmē a sabedoria conhecimento das causas primeiras agrave sofiacutea a arte reta razatildeo de fazer algumas obras 223 agrave teacutekhnē e a prudecircncia conhecimento e aplicaccedilatildeo dos meios da accedilatildeo agrave froacutenēsis O que defendemos eacute que Aquino prevecirc a existecircncia de uma ciecircncia eacutetica de cunho filosoacutefico que tem seu alicerce na sua concepccedilatildeo do homem como bem honesto como fim Se o Aquinate desenvolve em todos os seus pormenores o que ele prevecirc natildeo eacute o mais importante ao menos se levarmos em conta que estamos lidando com um teoacutelogo que pretende fazer uma teologia moral Como observa Vignaux ao tratar do tema ldquoTenhamos Santo Tomaacutes por um pensador que tendo fundado a possibilidade de uma pura filosofia prefere sem embargo ser teoacutelogordquo224 O que parece natildeo possa ser mais olvidado sem prejuiacutezo para a histoacuteria das ideias eacute que Tomaacutes tenha previsto um plano humano e mundano ainda que natildeo tenha escrito uma Summa Philosophiae

222 Idem Ibidem II-II 181 1 C ldquo[] unde philosophus dicit in II Ethic quod ad virtutem scire quidem parum aut nihil potestrdquo 223 Idem Ibidem I-II 57 3 C 224 VIGNAUX Op Cit p 124 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoTengamos a Santo Tomaacutes por un pensador que habiendo fundado la posibilidad de una pura filosofiacutea prefiere sin embargo ser teoacutelogordquo

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[] a forte exigecircncia racional que estaacute presente no pensamento de Tomaacutes natildeo pode ser ignorada e subestimada posto que esta representa jaacute um reconhecimento ao menos teoacuterico dos direitos da pura pesquisa filosoacutefica e cientiacutefica cuja influecircncia devia pesar ao longo da evoluccedilatildeo do uacuteltimo pensamento medieval225

No entanto resta esclarecer uma questatildeo importante qual

eacute a fonte primaacuteria da ciecircncia eacutetica A fonte primaacuteria como jaacute vimos eacute o homem eacutetico Em outros termos natildeo eacute o prudente que tem de olhar para a lei mas eacute a lei que eacute descoberta enquanto encarnada no prudente ldquoEis por que se ensina no livro X da Eacutetica que o homem virtuoso eacute a medida e a regra dos atos humanosrdquo226 Natildeo eacute do dever que nasce a eacutetica mas eacute da experiecircncia da virtude que brota o dever e o dever soacute eacute cumprido plenamente quando deixa de ser dever e volta por assim dizer a ser virtude Em eacutetica a experiecircncia do virtuoso eacute o princiacutepio da sabedoria ldquoA prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas []rdquo227 Noutro passo o Aquinate afirma com clareza

Em relaccedilatildeo a essas determinaccedilotildees se tem o juiacutezo dos experientes e prudentes como a certos princiacutepios a saber enquanto vecircem de imediato o que particularmente haacute de se determinar de modo mais congruente Donde dizer o Filoacutesofo que em tais coisas ldquoeacute preciso atender agraves enunciaccedilotildees e opiniotildees indemonstraacuteveis dos experientes e dos anciatildeos ou dos prudentes natildeo menos que agraves demonstraccedilotildeesrdquo228

225 VASOLI Op Cit p 299 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] la forte esigencia razionale che egrave presente nel pensiero di Tommaso non puograve essere ignorata e sottovalutata poicheacute essa rappresenta giagrave un riconoscimento almeno teorico dei diritti della pura ricerca filosofica filosofica e scientifica la cui influenza doveva pesare a lungo nellrsquoevoluzione dellrsquoultimo pensiero medioevalerdquo 226 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 6 ad 3 ldquo[] unde et in X Ethic dicitur quod virtuosus est mensura et regula actuum humanorumrdquo 227 Idem Ibidem II-II 47 2 ad 1 ldquoUnde manifestum est quod prudentia est sapientia in rebus humanis []rdquo 228 Idem Ibidem I-II 95 2 ad 4 ldquo[] ad quas quidem determinationes se habet expertorum et prudentum iudicium sicut ad quaedam principia inquantum scilicet statim vident quid congruentius sit particulariter determinari Unde philosophus dicit in VI Ethic quod in talibus oportet attendere expertorum et seniorum vel prudentum indemonstrabilibus enuntiationibus et opinionibus non minus quam demonstrationibusrdquo

224 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Mas como se adquire esta ldquosabedoria praacuteticardquo e como pode ela passar a ser uma ldquosabedoria filosoacuteficardquo Haacute muitas maneiras de se abordar a questatildeo da prudentia em Tomaacutes Natildeo eacute nosso intuito aqui fazer uma anaacutelise pormenorizada do quanto o Aquinate diz sobre o assunto Seguiremos apenas o essencial para mostrarmos o que tencionamos a saber que eacute da percepccedilatildeo da memoacuteria e da experiecircncia do homem prudente que Tomaacutes parte para pensar a eacutetica enquanto filosofia praacutetica Segundo o Aquinate a partir de uma etimologia que remonta a Isidoro prudentia consiste antes de tudo num pro videre ou porro videns isto eacute num prever ou ver ao longe mediante uma deduccedilatildeo das coisas presentes e passadas o desenlace dos fatos humanos Ora este antever ou ver ao longe eacute um ato da razatildeo que calcula229 Com efeito como os fatos humanos variam ad infinitum a aquisiccedilatildeo da prudecircncia exige tempo experiecircncia e um esforccedilo ingente para se deslindar algumas constantes nos eventos humanos230 Outrossim estas constantes

229 Idem Ibidem II-II 47 1 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut Isidorus dicit in libro Etymol prudens dicitur quasi porro videns perspicax enim est et incertorum videt casus Visio autem non est virtutis appetitivae sed cognoscitivae Unde manifestum est quod prudentia directe pertinet ad vim cognoscitivam Non autem ad vim sensitivam quia per eam cognoscuntur solum ea quae praesto sunt et sensibus offeruntur Cognoscere autem futura ex praesentibus vel praeteritis quod pertinet ad prudentiam proprie rationis est quia hoc per quandam collationem agitur Unde relinquitur quod prudentia proprie sit in rationerdquo ldquoSegundo Isidoro lsquoprudente significa o que vecirc ao longe eacute perspicaz vecirc o desenlace dos casos incertosrsquo A visatildeo natildeo pertence agrave potecircncia apetitiva mas a cognoscitiva Por isso eacute evidente que a prudecircncia pertence diretamente agrave potecircncia cognoscitiva Natildeo poreacutem agrave sensitiva porque por meio desta se reconhecem as coisas que estatildeo presentes e aparecem aos sentidos enquanto que conhecer o futuro a partir das coisas presentes ou passadas o que eacute proacuteprio da prudecircncia pertence agrave razatildeo dado que se faz por deduccedilatildeo Portanto resulta que a prudecircncia reside propriamente na razatildeordquo Idem Ibidem II-II 49 6 C ldquoUtrumque autem horum importatur in nomine providentiae importat enim providentia respectum quendam alicuius distantis ad quod ea quae in praesenti occurrunt ordinanda sunt Unde providentia est pars prudentiaerdquo ldquoOra o termo previdecircncia implica ambas as coisas implica com efeito que o olhar se prenda a qualquer coisa distante como a um termo ao qual devem ser ordenadas as accedilotildees presentes A previdecircncia eacute pois uma parte da prudecircnciardquo 230 Idem Ibidem II-II 47 3 ad 2 ldquoTamen per experientiam singularia infinita reducuntur ad aliqua finita quae ut in pluribus accidunt quorum cognitio sufficit ad prudentiam humanamrdquo ldquoNo entanto pela experiecircncia a infinidade dos singulares eacute reduzida a um nuacutemero finito de casos mais frequumlentes cujo conhecimento eacute suficiente para a prudecircncia humanardquo Idem Ibidem II-II 47 14 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod prudentia acquisita causatur ex exercitio actuum unde indiget ad sui generationem experimento et tempore ut dicitur in II Ethic Unde non potest esse in iuvenibus nec secundum habitum nec secundum actumrdquo ldquoDeve-se dizer que a prudecircncia adquirida eacute causada pela

Saacutevio Laet de Barros Campos | 225

nunca legaratildeo ao prudente eacute bom que se diga regras inamoviacuteveis mas apenas gerais231 E mesmo estas ldquoregras geraisrdquo natildeo poderatildeo ser aplicadas pelo homem virtuoso sem que este tenha um conhecimento preacutevio e invulgar das circunstacircncias um conhecimento de circunspecccedilatildeo diz Tomaacutes porque o que se mostra bom numa determinada circunstacircncia noutra pode resultar num empecilho agrave consecuccedilatildeo do fim232 De todo modo como exige experiecircncia e tempo para se conhecer o que eacute mais frequente a virtude da prudecircncia exige tambeacutem uma memoacuteria robusta233 Natildeo soacute mas como versa sobre os meios ela requer que se tenha um conhecimento taacutecito dos fins isto eacute dos primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica234 bem como uma capacidade de raciocinar bem a partir destes princiacutepios a fim de saber aplicaacute-los corretamente hic et nunc235 Ademais porque trata do que se deve

repeticcedilatildeo dos atos portanto lsquopara sua aquisiccedilatildeo eacute necessaacuteria a experiecircncia e o temporsquo como se diz no livro II da Eacutetica e natildeo pode encontrar-se nos jovens nem atual nem habitualmente []rdquo 231 Idem Ibidem II-II 49 1 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est circa contingentia operabilia sicut dictum est In his autem non potest homo dirigi per ea quae sunt simpliciter et ex necessitate vera sed ex his quae ut in pluribus accidunt []rdquo ldquoA prudecircncia como foi explicado trata das accedilotildees contingentes Nessas accedilotildees o homem natildeo pode ser dirigido por verdades absolutas e necessaacuterias mas pelo que sucede comumenterdquo 232 Idem Ibidem II-II 49 7 C ldquoSed quia prudentia sicut dictum est est circa singularia operabilia in quibus multa concurrunt contingit aliquid secundum se consideratum esse bonum et conveniens fini quod tamen ex aliquibus concurrentibus redditur vel malum vel non opportunum ad finemrdquo ldquoOra porque a prudecircncia como se disse tem como objeto as accedilotildees singulares agraves quais concorrem muitas coisas acontece que alguma coisa considerada em si mesma seja boa e conveniente ao fim a qual entretanto pode tornar-se maacute ou inoportuna ao fimrdquo 233 Idem Ibidem II-II 49 1 C ldquoQuid autem in pluribus sit verum oportet per experimentum considerare unde et in II Ethic philosophus dicit quod virtus intellectualis habet generationem et augmentum ex experimento et tempore Experimentum autem est ex pluribus memoriis ut patet in I Metaphys Unde consequens est quod ad prudentiam requiritur plurium memoriam habererdquo ldquoOra o que eacute verdade na maioria dos casos natildeo pode ser sabido senatildeo por experiecircncia tambeacutem o Filoacutesofo diz que a lsquovirtude intelectual nasce e cresce graccedilas agrave experiecircncia e ao temporsquo Por sua vez lsquoa experiecircncia resulta de muitas recordaccedilotildeesrsquo diz ele ainda Consequumlentemente a prudecircncia exige a memoacuteria de muitas coisasrdquo 234 Idem Ibidem II-II 49 2 C ldquoOmnis autem deductio rationis ab aliquibus procedit quae accipiuntur ut prima Unde oportet quod omnis processus rationis ab aliquo intellectu procedatrdquo ldquoOra toda deduccedilatildeo da razatildeo procede de proposiccedilotildees aceitas como primeiras Portanto eacute necessaacuterio que todo processo da razatildeo proceda de algo conhecidordquo 235 Idem Ibidem II-II 49 5 C ldquoRespondeo dicendum quod opus prudentis est esse bene consiliativum ut dicitur in VI Ethic Consilium autem est inquisitio quaedam ex quibusdam ad alia

226 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino fazer hic et nunc a prudecircncia implica sagacidade ou seja rapidez na deliberaccedilatildeo dos meios 236 aleacutem de solicitude vale dizer agilidade em se fazer hic et nunc o que deve ser feito237 Ligeireza e destreza que natildeo significam no entanto pressa a qual eacute uma precipitaccedilatildeo Por conseguinte quando se trata de accedilotildees contingentes haacute que se ter precauccedilatildeo para se avaliar retamente o que aquela circunstacircncia pede e assim natildeo tomar o mal como bem ou vice-versa 238 Aleacutem disso como as flutuaccedilotildees dos fatos humanos satildeo infindas o homem prudente deve estar revestido de docilidade ou seja deve estar disposto a ouvir os mais experientes maacutexime os anciatildeos pois seria impossiacutevel que um homem sozinho conseguisse abarcar todas as variaccedilotildees inerentes aos fatos da vida239 A prudecircncia natildeo eacute pois uma perspicaacutecia natural mas uma

procedens Hoc autem est opus rationis Unde ad prudentiam necessarium est quod homo sit bene ratiocinativusrdquo ldquoA obra do prudente eacute a de deliberar acertadamente como diz o Filoacutesofo E a deliberaccedilatildeo eacute uma pesquisa que partindo de certos dados passa para outros Isso eacute obra da razatildeo Portanto a prudecircncia requer que o homem saiba raciocinar bemrdquo 236 Idem Ibidem II-II 49 4 C ldquo[] solertia autem est facilis et prompta coniecturatio circa inventionem medii ut dicitur in I Posterrdquo ldquo[] a sagacidade poreacutem eacute lsquoa conjectura faacutecil e raacutepida a respeito dos meios como diz o Filoacutesofordquo 237 Idem Ibidem II-II 47 9 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dicit Isidorus in libro Etymol sollicitus dicitur quasi solers citus inquantum scilicet aliquis ex quadam solertia animi velox est ad prosequendum ea quae sunt agenda Hoc autem pertinet ad prudentiam cuius praecipuus actus est circa agenda praecipere de praeconsiliatis et iudicatis Unde philosophus dicit in VI Ethic quod oportet operari quidem velociter consiliata consiliari autem tarde Et inde est quod sollicitudo proprie ad prudentiam pertinetrdquo ldquoSegundo diz Isidoro soliacutecito vem de solers (sagaz) e de citus (raacutepido) enquanto algueacutem a partir de certa sagacidade do espiacuterito eacute raacutepido para cumprir o que se deve fazer Ora isso pertence agrave prudecircncia cujo ato principal eacute comandar em mateacuteria de accedilatildeo aquilo que antes foi deliberado e julgado Por isso diz o Filoacutesofo que lsquoeacute preciso pocircr em accedilatildeo prontamente aquilo que foi deliberado mas deliberar calmamentersquo Donde se conclui que a solicitude tem propriamente relaccedilatildeo com a prudecircnciardquo 238 Idem Ibidem II-II 49 8 C ldquoRespondeo dicendum quod ea circa quae est prudentia sunt contingentia operabilia in quibus sicut verum potest admisceri falso ita et malum bono propter multiformitatem huiusmodi operabilium in quibus bona plerumque impediuntur a malis et mala habent speciem boni Et ideo necessaria est cautio ad prudentiam ut sic accipiantur bona quod vitentur malardquo ldquoA mateacuteria da prudecircncia satildeo as accedilotildees contingentes nas quais assim como o verdadeiro se mistura com o falso o mal se mistura com o bem devido agrave grande variedade dessas accedilotildees nas quais o bem eacute frequumlentemente impedido pelo mal e nas quais o mal assume aparecircncia de bem Eacute por isso que a precauccedilatildeo eacute necessaacuteria agrave prudecircncia para escolher os bens e evitar os malesrdquo 239 Idem Ibidem II-II 49 3 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est prudentia consistit circa particularia operabilia In quibus cum sint quasi infinitae diversitates non possunt ab uno homine sufficienter omnia considerari nec per modicum tempus sed per temporis

Saacutevio Laet de Barros Campos | 227

virtude moral um haacutebito adquirido agrave custa de muito trabalho240 Tomaacutes prevecirc ainda a existecircncia de uma prudecircncia poliacutetica proacutepria do governante e de uma prudecircncia econocircmica proacutepria do chefe de famiacutelia241 Mas o que nos garante que esta ldquosabedoria praacuteticardquo eacute verdadeira Parece que aqui ainda que natildeo tenha desenvolvido esta doutrina ex professo Tomaacutes retoma os eacutendoxa de Aristoacuteteles 382 OS EacuteNDOXA EM TOMAacuteS DE AQUINO

Tomaacutes como amiuacutede tambeacutem aqui permanece fiel a Aristoacuteteles e assevera que o conhecimento da verdade a evidecircncia dela e a posse de sua certeza podem ser alcanccedilados por todos e efetivamente em alguma medida o satildeo pois naturalmente procuramos a verdade e rejeitamos o erro242 Aliaacutes por natureza

diuturnitatem Unde in his quae ad prudentiam pertinent maxime indiget homo ab alio erudiri et praecipue ex senibus qui sanum intellectum adepti sunt circa fines operabiliumrdquo ldquoComo se disse anteriormente a prudecircncia concerne agraves accedilotildees particulares nas quais a diversidade eacute quase infinita Natildeo eacute possiacutevel que um soacute homem seja plenamente informado de tudo o que a isso se refere nem em um curto tempo senatildeo em um longo tempo Por isso no que se refere agrave prudecircncia em grande parte o homem tem necessidade de ser instruiacutedo por outro e sobretudo pelos anciatildeos que chegaram a formar um juiacutezo satildeo a respeito dos fins das operaccedilotildeesrdquo 240 Idem Ibidem I-II 47 15 C ldquoQuia igitur prudentia non est circa fines sed circa ea quae sunt ad finem ut supra habitum est ideo prudentia non est naturalisrdquo ldquoPortanto dado que a prudecircncia natildeo tem por objeto os fins mas os meios em vista do fim como se viu acima ela tambeacutem natildeo eacute natural no homemrdquo Idem Ibidem II-II 47 4 C ldquoEt ideo prudentia non solum habet rationem virtutis quam habent aliae virtutes intellectuales sed etiam habet rationem virtutis quam habent virtutes morales quibus etiam connumeraturrdquo ldquoEacute por isso que a prudecircncia natildeo realiza somente o conceito de virtude como as outras virtudes intelectuais mas possui tambeacutem a noccedilatildeo de virtude proacutepria das virtudes morais entre as quais ela estaacute enumeradardquo 241 Idem Ibidem II-II 50 3 C ldquoEt ideo sicut prudentia communiter dicta quae est regitiva unius distinguitur a politica prudentia ita oportet quod oeconomica distinguatur ab utraquerdquo ldquoPor conseguinte assim como a prudecircncia em geral que governa uma soacute pessoa se distingue da prudecircncia poliacutetica de igual modo a econocircmica deve ser distinta de ambasrdquo 242 TOMAacuteS DE AQUINO Suma contra os gentios I LXI 7 [513] ldquoSicut verum est bonum intellectus ita falsum est malum ipsius naturaliter enim appetimus verum cognoscere et refugimus falso decipi Malum autem in Deo esse non potest ut probatum est Non potest igitur in eo esse falsitasrdquo ldquo[] assim como o verdadeiro eacute o bem do intelecto o falso eacute o seu mal segundo o Filoacutesofo (VI da Eacutetica 2 1139a cmt 2 1130) pois naturalmente desejamos conhecer o verdadeiro e fugimos de ser enganados pelo falsordquo Noutro lugar precisa Idem A unidade do intelecto contra os Averroiacutestas I 1 ldquoSicut omnes homines naturaliter scire desiderant veritatem ita naturale desiderium inest hominibus fugiendi errores et eos cum facultas adfuerit confutandirdquo ldquoComo todos

228 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino natildeo soacute buscamos a verdade e fugimos do que eacute falso mas tambeacutem tentamos desbaratar o que eacute enganoso Pois bem justificar o que se afirma eacute a tarefa preciacutepua do filoacutesofo De fato a experiecircncia nos atesta que quando afirmamos algo repelimos o seu contraacuterio243 Repugna agrave razatildeo uma afirmaccedilatildeo do gecircnero o cavalo branco de Napoleatildeo eacute preto Nesta linha Tomaacutes aduz que os nossos sentidos bem como a nossa razatildeo natildeo se enganam quanto a seus objetos proacuteprios porque quanto a eles satildeo unidimensionais Em outras palavras o olho soacute pode ver e ipso facto natildeo se pode enganar quando vecirc244 Dispostos assim agrave verdade acrescentemos que ela eacute uma adequaccedilatildeo do intelecto agrave coisa245 Esta adequaccedilatildeo daacute-se por uma espeacutecie de assimilaccedilatildeo que consiste em o conhecido estar intencionalmente naquele que conhece 246 Tal assertiva eacute de

os homens por natureza desejam saber a verdade (Metafiacutesica I 1 980 a 22) tambeacutem neles eacute natural o desejo de fugir dos erros e de os refutar quanto tecircm essa faculdaderdquo 243 Idem Suma contra os gentios I I 3 [6] ldquoEiusdem autem est unum contrariorum prosequi et aliud refutare sicut medicina quae sanitatem operatur aegritudinem excluditrdquo ldquoPertence com efeito ao que aceita um dos termos contraacuterios refutar o outro como por exemplo acontece na medicina esta trata da sauacutede e afasta a doenccedila []rdquo 244 Idem Suma Teoloacutegica I 85 6 C ldquoSensus enim circa proprium obiectum non decipitur sicut visus circa colorem nisi forte per accidens ex impedimento circa organum contingente [] Obiectum autem proprium intellectus est quidditas rei Unde circa quidditatem rei per se loquendo intellectus non falliturrdquo ldquoOs sentidos natildeo se enganam a respeito de seu objeto proacuteprio assim a vista em relaccedilatildeo agrave cor a natildeo ser talvez por acidente em razatildeo de um impedimento proveniente do oacutergatildeo [] O objeto proacuteprio do intelecto eacute a quumlididade Por isso falando de maneira absoluta o intelecto natildeo erra sobre a quumlididade da coisardquo 245 Idem Ibidem I 16 2 C ldquoEt propter hoc per conformitatem intellectus et rei veritas definiturrdquo ldquoEis por que se define a verdade pela conformidade do intelecto e da coisardquo TOMAacuteS DE AQUINO Questotildees Disputadas Sobre a Verdade I 1 C In LAUAND Luiz Jean SPROVIERO Mario Bruno Verdade e Conhecimento Trad Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 ldquoPrima ergo comparatio entis ad intellectum est ut ens intellectui concordet quae quidem concordia adaequatio intellectus et rei dicitur et in hoc formaliter ratio veri perficiturrdquo ldquoA primeira consideraccedilatildeo quanto a ente e intelecto eacute pois que o ente concorde com o intelecto esta concordacircncia diz-se adequaccedilatildeo do intelecto e da coisa e nela formalmente realiza-se a noccedilatildeo de verdadeirordquo 246 Idem Ibidem I 16 1 C ldquo[] quia cognitio est secundum quod cognitum est in cognoscente []rdquo ldquoO conhecimento consiste em que o conhecido estaacute naquele que conhece []rdquo Idem Questotildees Disputadas Sobre a Verdade I 1 C In LAUAND Luiz Jean SPROVIERO Mario Bruno Verdade e Conhecimento Trad Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 149 ldquoOmnis autem cognitio perficitur per assimilationem cognoscentis ad rem cognitam ita quod assimilatio dicta est causa cognitionis sicut visus per hoc quod disponitur secundum speciem coloris cognoscit coloremrdquo ldquoPois todo conhecimento realiza-se pela assimilaccedilatildeo do cognoscente agrave

Saacutevio Laet de Barros Campos | 229

primeira ordem Ela nos leva a afirmar que conhecimento noacutes o temos primeiramente das coisas que existem fora de noacutes e natildeo das espeacutecies impressas inteligiacuteveis ou mesmo dos conceitos (espeacutecies expressas inteligiacuteveis) que estatildeo no nosso intelecto247 Em termos analiacuteticos contemporacircneos poderiacuteamos classificar Tomaacutes como um ldquoexternistardquo248 Em outras palavras para Aquino eacute o intelecto que se deve conformar agrave realidade e natildeo o contraacuterio249 A verdade natildeo estaacute pois nas ldquosutilezasrdquo mas na conformidade do intelecto com o real250 De modo que ao menos tanto quanto agraves sentenccedilas dos filoacutesofos devemos dar creacutedito ao que a multidatildeo afirma pois ela estaacute de certo modo mais proacutexima das coisas do que as ldquosofisticaccedilotildeesrdquo daqueles251 A propoacutesito Tomaacutes natildeo tinha

coisa conhecida de modo que a assimilaccedilatildeo diz-se causa do conhecimento por exemplo a vista capacitada para cor conhece a corrdquo 247 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 85 2 C ldquoSi igitur ea quae intelligimus essent solum species quae sunt in anima sequeretur quod scientiae omnes non essent de rebus quae sunt extra animam sed solum de speciebus intelligibilibus quae sunt in anima [] Et sic species intellectiva secundario est id quod intelligitur Sed id quod intelligitur primo est res cuius species intelligibilis est similitudordquo ldquoSe pois aquilo que conhecemos fosse somente as espeacutecies que estatildeo na alma todas as ciecircncias natildeo seriam de coisas que estatildeo fora da alma mas somente das espeacutecies inteligiacuteveis que estatildeo na alma [] Assim a espeacutecie inteligiacutevel eacute o que eacute conhecido em segundo lugar Mas o que eacute primeiramente conhecido eacute a coisa da qual a espeacutecie inteligiacutevel eacute a semelhanccedilardquo 248 MICHELETTI Op Cit p 46 ldquoEm Warrant The Current Debate (1993) e em Warrant and Proper Funcion (1993) Plantinga sustenta que a crise na epistemologia contemporacircnea daquela tradiccedilatildeo lsquointernistarsquo que havia tido preponderacircncia depois de Descartes Locke e o Iluminismo permitiu o reaparecimento do lsquoexternismorsquo da concepccedilatildeo epistemoloacutegica que segundo a reveladora genealogia desenhada por Plantinga remonta a Thomas Reid Tomaacutes de Aquino e Aristoacutetelesrdquo 249 Falamos da verdade loacutegica natildeo da ontoloacutegica Esta uacuteltima consiste no fato de as coisas serem verdadeiras enquanto se adequam agrave mente divina e natildeo o contraacuterio TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 16 1 C ldquoEt similiter res naturales dicuntur esse verae secundum quod assequuntur similitudinem specierum quae sunt in mente divina dicitur enim verus lapis qui assequitur propriam lapidis naturam secundum praeconceptionem intellectus divinirdquo ldquoAssim tambeacutem as coisas naturais satildeo verdadeiras na medida em que se assemelham agraves representaccedilotildees que estatildeo na mente divina uma pedra eacute verdadeira quanto tem a natureza proacutepria da pedra preconcebida como tal pelo intelecto divinordquo 250 Idem Ibidem II-II 1 2 ad 2 ldquo[] non enim formamus enuntiabilia nisi ut per ea de rebus cognitionem habeamus sicut in scientia ita et in fiderdquo ldquo[] natildeo formamos enunciados a natildeo ser para que tenhamos conhecimento das coisas como acontece na ciecircncia e tambeacutem na feacute []rdquo 251 Idem Suma contra os gentios I I 1 [2] ldquoMultitudinis usus quem in rebus nominandis sequendum philosophus censet []rdquo ldquoA terminologia vulgar que o Filoacutesofo diz ser conveniente respeitar ao se dar nome agraves coisas (II Toacutepicos I 109 a) []rdquo

230 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino um conceito elevado demais acerca de si mesmo nem de seus ldquocolegasrdquo filoacutesofos como deixa claro quando diz que nenhum filoacutesofo conseguiu conhecer perfeitamente nem sequer a essecircncia de uma mosca ou abelha252 Por traacutes disso estaacute a convicccedilatildeo de que a nossa mente natildeo inventa verdades natildeo eacute criadora Daiacute que para ele a docilidade de uma velhinha pode ser mais uacutetil do que a ldquoagudezardquo de um ldquofiloacutesofordquo quando se trata de se conformar agraves coisas253 O fato a se destacar aqui eacute que quando haacute adequaccedilatildeo do intelecto agrave realidade vale dizer assimilaccedilatildeo da coisa por parte daquele que conhece haacute entatildeo a evidecircncia e a certeza da verdade E disto resulta em primeiro lugar que natildeo eacute a boa argumentaccedilatildeo que nos daacute a verdade A bem dizer a argumentaccedilatildeo estabelece a verdade do discurso O que nos faculta ou possibilita o conhecimento da verdade eacute a confiabilidade na funccedilatildeo proacutepria das nossas potecircncias cognoscitivas a vista diz Tomaacutes eacute capaz de ver e conhece o que vecirc Por isso quando digo que o cavalo branco de Napoleatildeo eacute branco e natildeo preto natildeo haacute nesta asserccedilatildeo nenhuma presunccedilatildeo de se fazer com que o cavalo seja branco ou mesmo de que se pareccedila branco Haacute sim a pretensatildeo de se afirmar que ele eacute branco O cognoscente portanto confia na funccedilatildeo proacutepria da sua visatildeo que eacute ver e no enunciado que a sua razatildeo formula Ora os conhecimentos fundados nesta confiabilidade de funccedilatildeo proacutepria chamam-se eacutendoxa E eacute a adequaccedilatildeo ou assimilaccedilatildeo do intelecto agrave coisa a qual natildeo seria possiacutevel ou perceptiacutevel sem esta

252 TOMAacuteS DE AQUINO Exposiccedilatildeo sobre o credo Trad Odilatildeo Moura 4 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1997 p 19 ldquo[] sed cognitio nostra est adeo debilis quod nullus philosophus potuit unquam perfecte investigare naturam unius muscae unde legitur quod unus philosophus fuit triginta annis in solitudine ut cognosceret naturam apisrdquo ldquoMas o nosso conhecimento eacute tatildeo limitado que nenhum filoacutesofo ateacute hoje conseguiu perfeitamente investigar a natureza de uma soacute mosca Conta-se ateacute que certo filoacutesofo levou trinta anos no deserto para conhecer a natureza das abelhasrdquo 253 Idem Ibidem p 18 ldquoEt hoc patet quia nullus philosophorum ante adventum Christi cum toto conatu suo potuit tantum scire de Deo et de necessariis ad vitam aeternam quantum post adventum Christi scit una vetula per fidemrdquo ldquoEis porque nenhum filoacutesofo antes da vinda de Cristo apesar do grande esforccedilo intelectual que despendia pocircde chegar ao conhecimento de Deus e dos meios necessaacuterios para alcanccedilar a vida eterna como depois do advento de Cristo qualquer velhinha o pocircde pela feacuterdquo

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confiabilidade que estabelece a verdade e a evidecircncia da proposiccedilatildeo Enfim esta evidecircncia existe como certeza espontacircnea para um simples camponecircs e como certeza refletida para um filoacutesofo

Diziacuteamos que se trata da mesma verdade da mesma evidecircncia e da mesma certeza aquela que existe no camponecircs e no filoacutesofo Contudo suponhamos que haja um terceiro homem sagaz e erudito mdash chamemo-lo K mdash que consiga produzir uma argumentaccedilatildeo falsa fundada em ldquoconveniecircnciasrdquo ou naquilo que simplesmente aparece Suponhamos ainda que ele habilmente consiga ser mais coerente do que o nosso camponecircs e teremos entatildeo que a falsidade da sua tese iraacute prevalecer inobstante seja uma tese falsa Pois bem a tarefa do filoacutesofo natildeo eacute estabelecer uma nova verdade mas sim fazer com que a verdade exprimida espontaneamente pelo camponecircs prevaleccedila Ora o filoacutesofo faraacute isso antes de mais por meio de uma argumentaccedilatildeo correta que consistiraacute no caso da eacutetica em estabelecer que a proposiccedilatildeo de K eacute menos provaacutevel ou que natildeo atinge os eacutendoxa Sim ldquomenos provaacutevelrdquo jaacute que em eacutetica quase sempre natildeo lidamos com ldquoo que eacute semprerdquo mas sim com o que eacute ldquona maioria das vezesrdquo Destarte uma tese que pretenda impugnar os eacutendoxa porque eles natildeo se verificam sempre eacute uma falsa refutaccedilatildeo porque simplesmente natildeo os refuta jaacute que os eacutendoxa tratam do que acontece ldquona maioria das vezesrdquo mas natildeo ldquosemprerdquo Da mesma forma uma demonstraccedilatildeo que pretenda demonstrar que eles ldquosatildeo semprerdquo eacute uma demonstraccedilatildeo enganosa Quem faz filosofia praacutetica deve se precaver contra estes dois erros De qualquer forma o constatar como ldquomenos provaacutevelrdquo o que eacute contraacuterio aos eacutendoxa natildeo basta Natildeo basta pois estabelecer que o que acontece na maioria das vezes eacute a verdade Eacute mister fazer com que esta verdade prevaleccedila e para isso o discurso precisa ser natildeo somente correto e verdadeiro mas persuasivo Do contraacuterio K por penetrar ateacute as tendecircncias do auditoacuterio convenceraacute Assim a praacutetica da retoacuterica deve entrar em cena para persuadir por assim dizer acerca da verdade do que eacute

232 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino verdadeiro e da falsidade do que eacute falso A boa argumentaccedilatildeo portanto natildeo eacute nem soacute verdadeira nem soacute retoacuterica mas verdadeira e retoacuterica Por isso o bom dialeacutetico tem de conhecer tambeacutem a arte retoacuterica e praticaacute-la Teraacute de conhecer os eacutendoxa saber argumentar corretamente sobre eles estabelecendo que sejam verdadeiros enquanto prova que o que eacute contraacuterio a eles eacute ldquomenos provaacutevelrdquo ou natildeo os atinge e aleacutem disso teraacute de ser expressivo e convincente Maacutexime em Eacutetica onde as accedilotildees valem mais do que as palavras e onde a praacutetica prevalece sobre a teoria urge ser natildeo soacute verdadeiro mas tambeacutem comunicativo e praacutetico

Tomando por base estes pressupostos podemos considerar como funciona a razatildeo na eacutetica tomasiana 383 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA EacuteTICA TOMASIANA

Em primeiro lugar vale ressaltar que para o Aquinate mdash tal como para Aristoacuteteles mdash natildeo haacute lugar para um ldquolegalismordquo na ldquociecircncia poliacuteticardquo Os atos humanos mdash afirma o Frade de Roccasecca mdash precisamente enquanto atos livres comportam uma contingecircncia que pode fazecirc-los variar indefinidamente pelo que nenhum legislador conseguiraacute prever mdash no ato mesmo de legislar mdash uma lei que contemple todos os casos Assim sendo pode acontecer que o que eacute justo na maioria das vezes se torne deleteacuterio em determinadas circunstacircncias e o legislador deveraacute levar isto em conta tanto quando concebe a lei como quando a aplica Tomaacutes afirma isso com clareza em duas passagens emblemaacuteticas

Acontece poreacutem frequumlentemente que observar algo eacute uacutetil agrave salvaccedilatildeo comum o mais das vezes eacute contudo em alguns casos maximamente nocivo Dado que o legislador natildeo pode intuir todos os casos particulares propotildee uma lei segundo aquelas coisas que acontecem o mais das vezes levando sua intenccedilatildeo agrave utilidade comum Por isso se surge um caso no qual a

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observacircncia de tal lei eacute danosa agrave salvaccedilatildeo comum natildeo deve ela ser observada254 Quando se tratou das leis foi dito que os atos humanos que as leis devem regular satildeo particulares e contingentes e podem variar ao infinito Por isso foi sempre impossiacutevel instituir uma regra legal que fosse absolutamente sem falha e abrangesse todos os casos Os legisladores examinando atentamente o que sucede com mais frequumlecircncia procuraram legislar levando em conta isto Mas em alguns casos observar rigidamente a lei vai contra a igualdade da justiccedila e contra o bem comum que a lei visa255

Do exposto segue-se ainda que a eacutetica mdash tanto em Tomaacutes

quanto em Aristoacuteteles mdash enquanto reflexatildeo acerca dos costumes haacutebitos e leis humanas natildeo poderaacute ser uma ldquociecircncia do universalrdquo mdash exceto no que concerne aos primeiros princiacutepios da lei natural que ordenam a vida em comum e satildeo imutaacuteveis comuns e inolvidaacuteveis a todo homem e dos quais emanam todos os demais256 mdash mas somente do ldquogeralrdquo ou seja de princiacutepios que embora procedendo de princiacutepios peacutetreos soacute habitualmente ou na maioria das vezes se apresentam como benfazejos ao bem comum

254 Idem Suma Teoloacutegica I-II 96 6 C ldquoContingit autem multoties quod aliquid observari communi saluti est utile ut in pluribus quod tamen in aliquibus casibus est maxime nocivum Quia igitur legislator non potest omnes singulares casus intueri proponit legem secundum ea quae in pluribus accidunt ferens intentionem suam ad communem utilitatem Unde si emergat casus in quo observatio talis legis sit damnosa communi saluti non est observandardquo 255 Idem Ibidem II-II 120 1 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est cum de legibus ageretur quia humani actus de quibus leges dantur in singularibus contingentibus consistunt quae infinitis modis variari possunt non fuit possibile aliquam regulam legis institui quae in nullo casu deficeret sed legislatores attendunt ad id quod in pluribus accidit secundum hoc legem ferentes quam tamen in aliquibus casibus servare est contra aequalitatem iustitiae et contra bonum commune quod lex intenditrdquo 256 Idem Ibidem I-II 94 4 C ldquoSic igitur dicendum est quod lex naturae quantum ad prima principia communia est eadem apud omnes et secundum rectitudinem et secundum notitiamrdquo ldquoDeve-se dizer portanto que a lei da natureza quanto aos primeiros princiacutepios comuns eacute a mesma em todos tanto segundo a retidatildeo como segundo o conhecimentordquo Idem Ibidem I-II 94 5 C ldquoEt sic quantum ad prima principia legis naturae lex naturae est omnino immutabilisrdquo ldquoE assim quanto aos primeiros princiacutepios da lei da natureza a lei da natureza eacute totalmente imutaacutevelrdquo Idem Ibidem I-II 94 6 C ldquoQuantum ergo ad illa principia communia lex naturalis nullo modo potest a cordibus hominum deleri in universalirdquo ldquoQuanto pois agravequeles princiacutepios comuns a lei natural de nenhum modo pode ser destruiacuteda dos coraccedilotildees dos homens de modo universalrdquo

234 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Deve-se dizer que ldquonatildeo se deve procurar a mesma certeza em todas as coisasrdquo como se diz no Livro I da Eacutetica Por isso nas realidades contingentes como satildeo as naturais e as realidades humanas eacute suficiente a certeza tal que algo seja verdadeiro o mais das vezes embora agraves vezes falhe em poucos casos257

Aleacutem disso a tarefa da reflexatildeo eacutetica tampouco conheceraacute

fim A eacutetica seraacute sempre um projeto inacabado pois ldquoa razatildeo humana eacute mutaacutevel e imperfeitardquo258 Haveraacute sempre a possibilidade de as leis os haacutebitos e os costumes humanos serem aperfeiccediloados por reflexotildees ulteriores Diz Tomaacutes

Assim tambeacutem ocorre nas obras a realizar Com efeito os primeiros entenderam achar algo de uacutetil agrave comunidade dos homens natildeo podendo considerar por si mesmos todas as coisas instituiacuteram algumas imperfeitas que falhavam em muitos casos e essas os posteriores mudaram instituindo algumas que em poucos casos pudessem falhar quanto agrave utilidade comum259

Posto isso pensamos ter dado a circularidade que

pretendiacuteamos neste capiacutetulo no sentido de apanhar as principais repercussotildees da eacutetica aristoteacutelica no pensamento de Tomaacutes Comeccedilamos por afirmar um ldquoconceito positivordquo de natureza humana em Tomaacutes e como a civitas eacute oriunda desta natureza Depois movimentamos o texto na tentativa de justificar esta assertiva mostrando como o homem possui domiacutenio sobre as suas accedilotildees e eacute senhor delas e desta reflexatildeo deduzimos o corolaacuterio de que ele eacute pessoa Em seguida procuramos atestar como a incomunicabilidade da pessoa longe de tornaacute-la uma ldquoilhardquo traz

257 Idem Ibidem I-II 96 1 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod non est eadem certitudo quaerenda in omnibus ut in I Ethic dicitur Unde in rebus contingentibus sicut sunt naturalia et res humanae sufficit talis certitudo ut aliquid sit verum ut in pluribus licet interdum deficiat in paucioribusrdquo 258 Idem Ibidem I-II 97 1 ad 1 ldquo[] ratio humana mutabilis est et imperfectardquo 259 Idem Ibidem I-II 97 1 C ldquoIta etiam est in operabilibus Nam primi qui intenderunt invenire aliquid utile communitati hominum non valentes omnia ex seipsis considerare instituerunt quaedam imperfecta in multis deficientia quae posteriores mutaverunt instituentes aliqua quae in paucioribus deficere possent a communi utilitaterdquo

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em si o signo da abertura porque ser pessoa e ser racional tambeacutem eacute ser capaz de livremente criar relaccedilatildeo comunicar-se criar comunhatildeo comunidade o que se consolida mdash na ldquoesfera puacuteblicardquo mdash na ldquoamizade poliacuteticardquo E esta ldquoamizade poliacuteticardquo aperfeiccediloa a justiccedila que acentuamos natildeo ser legalista De mais a mais esforccedilamo-nos por mostrar que tipo de racionalidade mdash na concepccedilatildeo do Aquinate mdash confere agrave eacutetica o status de ldquociecircnciardquo De resto esta ordem natural ou eacutetica filosoacutefica que defendemos haver no Aquinate o mesmo Tomaacutes ainda que admita que ela vaacute sempre carecer de uma perfeiccedilatildeo absoluta reconhece tambeacutem que ela poderaacute lograr uma perfeiccedilatildeo quanto ao tempo conforme tambeacutem verificamos neste capiacutetulo Gostariacuteamos de citar novamente e desta feita integralmente uma passagem na qual Lima Vaz arrazoa sobre o ideal da eacutetica antiga que segundo a nossa compreensatildeo eacute retomado por Tomaacutes de Aquino

O domiacutenio da physis ou reino da necessidade eacute rompido pela abertura do espaccedilo humano do ethos no qual iratildeo inscrever-se os costumes os haacutebitos as normas e os interditos os valores e as accedilotildees Por conseguinte o espaccedilo do ethos enquanto espaccedilo humano natildeo eacute dado ao homem mas por ele construiacutedo ou incessantemente reconstruiacutedo Nunca a casa do ethos estaacute pronta e acabada para o homem e esse seu essencial inacabamento eacute o signo de uma presenccedila a um tempo proacutexima e infinitamente distante e que Platatildeo designou como a presenccedila exigente do Bem que estaacute aleacutem de todo ser (ousiacutea) ou para aleacutem do que se mostra acabado e completo260

Falta entretanto responder a uma pergunta como um

teoacutelogo cujas obras mais originais satildeo evidentemente teoloacutegicas conseguiu mdash nelas mdash desenvolver uma conceptualidade filosoacutefica uma abordagem eacutetico-filosoacutefica A resposta a esta questatildeo depende mdash a nosso ver mdash de uma reta compreensatildeo da concepccedilatildeo de

260 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13

236 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino teologia de Tomaacutes Delinear mdash ainda que sumariamente mdash esta concepccedilatildeo eis o que nos propomos fazer a seguir

Capiacutetulo IV O conceito de Teologia em Tomaacutes de Aquino

Neste capiacutetulo nosso intento eacute delinear qual o conceito de teologia elaborado por Tomaacutes Natildeo temos a pretensatildeo de acompanhar todos os pormenores da construccedilatildeo deste conceito Tomaacutes trata ex professo deste assunto logo na primeira questatildeo da primeira parte da Summa Theologiae A questatildeo eacute composta de dez artigos que discorrem sobre a sacra doctrina O que tentaremos fazer eacute apenas movimentar este texto junto com alguns outros a fim de mostrarmos que o conceito de teologia de Tomaacutes concede ldquodireito de cidadaniardquo agrave filosofia mdash inclusive no acircmbito da eacutetica mdash sem com isso romper a unidade da sacra doctrina A importacircncia de se estabelecer este conceito de teologia em Tomaacutes eacute salientada por Gilson

A principal razatildeo que dificulta a tantos historiadores filoacutesofos e teoacutelogos nomearem teologia o que eles preferem nomear filosofia eacute que em seus espiacuteritos a noccedilatildeo de teologia exclui a de filosofia Para eles verdades propriamente filosoacuteficas que dependem unicamente da razatildeo natildeo conseguiriam encontrar lugar na teologia onde todas as conclusotildees dependem da feacute E eacute verdade que todas as conclusotildees do teoacutelogo dependem da feacute mas natildeo eacute verdade que da feacute todas elas podem ser deduzidas Portanto era o sentido verdadeiro do termo teologia que se fazia necessaacuterio encontrar em primeiro lugar1

Tambeacutem Sofia Vanni Rovighi mdash talvez a que mais tenha

defendido em seu tempo a existecircncia de uma ldquofilosofia autocircnomardquo na teologia de Tomaacutes mdash aponta para a importacircncia de se compreender a concepccedilatildeo de teologia de Aquino com o fito de captar a universalidade do seu pensamento

1 GILSON Eacutetienne O Filoacutesofo e a Teologia Trad e Rev Tiago Joseacute Risi Leme Satildeo Paulo Paulus 2009 p 102

238 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Tomaacutes de Aquino foi e quis ser teoacutelogo Hoje se insiste muito e justamente sobre este fato mas talvez natildeo se devesse esquecer de que foi teoacutelogo a seu modo e natildeo ao modo dos teoacutelogos de hoje e que na sua concepccedilatildeo de teologia a indagaccedilatildeo racional (ou seja a filosofia) tem um lugar e uma funccedilatildeo essencial Jaacute dissemos falando da Summa contra Gentiles que segundo ele uma exposiccedilatildeo da doutrina catoacutelica que se queira dirigir a todos os homens (e pode ser catoacutelica sem se voltar para todos) deve comeccedilar por aquilo que a razatildeo pode descobrir porque a razatildeo eacute aquela que reuacutene todos os homens 2

Procuremos entatildeo encontrar o sentido verdadeiro do

termo ldquoteologiardquo em Tomaacutes pois soacute assim conseguiremos entender a razatildeo por que a filosofia ganha ldquoforos de cidaderdquo em sua obra 41 O CONCEITO DE TEOLOGIA COMO CIEcircNCIA EM TOMAacuteS

Logo no primeiro artigo da Summa o Aquinate coloca a seguinte questatildeo ldquoEacute necessaacuteria outra doutrina aleacutem das disciplinas filosoacuteficasrdquo3 E isto jaacute diz muita coisa A primeira eacute que Tomaacutes natildeo questiona que a filosofia seja uma ciecircncia antes indaga se aleacutem das disciplinas filosoacuteficas existe outra ciecircncia A maneira como ele coloca a questatildeo jaacute mostra que na sua concepccedilatildeo eacute a teologia mdash e natildeo a filosofia mdash que teraacute de se justificar como ciecircncia Nas palavras de Reacutemi Brague

Santo Tomaacutes de Aquino no comeccedilo de sua Suma Teoloacutegica natildeo se pergunta se eacute legiacutetimo fazer filosofia Muito pelo contraacuterio ele

2 ROVIGHI Sofia Vanni Introduzione a Tommaso DrsquoAquino Bari Laterza 1981 pp 40-41 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoTommaso drsquoAquino fu e volle essere teologo Oggi si insiste molto e giustamente su questo fatto mas forse non bisognerebbe dimenticare che fu teologo a modo suo e non al modo dei teologi di oggi e che nella sua concezione della teologia lrsquoindagine razionale (ossia la filosofia) ha un posto e una funzione essenziale Abbiamo giagrave detto parlando della Summa contra Gentiles che secondo lui unrsquoesposizione della dottrina cattolica che voglia rivolgersi a tutti gli uomini (e puograve essere cattolica senza rivolgersi a tutti) deve prendere le mosse da ciograve che la ragione umana puograve scoprire percheacute egrave la ragione quella che accomuna tutti gli uominirdquo 3 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 1 ldquoUtrum sit necessarium praeter philosophicas disciplinas aliam doctrinam haberirdquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 239

se coloca a questatildeo de saber se haacute necessidade de uma ciecircncia que venha a se juntar agrave filosofia mdash trata-se nessas circunstacircncias decerto da teologia A filosofia eacute suposta como indispensaacutevel O que mais for eacute perante seu tribunal que a teologia eacute convocada e que ela deve se justificar4

Depois de defender no corpo do primeiro artigo que

existe sim outra ciecircncia aleacutem da filosofia qual seja a teologia no artigo segundo busca fundamentar a teologia como ciecircncia5 Para levar a termo esta empresa vale-se da ldquoteoria da ciecircnciardquo aristoteacutelica Nos Analiacuteticos Posteriores Aristoacuteteles prevecirc a existecircncia de ciecircncias subalternas Assim a oacutetica deve agrave geometria seus princiacutepios e a muacutesica agrave aritmeacutetica Leiamos o trecho em que o Estagirita abre esta possibilidade

[] nem lteacute possiacutevel demonstrargt o proacuteprio de uma ciecircncia mediante outra a natildeo ser que todas em questatildeo estejam subordinadas umas agraves outras por exemplo as questotildees oacuteticas com respeito agrave geometria e as harmocircnicas com respeito agrave aritmeacutetica6

Pois bem o Boi Mudo assume esta ldquobrechardquo aberta por

Aristoacuteteles a fim de conferir o caraacuteter de ciecircncia agrave teologia Diz ele que haacute dois tipos de ciecircncia Umas procedem ldquo[] de princiacutepios que satildeo conhecidos agrave luz natural do intelecto como a aritmeacutetica a geometria etcrdquo7 outras ao contraacuterio procedem ldquo[] de princiacutepios conhecidos agrave luz de uma ciecircncia superior tais como [] a muacutesica

4 BRAGUE Mediante a Idade Meacutedia Filosofias medievais na cristandade no judaiacutesmo e no islatilde p 55 5 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 2 6 ARISTOacuteTELES Analiacuteticos Segundos I 75 b 10-15 In ______ Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) Trad Miguel Candel Sanmartiacuten Rev Quintiacuten Racionero Madrid Editorial Gredos 1995 v II pp 332-333 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] ni ltes posible demostrargt lo propio de una ciencia mediante otra a no ser que todas las cosas en cuestioacuten esteacuten subordinadas las unas a las otras Vg las cuestiones oacuteptimas respecto a la geometriacutea y las armoacutenicas respecto a la aritmeacuteticardquo 7 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 2 C ldquoQuaedam enim sunt quae procedunt ex principiis notis lumine naturali intellectus sicut arithmetica geometria et huiusmodirdquo

240 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino nos princiacutepios elucidados pela aritmeacuteticardquo8 Ora para Tomaacutes a teologia eacute ciecircncia no segundo sentido pois ela natildeo toma seus princiacutepios da luz natural da razatildeo mas sim de uma ciecircncia arquitetocircnica isto eacute a ciecircncia de Deus e dos celiacutecolas a qual ela conhece natildeo por visatildeo mas por Revelaccedilatildeo Eis o texto

Eacute desse modo que a doutrina sagrada eacute ciecircncia ela procede de princiacutepios conhecidos agrave luz de uma ciecircncia superior a saber da ciecircncia de Deus e dos bem-aventurados E como a muacutesica aceita os princiacutepios que lhe satildeo passados pelo aritmeacutetico assim tambeacutem a doutrina sagrada aceita os princiacutepios revelados por Deus9

O que nos interessa reter aqui eacute que desde a sua

constituiccedilatildeo como ciecircncia a teologia mdash em Tomaacutes mdash depende de uma reflexatildeo filosoacutefica tomada em grande parte de Aristoacuteteles Neste sentido diz Gilson sobre Tomaacutes ldquoEle sabe pela feacute para que termo se dirige contudo soacute progride graccedilas aos recursos da razatildeordquo10 Mas qual seraacute o ldquoobjetordquo da teologia

8 Idem Ibidem I 1 2 C ldquoQuaedam vero sunt quae procedunt ex principiis notis lumine superioris scientiae sicut perspectiva procedit ex principiis notificatis per geometriam et musica ex principiis per arithmeticam notisrdquo 9 Idem Ibidem ldquoEt hoc modo sacra doctrina est scientia quia procedit ex principiis notis lumine superioris scientiae quae scilicet est scientia Dei et beatorum Unde sicut musica credit principia tradita sibi ab arithmetico ita doctrina sacra credit principia revelata sibi a Deordquo Noutro passo o Aquinate eacute ainda mais claro Idem Ibidem II-II 1 7 C ldquoRespondeo dicendum quod ita se habent in doctrina fidei articuli fidei sicut principia per se nota in doctrina quae per rationem naturalem habeturrdquo ldquoOs artigos da feacute tecircm na doutrina da feacute o mesmo papel que os princiacutepios evidentes na doutrina que se constroacutei a partir da razatildeo naturalrdquo 10 GILSON A Filosofia na Idade Meacutedia p 657 Lapidar tambeacutem eacute a foacutermula adotada por Paul Gilbert para o proceder de Tomaacutes GILBERT Paul Introduccedilatildeo agrave Teologia Medieval Trad Dion Davi Macedo Rev Mauriacutecio Leal e Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1999 p 135 ldquoA feacute erige somente o que diz a razatildeordquo Isto natildeo significa que a razatildeo possa demonstrar os misteacuterios revelados mas sim que a teologia depende dos recursos da razatildeo para progredir com ordem Como jaacute dissemos Tomaacutes de Aquino tem um papel preponderante na formulaccedilatildeo da teologia como ciecircncia POSTESTAgrave VIAN Op Cit p 191 ldquoEstabelecendo seu estatuto de ciecircncia Tomaacutes levou (provisoriamente) a cabo seu longo percurso de se emancipar da exegese agora a teologia jaacute natildeo deveria ser considerada contemplaccedilatildeo da Escritura mas um saber autonomamente estruturado a partir dos princiacutepios revelados poreacutem desenvolvido e articulado segundo processos argumentativos de tipo racionalrdquo

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42 O ldquoOBJETOrdquo DA TEOLOGIA

A teologia enquanto ciecircncia tem um sujeito mdash diriacuteamos hoje um ldquoobjetordquo mdash e este eacute Deus ldquoDeus eacute o sujeito desta ciecircnciardquo11 Poreacutem Tomaacutes precisa que natildeo eacute qualquer conhecimento de Deus que eacute ldquoobjetordquo da teologia O ldquoobjetordquo desta ciecircncia natildeo eacute formalmente aquele conhecimento de Deus que os filoacutesofos mdash com mescla de erros mdash conseguiram alcanccedilar senatildeo aquele ldquo[] que soacute Deus conhece de si mesmo e que eacute comunicado aos outros por revelaccedilatildeordquo 12 Assim a ldquorazatildeo formalrdquo desta ciecircncia eacute o conhecimento de Deus obtido por Revelaccedilatildeo ldquo[] tudo o que eacute cognosciacutevel por revelaccedilatildeo divina tem em comum a uacutenica razatildeo formal do objeto desta ciecircnciardquo13 Em vaacuterias ocasiotildees Frei Tomaacutes reafirma isso Donde concluir que ldquoEra necessaacuterio existir para a salvaccedilatildeo do homem [] uma doutrina fundada na revelaccedilatildeo divinardquo 14 Mais abaixo afirma ainda ldquoPortanto aleacutem das disciplinas filosoacuteficas [] era necessaacuteria uma doutrina sagrada tida por revelaccedilatildeordquo15 Outras passagens poderiam ser citadas mas estas nos parecem suficientes Agora qual eacute o lugar da filosofia nesta ciecircncia 43 O PAPEL DA FILOSOFIA NA TEOLOGIA TOMASIANA

A impressatildeo que fica eacute que sendo a Revelaccedilatildeo o ldquoobjeto formalrdquo da teologia natildeo resta espaccedilo algum nela para a filosofia Contudo natildeo eacute assim Em primeiro lugar como Deus se revelou a

11 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 7 C ldquo[] Deus est subiectum huius scientiaerdquo 12 Idem Ibidem I 1 6 C ldquo[] sed etiam quantum ad id quod notum est sibi soli de seipso et aliis per revelationem communicatumrdquo 13 Idem Ibidem I 1 3 C ldquo[] omnia quaecumque sunt divinitus revelabilia communicant in una ratione formali obiecti huius scientiaerdquo 14 Idem Ibidem I 1 1 C ldquoUt igitur salus hominibus et convenientius et certius proveniat necessarium fuit quod de divinis per divinam revelationem instruanturrdquo 15 Idem Ibidem ldquoNecessarium igitur fuit praeter philosophicas disciplinas quae per rationem investigantur sacram doctrinam per revelationem haberirdquo

242 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino noacutes A fonte primeira da Revelaccedilatildeo eacute a Sagrada Escritura E o que temos laacute Deus revelando-Se a noacutes por meio das Suas criaturas ldquoConveacutem agrave Sagrada Escritura nos transmitir as coisas divinas e espirituais mediante imagens corporaisrdquo16 Mais do que atestar este fato Tomaacutes o justifica dizendo que assim deveria ser pois uma vez que natildeo somos espiacuteritos puros mas uma unidade entre alma e corpo eacute-nos natural conhecermos as coisas inteligiacuteveis atraveacutes das sensiacuteveis ldquo[] eacute natural ao homem elevar-se ao inteligiacutevel pelo sensiacutevel porque todo o nosso conhecimento se origina a partir dos sentidosrdquo17 Sendo assim mdash continua o Frade de Roccasecca mdash ldquo[] eacute entatildeo conveniente que na Escritura Sagrada as realidades espirituais nos sejam transmitidas por meio de metaacuteforas corporaisrdquo18

A questatildeo que se coloca entatildeo eacute a seguinte qual a ciecircncia que estuda as realidades naturais Eacute a filosofia Satildeo as disciplinas filosoacuteficas que nos datildeo a conhecer as coisas enquanto tais Neste sentido diraacute o Aquinate ldquo[] a filosofia humana as considera enquanto tais Donde as diversas partes da filosofia serem constituiacutedas segundo os diversos gecircneros das coisasrdquo19 A seguir Tomaacutes passa a distinguir com clareza como a filosofia e a teologia abordam as criaturas Enquanto o filoacutesofo quer conhecer apenas a natureza proacutepria de cada coisa ldquo[] por exemplo o fogo enquanto soberdquo20 o fiel ao contraacuterio quer conhecer nas criaturas ldquo[] somente aquilo que a elas conveacutem enquanto estatildeo

16 Idem Ibidem I 1 9 C ldquoRespondeo dicendum quod conveniens est sacrae Scripturae divina et spiritualia sub similitudine corporalium tradererdquo 17 Idem Ibidem ldquoEst autem naturale homini ut per sensibilia ad intelligibilia veniat quia omnis nostra cognitio a sensu initium habetrdquo 18 Idem Ibidem ldquoUnde convenienter in sacra Scriptura traduntur nobis spiritualia sub metaphoris corporaliumrdquo 19 Idem Suma Contra os Gentios II IV 1 [871] ldquoNam philosophia humana eas considerat secundum quod huiusmodi sunt unde et secundum diversa rerum genera diversae partes philosophiae inveniunturrdquo 20 Idem Ibidem II IV 2[872 a] ldquo[] sicut igni ferri sursum []rdquo

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relacionadas com Deusrdquo21 De mais a mais o filoacutesofo considera as coisas a partir das suas causas proacuteximas enquanto o teoacutelogo as considera a partir da causa primeira Deus22 Mas e este eacute o ponto o Aquinate observa que natildeo eacute inuacutetil ao teoacutelogo o conhecimento das coisas enquanto tais porque tambeacutem na natureza mesma das coisas podemos descobrir traccedilos da sabedoria criadora da causa primeira Diz ele

Daiacute podermos pela consideraccedilatildeo das obras recolher a sabedoria divina que estaacute como que espelhada nas criaturas por certa comunicaccedilatildeo da sua semelhanccedila23

Entretanto nem sequer isso eacute o mais importante Devemos

ter um conhecimento reto das criaturas porque uma vez que Deus Se revelou a noacutes mediante ldquoimagens corporaisrdquo se natildeo entendermos o que as coisas satildeo em si mesmas podemos compreender de forma equivocada estas metaacuteforas ou interpretaacute-las de forma que atente contra a proacutepria feacute Por essa razatildeo Frei Tomaacutes julga falsa e danosa agrave feacute a opiniatildeo daqueles que pensam poder fazer correta teologia sem dispor de um soacutelido conhecimento natural Na Suma de Teologia ele diz ldquoA feacute pressupotildee o conhecimento natural como a graccedila pressupotildee a natureza e a perfeiccedilatildeo o que eacute perfectiacutevelrdquo24 Jaacute na Suma Contra os Gentios eacute ainda mais contundente

21 Idem Ibidem ldquo[] idelis autem ea solum considerat circa creaturas quae eis conveniunt secundum quod sunt ad Deum relata []rdquo 22 Idem Ibidem II IV 2 [873] ldquoNam philosophus argumentum assumit ex propriis rerum causis fidelis autem ex causa prima ut puta quia sic divinitus est traditum vel quia hoc in gloriam Dei cedit vel quia Dei potestas est infinitardquo ldquoO filoacutesofo deduz os seus argumentos partindo das proacuteprias causas das coisas o fiel poreacutem da causa primeira mostrando que assim eacute porque foi revelado por Deus ou porque redunda na gloacuteria de Deus ou porque a gloacuteria de Deus eacute infinitardquo 23 Idem Ibidem II II 1 [859] ldquoUnde ex factorum consideratione divinam sapientiam colligere possumus sicut in rebus factis per quandam communicationem suae similitudinis sparsamrdquo 24 Idem Suma Teoloacutegica I 2 2 ad 1 ldquo[] fides praesupponit cognitionem naturalem sicut gratia naturam et ut perfectio perfectibilerdquo

244 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Vecirc-se pois como eacute falsa a afirmaccedilatildeo de alguns de que era indiferente para as verdades da feacute o que se pensasse a respeito das criaturas contanto que se pensasse retamente sobre Deus como nos relata Agostinho O erro acerca das criaturas redunda em falsa ideacuteia de Deus e ao submeter as mentes humanas a quaisquer outras coisas afasta-as de Deus para quem a feacute as quer encaminhar25

Porro comenta esta passagem mostrando nela o vieacutes

filosoacutefico que Tomaacutes nunca abandonou quando fez teologia

Como eacute evidente essa passagem natildeo reivindica apenas o direito mas tambeacutem e sobretudo o dever para o teoacutelogo de se ocupar das criaturas levando em conta esse ponto pode-se talvez comeccedilar a compreender por que Tomaacutes continuou e ateacute intensificou a proacutepria leitura dos textos aristoteacutelicos ateacute os uacuteltimos anos de sua vida26

Pelas razotildees arroladas Aquino pocircde concluir que embora

distintas filosofia e teologia devem caminhar juntas a fim de que a filosofia confira solidez agrave teologia Decerto que o Aquinate toma o cuidado de dizer que esta integraccedilatildeo entre as duas ordens diversas do conhecimento natildeo eacute estritamente necessaacuteria como se a teologia fosse inferior agrave filosofia Todavia tal interaccedilatildeo eacute muito pertinente dado que devido agrave debilidade do nosso intelecto que soacute eleva ao inteligiacutevel mediante o sensiacutevel eacute mais seguro valermo-nos da filosofia porque ela enquanto nos daacute a conhecer o que satildeo as coisas em si mesmas nos possibilita tambeacutem entender o dado revelado posto que Deus mdash jaacute o sabemos mdash Se revela a noacutes mediante ldquoimagens corporais ou sensiacuteveisrdquo A filosofia nos ajuda

25 Idem Suma Contra os Gentios II III 5 [869] ldquoSic ergo patet falsam esse quorundam sententiam qui dicebant nihil interesse ad fidei veritatem quid de creaturis quisque sentiret dummodo circa Deum recte sentiatur ut Augustinus narrat in libro de origine animae nam error circa creaturas redundat in falsam de Deo sententiam et hominum mentes a Deo abducit in quem fides dirigere nititur dum ipsas quibusdam aliis causis supponitrdquo 26 PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 137

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pois a nos elevarmos do sensiacutevel ao inteligiacutevel com correccedilatildeo Ouccedilamos o proacuteprio Tomaacutes

Deve-se dizer que a ciecircncia sagrada pode tomar emprestada alguma coisa agraves ciecircncias filosoacuteficas Natildeo que lhe seja necessaacuterio mas em vista de melhor manifestar o que ela proacutepria ensina Seus princiacutepios natildeo lhe vecircm de nenhuma outra ciecircncia mas de Deus imediatamente por revelaccedilatildeo Por conseguinte ela natildeo toma emprestado das outras ciecircncias como se lhe fossem superiores mas delas se vale como de inferiores e servas [] Que a ciecircncia sagrada se valha das outras ciecircncias natildeo eacute por uma falha sua ou deficiecircncia sua mas por falha de nosso intelecto A partir dos conhecimentos naturais de onde procedem as outras ciecircncias nosso intelecto eacute mais facilmente introduzido nos objetos que ultrapassam a razatildeo e satildeo a mateacuteria desta ciecircncia 27

No entanto a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para provar a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina28

E por essa razatildeo sendo a sabedoria principal serve-se da filosofia humana E ainda por este motivo a sabedoria divina parte algumas vezes dos princiacutepios da sabedoria humana29

Ao se depararem com esta temaacutetica em Tomaacutes Reale e

Antiseri mdash em sua Histoacuteria da Filosofia mdash concluem ldquo[] sendo necessaacuteria uma correta filosofia para ser possiacutevel uma boa

27 Idem Ibidem I 1 5 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod haec scientia accipere potest aliquid a philosophicis disciplinis non quod ex necessitate eis indigeat sed ad maiorem manifestationem eorum quae in hac scientia traduntur Non enim accipit sua principia ab aliis scientiis sed immediate a Deo per revelationem Et ideo non accipit ab aliis scientiis tanquam a superioribus sed utitur eis tanquam inferioribus et ancillis [] Et hoc ipsum quod sic utitur eis non est propter defectum vel insufficientiam eius sed propter defectum intellectus nostri qui ex his quae per naturalem rationem (ex qua procedunt aliae scientiae) cognoscuntur facilius manuducitur in ea quae sunt supra rationem quae in hac scientia tradunturrdquo 28 Idem Ibidem I 1 8 ad 2 ldquoUtitur tamen sacra doctrina etiam ratione humana non quidem ad probandum fidem quia per hoc tolleretur meritum fidei sed ad manifestandum aliqua alia quae traduntur in hac doctrinardquo 29 Idem Suma Contra os Gentios II IV 4 [875] ldquoEt propter hoc sibi quasi principali philosophia humana deservit Et ideo interdum ex principiis philosophiae humanae sapientia divina proceditrdquo

246 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino teologiardquo30 Aliaacutes tambeacutem nesta mesma linha de interpretaccedilatildeo o proacuteprio Aquinate jaacute defendia que a filosofia poderia ser estudada inclusive pelos religiosos Afirma ele

Deve-se dizer que os filoacutesofos professavam o estudo das letras no que diz respeito agraves ciecircncias humanas Mas aos religiosos compete principalmente dedicar-se ao estudo das letras que se referem agrave ldquodoutrina que eacute segundo a piedaderdquo como diz o Apoacutestolo Dedicar-se poreacutem ao estudo das outras doutrinas natildeo eacute proacuteprio dos religiosos que consagram toda a sua vida ao ministeacuterio divino a natildeo ser na medida em que elas satildeo ordenadas agrave teologia31

A propoacutesito eacute digno de nota que a primeira constituiccedilatildeo da

Ordem Dominicana mdash Livro dos costumes dos frades pregadores mdash orientava que os noviccedilos estudassem sim mas estudassem apenas e tatildeo somente livros teoloacutegicos vedando-lhes a possibilidade de se dedicarem aos estudos profanos O teor do texto eacute este

Natildeo se dediquem aos livros dos gentios e dos filoacutesofos se os examinarem de vez em quando natildeo se instruam nas ciecircncias seculares nem nas artes que chamam de liberais mas tanto os jovens como os outros estudem apenas livros teoloacutegicos32

30 REALE Giovanni ANTISERI Dario Histoacuteria da Filosofia Antiguumlidade e Idade Meacutedia Rev Honoacuterio Dalbosco 6 ed Satildeo Paulo Paulus 1990 p 554 31 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 188 5 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod philosophi profitebantur studia litterarum quantum ad saeculares doctrinas Sed religiosis competit principaliter intendere studio litterarum pertinentium ad doctrinam quae secundum pietatem est ut dicitur Tit I Aliis autem doctrinis intendere non pertinet ad religiosos quorum tota vita divinis obsequiis mancipatur nisi inquantum ordinantur ad sacram doctrinamrdquo [O itaacutelico eacute nosso] 32 LIVRO DOS COSTUMES DOS FRADES PREGADORES Distinccedilatildeo II cap 6 Trad Gelabert M Milagro et al Madrid BAC 1947 p 900 In NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 p 23 Aliaacutes desde o iniacutecio o estudo foi uma das notas distintivas da ordem dos frades pregadores LENZENWEGER Josef STOCKMEIER Peter [et al] Op Cit p 170 ldquoFoi com Domingos que pela primeira vez na histoacuteria das ordens religiosas a finalidade pastoral foi formulada claramente A ascese tinha de estar a serviccedilo da pregaccedilatildeo contemplata predicare Costumes de ascetismos ateacute entatildeo considerados indispensaacuteveis foram sacrificados em prol do estudo Por exemplo os irmatildeos ganharam celas individuais e uma luz para que tambeacutem de noite pudessem estudar algo completamente impensaacutevel nas ordens monaacutesticasrdquo

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Contudo durante o capiacutetulo de Valenciennes em 1259 no qual Tomaacutes mdash jaacute regente de teologia em Paris mdash estava presente bem como Alberto Magno o Conselho decidiu que os pregadores estudassem tambeacutem os textos filosoacuteficos As palavras da Ata satildeo as seguintes ldquoQue se organizem nas proviacutencias que tiverem necessidade um ou mais estuacutedios de artes onde os jovens sejam instruiacutedosrdquo33 Esta novidade causou grande alvoroccedilo e acabou por render criacuteticas a Alberto inclusive dos seus proacuteprios confrades Algumas de suas respostas a estas criacuteticas dos seus coevos podem ser mencionadas com proveito porque sua iacutendole vem ao encontro da nossa temaacutetica Para as universidades mdash afirma Alberto mdash aqueles que satildeo avessos a toda sorte de novidades satildeo

[] como o fiacutegado pois em todo corpo haacute o humor da biacutelis que ao evaporar torna amargo todo o corpo igualmente na universidade haacute sempre homens muitiacutessimo amargos e biliosos que levam todos os outros agrave amargura e natildeo lhes permitem buscar a verdade em prazerosa companhia34

Digo isto para certos preguiccedilosos que buscam conforto agrave sua preguiccedila indo agrave caccedila de erros nos escritos dos outros E dado que dormem na sua preguiccedila para natildeo parecerem os uacutenicos a dormir buscam atribuir desonras aos eleitos Tais foram aqueles que mataram Soacutecrates exilaram Platatildeo de Atenas e com as suas maquinaccedilotildees constrangeram tambeacutem Aristoacuteteles a ir embora35

33 ATAS DOS CAPIacuteTULOS GERAIS DA ORDEM DOS PREGADORES Roma R M Reichert p 99 v I In NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 p 24 34 ALBERTO MAGNO Comentaacuterio aos VIII livros da Poliacutetica de Aristoacuteteles Paris Ed A Borgnet Vivegraves 1890-99 p 804 v 8 In NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 p 24 35 ALBERTO MAGNO In octo libros Politicorum Aristotelis l VIII cap 6 In ROVIGHI Sofia Vanni Introduzione a Tommaso DrsquoAquino Bari Laterza 1981 p 12 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoDico questo per certi pigri che cercano conforto alla sua loro pigrizia andando a caccia di errori negli scritti altrui E poicheacute dormono nella sua pigrizia per non sembrare i soli a dormire cercano di attribuire macchie agli eletti Tali furono coloro que uccisero Socrate esiliarono Platone di Atene e con le sue macchinazioni costrinsero anche Aristotele ad andarsenerdquo

248 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Alguns ignorantes querem combater de todos os modos o estudo da filosofia e especialmente entre os Pregadores onde ningueacutem resiste a eles Satildeo como animais brutos que praguejam contra aquilo que ignoram36

Tomaacutes parece ser ele proacuteprio a ldquotestemunha vivardquo da

orientaccedilatildeo dada pelo capiacutetulo de Valenciennes Mesmo natildeo tendo lecionado na faculdade de artes e portanto natildeo tendo obrigaccedilatildeo alguma de comentar Aristoacuteteles ainda assim comentou incansavelmente o corpus aristotelicum optando sempre que possiacutevel por traduccedilotildees feitas diretamente do grego em sua maioria obras de Guilherme de Moerbeke seu confrade Natildeo eacute de pouca monta observar que jaacute com a sua obra teoloacutegica quase toda realizada vale dizer nos uacuteltimos anos de sua vida o Aquinate nunca cessou de comentar as obras aristoteacutelicas o que nos daacute a convicccedilatildeo de que ele natildeo as comentava exclusivamente como preparaccedilatildeo para outras obras teoloacutegicas mas sim para manter atualizados os seus conhecimentos filosoacuteficos Outro fato digno de acento eacute que depois de sua morte os mestres da faculdade de artes mdash e natildeo os da teologia mdash pediram agrave Ordem dos Frades Pregadores o envio natildeo propriamente da Summa Theologiae mas dos comentaacuterios de Frei Tomaacutes a Aristoacuteteles Eacute interessante lermos as consideraccedilotildees de Porro a este respeito

Tomaacutes natildeo comentou Aristoacuteteles ateacute os uacuteltimos anos da sua vida porque fosse obrigado a isso por estatutos ou programas de ensino (embora seus comentaacuterios sejam depois solicitados apoacutes sua morte pelos mestres da faculdade das artes mdash o que atesta o indiscutiacutevel prestiacutegio que Tomaacutes conquistara como comentarista de Aristoacuteteles entre os que por profissatildeo eram obrigados a ler e a comentar Aristoacuteteles) [] Portanto natildeo resta senatildeo apelar ao que tambeacutem se dizia antes o interesse de Tomaacutes pelas obras

36 ALBERTO MAGNO In Epistolas B Dionisii Areop VIII 2 In ROVIGHI Sofia Vanni Introduzione a Tommaso DrsquoAquino Bari Laterza 1981 p 12 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoAlcuni ignoranti vogliono combattere in tutti i modi lo studio della filosofia e specialmente fra i Pedicatori dove nessuno resiste loro Sono como animali bruti che imprecano contro quello che ignoranordquo

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aristoteacutelicas natildeo eacute simplesmente instrumental ou natildeo tem por objetivo apenas chegar ao depoacutesito do saber aristoteacutelico para dele retirar o material uacutetil e necessaacuterio para construir o novo edifiacutecio cientiacutefico do saber cristatildeo mas eacute antes um traccedilo essencial da sua atitude geral Tomaacutes procurou ateacute os uacuteltimos anos confrontar-se com o sistema geral das ciecircncias (procurando se manter atualizado tambeacutem a propoacutesito dos textos postos agrave disposiccedilatildeo pelas traduccedilotildees acabadas naqueles mesmos anos) Talvez o conhecimento dos raios e dos terremotos natildeo fosse imediatamente utilizaacutevel nos seus escritos teoloacutegicos mas Tomaacutes ficou convencido (pela sua formaccedilatildeo pessoal pela aprendizagem sob Alberto Magno por sua proacutepria curiosidade intelectual) de que um bom teoacutelogo deveria ser em primeiro lugar um homem de ciecircncia em geral e manter o dever de jamais se subtrair ao confronto com as ciecircncias profanas se natildeo ateacute aprofundar cada uma delas de modo analiacutetico37

Eacute que mdash acrescentariacuteamos ao que diz Porro mdash sendo a

teologia certa participaccedilatildeo na ciecircncia de Deus38 uma vez que Deus quando Se conhece conhece tambeacutem as Suas obras39 pertence ao teoacutelogo sempre para entender melhor a Revelaccedilatildeo 40 e assim assemelhar a teologia menos imperfeitamente agrave ciecircncia de Deus conhecer tambeacutem as Suas obras41 E para conhecer as obras de Deus eacute oportuno que o teoacutelogo se valha das ciecircncias filosoacuteficas

37 PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico pp 293-294 [O itaacutelico eacute nosso] 38 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 3 ad 2 ldquo[] ut sic sacra doctrina sit velut quaedam impressio divinae scientiae quae est una et simplex omniumrdquo ldquoIsto faz com que esta ciecircncia apareccedila como impressatildeo da ciecircncia de Deus una e simples com relaccedilatildeo a tudordquo 39 Idem Ibidem I 1 4 C ldquo[] sicut et Deus eadem scientia se cognoscit et ea quae facitrdquo ldquo[] assim como Deus por uma mesma ciecircncia conhece a si proacuteprio e conhece suas obrasrdquo 40 Idem Ibidem I 1 3 ad 2 ldquoEt similiter ea quae in diversis scientiis philosophicis tractantur potest sacra doctrina una existens considerare sub una ratione inquantum scilicet sunt divinitus revelabiliardquo ldquoDa mesma forma a uacutenica ciecircncia sagrada pode considerar sob uma mesma razatildeo isto eacute como objetos de revelaccedilatildeo divina objetos tratados em ciecircncias filosoacuteficas diferentesrdquo 41 Idem Suma contra os gentios II IV 5 [876 b] ldquoEt sic est perfectior utpote Dei cognitioni similior qui seipsum cognoscens alia intueturrdquo ldquoE assim ela [a doutrina da feacute] eacute mais perfeita justamente por ser semelhante ao conhecimento de Deus que ao se conhecer vecirc as outras coisas em si mesmordquo

250 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Mas onde entra mdash nesta visatildeo de teologia mdash o discurso filosoacutefico no que tange especificamente agrave eacutetica 44 A FACE HUMANA DA TEOLOGIA TOMASIANA

Entre as criaturas o homem mdash enquanto pessoa mdash destaca-se como imagem e semelhanccedila de Deus tal como definimos este importante conceito (o de pessoa) no capiacutetulo anterior De fato ser pessoa eacute um atributo que pertence acima de tudo a Deus Tomemos um periacuteodo jaacute citado

Pessoa significa o que haacute de mais perfeito em toda natureza a saber o que subsiste em uma natureza racional Ora tudo o que diz perfeiccedilatildeo deve ser atribuiacutedo a Deus pois sua essecircncia conteacutem em si toda perfeiccedilatildeo Conveacutem portanto atribuir a Deus este nome pessoa Natildeo poreacutem da mesma maneira como se atribui agraves criaturas Seraacute de maneira mais excelente42

Ora se Deus se revelou aos homens por Suas criaturas e

entre estas criaturas o homem eacute a que eacute pessoa mdash atributo que pertence mormente a Deus mdash para entendermos o que este termo significa com maior amplitude importa que estudemos o homem mdash imagem e semelhanccedila de Deus mdash em sua natureza proacutepria isto eacute enquanto ser dotado de razatildeo e livre-arbiacutetrio Pois bem este preacircmbulo acerca do homem eacute tarefa da ldquofilosofia praacuteticardquo e deve integrar o labor do teoacutelogo Eacute assim que Tomaacutes abre a Prima Secundae da Summa Theologiae Voltemos a uma passagem jaacute citada

Afirma Damasceno que o homem eacute criado agrave imagem de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto

42 Idem Suma Teoloacutegica I 29 3 C ldquoRespondeo dicendum quod persona significat id quod est perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali natura Unde cum omne illud quod est perfectionis Deo sit attribuendum eo quod eius essentia continet in se omnem perfectionem conveniens est ut hoc nomen persona de Deo dicatur Non tamen eodem modo quo dicitur de creaturis sed excellentiori modo []rdquo

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de livre-arbiacutetrio e revestido por si de poder Apoacutes ter discorrido sobre o exemplar a saber Deus e sobre as coisas que procederam do poder voluntaacuterio de Deus deve-se considerar agora a sua imagem a saber o homem enquanto ele eacute o princiacutepio de suas accedilotildees possuindo livre-arbiacutetrio e domiacutenio sobre suas accedilotildees43

Observemos que o Aquinate soacute aparentemente afasta-se de

Deus quando trata do homem Na verdade Deus continua sendo a uacutenica razatildeo formal que daacute unidade a toda a sua sabedoria teoloacutegica Insistimos ocorre que para se entender a Revelaccedilatildeo de Deus mais amplamente na concepccedilatildeo do Aquinate cumpre entender a Sua criaccedilatildeo sobretudo o homem que eacute imagem e semelhanccedila de Deus Desta forma debruccedilar-se sobre o homem em si mesmo ajuda a amplificar o nosso entendimento do ser pessoa e a conhecer melhor por analogia Deus Carlos Josaphat assim define a teologia de Tomaacutes

Assim se constitui uma teologia antropoloacutegica Eacute o projeto audacioso e humilde de conhecimento do Misteacuterio de Deus enquanto se deixa vislumbrar no que haacute de mais sublime no ser humano na realidade e no dinamismo de seu espiacuterito Este eacute considerado analisado e discernido qual imagem menos improacutepria embora permaneccedila sempre infinitamente distante do Princiacutepio Primeiro e Exemplar da vida do conhecer e do amar 44

Deste modo ao teoacutelogo eacute conveniente conhecer o homem

na sua inteireza Eacute pois conveniente conhececirc-lo do ponto de vista da moral isto eacute conhecer as suas paixotildees e as suas accedilotildees enquanto estas satildeo virtuosas ou viciosas importa consideraacute-lo tambeacutem enquanto ser poliacutetico ou seja enquanto as suas accedilotildees satildeo louvaacuteveis

43 Idem Ibidem I-II Proacutelogo [O segundo itaacutelico eacute nosso] 44 JOSAPHAT Op Cit p 166 [O itaacutelico eacute nosso] NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 pp 75-76 ldquoO filoacutesofo alematildeo Ludwig Feuerbach (1804-1872) natildeo deixaria de ter uma ponta de razatildeo ao pretender que a verdade da teologia eacute a antropologia

252 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ou condenaacuteveis enfim eacute conveniente ainda conhecer a oratoacuteria para saber como escusar ou acusar um homem de forma reta

Deve-se dizer que a consideraccedilatildeo das circunstacircncias eacute objeto da moral da poliacutetica e da oratoacuteria Da moral enquanto nela se encontra ou eacute afastado o meio da virtude nos atos humanos e nas paixotildees Da poliacutetica e da oratoacuteria enquanto pelas circunstacircncias o ato torna-se louvaacutevel ou condenaacutevel escusaacutevel ou acusaacutevel Entretanto de modos diversos pois o que o orador persuade o poliacutetico julga Ao teoacutelogo a quem todas as outras artes servem pertence a consideraccedilatildeo das circunstacircncias de todos esses modos Assim com o moralista considera os atos virtuosos e viciosos e com o orador e o poliacutetico considera os atos enquanto merecem pena ou louvor45

Mas natildeo seria mais adequado conhecer a Deus pelo proacuteprio

Deus Sim mas aprouve ao proacuteprio Deus como temos dito revelar-Se a noacutes por meio das Suas criaturas a ponto de o Aquinate dizer que ldquo[] a humanidade de Cristo eacute o caminho pelo qual se vai agrave divindaderdquo46 De resto na perspectiva de Tomaacutes como tambeacutem jaacute notamos isto foi muito oportuno em razatildeo da debilidade do nosso intelecto que soacute se eleva ao inteligiacutevel atraveacutes de adminiacuteculos sensiacuteveis ldquo[] a origem do nosso conhecimento ateacute mesmo das coisas que transcendem os sentidos estaacute nos

45 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 7 2 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod consideratio circumstantiarum pertinet ad moralem et politicum et ad rhetorem Ad moralem quidem prout secundum eas invenitur vel praetermittitur medium virtutis in humanis actibus et passionibus Ad politicum autem et rhetorem secundum quod ex circumstantiis actus redduntur laudabiles vel vituperabiles excusabiles vel accusabiles Diversimode tamen nam quod rhetor persuadet politicus diiudicat Ad theologum autem cui omnes aliae artes deserviunt pertinent omnibus modis praedictis nam ipse habet considerationem de actibus virtuosis et vitiosis cum morali et considerat actus secundum quod merentur poenam vel praemium cum rhetore et politicordquo 46 Idem Compecircndio de Teologia I II 2 [O itaacutelico eacute nosso] ldquoNec mirum quia Christi humanitas via est qua ad divinitatem perveniturrdquo Na ediccedilatildeo biliacutengue traduz-se Idem Ibidem I 2 ldquoNatildeo eacute de admirar porque a humanidade de Cristo eacute o caminho pelo qual se chega agrave divindaderdquo Idem Suma Teoloacutegica I 2 ldquo[] tertio de Christo qui secundum quod homo via est nobis tendendi in Deumrdquo ldquo3 do Cristo que enquanto homem eacute para noacutes o caminho que leva a Deusrdquo [O itaacutelico eacute nosso]

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sentidosrdquo47 Em razatildeo disso pensamos eacute que Tomaacutes considera a humanidade de Cristo como um dos cernes da Revelaccedilatildeo cristatilde ldquo[] todo o conhecimento da feacute resume-se nestas duas verdades na divindade da Trindade e na humanidade de Cristordquo48 A partir desta loacutegica eacute mister estudarmos o homem tal como eacute em sua natureza proacutepria visto que isso nos ajudaraacute mdash ratificamos mdash a conhecermos melhor por analogia Deus que Se revelou a noacutes maximamente enquanto Se fez homem (Jo 1 14) Em outras palavras um correto entendimento do misteacuterio de Cristo passa por um reto conhecimento da natureza humana que ele assumiu49

47 Idem Suma Contra os Gentios I XII 8 [80] ldquoEt sic nostrae cognitionis origo in sensu est etiam de his quae sensum exceduntrdquo 48 Idem Compecircndio de Teologia I II 2 ldquoCirca haec ergo duo tota fidei cognitio versatur scilicet circa divinitatem Trinitatis et humanitatem Christirdquo 49 Sobre a grande relevacircncia filosoacutefica dos problemas levantados em torno da questatildeo teoloacutegica da Encarnaccedilatildeo indicamos o videocurso do filoacutesofo Alain de Libera Este estudioso em 2010 ministrou um curso no Istituto di Filosofia Applicata di Lugano intitulado Lrsquoidentitagrave personale nella filosofia medievale Nas dez liccedilotildees do curso ele demonstra com denodo e pormenorizadamente o quanto deve agraves controveacutersias cristoloacutegicas e trinitaacuterias dos padres gregos e latinos e depois agrave cristologia dos medievais mdash inclusive agrave de Tomaacutes de Aquino mdash o debate moderno e contemporacircneo sobre a identidade pessoal o sujeito a subjetividade o eu etc Aqui transcrevemos e depois traduzimos apenas a Apresentaccedilatildeo do curso LIBERA Alain de Lrsquoidentitagrave personale nella filosofia medievale Disponiacutevel em lthttpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismolidentita-personale-nella-filosofia-medievalegt ldquoLrsquoargomento generale del corso egrave il seguente I concetti il linguaggio teoretico i problemi filosofici dellrsquoidentitagrave non si possono capire senza riferirsi alla storia della teologia cristiana Cioegrave alle genealogie e a lrsquoarcheologia del soggetto e della soggettivitagrave della persona dellrsquoagente dellrsquoIo o dellrsquoEgo La prospettiva contemporanea dipende parzialmente dalle discussioni moderne vale a dire dalle discussioni della teoria lockeana dellrsquoidentitagrave personale questa teoria dipende essa stessa dalla discussione medievale dei problemi della persona di Cristo mdash ad esempio se la persona di Cristo sia composta se la natura umana sia stata unita al Verbo di Dio accidentalmente mdash e sopratutto dalla discussione dei problemi dellunitagrave di Cristo in rapporto alle operazioni Un altro problema teologico quello del battesimo dei gemelli siamesi viene studiato qui sulla base di una questione quodlibetale di Enrico di Gandavo (1281)rdquo ldquoO argumento geral do curso eacute o seguinte os conceitos a linguagem teoacuterica os problemas filosoacuteficos da identidade natildeo se podem compreender sem referimento agrave histoacuteria da teologia cristatilde Isto eacute agraves genealogias e agrave arqueologia do sujeito e da subjetividade da pessoa do agente do eu ou do ego A perspectiva contemporacircnea depende parcialmente das discussotildees modernas vale dizer das discussotildees da teoria lockeana da identidade pessoal esta mesma teoria depende das discussotildees medievais dos problemas da pessoa de Cristo mdash por exemplo se a pessoa de Cristo seja composta se a natureza humana teria sido unida ao Verbo de Deus acidentalmente mdash e sobretudo da discussatildeo dos problemas da unidade de Cristo em relaccedilatildeo agraves operaccedilotildees Outro problema teoloacutegico aquele do batismo dos gecircmeos siameses vem estudado aqui sobre a base de uma questatildeo quodlibetale de Henrique de Gand (1281)rdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa]

254 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Exatamente por isso Battista Mondin aponta para a riqueza do estudo do homem no Aquinate em muito devedor de uma conceptualidade tomada de Aristoacuteteles

Santo Tomaacutes poder ser chamado de humanista e precursor dos humanistas quer porque tem uma concepccedilatildeo altamente positiva do ser humano certamente muito mais positiva do que a dos seus contemporacircneos quer porque promoveu o retorno agrave cultura grega atraveacutes de uma revalorizaccedilatildeo substancial de Aristoacuteteles50

A nosso ver esta visatildeo teoloacutegica coligida acima torna a

teologia de Tomaacutes capaz de abrigar em si uma rede de conceitos estritamente racionais Por isso defendemos que inclusive no acircmbito da eacutetica haacute espaccedilo no Aquinate para pensarmos uma eacutetica filosoacutefica Contudo haacute mais razotildees para o exerciacutecio da racionalidade filosoacutefica na teologia de Tomaacutes 45 OS ldquoPREacuteSTIMOSrdquo DA FILOSOFIA Agrave TEOLOGIA

O Aquinate pensava que as verdades biacuteblicas inobstante fossem todas reveladas nem todas eram essencialmente reveladas senatildeo que algumas foram reveladas somente quanto ao modo pois muitos filoacutesofos chegaram a conhececirc-las Estas verdades mdash pondera o Frade Mendicante mdash embora em si mesmas admissiacuteveis agrave razatildeo foram oportunamente reveladas porque nem todos teriam capacidade tempo ou disposiccedilatildeo para alcanccedilaacute-las e mesmo entre aqueles que as alcanccedilaram natildeo as atingiram sem resquiacutecios de erros E como estatildeo elas relacionadas com a nossa salvaccedilatildeo nosso pensador conclui ldquoEacute necessaacuterio que o homem receba pela feacute natildeo soacute aquilo que supera a razatildeo mas tambeacutem o que pode ser

50 MONDIN Battista O Humanismo Filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino Trad Antocircnio Angonese Satildeo Paulo EDUSC 1998 p 7

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conhecido pela razatildeordquo51 E ainda ldquoAssim para que a salvaccedilatildeo chegasse aos homens com mais facilidade e maior garantia era necessaacuterio fossem eles instruiacutedos a respeito de Deus por uma revelaccedilatildeo divinardquo52

No entanto o fato de elas terem sido reveladas natildeo dispensa o teoacutelogo de propocirc-las demonstrativamente isto eacute de reconquistaacute-las com rigor filosoacutefico Assim mdash acresce Tomaacutes mdash ldquo[] a doutrina sagrada usa tambeacutem da autoridade dos filoacutesofos quando por sua razatildeo natural puderam atingir a verdaderdquo53 Demonstrar o que eacute passiacutevel de demonstraccedilatildeo eacute importante agrave proacutepria Revelaccedilatildeo porque eacute uma forma de persuadir ou refutar aqueles que pretendem contradizecirc-la ldquoDeve-se proceder na manifestaccedilatildeo da primeira ordem de verdades [as demonstraacuteveis] por razotildees demonstrativas pelas quais o adversaacuterio possa ser convencidordquo54 A bem da verdade o Aquinate aplicou este princiacutepio mdash certamente de modo diverso mdash nas duas sumas De todo modo torna-se claro que Tomaacutes abre as portas da teologia agrave filosofia com o intento de integrar esta uacuteltima agrave sua sabedoria teoloacutegica

E haacute mais Mesmo no campo das verdades indemonstraacuteveis pela razatildeo haacute espaccedilo para a filosofia porque embora natildeo possamos demonstraacute-las podemos ao menos demonstrar que aqueles que tentam refutaacute-las o fazem por razotildees falaciosas ou natildeo conclusivas Eacute pois mais uma janela que o Aquinate abre agrave filosofia em sua teologia Diz ele

51 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 2 4 C ldquoRespondeo dicendum quod necessarium est homini accipere per modum fidei non solum ea quae sunt supra rationem sed etiam ea quae per rationem cognosci possuntrdquo 52 Idem Ibidem I 1 1 C ldquoUt igitur salus hominibus et convenientius et certius proveniat necessarium fuit quod de divinis per divinam revelationem instruanturrdquo 53 Idem Ibidem I 1 8 ad 2 ldquoEt inde est quod etiam auctoritatibus philosophorum sacra doctrina utitur ubi per rationem naturalem veritatem cognoscere potuerunt []rdquo 54 Idem Suma Contra os Gentios I IX 2 [52] ldquoAd primae igitur veritatis manifestationem per rationes demonstrativas quibus adversarius convinci possit procedendum estrdquo

256 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

De todos esses raciociacutenios conclui-se que quaisquer razotildees que possam ser apresentadas contra as verdades ensinadas pela feacute natildeo procedem corretamente dos primeiros princiacutepios conhecidos por si mesmos e vindos da proacutepria natureza Donde natildeo possuiacuterem forccedila demonstrativa pois natildeo passam de razotildees provaacuteveis ou sofiacutesticas que por si mesmas datildeo motivo para serem destruiacutedas55

Aleacutem destas outras razotildees poderiam ser ainda elencadas

para estabelecerem que a teologia tomasiana abarca uma rica conceptualidade filosoacutefica mas cremos que as que compendiamos sejam suficientes para afirmarmos que natildeo eacute contraditoacuterio pensar que em Tomaacutes haja obras teoloacutegicas repletas de razotildees filosoacuteficas Lima Vaz concebe a sabedoria teoloacutegica do Aquinate como construiacuteda por dois focos

Eacute uma teologia que eacute gerada pela conjugaccedilatildeo de um duplo foco a ciecircncia de Deus comunicada pela revelaccedilatildeo (teologia) e a ciecircncia do homem alcanccedilada pela reflexatildeo autocircnoma (filosofia)56

Sobre a siacutentese teoloacutegico-filosoacutefica de Tomaacutes que resulta

desta conjugaccedilatildeo o mesmo autor remata

A originalidade de santo Tomaacutes consistiu em descobrir que o ponto de vista de Deus e o ponto de vista do homem podem realmente conjugar-se para dar origem a uma visatildeo de mundo coerente e harmoniosa57

55 Idem Ibidem I VII 7 [47 c] ldquoEx quo evidenter colligitur quaecumque argumenta contra fidei documenta ponantur haec ex principiis primis naturae inditis per se notis non recte procedere Unde nec demonstrationis vim habent sed vel sunt rationes probabiles vel sophisticae Et sic ad ea solvenda locus relinquiturrdquo 56 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Escritos de Filosofia I Problemas de Fronteira Rev Marcos Marcionilo Silvana Cobucci 3 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 p 32 57 Idem Ibidem

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Portanto se perguntaacutessemos ao mesmo estudioso qual seraacute a filosofia que encontraremos na teologia do Aquinate ele responderia

Eacute sem duacutevida uma filosofia autocircnoma Mas natildeo uma filosofia ldquoisoladardquo que evolui num plano paralelo ou mesmo divergente ao plano da teologia [] Uma filosofia a um soacute tempo autocircnoma e estruturalmente ligada agrave revelaccedilatildeo58

Deste modo retornamos agrave conclusatildeo sendo ldquoautocircnomardquo

podemos ler esta filosofia independentemente da teologia poreacutem como se encontra estruturalmente ligada agrave teologia devemos ter sempre presente mesmo lendo-a em sua inegaacutevel autonomia que ela se encontra integrada agrave teologia Acrescentariacuteamos apenas com Rovighi que esta leitura filosoacutefica autocircnoma de Tomaacutes eacute possiacutevel natildeo soacute em metafiacutesica mas tambeacutem em eacutetica

Mas assim como admitir a insuficiecircncia da metafiacutesica da theologia philosophica natildeo exclui que as verdades metafiacutesicas possam e devam ser justificadas racionalmente assim tambeacutem a insuficiecircncia da eacutetica filosoacutefica natildeo exime do dever de justificar racionalmente as proposiccedilotildees fundamentais da eacutetica59

Creio portanto que como falamos da filosofia de Tomaacutes de Aquino sem entrar por exemplo no discurso sobre a Trindade assim podemos falar da sua eacutetica sem falar das virtudes teologais60

58 Idem Ibidem pp 32-33 59 ROVIGHI Introduzione a Tommaso DrsquoAquino p 111 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoMa como lrsquoammettere lrsquoinsufficienza della metafisica della theologia philosophica non esclude che la veritagrave metafisiche possano e debbano essere giustificate razionalmente cosigrave lrsquoinsufficienza dellrsquoetica filosofica non esime dal dovere di giustificare razionalmente le proposizioni fondamentali dellrsquoeacuteticardquo 60 Idem Ibidem p 112 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCredo dunque che como abbiamo parlato della filosofia di Tommaso drsquoAquino senza entrare per esempio nel discorso sulla Trinitagrave cosigrave possiamo parlare della sua etica senza parlare delle virtugrave teologalirdquo

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Dito isso resta saber o que o Aquinate pretende ao adotar este modo de proceder em teologia A Summa Contra Gentiles faz-nos enxergar muito bem qual o objetivo do nosso pensador 46 O MODO DE PROCEDER DE TOMAacuteS

Esta Summa (1259 Paris mdash 12641265 Itaacutelia) que haacute muito deixou de ser considerada pela criacutetica apenas um manual para missionaacuterios hoje deve ser lida como uma obra pensada para natildeo cristatildeos vale dizer dirigida para que os cristatildeos pudessem debater com os natildeo cristatildeos61 Ora Tomaacutes propotildee nela algo muito semelhante mdash decerto natildeo de todo igual mdash ao que vimos Berti pensar ser o que confere agrave eacutetica de Aristoacuteteles uma atualidade que se impotildee vale lembrar um lugar onde prevaleccedila o que somente a razatildeo pode admitir Diz o Aquinate logo no capiacutetulo II do livro I

[] Porque entre os que erram alguns como os maometanos e os pagatildeos natildeo aceitam como noacutes a autoridade de algum texto das Escrituras pelo qual possam ser convencidos Por meio delas no entanto podemos disputar contra os judeus usando do Velho Testamento e contra os hereacuteticos usando do Novo Mas natildeo o podemos contra quem natildeo aceita nenhum dos dois Por esses motivos deve-se recorrer agrave razatildeo natural com a qual todos satildeo obrigados a concordar62

De fato os trecircs primeiros livros desta obra mdash dos quatro

que a constituem mdash tinham como proposta inicial valerem-se apenas de argumentos racionais demonstrativos e provaacuteveis sendo somente o livro quarto inteiramente dedicado agrave especulaccedilatildeo

61 TORRELL Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Sua pessoa e sua obra pp 122-125 62 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios I II 3 [11] [Os itaacutelicos satildeo nossos] ldquoSecundo quia quidam eorum ut Mahumetistae et Pagani non conveniunt nobiscum in auctoritate alicuius Scripturae per quam possint convinci sicut contra Iudaeos disputare possumus per vetus testamentum contra haereticos per novum Hi vero neutrum recipiunt Unde necesse est ad naturalem rationem recurrere cui omnes assentire cogunturrdquo

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das verdades essencialmente reveladas Eacute o que afirma o proacuteprio Tomaacutes

Pretendendo proceder nesta obra conforme o meacutetodo a que nos propusemos em primeiro lugar envidaremos esforccedilos para o esclarecimento daquela verdade professada pela feacute e investigada pela razatildeo apresentando argumentos demonstrativos e provaacuteveis alguns dos quais fomos buscar nos livros dos filoacutesofos e dos santos e pelos quais a verdade seja confirmada e o adversaacuterio confundido (1 I II e III)63

Porro comentando este passo da obra natildeo se exime de

dizer que tendo em vista os criteacuterios estabelecidos acima pelo autor a Contra Gentiles natildeo deixa de ser tambeacutem uma obra de cunho filosoacutefico

[] como exposiccedilatildeo da verdade da feacute catoacutelica a Suma eacute certamente uma obra teoloacutegica mas como o saacutebio eacute chamado a ilustrar essa verdade e defendecirc-la nos trecircs distintos modos antes lembrados ela eacute ao mesmo tempo tambeacutem uma obra de filosofia mdash natildeo em abstrato mas precisamente segundo os criteacuterios estabelecidos pelo proacuteprio Tomaacutes []64

Eacute certo que a Summa Theologiae natildeo adota a mesma forma

de proceder da Contra Gentiles mas algo segundo a nossa percepccedilatildeo prevalece nas duas quando Tomaacutes potildee-se a filosofar a argumentar como filoacutesofo eacute como filoacutesofo que ele se comporta65 E

63 Idem Ibidem I IX 4 [55] [Os itaacutelicos satildeo nossos] ldquoModo ergo proposito procedere intendentes primum nitemur ad manifestationem illius veritatis quam fides profitetur et ratio investigat inducentes rationes demonstrativas et probabiles quarum quasdam ex libris philosophorum et sanctorum collegimus per quas veritas confirmetur et adversarius convincaturrdquo 64 PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 117 65 Quando se trata de conhecer as verdades naturais Tomaacutes afirma que natildeo eacute necessaacuteria uma iluminaccedilatildeo divina sobrenatural mas somente a luz do intelecto Na verdade a doutrina da unidade do intelecto agente e possiacutevel proclama a autossuficiecircncia do conhecimento humano na sua ordem proacutepria Elimina a necessidade de um intelecto separado ldquodoador de formasrdquo (Avicena) e da iluminaccedilatildeo divina agostiniana TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 109 1 C ldquoSic igitur intellectus humanus habet aliquam formam scilicet ipsum intelligibile lumen quod est de se sufficiens ad quaedam intelligibilia cognoscenda ad ea scilicet in quorum notitiam per sensibilia

260 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino portar-se como filoacutesofo mesmo em uma obra teoloacutegica significa para o Aquinate ser capaz de dizer uma palavra que todos possam entender Disto decorre qual corolaacuterio espontacircneo que ser capaz de dizer uma palavra que todos possam compreender para Tomaacutes eacute tarefa que pertence tambeacutem ao teoacutelogo De posse destes conceitos que satildeo como que os prolegocircmenos pelos quais Aquino deu agrave sua teologia moral condiccedilotildees para comportar um lugar agrave meditaccedilatildeo filosoacutefica podemos passar a expor decerto natildeo toda a eacutetica mas ao menos os conceitos-chave que julgamos serem os pilares da eacutetica filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino

possumus devenire [] Non autem indiget ad cognoscendam veritatem in omnibus nova illustratione superaddita naturali illustrationi []rdquo ldquoDo mesmo modo o intelecto humano tem uma forma determinada isto eacute a luz inteligiacutevel que por si soacute eacute suficiente para conhecer algumas coisas inteligiacuteveis aquelas que podemos adquirir a partir das percepccedilotildees sensiacuteveis [] Mas uma nova iluminaccedilatildeo acrescentada agrave luz natural do intelecto natildeo eacute requerida para conhecer todas as espeacutecies de verdades []rdquo

Capiacutetulo V Toacutepicos da Eacutetica Filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino

Neste capiacutetulo como se deduz do proacuteprio tiacutetulo natildeo eacute nossa intensatildeo expor sistematicamente mas apenas visitar alguns toacutepicos da eacutetica de Tomaacutes O que tencionamos eacute definir os fundamentos desta eacutetica isto eacute aqueles conceitos pelos quais adentramos na concepccedilatildeo eacutetica do Aquinate E pensamos que estes conceitos basilares passam antes de tudo pela sua compreensatildeo de homem porque para Tomaacutes o agir segue o ser Destarte partindo da sua concepccedilatildeo de homem e de que a moral eacute o ser do homem mdash unidade entre alma e corpo mdash buscaremos traccedilar o que eacute virtude para o Aquinate e quais satildeo as virtudes que encabeccedilam a sua eacutetica sempre procurando tipificar com algumas aplicaccedilotildees praacuteticas estas virtudes Tentemos primeiramente definir o que eacute o homem para Aquino 51 O QUE Eacute O HOMEM

Para respondermos a esta questatildeo precisamos perceber com que alento Tomaacutes se esforccedila para pensar o homem como uma unidade substancial entre alma e corpo Comecemos por distinguir uniatildeo acidental de uniatildeo substancial A uniatildeo acidental eacute aquela que se daacute entre a substacircncia e os seus acidentes Nela a uniatildeo natildeo passa da existecircncia de uma entidade em outra Jaacute a uniatildeo substancial consiste na composiccedilatildeo de dois seres que tomados separadamente permanecem incompletos mas que unidos completam-se formando um soacute ser Ora a uniatildeo substancial eacute a que se daacute entre forma e mateacuteria eacute a uniatildeo existente entre alma e corpo1 Para Tomaacutes no homem em consequecircncia desta unidade substancial entre alma e corpo realiza-se uma uniatildeo tatildeo intriacutenseca entre as accedilotildees e o sujeito delas que os atos das suas faculdades

1 BOEHNER GILSON Histoacuteria Da Filosofia Cristatilde Desde as Origens ateacute Nicolau de Cusa p 468

262 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino (isto eacute das faculdades do sujeito da accedilatildeo) tanto das sensiacuteveis quanto das inteligiacuteveis satildeo chamados atos da pessoa e natildeo simplesmente das faculdades Assim quando saboreio uma maccedilatilde natildeo eacute o meu paladar que a saboreia mas sou eu quem por meio do meu paladar saboreia-a Quando quero fazer uma coisa natildeo eacute a minha vontade que quer mas sou eu quem quer realizar determinada accedilatildeo Do mesmo modo se o meu intelecto conhece algo natildeo eacute o meu intelecto que conhece simplesmente mas sou eu quem por meio do meu intelecto conhece2 Nos exemplos citados embora as accedilotildees sejam realizadas por um ldquoquerdquo elas devem ser atribuiacutedas e reduzidas a um ldquoquemrdquo ou seja por meio das faculdades eacute o sujeito a pessoa quem age3

Levando em consideraccedilatildeo a exposiccedilatildeo jaacute feita passemos a indagar o que levou Tomaacutes a natildeo se encontrar entre aqueles que sustentavam (o platonismo e a corrente dos agostinistas) que somente a forma entra na razatildeo da espeacutecie Acontece que para o Aquinate a razatildeo da espeacutecie eacute dada pela definiccedilatildeo E a definiccedilatildeo natildeo contempla apenas a forma mas tambeacutem a mateacuteria Assim nos seres naturais a mateacuteria tambeacutem eacute algo que os torna especiacuteficos Eacute claro que natildeo falamos aqui da mateacuteria assinalada que eacute princiacutepio

2 VAZ Henrique C de Lima Vaz Experiecircncia Miacutestica e Filosofia na Tradiccedilatildeo Ocidental Rev Cristina Peres Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000 p 12 ldquoA ordem que deve reinar no mundo das experiecircncias humanas supotildee evidentemente a unidade na diferenccedila do nosso ser segundo a qual em cada uma das nossas operaccedilotildees estaacute empenhada a unidade total do sujeito segundo o princiacutepio enunciado por Tomaacutes de Aquino lsquoNatildeo eacute o intelecto que entende mas o homem por meio do intelectorsquordquo [O itaacutelico eacute nosso] 3 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 3 8 C ldquoQuod autem venit in compositionem alicuius non est primo et per se agens sed magis compositum non enim manus agit sed homo per manum []rdquo ldquoOra o que entra como parte num composto natildeo eacute o que age primeiro e por si mesmo eacute antes o composto Assim natildeo eacute a matildeo que age eacute o homem por sua matildeo []rdquo BARROS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudioorgmcbarroshtmgt Acesso em 19082017 ldquoO homem natildeo eacute como os Anjos um ser puramente espiritual Tem um corpo material extenso composto de partes diferenciadas Esse corpo natildeo eacute um simples agregado acidental das partes que o compotildeem Uma observaccedilatildeo atenta da nossa maneira de ser convence-nos de que ele tem unidade substancial Sou eu por exemplo que me nutro sou eu que me movo sou eu que sinto eacute a mim que doacutei quando me magocirco na matildeo e natildeo agrave matildeo que magoei Satildeo meus todos os oacutergatildeos do meu corpo meus todos os atos que eles executam Sou eu que existo em mim mesmo plenamente eacute para a minha vida que estatildeo dispostas todas as partes do corpo sou no sentido que a palavra tem em metafiacutesica uma substacircnciardquo

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de individuaccedilatildeo nos seres mas da mateacuteria comum que se encontra em todos os seres de uma espeacutecie4 Aplicando estes princiacutepios ao homem podemos concluir que se natildeo eacute da razatildeo de homem ter esta alma esta carne e estes ossos faz parte da natureza humana ter alma carne e ossos5 Portanto a alma natildeo eacute o homem Diz Tomaacutes ldquoA alma [] natildeo eacute todo o homem minha alma natildeo sou eurdquo6 Noutra obra completa ldquo[] o homem natildeo se identifica nem com o seu corpo nem com a sua almardquo7 Entatildeo o que eacute o homem Responde o Aquinate ldquo[] o homem resulta da uniatildeo da alma com o corpordquo8 A natureza humana ldquo[] se mostra composta de alma e corpo []rdquo9

Mas compreendamos bem natildeo se trata de um ldquodualismordquo o homem eacute um todo uno que procede da uniatildeo substancial entre alma e corpo ldquo[] eacute necessaacuterio que da alma e do corpo se faccedila um todo uno e que natildeo sejam diversos quanto ao serrdquo10 Em outras

4 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 75 4 C ldquoUnde materia est pars speciei in rebus naturalibus non quidem materia signata quae est principium individuationis sed materia communisrdquo ldquoPor isso a mateacuteria eacute parte especiacutefica nas coisas naturais natildeo a mateacuteria assinalada que eacute o princiacutepio da individuaccedilatildeo mas a mateacuteria comumrdquo 5 Idem Ibidem ldquoSicut enim de ratione huius hominis est quod sit ex hac anima et his carnibus et his ossibus ita de ratione hominis est quod sit ex anima et carnibus et ossibusrdquo ldquoAssim como eacute da razatildeo deste homem ter esta alma estas carnes e estes ossos assim tambeacutem eacute da razatildeo de homem ter alma carnes e ossosrdquo 6 TOMAacuteS DE AQUINO Super I Cor 15 lect 2 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgc1vhtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] anima autem cum sit pars corporis hominis non est totus homo et anima mea non est egordquo Com a morte o homem deixa de ser homem em virtude da separaccedilatildeo de alma e corpo Idem Suma Teoloacutegica III 50 4 C ldquoPertinet autem ad veritatem mortis hominis vel animalis quod per mortem desinat esse homo vel animal mors enim hominis vel animalis provenit ex separatione animae quae complet rationem animalis vel hominisrdquo ldquoOra eacute na verdade proacuteprio da morte de um homem ou animal que pela morte deixe de ser homem ou animal pois a morte do homem ou do animal proveacutem da separaccedilatildeo da alma que eacute a que completa a razatildeo de animal ou de homemrdquo 7 Idem Suma Contra os Gentios II LXXXIX 16 [1752] ldquo[] non enim homo est suum corpus neque sua animardquo 8 Idem Ibidem II LVII 2 [1327] ldquoEx unione autem animae et corporis fit homordquo 9 Idem Ibidem II LVII 1 [1326] ldquo[] ex anima intellectuali et corpore videtur esse compositus []rdquo 10 Idem Ibidem II LVII 4 [1331] ldquo[] portet igitur ex anima et corpore unum fieri et quod non sint secundum esse diversardquo Idem Suma Teoloacutegica I 76 7 ad 3 ldquoSed inquantum anima est forma corporis non habet esse seorsum ab esse corporis sed per suum esse corpori unitur immediaterdquo

264 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino palavras natildeo eacute que exista de um lado a alma e de outro o corpo Para entendermos isso eacute preciso que recorramos agraves noccedilotildees basilares de ato e potecircncia pois para Tomaacutes ldquo[] a potecircncia e o ato dividem o ente e qualquer gecircnero de ente []rdquo11 Mas o que eacute ato e potecircncia A rigor natildeo se pode defini-los senatildeo descrevecirc-los Assim o ato designa o que jaacute eacute algo o jaacute realizado e acabado enquanto a potecircncia eacute o que ainda natildeo eacute algo mas tem a capacidade de vir a secirc-lo em ato Por exemplo a imagem a ser esculpida na madeira estaacute em potecircncia nela e a imagem jaacute esculpida estaacute em ato 12 Por isso quem diz potecircncia diz indeterminaccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo quem diz ato diz determinaccedilatildeo e perfeiccedilatildeo Na antropologia tomasiana o binocircmio ato e potecircncia eacute aplicado sob a formulaccedilatildeo de forma e mateacuteria A alma humana eacute a forma do corpo13 ela eacute o ato que daacute unidade e vida a um agregado de mateacuteria tornando-o um corpo humano14 Isto quer dizer que

ldquoMas enquanto forma do corpo a alma natildeo tem o ser separadamente do ser do corpo mas estaacute unida a ele por seu serrdquo 11 Idem Ibidem I 77 1 C ldquoPrimo quia cum potentia et actus dividant ens et quodlibet genus entis []rdquo 12 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia libri Metaphysicae Lib 9 5 n 3 In GARDEIL Henri-Dominique Iniciaccedilatildeo agrave filosofia de satildeo Tomaacutes de Aquino psicologia e metafiacutesica Trad Cristiane Negreiros Abbud Ayoub Carlos Eduardo de Oliveira 2 ed Satildeo Paulo 2013 p 480 ldquoSecundo ibi est autem determinat de actu Et primo ostendit quid sit actus Secundo quomodo diversimode dicatur in diversis ibi dicuntur autem actu Circa primum duo facit Primo ostendit quid est actus dicens quod actus est quando res est nec tamen ita est sicut quando est in potentia Dicimus enim in ligno esse imaginem Mercurii potentia et non actu antequam lignum sculpatur sed si sculptum fuit tunc dicitur esse in actu imago Mercurii in lignordquo ldquoAristoacuteteles mostra de iniacutecio o que eacute o ato O ato eacute quando uma coisa eacute natildeo entretanto como quando ela estaacute em potecircncia Dizemos com efeito que a imagem de Mercuacuterio estaacute em potecircncia e natildeo em ato na madeira antes que esta seja esculpida uma vez esculpida dizemos entatildeo que a imagem de Mercuacuterio estaacute em ato na madeirardquo 13 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 76 7 C ldquo[] tum etiam quia anima immediate corpori unitur ut forma materiaerdquo ldquo[] seja porque enfim a alma se une imediatamente ao corpo como a forma agrave mateacuteriardquo 14 Idem Ibidem I 76 1 C ldquoEt cum vita manifestetur secundum diversas operationes in diversis gradibus viventium id quo primo operamur unumquodque horum operum vitae est anima anima enim est primum quo nutrimur et sentimus et movemur secundum locum et similiter quo primo intelligimusrdquo ldquoOra eacute claro que o primeiro pelo qual um corpo vive eacute a alma E como a vida se revela pelas diversas atividades conforme os diversos graus dos seres vivos aquilo pelo qual por primeiro realizamos cada uma dessas operaccedilotildees vitais eacute a alma Ela eacute pois o primeiro pelo qual nos alimentamos e sentimos pelo qual nos movemos localmente e igualmente pelo qual por primeiro conhecemosrdquo

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sem alma natildeo haacute corpo haacute uma agregaccedilatildeo de mateacuteria em potecircncia para ser um corpo um cadaacutever por exemplo natildeo eacute mais um corpo humano A bem dizer natildeo existe a querela de como a alma se une ao corpo pois o corpo natildeo preexiste agrave alma nem a alma ao corpo sendo que eacute da essecircncia da alma estar unida ao corpo como seu ato15

Pois bem toda a eacutetica tomasiana eacute construiacuteda a partir desta rica concepccedilatildeo de natureza humana Para Tomaacutes a moral pressupotildee o natural Afirma ele ldquo[] as coisas naturais satildeo pressupostas pelas moraisrdquo16 Por isso em Aquino a moral eacute o ser do homem Daiacute ele dizer que a accedilatildeo humana ldquo[] nas coisas morais ordena-se para o fim comum de toda vida humanardquo17 De sorte que diferentemente das coisas relacionadas agrave arte onde o erro diz respeito apenas a um fim particular a saber agrave obra a ser feita em se tratando de moral mdash quando o erro implica o desvio do que eacute consoante a natureza humana enquanto tal mdash ldquo[] o

15 Idem Ibidem I 75 7 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod corpus non est de essentia animae sed anima ex natura suae essentiae habet quod sit corpori unibilisrdquo ldquoDeve-se dizer que o corpo natildeo eacute da essecircncia da alma mas a alma pela natureza da sua essecircncia eacute capaz de ser unir ao corpordquo BARROS Op Cit ldquoA alma e o corpo natildeo satildeo dois seres distintos satildeo princiacutepios distintos do mesmo ser Natildeo haacute dum lado a alma do outro um corpo com existecircncia separada da da alma Sem a alma natildeo haacute um corpo haacute a mateacuteria que compocircs ou vai compor um corpo humano mas dominada por outras formas constituindo outras substacircncias Um cadaacutever natildeo eacute um corpo humano eacute um agregado acidental de ceacutelulas sem unidade essencial Cada uma das suas partes segue a sua evoluccedilatildeo proacutepria independentemente das outras sem se subordinar a nenhuma lei que regule o conjunto Eacute a alma o princiacutepio de unidade do corpo humano eacute elemento indispensaacutevel agrave sua existecircncia como corpo a da sua uniatildeo ao corpo eacute questatildeo que natildeo existerdquo Para uma exposiccedilatildeo clara e sucinta sobre a questatildeo da uniatildeo alma e corpo veja ainda a intervenccedilatildeo de Franccedilois-Xavier Putallaz PUTALLAZ Franccedilois-Xavier Lunion de lacircme et du corps Disponiacutevel em lt httpswwwyoutubecomwatchv=mTZCN50VOXMampindex=5amplist=PLoF9tICw5xHMFru4TuxUim_cLoO6fHgphgt Para o nosso trabalho natildeo nos parece necessaacuterio colocar as questotildees filosoacuteficas de Deus (Ato Puro) que cria a alma humana e da imortalidade da alma que se baseia no fato de ela possuir um ato a saber a intelecccedilatildeo da essecircncia das coisas materiais que natildeo depende de nenhum oacutergatildeo corpoacutereo Acerca da imortalidade da alma pode ser consultada com proveito outra intervenccedilatildeo de Putallaz PUTALLAZ Franccedilois-Xavier Lacircme est-elle immortelle Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=NHMkPtA9v40ampindex=4amplist=PLoF9tICw5xHMFru4TuxUim_cLoO6fHgphgt 16 TOMAacuteS DE AQUINO A Caridade a Correccedilatildeo Fraterna e a Esperanccedila 3 1 ad 5 ldquoAd quintum dicendum quod naturalia praesupponuntur moralibus []rdquo 17 Idem Suma Teoloacutegica I-II 21 2 ad 2 ldquoIn moralibus autem ordinatur ad finem communem totius humanae vitaerdquo

266 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino homem eacute culpado enquanto homemrdquo18 Ora desta concepccedilatildeo resulta uma eacutetica encarnada ou melhor uma eacutetica que integra alma e corpo Seria o caso de primeiro definir formalmente as paixotildees depois o haacutebito em seguida a virtude e o viacutecio para finalmente passar aos exemplos Poreacutem por uma opccedilatildeo didaacutetica optamos comeccedilar por uma ldquofenomenologiardquo da vida eacutetica enquanto vida humana Soacute entatildeo passaremos a abordar formalmente as paixotildees o haacutebito e as virtudes cardeais 52 A EacuteTICA INTEGRADA DE TOMAacuteS

Como o homem natildeo eacute a sua alma mas um todo uno que resulta da uniatildeo entre alma e corpo o agir do homem mdash se quiser seguir o seu ser19 mdash se quiser ser um agir propriamente humano uma vez que ldquo[] o modo de agir de toda coisa eacute uma consequecircncia de seu modo de existirrdquo20 natildeo deveraacute levar em conta apenas a alma Sob este ponto de vista um homem que quisesse viver como um ldquoanjordquo mdash na concepccedilatildeo de Tomaacutes mdash longe de se tornar um ldquoanjordquo ou propriamente um homem tornar-se-ia ao contraacuterio algueacutem aqueacutem ou aleacutem do que deveria ser21 Ele cita Aristoacuteteles

18 Idem Ibidem ldquo[] culpatur homo inquantum homo []rdquo 19 Idem Suma Contra os Gentios III LXIX 10 [2450] ldquo[] o agir segue o ser em ato []rdquo 20 Idem Suma Teoloacutegica I 89 1 C ldquo[] modus operandi uniuscuiusque rei sequitur modum essendi ipsiusrdquo 21 A propoacutesito do estado da alma quando separada do corpo pela morte o Aquinate mesmo defendendo a imortalidade da alma afirma que enquanto estiver separada do corpo a alma se encontraraacute num estado antinatural Idem Ibidem I 89 1 C ldquo[] sed esse separatum a corpore est praeter rationem suae naturae []rdquo ldquoMas ser separada do corpo estaacute aleacutem de sua natureza []rdquo Noutro passo Tomaacutes eacute ainda mais incisivo Idem Ibidem I 118 3 C ldquoSi enim animae naturale est corpori uniri esse sine corpore est sibi contra naturam et sine corpore existens non habet suae naturae perfectionemrdquo ldquoSe para a alma eacute natural estar unida ao corpo estar sem o corpo seria contraacuterio a sua natureza sendo que uma alma sem corpo natildeo possuiria a perfeiccedilatildeo de sua naturezardquo Em outro lugar ele volta a dizer Idem Suma Contra os Gentios IV LXXIX 8 [4135] ldquoManifestum est etiam ex his quae in secundo dicta sunt quod anima corpori naturaliter unitur est enim secundum suam essentiam corporis forma Est igitur contra naturam animae absque corpore esse Nihil autem quod est contra naturam potest esse perpetuumrdquo ldquoDepreende-se tambeacutem do que no mesmo livro estaacute escrito que a alma se une naturalmente ao corpo pois eacute essencialmente forma do

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[] Como diz o livro I da Eacutetica O homem nesta vida precisa das coisas necessaacuterias para o corpo tanto para a accedilatildeo das potecircncias contemplativas como para a accedilatildeo das potecircncias ativas para as quais muitas outras coisas satildeo exigidas pelas quais se exercem as obras da potecircncia ativa22

Neste sentido a insensibilidade ou a ldquocastraccedilatildeordquo de todos

os prazeres eacute mdash para o Aquinate mdash um viacutecio contra a razatildeo

Deve-se dizer que como natildeo pode o homem usar a razatildeo sem recorrer agraves potecircncias sensitivas que precisam de oacutergatildeos corpoacutereos conforme se estabeleceu na I Parte segue-se daiacute a necessidade de que ele sustente o seu corpo para poder se servir da razatildeo Ora esse sustento realiza-se mediante accedilotildees que proporcionam prazer Natildeo pode entatildeo existir o bem da razatildeo no homem se ele se abstiver de todos os prazeres23

Tomaacutes afirma que natildeo se privar de certos prazeres como

alimentaccedilatildeo bebida etc eacute uma exigecircncia da natureza humana na medida em que estes e outros atos satildeo necessaacuterios para manter a sauacutede do homem Assim mdash exemplifica o Aquinate mdash natildeo eacute somente a embriaguez que eacute um viacutecio mas tambeacutem o seu contraacuterio Por exemplo ldquo[] se algueacutem se abstivesse conscientemente do vinho a ponto de prejudicar a proacutepria sauacutede

corpo Por conseguinte eacute contraacuterio agrave natureza da alma estar fora do corpordquo Ora se eacute contra a natureza e perfeiccedilatildeo da alma estar separada do corpo uma eacutetica que tolha a sensibilidade eacute contraacuteria agrave natureza e agrave perfeiccedilatildeo do homem Assim Tomaacutes insere o prazer inclusive corporal no acircmago da vida eacutetica distanciando-se por exemplo do estoicismo inobstante recorra a fontes estoicas Aliaacutes ele conhece e distingue o estoicismo da tradiccedilatildeo aristoteacutelica optando por esta uacuteltima Conhecida eacute a sua sentenccedila Idem Suma Teoloacutegica I-II 34 1 C ldquo[] nullus possit vivere sine aliqua sensibili et corporali delectatione []rdquo ldquo[] ningueacutem pode viver sem algum prazer sensiacutevel e corporal []rdquo 22 Idem Ibidem I-II 4 7 C ldquo[] ut dicitur in I Ethic Indiget enim homo in hac vita necessariis corporis tam ad operationem virtutis contemplativae quam etiam ad operationem virtutis activae ad quam etiam plura alia requiruntur quibus exerceat opera activae virtutisrdquo 23 Idem Ibidem II-II 142 1 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod quia ratione homo uti non potest sine sensitivis potentiis quae indigent organo corporali ut in primo habitum est necesse est quod homo sustentet corpus ad hoc quod ratione utatur Sustentatio autem corporis fit per operationes delectabiles Unde non potest esse bonum rationis in homine si abstineat ab omnibus delectabilibusrdquo

268 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino natildeo estaria isento de pecadordquo24 Outrossim natildeo eacute soacute a luxuacuteria que eacute um viacutecio mas tambeacutem o seu oposto Por exemplo o cocircnjuge que se recusar com pertinaacutecia a manter uma vida sexual ativa comete pecado25 De maneira que se abster de todo prazer necessaacuterio para o sustento da vida eacute um ato contra a razatildeo um viacutecio e os que o cometem natildeo satildeo ldquoascetasrdquo mas rudes ldquoDeve-se dizer que quem se absteacutem de todos os prazeres sem seguir a reta razatildeo como se eles por si mesmos lhe incutissem horror eacute insensiacutevel e ruderdquo26

Tudo o que contraria a ordem natural eacute vicioso Ora a natureza ajuntou o prazer agraves atividades necessaacuterias agrave vida do homem [] Portanto pecaria quem evitasse os prazeres sensiacuteveis a ponto de desprezar o que eacute necessaacuterio agrave conservaccedilatildeo da natureza contrariando assim a ordem natural Nisto consiste o viacutecio da insensibilidade27

Percebe-se bem esta integraccedilatildeo entre ldquoalma e corpordquo

tambeacutem na relaccedilatildeo que o Aquinate estabelece entre estudiosidade e eutrapelia Assim como o homem precisa de repouso para refazer as forccedilas do corpo que tem uma potecircncia limitada e natildeo pode

24 Idem Ibidem II-II 150 1 ad 1 ldquoEt tamen si quis scienter in tantum a vino abstineret ut naturam multum gravaret a culpa immunis non essetrdquo 25 Idem Ibidem II-II 153 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod oppositum luxuriae non contingit in multis eo quod homines magis sint proni ad delectationes Et tamen oppositum vitium continetur sub insensibilitate Et accidit hoc vitium in eo qui in tantum detestatur mulierum usum quod etiam uxori debitum non redditrdquo ldquoDeve-se dizer que o viacutecio oposto agrave luacutexuria natildeo eacute comum porque os homens satildeo mais inclinados agrave luacutexuria mesmo Entretanto esse viacutecio oposto existe Eacute a insensibilidade que estaacute presente naqueles que rejeitam de tal modo unir-se a uma mulher que natildeo cumprem sequer o deacutebito conjugalrdquo 26 Idem Ibidem II-II 152 2 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod ille qui abstinet ab omnibus delectationibus praeter rationem rectam quasi delectationes secundum se abhorrens est insensibilis sicut agricolardquo 27 Idem Ibidem II-II 142 1 C ldquoRespondeo dicendum quod omne illud quod contrariatur ordini naturali est vitiosum Natura autem delectationem apposuit operationibus necessariis ad vitam hominis Et ideo naturalis ordo requirit ut homo intantum huiusmodi delectationibus utatur quantum necessarium est saluti humanae vel quantum ad conservationem individui vel quantum ad conservationem speciei Si quis ergo intantum delectationem refugeret quod praetermitteret ea quae sunt necessaria ad conservationem naturae peccaret quasi ordini naturali repugnans Et hoc pertinet ad vitium insensibilitatisrdquo

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trabalhar sem parar assim tambeacutem a alma por possuir uma capacidade limitada natildeo se pode entregar ininterruptamente agraves operaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias sem descanso algum28 Aleacutem disso nas atividades racionais natildeo eacute somente a alma que se desgasta mas tambeacutem o corpo Com efeito a potecircncia intelectiva se serve das potecircncias sensitivas que operam por meio dos oacutergatildeos corporais para conhecer29 Ora os bens sensiacuteveis satildeo conaturais ao homem30 Por isso abstrair-se deles gera cansaccedilo Assim sendo do mesmo modo que o corpo se desgasta quando se prolonga em atividades superiores tambeacutem a alma agrave medida que se eleva acima das coisas sensiacuteveis pela operaccedilatildeo da razatildeo eacute acometida por uma espeacutecie de ldquofadiga psiacutequicardquo decorrente tanto do exerciacutecio da razatildeo especulativa quanto do da razatildeo praacutetica E esta fadiga passa a ser ainda maior quando a alma se dedica agrave contemplaccedilatildeo pois enquanto contempla ela se afasta sobremaneira das coisas sensiacuteveis31 De mais a mais da mesma maneira que a fadiga corporal desaparece pelo repouso corporal a fadiga mental pelo

28 Idem Ibidem II-II 168 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut homo indiget corporali quiete ad corporis refocillationem quod non potest continue laborare propter hoc quod habet finitam virtutem quae determinatis laboribus proportionatur ita etiam est ex parte animae cuius etiam est virtus finita ad determinatas operationes proportionata []rdquo ldquoAssim como o homem precisa de repouso para refazer as forccedilas do corpo que natildeo pode trabalhar sem parar pois tem resistecircncia limitada proporcional a determinadas tarefas assim tambeacutem a alma cuja capacidade tambeacutem eacute limitada e proporcional a determinadas operaccedilotildeesrdquo 29 Idem Ibidem ldquo[] quando ultra modum suum in aliquas operationes se extendit laborat et ex hoc fatigatur praesertim quia in operationibus animae simul etiam laborat corpus inquantum scilicet anima etiam intellectiva utitur viribus per organa corporea operantibusrdquo ldquoPortanto quando realiza certas atividades superiores agrave sua capacidade ela se desgasta e se cansa sobretudo porque nessas atividades o corpo se consome juntamente pois a proacutepria alma intelectiva se serve de potecircncias que operam por meio dos oacutergatildeos corporaisrdquo 30 Idem Ibidem ldquoSunt autem bona sensibilia connaturalia hominirdquo ldquoOra os bens sensiacuteveis satildeo conaturais ao homemrdquo 31 Idem Ibidem ldquoEt ideo quando anima supra sensibilia elevatur operibus rationis intenta nascitur exinde quaedam fatigatio animalis sive homo intendat operibus rationis practicae sive speculativae Magis tamen si operibus contemplationis intendat quia per hoc magis a sensibilibus elevatur []rdquo ldquoPor isso quando a alma se eleva sobre o sensiacutevel para se dedicar a atividades racionais gera-se aiacute certa fadiga psiacutequica seja nas atividades da razatildeo praacutetica seja nas da razatildeo especulativa Mas a fadiga eacute maior quando o homem se entrega agrave atividade contemplativa porque eacute assim que ele se eleva ainda mais sobre as coisas sensiacuteveis []rdquo

270 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino repouso mental E o repouso mental acontece no que eacute deleitaacutevel Donde ser necessaacuterio reiteramos para o bem da proacutepria atividade racional buscar o remeacutedio para a fadiga da alma e do corpo em algum prazer que afrouxe o esforccedilo do estudo racional32 E esta espeacutecie de prazer que dilata a alma e descansa o corpo ambos riacutegidos pela intensa atividade racional chama-se divertimento ou recreaccedilatildeo 33 Acentua Tomaacutes que estas recreaccedilotildees satildeo sempre necessaacuterias de quando em quando tendo em vista o repouso da alma e do corpo34 Mais do que isto como jaacute acenamos acima este tipo de divertimento que relaxa a alma e o corpo para o Aquinate eacute uma virtude tanto quanto o eacute a estudiosidade Aristoacuteteles chama esta virtude eutrapelia E quem pratica quando necessaacuterio estas recreaccedilotildees eacute virtuoso e pode ser chamado eutrapeacutelico porque consegue converter atos e palavras em diversatildeo repousante35 Por

32 Idem Ibidem ldquoSicut autem fatigatio corporalis solvitur per corporis quietem ita etiam oportet quod fatigatio animalis solvatur per animae quietem Quies autem animae est delectatio [] Et ideo oportet remedium contra fatigationem animalem adhibere per aliquam delectationem intermissa intentione ad insistendum studio rationisrdquo ldquoOra assim como a fadiga corporal desaparece pelo repouso do corpo assim tambeacutem eacute preciso que o cansaccedilo mental se dissipe pelo repouso mental O repouso da mente eacute o prazer [] Daiacute a necessidade de buscar remeacutedio agrave fadiga da alma em algum prazer afrouxando o esforccedilo do labor mentalrdquo 33 Idem Ibidem ldquoHuiusmodi autem dicta vel facta in quibus non quaeritur nisi delectatio animalis vocantur ludicra vel iocosardquo ldquoEssas palavras e accedilotildees nas quais natildeo se busca senatildeo o prazer da alma chamam-se divertimentos ou recreaccedilotildeesrdquo Idem Suma Contra os Gentios III XXV 7 [2063] ldquoNam etiam ipsae actiones ludicrae quae videntur absque fine fieri habent aliquem finem debitum scilicet ut per eas quodammodo mente relevati magis simus postmodum potentes ad studiosas operationes []rdquo ldquoAssim eacute que as proacuteprias accedilotildees luacutedicas que parecem natildeo se dirigir para um fim determinado tecircm o seu fim devido a saber que por meio delas a mente se distraia e apoacutes possa o homem estar mais apto para operaccedilotildees mais difiacuteceisrdquo 34 Idem Suma Teoloacutegica II-II 168 2 C ldquoEt ideo necesse est talibus interdum uti quasi ad quandam animae quietemrdquo ldquoLanccedilar matildeo delas de quando em quando eacute uma necessidade para o descanso da almardquo 35 Idem Ibidem II-II 168 2 C ldquoHabitus autem secundum rationem operans est virtus moralis Et ideo circa ludos potest esse aliqua virtus quam philosophus eutrapeliam nominat Et dicitur aliquis eutrapelus a bona versione quia scilicet bene convertit aliqua dicta vel facta in solatiumrdquo ldquoPortanto pode haver uma virtude que se ocupe com os jogos virtude que o Filoacutesofo denomina lsquoeutrapeliarsquo E quem a pratica eacute chamado de lsquoeutrapeacutelicorsquo ou de lsquojeito bomrsquo porque facilmente ajeita palavras e atos em diversatildeo repousanterdquo Tomaacutes fala ainda que sendo as accedilotildees luacutedicas necessaacuterias agrave vida aqueles que fazem do luacutedico uma profissatildeo a saber os comediantes desde que natildeo faltem com o decoro devem ser respeitados e subsidiados pois ganham a vida honestamente Idem Ibidem II-II 168 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod sicut dictum est ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae Ad omnia autem quae sunt utilia conversationi humanae deputari possunt aliqua

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outro lado quem natildeo brinca natildeo conta nenhuma piada e natildeo gosta de quem o faccedila natildeo eacute aos olhos de Tomaacutes um ldquointelectualrdquo antes atenta contra a virtude da estudiosidade pois insiste em permanecer e fazer com que os outros permaneccedilam enrijecidos pelo cansaccedilo Trata-se pois de uma pessoa dura e mal-educada

Nas accedilotildees humanas tudo o que vai contra a razatildeo eacute vicioso Ora eacute contra a razatildeo ser um peso para os outros natildeo lhes proporcionando por exemplo nenhum prazer e impedindo o prazer deles [] Ora os que se privam de toda diversatildeo nem eles dizem pilheacuterias e satildeo molestos aos que as dizem natildeo aceitando brincadeiras normais dos outros E por isso tais pessoas satildeo viciosas ldquoduras e mal-educadasrdquo como diz o Filoacutesofo36

Mesmo os que se dedicam agrave contemplaccedilatildeo das coisas

divinas e que devem ser louvados por conseguirem abster-se de muitos prazeres natildeo se podem abster de todos os prazeres Por exemplo o viacutecio da aciacutedia mdash que tolhe a contemplaccedilatildeo mdash eacute causado por um jejum excessivo

Assim toda deficiecircncia corporal por si mesma dispotildee agrave tristeza por isso os que jejuam quando pelo meio-dia comeccedilam a sentir

officia licita Et ideo etiam officium histrionum quod ordinatur ad solatium hominibus exhibendum non est secundum se illicitum nec sunt in statu peccati dummodo moderate ludo utantur idest non utendo aliquibus illicitis verbis vel factis ad ludum et non adhibendo ludum negotiis et temporibus indebitis [] Unde illi qui moderate eis subveniunt non peccant sed iusta faciunt mercedem ministerii eorum eis attribuendordquo ldquoDeve-se dizer que na vida humana o jogo eacute uma necessidade Ora a tudo o que serve agrave existecircncia humana correspondem algumas ocupaccedilotildees honestas entre as quais a dos comediantes Destinada a distrair as pessoas esta profissatildeo nada tem em si de iliacutecito nem vivem em pecado os comediantes se agirem com moderaccedilatildeo ou seja sem palavras ou accedilotildees iliacutecitas nem levando na brincadeira assuntos e situaccedilotildees inadequadas para isso [] Por isso os que os subsidiam razoavelmente natildeo pecam mas procedem com justiccedila recompensando-lhes o serviccedilordquo 36 Idem Ibidem II-II 168 4 C ldquoRespondeo dicendum quod omne quod est contra rationem in rebus humanis vitiosum est Est autem contra rationem ut aliquis se aliis onerosum exhibeat puta dum nihil delectabile exhibet et etiam delectationes aliorum impedit [] Illi autem qui in ludo deficiunt neque ipsi dicunt aliquod ridiculum et dicentibus molesti sunt quia scilicet moderatos aliorum ludos non recipiunt Et ideo tales vitiosi sunt et dicuntur duri et agrestes ut philosophus dicit in IV Ethicrdquo

272 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

a falta do alimento e satildeo fustigados pelo ardor do sol sofrem mais os assaltos da aciacutedia37

O Aquinate natildeo pestaneja em afirmar que a proacutepria razatildeo

exige que o seu uso seja amainado de quando em quando Daiacute ele dizer que se o sexo dentro do casamento fosse pecaminoso mdash como alguns queriam mdash soacute porque ele amaina por algum tempo o uso da razatildeo tambeacutem teriacuteamos de dizer que dormir eacute um pecado pois durante o sono o uso da razatildeo tambeacutem eacute arrefecido Por conseguinte por mais paradoxal que possa parecer estatildeo de acordo com a razatildeo mesmo aqueles atos que de vez em quando afrouxam a sua atividade

[] O prazer do ato conjugal embora se decirc em algo que estaacute conforme agrave razatildeo impede o exerciacutecio dela por causa da mudanccedila corporal que o acompanha Mas nem por isso segue-se uma maliacutecia moral como no sono que impede o exerciacutecio da razatildeo e natildeo eacute moralmente mau se for tomado de acordo com a razatildeo pois a proacutepria razatildeo tem como proacuteprio que o seu uso seja interrompido de vez em quando38

E o ato veneacutereo natildeo eacute querido apenas e tatildeo somente por

causa da procriaccedilatildeo O gozo que se daacute no coito aponta o Aquinate natildeo eacute contraacuterio agrave razatildeo e consequentemente eacute conforme a virtude da temperanccedila

Deve-se dizer que natildeo se mede o meio-termo da virtude quantitativamente mas pelo seu ajustamento com a reta razatildeo

37 Idem Ibidem II-II 35 1 ad 2 ldquoOmnis autem corporalis defectus de se ad tristitiam disponit Et ideo ieiunantes circa meridiem quando iam incipiunt sentire defectum cibi et urgeri ab aestibus solis magis ab acedia impugnanturrdquo 38 Idem Ibidem I-II 34 1 ad 1 [O itaacutelico eacute nosso] ldquo[] sicut in concubitu coniugali delectatio quamvis sit in eo quod convenit rationi tamen impedit rationis usum propter corporalem transmutationem adiunctam Sed ex hoc non consequitur malitiam moralem sicut nec somnus quo ligatur usus rationis moraliter est malus si sit secundum rationem receptus nam et ipsa ratio hoc habet ut quandoque rationis usus intercipiaturrdquo

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Por isso o intenso prazer gozado no ato sexual feito segundo a reta razatildeo natildeo contaria o meio-termo da virtude39

Mesmo a ldquosensualidaderdquo entre os cocircnjuges natildeo pode ser

vista como algo antinatural Com efeito eacute da natureza humana o se vestir com requinte 40 Por isso nada impede que as esposas procurem agradar ao esposo adornando-se Desde que natildeo haja excesso como o despudor e a falta de recato isso eacute ateacute mesmo aconselhaacutevel pois natildeo cuidar de si mdash e isto implica tambeacutem natildeo cuidar de manter a beleza com a qual a natureza nos afortunou mdash tambeacutem eacute um excesso um viacutecio

Cipriano fala da mesma coisa mas natildeo proiacutebe agraves mulheres casadas que se arrumem para agradar aos esposos a fim de natildeo lhes dar ocasiatildeo de pecarem com outras [] Entende-se por aiacute que o adorno feminino soacutebrio e moderado natildeo eacute proibido mas o exagerado despudorado e indecente41

Importa contudo considerar que natildeo eacute a mesma coisa fingir uma beleza que natildeo se tem e esconder um defeito proveniente de alguma causa como uma doenccedila ou de outra coisa qualquer Neste caso nada haacute de errado []42

39 Idem Ibidem II-II 153 2 C ldquoAd secundum dicendum quod sicut supra dictum est medium virtutis non attenditur secundum quantitatem sed secundum quod convenit rationi rectae Et ideo abundantia delectationis quae est in actu venereo secundum rationem ordinato non contrariatur medio virtutisrdquo 40 Idem Ibidem II-II 169 1 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod huiusmodi exterior cultus indicium quoddam est conditionis humanaerdquo 41 Idem Ibidem II-II 169 2 ad 1 ldquoIn quo etiam casu loquitur Cyprianus non autem prohibet mulieribus coniugatis ornari ut placeant viris ne detur eis occasio peccandi cum aliis [] per quod datur intelligi quod sobrius et moderatus ornatus non prohibetur mulieribus sed superfluus et inverecundus et impudicusrdquo 42 Idem Ibidem II-II 169 2 ad 2 ldquoSciendum tamen quod aliud est fingere pulchritudinem non habitam et aliud est occultare turpitudinem ex aliqua causa provenientem puta aegritudine vel aliquo huiusmodi Hoc enim est licitum []rdquo Tomaacutes tem uma palavra inclusive para a ldquoinduacutestria de cosmeacuteticosrdquo de seu tempo Segundo ele eacute uma profissatildeo digna aquela que decorre de uma necessidade natural Ora eacute natural agrave esposa procurar agradar ao marido Logo todos os produtos que favoreccedilam isso desde que natildeo sejam indecentes natildeo satildeo iliacutecitos Idem Ibidem II-II 170 2 ad 4 ldquoQuia ergo mulieres licite se possunt ornare vel ut conservent decentiam sui status vel etiam aliquid superaddere ut placeant viris consequens est quod artifices talium ornamentorum non peccant in

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Podemos observar que tambeacutem nas coisas mais corriqueiras Tomaacutes enxerga a uniatildeo entre alma e corpo Diz ele que ldquoA tristeza entre todas as paixotildees da alma eacute a mais nociva ao corpordquo 43 Mas o que ldquocurardquo a tristeza Tomaacutes chega a ser redundante ao dizer que o sorriso mdash aumentando a alegria mdash tende a afastar a tristeza ldquoPor isso os risos e outros efeitos da alegria a aumentam []rdquo44 Outrossim eacute interessante dar-se conta de que Frei Tomaacutes natildeo recorre ao expediente da oraccedilatildeo quando se trata de espantar a tristeza mas ao prazer

Entatildeo como qualquer repouso do corpo traz remeacutedio a qualquer fadiga provinda de qualquer causa natildeo natural assim tambeacutem todo prazer eacute remeacutedio que alivia qualquer tristeza seja qual for sua origem45

O importante eacute notar aqui mdash e em todos os exemplos mdash

como o Aquinate interliga alma e corpo estabelecendo entre eles uma verdadeira unidade A tristeza por exemplo eacute uma ldquopaixatildeo da almardquo No entanto como dito acima nada eacute mais nocivo ao corpo Por isso embora a tristeza seja uma ldquopaixatildeo da almardquo a sua cura pode estar num sorriso ou seja num gesto facial porque alma e corpo estatildeo em sinergia De resto saber-se amado alivia a tristeza porque causa prazer Ora sabemos que somos amados por nossos amigos quando percebemos que eles se entristecem conosco Assim os amigos mdash a sua companhia e conversa mdash tambeacutem nos

usu talis artis nisi forte inveniendo aliqua superflua et curiosardquo ldquoPor conseguinte como as mulheres podem se enfeitar licitamente para conservar sua dignidade pessoal ou tambeacutem para acrescentar algo mais que agrade ao marido segue-se que os fabricantes de tais produtos natildeo pecam excercendo esse mister salvo se vierem a inventar novidades exageradas e estranhasrdquo 43 Idem Ibidem I-II 37 4 C ldquoRespondeo dicendum quod tristitia inter omnes animae passiones magis corpori nocetrdquo 44 Idem Ibidem I-II 38 2 ad 2 ldquoEt ideo per risum et alios effectus laetitiae augetur laetitia []rdquo 45 Idem Ibidem I-II 38 1 C ldquoSicut igitur quaelibet quies corporis remedium affert contra quamlibet fatigationem ex quacumque causa innaturali provenientem ita quaelibet delectatio remedium affert ad mitigandam quamlibet tristitiam ex quocumque procedatrdquo

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ajudam a sair da tristeza porque dividem o fardo dela conosco Estas razotildees satildeo coligidas por Tomaacutes

A primeira eacute que como eacute proacuteprio da tristeza acabrunhar e isso tem razatildeo de um certo peso do qual o que estaacute acabrunhado procura aliviar-se Quando algueacutem vecirc os outros contristados pela tristeza que sente imagina que aquele peso esteja sendo dividido com outros que se esforccedilam para aliviaacute-lo dele e assim suporta melhor o peso da tristeza o que acontece com os carregadores de pesos materiais mdash A segunda razatildeo a melhor eacute que pelo fato de os amigos se entristecerem com ele percebe que ele eacute amado por eles o que eacute deleitaacutevel como se disse Portanto jaacute que todo prazer alivia a tristeza como tambeacutem se disse acima segue-se que o amigo compassivo alivia a tristeza46

Quando natildeo dar lugar agraves laacutegrimas e se permitir ficar triste

tambeacutem pode ser um ldquosanto remeacutediordquo contra a tristeza O Frade de Roccasecca acreditava que seguir os atos proacuteprios de cada momento como rir quando se estaacute alegre chorar quando se estaacute triste ou gemer quando se estaacute doente eacute sempre agradaacutevel e mitiga as dores

Porque a accedilatildeo que conveacutem ao homem segundo sua disposiccedilatildeo do momento eacute sempre agradaacutevel O choro e os gemidos satildeo accedilotildees que convecircm aos que estatildeo tristes ou doentes Por isso se tornarm deleitaacuteveis para eles Como todo prazer alivia a tristeza ou dor de

46 Idem Ibidem I-II 38 3 C ldquoQuarum prima est quia cum ad tristitiam pertineat aggravare habet rationem cuiusdam oneris a quo aliquis aggravatus alleviari conatur Cum ergo aliquis videt de sua tristitia alios contristatos fit ei quasi quaedam imaginatio quod illud onus alii cum ipso ferant quasi conantes ad ipsum ab onere alleviandum et ideo levius fert tristitiae onus sicut etiam in portandis oneribus corporalibus contingit Secunda ratio et melior est quia per hoc quod amici contristantur ei percipit se ab eis amari quod est delectabile ut supra dictum est Unde cum omnis delectatio mitiget tristitiam sicut supra dictum est sequitur quod amicus condolens tristitiam mitigetrdquoIdem Ibidem I-II 38 3 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod in utroque amicitia manifestatur scilicet et quod congaudet gaudenti et quod condolet dolentirdquo ldquoPortanto deve-se dizer que a amizade se manifesta nos dois casos quando se alegra com quem se alegra e quando se compadece com quem padecerdquo

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certo modo como foi dito segue-se que pelo choro e pelos gemidos se alivia a tristeza47

E quando natildeo haacute mais o que se fazer banhar-se e dormir

pode ser um lenitivo contra a tristeza e certas doenccedilas Um opositor levanta a seguinte objeccedilatildeo ldquoCom efeito a tristeza se localiza na alma Ora o sono e o banho pertencem ao corpo Logo nada podem fazer para aliviar a tristezardquo48 Ante esta sentenccedila mdash tipicamente ldquodualistardquo mdash Tomaacutes responde ldquo[] deve-se dizer que a devida disposiccedilatildeo do corpo enquanto eacute sentida causa prazer e consequentemente alivia a tristezardquo49 No Sed Contra o Aquinate cita Agostinho que alude ao fato de que o corpo mdash e os prazeres que a ele se referem mdash estatildeo em iacutentima relaccedilatildeo com o bem-estar da alma

Agostinho diz ldquoEu ouvia dizer que a palavra banho vem de que expulsa a ansiedade da almardquo E mais adiante ldquoDormi e acordei e me encontrei que boa parte de minha dor estava aliviadardquo50

Os exemplos poderiam continuar mas julgamos que estes

sejam suficientes para atestar como o Boi Mudo da Siciacutelia pensa a vida humana segundo a virtude como constituiacuteda por uma espeacutecie

47 Idem Ibidem I-II 38 2 C ldquoSecundo quia semper operatio conveniens homini secundum dispositionem in qua est sibi est delectabilis Fletus autem et gemitus sunt quaedam operationes convenientes tristato vel dolenti Et ideo efficiuntur ei delectabiles Cum igitur omnis delectatio aliqualiter mitiget tristitiam vel dolorem ut dictum est sequitur quod per planctum et gemitum tristitia mitigeturrdquo Idem Ibidem ldquoEt propter hoc quando homines qui sunt in tristitiis exterius suam tristitiam manifestant vel fletu aut gemitu vel etiam verbo mitigatur tristitiardquo ldquoAssim quando os homens que estatildeo na tristeza a manifestam externamente por choro ou gemido ou mesmo por palavras a tristeza fica mitigadardquo 48 Idem Ibidem I-II 38 5 1 ldquoPraeterea idem effectus non videtur causari ex contrariis causis Sed huiusmodi cum sint corporalia repugnant contemplationi veritatis quae est causa mitigationis tristitiae ut dictum est Non ergo per huiusmodi tristitia mitigaturrdquo 49 Idem Ibidem I-II 38 5 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod ipsa debita corporis dispositio inquantum sentitur delectationem causat et per consequens tristitiam mitigatrdquo 50 Idem Ibidem I-II 38 5 SC ldquoSed contra est quod Augustinus dicit IX Confess audieram balnei nomen inde dictum quod anxietatem pellat ex animo et infra dormivi et evigilavi et non parva ex parte mitigatum inveni dolorem meumrdquo

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de simbiose entre alma e corpo que se perfaz somente quando alma e corpo interagem como um todo uno Eacute apenas tendo bem presente esta conjugaccedilatildeo que podemos abordar as virtudes Antes poreacutem jaacute eacute tempo de falarmos especificamente sobre as paixotildees pois as virtudes morais natildeo tecircm outra tarefa senatildeo comedi-las 53 AS PAIXOtildeES DA ALMA

Por paixatildeo entende-se aqui toda mudanccedila corporal decorrente do apetite sensiacutevel mdash que definiremos formalmente no proacuteximo toacutepico mdash o qual se desdobra em apetite concupisciacutevel e irasciacutevel51 O concupisciacutevel considera o bem absolutamente e a sua primeira paixatildeo eacute o amor que eacute certa complacecircncia no bem segue-se ao amor o seu contraacuterio ou seja o oacutedio ou repugnacircncia ao mal oposto52 Se o bem estaacute ausente o amor daacute lugar ao desejo ou concupiscecircncia assim como o oacutedio se o mal estaacute ausente daacute lugar agrave fuga ou aversatildeo53 Se o bem estaacute presente haacute o termo do apetite que estaacute no prazer ou alegria sendo a alegria que eacute como

51 Idem Ibidem I-II 22 3 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut iam dictum est passio proprie invenitur ubi est transmutatio corporalis Quae quidem invenitur in actibus appetitus sensitivi []rdquo ldquoComo jaacute dito existe propriamente paixatildeo onde haacute transmutaccedilatildeo do corpo e esta se encontra nos atos do apetite sensiacutevel []rdquo 52 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoBonum ergo primo quidem in potentia appetitiva causat quandam inclinationem seu aptitudinem seu connaturalitatem ad bonum quod pertinet ad passionem amoris Cui per contrarium respondet odium ex parte malirdquo ldquoDesse modo o bem causa primeiramente na potecircncia apetitiva uma certa inclinaccedilatildeo ou aptidatildeo ou conaturalidade para o bem e isso pertence agrave paixatildeo do amor ao qual por contrariedade corresponde o oacutedio por parte do malrdquo Idem Ibidem I-II 29 1 C ldquoSicut autem omne conveniens inquantum huiusmodi habet rationem boni ita omne repugnans inquantum huiusmodi habet rationem mali Et ideo sicut bonum est obiectum amoris ita malum est obiectum odiirdquo ldquoMas como tudo o que eacute conveniente enquanto tal tem razatildeo de bem do mesmo modo tudo o que eacute repugnante enquanto tal tem natureza de mal Portanto assim como o bem eacute objeto do amor do mesmo modo o mal eacute objeto do oacutediordquo Idem Ibidem I-II 29 2 C ldquoUnde necesse est quod amor sit prior odio et quod nihil odio habeatur nisi per hoc quod contrariatur convenienti quod amaturrdquo ldquoLogo eacute necessaacuterio que o amor seja anterior ao oacutedio e que soacute se odeie o que eacute contraacuterio ao bem conveniente que se amardquo 53 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoSecundo si bonum sit nondum habitum dat ei motum ad assequendum bonum amatum et hoc pertinet ad passionem desiderii vel concupiscentiae Et ex opposito ex parte mali est fuga vel abominatiordquo ldquomdash Em segundo lugar o bem ainda natildeo possuiacutedo lhe daacute o movimento para conseguir o bem amado o que pertence agrave paixatildeo do desejo ou da concupiscecircncia e por contrariedade e quanto ao mal estaacute a fuga ou a aversatildeordquo

278 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino a ldquoconsciecircnciardquo do prazer proacutepria somente dos seres racionais pois neles haacute a possibilidade por exemplo de se ter um gozo corporal que cause repulsa agrave razatildeo de haver prazeres que natildeo tragam suavidade agrave alma54 se eacute o mal contraacuterio que estaacute presente o termo do apetite eacute a dor ou tristeza sendo a tristeza a qual eacute como a ldquoconsciecircnciardquo da dor exclusiva dos seres racionais pois se pode sentir dor sem que isso se apresente como indigno ou cause repuacutedio agrave razatildeo55 Do quanto dissemos ateacute aqui jaacute se pode inferir que a primeira paixatildeo a qual desencadeia todas as outras eacute o amor como o proacuteprio Tomaacutes assinala em vaacuterias ocasiotildees56 Natildeo

54 Idem Ibidem I-II 31 3 C ldquoSed nomen gaudii non habet locum nisi in delectatione quae consequitur rationem unde gaudium non attribuimus brutis animalibus sed solum nomen delectationis [] Quamvis non semper de omnibus sit gaudium quandoque enim aliquis sentit aliquam delectationem secundum corpus de qua tamen non gaudet secundum rationemrdquo ldquoMas a palavra alegria soacute se emprega para prazeres consecutivos agrave razatildeo assim natildeo atribuiacutemos alegria aos animais irracionais mas apenas o prazer [] Embora nem sempre haja alegria a respeito de tudo pois agraves vezes algueacutem sente certo prazer segundo o corpo sem que se alegre segundo a razatildeordquo 55 Idem Ibidem I-II 35 2 C ldquoSola igitur illa delectatio quae ex interiori apprehensione causatur gaudium nominatur ut supra dictum est Et similiter ille solus dolor qui ex apprehensione interiori causatur nominatur tristitia Et sicut illa delectatio quae ex exteriori apprehensione causatur delectatio quidem nominatur non autem gaudium ita ille dolor qui ex exteriori apprehensione causatur nominatur quidem dolor non autem tristitiardquo ldquoPortanto soacute o prazer causado por uma apreensatildeo interior se chama alegria como foi dito Igualmente soacute a dor causada por apreensatildeo interior se chama tristeza E como prazer causado pela apreensatildeo exterior se chama prazer e natildeo alegria assim a dor causada por apreensatildeo exterior se chama dor e natildeo tristezardquo 56 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoTertio cum adeptum fuerit bonum dat appetitus quietationem quandam in ipso bono adepto et hoc pertinet ad delectationem vel gaudium Cui opponitur ex parte mali dolor vel tristitiardquo ldquomdash Terceiro obtido o bem daacute-lhe um certo repouso no bem possuiacutedo o que pertence ao prazer ou alegria a que se opotildee do lado do mal a dor ou a tristezardquo Idem Ibidem I-II 25 2 C ldquoIpsa autem aptitudo sive proportio appetitus ad bonum est amor qui nihil aliud est quam complacentia boni motus autem ad bonum est desiderium vel concupiscentia quies autem in bono est gaudium vel delectatio Et ideo secundum hunc ordinem amor praecedit desiderium et desiderium praecedit delectationemrdquo ldquoOra a aptidatildeo ou proporccedilatildeo do apetite ao bem eacute o amor que natildeo eacute mais do que a complacecircncia no bem enquanto o movimento para o bem eacute o desejo ou concupiscecircncia e por fim o repouso no bem eacute a alegria ou prazerrdquo Idem Ibidem I-II 25 2 ad 1 ldquoNos autem ut plurimum per effectum cognoscimus causam Effectus autem amoris quando quidem habetur ipsum amatum est delectatio quando vero non habetur est desiderium vel concupiscentiardquo ldquoOra comumente conhecemos a causa pelo efeito Portanto o efeito do amor quando o objeto amado jaacute eacute possuiacutedo eacute prazer quando poreacutem ainda natildeo eacute possuiacutedo eacute desejo ou concupiscecircnciardquo Idem Ibidem I-II 26 2 C ldquoPrima ergo immutatio appetitus ab appetibili vocatur amor qui nihil est aliud quam complacentia appetibilis et ex hac complacentia sequitur motus in appetibile qui est desiderium et ultimo quies quae est gaudiumrdquo ldquoA primeira mudanccedila do apetite pelo objeto apeteciacutevel se chama amor que natildeo eacute senatildeo a complacecircncia no objeto apeteciacutevel da qual resulta o movimento para esse objeto que eacute o desejo e por uacuteltimo o repouso que eacute a alegriardquo

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resta duacutevida pois que da retidatildeo do amor que deve aspirar a bens verdadeiros dependeraacute a retidatildeo dos nossos atos Por isso o Aquinate fala que o amor propriamente humano eacute uma dileccedilatildeo porque pressupotildee uma eleiccedilatildeo Podemos escolher o que e a quem amar E a caridade natural eacute aquela que acresce ao amor o apreccedilo porque o homem pode prezar e estimar o objeto do seu beneplaacutecito57 Mas para que essa decisatildeo ocorra com correccedilatildeo haacute que se ter uma reta razatildeo isto eacute uma razatildeo capaz de propor bens verdadeiros agrave vontade

O irasciacutevel natildeo considera o bem absolutamente senatildeo sob a razatildeo de aacuterduo Por isso eacute evidente que se o bem estaacute presente natildeo haacute nenhuma paixatildeo no irasciacutevel58 mas se ele estaacute ausente tem-se a esperanccedila que diz respeito a um bem futuro que se apresenta como alcanccedilaacutevel59 e o desespero que se daacute quando um

57 Idem Ibidem I-II 26 3 C ldquoDifferenter tamen significatur actus per ista tria Nam amor communius est inter ea omnis enim dilectio vel caritas est amor sed non e converso Addit enim dilectio supra amorem electionem praecedentem ut ipsum nomen sonat Unde dilectio non est in concupiscibili sed in voluntate tantum et est in sola rationali natura Caritas autem addit supra amorem perfectionem quandam amoris inquantum id quod amatur magni pretii aestimatur ut ipsum nomen designatrdquo ldquoEssas trecircs palavras exprimem o ato de diversas maneiras Assim o mais geral deles eacute o amor pois toda dileccedilatildeo ou caridade eacute amor mas natildeo inversamente A dileccedilatildeo acrescenta ao amor uma eleiccedilatildeo precedente como a proacutepria palavra indica Por isso a dileccedilatildeo natildeo estaacute no concupisciacutevel mas somente na vontade e apenas na natureza racional A caridade por sua vez acrescenta ao amor uma certa perfeiccedilatildeo na medida em que se tem grande apreccedilo por aquilo que se ama como a proacutepria palavra o indicardquo 58 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoIn passionibus autem irascibilis praesupponitur quidem aptitudo vel inclinatio ad prosequendum bonum vel fugiendum malum ex concupiscibili quae absolute respicit bonum vel malum [] Respectu autem boni adepti non est aliqua passio in irascibili quia iam non habet rationem ardui ut supra dictum estrdquo ldquoAs paixotildees do irasciacutevel poreacutem jaacute pressupotildeem a aptidatildeo ou inclinaccedilatildeo a buscar o bem ou a evitar o mal proacuteprias do concupisciacutevel que visa o bem e o mal absolutamente [] Com respeito poreacutem ao bem possuiacutedo natildeo haacute no irasciacutevel nenhuma paixatildeo porque natildeo existe nesse caso a razatildeo de aacuterduo como jaacute foi dito []rdquo 59 Idem Ibidem I-II 40 2 C ldquoEt secundum hoc spes est motus appetitivae virtutis consequens apprehensionem boni futuri ardui possibilis adipisci scilicet extensio appetitus in huiusmodi obiectumrdquo ldquoAssim a esperanccedila eacute o movimento da potecircncia apetitiva subsequumlente agrave apreensatildeo do bem futuro aacuterduo e possiacutevel de ser obtido eacute a extensatildeo do apetite para esse objetordquo Idem Ibidem I-II 40 4 C ldquoObiectum autem spei quod est bonum arduum habet quidem rationem attractivi prout consideratur cum possibilitate adipiscendi et sic tendit in ipsum spes quae importat quendam accessumrdquo ldquoO objeto da esperanccedila que eacute o bem aacuterduo tem a razatildeo de atrativo enquanto se considera possiacutevel alcanccedilaacute-lo e assim tende para ele a esperanccedila que implica uma certa aproximaccedilatildeordquo Idem Ibidem I-II 40 5 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est spei

280 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino bem futuro se apresenta como inalcanccedilaacutevel60 No caso do mal ausente temos o temor que o evita por medo de que ele sobrevenha e de que seja irresistiacutevel61 e a audaacutecia que contraacuteria ao temor enfrenta o mal iminente porque acredita que lhe pode oferecer resistecircncia debelaacute-lo6263 Poreacutem se o mal estaacute presente daacute-se a ira que eacute o desejo esperanccediloso de punir quem nos impocircs algum mal64 Vecirc-se que a potecircncia irasciacutevel se desperta como uma espeacutecie de defensora da concupisciacutevel porque visa de algum modo repelir os entraves postos ao encalccedilo do bem desejaacutevel65 Daiacute se deduz tambeacutem que o amor natildeo eacute somente a primeira paixatildeo

obiectum est bonum futurum arduum possibile adipiscirdquo ldquoComo se disse antes o objeto da esperanccedila eacute o bem futuro aacuterduo e possiacutevel de obter-serdquo 60 Idem Ibidem I-II 40 4 C ldquoSed secundum quod consideratur cum impossibilitate obtinendi habet rationem repulsivi quia ut dicitur in III Ethic cum ventum fuerit ad aliquid impossibile tunc homines discedunt Et sic respicit hoc obiectum desperatiordquo ldquoMas enquanto se considera impossiacutevel obtecirc-lo tem a razatildeo de repulsivo pois como diz o livro III da Eacutetica lsquoQuando os homens chegam a algo impossiacutevel entatildeo se afastamrsquo Eacute este o objeto do desesperordquo 61 Idem Ibidem I-II 41 2 C ldquoSicut enim obiectum spei est bonum futurum arduum possibile adipisci ita obiectum timoris est malum futurum difficile cui resisti non potestrdquo ldquoCom efeito como o objeto da esperanccedila eacute um bem futuro aacuterduo de ser obtido assim o objeto do temor eacute o mal futuro difiacutecil ao qual natildeo se pode resistirrdquo 62 Idem Ibidem I-II 45 1 C ldquoIllud autem quod maxime distat a timore est audacia timor enim refugit nocumentum futurum propter eius victoriam super ipsum timentem sed audacia aggreditur periculum imminens propter victoriam sui supra ipsum periculumrdquo ldquoO que dista mais do temor eacute a audaacutecia o temor evita o dano futuro por pensar que este vai vencecirc-lo a audaacutecia afronta o perigo iminente porque acredita na sua vitoacuteria sobre o perigordquo 63 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoEt respectu boni nondum adepti est spes et desperatio Respectu autem mali nondum iniacentis est timor et audaciardquo ldquoAssim em relaccedilatildeo ao bem ainda natildeo possuiacutedo estaacute a esperanccedila e o desespero em relaccedilatildeo ao mal natildeo presente o temor e a audaacuteciardquo 64 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoSed ex malo iam iniacenti sequitur passio iraerdquo ldquo[] mas do mal jaacute presente resulta a paixatildeo da irardquo Idem Ibidem I-II 46 1 C ldquoNon enim insurgit motus irae nisi propter aliquam tristitiam illatam et nisi adsit desiderium et spes ulciscendi []rdquo ldquoNatildeo surge o movimento da ira a natildeo ser por causa de alguma tristeza sofrida e se natildeo houver tambeacutem o desejo e a esperanccedila de vinganccedilardquo 65 Idem Ibidem I 81 2 C ldquoPatet etiam ex hoc quod irascibilis est quasi propugnatrix et defensatrix concupiscibilis dum insurgit contra ea quae impediunt convenientia quae concupiscibilis appetit et ingerunt nociva quae concupiscibilis refugit Et propter hoc omnes passiones irascibilis incipiunt a passionibus concupiscibilis et in eas terminantur []rdquo ldquoDisso fica claro tambeacutem que a potecircncia irasciacutevel eacute uma espeacutecie de combatente defensor da concupisciacutevel insurgindo-se contra aquilo que impede o que eacute conveniente que a concupisciacutevel deseja e contra aquilo que causa dano do qual essa uacuteltima foge Por conseguinte todas as paixotildees irasciacuteveis tecircm origem nas paixotildees concupisciacuteveis e nelas terminamrdquo

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do concupisciacutevel mas absolutamente falando jaacute que as demais estaratildeo sempre no seu encalccedilo

Ora estas paixotildees satildeo da natureza humana natildeo haacute como eliminaacute-las nem eacute reto querer isso em si mesmas elas natildeo satildeo nem boas nem maacutes Contudo como o homem eacute dotado de razatildeo e vontade importa que ele as submeta agrave reta razatildeo e agrave vontade natildeo tentando as tolher mas governando-as politicamente como diz o Aquinate

Deve-se dizer que como diz o Filoacutesofo no livro I da Poliacutetica a razatildeo na qual estaacute a vontade move por seu impeacuterio o irasciacutevel e o concupisciacutevel natildeo por um primado despoacutetico como o servo eacute movido por seu senhor mas por um primado real e poliacutetico como os homens livres satildeo regidos por seus governantes podendo opor-se a eles66

Sob esta consideraccedilatildeo a saber enquanto as paixotildees podem

ser imperadas pela razatildeo e pela vontade elas passam a ser voluntaacuterias e podem entatildeo ser boas ou maacutes de acordo com a sua conformidade ou natildeo com a razatildeo E isso natildeo eacute de se estranhar porque temos de saber lidar com o que sentimos a fim de colocarmos a nossa sensibilidade a nosso favor Por exemplo a experiecircncia precisa ser bem usada porque ela nos pode livrar do desespero enquanto lanccedila fora o receio e os recalques do inaacutebil afianccedila-nos que em determinada situaccedilatildeo encontramo-nos aptos para realizar o bem aacuterduo67 Mas a experiecircncia pode tambeacutem nos desiludir ou desenganar e tambeacutem aqui se bem moderada ela

66 Idem Ibidem I-II 9 2 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod sicut philosophus dicit in I Polit ratio in qua est voluntas movet suo imperio irascibilem et concupiscibilem non quidem despotico principatu sicut movetur servus a domino sed principatu regali seu politico sicut liberi homines reguntur a gubernante qui tamen possunt contra movererdquo 67 Idem Ibidem I-II 40 5 C ldquo[] per experientiam homo acquirit facultatem aliquid de facili faciendi et ex hoc sequitur spes Unde Vegetius dicit in libro de re militari nemo facere metuit quod se bene didicisse confiditrdquo ldquo[] pela experiecircncia o homem adquire a capacidade de fazer algo com facilidade e disso resulta a esperanccedila Por isso diz Vegeacutecio lsquoNingueacutem receia fazer o que confia ter aprendido bemrdquo

282 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino pode nos poupar de desgastes inuacuteteis dando-nos conta de que natildeo adianta agirmos com contumaacutecia para revertermos determinada situaccedilatildeo68 A experiecircncia deve ser usada ainda para treinar os jovens pois eles por natildeo conhecerem os percalccedilos da vida podem facilmente fiar-se em sua capacidade aleacutem do que eacute devido e tornarem-se semelhantes aos estuacutepidos e desajuizados que acreditam poder tudo69 Ademais paixotildees como a esperanccedila se bem ordenadas podem concorrer para o nosso bem porque a clareza de que um bem eacute aacuterduo mas possiacutevel pode a um soacute tempo aticcedilar a atenccedilatildeo e impedir o retardo da accedilatildeo para consegui-lo70 O temor tambeacutem precisa ser moderado do contraacuterio ele nos leva agrave preguiccedila pois um bem aacuterduo pode causar desacircnimo por ser oneroso71 Ainda aqui os mais experientes podem e devem adestrar os inexperientes uma vez que a falta de costume pode levar os jovens a fazer uma apreciaccedilatildeo enganosa do desafio calculando ser

68 Idem Ibidem I-II 40 5 C ldquoQuia sicut per experientiam fit homini existimatio quod aliquid sibi sit possibile quod reputabat impossibile ita e converso per experientiam fit homini existimatio quod aliquid non sit sibi possibile quod possibile existimabatrdquo ldquomdash Do mesmo modo a experiecircncia pode ser causa da falta de esperanccedila pois como pela experiecircncia o homem pode pensar que lhe seja possiacutevel o que antes julgava impossiacutevel inversamente pode pela experiecircncia julgar impossiacutevel o que antes pensava ser possiacutevelrdquo 69 Idem Ibidem I-II 40 6 C ldquoEx amplitudine autem cordis est quod aliquis ad ardua tendat Et ideo iuvenes sunt animosi et bonae spei Similiter etiam illi qui non sunt passi repulsam nec experti impedimenta in suis conatibus de facili reputant aliquid sibi possibile Unde et iuvenes propter inexperientiam impedimentorum et defectuum de facili reputant aliquid sibi possibile Et ideo sunt bonae spei [] Et propter eandem rationem etiam omnes stulti et deliberatione non utentes omnia tentant et sunt bonae speirdquo ldquoIgualmente quem natildeo sofreu rejeiccedilatildeo nem experimentou obstaacuteculos em suas tentativas julga facilmente que as coisas satildeo possiacuteveis Por isso os jovens pela falta de experiecircncia dos obstaacuteculos e das deficiecircncias facilmente julgam que as coisas lhes satildeo possiacuteveis E por isso tecircm boa esperanccedila [] mdash Pela mesma razatildeo todos os estuacutepidos e os estouvados se atrevem a tudo e tecircm boa esperanccedilardquo 70 Idem Ibidem I-II 40 8 C ldquoSed per hunc modum experientia potest etiam esse causa defectus spei Quia sicut per experientiam fit homini existimatio quod aliquid sibi sit possibile quod reputabat impossibile ita e converso per experientiam fit homini existimatio quod aliquid non sit sibi possibile quod possibile existimabatrdquo ldquoA esperanccedila por si ajuda a accedilatildeo intensificando-a E por dois motivos 1 em razatildeo do seu objeto que eacute o bem aacuterduo possiacutevel A consideraccedilatildeo do aacuterduo excita a atenccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do possiacutevel natildeo retarda o esforccedilo Daiacute se segue que o homem age intensamente por causa da esperanccedila []rdquo 71 Idem Ibidem I-II 41 4 C ldquoEt sic causatur segnities cum scilicet aliquis refugit operari propter timorem excedentis laborisrdquo ldquoDaiacute surge a preguiccedila quando se recusa a agir por causa do temor do trabalho excessivordquo

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ele muito mais aacuterduo do que realmente eacute e deixando por conseguinte de conquistarem um bem que estava ao seu alcance natildeo fosse o equiacutevoco da imaginaccedilatildeo72 E os exemplos poderiam multiplicar-se mas o que eacute mais importante reter neste momento eacute que o prazer natildeo pode ser posto de lado porque ele aperfeiccediloa a accedilatildeo jaacute que quando agimos com deleite agimos com mais atenccedilatildeo afinco e perseveranccedila 73 Aliaacutes isso eacute um corolaacuterio espontacircneo pois para Tomaacutes natildeo haacute ldquopaixotildees do corpordquo de um lado e ldquopaixotildees da almardquo de outro uma vez que alma humana eacute o princiacutepio da vida racional animal e vegetal Afora o que haacute de inadequado nas palavras tudo em noacutes animalidade e racionalidade estaacute interligado natildeo isolado Do quanto dissemos segue-se que as paixotildees enquanto estatildeo sob o impeacuterio da razatildeo e da vontade podem ser boas ou maacutes em virtude da sua conformidade ou natildeo com a mesma razatildeo e vontade Acerca da moralidade das paixotildees afirma Tomaacutes

As paixotildees da alma podem ser consideradas de duas maneiras primeiro em si mesmas segundo enquanto dependem do impeacuterio da razatildeo e da vontade Se pois as paixotildees forem consideradas em si mesmas ou seja enquanto movimentos do apetite irracional desse modo natildeo haacute nelas bem ou mal moral o que depende da razatildeo conforme foi dito antes Mas se forem consideradas enquanto dependem do impeacuterio da razatildeo e da vontade entatildeo nelas haacute bem e mal moral pois o apetite sensitivo

72 Idem Ibidem ldquoSecundo ratione dissuetudinis quia scilicet aliquod malum inconsuetum nostrae considerationi offertur et sic est magnum nostra reputationerdquo ldquomdash 2 em razatildeo da falta de costume Quando um mal insoacutelito se oferece agrave nossa consideraccedilatildeo e assim eacute grande para nossa apreciaccedilatildeo Haacute entatildeo estupor produzido por uma imagem insoacutelitardquo 73 Idem Ibidem I-II 33 3 C ldquo[] cum autem attentio fortiter inhaeserit alicui rei debilitatur circa alias res vel totaliter ab eis revocaturrdquo ldquo[] porque fazemos com mais atenccedilatildeo aquilo em que nos deleitamos e a atenccedilatildeo facilita a accedilatildeordquo Idem Ibidem I-II 33 4 C ldquoRespondeo dicendum quod delectatio [] operationem perficiat [] Indirecte autem inquantum scilicet agens quia delectatur in sua actione vehementius attendit ad ipsam et diligentius eam operaturrdquo ldquoO prazer aperfeiccediloa a accedilatildeo [] Indiretamente enquanto o agente porque se deleita em sua accedilatildeo presta-lhe mais atenccedilatildeo e a realiza com mais diligecircnciardquo Idem Ibidem I-II 37 1 C ldquo[] qui quanto maior fuerit magis retinet intentionem animi ne omnino feratur ad doloremrdquo ldquoQuanto maior este amor mais reteacutem a atenccedilatildeo do espiacuterito para que natildeo se deixe entregar agrave dorrdquo

284 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

estaacute mais proacuteximo da razatildeo e da vontade do que os membros exteriores cujos movimentos e atos satildeo bons ou maus moralmente na medida em que satildeo voluntaacuterios Por conseguinte com muito maior razatildeo tambeacutem as paixotildees enquanto voluntaacuterias podem ser chamadas de boas ou maacutes moralmente74

Cumpre agora determo-nos com maior cuidado na

estrutura do ato humano a fim de que conheccedilamos melhor como a pessoa daacute agrave luz o ato livre condiccedilatildeo de possibilidade tanto da virtude quanto do viacutecio 54 A ESTRUTURA DO ATO HUMANO

Com efeito toda forma possui uma tendecircncia natural para o seu fim O fogo por exemplo tende a subir a terra tende para o centro Chamamos esta tendecircncia apetite natural Haacute poreacutem os seres dotados de conhecimento Estes possuem uma inclinaccedilatildeo natildeo soacute em virtude de sua forma mas tambeacutem no que concerne ao objeto conhecido Por conhecerem o fim enquanto atrativo distendem-se para o que lhes eacute condicente Ora o conhecimento comporta dois niacuteveis o sensitivo e o intelectivo A tendecircncia que se segue agrave simples sensaccedilatildeo nominamos apetite sensiacutevel a que se segue ao conhecimento intelectual apetite intelectivo ou vontade75

74 Idem Ibidem I-II 24 1 C ldquoRespondeo dicendum quod passiones animae dupliciter possunt considerari uno modo secundum se alio modo secundum quod subiacent imperio rationis et voluntatis Si igitur secundum se considerentur prout scilicet sunt motus quidam irrationalis appetitus sic non est in eis bonum vel malum morale quod dependet a ratione ut supra dictum est Si autem considerentur secundum quod subiacent imperio rationis et voluntatis sic est in eis bonum et malum morale Propinquior enim est appetitus sensitivus ipsi rationi et voluntati quam membra exteriora quorum tamen motus et actus sunt boni vel mali moraliter secundum quod sunt voluntarii Unde multo magis et ipsae passiones secundum quod sunt voluntariae possunt dici bonae vel malae moraliterrdquo 75 Idem Ibidem I-II 26 1 C ldquoEst enim quidam appetitus non consequens apprehensionem ipsius appetentis sed alterius et huiusmodi dicitur appetitus naturalis Res enim naturales appetunt quod eis convenit secundum suam naturam non per apprehensionem propriam sed per apprehensionem instituentis naturam ut in I libro dictum est Alius autem est appetitus consequens apprehensionem ipsius appetentis sed ex necessitate non ex iudicio libero Et talis est appetitus sensitivus in brutis qui tamen in hominibus aliquid libertatis participat inquantum obedit rationi Alius autem est appetitus consequens apprehensionem appetentis secundum liberum iudicium Et talis est appetitus

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Quanto agrave vontade cabe discriminar Tal como o intelecto assente aos primeiros princiacutepios assim a vontade adere necessariamente agrave beatitude seu fim uacuteltimo Poreacutem haacute coisas sem as quais podemos ser felizes A estas a vontade natildeo adere necessariamente Mas natildeo eacute tudo Da mesma forma que por vezes o nosso intelecto anui a proposiccedilotildees decorrentes dos seus primeiros princiacutepios mas sem reconhecer-lhes a necessidade a saber de forma contingente assim tambeacutem acontece com a vontade Tambeacutem esta pode natildeo aquiescer necessariamente agraves coisas que conduzem ao fim ainda que elas sejam necessaacuterias agrave consecuccedilatildeo do fim e isto por natildeo reconhecer a conexatildeo necessaacuteria entre o meio e o fim76

De posse destes pressupostos podemos distinguir os graus do ato humano Comecemos pela intenccedilatildeo Esta consiste naquele ato uacutenico pelo qual a vontade inclina-se ao fim proposto e aos meios que reconhece como condizentes com este fim77 Como

rationalis sive intellectivus qui dicitur voluntasrdquo ldquoOra haacute um apetite natildeo consequumlente agrave apreensatildeo do que apetece mas agrave de outrem e este se chama apetite natural As coisas naturais desejam o que lhes conveacutem por natureza natildeo por apreensatildeo proacutepria mas pela apreensatildeo do autor da natureza como se disse na I Parte mdash Haacute aleacutem disso outro apetite consequumlente agrave apreensatildeo do que apetece mas por necessidade e natildeo por um juiacutezo livre e tal eacute o apetite sensitivo dos animais irracionais que nos homens participa de alguma liberdade enquanto obedece agrave razatildeo mdash Enfim haacute outro apetite consequumlente agrave apreensatildeo do que apetece por um juiacutezo livre e tal eacute o apetite racional ou intelectivo e este se chama vontaderdquo 76 Idem Ibidem I 82 2 C ldquoSimiliter etiam est ex parte voluntatis Sunt enim quaedam particularia bona quae non habent necessariam connexionem ad beatitudinem quia sine his potest aliquis esse beatus et huiusmodi voluntas non de necessitate inhaeret Sunt autem quaedam habentia necessariam connexionem ad beatitudinem quibus scilicet homo Deo inhaeret in quo solo vera beatitudo consistit Sed tamen antequam per certitudinem divinae visionis necessitas huiusmodi connexionis demonstretur voluntas non ex necessitate Deo inhaeret nec his quae Dei suntrdquo ldquoO mesmo acontece com a vontade Haacute bens particulares que natildeo tecircm relaccedilatildeo necessaacuteria com a bem-aventuranccedila porque se pode ser bem-aventurado sem eles A tais bens a vontade natildeo adere necessariamente Mas haacute outros bens que tecircm uma relaccedilatildeo necessaacuteria com a bem-aventuranccedila satildeo aqueles pelos quais o homem adere a Deus em quem somente se encontra a verdadeira bem-aventuranccedila Todavia antes que a necessidade dessa conexatildeo seja demonstrada pela certeza da visatildeo divina a vontade natildeo adere necessariamente nem a Deus nem agraves coisas que satildeo de Deusrdquo 77 Idem Ibidem I-II 12 2 C ldquoSicut in motu quo itur de a in c per b c est terminus ultimus b autem est terminus sed non ultimus Et utriusque potest esse intentiordquo ldquoAssim no movimento pelo qual se vai de A a C por B C eacute o termo uacuteltimo B eacute termo mas natildeo o uacuteltimo E a intenccedilatildeo pode referir-se a ambosrdquo Idem Ibidem I-II 12 3 C ldquoEst enim intentio non solum finis ultimi ut dictum est sed etiam finis medii Simul autem intendit aliquis et finem proximum et ultimum sicut confectionem

286 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino descobre estes meios A resposta a este questionamento conhece desdobramentos Antes de mais daacute-se o conselho ou deliberaccedilatildeo nele a razatildeo inquire acerca dos meios concernentes a um fim proposto No tirociacutenio da inquisiccedilatildeo apoacutes ldquosabatinarrdquo as vaacuterias possibilidades a razatildeo formula juiacutezos que natildeo satildeo senatildeo ldquoestrateacutegiasrdquo para alcanccedilar o fim a que aspira78 Em seguida a vontade compraz-se nos meios considerados pela razatildeo A este beneplaacutecito chamamos consentimento79 Apoacutes isso a menos que haja um soacute juiacutezo ocorre a eleiccedilatildeo ou a escolha de um destes juiacutezos ou seja de uma destas ldquoestrateacutegiasrdquo80 Finalmente segue o impeacuterio da razatildeo que intima ou adverte dando-nos um preceito ou

medicinae et sanitatemrdquo ldquoComo foi dito natildeo haacute intenccedilatildeo somente do fim uacuteltimo mas tambeacutem dos meios para o fim Pode-se ter intenccedilatildeo ao mesmo tempo do fim proacuteximo e do fim uacuteltimo como elaborar o remeacutedio e a curardquo 78 Idem Ibidem I-II 14 1 C ldquoIn rebus autem dubiis et incertis ratio non profert iudicium absque inquisitione praecedente Et ideo necessaria est inquisitio rationis ante iudicium de eligendis et haec inquisitio consilium vocatur Propter quod philosophus dicit in III Ethic quod electio est appetitus praeconsiliatirdquo ldquoA razatildeo natildeo profere juiacutezos sobre as coisas duacutebias e incertas sem preacutevia investigaccedilatildeo Por isso eacute necessaacuteria a investigaccedilatildeo da razatildeo antes do julgamento do que se vai eleger Esta investigaccedilatildeo chama-se deliberaccedilatildeo Por isso diz o Filoacutesofo no livro III da Eacutetica lsquoA eleiccedilatildeo eacute apetite do previamente deliberadorsquordquo 79 Idem Ibidem I-II 15 3 C ldquoSed appetitus eorum quae sunt ad finem praesupponit determinationem consilii Et ideo applicatio appetitivi motus ad determinationem consilii proprie est consensus Unde cum consilium non sit nisi de his quae sunt ad finem consensus proprie loquendo non est nisi de his quae sunt ad finemrdquo ldquoMas o apetite das coisas que satildeo para o fim pressupotildee determinaccedilatildeo da deliberaccedilatildeo Por isso a aplicaccedilatildeo do movimento apetitivo agrave determinaccedilatildeo da deliberaccedilatildeo eacute propriamente o consentimento Por conseguinte como a deliberaccedilatildeo eacute apenas sobre as coisas que satildeo para o fim o consentimento propriamente falando eacute somente sobre as coisas que satildeo para o fimrdquo 80 Idem Ibidem I-II 15 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod electio addit supra consensum quandam relationem respectu eius cui aliquid praeeligitur et ideo post consensum adhuc remanet electio Potest enim contingere quod per consilium inveniantur plura ducentia ad finem quorum dum quodlibet placet in quodlibet eorum consentitur sed ex multis quae placent praeaccipimus unum eligendo Sed si inveniatur unum solum quod placeat non differunt re consensus et electio sed ratione tantum ut consensus dicatur secundum quod placet ad agendum electio autem secundum quod praefertur his quae non placentrdquo ldquoDeve-se dizer que a eleiccedilatildeo acrescenta ao consentimento uma relaccedilatildeo com respeito agravequilo para o que se escolheu previamente algo e por isso apoacutes o consentimento ainda permanece a eleiccedilatildeo Mas pode acontecer que pela deliberaccedilatildeo encontrem-se muitas coisas que levam ao fim e se qualquer uma delas agrada nelas se consente Todavia entre as muitas coisas que agradam escolhemos uma a ser eleita Mas se houver uma soacute que agrade o consentimento e a eleiccedilatildeo natildeo se diferenciam por distinccedilatildeo real mas por distinccedilatildeo de razatildeo Assim consentimento se diz enquanto agrada para agir eleiccedilatildeo enquanto se prefere agraves coisas que natildeo agradamrdquo

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movendo-nos agrave accedilatildeo De sorte que se na eleiccedilatildeo livremente se opta por um meio ou outro no impeacuterio a razatildeo ordena que se execute o meio escolhido em detrimento dos outros81 Sucede ao impeacuterio a accedilatildeo82 Cumpre dizer que o impeacuterio natildeo eacute algo coercitivo porque eacute precedido e depende jaacute vimos do escrutiacutenio da deliberaccedilatildeo e da eleiccedilatildeo83 Trata-se pois de um ato interno da razatildeo ldquoO impeacuterio como foi dito nada mais eacute do que o ato da razatildeo ordenante para se fazer alguma coisardquo84

Ora fazer com que a intenccedilatildeo a deliberaccedilatildeo o consentimento a eleiccedilatildeo e o impeacuterio sigam a reta razatildeo eacute tarefa das virtudes e disso dependeraacute a bondade ou a maliacutecia de nossas accedilotildees Por isso tendo estudado a estrutura do ato livre podemos afinal conhecer como ele se torna virtuoso ou vicioso

81 Idem Ibidem I-II 17 1 C ldquoImperare autem est quidem essentialiter actus rationis imperans enim ordinat eum cui imperat ad aliquid agendum intimando vel denuntiando sic autem ordinare per modum cuiusdam intimationis est rationis Sed ratio potest aliquid intimare vel denuntiare dupliciter Uno modo absolute quae quidem intimatio exprimitur per verbum indicativi modi sicut si aliquis alicui dicat hoc est tibi faciendum Aliquando autem ratio intimat aliquid alicui movendo ipsum ad hoc et talis intimatio exprimitur per verbum imperativi modi puta cum alicui dicitur fac hocrdquo ldquoImperar eacute pois essencialmente ato da razatildeo porque o que impera ordena o que eacute imperado para agir intimando ou advertindo Assim sendo ordenar mediante intimaccedilatildeo pertence agrave razatildeo Ela intima ou adverte de dois modos Primeiro absolutamente eacute o que faz por um verbo no indicativo como se algueacutem dissesse a outro Isso deves fazer Outras vezes a razatildeo intima algo a algueacutem movendo-o para tal E essa intimaccedilatildeo a faz usando o verbo no imperativo dizendo Faz issordquo 82 Idem Ibidem I-II 17 3 C ldquoImperium autem non est simul cum actu eius cui imperatur sed naturaliter prius est imperium quam imperio obediatur et aliquando etiam est prius tempore Unde manifestum est quod imperium est prius quam ususrdquo ldquoO impeacuterio poreacutem natildeo eacute simultacircneo com o ato daquele que recebeu a ordem mas naturalmente eacute anterior a que seja obedecido e agraves vezes anterior no tempordquo 83 Idem Ibidem I-II 17 3 ad 1 ldquoQuia post determinationem consilii quae est iudicium rationis voluntas eligit et post electionem ratio imperat ei per quod agendum est quod eligitur et tunc demum voluntas alicuius incipit uti exequendo imperium rationis quandoque quidem voluntas alterius cum aliquis imperat alteri quandoque autem voluntas ipsius imperantis cum aliquis imperat sibi ipsirdquo ldquoDepois da determinaccedilatildeo da deliberaccedilatildeo que eacute um juiacutezo da razatildeo a vontade efetua a eleiccedilatildeo A seguir a razatildeo impera ao que deve realizar aquilo que finalmente foi eleito e a vontade de algueacutem comeccedila a usar executando o impeacuterio da razatildeordquo 84 Idem Ibidem I-II 17 5 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est imperium nihil aliud est quam actus rationis ordinantis cum quadam motione aliquid ad agendumrdquo

288 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino 55 AS VIRTUDES 551 A BONDADE E A MALIacuteCIA DO ATO HUMANO

Levando em consideraccedilatildeo os resultados alcanccedilados no toacutepico acima e antes de passarmos agrave temaacutetica da virtude importa agora sabermos como recai a bondade ou a maliacutecia sobre a accedilatildeo A moralidade da accedilatildeo eacute definida pelo ato interior pela intenccedilatildeo85 Haveraacute bondade na accedilatildeo se o fim estiver conforme a razatildeo antes maacute seraacute a accedilatildeo se o fim for contraacuterio agrave razatildeo86 Assim sendo o ato exterior eacute em uacuteltima instacircncia somente a consequecircncia do interior 87 Tomaacutes chega a citar um dito de Aristoacuteteles para arrematar a questatildeo ldquoDonde dizer o Filoacutesofo no livro V da Eacutetica Aquele que rouba para cometer adulteacuterio propriamente falando eacute mais aduacuteltero do que ladratildeordquo88 Quando a razatildeo versa sobre algo que natildeo eacute nem conveniente nem repugnante a ela damos a este objeto e ao ato correspondente o nome de indiferentes 89 A

85 Idem Ibidem I-II 19 7 C ldquoUnde cum bonitas voluntatis dependeat a bonitate voliti ut supra dictum est necesse est quod dependeat ex intentione finisrdquo ldquoPor isso por que a bondade da vontade depende da bondade do objeto que se quis como acima foi dito eacute necessaacuterio que dependa da intenccedilatildeo do fimrdquo 86 Idem Ibidem I-II 19 3 SC ldquoSed bonitas voluntatis consistit in hoc quod non sit immoderata Ergo bonitas voluntatis dependet ex hoc quod sit subiecta rationirdquo ldquoMas a bondade da vontade consiste em natildeo ser sem moderaccedilatildeo Logo a bondade da vontade depende de ser submetida agrave razatildeordquo 87 Idem Ibidem I-II 18 6 C ldquoFinis autem proprie est obiectum interioris actus voluntarii [] Et ideo actus humani species formaliter consideratur secundum finem materialiter autem secundum obiectum exterioris actusrdquo ldquoO fim eacute propriamente o objeto do ato voluntaacuterio interior [] E assim a espeacutecie de um ato humano se considera formalmente segundo o fim materialmente segundo o objeto do ato exteriorrdquo 88 Idem Ibidem I-II 18 6 C ldquoUnde philosophus dicit in V Ethic quod ille qui furatur ut committat adulterium est per se loquendo magis adulter quam furrdquo 89 Idem Ibidem I-II 18 8 C ldquoContingit autem quod obiectum actus non includit aliquid pertinens ad ordinem rationis sicut levare festucam de terra ire ad campum et huiusmodi et tales actus secundum speciem suam sunt indifferentesrdquo ldquoAcontece poreacutem que o objeto do ato natildeo inclui algo pertinente agrave ordem da razatildeo como levantar uma palha da terra ir ao campo e coisas semelhantes tais atos satildeo indiferentes segundo sua espeacutecierdquo Eacute muito importante natildeo confundir atos indiferentes com atos displicentes Por exemplo nem todo ato que procede da ignoracircncia eacute involuntaacuterio Haacute omissotildees ou atos voluntaacuterios procedentes de uma ignoracircncia tambeacutem ela voluntaacuteria Assim se tomado por uma paixatildeo ou pela forccedila de algum haacutebito desordenado um homem proceder com

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necessidade da correccedilatildeo da virtude nasce justamente do fato de que a vontade seguindo uma razatildeo errocircnea ou vencida pelas paixotildees pode tomar como conveniente agrave sua beatitude coisas que na verdade a repelem da mesma forma que o intelecto pode deduzir conclusotildees falsas de premissas verdadeiras 90 Tomaacutes afirma sem duacutevida que o intelecto propotildee o bem agrave vontade Contudo pondera o seguinte

negligecircncia em relaccedilatildeo a conhecimentos que deveria e poderia possuir agiraacute ou mesmo natildeo agiraacute com maliacutecia O agir ou ainda a omissatildeo decorrentes desta displicecircncia seratildeo pois consequecircncias de uma ignoracircncia afetada ou voluntaacuteria Notemos como Tomaacutes descreve Idem Ibidem I-II 6 8 C ldquoUno modo quia actus voluntatis fertur in ignorantiam sicut cum aliquis ignorare vult ut excusationem peccati habeat vel ut non retrahatur a pecando [] Et haec dicitur ignorantia affectata Alio modo dicitur ignorantia voluntaria eius quod quis potest scire et debet sic enim non agere et non velle voluntarium dicitur ut supra dictum est Hoc igitur modo dicitur ignorantia sive cum aliquis actu non considerat quod considerare potest et debet quae est ignorantia malae electionis vel ex passione vel ex habitu proveniens sive cum aliquis notitiam quam debet habere non curat acquirere et secundum hunc modum ignorantia universalium iuris quae quis scire tenetur voluntaria dicitur quasi per negligentiam proveniensrdquo ldquoPrimeiro porque o ato da vontade leva agrave ignoracircncia como quando se quer ignorar para se livrar da acusaccedilatildeo ou natildeo se afastar do pecado [] Esta se chama de ignoracircncia afetada mdash Segundo eacute a ignoracircncia voluntaacuteria quanto agravequilo que se deve e se pode saber pois natildeo agir nem querer neste caso eacute voluntaacuterio como foi acima dito [art 3] Nesse caso haacute ignoracircncia ou por que natildeo se considera realmente aquilo que se pode e se deve considerar ignoracircncia esta vinda de maacute eleiccedilatildeo ou de paixatildeo ou de algum haacutebito ou de algum desconhecimento daquilo que se devia ter mas que se descuidou de tecirc-lo e eacute segundo este modo a ignoracircncia das leis universais que todos devem conhecer havendo entatildeo ignoracircncia voluntaacuteria como proveniente da inteligecircnciardquo Agora se mesmo quando um homem conhece e considera o que deveria e poderia conhecer e considerar ainda assim surge um imprevisto entatildeo tal homem natildeo teraacute moralmente agido ou deixado de agir de maacute-feacute O seu agir ou natildeo agir teraacute sido involuntaacuterio Tomaacutes exemplifica Idem Ibidem ldquoSicut cum homo ignorat aliquam circumstantiam actus quam non tenebatur scire et ex hoc aliquid agit quod non faceret si sciret puta cum aliquis diligentia adhibita nesciens aliquem transire per viam proiicit sagittam qua interficit transeuntem Et talis ignorantia causat involuntarium simpliciterrdquo ldquoPor exemplo quando o homem ignora alguma circunstacircncia de um ato que natildeo deveria saber e por isso age o que natildeo faria se o soubesse Assim quando algueacutem prestada a devida atenccedilatildeo desconhecendo que um homem passava pelo caminho lanccedila sua flecha que iraacute mataacute-lo Essa ignoracircncia causa um ato absolutamente involuntaacuteriordquo 90 TOMAacuteS DE AQUINO O Apetite do Bem e a Vontade Quaestiones disputatae de veritate questatildeo 22 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Karine Moreto Massoca Satildeo Paulo EDIPRO 2015 22 6 C ldquoSecundum vero horum est respectu quorumdam obiectorum scilicet respectu eorum quae sunt ad finem et non ipsius finis et etiam secundum quemlibet statum naturae Tertium vero non est respectu omnium obiectorum sed quorumdam scilicet eorum quae sunt ad finem []rdquo ldquoCom efeito assim como de algum princiacutepio verdadeiro dado natildeo se segue uma falsa conclusatildeo a natildeo ser por alguma falsidade da razatildeo ou por assumir algo falso ou ordenando de modo falso o princiacutepio agrave conclusatildeo assim tambeacutem do que inere no apetite reto do fim uacuteltimo natildeo se pode seguir que algueacutem apeteccedila algo desordenado a natildeo ser que a razatildeo tomasse algo que natildeo seja ordenaacutevel ao fim como ordenaacutevel ao fim []rdquo

290 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Logo para que a vontade tenda para algo natildeo eacute necessaacuterio que seja o bem da coisa mas que seja apreendido na razatildeo de bem Donde o Filoacutesofo dizer no livro II da Fiacutesica ldquoO fim eacute o bem ou o que tenha aparecircncia de bemrdquo91

Por isso eacute possiacutevel que a vontade vaacute contra a reta razatildeo Agrave

razatildeo incauta pode-se solidarizar a incuacuteria da vontade Daiacute a necessidade da aquisiccedilatildeo das virtudes 552 A DEFINICcedilAtildeO DE VIRTUDE COMO HABITUS E MEIO-TERMO DA RAZAtildeO

Neste contexto a virtude humana apresenta-se como uma disposiccedilatildeo estaacutevel para agir (ldquohabitus operativusrdquo) conforme o bem verdadeiro92 Prosseguindo cabe compreender em primeiro lugar que a virtude eacute um habitus porque se as potecircncias naturais satildeo determinadas por seus atos as potecircncias racionais intelectuais ou volitivas como podem tender para vaacuterias coisas 93 satildeo determinadas natildeo por um ato isolado mas por uma disposiccedilatildeo estaacutevel adquirida por muitos atos94 Quando este habitus estaacute

91 Idem Ibidem I-II 8 1 C ldquoAd hoc igitur quod voluntas in aliquid tendat non requiritur quod sit bonum in rei veritate sed quod apprehendatur in ratione boni Et propter hoc philosophus dicit in II Physic quod finis est bonum vel apparens bonumrdquo [O itaacutelico eacute nosso] 92 Idem Ibidem I-II 55 3 C ldquoUnde virtus humana quae est habitus operativus est bonus habitus et boni operativusrdquo ldquoLogo a virtude humana que eacute um haacutebito de accedilatildeo eacute um haacutebito bom e produtor de bemrdquo Idem Ibidem I-II 55 4 C ldquo[] virtus autem est habitus semper se habens ad bonumrdquo ldquoMas a virtude eacute um haacutebito sempre voltado para o bemrdquo 93 Idem Ibidem I-II 55 1 C ldquoPotentiae autem rationales quae sunt propriae hominis non sunt determinatae ad unum sed se habent indeterminate ad multa determinantur autem ad actus per habitus sicut ex supradictis patet Et ideo virtutes humanae habitus suntrdquo ldquomdash Jaacutes as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam indeterminadamente a muitas coisas Ora eacute pelos haacutebitos que elas se determinam aos atos como se mostrou acima Por isso as virtudes humanas satildeo haacutebitosrdquo 94 Idem Ibidem I-II 51 2 C ldquo[] unde ex multiplicatis actibus generatur quaedam qualitas in potentia passiva et mota quae nominatur habitus ldquo[] os atos multiplicados geram na potecircncia passiva e movida uma qualidade que se chama haacutebitordquoIdem Ibidem I-II 51 3 C ldquoManifestum est autem quod principium activum quod est ratio non totaliter potest supervincere appetitivam potentiam in uno actu eo quod appetitiva potentia se habet diversimode et ad multa [] Unde ex hoc non totaliter vincitur appetitiva potentia ut feratur in idem ut in pluribus per modum naturae quod pertinet ad habitum virtutis Et ideo habitus virtutis non potest causari per unum actum sed

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conforme a razatildeo tem-se entatildeo a virtude e os atos da virtude mas se ele discorda da razatildeo tem-se o viacutecio e os atos viciosos 95 Da mesma forma que adquirimos e intensificamos os haacutebitos virtuosos ou viciosos pelas accedilotildees multiplicadas podemos diminuiacute-los e ateacute perdecirc-los pelas mesmas causas a saber os atos voluntaacuterios96 ou mesmo pela inatividade97

O bem do homem segundo vimos coincide com a sua natureza E o peculiar agrave sua natureza eacute a razatildeo Logo a causa e a raiz do bem do homem eacute a razatildeo98 Donde a virtude consistir numa disposiccedilatildeo estaacutevel (habitus) para agir conforme a razatildeo99 Por isso

per multosrdquo ldquoOra eacute manifesto que o princiacutepio ativo que eacute a razatildeo natildeo pode num soacute ato dominar a parte apetitiva porque esta se presta de diversas maneiras a muitas coisas [] E por isso a potecircncia apetitiva natildeo eacute vencida totalmente a ponto de na maioria das vezes ser levada de modo natural para o mesmo objeto o que pertence ao haacutebito da virtude Essa a razatildeo por que esse haacutebito natildeo pode ser causado por um uacutenico ato mas por muitosrdquo 95 Idem Ibidem I-II 54 3 C ldquoUno modo secundum convenientiam ad naturam vel etiam secundum disconvenientiam ab ipsa Et hoc modo distinguuntur specie habitus bonus et malus nam habitus bonus dicitur qui disponit ad actum convenientem naturae agentis habitus autem malus dicitur qui disponit ad actum non convenientem naturae Sicut actus virtutum naturae humanae conveniunt eo quod sunt secundum rationem actus vero vitiorum cum sint contra rationem a natura humana discordant Et sic manifestum est quod secundum differentiam boni et mali habitus specie distinguunturrdquo ldquoA primeira conforme a harmonia ou desarmonia com a natureza E assim se distinguem especificamente o bom haacutebito e o mau pois chama-se bom o haacutebito que dispotildee a atos convenientes agrave natureza do agente e mau o que dispotildee a atos natildeo convenientes a essa natureza como os atos das virtudes convecircm agrave natureza humana quando conformes agrave razatildeo ao passo que os atos viciosos sendo contra a razatildeo estatildeo em desarmonia com essa naturezardquo 96 Idem Ibidem I-II 53 2 C ldquoEt sicut ex eadem causa augentur ex qua generantur ita ex eadem causa diminuuntur ex qua corrumpuntur nam diminutio habitus est quaedam via ad corruptionem sicut e converso generatio habitus est quoddam fundamentum augmenti ipsiusrdquo ldquoE assim como aumentam pela mesma causa que os gera assim tambeacutem diminuem pela mesma causa que os destroacutei pois a diminuiccedilatildeo de um haacutebito eacute o caminho para a sua destruiccedilatildeo e inversamente a geraccedilatildeo do haacutebito eacute uma base para seu crescimentordquo 97 Idem Ibidem I-II 53 3 C ldquoCum autem aliquis non utitur habitu virtutis ad moderandas passiones vel operationes proprias necesse est quod proveniant multae passiones et operationes praeter modum virtutis ex inclinatione appetitus sensitivi et aliorum quae exterius movent Unde corrumpitur virtus vel diminuitur per cessationem ab actu ldquoQuando poreacutem natildeo se utiliza desse haacutebito virtuoso para moderar as paixotildees e accedilotildees muitas delas necessariamente sobreviratildeo sem o comedimento da virtude pela inclinaccedilatildeo do apetite sensitivo e de outros que movem exteriormente e em consequumlecircncia deixando de ser excercida a virtude desaparece ou diminuirdquo 98 Idem Ibidem I-II 66 1 C ldquoManifestum est autem ex dictis quod causa et radix humani boni est ratiordquo ldquo[] a causa e raiz do bem humano eacute a razatildeo []rdquo 99 BOEHNER GILSON Histoacuteria Da Filosofia Cristatilde Desde as Origens ateacute Nicolau de Cusa p 479 ldquoA virtude define-se como uma disposiccedilatildeo ou inclinaccedilatildeo (ldquohabitusrdquo) para agir conformemente agrave

292 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino quando praticada a virtude torna bom natildeo soacute o ato mas o proacuteprio homem pois enquanto aperfeiccediloa os seus atos realiza a sua proacutepria natureza100 jaacute que o agir eacute consecutivo da natureza Assim o ser do homem realiza-se quando este age de acordo com a razatildeo De resto para o ser humano conservar-se no ser eacute manter-se em conformidade com os ditames da razatildeo Neste sentido a praacutetica da virtude que consiste na accedilatildeo em conformidade com a razatildeo produz e conserva a harmonia do ser do homem ldquoDeve-se dizer que o homem eacute propriamente o que eacute pela razatildeo E por isso se diz que algueacutem se conteacutem quando se restringe ao que eacute racionalrdquo101

Ora sendo que a virtude consiste em adequar as paixotildees agrave regra ou medida da razatildeo deve-se considerar que toda regra ou medida pode ser ultrapassada ou simplesmente natildeo ser alcanccedilada Por isso diz-se que a regra ou medida da razatildeo eacute um meio-termo entre o excesso e a falta 102 Mas eacute preciso acrescer que esta

razatildeordquo TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 47 6 C ldquoRespondeo dicendum quod finis virtutum moralium est bonum humanum Bonum autem humanae animae est secundum rationem esse []rdquo ldquoO fim das virtudes morais eacute o bem humano Ora o bem da alma humana eacute estar conformada agrave razatildeo []rdquo 100 Idem Ibidem I-II 55 3 SC ldquoEt philosophus dicit in II Ethic quod virtus est quae bonum facit habentem et opus eius bonum redditrdquo ldquoE o Filoacutesofo diz lsquoA virtude torna bom quem a tem e boas as obras que praticarsquordquo Idem Ibidem II-II 58 3 C ldquoRespondeo dicendum quod virtus humana est quae bonum reddit actum humanum et ipsum hominem bonum facitrdquo ldquoA virtude humana torna bons os atos humanos e o proacuteprio homemrdquo 101 Idem Ibidem II-II 155 1 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod homo proprie est id quod est secundum rationem Et ideo ex hoc dicitur aliquis in seipso se tenere quod tenet se in eo quod convenit rationirdquo 102 Idem Ibidem I-II 64 1 C ldquoMensura autem et regula appetitivi motus circa appetibilia est ipsa ratio Bonum autem cuiuslibet mensurati et regulati consistit in hoc quod conformetur suae regulae sicut bonum in artificiatis est ut consequantur regulam artis Malum autem per consequens in huiusmodi est per hoc quod aliquid discordat a sua regula vel mensura Quod quidem contingit vel per hoc quod superexcedit mensuram vel per hoc quod deficit ab ea sicut manifeste apparet in omnibus regulatis et mensuratis Et ideo patet quod bonum virtutis moralis consistit in adaequatione ad mensuram rationis Manifestum est autem quod inter excessum et defectum medium est aequalitas sive conformitas Unde manifeste apparet quod virtus moralis in medio consistitrdquo ldquoOra a medida e a regra do movimento apetitivo em relaccedilatildeo aos seus objetos eacute a proacutepria razatildeo Por outro lado o bem de tudo o que eacute medido e regulado estaacute em conformar-se agrave sua regra como o bem nas obras artiacutesticas estaacute em seguir as regras da arte Consequumlentemente nesses casos o mal estaacute ao contraacuterio no desacordo de uma coisa com a sua regra ou medida E isso pode acontecer ou porque ela ultrapassa a medida ou porque fica aqueacutem dela como se vecirc claramente em tudo o que eacute medido e regulado E assim eacute oacutebvio que o bem da virtude moral consiste no ajustamento agrave medida da razatildeo

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mediania natildeo eacute uma mediocridade senatildeo o contraacuterio pois ela visa atingir a excelecircncia que eacute conformar as paixotildees agrave regra da razatildeo103

Do quanto dissemos pode parecer que Tomaacutes despreze a parte apetitiva do homem ao dizer que o bem do homem eacute ditado pela sua razatildeo Mas natildeo eacute assim A razatildeo eacute a regra porque eacute ela que nos distingue das outras espeacutecies de animais Poreacutem o homem natildeo eacute soacute inteligente senatildeo que ele apetece as coisas que conhece Assim os atos humanos que seguem o seu ser tambeacutem possuem dois princiacutepios o intelecto e o apetite104 Desta sorte toda virtude que aperfeiccediloe o agir humano inclinando-o para o bem 105 aperfeiccediloa consequentemente um destes dois princiacutepios 106 Quando a virtude aperfeiccediloa o proceder do intelecto mdash seja o especulativo seja o praacutetico mdash chamamo-la virtude intelectual107 Quando a virtude aperfeiccediloa o apetite denominamo-la virtude moral108 Para a nossa temaacutetica basta atermo-nos agraves virtudes morais E entre elas haacute as virtudes cardeais das quais procedem todas as outras As virtudes cardeais satildeo a prudecircncia que embora

mdash Mas evidentemente entre o excesso e o defeito o meio eacute a igualdade ou a conformidade e por isso eacute claro que a virtude moral consiste no meio-termordquo 103 Idem Ibidem I-II 64 1 ad 1 ldquoUnde philosophus dicit in II Ethic quod virtus secundum substantiam medietas est inquantum regula virtutis ponitur circa propriam materiam secundum optimum autem et bene est extremitas scilicet secundum conformitatem rationisrdquo ldquoAssim se entende por que o Filoacutesofo ensina que lsquoa virtude em sua substacircncia estaacute no meiorsquo enquanto impotildee regra agrave sua proacutepria mateacuteria mas lsquoeacute um extremo no que ela tem de melhor e perfeitorsquo isto eacute enquanto conforme agrave razatildeordquo 104 Idem Ibidem I-II 58 3 C ldquoPrincipium autem humanorum actuum in homine non est nisi duplex scilicet intellectus sive ratio et appetitu []rdquo ldquoOra os atos humanos soacute tecircm dois princiacutepios ou seja o intelecto ou razatildeo e o apetiterdquo 105 Idem Ibidem ldquoRespondeo dicendum quod virtus humana est quidam habitus perficiens hominem ad bene operandumrdquo ldquoA virtude humana eacute um haacutebito que aperfeiccediloa o homem para proceder bemrdquo 106 Idem Ibidem ldquoUnde omnis virtus humana oportet quod sit perfectiva alicuius istorum principiorumrdquo ldquoEacute preciso pois que toda virtude humana aperfeiccediloe um desses dois princiacutepiosrdquo 107 Idem Ibidem ldquoSi quidem igitur sit perfectiva intellectus speculativi vel practici ad bonum hominis actum erit virtus intellectualis []rdquo ldquoSe for virtude que aperfeiccediloa o intelecto especulativo ou praacutetico para o bom agir do homem a virtude seraacute intelectual []rdquo 108 Idem Ibidem ldquo[] si autem sit perfectiva appetitivae partis erit virtus moralis []rdquo ldquo[] se aperfeiccediloar a potecircncia apetitiva seraacute virtude moral []rdquo

294 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino sendo uma virtude intelectual rege ou dirige as demais virtudes morais a justiccedila a temperanccedila e a fortaleza Resume o Aquinate

Sintetizando portanto toda a mateacuteria moral no estudo das virtudes podemos reduzir todas as virtudes a sete trecircs teologais que abordaremos em primeiro lugar (q 1-46) e quatro cardeais que trataremos em seguida Entre as virtudes intelectuais uma delas eacute a prudecircncia que se arrola e enumera entre as virtudes cardeais (q 47-56) [] Quanto agraves outras virtudes morais todas se reduzem de algum modo agraves virtudes cardeais como estaacute claro pelo que acima foi dito109

Arrazoaremos mais abaixo sobre as virtudes cardeais jaacute

que as virtudes teologais pertencem ao acircmbito estritamente teoloacutegico Antes poreacutem de passarmos ao toacutepico das virtudes cardeais cabe esclarecermos algo Eacute caro a Tomaacutes o tema da conexatildeo das virtudes de tal sorte que quem natildeo possui por exemplo a prudecircncia tampouco possuiraacute as demais virtudes morais 553 A CONEXAtildeO DAS VIRTUDES

Com o fito de situarmos bem esta questatildeo cumpre termos em mente alguns dados jaacute arrolados neste texto Sabemos que

109 Idem Ibidem II-II Proacutelogo ldquoSic igitur tota materia morali ad considerationem virtutum reducta omnes virtutes sunt ulterius reducendae ad septem quarum tres sunt theologicae de quibus primo est agendum aliae vero quatuor sunt cardinales de quibus posterius agetur Virtutum autem intellectualium una quidem est prudentia quae inter cardinales virtutes continetur et numeratur ars vero non pertinet ad moralem quae circa agibilia versatur cum ars sit recta ratio factibilium ut supra dictum est aliae vero tres intellectuales virtutes scilicet sapientia intellectus et scientia communicant etiam in nomine cum donis quibusdam spiritus sancti unde simul etiam de eis considerabitur in consideratione donorum virtutibus correspondentium Aliae vero virtutes morales omnes aliqualiter reducuntur ad virtutes cardinales ut ex supradictis patet unde in consideratione alicuius virtutis cardinalis considerabuntur etiam omnes virtutes ad eam qualitercumque pertinentes et vitia opposita Et sic nihil moralium erit praetermissumrdquo Idem Ibidem II-II 123 23 C ldquoUnde inter virtutes cardinales prudentia est potior secunda iustitia tertia fortitudo quarta temperantia Et post has ceterae virtutesrdquo ldquoDaiacute a seguinte classificaccedilatildeo das virtudes cardeais primeiro a prudecircncia segundo a justiccedila terceiro a fortaleza quarto a temperanccedila Depois vecircm as outras virtudesrdquo

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apoacutes o pecado de origem embora quanto agrave sua essecircncia a nossa natureza tenha permanecido iacutentegra natildeo se pode negar que o exerciacutecio das virtudes tornou-se claudicante por causa do divoacutercio estabelecido entre os apetites inferiores e a razatildeo De modo que nem o concupisciacutevel eacute facilmente temperado nem o irasciacutevel se deixa sem mais moderar-se pela fortaleza Assim o homem tende a ser subjugado pelo concupisciacutevel e irasciacutevel Ademais estabeleceu-se mesmo entre razatildeo e vontade uma rebeliatildeo uma vez que a vontade apoacutes a queda dos nossos primeiros pais tende a pelejar contra a razatildeo a fim de ceder aos caprichos dos apetites inferiores Pelo que o Aquinate conclui que se no estado de integridade era possiacutevel a praacutetica das virtudes naturais sem o auxiacutelio da graccedila no estado atual mesmo no que toca ao plano natural o auxiacutelio da graccedila eacute requerido Algumas passagens emblemaacuteticas e particularmente elucidativas podem ser citadas com proveito

Portanto deve-se dizer que se a natureza humana tivesse permanecido iacutentegra prevaleceria nela a inclinaccedilatildeo da razatildeo Mas na natureza corrompida o que prevalece eacute a inclinaccedilatildeo da concupiscecircncia que domina no homem Por esta razatildeo o homem eacute mais inclinado a suportar sofrimentos por causa daquilo em que a concupiscecircncia encontra seu prazer desde agora do que a aturar adversidades em vista de bens futuros desejados segundo a razatildeo110

No estado de integridade com respeito agrave capacidade da potecircncia operativa o homem podia com suas forccedilas naturais querer e fazer o bem proporcionado agrave sua natureza como eacute o bem da virtude adquirida mas natildeo um bem que a ultrapassa como eacute o bem da virtude infusa No estado de corrupccedilatildeo o homem falha naquilo que lhe eacute possiacutevel pela sua natureza a tal ponto que ele

110 Idem Ibidem II-II 136 3 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod in natura humana si esset integra praevaleret inclinatio rationis sed in natura corrupta praevalet inclinatio concupiscentiae quae in homine dominatur Et ideo pronior est homo ad sustinendum mala in quibus concupiscentia delectatur praesentialiter quam tolerare mala propter bona futura quae secundum rationem appetuntur quod tamen pertinet ad veram patientiamrdquo

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natildeo pode mais por suas forccedilas naturais realizar totalmente o bem proporcionado agrave sua natureza111

Assim no estado de integridade o homem tinha necessidade de uma forccedila acrescentada gratuitamente agravequela de sua natureza unicamente para realizar e querer o bem sobrenatural No estado de corrupccedilatildeo tem necessidade disso para duas coisas primeiro para que seja curado e depois para realizar o bem da ordem sobrenatural isto eacute o bem meritoacuterio112

Daiacute para Tomaacutes ser imperioso que ateacute para que

cumpramos integralmente o bem que nos eacute conatural tenhamos o auxiacutelio da virtude teologal da caridade E isso natildeo nos deve causar espanto pois Tomaacutes eacute um teoacutelogo cristatildeo para ele o fim absolutamente uacuteltimo do homem eacute a visatildeo beatiacutefica de Deus Ora este fim ultrapassa o que eacute devido agrave nossa natureza Desta sorte soacute podemos alcanccedilaacute-lo se formos socorridos pela caridade que eacute uma virtude natildeo adquirida mas infusa Sem ela as demais virtudes natildeo se encontram dispostas a nos ordenar ao nosso fim verdadeiramente uacuteltimo Estamos no limiar de uma moral teoloacutegica Neste sentido eacute interessante coligirmos algumas passagens que atestem isso

Deve-se dizer que o fim eacute na accedilatildeo o que eacute o princiacutepio no conhecimento especulativo Assim como natildeo pode haver ciecircncia absolutamente verdadeira sem uma exata avaliaccedilatildeo do princiacutepio primeiro e indemonstraacutevel assim tambeacutem natildeo pode haver absolutamente verdadeira justiccedila ou verdadeira castidade se

111 Idem Ibidem I-II 109 2 C ldquoSed in statu naturae integrae quantum ad sufficientiam operativae virtutis poterat homo per sua naturalia velle et operari bonum suae naturae proportionatum quale est bonum virtutis acquisitae non autem bonum superexcedens quale est bonum virtutis infusae Sed in statu naturae corruptae etiam deficit homo ab hoc quod secundum suam naturam potest ut non possit totum huiusmodi bonum implere per sua naturaliardquo 112 Idem Ibidem ldquoSic igitur virtute gratuita superaddita virtuti naturae indiget homo in statu naturae integrae quantum ad unum scilicet ad operandum et volendum bonum supernaturale Sed in statu naturae corruptae quantum ad duo scilicet ut sanetur et ulterius ut bonum supernaturalis virtutis operetur quod est meritorium Ulterius autem in utroque statu indiget homo auxilio divino ut ab ipso moveatur ad bene agendumrdquo

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faltar a ordenaccedilatildeo devida para o fim produzida pela caridade embora algueacutem se comporte com retidatildeo em tudo o mais113

Deve-se dizer que a caridade eacute comparada ao fundamento e agrave raiz por nela se sustentarem e nutrirem todas as outras virtudes mas natildeo no sentido em que fundamento e raiz tecircm razatildeo de causa material114

Deve-se dizer que a caridade eacute considerada o fim das outras virtudes porque as ordena para o seu fim proacuteprio E sendo a matildee a que concebe em si mesma por um outro pode-se dizer que a caridade eacute a matildee das outras virtudes porque pelo desejo do fim uacuteltimo concebe os atos das demais virtudes imperando-os115

Eacute digno de nota que em toda esta argumentaccedilatildeo Tomaacutes

nunca perde de vista que haacute uma perfeiccedilatildeo quanto ao tempo tal como a discriminamos no terceiro capiacutetulo Esta perfeiccedilatildeo proacutepria agrave ordem natural podemos vivenciaacute-la sem precisar necessariamente praticar com heroiacutesmo todas as virtudes naturais isto eacute sem precisar por uma necessidade absoluta da graccedila Com efeito tantos pagatildeos chegaram a esta perfeiccedilatildeo Em outros termos para a perfeiccedilatildeo que requer a vida na civitas eacute suficiente que pratiquemos as virtudes morais o quanto for necessaacuterio para a convivecircncia entre os homens deixando de lado aqueles viacutecios que tolhem a coexistecircncia harmoniosa que a vida em comum exige Tomaacutes prevecirc esta perfeiccedilatildeo

113 Idem Ibidem II-II 23 7 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod cum finis se habeat in agibilibus sicut principium in speculativis sicut non potest esse simpliciter vera scientia si desit recta aestimatio de primo et indemonstrabili principio ita non potest esse simpliciter vera iustitia aut vera castitas si desit ordinatio debita ad finem quae est per caritatem quantumcumque aliquis se recte circa alia habeatrdquo 114 Idem Ibidem II-II 23 8 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod caritas comparatur fundamento et radici inquantum ex ea sustentantur et nutriuntur omnes aliae virtutes et non secundum rationem qua fundamentum et radix habent rationem causae materialisrdquo 115 Idem Ibidem II-II 23 8 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod caritas dicitur finis aliarum virtutum quia omnes alias virtutes ordinat ad finem suum Et quia mater est quae in se concipit ex alio ex hac ratione dicitur mater aliarum virtutum quia ex appetitu finis ultimi concipit actus aliarum virtutum imperando ipsosrdquo

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Eacute evidente pois pelo que foi dito que soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e de modo absoluto devem ser chamadas virtudes porque ordenam bem o homem ao fim absolutamente uacuteltimo As outras virtudes ou seja as adquiridas satildeo virtudes em sentido relativo e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem a um fim uacuteltimo natildeo em sentido absoluto mas soacute em determinado gecircnero []116

Kenny confirma este entendimento ao afirmar que esta

linha de argumentaccedilatildeo justifica-se e autoriza-nos a falar de uma eacutetica tomasiana que pode ser lida por qualquer filoacutesofo secular

Somente aqueles que partilham da feacute de Sto Tomaacutes na visatildeo beatiacutefica como culminaccedilatildeo de uma vida virtuosa podem ingressar completamente no sistema moral que ele apresenta Mas em grande parte graccedilas ao suporte aristoteacutelico de sua reflexatildeo moral muito de sua reflexatildeo de toacutepicos morais individuais eacute altamente instrutivo tambeacutem para o filoacutesofo secular117

Ora estes ldquotoacutepicos morais individuaisrdquo que podem ser

ldquoaltamente instrutivosrdquo ao filoacutesofo secular satildeo a nosso ver as virtudes cardeais Assim a conexatildeo das virtudes natildeo implica que a ordem proacutepria de cada uma seja suprimida

Como filosofia e teologia distintas mas conexas representam dois graus de conhecimento cada um autocircnomo mas ordenado ao outro assim as virtudes naturais mantecircm todo o seu valor e a sua autonomia embora o seu fim terreno deva ser ordenado ao fim superior e supremo da beatitude eterna118

116 Idem Ibidem I-II 65 2 C ldquoPatet igitur ex dictis quod solae virtutes infusae sunt perfectae et simpliciter dicendae virtutes quia bene ordinant hominem ad finem ultimum simpliciter Aliae vero virtutes scilicet acquisitae sunt secundum quid virtutes non autem simpliciter ordinant enim hominem bene respectu finis ultimi in aliquo genere non autem respectu finis ultimi simpliciterrdquo 117 KENNY Op Cit p 300 118 VASOLI Op Cit p 310 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCome filosofia e teologia distinte ma connesse rappresentano due gradi di conoscenza ognuno autonomo ma lrsquouno ordinato allrsquoaltro cosiacute anche le virtuacute naturali mantengono tutto il loro valore e la loro autonomia anche se il loro fine terreno devrsquoessere ordinato al fine superiore e supremo della beatitudine eternardquo

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Chegamos assim agrave certeza de que na siacutentese de Tomaacutes as virtudes eacuteticas naturais tecircm a sua autonomia salvaguardada Elas seratildeo o resultado de uma boa ldquopoliacuteticardquo da nossa razatildeo e vontade com os nossos apetites inferiores No resumo que se segue elencaremos apenas as definiccedilotildees das virtudes cardeais sugerindo alguns exemplos119 554 AS VIRTUDES CARDEAIS

Entre as virtudes cardeais a primeira eacute a prudecircncia A ela cabe aperfeiccediloar o uso praacutetico e adequado de um conhecimento jaacute adquirido Na verdade a prudecircncia consiste na reta razatildeo do que deve ser feito Como trata de accedilotildees circunstanciais e contingentes e como consiste na reta razatildeo do agir120 mais do que aperfeiccediloar a deliberaccedilatildeo ou a eleiccedilatildeo a prudecircncia aperfeiccediloa o impeacuterio o qual ordena que faccedilamos o que devemos fazer e precede imediatamente a accedilatildeo Destarte a prudecircncia precipuamente faz com que decidamos bem o que devemos fazer hic et nunc121 Em razatildeo

119 Natildeo caberia reiteramos discorrer sobre as virtudes teologais Natildeo obstante os tratados consagrados a elas sejam ricos de conceitos filosoacuteficos por se tratarem de virtudes infusas e natildeo adquiridas entendemos que elas pertencem ao menos em Tomaacutes a um discurso estritamente teoloacutegico De todo modo houve quem magistralmente soube perceber as riquezas filosoacuteficas escondidas nos tratados dedicados agraves virtudes teologais PIEPER Josef Crer Esperar e Amar Antropologia do Crer Trad Luiz Jean Lauand Disponiacutevel em lthttpsformadorcatolicowordpresscom20160922crer-esperar-e-amargt 120 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 57 4 C ldquoCuius differentiae ratio est quia ars est recta ratio factibilium prudentia vero est recta ratio agibiliumrdquo ldquoA razatildeo dessa diferenccedila eacute que a arte eacute a lsquorazatildeo reta das coisas factiacuteveisrsquo enquanto que a prudecircncia eacute lsquoa razatildeo reta de nosso agirrsquordquo 121 Idem Ibidem II-II 47 8 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est recta ratio agibilium ut supra dictum est Unde oportet quod ille sit praecipuus actus prudentiae qui est praecipuus actus rationis agibilium Cuius quidem sunt tres actus Quorum primus est consiliari quod pertinet ad inventionem nam consiliari est quaerere ut supra habitum est Secundus actus est iudicare de inventis et hic sistit speculativa ratio Sed practica ratio quae ordinatur ad opus procedit ulterius et est tertius actus eius praecipere qui quidem actus consistit in applicatione consiliatorum et iudicatorum ad operandum Et quia iste actus est propinquior fini rationis practicae inde est quod iste est principalis actus rationis practicae et per consequens prudentiaerdquo ldquoA prudecircncia eacute a reta razatildeo do que deve ser feito jaacute foi dito Portanto eacute necessaacuterio que o ato principal da prudecircncia seja o ato principal da razatildeo orientado ao que deve ser feito Nela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ao qual compete a descoberta porque deliberar eacute procurar como foi dito acima O segundo ato eacute o julgamento relativo ao que foi descoberto o que eacute funccedilatildeo da razatildeo especulativa Mas

300 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino disso ela eacute uma virtude especialiacutessima porque se ldquoO fim das virtudes morais eacute o bem humanordquo122 e o bem da vida humana consiste na accedilatildeo ldquo[] estar conformada agrave razatildeordquo123 uma vez que a prudecircncia eacute a reta razatildeo do agir ldquoA prudecircncia eacute a virtude mais necessaacuteria agrave vida humana pois viver bem consiste em agir bemrdquo124 Ademais sendo recta ratio agibilium a prudecircncia torna-se de algum modo o fim proacuteprio de toda virtude moral125

Como a decisatildeo prudencial consagra as etapas anteriores que estruturam o ato humano pois realiza de modo benfazejo a intersecatildeo entre elas Carlos Josaphat celebra a prudecircncia como a virtude que integra o homem consigo mesmo ldquoO ser humano prudente eacute como um soberano que manda em seu reino interiorrdquo126 Natildeo soacute mas sendo que os nossos atos e as suas consequecircncias atingem aqueles e aquilo que estatildeo sob nosso governo ou dependem de noacutes pode-se dizer que a prudecircncia tambeacutem realiza uma conjunccedilatildeo harmoniosa dos homens uns com os outros e com as coisas ldquoSer prudente eacute bem governar bem governar-se e bem governar aqueles e aquilo que depende de noacutesrdquo127 Todos estes dados convergem para a seguinte definiccedilatildeo de prudecircncia ldquo[] a virtude do governo de si e dos outrosrdquo128 sempre com o objetivo de levar o outro a unificar-se

a razatildeo praacutetica ordenada agrave accedilatildeo efetiva vai mais longe e eacute seu terceiro ato comandar Este ato consiste em aplicar agrave accedilatildeo o resultado obtido na descoberta e no julgamento E porque este ato estaacute mais proacuteximo do fim da razatildeo praacutetica segue-se que este eacute o ato principal da razatildeo praacutetica e consequumlentemente da prudecircnciardquo 122 Idem Ibidem II-II 47 6 C ldquoRespondeo dicendum quod finis virtutum moralium est bonum humanumrdquo 123 Idem Ibidem ldquoBonum autem humanae animae est secundum rationem esse []rdquo 124 Idem Ibidem I-II 57 5 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est virtus maxime necessaria ad vitam humanam Bene enim vivere consistit in bene operarirdquo 125 Idem Ibidem II-II 47 7 C ldquoRespondeo dicendum quod hoc ipsum quod est conformari rationi rectae est finis proprius cuiuslibet moralis virtutis []rdquo ldquoA conformidade com a reta razatildeo eacute o fim proacuteprio de toda virtude moralrdquo 126 JOSAPHAT Op Cit p 568 127 Idem Op Cit 128 Idem Op Cit p 570

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Outra virtude cardeal eacute a justiccedila Como a qualquer outra virtude tambeacutem a ela cabe tornar bons os atos humanos129 E o ato humano soacute eacute bom quando estiver conforme a razatildeo130 Ora justiccedila designa igualdade e nada eacute igual a si mesmo131 Destarte agrave virtude da justiccedila compete ordenar as nossas relaccedilotildees com os outros132 Ela consiste em fazer com que cada qual decirc ao outro o que lhe eacute devido133

No que toca estritamente agrave virtude cardeal da justiccedila haacute duas espeacutecies134 a justiccedila comutativa que abrange toda sorte de intercacircmbios realizados entre as partes de um todo social por exemplo entre duas pessoas 135 e a justiccedila distributiva que abrange toda forma de relaccedilatildeo que o todo estabelece com as suas partes136 No caso da justiccedila distributiva ela se realiza quando

129 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 58 3 C ldquoUnde cum iustitia operationes humanas rectificet manifestum est quod opus hominis bonum redditrdquo ldquoOra como a justiccedila retifica as accedilotildees humanas eacute claro que as torna boasrdquo 130 Idem Ibidem ldquoActus enim hominis bonus redditur ex hoc quod attingit regulam rationis secundum quam humani actus rectificanturrdquo ldquoPois o ato humano se torna bom ao atingir a regra da razatildeo que o retificardquo 131 Idem Ibidem II-II 58 2 C ldquo[] nihil enim est sibi aequale sed alteri []rdquo ldquoPois nada eacute igual a si mesmo mas a um outrordquo 132 Idem Ibidem ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est cum nomen iustitiae aequalitatem importet ex sua ratione iustitia habet quod sit ad alterum []rdquo ldquo[] o nome de justiccedila implica igualdade por isso em seu conceito mesmo a justiccedila comporta relaccedilatildeo com outremrdquo 133 Idem Ibidem I-II 60 3 C ldquo[] iustitiam enim pertinere videtur ut quis debitum reddat []rdquo ldquo[] cabe agrave justiccedila parece pagar a cada um o que deverdquo 134 Idem Ibidem II-II 61 1 C ldquoEt ideo duae sunt iustitiae species scilicet commutativa et distributivardquo ldquoHaacute portanto duas espeacutecies de justiccedila a comutativa e a distributivardquo Tomaacutes fala ainda de uma justiccedila geral que consiste em ordenar as relaccedilotildees dos membros com o todo social E como este ordenamento eacute estabelecido pelas leis chama-se esta justiccedila tambeacutem justiccedila legal Idem Ibidem II-II 58 5 C ldquoEt quia ad legem pertinet ordinare in bonum commune ut supra habitum est inde est quod talis iustitia praedicto modo generalis dicitur iustitia legalis []rdquo ldquoE como compete agrave lei ordenar o homem ao bem comum como jaacute foi dito essa justiccedila geral eacute chamada legal []rdquo 135 Idem Ibidem II-II 61 1 C ldquoUnus quidem partis ad partem cui similis est ordo unius privatae personae ad aliam Et hunc ordinem dirigit commutativa iustitia quae consistit in his quae mutuo fiunt inter duas personas ad invicemrdquo Uma de parte a parte agrave qual corresponde a relaccedilatildeo de uma pessoa privada a oura Tal relaccedilatildeo eacute dirigida pela justiccedila comutativa que visa o intercacircmbio muacutetuo entre duas pessoasrdquo 136 Idem Ibidem ldquoAlius ordo attenditur totius ad partes et huic ordini assimilatur ordo eius quod est commune ad singulas personas Quem quidem ordinem dirigit iustitia distributiva quae est

302 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ocorre uma igualdade de proporcionalidade geomeacutetrica isto eacute quando o que preside daacute a cada qual o que lhe eacute devido do que eacute comum segundo a sua relevacircncia para o bem comum137 no caso da justiccedila comutativa que se daacute entre iguais deve-se estabelecer uma igualdade aritmeacutetica a saber quantitativa138

Mas os deacutebitos satildeo diversos Logo agrave virtude da justiccedila se anexam outras virtudes conforme os diferentes tipos de deacutebitos existentes139 Por exemplo pela virtude da religiatildeo buscamos dar a Deus o que lhe eacute devido por nos ter criado pela piedade endereccedilamos o nosso amor aos pais e agrave paacutetria pela gratidatildeo dedicamos aos nossos benfeitores uma disposiccedilatildeo de habitual solicitude140

distributiva communium secundum proportionalitatemrdquo ldquoA outra relaccedilatildeo eacute do todo agraves partes a ela se assemelha a relaccedilatildeo entre o que eacute comum e cada uma das pessoas A esta segunda relaccedilatildeo se refere a justiccedila distributiva que reparte o que eacute comum de maneira proporcionalrdquo 137 Idem Ibidem II-II 61 2 C ldquoEt ideo in iustitia distributiva non accipitur medium secundum aequalitatem rei ad rem sed secundum proportionem rerum ad personas ut scilicet sicut una persona excedit aliam ita etiam res quae datur uni personae excedit rem quae datur alii Et ideo dicit philosophus quod tale medium est secundum geometricam proportionalitatem in qua attenditur aequale non secundum quantitatem sed secundum proportionemrdquo ldquoAssim na justiccedila distributiva o meio-termo natildeo se considera por uma igualdade de coisa a coisa poreacutem segundo uma proporccedilatildeo das coisas agraves pessoas de sorte que se uma pessoa eacute superior agrave outra assim tambeacutem o que lhe eacute dado excederaacute o que eacute dado agrave outra Por isso o Filoacutesofo declara que esse meio-termo se considera segundo uma lsquoproporcionalidade geomeacutetricarsquo em que a igualdade natildeo eacute de quantidade mas de proporccedilatildeordquo 138 Idem Ibidem ldquoSed in commutationibus redditur aliquid alicui singulari personae propter rem eius quae accepta est ut maxime patet in emptione et venditione in quibus primo invenitur ratio commutationis Et ideo oportet adaequare rem rei ut quanto iste plus habet quam suum sit de eo quod est alterius tantundem restituat ei cuius est Et sic fit aequalitas secundum arithmeticam medietatem quae attenditur secundum parem quantitatis excessum []rdquo ldquoAo contraacuterio nas comutaccedilotildees daacute-se algo a uma pessoa particular por causa de uma coisa que dela se recebeu o que eacute da maior evidecircncia nas compras e vendas nas quais primeiro se manifesta a noccedilatildeo de comutaccedilatildeo Eacute entatildeo necessaacuterio igualar uma coisa agrave outra E assim se algueacutem guarda aleacutem do que eacute seu um tanto de outrem deve restituir-lhe exatamente essa diferenccedila Dessa forma se realiza a igualdade segundo uma meacutedia lsquoaritmeacuteticarsquo estabelecida por um excedente quantitativo igual []rdquo 139 Idem Ibidem I-II 60 3 C ldquoSed debitum non est unius rationis in omnibus [] Et secundum has diversas rationes debiti sumuntur diversae virtutes []rdquo ldquomdash Mas a razatildeo de deacutebito natildeo eacute a mesma em todas as situaccedilotildees [] E a essas diferentes razotildees de deacutebito correspondem diferentes virtudesrdquo 140 Idem Ibidem ldquo[] puta religio est per quam redditur debitum Deo pietas est per quam redditur debitum parentibus vel patriae gratia est per quam redditur debitum benefactoribus et sic de aliisrdquo ldquoPor exemplo a religiatildeo eacute a virtude pela qual damos a Deus o que lhes eacute devido a piedade pela qual damos aos pais e agrave paacutetria o que lhe eacute devido a gratidatildeo aos benfeitores e assim tambeacutem as demais virtudesrdquo

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Quando falamos de justiccedila eacute importante natildeo nos esquecermos de que estamos a falar realmente de uma virtude e natildeo de um mero cumprimento de leis ou obrigaccedilotildees Trata-se para Tomaacutes de uma vontade habitual mdash constante e perpeacutetua mdash de dar a cada um o que lhe eacute de direito141 Neste sentido a justiccedila se apresenta como a descoberta do outro enquanto detentor de direitos ela eacute pois a vitoacuteria sobre o egocentrismo142 Acerca deste toacutepico natildeo podemos senatildeo ceder a palavra a Carlos Josaphat

O sentido da justiccedila se constitui e se afirma primordialmente como o ldquosentido do outrordquo Na evoluccedilatildeo na marcha para a plena humanizaccedilatildeo de cada indiviacuteduo e de toda a sociedade emerge e haacute de dominar a percepccedilatildeo a aceitaccedilatildeo do outro O outro surge e haacute de ser reconhecido natildeo apenas na sua diferenccedila do eu que o considera mas tambeacutem na sua originalidade singular no seu valor incomparaacutevel de ser humano O ldquooutrordquo passa a ser visto e acatado como ldquogenterdquo [] Na sua verdade e densidade humanas agrave luz do sentido eacutetico da justiccedila mdash o ldquooutrordquo eacute reconhecido e aceito como uma ldquopessoardquo []143

Agrave temperanccedila mdash outra virtude cardeal mdash cumpre regular os

nossos atos internos para que natildeo se rendam ao iacutempeto das

141 Idem Ibidem II-II 58 1 C ldquoEt si quis vellet in debitam formam definitionis reducere posset sic dicere quod iustitia est habitus secundum quem aliquis constanti et perpetua voluntate ius suum unicuique tribuitrdquo ldquoPara dar a essa definiccedilatildeo sua devida forma bastaria dizer lsquoA justiccedila eacute o haacutebitus pelo qual com vontade constante e perpeacutetua se daacute a cada um o seu direitorsquordquo 142 JOSAPHAT Op Cit p 580 ldquoA justiccedila emerge assim como uma conquista como um triunfo constante sobre todo apetite ou desejo que torne o homem escravo das coisas e do seu egocentrismordquo PIEPER Josef As virtudes fundamentais Trad Narino e Silva e Beckert da Assumpccedilatildeo Editorial Aster Lisboa 1960 p 93 ldquoDistinguir o proacuteprio do alheio mdash isso eacute a justiccedilardquo [O itaacutelico eacute nosso] 143 JOSAPHAT Op Cit pp 585-586 Josef Pieper quando estuda a justiccedila comutativa daacute uma definiccedilatildeo de justiccedila menos vibrante mas natildeo menos de acordo com o pensamento de Tomaacutes PIEPER As virtudes fundamentais p 111 ldquoO que isto quer dizer sem romantismos e sem ilusotildees eacute que a exigecircncia contida na ideia de uma iustitia commutativa consiste em reconhecer precisamente o estranho mdash o semelhante que na realidade eacute estranho ou eacute por noacutes interiormente sentido como tal e talvez ateacute dum momento para o outro por noacutes visto como uma lsquoconcorrecircnciarsquo ou uma ameaccedila aos nossos proacuteprios interesses o estranho a quem nada se pede de quem natildeo se gosta a quem natildeo ocorre oferecer coisa alguma e ao qual tem antes de se oferecer resistecircncia mdash para lhe dar soacute o que lhe pertence nada menos e nada mais isto eacute a justiccedilardquo [O segundo itaacutelico eacute nosso]

304 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino paixotildees que costumam inclinar-nos para o que eacute contraacuterio agrave razatildeo144 Jaacute agrave fortaleza pertence firmar as nossas accedilotildees no que eacute racional natildeo permitindo que o temor do perigo ou o medo do sofrimento nos impeccedilam de agir conforme a reta razatildeo145 Assim temos que a temperanccedila educa o concupisciacutevel a fortaleza o irasciacutevel Longe pois de suprimir a nossa sensibilidade as virtudes morais conduzem-nos a um uso disciplinado dela

Agora seria a ocasiatildeo de passarmos a tratar de cada uma das virtudes cardeais dos viacutecios opostos etc Contudo natildeo tencionamos isso Aqui apenas elencaremos algumas notas Para exemplificar falaremos da crueldade e da ferocidade bem como do assalto das paixotildees desordenadas na aprendizagem Crueldade vem de crueza146 Satildeo ditos crueacuteis aqueles que embora tendo motivos para punir algueacutem natildeo tecircm medida ao fazecirc-lo147 Tomaacutes afirma ldquoA crueldade ao contraacuterio visa agrave culpa daquele que eacute castigado mas se excede no modo de punirrdquo148 Jaacute a ferocidade recebe este nome pela semelhanccedila que os que a possuem tecircm com as feras 149 Diferentemente dos crueacuteis os ferozes punem natildeo

144 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 61 2 C ldquoUno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantiardquo ldquo[] quando a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos de temperanccedila []rdquo 145 Idem Ibidem ldquoAlio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo ldquo[] quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortalezardquo 146 Idem Ibidem II-II 159 1 C ldquoRespondeo dicendum quod nomen crudelitatis a cruditate sumptum esse videturrdquo ldquoCrueldade eacute palavra que parece derivada de cruezardquo 147 Idem Ibidem II-II 157 1 ad 3 ldquoUnde dicit Seneca in II de Clem quod crudeles vocantur qui puniendi causam habent modum non habentrdquo ldquoPor isso diz Secircneca lsquochamam-se crueacuteis os que tecircm motivo para punir mas natildeo tecircm medidas no fazecirc-lordquo 148 Idem Ibidem II-II 159 2 C ldquoSed crudelitas attendit culpam in eo qui punitur sed excedit modum in puniendordquo 149 Idem Ibidem ldquoRespondeo dicendum quod nomen saevitiae et feritatis a similitudine ferarum accipitur quae etiam saevae dicuntur Huiusmodi enim animalia nocent hominibus ut ex eorum corporibus pascantur non ex aliqua iustitiae causa cuius consideratio pertinet ad solam rationemrdquo ldquoOs termos lsquoseviacuteciarsquo e lsquoferocidadersquo vecircm da semelhanccedila com as feras tambeacutem chamadas sevas pois

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visando agrave culpa mas somente ao prazer de ver o sofrimento alheio 150 Raciocina Tomaacutes este prazer natildeo eacute humano mas animalesco ldquoTrata-se eacute claro de uma bestialidade pois esse prazer natildeo eacute humano mas de ferasrdquo151 Noutro lugar o Aquinate precisa que os que gostam de castigar os seus semelhantes sem razatildeo assemelham-se agraves feras por natildeo terem o natural sentimento de amor que todo homem deve ter por outro homem Por isso satildeo chamados ferozes

E quanto aos que gostam de castigar os outros mesmo sem motivo pode-se chamaacute-los de selvagens ou ferozes por natildeo terem aquele sentimento humano pelo qual o homem ama naturalmente o homem152

Nosso pensador acena ainda para os males que uma

sensibilidade malsatilde pode causar impedindo inclusive a educaccedilatildeo e a convivecircncia na civitas Por exemplo quando natildeo moderadas pela razatildeo as paixotildees podem causar bloqueio agrave proacutepria aprendizagem Assim quem natildeo se conteacutem e provoca excessiva dor e tristeza ao estudante acaba prejudicando a sua aprendizagem pois ningueacutem pode aprender algo novo sentindo muita dor e se a dor for realmente muito intensa inabilita ateacute

esses animais atacam os homens para se alimentarem com sua carne e natildeo o fazem por alguma causa justa cuja consideraccedilatildeo se refere unicamente agrave razatildeordquo 150 Idem Ibidem ldquoEt ideo proprie loquendo feritas vel saevitia dicitur secundum quam aliquis in poenis inferendis non considerat aliquam culpam eius qui punitur sed solum hoc quod delectatur in hominum cruciaturdquo ldquo[] a ferocidade ou seviacutecia eacute atribuiacuteda aos que ao punirem algueacutem natildeo visam agrave culpa da pessoa mas soacute ao proacuteprio prazer do sofrimento alheiordquo 151 Idem Ibidem ldquoEt sic patet quod continetur sub bestialitate nam talis delectatio non est humana sed bestialis []rdquo 152 Idem Ibidem II-II 157 1 ad 3 ldquoQui autem in poenis hominum propter se delectantur etiam sine causa possunt dici saevi vel feri quasi affectum humanum non habentes ex quo naturaliter homo diligit hominemrdquo

306 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mesmo a memoacuteria do que jaacute foi aprendido153 Pode-se pensar que com dor nem o professor pode lecionar sobre o que sabe

Tambeacutem eacute evidente que para aprender algo novo se exige estudo e esforccedilo com grande atenccedilatildeo [] Por isso se a dor for intensa o homem eacute impedido de poder aprender E a dor pode intensificar-se a ponto de natildeo permitir enquanto dura que o homem pense em coisas que aprendera antes154

Se a dor ou tristeza eacute moderada pode acidentalmente ajudar a aprender enquanto retira o excesso de prazeres Mas por si impede o estudo e se for intensa suprime de todo155

Tomaacutes mdash professor que sempre foi mdash considera um viacutecio o

haacutebito daqueles que corrigem os outros com menoscabo difamando-os ou inquietando-os Resoluto sobre estes sentencia ldquoAo contraacuterio eacute vicioso reparar nos erros do proacuteximo para menosprezaacute-lo difamaacute-lo ou simplesmente inquietaacute-lo sem proveito algumrdquo156 Decerto que a correccedilatildeo eacute necessaacuteria mas esta deve ser fruto de uma sensibilidade temperada pela razatildeo157

153 Aliaacutes a melhor ldquoreceitardquo para uma boa memoacuteria eacute amar o que se faz Idem Ibidem I-II 47 2 C ldquo[] ea enim quae magna aestimamus magis memoriae infigimusrdquo ldquoAs coisas que julgamos importantes fixamos melhor na memoacuteriardquo 154 Idem Ibidem I-II 37 1 C ldquoSimiliter etiam manifestum est quod ad addiscendum aliquid de novo requiritur studium et conatus cum magna intentione [] Et ideo si sit dolor intensus impeditur homo ne tunc aliquid addiscere possit Et tantum potest intendi quod nec etiam instante dolore potest homo aliquid considerare etiam quod prius scivitrdquo 155 Idem Ibidem I-II 37 1 ad 2 ldquoSi ergo dolor seu tristitia fuerit moderata per accidens potest conferre ad addiscendum inquantum aufert superabundantiam delectationum Sed per se impedit et si intendatur totaliter aufertrdquo 156 Idem Ibidem II-II 167 2 ad 3 ldquoSed quod aliquis intendit ad consideranda vitia proximorum ad despiciendum vel detrahendum vel saltem inutiliter inquietandum est vitiosumrdquo 157 Idem Ibidem ldquoAd tertium dicendum quod prospicere facta aliorum bono animo vel ad utilitatem propriam ut scilicet homo ex bonis operibus proximi provocetur ad melius vel etiam ad utilitatem illius ut scilicet corrigatur si quid ab eo agitur vitiose secundum regulam caritatis et debitum officii est laudabile []rdquo ldquoDeve-se dizer que eacute louvaacutevel atentar com boa intenccedilatildeo para o que os outros fazem se for para utilidade proacutepria vendo as boas accedilotildees alheias como estiacutemulo a ser melhores ou se for para a utilidade do proacuteximo para que este seguindo as regras da caridade e do seu dever do ofiacutecio se corrija no que estiver praticando de malrdquo

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Com estes exemplos mdash tirados do tratado acerca da temperanccedila da Summa Theologiae mdash queremos mais uma vez pontuar que as virtudes natildeo visam tolher a nossa sensibilidade mas harmonizaacute-la humanizaacute-la a fim de tornar possiacutevel a fundaccedilatildeo de um mundo de uma ambiecircncia capaz de hospedar os homens

Para o escacircndalo de alguns de seus contemporacircneos o Aquinate defende que o homem natildeo tem trecircs almas mas apenas uma forma substancial uma alma intelectiva que acumula as funccedilotildees vegetativas sensitivas e intelectivas Eis uma passagem paradigmaacutetica

Deve-se pois dizer que nenhuma outra forma substancial existe no homem senatildeo a alma intelectiva E que ela assim como virtualmente conteacutem a alma sensitiva e a alma vegetativa assim tambeacutem conteacutem todas as formas inferiores e ela realiza por si soacute tudo o que as formas menos perfeitas realizam nos outros158

Destarte ldquo[] deve-se dizer que no homem a alma

sensitiva intelectiva e vegetativa eacute numericamente a mesmardquo159 Eacute pois uma uacutenica e mesma forma intelectiva ldquo[] a forma pela qual o homem eacute um ente em ato um corpo um ser vivo um animal e um homemrdquo160 Conclui ainda Tomaacutes ldquo[] Soacutecrates natildeo eacute homem por uma alma e animal por outra mas por uma soacute e mesma almardquo161 Ora as virtudes visam precisamente direcionar a nossa sensibilidade para que ela natildeo se manifeste de forma animalesca

158 Idem Ibidem I 76 4 C ldquoUnde dicendum est quod nulla alia forma substantialis est in homine nisi sola anima intellectiva et quod ipsa sicut virtute continet animam sensitivam et nutritivam ita virtute continet omnes inferiores formas et facit ipsa sola quidquid imperfectiores formae in aliis faciuntrdquo 159 Idem Ibidem I 76 3 C ldquoSic ergo dicendum quod eadem numero est anima in homine sensitiva et intellectiva et nutritivardquo 160 Idem Ibidem I 76 6 ad 1 ldquoUna enim et eadem forma est per essentiam per quam homo est ens actu et per quam est corpus et per quam est vivum et per quam est animal et per quam est homordquo 161 Idem Ibidem I 76 3 C ldquo[] ita nec per aliam animam Socrates est homo et per aliam animal sed per unam et eandemrdquo

308 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mas de maneira racional afinada com a complexidade do nosso ser

Estamos cientes de que restaria muito por ser desenvolvido neste capiacutetulo mas nosso objetivo era apenas sinalizar para a existecircncia de uma leitura em chave filosoacutefica de uma parte que integra a teologia moral de Tomaacutes de Aquino Esta leitura eacute possiacutevel porque Tomaacutes natildeo pensa que o pecado tenha corrompido a natureza humana enquanto tal Em razatildeo disso o homem mdash para o Aquinate mdash eacute sempre capaz de adquirir as virtudes naturais ao menos o necessaacuterio para ser um bom cidadatildeo Ora uma vez que existe a possibilidade de uma vivecircncia eacutetica no acircmbito restrito do humano mdash o que procuramos estabelecer com definiccedilotildees e exemplos neste capiacutetulo e ao longo do nosso texto mdash eacute possiacutevel tambeacutem haver uma inquiriccedilatildeo de cunho filosoacutefico acerca da eacutetica Pois bem no capiacutetulo quarto verificamos que esta inquiriccedilatildeo da razatildeo sobre os pilares de uma eacutetica humana isto eacute estritamente filosoacutefica Tomaacutes pensou poder ser integrada no bojo mesmo da sua sabedoria teoloacutegica e isto sem nenhum prejuiacutezo no que tange agrave unidade da ciecircncia teoloacutegica visto que esta natildeo pode descurar das coisas naturais pois eacute por meio delas mdash maacutexime do homem mdash que aprouve a Deus revelar-Se Tendo pois estabelecido a existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica integrada agrave teologia moral do Aquinate pensamos poder passar agraves consideraccedilotildees finais deste trabalho

Conclusatildeo

No primeiro capiacutetulo mostramos que a filosofia nasce do thaỹma (θαῦμα) tendo este vocaacutebulo grego neutro a significaccedilatildeo de estupor espanto assombro do homem ao se deparar com a sua ignoracircncia com a sua vulnerabilidade e com a precariedade da sua existecircncia Para sair deste estado de indigecircncia o homem busca entatildeo um conhecimento incancelaacutevel que natildeo se pode ocultar busca em uma palavra a alḗtheia (ἀλήθεια) E como a busca Busca-a atraveacutes do poacutelemos (πόλεμος) do diaacutelogos (διάλογος) Mediante o diaacutelogos nasce a epistḗmē (ἐπιστήμη) que natildeo eacute senatildeo um saber que ldquopara em peacuterdquo justamente porque passou pelo crivo do diaacutelogos Assim a palavra filosofia (φιλοσοφία) conteacutem fiacutelos (φίλος) que deriva de filiacutea (φιλία) termo que designa um amor de curadoria e sofiacutea (σοφία) que vem de safḗs (σαφής) nome que designa o que eacute claro luminoso A filosofia pode entatildeo ser definida como a procura constante da sabedoria que se possui quando da posse da verdade isto eacute da luz incontrovertida a qual por sua vez seraacute como que o unguento a mitigar o nosso medo da dor da desventura e da morte Daiacute que a filosofia nasce tambeacutem como ẽthos (ἦθος) enquanto este termo exprime a pretensatildeo intriacutenseca ao homem de construir um espaccedilo humano distinto do da fyacutesis (φύσις) ou seja de construir uma ambiecircncia humana um mundo habitaacutevel para o homem Ora a filosofia entendida como busca da verdade eacute assumida pelos medievais inclusive por Tomaacutes e tambeacutem para eles o filosofar soacute se perfaz mediante a disputatio que eacute como os latinos expressam por assim dizer a ideia do diaacutelogos grego

Mas a eacutetica soacute se constitui como ldquociecircnciardquo e como um ramo da filosofia praacutetica em Aristoacuteteles Disto tratou o nosso segundo capiacutetulo Eacute Aristoacuteteles que a partir da semacircntica de dois termos dotou a eacutetica de uma racionalidade proacutepria De fato o termo ldquoethosrdquo pode ser grafado e entendido de dois modos Primeiro como ἦθος (ẽthos) com um η inicial Quando assim escrito

310 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino nomeia a morada do homem o haacutebitat humano enquanto tal Segundo como ἔθος (eacutethos) com um ε inicial e entatildeo designa haacutebito isto eacute a disposiccedilatildeo estaacutevel para agir de determinada maneira Unindo estas duas acepccedilotildees podemos construir o seguinte raciociacutenio pelos haacutebitos isto eacute pelo ἔθος (eacutethos) o homem torna-se capaz de construir a sua ambiecircncia o seu ἦθος (ẽthos) Desta sorte a ēthikḗ mdash ciecircncia do ẽthos (ἦθος) e do eacutethos (ἔθος) mdash pode ser definida como a ciecircncia que estuda quais satildeo os haacutebitos (heacutexeis) que permitem ao homem construir o seu mundo

Sendo a eacutetica uma ciecircncia que pretende entender o que significa viver como homem ela precisa compreender antes o que eacute o homem Ora o homem eacute um animal dotado de loacutegos Loacutegos entendido enquanto fala linguagem capacidade de ir aleacutem da simples emissatildeo de voz para a palavra significativa Esta concepccedilatildeo revela ser o homem um zȭon politikoacuten isto eacute um ente essencialmente comunicativo capaz de pensar o bem e o mal o justo e o injusto com os seus semelhantes Pois bem a poacutelis (πόλις) nasce justamente como o resultado de homens que criam koinōniacutea (κοινωνία) porquanto comungam de princiacutepios cuja conquista soacute se daacute quando exercem o seu loacutegos De mais a mais uma vez que o homem eacute um zȭon politikoacuten a ēthikḗ seraacute mdash se quiser ser uma ldquociecircncia humanardquo mdash uma ldquociecircncia poliacuteticardquo (ἐπιστήμη πολιτικήepistḗmē politikḗ) De resto sendo os atos humanos flexiacuteveis e variaacuteveis a ēthikḗ seraacute uma ciecircncia que comporta flutuaccedilotildees Trataraacute do que ocorre quase sempre mas natildeo sempre

Nos capiacutetulos seguintes apontamos os conceitos basilares de que Tomaacutes se serve para assumir estas noccedilotildees em seu pensamento Buscamos sem pretender expor sistematicamente aclarar como esta conceptualidade da eacutetica antiga mdash preponderantemente da aristoteacutelica mdash estaacute presente na teologia moral do Aquinate Com este intuito mostramos como nas Quaestiones disputatae De Virtutibus mdash escrito contemporacircneo ao Comentaacuterio agrave Eacutetica e agrave redaccedilatildeo da IIa parte da Summa mdash o Aquinate ao tratar das virtudes cardeais define-as como cardeais

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exatamente por serem como a dobradiccedila que gira uma porta mediante a qual adentramos por assim dizer na casa do homem isto eacute na vida propriamente humana Parece-nos que com isso Tomaacutes retoma a metaacutefora do ἦθος (ẽthos) e a concepccedilatildeo de ēthikḗ como o estudo de quais satildeo os haacutebitos que condicionam o homem a construir o seu mundo permitindo assim que nasccedila no bojo de sua teologia moral uma reflexatildeo filosoacutefica acerca da eacutetica Mas as semelhanccedilas natildeo param por aiacute

A fim de darmos um remate agrave tentativa de formular uma concepccedilatildeo de eacutetica procuramos estabelecer a distinccedilatildeo mdash conhecida pelos gregos mdash entre ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) Verificamos que zōḗ diz vida enquanto capacidade efetiva de viver e de viver de certa maneira Jaacute biacuteos nomina o exerciacutecio mesmo de viver e de viver de certa maneira Biacuteos fala portanto de certo estilo de vida de um jeito de viver habitual Biacuteos em uma palavra eacute a vida vivida o ato mesmo de viver Em Aristoacuteteles o biacuteos proacuteprio do homem eacute a vida segundo o loacutegos que se desdobra na vida da poacutelis Tambeacutem em Tomaacutes observamos que a vida proacutepria do homem eacute a vida segundo a ratio que se perfaz pelo exerciacutecio da linguagem (locutio) a qual estabelecendo a comunicaccedilatildeo entre os homens consolida entre eles a comunhatildeo que constitui a civitas A linguagem enquanto comunicativa visto que racional passa a ser entatildeo um lugar privilegiado na obra moral de Tomaacutes porque acena para a possibilidade de se pensar uma eacutetica filosoacutefica dotada de consistecircncia

Ademais a vida propriamente humana mdash para Tomaacutes mdash eacute a vida eacutetica que eacute necessariamente vida poliacutetica Donde tanto para o Aquinate quanto para Aristoacuteteles a vida mdash entendida como zōḗ mdash eacute algo dado pela natureza mas a vida compreendida como biacuteos eacute obra de nossas matildeos dos nossos haacutebitos Neste sentido sinaliza Mondin ldquo[] o homem eacute uma realidade essencialmente projetual um projeto aberto para definir-se e realizar-serdquo1 E a eacutetica mdash que se

1 MONDIN Battista Os Valores Fundamentais Trad Jacinta Turolo Gargia Satildeo Paulo EDUSC 2005 pp 159-160

312 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino exerce na dinacircmica do ato livre mdash natildeo eacute senatildeo o realizar-se do homem que com os seus semelhantes constroacutei a sua proacutepria ldquobiosferardquo a sua felicidade Dito de outro modo a eacutetica se apresenta como a tentativa de o homem construir uma ambiecircncia um vivarium humano Destarte uma vez msid a experiecircncia eacutetica se apresenta como dotada de certa suficiecircncia posto que filha do homem

A virtude eacute condiccedilatildeo sine qua non para alcanccedilar o proacuteprio verdadeiro bem o fim uacuteltimo a felicidade e o que se quer dizer com essas palavras eacute plena realizaccedilatildeo de si mesmo do proacuteprio ser do proacuteprio projeto de humanidade []2

Algo que gostariacuteamos ainda de destacar eacute a abertura que a

ratio dos latinos herda do loacutegos grego Para ambos a verdade eacute sob certo aspecto filha do tempo Por conseguinte a eacutetica enquanto ciecircncia eacute um projeto inacabado uma reflexatildeo a ser completada a cada geraccedilatildeo O proacuteprio exerciacutecio da ratio que se perfaz pela linguagem natildeo comporta exaustatildeo O raciacuteocinio eacute um ato dinacircmico por essecircncia Explica Tomaacutes

Conhecer eacute simplesmente apreender a verdade inteligiacutevel Raciocinar eacute ir de um objeto conhecido a um outro em vista de conhecer a sua verdade inteligiacutevel [] Os homens [] chegam ao conhecimento da verdade inteligiacutevel procedendo de um elemento a outro e por isso satildeo chamados racionais3

Pela passagem acima pode-se constatar que o Aquinate

distingue o conhecer do raciocinar O conhecimento que eacute a apreensatildeo da verdade inteligiacutevel eacute sempre o fim o raciocinar eacute o ldquocomordquo o homem conhece vale dizer passando de uma verdade agrave

2 Idem Ibidem p 160 3 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 79 8 C ldquoIntelligere enim est simpliciter veritatem intelligibilem apprehendere Ratiocinari autem est procedere de uno intellecto ad aliud ad veritatem intelligibilem cognoscendam [] Homines autem ad intelligibilem veritatem cognoscendam perveniunt procedendo de uno ad aliud ut ibidem dicitur et ideo rationales dicunturrdquo

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outra Notemos entatildeo que Aquino pensa o conhecimento natildeo como algo estaacutetico mas dinacircmico ou seja como um movimento pelo qual a partir de verdades jaacute conhecidas chegamos a verdades ainda por noacutes desconhecidas A falar com exaccedilatildeo na concepccedilatildeo de Tomaacutes ser racional a saber conhecer de um modo humano consiste justamente em conhecer passando de uma verdade agrave outra sem perder o encadeamento e isto vale para a razatildeo praacutetica a qual consiste no exerciacutecio que nos daacute a conhecer a regra e a medida da nossa natureza Poreacutem eacute importante notar que este exerciacutecio de descoberta pelo raciociacutenio deve ser feito pela mediaccedilatildeo da linguagem que eacute por definiccedilatildeo comunicativa Em uma palavra eacutetica natildeo se faz sozinho E isto nos leva a dizer que a construccedilatildeo da eacutetica enquanto ciecircncia inicia-se ou melhor deveria iniciar-se no exerciacutecio mesmo de ser eacutetico ou seja no ato mesmo de nos abrirmos agrave possibilidade de pela linguagem descobrirmos que o que nos une mdash a lei natural mdash eacute maior do que o que nos separa4 Por outro lado conforme jaacute acenamos a eacutetica eacute uma ciecircncia que se mostra como um movimento que se aperfeiccediloa pelo labor das geraccedilotildees Neste sentido Aristoacuteteles afirma algo interessante em sua Metafiacutesica

[] de fato se cada um pode dizer algo a respeito da realidade e se tomada individualmente essa contribuiccedilatildeo pouco ou nada acrescenta ao conhecimento da verdade todavia da uniatildeo de todas as contribuiccedilotildees individuais decorre um resultado consideraacutevel [] Ora eacute justo ser gratos natildeo soacute agravequeles com os quais dividimos as opiniotildees mas tambeacutem agravequeles que

4 Enrico Berti afirma que a condiccedilatildeo para se fazer eacutetica com excelecircncia com virtude eacute fazecirc-la em muacutetua colaboraccedilatildeo BERTI Novos Estudos Aristoteacutelicos III Filosofia Praacutetica p 177 ldquoAleacutem disso como vimos Aristoacuteteles diz explicitamente que para o filoacutesofo eacute seguramente melhor ter colaboradores de modo que a colaboraccedilatildeo na filosofia eacute preferiacutevel agrave solidatildeo e tendo em vista ser a felicidade o que haacute de mais preferiacutevel em absoluto a felicidade suprema para o filoacutesofo natildeo eacute a solidatildeo mas a colaboraccedilatildeo com os outros filoacutesofosrdquo Citemos o texto do Estagirita sobre este assunto ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 12 1172 a 1-5 ldquoE daquilo que a existecircncia significa para cada classe de homens daquilo que para eles daacute valor agrave vida disso mesmo desejam ocupar-se em companhia de seus amigos Por isso alguns bebem juntos outros jogam dados juntos outros associam-se nos exerciacutecios atleacuteticos na caccedila ou no estudo da filosofia [συμφιλοσοφοῦσιν] []rdquo

314 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

expressaram opiniotildees ateacute mesmo superficiais tambeacutem eles com efeito deram alguma contribuiccedilatildeo agrave verdade enquanto ajudaram a formar nosso haacutebito especulativo5

Ora estas consideraccedilotildees de Aristoacuteteles que Tomaacutes retoma

fazem-nos pensar que tanto o loacutegos quanto a ratio implicam intrinsecamente tradiccedilatildeo (traditio) isto eacute natildeo soacute a capacidade de passar de um conhecimento a outro mas ainda de transmitir o empoacuterio do saber de uma geraccedilatildeo para outra a fim de que esta o aprofunde Aliaacutes estes apontamentos valem especialmente para a ldquociecircncia eacuteticardquo jaacute que o objeto de estudo da eacutetica eacute fundamentalmente os atos humanos e sendo estes naturalmente por demais elaacutesticos a ciecircncia que os estuda convida os homens a sempre retomarem a reflexatildeo sobre eles Sob esta oacutetica a eacutetica mdash ldquociecircncia dos costumesrdquo mdash nunca pode perder de vista o horizonte da tradiccedilatildeo Em outras palavras natildeo eacute possiacutevel fazer eacutetica filosoacutefica sem estar mdash de algum modo mdash inserido na tradiccedilatildeo E o lugar propiacutecio para que a tradiccedilatildeo natildeo se perca e prevaleccedila como um ponto de partida para o aprimoramento da reflexatildeo eacutetica eacute a educaccedilatildeo Lima Vaz indica isso numa passagem que julgamos de todo emblemaacutetica para ser omitida

A tradicionalidade ou o poder-ser transmitido eacute pois um constitutivo essencial do ethos e decorre necessariamente do ponto de vista da anaacutelise filosoacutefica da relaccedilatildeo dialeacutetica que se estabelece entre o ethos como costume e o ethos como haacutebito singularizado na praxis eacutetica Natildeo haacute sentido em se falar de um ethos estritamente individual pois a perenidade do ethos efetivada e atestada na tradiccedilatildeo tem em mira exatamente resgatar a existecircncia efecircmera e contingente do indiviacuteduo empiacuterico [] atraveacutes da sua suprassunccedilatildeo na universalidade do ethos ou na continuidade da tradiccedilatildeo eacutetica Entendida nessa sua essencialidade com relaccedilatildeo ao ethos a tradiccedilatildeo eacute a relaccedilatildeo intersubjetiva primeira na esfera eacutetica eacute a relaccedilatildeo que se

5 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica II 993 b 1-15 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005

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estabelece entre a comunidade educadora e o indiviacuteduo que eacute educado justamente para se elevar ao niacutevel das exigecircncias do universal eacutetico ou do ethos da comunidade6

O que esperamos ter esclarecido neste trabalho eacute que a

Summa Theologiae de Tomaacutes de Aquino conteacutem mdash em sua IIa parte mdash um todo (totus) filosoacutefico de cunho eacutetico integrado agrave totalidade (totum) da sua teologia moral sem que isto acarrete uma quebra de unidade porque a feacute pressupotildee o conhecimento natural e a graccedila natildeo tolhe mas aperfeiccediloa a natureza Para transitarmos por este tema tivemos de frequentar outras obras de Tomaacutes e mesmo autores gregos particularmente Aristoacuteteles de quem o Aquinate assume mdash natildeo sem originalidade mdash grande parte do pensamento eacutetico Ao final deste trabalho julgamos poder dizer o que Chesterton afirma de Tomaacutes

Em termos humanos foi ele quem salvou o elemento humano na teologia cristatilde ainda que tenha usado por conveniecircncia alguns elementos da filosofia pagatilde Mas como jaacute se disse enfaticamente o elemento humano tambeacutem eacute cristatildeo 7

De fato com Tomaacutes o pensamento cristatildeo torna-se capaz

de dialogar com o profano ou melhor torna-se capaz de integrar-se ao laico sem abrir matildeo de seus direitos e sem querer suprimir o do outro Nada explica melhor este movimento de respeito agraves duas ordens distintas do que o dito de Jesus ldquoDai pois o que eacute de Ceacutesar a Ceacutesar e o que eacute de Deus a Deusrdquo (Mt 2221) Com efeito aplicando esta maacutexima evangeacutelica em sua obra entendemos que o Aquinate tornou-se portador de uma palavra secular ateacute mesmo no acircmbito da eacutetica Mario dal Pra quando estuda a doutrina eacutetico-poliacutetica de Tomaacutes natildeo deixa de ressaltar este aspecto

6 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 19 7 CHESTERTON Op Cit p 260

316 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

[] Quanto agrave visatildeo de mundo Tomaacutes introduz no pensamento cristatildeo uma atitude antiteacutetica agravequela da tradiccedilatildeo platocircnico-agostiniana os expoentes desta uacuteltima natildeo poderatildeo senatildeo condenar uma visatildeo que a seu ver distancia Deus do homem e do mundo e apresenta a feacute somente como termo integrativo de uma natureza em si mesma subsistente e determinada8

A nosso ver natildeo se trata de distanciar Deus do homem e

do mundo Ao contraacuterio foi precisamente enquanto religioso e fiel ao dito de Cristo de natildeo tomar de Ceacutesar o que pertence a Ceacutesar que Tomaacutes nunca deixou de dialogar com outras tradiccedilotildees inclusive natildeo religiosas pois reconhecia nelas expressotildees da mesma natureza criada por Deus

O que todavia mais impressiona em Tomaacutes eacute a tenacidade com a qual continuou a buscar e a procurar ler traduccedilotildees de textos filosoacuteficos gregos e aacuterabes ateacute os uacuteltimos anos de sua vida movido por uma curiosidade intelectual natildeo comum e por um sentido de real abertura para com todas as tradiccedilotildees do pensamento tambeacutem aquelas preacute-cristatildes e natildeo cristatildes9

Aleacutem disso a partir do conceito de razatildeo tal como o

trabalhamos no texto a saber como uma capacidade de se expressar de forma significativa e comunicativa pensamos que a conceptualidade filosoacutefica da eacutetica tomasiana possa ser revisitada e proposta mdash de forma inteligiacutevel mdash a todos os homens De fato nos uacuteltimos cinquenta anos estaacute ocorrendo algo inaudito isto eacute Tomaacutes

8 PRA Mario dal Sommario di Storia della Filosofia La Filosofia Antica e Medievale Firenze La Nuova Italia 1990 p 308 v 1 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] quanto alla visione del mondo Tommaso introduce nel pensiero cristiano un atteggiamento antitetico a quello della tradizione platonico-agostiniana gli esponenti di questultima non possono che condannare una visione della realtagrave che a loro avviso allontana Dio dalluomo e dal mondo e prospetta la fede solo come termine integrativo duna natura in se stessa sussistente e determinatardquo 9 ESPOSITO PORRO Filosofia Antica e Medievale v 1 p 367 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCiograve che tuttavia piugrave colpisce in Tommaso egrave la tenacia con cui ha continuato a cercare di procurarsi e di leggere traduzioni di testi filosofici greci e arabi fino agli ultimi anni della sua vita mosso da una curiositagrave intellettuale assolutamente non comune e da un senso di reale apertura verso tutte le tradizioni di pensiero anche quelle precristiane o non-cristianerdquo

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vem perdendo dentro do ambiente catoacutelico a sua ateacute entatildeo absoluta preeminecircncia que parecia imarcesciacutevel Mas este acontecimento mdash como nota Anthony Kenny mdash eacute acompanhado por outro fenocircmeno qual seja a obra de Tomaacutes estaacute imiscuindo-se nas instituiccedilotildees seculares com uma forccedila estimulante e inesperada Nas palavras do estudioso

Por outro lado a desvalorizaccedilatildeo de Sto Tomaacutes nas fronteiras do catolicismo tem sido acompanhada por uma revalorizaccedilatildeo do santo nas universidades seculares em vaacuterias regiotildees do mundo Nos primeiros anos do seacuteculo XXI natildeo eacute exagerado falar de um renascimento do tomismo mdash natildeo um tomismo confessional mas um estudo de Tomaacutes que transcende os limites natildeo apenas da Igreja Catoacutelica como tambeacutem do proacuteprio cristianismo10

Ora o nosso trabalho mdash ancorado nas palavras de Kenny mdash

buscou justamente evidenciar a presenccedila desta eacutetica natildeo confessional ou seja uma eacutetica filosoacutefica porque fundada somente na especulaccedilatildeo racional no bojo da teologia moral de Tomaacutes A britacircnica Philippa Foot uma das filoacutesofas analiacuteticas mais notaacuteveis do nosso tempo e pioneira nas pesquisas de metaeacutetica trilhando seus proacuteprios caminhos chegou agrave mesma conclusatildeo em relaccedilatildeo agrave Summa

Em minha opiniatildeo a Summa Theologica eacute uma das melhores fontes das quais dispomos para a filosofia moral e aleacutem disso os

10 KENNY Op Cit p 99 Nesse tempo que nos separa do Conciacutelio Vaticano II os proacuteprios pensadores de inspiraccedilatildeo catoacutelica jaacute comeccedilaram a fazer um mea-culpa admitindo que na sede de modernizar o pensamento filosoacutefico-teoloacutegico de cunho cristatildeo natildeo souberam separar o joio do trigo no que toca agraves interpretaccedilotildees de Tomaacutes Um deles confessa ldquodesoladordquo VENTIMIGLIA Giovanni Distinctio Realis Ontologie aristotelico-tomiste nella prima metagrave del Novecento Lugano EUPRESS FTL 2012 p 8 ldquoSuccede che il mondo veramente moderno nel frattempo ha riscoberto tutta la profonditagrave delle cosiddette questione obsolete del vecchio tomismordquo ldquoSucede que o mundo verdadeiramente moderno neste iacutenterim redescobriu toda a profundidade das assim chamadas questotildees obsoletas do velho tomismordquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] Em outras palavras no juiacutezo deste estudioso o pensamento de Tomaacutes eacute mais atual e mais apto para dialogar com o mundo moderno do que a ldquonouvelle theologierdquo

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escritos eacuteticos de santo Tomaacutes satildeo uacuteteis tanto para o ateu quanto para o catoacutelico ou para um outro crente cristatildeo11

A nosso ver mesmo as reflexotildees estritamente teoloacutegicas de

Tomaacutes estatildeo prenhes de filosofia Tentemos exprimir-nos agora com exemplos Tomemos a sua teologia do pecado original Quando os nossos primeiros pais pecaram aconteceram duas coisas A primeira foi que o homem perdeu a justiccedila original virtude excedente agrave sua natureza a segunda foi que esta mesma natureza embora enfraquecida permaneceu iacutentegra no que lhe eacute constitutivo a razatildeo e a tendecircncia natural agrave virtude ainda que esta uacuteltima tenha sido diminuiacuteda Ora permanecendo iacutentegras em sua raiz 12 as faculdades humanas continuaram dignas de

11 FOOT Philippa Virtues and Vices and Other Essays in Moral Philosophy Oxford 19981 pp XI-XII In MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 76 Por exemplo a temaacutetica da eacutetica que concebe este mundo como a nossa casa comum permanece atual e foi o tema escolhido para a mais recente Enciacuteclica do Papa Francisco Laudato Sirsquo sobre o cuidado da casa comum de maio de 2015 Na percepccedilatildeo do Pontiacutefice esta temaacutetica eacute de interesse de todos os homens De fato nas paacuteginas da Enciacuteclica o Papa alerta que inobstante tenhamos coisas que nos distingam ao menos uma tarefa pertence a todos noacutes a saber a de natildeo deixar que esta terra se torne um espaccedilo inoacutespito luacutegubre Vide FRANCISCO Papa Laudato Sirsquo Disponiacutevel lt httpw2vaticanvacontentfrancescoptencyclicalsdocumentspapa-francesco_20150524_enciclica-laudato-sihtmlgt 12 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 85 2 C ldquoEt ideo aliter est dicendum quod praedicta inclinatio intelligitur ut media inter duo fundatur enim sicut in radice in natura rationali et tendit in bonum virtutis sicut in terminum et finem Dupliciter igitur potest intelligi eius diminutio uno modo ex parte radicis alio modo ex parte termini Primo quidem modo non diminuitur per peccatum eo quod peccatum non diminuit ipsam naturam ut supra dictum est Sed diminuitur secundo modo inquantum scilicet ponitur impedimentum pertingendi ad terminum Si autem primo modo diminueretur oporteret quod quandoque totaliter consumeretur natura rationali totaliter consumpta Sed quia diminuitur ex parte impedimenti quod apponitur ne pertingat ad terminum manifestum est quod diminui quidem potest in infinitum quia in infinitum possunt impedimenta apponi secundum quod homo potest in infinitum addere peccatum peccato non tamen potest totaliter consumi quia semper manet radix talis inclinationisrdquo ldquoEacute preciso pois explicar de outra maneira A inclinaccedilatildeo predita concebe-se como um meio entre duas coisas ela tem um fundamento uma raiz na natureza racional e tende ao bem da virtude como a um termo e a um fim Por conseguinte a diminuiccedilatildeo pode se conceber de duas maneiras do lado da raiz e do lado do termo Do lado da raiz o pecado natildeo produz nenhuma dimininuiccedilatildeo pois que ele natildeo diminui a proacutepria natureza como foi dito Mas do lado do termo haacute uma diminuiccedilatildeo enquanto se potildee um impedimento para chegar ao termo Se houvesse diminuiccedilatildeo pela raiz deveria alguma vez desaparecer totalmente tendo desaparecido totalmente a natureza racional Mas porque haacute diminuiccedilatildeo pelo impedimento posto para natildeo chegar ao termo eacute claro que isso pode ir ao infinito porque os obstaacuteculos podem ser postos ao infinito uma vez que o homem pode acrescentar ao

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confiabilidade em sua funccedilatildeo proacutepria Em outros termos o homem pode natildeo somente conhecer a verdade consoante a sua natureza senatildeo tambeacutem adquirir as virtudes naturais e alcanccedilar certa beatitude sem o auxiacutelio da graccedila Nisso percebemos que a teologia do pecado original em Tomaacutes eacute uma fresta uma espeacutecie de fenda para uma reflexatildeo filosoacutefica autocircnoma porquanto ao mesmo tempo que afirma ter o homem perdido os dons preternaturais salvaguarda os atributos da natureza humana

Outro exemplo eacute quando Tomaacutes veda ao homem a visatildeo do bem supremo nesta vida De fato se o homem natildeo pode ver o bem supremo (Deus) nesta vida ele tem acesso somente a bens relativos parciais ou seja bens por um lado mas natildeo bens por outro 13 Eacute certo outrossim que o homem natildeo conhece necessariamente nem sequer os bens necessaacuterios agrave beatitude Ora isso torna o seu juiacutezo praacutetico e a sua vontade indeterminados quanto a estes bens Dito doutro modo ele pode querer ou natildeo querer qualquer bem mais ainda pode agir ou natildeo agir em relaccedilatildeo a qualquer um destes bens E aqui reside o livre-arbiacutetrio o qual daacute ao homem o domiacutenio sobre os seus atos e o ser senhor de si entregue ao seu conselho o homem eacute pai de suas accedilotildees como o eacute de seus filhos Nasce entatildeo de um teoacutelogo e no seio mesmo da sua teologia a possibilidade de uma ldquocultura laicardquo Sob este aspecto pode-se ateacute dizer que a maacutexima ldquophilosophia ancilla theologiaerdquo eacute invertida em Tomaacutes ldquotheologia ancilla

infinito pecado sobre pecado Entretanto a inclinaccedilatildeo natildeo pode desaparecer completamente pois sempre fica a raizrdquo [Os itaacutelicos satildeo nossos] 13 Idem Ibidem I 82 2 C ldquoSed tamen antequam per certitudinem divinae visionis necessitas huiusmodi connexionis demonstretur voluntas non ex necessitate Deo inhaeret nec his quae Dei sunt Sed voluntas videntis Deum per essentiam de necessitate inhaeret Deo sicut nunc ex necessitate volumus esse beati Patet ergo quod voluntas non ex necessitate vult quaecumque vultrdquo ldquoTodavia antes que a necessidade dessa conexatildeo seja demonstrada pela certeza da visatildeo divina a vontade natildeo adere necessariamente nem a Deus nem agraves coisas que satildeo de Deus Mas a vontade daquele que vecirc Deus em sua essecircncia adere necessariamente a Deus da mesma maneira que agora queremos necessariamente ser felizes Eacute evidente portanto que a vontade natildeo quer necessariamente tudo o que ela querrdquo

320 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino philosophiaerdquo14 E foi precisamente isto que quisemos mostrar a saber que tal respeito pelo secular sai da pena de um religioso

Por traacutes destes exemplos vislumbramos enfim a tarefa principal do saacutebio ou seja alcanccedilar uma visatildeo integral da coisa uma visatildeo prospectiva E uma visatildeo prospectiva natildeo contempla apenas o conjunto senatildeo a relaccedilatildeo das partes com o todo Mas a relaccedilatildeo da parte com o todo natildeo eacute nem a parte nem o todo mas eacute a forma como a parte se relaciona com o todo O olhar humano eacute capaz de ver natildeo somente a parte e o todo mas a ordenaccedilatildeo da parte no todo Uma casa e uma fileira de tijolos satildeo ambas um conjunto de tijolos Poreacutem para aquele que consegue ver a disposiccedilatildeo da parte em relaccedilatildeo ao todo a casa eacute algo distinto de uma simples montanha de tijolos porque afinal a ordenaccedilatildeo das partes na casa eacute diversa da de um amontoado de tijolos Ora um homem quando consegue ver com periacutecia a disposiccedilatildeo da parte em relaccedilatildeo ao todo de sua proacutepria obra destaca-se dela porque se torna capaz de criar ou ao menos entrever uma nova forma de ordem entre as partes uma nova casa por exemplo Materialmente falando a Summa Theologiae de Tomaacutes abarca um conjunto de questotildees muito semelhantes com as sumas e outros gecircneros literaacuterios de seu tempo Talvez ateacute o modo como o Aquinate relaciona ou ordena as partes de sua teologia natildeo seja o que mais a destaque das outras teologias O que diferencia a Summa de Tomaacutes das outras eacute que o Aquinate consegue entrever como por um ldquoponto de fugardquo de sua inteligecircncia que a filosofia a mesma que na sua teologia eacute uma parte que se relaciona com o todo teoloacutegico pode constituir ela proacutepria um todo Ele consegue ver dentro de sua visatildeo no caso da sua visatildeo da relaccedilatildeo entre filosofia e teologia outra visatildeo qual seja a de uma ordem filosoacutefica autocircnoma Este ldquoponto de fugardquo jaacute transparece em sua obra por exemplo quando Tomaacutes rejeita a evidecircncia para noacutes da existecircncia

14 Vide o interessante artigo que mostra que esta inversatildeo jaacute existe em Boaventura COLLI Andrea Theologia ancilla Philosophiae Una lettura dellrsquoItinerarium Disponiacutevel em lthttprivisteunimiitindexphpDoctorVirtualisarticleview73122gt

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de Deus Em filosofia ou se demonstra que Deus existe ou Sua existecircncia permanece uma incoacutegnita 15 Esta visatildeo permitiu ao Aquinate a nosso juiacutezo entrever ldquomundos possiacuteveisrdquo com um olhar que ultrapassava a proacutepria cristandade Em outras palavras ele foi um saacutebio natildeo somente porque conseguiu ordenar ofiacutecio proacuteprio do saacutebio16 mas tambeacutem porque entreviu outras ordens possiacuteveis e mesmo coexistentes e assim pocircde eleger dentre vaacuterias alternativas uma Em uma palavra Tomaacutes escolheu ser teoacutelogo natildeo por falta de opccedilatildeo mas porque quis17

Natildeo buscamos portanto com este trabalho mdash e isto seria antes a ruiacutena do nosso texto mdash transformar Tomaacutes de Aquino num ldquofiloacutesofo purordquo um moderno Ao contraacuterio nosso foco foi tornar patente como um religioso e teoacutelogo como Tomaacutes que viveu no seacuteculo XIII foi tambeacutem um filoacutesofo ou melhor um ldquofilosofanterdquo18 e em moral soube acolher e debater com o secular bem como admitiu a existecircncia de uma eacutetica que sem eliminar as diferenccedilas pode ser compartilhada pelo homo religiosus e pelo homo profanus De toda maneira se ao menos tivermos conseguido ser persuasivos ao optar por comeccedilarmos dos

15 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 2 1 C ldquoDico ergo quod haec propositio Deus est quantum in se est per se nota est quia praedicatum est idem cum subiecto Deus enim est suum esse ut infra patebit Sed quia nos non scimus de Deo quid est non est nobis per se nota sed indiget demonstrari per ea quae sunt magis nota quoad nos []rdquo ldquoDigo portanto que a proposiccedilatildeo Deus existe enquanto tal eacute evidente por si porque nela o predicado eacute idecircntico ao sujeito Deus eacute seu proacuteprio ser como ficaraacute claro mais adiante Mas como natildeo conhecemos a essecircncia de Deus esta proposiccedilatildeo natildeo eacute evidente para noacutes precisa ser demonstrada por meio do que eacute mais conhecido para noacutes []rdquo 16 Idem Suma Contra os Gentios I I 1 [2] ldquoUnde inter alia quae homines de sapiente concipiunt a philosopho ponitur quod sapientis est ordinarerdquo ldquo[] entre outras funccedilotildees que os homens atribuem ao saacutebio a de que pertence ao saacutebio ordenar eacute proposta pelo Filoacutesofo (I Metafiacutesica 2 982a Cmt 2 42-43)rdquo 17 Vide a abordagem de Barzaghi que aplica o conceito de ldquoponto de fugardquo agrave teologia de Tomaacutes BARZAGHI Giuseppe La Fuga Il gioco dellimmagine Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=HALef5f18Iogt 18 GILSON Eacutetienne A existecircncia na filosofia de Santo Tomaacutes de Aquino Trad Geraldo Pinheiro Machado e Gilda Lessa Rev Guilherme Nery Pinto Satildeo Paulo Livraria duas cidades 1962 p 8 ldquoSe um teoacutelogo julgasse conveniente recorrer agrave Filosofia nos seus trabalhos teoloacutegicos como foi o caso de S Tomaacutes de Aquino natildeo era normalmente chamado lsquofiloacutesoforsquo e sim philosophans theologus (teoacutelogo filosofante) ou simplesmente philosophans (um filosofante)rdquo

322 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino primoacuterdios e de Aristoacuteteles antes de verificarmos a sua ressonacircncia em Tomaacutes de que natildeo se pode fazer filosofia seguindo o esquema de Proclo a Descartes deve-se passar como por um salto jaacute nos daremos por satisfeito19 De resto fazemos nossas as palavras de Giovanni Reale

E entatildeo natildeo soacute eacute loucura renunciar a filosofar mas eacute tambeacutem loucura devendo inexoravelmente filosofar acreditar que se pode limitar ao hoje jaacute que o presente natildeo eacute inteligiacutevel sem o passado do qual nasce e ademais natildeo eacute nunca verdadeiramente atual ou soacute eacute ilusoriamente atual porque atual natildeo eacute o momento que foge mas o que resiste aleacutem do momento e no limite soacute o eterno eacute verdadeiramente atual20

Entre outras razotildees tambeacutem estas justificam mdash a nosso ver

mdash o inusitado e entusiasmante renascimento (renaissance) do pensamento do Aquinate no acircmbito laico Restaria expor de forma sistemaacutetica esta eacutetica mas isto jaacute seria outra empresa de focirclego

19 DE BONI Luis Alberto Estudar Filosofia Medieval In Idem Filosofia Medieval Textos Porto Alegre EDIPUCRS 2000 p 8 ldquoA histoacuteria dos estudos de Filosofia Medieval natildeo eacute tatildeo longa e pode ser relativamente bem datada O Renascimento a Reforma e o Iluminismo voltaram-se conscientemente contra a Idade Meacutedia Este principalmente partiu de um preconceito era necessaacuterio deixar de lado tudo o que foi escrito como Filosofia entre a Antiguumlidade e os tempos modernos Eacute ceacutelebre o dito de que entre o fechamento da Academia Platocircnica por Justiniano em 529 e o lsquoDiscurso sobre o Meacutetodorsquo de Descartes em 1637 existe um vazio de 1108 anos A afirmaccedilatildeo pode parecer estranha para o leitor moderno mas foi no espiacuterito dela que se fundou o Curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da USP na deacutecada de 30 no esquema ceacutelebre Sprung uumlber das Mittelalter (o salto por sobre a Idade Meacutedia) passava-se de Proclo a Descartes com a maior naturalidade Transcorreu meio seacuteculo antes que se criasse a cadeira de Filosofia Medieval na mais renomada instituiccedilatildeo de ensino superior do Brasilrdquo 20 REALE Giovanni Histoacuteria da Filosofia grega e romana vol IV Aristoacuteteles Trad Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 195

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Para saber mais

Exortaccedilatildeo ao estudo deixada por Tomaacutes de Aquino

ldquoTerceira quando diz lsquoE o tempo eacute um bom inventor ou colaborador de tais tarefasrsquo etc mostra de que modo o homem eacute ajudado pelo dito E diz sobre essas coisas que o tempo parece ser como um descobridor ou um bom colaborador para o que estaacute bem circunscrito Natildeo de fato que o tempo por si mesmo tenha algo para aquele que age mas na medida em que as coisas satildeo feitas no tempo De fato se algueacutem procedendo no tempo investigar a verdade o tempo ajudaraacute a encontrar a verdade e quanto a um mesmo homem que depois veja o que natildeo via antes e tambeacutem quanto aos diversos homens como quando algueacutem capta as coisas que descobriram os seus predecessores e acrescenta algo E por esse modo satildeo feitos os acreacutescimos nas artes dos quais em princiacutepio pouco foi inventado e depois atraveacutes de diversos homens pouco a pouco atingiu uma grande quantidade porque pertence a qualquer homem acrescentar o que falta ao considerado pelos predecessores Se poreacutem ao contraacuterio se deixa de lado o exerciacutecio do estudo o tempo eacute antes causa de esquecimento como se diz no livro quarto da Fiacutesica e quanto a um homem que se entrega agrave negligecircncia esquece-se do que sabia e de tantas outras coisas diversas Por isso vemos que muitas ciecircncias ou artes que vigoraram entre os antigos cessaram pouco a pouco no esquecimento pelo teacutermino do estudordquo [TOMAacuteS DE AQUINO Comentaacuterio de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica a Nicocircmaco I-III o bem e as virtudes Trade Rev Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rio de Janeiro Mutuus 20015 v I I Lect 11 ndeg 3-4 O itaacutelico eacute nosso]

1) Haacute um site francoacutefono (Aquinas) todo ele dedicado ao Aquinate e idealizado

por dominicanos ligados agrave Universiteacute de Fribourg (Suiacuteccedila) que se preocupou em corrigir as legendas para facilitar o acesso dos que tecircm pouca familiaridade com a liacutengua francesa Neste site haacute cursos de iniciaccedilatildeo ao pensamento de Tomaacutes oferecidos gratuitamente on-line Basta se inscrever

httpsiaquinascom a) No que toca agrave filosofia aos que se interessarem indico particularmente as

liccedilotildees sobre antropologia filosoacutefica tomasiana de Franccedilois-Xavier Putallaz

340 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

httpswwwyoutubecomwatchlist=PLoF9tICw5xHMFru4TuxUim_cLoO6fHgphampv=yIPpc6c0H8s

2) Haacute um canal no Youtube chamado Civilisation chreacutetienne que vem registrando as famosas journeacutees thomistes de onde saem fasciacuteculos que estatildeo em sintonia com a Commissio Leonina hoje presidida pelo dominicano italiano Adriano Oliva o qual organiza tambeacutem estas journeacutees junto com Laurent Lemoine OP httpswwwyoutubecomwatchv=W6YYqSL34qgamplist=PLp1nhiHAIwkg2

fu08nXsKWzLlAsBK2j56 3) Haacute um viacutedeo (com legendas ativas) ilustrativo e divertido que apresenta

Tomaacutes tal como ele eacute um pensador de estilo ldquosuave luacutecido civil e judiciosordquo (Anthony Kenny)

httpswwwyoutubecomwatchv=GJvoFf2wCBU 4) No canal da Editrice La Scuola haacute uma interessante seacuterie de entrevistas

imaginaacuterias Nesta os grandes estudiosos italianos dos filoacutesofos claacutessicos entrevistam os seus autores Assim Giovanni Reale entrevista Platatildeo Enrico Berti Aristoacuteteles Umberto Eco Tomaacutes de Aquino e assim por diante Aprecio o que Eco potildee na boca do Aquinate mas com ressalvas Divulgo a bela iniciativa httpswwwyoutubecomwatchv=c_Dg4cXD0qIamplist=PLTpVCciFlnXaE4

7aN4p_bltIKYxAkTJvkampindex=43

5) Haacute uma seacuterie de encontros promovida pela Associazione Culturale Benedetto XVI sobre a histoacuteria da filosofia ocidental Esta seacuterie foi denominada Il viaggio dei filosofi Ela estaacute dividida em quatro etapas A primeira foi dedicada ao Genio dei Greci Alguns encontros destas etapas estatildeo total ou parcialmente disponiacuteveis no Youtube O que segue abaixo eacute uma apresentaccedilatildeo da primeira etapa e toca em alguns dos conceitos-chave dos primoacuterdios da filosofia Um dos expositores eacute o professor Luigi Girlanda um dos idealizadores do projeto

httpswwwyoutubecomwatchv=DqCaF2s1SUMampt=1s 6) Existe um site chamado Cattedra Rosmini ligado ao Rosmini Institute ao

Istituto di Studi Filosofici di Lugano e agrave Facoltagrave di Teologia di Lugano que se dedica a disponibilizar cursos congressos e conferecircncias on-line sobre Rosmini metafiacutesica claacutessica ldquotomismo analiacuteticordquo etc Haacute vaacuterios estudos por

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exemplo sobre a atualidade do chamado argumento ontoloacutegico de Anselmo Destacaria

a) O videocurso (dez liccedilotildees) de Alain de Libera mdash em italiano mdash sobre Lrsquoidentitagrave personale nella filosofia medievale ldquoO argumento do curso eacute aquele da lsquoidentidade pessoalrsquo na filosofia moderna (Descartes e Locke) e no medievo (um problema filosoacutefico-teoloacutegico) O curso trata da pessoa da personalidade e do sujeito na filosofia e teologia antiga e medieval tocando temas como o lsquosujeito da accedilatildeorsquo na escolaacutestica e na filosofia moderna (Tomaacutes de Aquino Locke Kant Reid)rdquo(A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismolidentita-personale-nella-filosofia-medievale

b) O videocurso (dez liccedilotildees) Filosofia Pratica ministrado por Enrico Berti ldquoPor que eacute atual a filosofia praacutetica O curso eacute principalmente baseado em comentaacuterios de passagens de autores que vatildeo de Platatildeo a Gadamer contidos no livro lsquoE Berti Filosofia pratica 2004 Guidarsquordquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa) O curso procura mostrar entre outras coisas quando e como se originou a identificaccedilatildeo entre a froacutenēsis e a filosofia praacutetica Berti defende que a filosofia praacutetica em Aristoacuteteles eacute uma ciecircncia distinta da froacutenēsis que natildeo eacute uma ciecircncia

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismofilosofia-pratica c) O videocurso (dez liccedilotildees) Le prove dellrsquoesistenza di Dio nella filosofia classica

ministrado por Enrico Berti ldquoO curso se propotildee a ilustrar as principais provas da existecircncia de Deus elaboradas por alguns filoacutesofos que se podem considerar claacutessicos ou seja Aristoacuteteles Anselmo de Aosta e Tomaacutes de Aquino A propoacutesito de cada um deles seratildeo ilustradas e discutidas tambeacutem as retomadas ou as criacuteticas desenvolvidas por alguns filoacutesofos modernos (Descartes Leibniz Kant Hegel) e por alguns filoacutesofos contemporacircneos que se reportam agrave lsquometafiacutesica claacutessicarsquo (S Vanni Rovighi G Bontadini M Gentile)rdquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa) httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismole-prove-dellesistenza-

di-dio-nella-filosofia-classica

d) O videocurso (dez liccedilotildees) La teologia razionale nella filosofia analitica ministrado por Mario Micheletti ldquoO curso tem como objeto o renascimento jaacute faz ao menos vinte anos da teologia racional no interior daquela filosofia

342 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

analiacutetica que inicialmente tinha sido ateia e inimiga declarada da metafiacutesica O curso em particular ilustraraacute as principais formulaccedilotildees das provas da existecircncia de Deus em alguns filoacutesofos analiacuteticos contemporacircneos pondo o acento sobretudo na reelaboraccedilatildeo em chave modal da prova ontoloacutegica e sobre as novas apresentaccedilotildees do argumento cosmoloacutegico e da lsquoteologia naturalrsquo e os desenvolvimentos da apologeacutetica negativardquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismola-teologia-razionale-nella-filosofia-analitica

e) ldquoNesta entrevista o Prof G Ventimiglia discute com o Prof E Berti sobre temas comuns e sobre as diferenccedilas entre a ontologia aristoteacutelica e a [ontologia] analiacutetica contemporacircnea Detecircm-se tambeacutem em uma particular corrente da ontologia analiacutetica que mostra segundo Berti uma concepccedilatildeo univocista do ser Vem abordada ainda a questatildeo da difiacutecil acolhida da ontologia analiacutetica no interior do pensamento cristatildeordquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismodifferenze-tra-lontologia-aristotelica-e-quella-analitica-contemporanea

f) ldquoA importacircncia destas videoconferecircncias estaacute em particular no fato de que naquela ocasiatildeo o professor Berti declarou publicamente depois de ter ouvido a conferecircncia de Varzi natildeo ter mais nenhuma espeacutecie de reserva sobre a ontologia e sobre a metafiacutesica analiacutetica Trata-se portanto em certo sentido de um documento histoacuterico porque pela primeira vez um grande estudioso da chamada metafiacutesica claacutessica declara encontrar-se completamente lsquoem casarsquo na metafiacutesica analiacutetica e reconhece que os grandes temas da metafiacutesica aristoteacutelica estatildeo de novo vivos no atual debate em acircmbito analiacuteticordquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismometafisica-classica-e-metafisica-analitica-oggi1564731804205-1b711eb7-c8fb

g) O videocurso Dio come Essere (duas liccedilotildees) ldquoNa primeira parte do curso dada pelo prof E Berti examinam-se as criacuteticas de PT Geach e A Kenny agrave concepccedilatildeo de Deus como Esse ipsum subsistens professada por Tomaacutes de Aquino e se reconstroacutei a origem de tais criacuteticas nas objeccedilotildees feitas por Aristoacuteteles agrave doutrina de um ente que tenha por essecircncia o ser mesmo por ele atribuiacuteda a Platatildeo Com este propoacutesito se leem e se comentam as passagens da Metafiacutesica (livro III e livro X) nas quais Aristoacuteteles desenvolve

Saacutevio Laet de Barros Campos | 343

tais objeccedilotildees Depois segue-se o desenvolvimento da concepccedilatildeo de Deus como ser em Fiacutelon em Plotino no comentaacuterio ao Parmecircnides atribuiacutedo a Porfiacuterio e nos primeiros filoacutesofos cristatildeos Finalmente examina-se a posiccedilatildeo assumida a este respeito por Tomaacutes de Aquino destacando nela a presenccedila de duas concepccedilotildees diversas do ser de Deus uma que reduz tal ser agrave simples existecircncia outra ao contraacuterio que o concebe como o somatoacuterio de todas as perfeiccedilotildees Enquanto a primeira concepccedilatildeo eacute exposta agraves criacuteticas de Aristoacuteteles e dos filoacutesofos analiacuteticos a segunda eacute subtraiacuteda (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa) Mesmo natildeo aderindo agraves criacuteticas dirigidas a Tomaacutes divulgo a existecircncia da discussatildeo httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismodio-come-essere-prof-

berti h) Intervenccedilatildeo de Enrico Berti por ocasiatildeo do Convegno Internazionale di

Filosofia Dio come Essere Metafisiche classiche e metafisiche analitiche O encontro foi promovido pelo Istituto di Studi Filosofici e Giornale di Metafisica de Lugano em maio de 2015 A intervenccedilatildeo eacute intitulada Argomenti aristotelici contro lrsquoesistencia di un Essere per essenza Novamente ressalto que natildeo concordo com as criacuteticas dirigidas a Tomaacutes de Aquino apenas registro a existecircncia do debate

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismodio-come-essere i) Enfim haacute uma intervenccedilatildeo de Berti no Convegno Internazionale di filosofia

Esistenza e Identitagrave O evento foi realizado pela Universitagrave Cattolica del Sacro Cuore de Milatildeo em maio de 2014 A intervenccedilatildeo eacute intitulada Una possibile interpretazione della metafisica classica

httpswwwrosminiinstituteitla-rosminianaconvegniesistenza-e-identita1560948369274-c01298b3-999e

7) Haacute um debate acerca da atualidade do pensamento de Tomaacutes o qual foi realizado a partir da apresentaccedilatildeo do livro Tommaso drsquoAquinomdash un profilo storico-filosofico (Carocci 2012 Esta obra possui uma ediccedilatildeo brasileira pela Loyola e estaacute indicada na bibliografia) de Pasquale Porro que se encontra publicado num canal do Youtube O diaacutelogo foi promovido pelo Centro Culturale di Milano Participaram da mesa Costantino Esposito o mediador Pasquale Porro o autor Onorato Grassi e Luca Bianchi os arguidores ambos medievalistas e expertos em Tomaacutes de Aquino

httpswwwyoutubecomwatchv=-NoXLrVoLUsampt=2530s

344 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

8) Existem vaacuterias intervenccedilotildees de Enrico Berti registradas em vaacuterios canais do Youtube Elenco apenas algumas

a) Aristotele e la philia httpswwwyoutubecomwatchv=-u1CQpAMtVg

b) La giustizia nella filosofia antica httpswwwyoutubecomwatchv=vUfJuCMaSeEampt=18s

c) Logos e techne nella filosofia antica httpswwwyoutubecomwatchv=9rOBUFLzovcampt=6s

d) Podcast dia-logando (Enrico Bertimdash PlatoneAristoteleParmenide) httpswwwyoutubecomwatchv=KGBrdgcuS4camplist=PL4D5B514D3F616

19F

e) Heidegger e letica aristotelica httpswwwyoutubecomwatchv=seHJS2hjRFU

f) Encontro de Apresentaccedilatildeo da nova traduccedilatildeo da Metafiacutesica de Aristoacuteteles feita por Enrico Berti A ediccedilatildeo que conta tambeacutem com introduccedilatildeo e notas do tradutor eacute da editora Laterza A parte mais instigante do encontro eacute a fala do erudito Berti explica que procurou afastar-se das traduccedilotildees que pretendiam transformar a Metafiacutesica numa teologia racional Esta tendecircncia de fazer da Metafiacutesica uma espeacutecie de teologia racional segundo Berti remonta ao ceacutelebre comentaacuterio agrave Metafiacutesica de Alexandre de Afrodiacutesia Ora este comentaacuterio sempre segundo o estudioso influenciou as antigas traduccedilotildees da obra e mesmo as interpretaccedilotildees que ela recebeu durante seacuteculos

httpswwwyoutubecomwatchv=i7NNekWgE_k g) Apresentaccedilatildeo do livro ldquoVeritagrave e comparazione in Aristotelerdquo (Venezia

Istituto Veneto di Scienze 2014) de Matteo Cosci com prefaacutecio de Enrico Berti O volume na verdade eacute a tese de doutorado do autor defendida na Universitagrave degli Studi di Padova sob a supervisatildeo de Enrico Berti No link abaixo a parte mais interessante satildeo as consideraccedilotildees iniciais de Berti

httpswwwyoutubecomwatchv=nQYC8zAJljMampt=233s h) Num encontro intitulado ldquoMente e Neuroscienzerdquo haacute uma intervenccedilatildeo de

Berti a uacuteltima de uma seacuterie sobre o tema ldquoMente e anima due entitagraverdquo Nela dialogando com autores contemporacircneos ele tenta mostrar a atualidade do conceito de psykhḗ de Aristoacuteteles como forma do corpo como ldquoato primeiro de um corpo fiacutesico que tem a vida em potecircnciardquo Apenas penso

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que a questatildeo da imortalidade da alma ao contraacuterio do que diz Berti eacute uma questatildeo filosoacutefica

httpswwwyoutubecomwatchv=-BcUVrWQcEAampt=4441s i) Veritagrave come conformitagrave mdash Dialogo tra Filosofia e Scienza

httpswwwyoutubecomwatchv=nycGmKFQDxo j) Una Filosofia metafisica

httpswwwyoutubecomwatchv=QZrAa1NqMGgampt=115s k) Intervista a Enrico Berti (Penso que o termo thaỹma diz mais do que fala

Berti na sua resposta O seu livro In principio era la meravigliamdash Le grandi questioni della filosofia antica editado pela Laterza possui uma traduccedilatildeo brasileira pela Loyola No princiacutepio era a maravilhamdash As grandes questotildees da filosofia antiga)

httpswwwyoutubecomwatchv=I_Mj1orEsck l) Intervista a Enrico Berti (O livro de Berti Sumphilosopheinmdash La vita

nellAccademia di Platone lanccedilado pela Laterza natildeo possui ateacute o momento uma ediccedilatildeo brasileira)

httpswwwyoutubecomwatchv=g95dIipDXcU m) Enrico Berti mdashPolitica di Aristotele

httpswwwyoutubecomwatchv=0b6T-pHeu4oampt=320s n) Tradurre o tradire la Metafisica di Aristotele ndash Lectio Prof Berti

httpswwwyoutubecomwatchv=l7CdFtiPi-wampt=1356s o) La ragione allrsquoinfinito

httpswwwyoutubecomwatchv=Ls4BPxnI5jkampt=748s p) Hegel e o livro Lambda da Metafiacutesica

httpswwwyoutubecomwatchv=HVsMA7WdbJkampt=1315s q) Enrico Berti ndash Il linguaggio nel pensiero di Aristotele

httpswwwyoutubecomwatchv=Wb-rMYubITUampt=344s r) Haacute vaacuterias liccedilotildees de Berti registradas no canal Festival filosofia

a) Sobre a amizade como virtude poliacutetica na Eacutetica a Nicocircmaco

httpswwwyoutubecomwatchv=ivO5S-DqpYU

b) Ainda sobre a amizade na Eacutetica a Nicocircmaco

httpswwwyoutubecomwatchv=xqLHT5k6Me4ampt=1107s

c) Sobre o tempo na Fiacutesica de Aristoacuteteles

httpswwwyoutubecomwatchv=2EahUfK474Uampt=906s

d) Sobre a megalopsykhiacutea na Eacutetica a Nicocircmaco

346 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

httpswwwyoutubecomwatchv=pfEiMEpTPQYampt=340s

e) Sobre a Poliacutetica de Aristoacuteteles Vejo com reserva o fato de Berti natildeo aceitar o termo comunidade para ajudar a entender o termo poacutelis Salva reverentia penso que desde que se esclareccedila o que se entende por comunidade esta palavra pode prestar bons serviccedilos

httpswwwyoutubecomwatchv=FL1o0yHEq58ampt=278s

f) Sobre a poiacuteēsis na Eacutetica a Nicocircmaco

httpswwwyoutubecomwatchv=fgZYPWkJop4ampt=956s

g) Sobre a verdade na Metafiacutesica de Aristoacuteteles

httpswwwyoutubecomwatchv=RhjX5OvPVeYampt=297s

h) Sobre o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo como fundamento da verdade

httpswwwyoutubecomwatchv=Wd_et-c0LOIampt=598s 9) Haacute finalmente uma conferecircncia particularmente ilustrativa de Enrico Berti

sobre o realismo de Aristoacuteteles Il realismo di Aristotele vecchio o nuovo A conferecircncia ocorreu durante o ciclo ldquoRealisms New and Oldrdquo promovido pelo filoacutesofo italiano Maurizio Ferraris que estaacute ligado agrave corrente denominada ldquoNuovo Realismordquo Berti fez a sua intervenccedilatildeo a partir de uma obra de Hilary Putnam traduzida para o italiano La filosofia nellrsquoetagrave della scienza Trad Luciana Ceri et al Bologna Il Mulino 2012 Neste livro o filoacutesofo americano dedica o capiacutetulo XII a Aristoacuteteles La mente di Aristotele e la mente contemporanea Na paacutegina 276 afirma Putnam ldquoPara Aristoacuteteles segundo a interpretaccedilatildeo que defendo na percepccedilatildeo e no pensamento a parte intelectiva da alma estaacute em contato direto com as propriedades das coisas pensadas Para usar a linguagem contemporacircnea os democritianos e os estoicos tinham uma teoria lsquorepresentacionalrsquo da percepccedilatildeo enquanto (segundo penso) os aristoteacutelicos eram lsquorealistas diretosrsquo Na concepccedilatildeo aristoteacutelica existem sem duacutevida algumas dificuldades Essas derivam do essencialismo implicado na noccedilatildeo aristoteacutelica de lsquoformarsquo e se agravam se sustentamos que a forma do objeto esteja na mente quando pensamos o objeto assim como quando o percebemos No caso do pensamento a forma da qual fala Aristoacuteteles parece ser aquilo que ele considera a lsquoessecircnciarsquo e encontro seacuterias

Saacutevio Laet de Barros Campos | 347

dificuldades na ideia de que podemos pensar somente coisas das quais conhecemos a lsquoessecircnciarsquo Mas Gisela Striker me sugeriu que no caso da percepccedilatildeo eacute improvaacutevel que Aristoacuteteles tenha em mente uma noccedilatildeo tatildeo rigorosa de forma Eacute plausiacutevel que a forma recebida na percepccedilatildeo seja simplesmente a forma sensiacutevel mdash a cor a forma a consistecircncia o som ou qualquer outra coisa Se interpretamos Aristoacuteteles deste modo ele parece dizer simplesmente que na percepccedilatildeo estamos conscientes das propriedades sensiacuteveis das coisas externas mdash da sua forma da sua cor e assim por dianterdquo (A traduccedilatildeo livre eacute nossa) Berti natildeo soacute concorda com Putnam como vai aleacutem

httpswwwyoutubecomwatchv=by8x28LAkm4ampt=4069s 10) Minhas monografias de conclusatildeo de licenciatura e de especializaccedilatildeo em

Filosofia pela UFMT foram em Tomaacutes de Aquino Ambas estatildeo publicadas pela Editora Fi e se encontram gratuitamente disponiacuteveis em PDF

httpswwweditorafiorg2526savio 11) Mantenho faz quase dez anos um site chamado Filosofante Nele trabalho

de forma introdutoacuteria questotildees concernentes ao pensamento do Aquinate httpwwwfilosofanteorgfilosofante

  • Agradecimentos
  • Lista de transliteraccedilotildees0F gregas1F
    • TRANSLITERACcedilAtildeO DOS DITONGOS
    • Transliteraccedilatildeo dos espiacuteritos brandos e aacutesperos
      • Sumaacuterio
      • Prefaacutecio
      • Apreciaccedilatildeo
      • Apresentaccedilatildeo
        • O legado tomista eacute pois imenso e se me perguntarem qual de suas obras eacute a mais importante direi que eacute a Suma Teoloacutegica E direi mais eacute a obra filosoacutefico teoloacutegica mais importante produzida pela Idade Meacutedia Isso natildeo desqualifica outras obras del
        • Voltemos agrave Suma Teoloacutegica A maior obra de Tomaacutes de Aquino e a mais importante obra do pensamento medieval natildeo surgiu de um grande projeto Frei Tomaacutes estava lecionando no Studium generale que a Ordem Dominicana acabava de criar em Roma Nada que se
        • Uma breve exposiccedilatildeo para principiantes acabou recebendo o nome de summa (resumo apanhado) uma summa que provocaria admiraccedilatildeo e respeito atraveacutes dos seacuteculos Em cerca de seis anos de 1268 a 1273 - apesar de muitos trabalhos entre os quais aleacutem de
        • A obra foi dividida em trecircs partes A primeira delas trata de Deus em si da Trindade e da criaccedilatildeo E quem natildeo recorre a ela quando deseja encontrar provas sobre a existecircncia de Deus (questatildeo 3) ou quando se pergunta sobre o que vem a ser esta criatu
        • A segunda parte eacute a mais longa ocupando cerca de 35 do total da obra Eacute dedicada toda ela agrave Moral enquanto regresso do homem para Deus Eacute a parte onde mais o autor apela para a Filosofia e para redigi-la eacute evidente que leu antes e comentou a Eacuteti
        • Concordo com os muitos que dizem ser a segunda parte da Suma Teoloacutegica o mais importante tratado de Eacutetica escrito ateacute hoje A Eacutetica Filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que o leitor encontraraacute a seguir confirma o que estou dizendo
        • Luis Alberto De Boni
          • Introduccedilatildeo
          • Capiacutetulo I
          • Filosofia e Eacutetica
            • 11 Do mito agrave filosofia o ldquothaỸmardquo como princiacutepio do filosofar
            • 12 Filosofia e ldquoalḖtheiardquo a filosofia como ldquofiliacuteardquo agrave ldquosofiacuteardquo
            • 13 A filosofia como ldquotheōriacuteardquo o nascimento da ldquoepistḖmērdquo pelo proceder do ldquodiaacutelogosrdquo
            • 14 Tomaacutes de Aquino e a ldquoFilosofiacuteardquo do ldquodiaacutelogosrdquo agrave ldquodisputatiordquo
              • Capiacutetulo II
              • A eacutetica enquanto ciecircncia em Aristoacuteteles
                • 21 Contextualizaccedilatildeo Histoacuterica da Eacutetica
                • 22 Preacircmbulos antropoloacutegicos e a Definiccedilatildeo de eacutetica
                • 23 TEacuteLOS E EYDAIMONIacuteA
                • 24 Eacutergon AretḖ e Kakiacutea
                • 25 PROAIacuteRESIS E BOYacuteLEYSIS
                • 26 Virtudes dianoeacuteticas e eacuteticas o conceito de justo meio quanto agraves virtudes eacuteticas
                • 27 O papel da amizade na eacutetica
                • 28 Contornos acerca do conceito de EYDAIMONIacuteA
                • 29 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA CIEcircNCIA EacuteTICA
                • 291 Froacutenēsis e epistḗmē
                • 292 A epistḗmē ēthikḗ enquanto epistḗmē politikḗ
                  • Capiacutetulo III
                  • A recepccedilatildeo da eacutetica aristoteacutelica na
                  • teologia moral de Tomaacutes
                    • 31 Contextualizaccedilatildeo criacutetica Tomaacutes como auCtor
                    • 32 O conceito de natureza em Tomaacutes
                    • 33 A concepccedilatildeo TOMASIANA DA EacuteTICA
                    • 34 O papel da razatildeo da Linguagem e da Lei na eacutetica TOMASIANA
                    • 341 Eacutetica das virtudes e lei natural
                    • 342 Eacutetica e direito
                    • 35 Civitas e beatitudo ou felicitas em Tomaacutes
                    • 36 DO livre-arbiacutetrio distintivo do ato humano Agrave pessoa
                    • 361 A pessoa
                    • 362 O bem uacutetil honesto e deleitaacutevel
                    • 37 A amizade
                    • 38 A racionalidade proacutepria DA eacutetica
                    • 381 Prudecircncia e filosofia praacutetica
                    • 382 Os eacutendoxa em Tomaacutes de Aquino
                      • Tomando por base estes pressupostos podemos considerar como funciona a razatildeo na eacutetica tomasiana
                        • 383 A racionalidade proacutepria da eacutetica tomasiana
                          • Capiacutetulo IV
                          • O conceito de Teologia em Tomaacutes de Aquino
                            • 41 O conceito de Teologia como ciecircncia em Tomaacutes
                            • 42 O ldquoobjetordquo da Teologia
                            • 43 O papel da filosofia na Teologia tomasiana
                            • 44 A face humana da Teologia TOMASIANA
                            • 45 Os ldquopreacutestimosrdquo da filosofia agrave Teologia
                            • 46 O MODO DE PROCEDER de Tomaacutes
                              • Capiacutetulo V
                              • Toacutepicos da Eacutetica Filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino
                                • 51 O que eacute o homem
                                • 52 A eacutetica INTEGRADA de Tomaacutes
                                • 53 As paixotildees da alma
                                • 54 A estrutura do ato humano
                                • 55 As virtudes
                                • 551 A bondade e a maliacutecia do ato humano
                                • 552 A definiccedilatildeo de virtude como habitus e meio-termo da razatildeo
                                • 553 A conexatildeo das virtudes
                                • 554 As virtudes cardeais
                                  • Conclusatildeo
                                  • Referecircncias
                                    • A) Fontes PRIMAacuteRIAS
                                    • B) FONTES SECUNDAacuteRIAS
                                      • Para saber mais
Page 3: Epedagogia · 2020. 3. 29. · Diagramação e capa: Lucas Fontella Margoni Arte de capa: Detalhe do Retrato de Santo Tomas de Aquino, por P. Joos van Gent e Berruguetee O padrão

Saacutevio Laet de Barros Campos

A eacutetica filosoacutefica em

TOMAacuteS DE AQUINO

2ordf ediccedilatildeo - Revisada e Atualizada

φ editora fi

Diagramaccedilatildeo e capa Lucas Fontella Margoni Arte de capa Detalhe do Retrato de Santo Tomas de Aquino por P Joos van Gent e Berruguetee O padratildeo ortograacutefico o sistema de citaccedilotildees e referecircncias bibliograacuteficas satildeo prerrogativas do autor Da mesma forma o conteuacutedo da obra eacute de inteira e exclusiva responsabilidade de seu autor

Todos os livros publicados pela Editora Fi estatildeo sob os direitos da Creative Commons 40 httpscreativecommonsorglicensesby40deedpt_BR

httpwwwabecbrasilorgbr Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo (CIP) CAMPOS Saacutevio Laet de Barros A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino [recurso eletrocircnico] Saacutevio Laet de Barros Campos -2ordf Ediccedilatildeo - Porto Alegre RS Editora Fi 2017 347 p ISBN - 978-85-5696-251-5 Disponiacutevel em httpwwweditorafiorg 1 Eacutetica Filosoacutefica 2 Teologia Moral 3 Aristoacuteteles 4 Tomaacutes de Aquino I Tiacutetulo

CDD-170

Iacutendices para cataacutelogo sistemaacutetico 1 Eacutetica 170

A Jesus Eucariacutestico agrave Santiacutessima Virgem

ao glorioso Santo Tomaacutes de Aquino aos meus amados e inestimaacuteveis pais Armando e Darci agrave minha querida e insubstituiacutevel madrinha Luzia Maria [in memoriam] agrave pequena Amanda

Rodrigues [in memoriam] garotinha digna de ser amada agrave minha diletiacutessima tia-avoacute Irmatilde Denise Marie [in memoriam] Irmatildes Azuis e aos mestres Prof Dr

Peter Buumlttner Prof Dr Joseacute Jivaldo Lima e Prof Dr Luiz Jean Lauand

Agradecimentos

Ao professor Dr Angelo Aparecido Zanoni Ramos e agrave Profordf Drordf Maria Cristina Theobaldo por ter-nos pacientemente orientado como tambeacutem pela valiosa amizade compreensatildeo apoio em todos os momentos e dedicaccedilatildeo ao ofiacutecio de ensinar de que somente satildeo capazes aqueles verdadeiramente dignos de serem chamados mestres

Aos examinadores Prof Dr Luis Alberto De Boni Prof Dr Roberto Hofmeister Pich e Prof Dr Aloir Pacini SJ que gentilmente cederam parte de seu valioso tempo para a leitura e avaliaccedilatildeo deste trabalho e ao Coordenador do Programa Prof Dr Tiegue Vieira Rodrigues pelo precioso auxiacutelio e atenccedilatildeo em todos os momentos ao Prof Dr Gabriel Mograbi ao Prof Dr Silas Borges Monteiro agrave Profordf Drordf Sara Pozzer da Silveira ao Prof Dr Wendell Lopes ao Prof Dr Walter Gomide ao Prof Dr Roberto de Barros Freire agrave Drordf Michella Lopes Velaacutesquez agrave Drordf Daniela Piau de Lima Maitelli ao Prof Dr Fabio di Clemente graccedilas ao qual comecei a tomar contato com a tradiccedilatildeo filosoacutefica italiana ao Prof Vito Nunziante (meu mestre de italiano) que pacientemente revisou vaacuterias das minhas traduccedilotildees e ao Prof Otaacutevio de Lima e Silva (meu professor de grego e revisor teacutecnico do grego deste trabalho) pelo apoio e inestimaacutevel auxiacutelio que sempre nos dispensaram

Aos meus pais amigos e colegas (em especial agrave senhora Nasla Rodrigues Gonccedilalves de Saboacuteia Campos pela receptividade a Joatildeo Paulo Martins Juliano Xavier e Fernanda Marcia da Luz Rondon) que muito nos auxiliaram e cujo incentivo ajuda praacutetica apoio moral e acolhida nunca poderatildeo ser suficientemente retribuiacutedos

Agrave CAPES agecircncia financiadora da pesquisa sem a qual o nosso estudo e este trabalho natildeo teriam sido possiacuteveis

ldquoConstatemos que mesmo para os contemporacircneos o

tomismo tinha um cariz propriamente filosoacutefico Possuiacutea tambeacutem um certo ar de Renascimentordquo

Paul Vignaux

ldquo[Tomaacutes] pensa que a razatildeo se se manteacutem aderente agrave sua ordem atinge a verdade ateacute onde eacute capaz sem depender em nada da feacuterdquo

Henry Dumeacutery

ldquoAgrave sua proacutepria maneira a Summa Theologiae eacute

uma obra-prima da literatura filosoacuteficardquo

Anthony Kenny

ldquoO mestre natildeo deve portanto fazer mais que levar o disciacutepulo ao conhecimento daquilo que lhe eacute desconhecido seguindo o mesmo

percurso pelo qual teria chegado sozinho (ou pelo qual outros chegam sozinhos) ou seja deve explicar com sinais apropriados (palavras) o percurso que a razatildeo eacute capaz de realizar sozinha A aprendizagem natildeo eacute portanto senatildeo uma forma de descoberta

guiada de fora e que sempre se apoia na proacutepria razatildeo natural do disciacutepulo

Se assim natildeo fosse isto eacute se o mestre natildeo confiasse nos princiacutepios naturais que estatildeo presentes nele como em seu

disciacutepulo esse uacuteltimo natildeo adquiriria verdadeiramente ciecircncia limitar-se-ia a crer em alguma coisa ou a

consideraacute-la verdadeira natildeo a compreendecirc-la ou desenvolveria feacute ou opiniatildeo mas natildeo exatamente ciecircnciardquo

Pasquale Porro

Lista de transliteraccedilotildees1 gregas2 Αα = Aa Ββ = Bb

Γγ = Gg Δδ = Dd

Εε = Ee Ζζ = Zz

Ηη = Ēē Θθ = Th (como no inglecircs think)

Ιι = Ii Κκ = Kk

Λλ = Ll Μμ = Mm

Νν = Nn Ξξ = Xx (como em taacutexi)

Οο = Oo Ππ = Pp

Ρρ = Rr Σσ = Ss

Σς (forma final) = Ss Ττ = Tt

Υυ = Yy (como o ldquourdquo francecircs) Φφ = Ff

Χχ = Kh (como em carro) Ψψ = Ps

Ωω = Ōō

1 Transliteraccedilatildeo eacute um ldquoato ou efeito de transliterarrdquo com a funccedilatildeo de ldquorepresentar uma letra de um (vocaacutebulo) por uma letra diferente no correspondente vocaacutebulo de outra liacutenguardquo (AULETE Caldas Transliteraccedilatildeo In______ Dicionaacuterio Contemporacircneo da Liacutengua Portuguesa 5 ed Rio de Janeiro Delta 1970 p 3629 v 5) De forma simplificada eacute a substituiccedilatildeo de um caractere da liacutengua de origem para outro da liacutengua de destino Eacute oriunda do latim trans (aleacutem) + litera (letra) (Idem Op Cit) 2 Compomos aqui uma lista de transliteraccedilotildees greco-portuguesas que convencionalmente adotamos ao longo deste trabalho Nem todas as transliteraccedilotildees apresentadas aqui satildeo usadas no texto O que pretendemos eacute oferecer uma ferramenta completa para possibilitar ao leitor reconhecer os termos gregos em portuguecircs

VOGAIS ACENTUADAS3

ᾶ = atilde ά = aacute ὰ = agrave έ = eacute ὲ = egrave ῆ = ẽ ή = ḗ ὴ = ḕ ῖ = ĩ ί = iacute ὶ = igrave ό = oacute ὸ = ograve ῦ = ỹ ύ = yacute ὺ = ỳ ῶ = ȭ ώ = ṓ ὼ = ṑ TRANSLITERACcedilAtildeO DOS DITONGOS αι = ai ΑΙ = AI ει = ei ΕΙ = EI οι = oi ΟΙ = OI υι = yi ΥΙ = YI αυ = ay ΑΥ = AY ευ = ey ΕΥ = EY ηυ = ēy ΗΥ = ĒY ου = oy ΟΥ = OY ωυ = ōy ΩΥ = OY TRANSLITERACcedilAtildeO DOS ESPIacuteRITOS BRANDOS E AacuteSPEROS ἁ = ha ἀ = α ἑ = he ἐ = e ἡ = hē ἠ = ē ἱ = hi ἰ = i ὁ = ho ὀ = o ὑ = hy ὐ = y ὡ = hō ὠ = ō

3 Os acentos foram mantidos em portuguecircs da mesma forma graacutefica que aparece em grego na esteira das observaccedilotildees apresentadas por Antocircnio Freire (FREIRE Antocircnio Gramaacutetica grega 3 ed Satildeo Paulo Martins Fontes 2008 pp 4-9)

Sumaacuterio Prefaacutecio 17 Apreciaccedilatildeo - Frei Carlos Josaphat 19 Apresentaccedilatildeo - Luis Alberto De Boni 21 Introduccedilatildeo 27 Capiacutetulo I 49 Filosofia e Eacutetica 11 Do mito agrave filosofia o ldquothaỹmardquo como princiacutepio do filosofar 50 12 Filosofia e ldquoalḗtheiardquo a filosofia como ldquofiliacuteardquo agrave ldquosofiacuteardquo 54 13 A filosofia como ldquotheōriacuteardquo o nascimento da ldquoepistḗmērdquo pelo proceder do ldquodiaacutelogosrdquo 59 14 Tomaacutes de Aquino e a ldquoFilosofiacuteardquo do ldquodiaacutelogosrdquo agrave ldquodisputatiordquo 66 Capiacutetulo II 75 A eacutetica enquanto ciecircncia em Aristoacuteteles 21 Contextualizaccedilatildeo Histoacuterica da Eacutetica 76 22 Preacircmbulos antropoloacutegicos e a Definiccedilatildeo de eacutetica 80 23 Teacutelos e Eydaimoniacutea 90 24 Eacutergon Aretḗ e Kakiacutea 92 25 Proaiacuteresis e boyacuteleysis 96 26 Virtudes dianoeacuteticas e eacuteticas o conceito de justo meio quanto agraves virtudes eacuteticas 98 27 O papel da amizade na eacutetica 101 28 Contornos acerca do conceito de Eydaimoniacutea 112 29 A racionalidade proacutepria da ciecircncia eacutetica 123 291 Froacutenēsis e Epistḗmē 123 292 A Epistḗmē Ēthikḗ enquanto Epistḗmē Politikḗ 128 Capiacutetulo III 149 A recepccedilatildeo da eacutetica aristoteacutelica na teologia moral de Tomaacutes 31 Contextualizaccedilatildeo criacutetica Tomaacutes como auctor 149 32 O conceito de natureza em Tomaacutes 153 33 A concepccedilatildeo tomasiana da eacutetica 160 34 O papel da razatildeo da Linguagem e da Lei na eacutetica tomasiana 162 341 Eacutetica das virtudes e lei natural 171

342 Eacutetica e direito 177 35 Civitas e beatitudo ou felicitas em Tomaacutes 181 36 Do livre-arbiacutetrio distintivo do ato humano agrave pessoa 188 361 A pessoa 200 362 O bem uacutetil honesto e deleitaacutevel 203 37 A amizade 211 38 A racionalidade proacutepria da eacutetica 218 381 Prudecircncia e filosofia praacutetica 218 382 Os eacutendoxa em Tomaacutes de Aquino 227 383 A racionalidade proacutepria da eacutetica tomasiana 232 Capiacutetulo IV 237 O conceito de Teologia em Tomaacutes de Aquino 41 O conceito de Teologia como ciecircncia em Tomaacutes 238 42 O ldquoobjetordquo da Teologia 241 43 O papel da filosofia na Teologia tomasiana 241 44 A face humana da Teologia tomasiana 250 45 Os ldquopreacutestimosrdquo da filosofia agrave Teologia 254 46 O modo de proceder de Tomaacutes 258 Capiacutetulo V 261 Toacutepicos da Eacutetica Filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino 51 O que eacute o homem 261 52 A eacutetica integrada de Tomaacutes 266 53 As paixotildees da alma 277 54 A estrutura do ato humano 284 55 As virtudes 288 551 A bondade e a maliacutecia do ato humano 288 552 A definiccedilatildeo de virtude como habitus e meio-termo da razatildeo 290 553 A conexatildeo das virtudes 294 554 As virtudes cardeais 299 Conclusatildeo 309 Referecircncias 323 A) Fontes Primaacuterias 323 B) Fontes Secundaacuterias 327 Para saber mais 339

Prefaacutecio

Eacute com alegria que apresento a segunda ediccedilatildeo de A Eacutetica Filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Trata-se da minha dissertaccedilatildeo de mestrado em filosofia pela UFMT (2016) aprovada com louvor Segue o texto revisado e corrigido com desvelo por mim Fiz um esforccedilo hercuacuteleo a fim de sanar quaisquer impropriedades e imprecisotildees que ainda restassem Reli-o sob a oacutetica filosoacutefica e histoacuterica depois sob a gramatical e estiliacutestica Revisei conferindo com os originais as citaccedilotildees em liacutengua portuguesa em seguida revisei as em liacutengua estrangeira e suas respectivas traduccedilotildees Tambeacutem conferi a bibliografia ampliando-a e atualizando os links consultados A abundacircncia de citaccedilotildees eacute apenas um convite agrave leitura e para que todos participem da mesma emoccedilatildeo que sinto ao ler Tomaacutes O texto vem enriquecido por uma Apresentaccedilatildeo do professor Luis Alberto de Boni que fez parte da minha Banca e a quem agradeccedilo penhoradamente Para esta segunda ediccedilatildeo natildeo posso deixar de expressar a diacutevida moral de gratidatildeo que contraiacute com o autor do livro Paradigma Teoloacutegico de Tomaacutes de Aquino nosso frei Carlos Josaphat que neste interregno gentilmente fez uma Apreciaccedilatildeo do trabalho e me ofereceu a sua preciosa amizade Deixo meu muito obrigado agraves senhoras Maria de Lourdes Mendes e Lilian Contreira que singela e amavelmente possibilitaram o meu contato com o frei Carlos Sem ter sofrido nenhuma mudanccedila substancial gostaria de que o texto fosse lido ou relido nesta versatildeo revisitada e atualizada E se pudesse resumir em poucas palavras o que pretendi com esta perquiriccedilatildeo usaria os mesmos termos de Anthony Kenny em reposta a Bertrand Russell Este uacuteltimo em sua Histoacuteria da filosofia ocidental afirmava haver pouco do espiacuterito filosoacutefico em Tomaacutes por supor que Aquino jaacute soubesse de antematildeo mdash em virtude de sua adesatildeo agrave feacute catoacutelica mdash o que buscava descobrir com um argumento Ao que Kenny responde em sua Uma nova histoacuteria da filosofia ocidental

18 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Julgamos um filoacutesofo pelo fato de seus raciociacutenios serem acertados ou natildeo natildeo em funccedilatildeo de onde pela primeira vez se elucidou em relaccedilatildeo agraves suas premissas ou de como pela primeira vez passou a crer em suas conclusotildees A hostilidade a Aquino com base em sua posiccedilatildeo oficial no catolicismo eacute assim injustificada ainda que compreensiacutevel mesmo para filoacutesofos seculares (KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental Filosofia Medieval Trad Edson Bini Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 v 2 p 98)

Inobstante a minha consagraccedilatildeo ao estudo uma devoccedilatildeo

aprovaccedilatildeo oniacutemoda natildeo existe Se o texto se ressente ainda de lacunas e ambiguidades isto se deve seja a questotildees de espaccedilo seja em razatildeo dos meus limites Por esta segunda e derradeira ediccedilatildeo agradeccedilo de modo especial ao editor e colega Lucas Margoni que pacientemente acompanhou os tracircmites de toda esta induacutestria Por fim tomando distacircncia despeccedilo-me deste trabalho certo de que nele entreguei o melhor de mim naquele momento

Sempre Saacutevio Laet

Apreciaccedilatildeo

A mensagem que vocecirc jaacute enviou e jaacute elaborou eacute de extraordinaacuteria riqueza Vocecirc leva muito longe a pesquisa e a sua elaboraccedilatildeo Ousaria dizer que na perspectiva globalizada em que vocecirc se coloca natildeo tiacutenhamos ateacute agora um trabalho dessa natureza e levado adiante com tal conjunto de qualidades

No centro do seu trabalho estaacute a obra-prima de Tomaacutes a Suma de Teologia bem como a Suma Contra os Gentios Um estudo deste nuacutecleo de suas pesquisas e da condensaccedilatildeo agrave qual vocecirc jaacute chegou seraacute um bom ponto de partida para todos os que se interessam por esse campo da ciecircncia sagrada

Gostaria quase de dizer que natildeo se trata apenas de uma contribuiccedilatildeo importante eu a considero original e singular pelo seu conteuacutedo pelo empenho visado de ir sempre ao essencial e de recorrer a todos os meios para valorizar este essencial Para isso o estudioso do tomismo da Teologia claacutessica do cristianismo e de modo geral quem se interessa pela religiatildeo cristatilde conta hoje com sua contribuiccedilatildeo como sendo a mais completa a mais bem ordenada de elementos analisados como conveacutem

Temos assim em matildeos um estudo que se pode considerar substancialmente acabado anunciado como sendo a demonstraccedilatildeo da existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica aristoteacutelica estruturando intelectualmente a teologia moral de Tomaacutes de Aquino

A partir desse projeto preciso e jaacute bem realizado vai surgindo outro muito promissor que assume condensa enriquece e aperfeiccediloa os estudos jaacute existentes sobre o tema Todo universo da moral teoloacutegica de Tomaacutes eacute oferecido de maneira mais completa e rigorosa ordenado em torno da metafisica da ldquomateacuteria e formardquo Sugeri que se aprofundasse essa anaacutelise recorrendo agrave noccedilatildeo mais profunda e universal de ldquoato e potecircnciardquo Tenho para mim que a metafiacutesica do Ato puro (e infinito) de Deus e do ato e potecircncia nas criaturas constitui a base da construccedilatildeo filosoacutefica de Tomaacutes por ele integrada em toda a sua siacutentese filosoacutefica e teoloacutegica

20 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

O estudo dessa conjunccedilatildeo ldquoatopotecircnciardquo veio ampliar e aprimorar a imensa e valiosa siacutentese elaborada a partir ldquoda mateacuteria e formardquo por Saacutevio Laet Ele propotildee uma compreensatildeo muito rica e atualizada da Suma de Tomaacutes utilizando o que haacute de melhor nos tomistas de ontem e de hoje acrescentando a novidade de sua proacutepria reflexatildeo servida por um meacutetodo original susceptiacutevel de oferecer uma nova visatildeo do tomismo

Frei Carlos Josaphat OP

Satildeo Paulo 20 de outubro de 2017

Apresentaccedilatildeo

Inicio esse texto citando o luterano Rudolf von Ihering um dos maiores juristas do seacuteculo XIX Ao preparar a segunda ediccedilatildeo de A finalidade do Direito (Zweck im Recht) obra que todo o jurista conhece resolveu acrescentar uma nota que ateacute hoje eacute citada Ele a inicia agradecendo ao padre catoacutelico D Haoff que lhe indicara alguns textos referentes ao direito provenientes de Tomaacutes de Aquino algueacutem cuja obra lhe era ateacute entatildeo desconhecida E prossegue ldquoEsse padre provou-me atraveacutes de citaccedilotildees de Tomaacutes de Aquino que esse grande espiacuterito jaacute havia reconhecido plenamente o momento realiacutestico-praacutetico social e tambeacutem histoacuterico da Eacutetica No que se refere a mim natildeo posso recusar a acusaccedilatildeo de desconhecimento que D Haoff me faz mas com um peso bem maior essa acusaccedilatildeo atinge os filoacutesofos modernos e os teoacutelogos luteranos que perderam a oportunidade de valer-se dos grandiosos pensamentos desse homem Admirado eu me pergunto como foi possiacutevel que tais verdades depois de terem sido escritas caiacuteram em tatildeo grande esquecimento por parte da nossa ciecircncia protestante Quantos descaminhos ela poderia ter evitado se as houvesse tomado a seacuterio De minha parte se jaacute as houvesse conhecido talvez eu natildeo tivesse escrito todo meu livro pois as ideias fundamentais e era com elas que eu me preocupava encontram-se jaacute naquele portentoso pensador com plena clareza e expressas com termos lapidaresrdquo1

1 Derselbe weist mir durch Zitate aus Thomas ab Aquino nach dass dieser grosse Geist das realistisch-praktische und gesellschaftlische Moment des Sittlichen ebenso wie das historiche bereits vollkommen richtig erkannt hatte Den Vorwurf der Unkenntnis den er fuumlr mich daran knupft kann ich nicht von mir ablehnen aber mit ungleich schwererem Gewicht als mich trifft er die modernen Philosophen und protestantischen Theologen die es versaumlumt haben sich die grossartigen Gedanken dieses Mannes zunutze zu machen Staunend frage ich mich wie war es motildeglich dass solche Wahrheiten nachdem sie einmal ausgesprochen waren bei unserer protestantischen Wissenschaft so gaumlnzlich in Vergessenheit geraten konten Welche Irrwege haumltte sie sich ersparen koumlnne wenn sie dieselben beherzigt hatte Ich meinerseits haumltte vielleicht mein ganzes Buch nicht geschrieben wenn ich sie gekannt hatte denn die Grundgedanken um die es mir zu tun war finden sich schon bei jenem gewaltigen Denker in vollendeter Klarheit und praumlgnantester Fassung ausgesprochen (RUDOLF von IHERING Zweck im Recht 4a ed 1905 c IX n 161 nota 2 p 125)

22 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Para evitar polecircmicas situemos esse texto em seu tempo Quando Ihering escreveu sua obra as divergecircncias entre catoacutelicos e luteranos (e demais reformados) eram grandes ainda estavam sangrando as feridas abertas pelo embate entre a Reforma e a Contra-Reforma No decorrer do tempo sempre houve quem procurou se aproximar do oponente como foram por exemplo os casos dos protestantes H Grotius e G W Lebniz Na Igreja Catoacutelica no iniacutecio do seacuteculo XIX houve tambeacutem os que tentaram aproximaccedilatildeo dialogando com filoacutesofos luteranos mas acabaram sendo condenados por Roma foram os casos dos padres G Hermes e A Guumlnther considerados hoje como precursores de muitas ideias inovadores aceitas pela Igreja No decliacutenio do seacuteculo XIX a Histoacuteria comeccedilou a tomar outros rumos Enfim o seacuteculo XX conheceu o Movimento Ecumecircnico (uma iniciativa dos diversos ramos evangeacutelicos) e da parte da Igreja Catoacutelica o Conciacutelio Ecumecircnico Vaticano II levou a uma grande abertura para com os ldquoirmatildeos separadosrdquo Hoje os catoacutelicos leem M Lutero R Bultmann O Cullman e K Barth do mesmo modo como os luteranos leem Tomaacutes de Aquino K Rahner H de Lubac e Bernard Lonergan

Tomaacutes de Aquino foi um dos grandes filoacutesofos de todos os

tempos2 Legou-nos uma obra imensa que desde 1882 vem sendo publicada em ediccedilatildeo criacutetica Satildeo previstos ao todo 50 volumes sendo alguns deles divididos em dois ou trecircs Neles encontram-se cerca de 40 mil citaccedilotildees o que fez Umberto Eco dizer que um outro autor que apresentasse tantas citaccedilotildees acabaria fazendo um pastiche

2 Sobre a vida e a obra de Tomaacutes de Aquino cfr J-P Torrell Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Loyola 2011C Josaphat Paradigma Teoloacutegico de Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2012

Saacutevio Laet de Barros Campos | 23

Trata-se pois de uma produccedilatildeo imensa agrave qual a de poucos pensadores posteriores pode ser comparada Algueacutem poderaacute dizer a respeito que se tratava de um frade que natildeo precisava se preocupar com o modo de ganhar a vida e que por isso dedicou todo seu tempo ao ofiacutecio de professor Na resposta a isso devem ser feitas duas observaccedilotildees Em primeiro lugar Tomaacutes natildeo foi apenas professor Ele foi missionaacuterio deslocou-se de um local para outro por ordem dos superiores e assim percorreu a peacute ndash como deviam fazer os frades mendicantes ndash cerca de 10 mil quilocircmetros entre Itaacutelia Alemanha e Franccedila Assumiu diversos cargos dentro da Ordem Dominicana e trabalhou tambeacutem como assessor na corte papal entatildeo situada em Orvieto Em segundo lugar eacute preciso levar em conta os anos que dedicou agrave vida acadecircmica A expectativa de vida na Idade Meacutedia estava longe daquela de hoje Houve alguns poucos mestres de seu tempo que tiveram uma longa vida Alberto Magno faleceu aos 80 anos Rogeacuterio Bacon aos 78 Egiacutedio Romano e Guilherme de Moerbeke aos 71 A maioria poreacutem partiu bem antes Marsiacutelio de Paacutedua aos 63 Ockham aos 62 Alexandre de Hales aos 58 Satildeo Boaventura aos 57 Dante e Godofredo de Fontaines aos 56 Henrique de Gand aos 53 E entatildeo chega a vez dos jovens Pedro de Joatildeo Olivi faleceu aos 50 anos Tomaacutes de Aquino aos 4950 Duns Scotus aos 42 Joatildeo Quidort aos 41 e Siacuteger de Brabante aos 40

Santo Tomaacutes nasceu em 12241225 e faleceu em 07031274 Por volta de 1250 sendo assistente de Alberto Magno em Colocircnia publicou o Comentaacuterio sobre Isaiacuteas e em 1273 na qualidade de professor em Naacutepoles deixou inesperadamente de escrever Isso significa que sua vida acadecircmica durou cerca de 23 anos Noutras palavras teve 23 anos para produzir sua obra imensa a maior da Idade Meacutedia Homem de memoacuteria fora do comum e de inteligecircncia aguda era capaz de ditar ao mesmo tempo para trecircs ou quatro secretaacuterios ndash algo raro de que Ceacutesar e Napoleatildeo tambeacutem eram capazes Contam seus bioacutegrafos que muitas vezes um dos secretaacuterios velava noite a fora pois podia

24 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino acontecer que ele acordasse e entatildeo dissesse ldquoEscreve frei Fulanordquo e laacute ficava ele a ditar madrugada a dentro C Wolf E Husserl e M Heidegger trecircs grandes pensadores da modernidade legaram-nos uma imensa produccedilatildeo intelectual cada um deles contando para tanto com cerca de 60 anos de vida acadecircmica E no entanto Frei Tomaacutes com parcos 23 anos de magisteacuterio rivaliza com eles

O legado tomista eacute pois imenso e se me perguntarem qual de suas obras eacute a mais importante direi que eacute a Suma Teoloacutegica E direi mais eacute a obra filosoacutefico teoloacutegica mais importante produzida pela Idade Meacutedia Isso natildeo desqualifica outras obras dele como a Suma contra gentiles a seacuterie de Quaestiones disputatae e outras mais E tambeacutem natildeo deprecia as de outros autores Alexandre de Hales (+ 1245) por exemplo serviu de modelo e teve grande significado para Tomaacutes pois foi o primeiro a escrever uma Summa Theologiae na qual repensou autores cristatildeos do passado como Agostinho e Dioniacutesio recuperou outros como Anselmo e Bernardo e tambeacutem deu espaccedilo para natildeo- cristatildeos como Aristoacuteteles Avicena e Averroacuteis que naquela eacutepoca estavam sendo traduzidos A obra tomasiana tambeacutem natildeo obnubilou a de conterracircneos e poacutesteros Citemos por exemplo o franciscano Joatildeo Duns Scotus (+1308) que muitos equiparam a Tomaacutes e cujas ideias influenciaram Suaacuterez Wolf Kant Pierce Heidegger Zubiri e muitos outros

Voltemos agrave Suma Teoloacutegica A maior obra de Tomaacutes de Aquino e a mais importante obra do pensamento medieval natildeo surgiu de um grande projeto Frei Tomaacutes estava lecionando no Studium generale que a Ordem Dominicana acabava de criar em Roma Nada que se comparasse com os Studia de Paris Colocircnia ou Naacutepoles E os alunos tambeacutem natildeo se comparavam com os dos outros centros Vendo que comentar o Livro das Sentenccedilas de

Saacutevio Laet de Barros Campos | 25

Pedro Lombardo como fizera em Paris era exigir demais daqueles jovens que acabavam ldquono teacutedio e na confusatildeordquo ele resolveu entatildeo redigir algo mais simples E dizia numa introduccedilatildeo de 20 linhas ldquoEsforccedilando-nos por evitar esses e outros defeitos tentaremos confiantes no divino auxiacutelio expor breve e lucidamente o que respeita agrave doutrina sagrada na medida em que a mateacuteria o comportardquo

Uma breve exposiccedilatildeo para principiantes acabou recebendo o nome de summa (resumo apanhado) uma summa que provocaria admiraccedilatildeo e respeito atraveacutes dos seacuteculos Em cerca de seis anos de 1268 a 1273 - apesar de muitos trabalhos entre os quais aleacutem de aulas de dirigir questotildees disputadas e de escrever outros livros estatildeo 12 comentaacuterios a obras de Aristoacuteteles salientando-se a Eacutetica a Fiacutesica e a Metafiacutesica - Tomaacutes redigiu com auxiacutelio de seus secretaacuterios a Summa Theologiae um volumoso compecircndio (satildeo 4445 paacuteginas na ediccedilatildeo brasileira de Alexandre Correa 19801981) recheado por centenas de citaccedilotildees biacuteblicas e de autores de todas as proveniecircncias

A obra foi dividida em trecircs partes A primeira delas trata de Deus em si da Trindade e da criaccedilatildeo E quem natildeo recorre a ela quando deseja encontrar provas sobre a existecircncia de Deus (questatildeo 3) ou quando se pergunta sobre o que vem a ser esta criatura racional que eacute o homem (qq 7- 89) A terceira parte ficou incompleta (seus auxiliares haveriam de concluiacute-la) Ela trata de Cristo nosso Redentor e dos sacramentos (ateacute a Confissatildeo) A piedade do autor dos hinos Pange lingua e Adoro te devote encanta a leitura da Cristologia

A segunda parte eacute a mais longa ocupando cerca de 35 do total da obra Eacute dedicada toda ela agrave Moral enquanto regresso do homem para Deus Eacute a parte onde mais o autor apela para a Filosofia e para redigi-la eacute evidente que leu antes e comentou a Eacutetica a Nicocircmaco da qual dispunha jaacute da nova traduccedilatildeo de Roberto Grosseteste acompanhada dos comentaacuterios de Eustraacutecio e Miguel de Eacutefeso e acabava de ser comentada pela segunda vez por seu

26 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Mestre Alberto Magno E como natildeo poderia deixar de ser tinha agrave sua frente tambeacutem o comentaacuterio de Averroacuteis Permito-me ressaltar trecircs temas tratados nessa parte Em primeiro lugar a pergunta sobre o fim uacuteltimo do homem que eacute a felicidade (qq 1-5) em segundo lugar o tratado a respeito dos atos humanos (qq 7-48) enfim o claacutessico tratado De lege (Sobre a Lei) (qq 90-97) que se tornou um verdadeiro manual de estudos juriacutedicos

Concordo com os muitos que dizem ser a segunda parte da Suma Teoloacutegica o mais importante tratado de Eacutetica escrito ateacute hoje A Eacutetica Filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que o leitor encontraraacute a seguir confirma o que estou dizendo

Luis Alberto De Boni

Introduccedilatildeo

A proposta deste trabalho eacute mostrar a existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica no bojo da teologia moral de Tomaacutes de Aquino em sua mais acabada formulaccedilatildeo vale dizer a IIa parte da Summa Theologiae A fim de delimitar a nossa temaacutetica importa fazermos algumas consideraccedilotildees Natildeo pretendemos expor sistematicamente a eacutetica filosoacutefica tomasiana mas apenas atestar que ela existe Nem tencionamos apresentar um Tomaacutes unicamente filoacutesofo ou mero comentador de Aristoacuteteles Chesterton mdash em sua obra sobre o Aquinate mdash assevera que ele era reconhecido como um autor (auctor) mesmo entre os seus coetacircneos

Um arguto observador contemporacircneo de Tomaacutes de Aquino afirmou que este ldquopoderia sozinho restaurar toda a filosofia se ela tivesse sido queimada pelo fogordquo Eacute por isso que se diz que Tomaacutes foi um homem original uma mente criativa ele poderia ter criado seu proacuteprio universo a partir de pedras e paus mesmo sem os manuscritos de Aristoacuteteles ou de Agostinho1

Ademais eacute inegaacutevel que Frei Tomaacutes eacute antes de tudo um

teoacutelogo e as suas obras magnas satildeo sumas de teologia sendo inclusive a sua moral fundamentalmente uma moral teoloacutegica Natildeo haacute como apagar a afirmaccedilatildeo feita na Summa Contra Gentiles

Por isso sirvo-me aqui das palavras de Hilaacuterio Estou consciente de que o principal ofiacutecio da minha vida eacute referente a Deus de modo que toda palavra minha e todos os meus sentidos dele falem (I Sobre a Trindade 37 PL 10 48 D)2

1 CHESTERTON Satildeo Tomaacutes de Aquino e Satildeo Francisco de Assis Trad Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonccedilalves Rio de Janeiro Ediouro 2003 p 316 2 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios Trad Odilatildeo Moura Rev Luis A De Boni Porto Alegre Sulina 1990 I II 2 [9] ldquo[] ut enim verbis Hilarii utar ego hoc vel praecipuum vitae meae officium debere me Deo conscius sum ut eum omnis sermo meus et sensus loquaturrdquo

28 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

O que buscamos evidenciar eacute que integrada agrave sua teologia moral mdash constituindo parte da sua sabedoria teoloacutegica mdash haacute uma conceptualidade filosoacutefica tambeacutem no acircmbito da eacutetica Eis o nosso escopo mostrar que sem prejuiacutezo da teologia propriamente dita Tomaacutes integra agrave sua sabedoria teoloacutegica uma eacutetica filosoacutefica a qual permanece mdash ainda que integrada a uma teologia moral mdash genuinamente filosoacutefica Como diz Carlos Josaphat

O paradigma de Tomaacutes confere portanto agrave eacutetica uma consistecircncia universal primordialmente humana racional suscetiacutevel de uma elaboraccedilatildeo filosoacutefica Mas semelhante projeto de plena realizaccedilatildeo humana pelas virtudes morais eacute chamado a se inserir no projeto teoloacutegico []3

O nosso desafio consiste pois em demonstrar que Tomaacutes

prevecirc uma eacutetica filosoacutefica decerto que esta se encontra em sua siacutentese teoloacutegica de uma forma tensa algures com uma audaacutecia ainda vacilante mas alhures deixando-se manifestar com uma ousadia que natildeo se furta aos olhos de um leitor inquieto

Em todo caso atrevo-me a apresentar as afliccedilotildees e vacilaccedilotildees de Santo Tomaacutes como mais um elo dessa longa caminhada da humanidade cristatilde na busca de uma justa secularizaccedilatildeo isto eacute de uma adequada autonomia das realidades profanas4

3 JOSAPHAT Carlos Paradigma teoloacutegico de Tomaacutes de Aquino sabedoria e arte de questionar verificar debater e dialogar chaves de leitura da Suma de Teologia Rev Iranildo Bezzera Lopes e Maacutercia Elisa Rodrigues Satildeo Paulo Paulus 2012 p 458 4 SARANYANA JosepndashIgnasi La Filosofiacutea Medieval Desde sus oriacutegenes patristicos hasta la escolaacutestica barroca 2 ed EUNSA Pamplona 2007 p 293 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEn todo caso me atrevo a presentar las cuitas y vacilaciones de Santo Tomaacutes como un eslaboacuten maacutes de esa larga caminata de la humanidad cristiana en busca de una justa secularizacioacuten es decir de una adecuada autonomiacutea de las realidades profanasrdquo Numa recente ediccedilatildeo biliacutengue da Summa Contra Gentiles o estudioso Mauriacutelio Joseacute de Oliveira Camello na introduccedilatildeo agrave ediccedilatildeo cita uma inquietante apreciaccedilatildeo de Alain de Libera sobre a obra em questatildeo LIBERA Alain de Tomaacutes de Aquino mdash Suma contra os gentios Satildeo Paulo Mandarim 1996 p 515 In CAMELLO Mauriacutelio Joseacute de Oliveira Introduccedilatildeo Geral Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2015 p 24 ldquo[] a organizaccedilatildeo de detalhe de Contra os Gentios o emaranhado de seus desenvolvimentos as muacuteltiplas digressotildees que o perpassam as mudanccedilas de perspectivas as transiccedilotildees disciplinares que sutilmente a trabalham fazem com que natildeo se saiba sempre se tratamos com uma suma de teologia ou com uma suma de filosofiardquo O teoacutelogo espanhol Luis Francisco Ladaria em sua Introduzione alla Antropologia Teologica ao expor a estrutura da

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Gilson em uma passagem emblemaacutetica tambeacutem acolhe esta possibilidade quando admite que se o Aquinate tivesse querido teria em matildeos instrumentos suficientes para construir tambeacutem uma eacutetica exclusivamente filosoacutefica

Se tivesse querido santo Tomaacutes teria podido escrever uma metafiacutesica uma cosmologia uma psicologia e uma moral concebidas de acordo com um plano estritamente filosoacutefico No entanto eacute um fato e nada mais que suas obras sistemaacuteticas satildeo sumas de teologia e que por conseguinte a filosofia que expotildeem nos eacute oferecida segundo uma ordem teoloacutegica5

Analisemos com maior detenccedila a passagem que acabamos

de ler Com efeito a ordem das obras sistemaacuteticas de Tomaacutes mdash conforme assinala Gilson mdash eacute certamente teoloacutegica porque afinal Tomaacutes de Aquino eacute um teoacutelogo Poreacutem como tambeacutem acentua o historiador francecircs a filosofia que expotildee nestas obras natildeo eacute menos filosoacutefica por causa disso Desta sorte admite nosso estudioso Tomaacutes teria podido adotar um plano estritamente filosoacutefico Gilson acresce ainda que o fato de o Aquinate natildeo ter optado por uma ordem filosoacutefica eacute somente mdash e tatildeo somente mdash a escolha de um teoacutelogo natildeo uma ldquonecessidade intriacutensecardquo Imediatamente antes da citaccedilatildeo acima reconhece

Portanto nessa obra filosoacutefica a influecircncia confessa da teologia eacute certa e eacute a teologia mesma que forneceraacute um plano Natildeo que houvesse uma necessidade intriacutenseca6

antropologia tomasiana na Summa Theologiae verificou nela a predominacircncia de questotildees filosoacuteficas Por fim considerou o Breviloquium de Satildeo Boaventura mais proacuteximo do que hoje se entende por teologia Afirma ele acerca da antropologia da Summa LADARIA Luis Francisco Introduccedilatildeo agrave Antropologia Teoloacutegica Trad Roberto Leal Ferreira 7 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 18 ldquoEm muitos desses pontos as questotildees filosoacuteficas predominam em ampla medida sobre as teoloacutegicasrdquo Sobre o Breviloquium de Satildeo Boaventura ajuiacuteza Ladaria Idem Op Cit p 20 ldquoCertamente natildeo pode deixar de ser admirada a estrutura dessa obra sem duacutevida mais proacutexima dos tratados modernos que a Sumardquo 5 GILSON Eacutetienne A Filosofia na Idade Meacutedia Trad Eduardo Brandatildeo Rev Carlos Eduardo Silveira Matos Satildeo Paulo Martins Fontes 2001 p 657 [Os itaacutelicos satildeo nossos] 6 Idem Ibidem

30 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

De posse desta certeza a saber de que quando fazia filosofia Tomaacutes era realmente filoacutesofo Chesterton pocircde tambeacutem concluir ldquoNatildeo seraacute mais possiacutevel esconder de ningueacutem que Satildeo Tomaacutes foi um dos principais libertadores do intelecto humanordquo7 De fato em diversas obras mdash tanto anteriores quanto concomitantes agrave Suma de Teologia mdash Tomaacutes sempre demonstrou distinguir com clareza uma argumentaccedilatildeo filosoacutefica de uma teoloacutegica Isso natildeo nos parece nada casual Por volta dos anos 12641265 quando da redaccedilatildeo do quarto livro da Contra Gentiles ao passar a abordar as verdades essencialmente reveladas ele discrimina

Ora nos livros precedentes falou-se de Deus segundo o conhecimento das coisas divinas a que pode chegar pelas criaturas a razatildeo natural [] Resta pois o que deve ser dito das coisas que nos foram reveladas por Deus e que excedem o intelecto humano8

Pode-se constatar por esta passagem que o Frade de

Roccasecca mdash na supracitada obra mdash consagra um livro agrave parte para falar das verdades que excedem a razatildeo e destaca um capiacutetulo inteiro para advertir que passaraacute a tratar deste tema Do mesmo periacuteodo eacute a primeira parte do Compendium Theologiae obra que Tomaacutes dedica a Reginaldo de Piperno seu confrade e disciacutepulo Num dado momento desse tratado faz questatildeo de separar o que vem antes do que viraacute depois E afirma isso nestes termos

Tudo poreacutem o que acima se disse de Deus foi considerado sutilmente por muitos filoacutesofos gentios conquanto alguns tenham errado acerca disso e os que entre eles disseram verdade natildeo puderam chegar a ela senatildeo com dificuldades e apoacutes longa e

7 CHESTERTON Op Cit p 202 8 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios IV I 7 [3347] ldquoQuia igitur debilis erat Dei cognitio ad quam homo per vias praedictas intellectuali quodam quasi intuitu pertingere poterat ex superabundanti bonitate ut firmior esset hominis de Deo cognitio quaedam de seipso hominibus revelavit quae intellectum humanum exceduntrdquo

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laboriosa investigaccedilatildeo Deus poreacutem nos comunicou na doutrina da religiatildeo cristatilde coisas que eles natildeo puderam alcanccedilar acerca das quais a feacute cristatilde nos instrui para aleacutem do senso humano9

Mesmo nos opuacutesculos escritos quando a redaccedilatildeo da

Summa Theologiae jaacute corria reaparece a mesma sensibilidade de Tomaacutes para distinguir a argumentaccedilatildeo racional da fundada na feacute No polecircmico De unitate intellectus contra averroistas mdash que data de 1270 mdash o Aquinate jaacute no fim do tratado faz uma declaraccedilatildeo importante ldquoEis em suma o que redigimos para destruir os erros referidos natildeo servindo-nos dos dogmas da feacute mas dos argumentos e das afirmaccedilotildees dos proacuteprios filoacutesofosrdquo 10 No opuacutesculo De Substantiis Separatis redigido no ano seguinte ele destaca sem desunir a parte filosoacutefica da teoloacutegica afirmando

Como jaacute se expocircs aquilo que os principais filoacutesofos Platatildeo e Aristoacuteteles julgaram sobre as substacircncias imateriais no tocante agraves suas origens condiccedilatildeo de natureza distinccedilatildeo e ordem de governo e aquilo em que os outros em erro deles discordaram resta expor o que afirma a religiatildeo cristatilde acerca de cada ponto11

Ora o nosso trabalho natildeo tem outro propoacutesito senatildeo

evidenciar os caminhos pelos quais Tomaacutes sem deixar de ser teoacutelogo e muito menos cristatildeo mdash e aqui estaacute o novo mdash conseguiu

9 TOMAacuteS DE AQUINO Compecircndio de Teologia Trad Carlos Nougueacute Porto Alegre Concreta 2015 I 36 ldquoHaec autem quae in superioribus de Deo tradita sunt a pluribus quidem gentilium philosophis subtiliter considerata sunt quamvis nonnulli eorum circa praedicta erraverint et qui in iis verum dixerunt post longam et laboriosam inquisitionem ad veritatem praedictam vix pervenire potuerunt Sunt autem et alia nobis de Deo tradita in doctrina Christianae religionis ad quam pervenire non potuerunt circa quae secundum Christianam fidem ultra humanum sensum instruimurrdquo 10 TOMAacuteS DE AQUINO A Unidade do Intelecto Contra os Averroiacutestas Trad Maacuterio Santiago de Carvalho Lisboa Ediccedilotildees 70 1999 V 120 ldquoHaec igitur sunt quae in destructionem praedicti erroris conscripsimus non per documenta fidei sed per ipsorum philosophorum rationes et dictardquo 11 TOMAacuteS DE AQUINO Sobre os Anjos Trad Luiz Astorga Rev Carlos Nougueacute Rio de Janeiro Seacutetimo Selo 2006 XVII 91 ldquoQuia igitur ostensum est quid de substantiis spiritualibus praecipui philosophi Plato et Aristoteles senserunt quantum ad earum originem conditionem naturae distinctionem et gubernationis ordinem et in quo ab eis alii errantes dissenserunt restat ostendere quid de singulis habeat Christianae religionis assertiordquo

32 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino conceber uma eacutetica que atendo-se ao que a razatildeo pode admitir espera permanecer aberta e pronta para ser reproposta a todos os homens porque inteligiacutevel a todos 12 Esta pretensatildeo de universalidade eacutetica estaacute no iniacutecio do proacuteprio pensar eacutetico e eacute uma constante jaacute nos antigos Como frisa Mario Vegetti trata-se de uma dificuldade que natildeo foi trazida exclusivamente talvez nem principalmente seja pela cultura escravista seja pelo advento da religiatildeo Na percepccedilatildeo do estudioso italiano a dificuldade de uma eacutetica universal estaacute calcada em razotildees de cunho filosoacutefico

Portanto a eacutetica antiga experimentou evidentemente as exigecircncias de universalizaccedilatildeo da subjetividade moral do valor e da norma poreacutem sempre bateu em retirada diante das dificuldades de pensar ateacute o fundo essas exigecircncias diante da impossibilidade de construir um projeto de valorizaccedilatildeo e libertaccedilatildeo referente a todos os homens e ao homem todo [] Eacute provavelmente verdadeiro poreacutem insuficiente debitar esse xeque-mate da eacutetica antiga na conta do contexto da sociedade escravista e dos seus enraizados efeitos de pensamento e de consciecircncia Do ponto de vista filosoacutefico haacute talvez razotildees mais profundas embora natildeo isentas de relaccedilatildeo com aquele contexto13

Retornando a Tomaacutes e levando em conta estas premissas

advertimos que a nossa abordagem sobre o pensamento eacutetico do Aquinate natildeo seraacute por assim dizer canocircnica Tampouco a literatura que frequentamos foi a tradicional sem nenhum desdouro em relaccedilatildeo a esta14 E isto se justifica pelo fato de que o tradicionalismo nunca foi a marca do nosso autor Seu tempo natildeo o tinha como um ldquoanjo das escolasrdquo antes fixando-nos no ldquoTomaacutes

12 JOSAPHAT Op Cit p 640 ldquoTomaacutes incorpora sem dificuldade a mensagem espiritual do Evangelho em sua elaboraccedilatildeo de uma eacutetica universal e autenticamente humanardquo (Os itaacutelicos satildeo nossos) 13 VEGETTI Mario A Eacutetica dos Antigos Trad Joseacute Bortolini Rev Tiago Joseacute Risi Leme et al Satildeo Paulo Paulus 2014 pp 26-27 14 Uma siacutentese das linhas de interpretaccedilatildeo de Tomaacutes pode ser consultada em SANTOS Ivanaldo A diferenccedila entre tomismo tradicional e tomismo tradicionalista In Aquinate n 28 2015 pp 35-56

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histoacutericordquo temos que este de certa forma esteve muito mais proacuteximo de um ldquoheterodoxordquo do que de um ldquosantordquo

[] Tomaacutes natildeo foi entendido por seus contemporacircneos como um campeatildeo da ortodoxia e [] a sua habilidade filosoacutefica mesmo no campo teoloacutegico natildeo esteve sempre sob a inspiraccedilatildeo da moderaccedilatildeo da conciliaccedilatildeo e do irenismo15

Tanto em vida quanto depois da morte o seu pensamento

soacute se consolidou apoacutes intensa pugna Ao contraacuterio do que comumente se pensa no tempo de Tomaacutes a sua obra foi quase sempre causa de contradiccedilatildeo seu pensamento longe de apaziguar os acircnimos o mais das vezes trouxe polecircmica e muitos dos seus contemporacircneos natildeo o receberam16 Guido de Ruggiero em seu estudo sobre a filosofia tomasiana realccedila este aspecto

[] Natildeo certamente no iniacutecio porque na sua primeira apariccedilatildeo a filosofia de Tomaacutes encontrou um ambiente igualmente cheio de concitado fervor [] As polecircmicas antitomistas daquela eacutepoca tecircm para noacutes um grande interesse porque nos mostram claramente que os adversaacuterios de Tomaacutes ainda natildeo desarmados

15 PORRO Pasquale Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico Trad Orlando Soares Moreira Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 132 16 Numa passagem assaz ilustrativa Boehner e Gilson descrevem como foi tensa a recepccedilatildeo da obra do Aquinate naqueles idos BOEHNER Philotheus GILSON Eacutetienne Histoacuteria Da Filosofia Cristatilde Desde as Origens ateacute Nicolau de Cusa Trad Raimundo Vier 7 ed Petroacutepolis Vozes 2000 pp 482-483 ldquoVisto de fora o seu primeiro destino deve ser qualificado de malogro A corrente conservadora mdash sob a lideranccedila dos mestres franciscanos Joatildeo Peckham Joatildeo Pedro Olivi Rogeacuterio Marston etc dos dominicanos Roberto Kilwardby arcebispo de Cantuaacuteria e Pedro de Tarantaise bem como de alguns representantes do clero secular tais como Henrique de Gand e Estecircvatildeo Tempier arcebispo de Paris mdash pronunciou-se contra vaacuterias doutrinas de S Tomaacutes e principalmente contra a tese da unicidade da forma do homem julgando dever qualificaacute-las pelo menos de suspeitas Pouco apoacutes a condenaccedilatildeo de algumas proposiccedilotildees tomistas por Estecircvatildeo Tempier apareceu um Correctorium fratris Thomae da autoria de Guilherme de la Mare contendo uma anaacutelise criacutetica de 118 proposiccedilotildees colhidas dos escritos do Aquinate e nomeadamente da Summa [] Um edito promulgado em 1282 interdizia aos franciscanos a leitura da Summa a menos que tivessem agrave matildeo o Correctorium de Guilherme de la Mare []rdquo Eacute bom reforccedilar que em 1277 o bispo Eacutetienne Tempier condenou 219 teses Entre estas pelo menos nove eram inequivocamente de Tomaacutes E esta condenaccedilatildeo soacute foi revogada explicitamente em 1325 dois anos apoacutes a sua canonizaccedilatildeo em 18 de julho de 1323 NASCIMENTO Carlos Arthur R Santo Santo Tomaacutes de Aquino o Boi Mudo da Siciacutelia Satildeo Paulo EDUC 1992 pp 50 e 84

34 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

pela embaraccedilosa santidade de seu inimigo viram com perspicaacutecia quais deixas hereacuteticas estavam nas suas doutrinas17

Outros autores tambeacutem destacam que a princiacutepio as

inovaccedilotildees de Tomaacutes natildeo foram reconhecidas como ortodoxas dentro da Igreja do seu tempo o que fez com que o Aquinate vivesse sempre como um viandante natildeo conseguindo se estabelecer nenhures nem em Paris nem na Itaacutelia18

[] Tomaacutes de Aquino foi um pensador fortemente original e inovador frequentemente em contraste com muitas das posiccedilotildees comumente aceitas em seu tempo a ponto de suscitar reaccedilotildees muito violentas no interior da proacutepria Igreja da eacutepoca [] de atrair mais de uma suspeita sobre a completa ortodoxia das suas posiccedilotildees (trecircs anos depois da sua morte foi com efeito ateacute

17 RUGGIERO Guido de La Filosofia del Cristianesimo Bari Larteza 1967 pp 620-621 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoNon certamente allrsquoinizio percheacute al suo primo apparire la filosofia de Tommaso trovograve un ambiente anchrsquoesso pieno di concitato fervore [] Le polemiche anti-tomiste di quellrsquoepoca hanno per noi un grande interesse percheacute ci mostrano chiaramente che gli avversari di Tommaso non ancora disarmati dalla ingombrante santitagrave del nemico videro con perspicacia quali spunti eretici fossero nelle sue dottrinerdquo Em recente ediccedilatildeo brasileira uma Histoacuteria Ecumecircnica da Igreja organizada por estudiosos das mais diversas confissotildees cristatildes registra que a ldquocanonizaccedilatildeordquo da obra do Aquinate eacute um fenocircmeno da modernidade Acresce ainda que este uso ldquotriunfalistardquo da obra de Tomaacutes nunca foi ponto paciacutefico nem sequer entre os seus seguidores KAUFMANN Thomas [et al] Histoacuteria Ecumecircnica da Igreja 2 Da alta Idade Meacutedia ateacute o iniacutecio da Idade Moderna Trad Irineu Rabuske Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola Paulus Satildeo Leopoldo Editora Sinodal 2014 p 111 ldquoA incomparaacutevel histoacuteria de sucesso da doutrina de Tomaacutes na Idade Moderna que alguns de seus admiradores atuais tambeacutem lamentam como sendo uma histoacuteria de apropriaccedilotildees indevidas natildeo deve levar ao engano de que sua audaz tentativa de intermediaccedilatildeo a princiacutepio apenas apresentava uma opccedilatildeo entre o pensamento moderno daquela eacutepoca e a tradiccedilatildeo teoloacutegica cristatilde ao lado de outras sendo aleacutem disso alvo de fortes contestaccedilotildeesrdquo COPLESTON Frederick Filosofia Medieval uma introduccedilatildeo Trad Wilson Filho Ribeiro de Almeida Curitiba Livraria Danuacutebio Editora 2017 p 101 ldquoMas embora Santo Tomaacutes gradualmente tenha vindo a ser o doutor oficial da ordem dominicana ele nunca se tornou durante a Idade Meacutedia o filoacutesofo oficial catoacutelico Eacute incorreto dizer que mesmo agora o tomismo como tal seja imposto oficialmente a todos os filoacutesofos catoacutelicos mas eacute inegaacutevel que desde a carta enciacuteclica Aeterni Patris do papa Leatildeo XIII Santo Tomaacutes desfruta de uma posiccedilatildeo na Igreja Catoacutelica que natildeo foi concedida a nenhum outro filoacutesofordquo 18 Eacute bem verdade que as ordens mendicantes tinham um forte caraacuteter missionaacuterio o que implicava que o frade vivesse como um viajor LENZENWEGER Josef STOCKMEIER Peter [et al] Histoacuteria da Igreja Catoacutelica Trad Fredericus Stein Rev Joseli N Brito 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2006 p 171 ldquoO ambular de um convento para outro visto como exceccedilatildeo senatildeo como algo suspeito desde os tempos de Satildeo Bento tornou-se agora o princiacutepio do apostolado Alberto Magno trabalhou em Paacutedua Estrasburgo Colocircnia Wuumlrzburg Regensburg Paris etcrdquo No entanto isso natildeo explica a nosso ver os interstiacutecios ocorridos durante o magisteacuterio de Tomaacutes soacute com transferecircncias

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mesmo aberto um procedimento poacutestumo contra as suas doutrinas)19

De sorte que a visatildeo que temos hoje do Aquinate depois de

tantos seacuteculos nos quais o seu pensamento foi assumido e usado pela Igreja e natildeo obstante as tentativas recentes de conhececirc-lo mais a fundo ainda se pode dizer miacuteope20

Na verdade o proacuteprio Tomaacutes estava cocircnscio de que tinha um modo de pensar a tradiccedilatildeo que era soacute seu Em A unidade do intelecto contra os averroiacutestas opuacutesculo jaacute citado acima ele afirma com descortino ldquo[] o pensar tem o modo de ser daquele que pensa []rdquo21 Em seguida conclui ldquo[] eacute de fato aqui que a ciecircncia

19 ESPOSITO Costantino PORRO Pasquale Filosofia Antica e Medievale 2 ed Roma-Bari Laterza 2010 p 338 v 1 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoTommaso drsquoAquino egrave stato un pensatore fortemente originale e innovativo spesso in contrasto con molte delle posizioni comunemente accettate ai suoi tempi fino al punto di suscitare reazioni molto violente allrsquointerno della stessa Chiesa dellrsquoepoca [] di attirare piugrave di un sospetto sulla completa ortodossia delle sue posizioni (tre anni dopo la sua morte fu in effetti perfino aperto un procedimento postumo contro le sue dottrine)rdquo Numa recente traduccedilatildeo brasileira da Historie des Dogmes que conta com a direccedilatildeo de Bernard Sesbouumleacute o mesmo apresenta Tomaacutes de Aquino natildeo agrave guisa de um ldquoteoacutelogo tradicionalrdquo como era de se esperar mas antes como um daqueles que promoveram o conturbado ingresso de Aristoacuteteles na sacra ciecircncia SESBOUumlEacute Bernard THEOBALD Christoph Histoacuteria dos Dogmas A Palavra da Salvaccedilatildeo Trad Aldo Vannucchi Rev Albertina Pereira Leite Piva e Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2006 v 4 p 82 ldquoNo seacuteculo XIII Aristoacuteteles eacute a paixatildeo das Universidades lsquoo filoacutesoforsquo lsquoa autoridade intelectualrsquo Santo Tomaacutes cita-o nesses termos pronto para uma lsquoexplicaccedilatildeo muito respeitosarsquo (expositio reverentialis) quando lhe percebe alguma afirmaccedilatildeo incompatiacutevel com a feacute cristatilde Essa coragem de introduzir o enfoque filosoacutefico no ensino da ciecircncia sacra iraacute lhe render suspeitas e ateacute mesmo condenaccedilatildeordquo COPLESTON Filosofia Medieval uma introduccedilatildeo p 87 ldquoO homem que realmente tentou juntar o sistema filosoacutefico de Aristoacuteteles e a teologia cristatilde em um todo harmonioso foi o frade dominicano Santo Tomaacutes de Aquino Voltando-se para traacutes a olhar o cenaacuterio medieval atraveacutes dos seacuteculos que se passaram desde que Santo Tomaacutes viveu e escreveu pode-se esquecer que ele foi um inovador e que parecia aos seus contemporacircneos um pensador lsquoavanccediladorsquordquo 20 Pasquale Porro propotildee uma linha interpretativa de Aquino que nos apraz exclusive o aparente desinteresse pelo que o texto de Tomaacutes tem a nos dizer hoje PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 352 ldquoO que de fato faltou a boa parte do tomismo do seacuteculo XX foi exatamente a devida atenccedilatildeo ao modo como Tomaacutes chegou a determinadas conclusotildees confrontando-as natildeo com abstratas tradiccedilotildees de pensamento (aristotelismo platonismo averroiacutesmo etc) mas com textos bem identificaacuteveis [] Ao contraacuterio talvez seria mais simples ou pelo menos mais profiacutecuo tentar separar definitivamente o confronto direto com os escritos de Tomaacutes das vicissitudes do tomismo e sobretudo do neotomismo do seacuteculo XX como aliaacutes as pesquisas realizadas nos uacuteltimos dececircnios jaacute comeccedilaram a fazer de modo amplordquo [O itaacutelico eacute nosso] 21 TOMAacuteS DE AQUINO A Unidade do Intelecto Contra os Averroiacutestas V 107 p 151 ldquo[] sequitur quod intelligere sit secundum modum intelligentis []rdquo

36 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino se individualiza em mim e em tirdquo 22 De todo modo temos consciecircncia de que o fato de natildeo optarmos pela via tradicional de exposiccedilatildeo pode fazer surgir muitos questionamentos e eacute escusado dizer que natildeo teremos espaccedilo para responder a todos Alguns deles todavia parecem-nos fundamentais Assim esquematizamos o nosso texto em cinco capiacutetulos

Se estamos a falar de eacutetica filosoacutefica eacute mister considerarmos o que eacute eacutetica e o que eacute filosofia bem como qual a razatildeo de associarmos ambas Sabemos que a filosofia nasceu na Greacutecia Sendo assim qualquer trabalho que pretenda ser cuidadoso tem de retornar agravequela aurora grega que nunca se obliterou nem conheceu ocaso Luminosas satildeo as palavras de Enrico Berti neste sentido

ldquoClaacutessicordquo significa o que vale sempre o que conserva sempre seu valor para aleacutem das modas que mudam A filosofia grega eacute claacutessica porque jamais envelhece mas conserva todo o frescor do que eacute originaacuterio Todo o mundo grego foi considerado por exemplo por Hegel a expressatildeo da juventude da humanidade As figuras com que ele se abre e se encerra satildeo respectivamente segundo Hegel Aquiles e Alexandre ambos heroacuteis mortos jovens que por isso se tornaram emblemaacuteticos Ningueacutem com efeito jamais poderaacute representar um Aquiles velho ou um Alexandre velho O mesmo se deve dizer da filosofia grega da qual beberam direta ou indiretamente todas as filosofias seguintes e da qual continuaratildeo a extrair a seiva vital as filosofias ainda por vir23

Assim o nosso primeiro capiacutetulo eacute consagrado agrave

investigaccedilatildeo de como nasce a filosofia na Greacutecia Esperamos nele tornar patente como a interrogaccedilatildeo filosoacutefica mdash desde o seu comeccedilo mdash abriga em si uma indagaccedilatildeo eacutetica ou melhor uma ldquofenomenologia do eacutethosrdquo Aqui tambeacutem nos esforccedilaremos por

22 Idem Ibidem V 109 p 153 ldquo[] quantum enim ad hoc individuatur scientia in me et in illordquo 23 BERTI Enrico No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga Trad Fernando Soares Moreira Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 16 [O itaacutelico eacute nosso]

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evidenciar que o modo como os gregos fizeram filosofia eacute assumido pelos medievais inclusive por Tomaacutes Com isso temos o propoacutesito de acentuar o elo existente entre o dia uacutetil do pensamento nascido na Greacutecia e a reflexatildeo medieval maacutexime no pensamento do Aquinate Assegurando isto pensamos poder incluir a filosofia de Aquino na esteira daquela ldquoclassicidaderdquo que natildeo se pode obnubilar sem prejuiacutezo agrave proacutepria filosofia Importa lembrar que neste capiacutetulo recorreremos com alguma constacircncia agraves etimologias e agrave filologia O preliminar semacircntico no estudo da eacutetica filosoacutefica eacute recomendado por Lima Vaz de forma precisa

Um estudo sobre Eacutetica que se pretenda filosoacutefico deve dedicar-se preliminarmente a delinear o contorno semacircntico dentro do qual o termo Eacutetica seraacute designado e a definir assim em primeira aproximaccedilatildeo o objeto ao qual se aplicaratildeo suas investigaccedilotildees e suas reflexotildees bem como a caracterizar a natureza e a estabelecer os limites do tipo de conhecimento a ser praticado no estudo da Eacutetica24

No entanto para natildeo sobrecarregarmos o texto com uma

quaestio nominis os termos eacutetica e moral seratildeo livremente tomados como sinocircnimos25 A eacutetica poreacutem natildeo se resume a uma ldquofenomenologia do eacutethosrdquo senatildeo que pode ser bem definida como ldquo[] a ciecircncia do ethosrdquo26 E quem deu a ela este status de ldquociecircnciardquo colocando-a num ramo bem definido da ldquofilosofia praacuteticardquo foi Aristoacuteteles Quando fala do nascimento da eacutetica filosoacutefica Lima Vaz mdash referindo-se a Aristoacuteteles mdash se expressa com meridiana clareza ldquoA Eacutetica alcanccedila assim seu estatuto de saber

24 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 p 11 25 Idem Ibidem p 14 ldquoVemos assim que a evoluccedilatildeo semacircntica paralela de Eacutetica e Moral a partir de sua origem etimoloacutegica natildeo denota nenhuma diferenccedila significativa entre esses dois termos []rdquo 26 Idem Ibidem p 17

38 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino autocircnomo e passa a ocupar um lugar preponderante na tradiccedilatildeo cultural e filosoacutefica do Ocidenterdquo27

Se a nossa intenccedilatildeo eacute trabalhar a existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino e se pretendemos salientar certa continuidade entre os gregos e Tomaacutes cumpre traccedilarmos mdash ao menos em linhas gerais mdash o itineraacuterio da eacutetica aristoteacutelica contemplada com maior clareza na Eacutetica a Nicocircmaco Eis o nosso segundo capiacutetulo Esta segunda aproximaccedilatildeo eacute muito bem delimitada por alguns conceitos-chave os quais tecircm as suas raiacutezes na semacircntica de dois termos ἦθος (ẽthos)28 mdash grafado com o η inicial mdash que designa a ldquocasa do homemrdquo e ἔθος (eacutethos)29 mdash com um ε inicial mdash que significa haacutebito isto eacute a disposiccedilatildeo estaacutevel para agir de determinada maneira Podemos dizer que estes dois termos constituem a ldquoespinha dorsalrdquo do nosso trabalho pois eacute deles que adveacutem a nossa definiccedilatildeo de ēthikḗ como reflexatildeo acerca de quais satildeo aqueles haacutebitos (ἔθος) que permitem ao homem construir o seu proacuteprio haacutebitat (ἦθοςẽthos) Mostrar como Tomaacutes assume esta concepccedilatildeo grega e aristoteacutelica eacute um dos nossos objetivos preciacutepuos Sobre a importacircncia capital destas noccedilotildees vale citar a reflexatildeo de Lima Vaz

Na liacutengua filosoacutefica grega ethike procede do substantivo ethos que receberaacute duas grafias distintas designando matizes diferentes da mesma realidade ethos (com eta inicial) designa o conjunto de costumes normativos da vida de um grupo social ao passo que ethos (com epsilon) refere-se agrave constacircncia do comportamento do indiviacuteduo cuja vida eacute regida pelo ethos- costume Eacute pois a realidade histoacuterico-social dos costumes e sua

27 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura 4 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 12 28 CHANTRAINE Pierre Ἦθος [ẽthos] In ______ Dictionnaire eacutetymologique de la langue grecque histoire des mots Paris Eacuteditions Klincksieck 1968 p 407 O etimoacutelogo afirma que o termo diz estada habitual morada de animais 29 BAILLY A ἔθος [eacutethos] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 247 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt CHANTRAINE εἴωθα In Op Cit p 327 A forma nominativa usual eacute ἔθος na acepccedilatildeo de haacutebito costume

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presenccedila no comportamento dos indiviacuteduos que eacute designada pelas duas grafias do termo ethos Nesse seu uso que iraacute prevalecer na linguagem filosoacutefica ethos (eta) eacute a transposiccedilatildeo metafoacuterica da significaccedilatildeo original com que o vocaacutebulo eacute empregado na liacutengua grega usual e que denota a morada o covil ou o abrigo dos animais donde o termo moderno de Etologia ou estudo do comportamento animal A transposiccedilatildeo metafoacuterica do ethos para o mundo humano dos costumes eacute extremamente significativa e eacute o fruto de uma intuiccedilatildeo profunda sobre a natureza e sobre as condiccedilotildees de nosso agir (praxis) ao qual ficam confiadas a edificaccedilatildeo e preservaccedilatildeo de nossa verdadeira residecircncia no mundo como seres inteligentes e livres a morada do ethos cuja destruiccedilatildeo significaria o fim de todo sentido para a vida propriamente humana30

Esta longa passagem que escolhemos citar in extenso

praticamente resume a razatildeo do capiacutetulo segundo e tambeacutem de todo o nosso trabalho a eacutetica entendida como aquela ciecircncia que permite ao homem conhecer quais satildeo os haacutebitos que lhe possibilitam construir a sua casa ou abrigo na fyacutesis (φύσις)

Do ponto de vista de sua plena auto-realizaccedilatildeo o ser humano antes de habitar no oikos da natureza deve morar no seu oikos espiritual mdash no mundo da cultura mdash que eacute constitutivamente eacutetico31

Ora esta reflexatildeo acerca dos costumes chamada eacutetica

baseia-se num exerciacutecio peculiar do λόγος loacutegos que mdash como veremos no texto mdash eacute antes de mais entendido como fala linguagem capacidade de comunicaccedilatildeo capacidade de criar uma linguagem koinḗ (κοινή) e por ela uma comunhatildeo (κοινωνίαkoinōniacutea) uma comunidade entre os homens Assim a

30 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 13 A Etologia eacute a ciecircncia que estuda os haacutebitos dos animais e a sua acomodaccedilatildeo agraves condiccedilotildees do ambiente Os cientistas Karl von Frisch Konrad Lorenz ambos austriacuteacos e Nikolas Tinbergen holandecircs ganharam o Precircmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1973 por terem criado esta nova ciecircncia 31 Idem Ibidem p 40

40 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino eacutetica apresenta-se natildeo como obra de um homem ou mesmo de uma geraccedilatildeo mas fundamentalmente como uma ldquociecircncia poliacuteticardquo (ἐπιστήμη πολιτικήepistḗmē politikḗ) 32 que deve ser sempre retomada e aprofundada a cada nova geraccedilatildeo Nisto reside a importacircncia de pensar a eacutetica a partir de uma tradiccedilatildeo posto que seria impossiacutevel mdash e de uma insensatez caprichosa mdash pretender fundar a cada geraccedilatildeo uma nova concepccedilatildeo de eacutetica Lima Vaz afirma com clareza

Um primeiro traccedilo se faz visiacutevel no ethos nessa sua condiccedilatildeo de espaccedilo habitaacutevel do mundo onde a comunidade humana pode lanccedilar raiacutezes e crescer Assim como a casa material deve ser construiacuteda sobre peacutetreos fundamentos para permanecer de peacute e durar assim o ethos dos diversos grupos humanos manifesta uma extraordinaacuteria capacidade de resistir agrave usura do tempo e agraves mudanccedilas advindas de tradiccedilotildees estranhas O ethos eacute constitutivamente tradicional pois o ser humano natildeo conseguiria refazer continuamente sua morada espiritual Trata-se de um legado mdash o mais precioso mdash que as geraccedilotildees se transmitem (tradere traditio) ao longo do tempo e que mostra por outro lado uma natildeo menos extraordinaacuteria capacidade de assimilaccedilatildeo de novos valores e de adaptaccedilatildeo a novas situaccedilotildees33

32 O termo usado por Aristoacuteteles na Poliacutetica eacute filosofia poliacutetica ARISOacuteTELES Poliacutetica Trad Antoacutenio Campelo Amaral Carlos Gomes Lisboa Vega 1998 III 12 1282 b 20 ldquo[] Isto levanta uma dificuldade e implica uma filosofia poliacutetica [φιλοσοφίαν πολιτικήν]rdquo 33 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 40 A convicccedilatildeo de que a histoacuteria desconhece comeccedilos absolutos eacute assumida por Tomaacutes e pode ser bem atestada em suas obras Afirma Sofia Vanni Rovighi acerca do Aquinate ROVIGHI Sofia Vanni Storia della filosofia medievale Dalla Patristica al secolo XIV Milano Vita amp Pensiero 2011 p 104 ldquoE S Tommaso era profondamente persuaso che la filosofia fosse una progressiva scoperta di una unica veritagrave accessibile ad ogni ricercatore di buona volontagrave Moltissimi suoi articoli premettono alla soluzione del problema una breve storia delle soluzioni [] storia che segue sempre questo schema i presocratici hanno dato un primo abbozzo di soluzione che si egrave determinato e perfezionato prima nellambito stesso della filosofia presocratica si egrave arricchito specialmente con Platone ha raggiunto unulteriore compiutezza con Aristotelerdquo ldquoE Santo Tomaacutes estava profundamente persuadido de que a filosofia fosse uma progressiva descoberta de uma uacutenica verdade acessiacutevel a todo pesquisador de boa vontade Muitos de seus artigos antepotildeem agrave soluccedilatildeo dos problemas uma breve histoacuteria das soluccedilotildees precedentes [] histoacuteria que segue sempre este esquema os preacute-socraacuteticos deram um primeiro esboccedilo de soluccedilatildeo que foi determinado e aperfeiccediloado primeiro no acircmbito da proacutepria filosofia preacute-socraacutetica enriqueceu-se especialmente com Platatildeo [e] alcanccedilou uma ulterior perfeiccedilatildeo com Aristoacutetelesrdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] O proacuteprio Tomaacutes assegura TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica Trad Carlos-Josaphat Pinto de Oliveira et al Satildeo Paulo Loyola 2001 I 44 2 C

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Aqui cabe um breve parecircntese Afinal por que natildeo comeccedilar com Tomaacutes Por que todo este preacircmbulo Tomaacutes natildeo se basta Na verdade a Idade Meacutedia pode ser tudo menos autossuficiente Como observa o filoacutesofo francecircs Reacutemi Brague o traccedilo mais essencial daquilo que hoje convencionamos chamar Idade Meacutedia eacute a consciecircncia da sua insuficiecircncia Os medievais latinos mdash e Tomaacutes de Aquino natildeo eacute uma exceccedilatildeo mdash nunca deixaram de se reconhecer dependentes dos antigos Por isso jamais cessaram de buscar fora de si a saber nos claacutessicos e mesmo noutras culturas (judaica grega e aacuterabe) as suas raiacutezes Ora esta consciecircncia ininterrupta de que inclusive em filosofia dever-se-ia buscar nos ldquoprimeiros filoacutesofosrdquo os proacuteprios fundamentos fez com que os medievais mdash tambeacutem Tomaacutes de Aquino mdash se tornassem os verdadeiros herdeiros da Antiguidade porque devedores dela Do nosso ponto de vista natildeo haacute como pensar a Idade Meacutedia latina inclusive Tomaacutes senatildeo como um aprimoramento um aprofundamento um desenvolvimento e finalmente um prolongamento do pensamento judaico grego e aacuterabe34 Daiacute a razatildeo do introito O medievo eacute por natureza uma continuidade e uma realidade multiacutevoca

Para tomar emprestado satildeo ainda necessaacuterias duas condiccedilotildees Eacute necessaacuterio primeiramente se dar conta de que se erra Eacute necessaacuterio em seguida aceitar ir procurar fora de si o que os outros inventaram Eacute necessaacuterio aceitar sentir-se inferior Isso exige certa coragem Seria mais faacutecil recusar-se a reconhecer-se inferior recusar-se a confessar-se necessitado [] Ora essa atitude mdash aceitar-se secundaacuterio relativamente a fontes anteriores

ldquoRespondeo dicendum quod antiqui philosophi paulatim et quasi pedetentim intraverunt in cognitionem veritatisrdquo ldquoOs filoacutesofos antigos penetraram pouco a pouco e quase passo a passo no conhecimento da verdaderdquo 34 A propoacutesito do uso das fontes por Tomaacutes Carlos Josaphat nota um aparente ldquoparadoxordquo que vale a pena citar JOSAPHAT Op Cit p 113 ldquoAbaixo das Sagradas Escrituras Agostinho e Aristoacuteteles satildeo as referecircncias mais citadas por Tomaacutes de Aquino em toda a Suma Paradoxalmente quanto mais este Doutor avanccedila em quantidade de citaccedilotildees e na correlaccedilatildeo que estabelece entre essas duas fontes uma filosoacutefica e outra teoloacutegica tanto mais se afirma sua originalidade singularrdquo

42 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

e exteriores delas haurir sem a esperanccedila de uma assimilaccedilatildeo total mdash eacute me parece a que marca a Idade Meacutedia inteira35

Esse sentimento de inferioridade na Idade Meacutedia natildeo eacute senatildeo uma atitude entre outras Eacute me parece a essa atitude que a Idade Meacutedia deve simplesmente a sua existecircncia Eacute a ela que a Idade Meacutedia deve o ser ela mesma A Idade Meacutedia eacute essa eacutepoca em que para retomar uma imagem ceacutelebre se soube que se era apenas um anatildeo empoleirado nos ombros de gigantes [] Essa humildade era necessaacuteria para aceitar ir haurir nas fontes Foi isso o que a Idade Meacutedia natildeo cessou de fazer Os historiadores nos desembaraccedilaram da imagem de uma Idade Meacutedia obscura para substituiacute-la por aquela de uma seacuterie ininterrupta de renascimentos Arrisquemo-lo a Idade Meacutedia eacute uma eacutepoca talvez a uacutenica eacutepoca da histoacuteria que jamais aceitou ser uma Idade Meacutedia Sempre quis ser um renascimento desde o iniacutecio36

Os medievais souberam ir procurar fora de si fora de sua experiecircncia imediata junto aos antigos e mesmo fora de sua tradiccedilatildeo proacutepria no mundo aacuterabe informaccedilotildees culturais Souberam aprimoraacute-las desenvolvecirc-las prolongaacute-las Mas sem jamais esquecer que o que tomavam emprestado vinha de fora Sem jamais esquecer tampouco que a fonte permanecia fora37

Delongamo-nos pois na justificaccedilatildeo destes dois primeiros

capiacutetulos no anseio de sinalizar que eles natildeo satildeo fortuitos ocasionais mas ao contraacuterio basilares para o nosso trabalho Com efeito apontar para o fato de que Tomaacutes mdash sem negar as peculiaridades do seu pensamento mdash permanece vinculado a uma tradiccedilatildeo a qual insere a sua reflexatildeo filosoacutefica na histoacuteria do pensamento eacutetico-filosoacutefico jaacute que a perda deste horizonte tradicional comprometeria a proacutepria noccedilatildeo de eacutetica como ldquociecircncia do ethosrdquo eacute primordial para noacutes Natildeo economizamos citar Vaz

35 BRAGUE Reacutemi Mediante a Idade Meacutedia Filosofias medievais na cristandade no judaiacutesmo e no islatilde Trad Edson Bini Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 63 36 Idem Ibidem p 64 37 Idem Ibidem p 65

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nestas linhas mdash e que nos seja permitido citaacute-lo ainda em alguns momentos do nosso texto mdash porque nos parece ser ele quem com maior refinamento conseguiu pensar a eacutetica tomasiana por um caminho que leva em conta estes preacircmbulos Nosso plano para os proacuteximos capiacutetulos eacute perceber o ressoar do quanto dissemos na proacutepria obra do Aquinate

Assim jaacute no terceiro capiacutetulo envidaremos esforccedilos para fazer ver como Tomaacutes recebe a Eacutetica a Nicocircmaco Nosso propoacutesito eacute exprimir quais as razotildees que levam o Aquinate a recepcionar mdash em sua obra teoloacutegica mdash a conceptualidade filosoacutefica do Estagirita Trilhando esta via exporemos em primeiro lugar os fatos histoacutericos que colocam em relevo como a eacutetica de Aristoacuteteles influenciou a redaccedilatildeo da IIa parte da Summa Theologiae Em seguida fixaremos os conceitos propriamente ditos pelos quais Tomaacutes justifica o ato de lanccedilar matildeo de um filoacutesofo da antiguidade pagatilde para conceber a sua teologia moral

Destacamos como a grande coluna deste capiacutetulo o fato de o Aquinate retomar mdash a seu modo mdash atraveacutes da sua definiccedilatildeo de virtudes cardeais a metaacutefora do ἦθος (ẽthos) como a morada do homem bem como a concepccedilatildeo de eacutetica como uma reflexatildeo mediante a qual o homem pensa de que forma pode inaugurar uma vida propriamente humana atraveacutes das suas accedilotildees Outro conceito que destacaremos entre os demais por sua importacircncia eacute o de ratio que parece realmente recuperar o de λόγος (loacutegos) enquanto o Aquinate o concebe como a capacidade de o homem situar na ldquovozrdquo (vox) a ldquopalavrardquo (verbum) que expressa um conceito a saber a palavra dotada de significado distinta por isso mesmo da sem significado ldquoA palavra que natildeo eacute significativa natildeo pode ser chamada de verbordquo38 O verbum portanto eacute um tipo especial de signum signum que por natureza se define como ldquo[] o meio de chegar ao conhecimento de outra coisardquo39 Destarte o

38 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 34 1 C ldquoVox autem quae non est significativa verbum dici non potestrdquo 39 Idem Ibidem III 60 4 C ldquoSignum autem est per quod aliquis devenit in cognitionem alteriusrdquo

44 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino verbum diz mais do que a simples vox ldquo[] a palavra humana [humanum verbum] assume voz [vocem assumit] para dar-se a conhecer sensivelmente aos homensrdquo40 Ora quando esta palavra entendiacutevel e encarnada na vox torna-se entendida por outros homens temos a ldquolinguagemrdquo (locutio) como ficaraacute claro no decorrer do texto E quando pela ldquolinguagemrdquo (locutio) os homens conseguem descobrir que certas regras das suas accedilotildees satildeo inerentes agrave sua natureza alcanccedilamos propriamente o que podemos chamar um exerciacutecio de razatildeo (ratio) praacutetica o qual torna possiacutevel que os homens comunguem a vida uns dos outros constituindo assim a civitas e a gecircnese da eacutetica enquanto ciecircncia

No quarto capiacutetulo trataremos de outro ponto central eacute possiacutevel haver uma eacutetica filosoacutefica numa teologia moral Como pode subsistir num tratado teoloacutegico mdash sem romper a sua unidade mdash uma eacutetica filosoacutefica A esta questatildeo que julgamos de grande relevacircncia buscaremos responder tentando definir qual eacute o conceito de teologia que Tomaacutes elabora

Para o quinto e uacuteltimo capiacutetulo planejamos o seguinte definir alguns conceitos-chave da eacutetica filosoacutefica tomasiana aleacutem de exemplificar alguns momentos desta mesma eacutetica sem contudo pretendermos expocirc-la sistematicamente como jaacute advertimos no comeccedilo

Na conclusatildeo procuraremos recolher os principais resultados da nossa pesquisa Nela empenhar-nos-emos por ressaltar a natildeo exaustividade do nosso trabalho os problemas que ele deliberadamente deixa em aberto e como o fato desta ldquoincompletuderdquo ser justamente o que o torna mdash assim esperamos mdash aproveitaacutevel a outros pesquisadores que pretendam retomaacute-lo agrave sua maneira

Aleacutem das fontes mdash evidentemente nosso aporte teoacuterico principal mdash figuram tambeacutem em nosso texto outros referenciais

40 Idem Compecircndio de Teologia I 219 ldquo [] Sicut autem humanum verbum vocem assumit ut sensibiliter hominibus innotescat []rdquo

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teoacutericos Os principais satildeo as obras de Henrique Claacuteudio de Lima Vaz jaacute citadas nesta introduccedilatildeo Todavia podemos distinguir nosso aparato teoacuterico tambeacutem por capiacutetulos No primeiro capiacutetulo uma preleccedilatildeo do filoacutesofo e filoacutelogo italiano Emanuele Severino seraacute a nossa acircncora conceitual para as etimologias gregas sem que com isso deixemos mdash quando oportuno mdash de citar as fontes

Aqui cabe outra advertecircncia quando na transliteraccedilatildeo dos vocaacutebulos gregos natildeo seguirmos a Sociedade Brasileira de Estudos Claacutessicos (SBEC) eacute porque optamos por uma disciplina alternativa porquanto as gramaacuteticas natildeo satildeo consensuais ao apresentarem a conversatildeo dos caracteres gregos para o portuguecircs e a transliteraccedilatildeo apresentada pela SBEC natildeo segue a Nova Reforma Ortograacutefica41 onde o acreacutescimo das letras k w e y muito tem facilitado a transposiccedilatildeo dos termos para o nosso idioma42 Nossa proposta consta na lista de transliteraccedilotildees gregas a qual seguiremos homogeneamente Natildeo privilegiamos a forma foneacutetica neste trabalho mas a graacutefica43 Os aparatos teacutecnicos relativos ao grego (gramaacuteticas e dicionaacuterios) seratildeo mencionados no decurso do proacuteprio texto e na bibliografia final

41 SOCIEDADE BRASILEIRA DE ESTUDOS CLAacuteSSICOS Alfabeto grego In AUBENQUE Pierre O problema do ser em Aristoacuteteles Trad Cristiana de Souza Agostini Diocleacutezio Domingos Faustino Rev Caio Pereira 1 ed Satildeo Paulo Paulus 2012 p 7 (Coleccedilatildeo Filosofia) 42 A volta dessas letras possibilita que na transliteraccedilatildeo possamos reconhecer a palavra original devido agrave equivalecircncia inequiacutevoca que a inserccedilatildeo destas letras proporciona Um bom exemplo disso eacute o uso que as gramaacuteticas gregas em liacutengua portuguesa fazem do y na transliteraccedilatildeo como na palavra οὐσία Note que apesar de o y grego (υ) ter a forma visual semelhante ao nosso u portuguecircs basta que se coloque em caixa alta para perceber a distinccedilatildeo (ΟΥΣΙΑ = οὐσία) Constata-se assim que satildeo letras diferentes Como o portuguecircs brasileiro natildeo continha k w e y natildeo havia uma letra em nosso alfabeto que pudesse representar o υ grego Com a Nova Reforma Ortograacutefica as letras k w e y comeccedilaram a vigorar e doravante podemos fazer a correspondecircncia graacutefica equivalente ao grego do υ (y) ao inveacutes de usar o u como sempre ocorreu Como a SBEC natildeo alterou seu sistema transliteraacuterio apoacutes a Nova Reforma Ortograacutefica optamos por fazer uso do y contrariamente agrave literatura vigente mesmo quando os termos apresentam foneticamente o som de u como nos ditongos proacuteprios (FREIRE Op Cit p 7) 43 Por exemplo a conjunccedilatildeo aditiva ldquoerdquo se escreve kaiacute em grego mas se lecirc ldquokaacuteirdquo Isso ocorre porque no grego nem sempre a tocircnica recai sobre a vogal acentuada como no caso dos ditongos proacuteprios acentuados cujo acento demarca a semivogal e natildeo a vogal como eacute de costume pronunciar em portuguecircs (ex reacuteu) (FREIRE Op Cit pp 9-10)

46 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Tambeacutem optamos por destacar com itaacutelico os termos em latim e as transliteraccedilotildees do grego mas conservamos normalmente as palavras gregas com seus caracteres originais para facilitar a identificaccedilatildeo e distinccedilatildeo de alguns sinais que se confundem em itaacutelico como as aspiraccedilotildees (lsquo e rsquo) e o acento agudo (acute) Sempre que houver algum termo grego que possa causar duacutevida quanto agrave escrita seraacute acompanhado pela referecircncia em que nos apoiamos

No segundo capiacutetulo algumas obras de Aristoacuteteles mdash particularmente a Eacutetica a Nicocircmaco44 mdash seratildeo o nosso suporte principal aleacutem de uma preleccedilatildeo e vaacuterias obras do principal estudioso italiano de Aristoacuteteles na atualidade Enrico Berti

No terceiro quarto e quinto capiacutetulos o nosso apoio fundamental seraacute a Suma de Teologia de Tomaacutes e algumas obras do Boi Mudo compostas antes ou durante a sua redaccedilatildeo Entre estas destacamos a Summa Contra Gentiles 45 cuja redaccedilatildeo precedeu a da Summa Theologiae46 e o Compendium Theologiae47 O fato de natildeo nos atermos agrave Suma de Teologia deve-se ao consenso hoje estabelecido de que natildeo se pode mdash sem perda de perspectivas mdash interpretar a Summa sem recorrer a outras obras do mesmo periacuteodo ou precedentes Jaacute em um estudo de Martin Grabmann mdash um dos mais dedicados leitores da Summa Theologiae da primeira metade do seacuteculo passado mdash existe este indicativo Depois de acenar para a importacircncia capital da Summa declara

44 A Ēthikagrave Nikomaacutekheia (Ἠθικὰ Νικομάχεια) seraacute citada habitualmente a partir da traduccedilatildeo brasileira consignada na Coleccedilatildeo Os Pensadores conforme indicaremos no decorrer do texto Os termos gregos mais importantes seratildeo citados entre colchetes a partir da ediccedilatildeo biliacutengue espanhola de Mariacutea Arauacutejo e Juliaacuten Mariacuteas Quando poreacutem a traduccedilatildeo brasileira for por alguma razatildeo insatisfatoacuteria traduziremos a partir da versatildeo espanhola colocando o original espanhol no rodapeacute 45 Utilizaremos a ediccedilatildeo biliacutengue da Summa contra Gentiles (1258 a 1264) na traduccedilatildeo brasileira de Odilatildeo Moura revista recentemente (1996) por Luis Alberto De Boni 46 Transitaremos pela ediccedilatildeo biliacutengue da Summa Theologiae na sua nova traduccedilatildeo brasileira das Ediccedilotildees Loyola que resultou no aparecimento de nove volumes entre os anos de 2001 a 2006 47 Frequentaremos o Compendium Theologiae em duas ediccedilotildees A primeira e jaacute citada nesta introduccedilatildeo eacute uma ediccedilatildeo biliacutengue vertida para o vernaacuteculo por Carlos Nougueacute Tambeacutem trafegaremos por uma traduccedilatildeo mais antiga de Odilatildeo Moura (1977) Doravante sempre que usarmos a ediccedilatildeo biliacutengue faremos a ressalva a fim de distinguir as duas ediccedilotildees

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Pelo contraacuterio para a investigaccedilatildeo cientiacutefica que escruta um a um os problemas da doutrina tomista no ponto de vista histoacuterico e especulativo as demais obras do Aquinate satildeo tambeacutem uma fonte indispensaacutevel e por outra parte inesgotaacutevel Consagrados a trabalhos de pormenor exerceram estes escritos maior influecircncia sobre o pensamento e a obra de S Tomaacutes e em consequumlecircncia sobre o nascimento a elaboraccedilatildeo e o acabamento da poderosa siacutentese que encontramos na Suma Teoloacutegica seu estudo lanccedilaraacute pois uma viva luz sobre a proacutepria Suma e ajudar-nos-aacute a melhor penetrar-lhe o sentido [] Quem desejar conhecer e aclarar o lado aristoteacutelico da Suma Teoloacutegica e portanto seu fundamento filosoacutefico essencial deve seguir ao mesmo tempo o Aquinate em seu laboratoacuterio filosoacutefico nos comentaacuterios sobre Aristoacuteteles onde forja os instrumentos de sua especulaccedilatildeo48

Ressaltamos que as principais passagens das obras

tomasianas seratildeo citadas de forma biliacutengue sempre com o latim no rodapeacute O original latino seraacute sempre citado a partir do texto Taurino editado em 1953 e transferido automaticamente por Roberto Busa em fitas magneacuteticas e uma vez mais revisto e ordenado por Enrique Alarcoacuten 49 Ademais nos supracitados capiacutetulos comparecem ainda os comentadores de Tomaacutes Entre eles mencionamos a historiadora da filosofia medieval Sofia Vanni

48 GRABMANN Martinho Introduccedilatildeo agrave Suma Teoloacutegica de Santo Tomaacutes de Aquino Trad Francisco Lage Pessocirca Rio de Janeiro Editora Vozes 1994 pp 29-30 [O itaacutelico eacute nosso] Tambeacutem Gilson salienta a necessidade do recurso a outras obras de Tomaacutes quando se quer aprofundar as posiccedilotildees da Summa Theologiae Vale a transcriccedilatildeo GILSON A Filosofia na Idade Meacutedia p 655 ldquoA exposiccedilatildeo completa mas tatildeo simplificada quanto possiacutevel da filosofia tomista se encontra na primeira e segunda partes da Suma teoloacutegica Eacute aiacute nessas questotildees expressamente redigidas por santo Tomaacutes para os principiantes que conveacutem buscar uma primeira iniciaccedilatildeo a seu pensamento A Summa contra os gentios conteacutem a mesma doutrina mas pretende fundaacute-la tatildeo completamente quanto possiacutevel numa demonstraccedilatildeo racional Eacute aiacute pois que se deve buscar a discussatildeo aprofundada dos problemas resolvidos na Suma teoloacutegica eles satildeo retomados examinados sob todos os acircngulos submetidos agrave prova de inuacutemeras objeccedilotildees e eacute somente depois de ter triunfado sobre essas muacuteltiplas provas de resistecircncia que as soluccedilotildees satildeo definitivamente consideradas verdadeiras Enfim para os casos em que um novo aprofundamento dos problemas pareccedila necessaacuterio deve-se procurar tanto nas Questotildees disputadas como nos Quodlibeta O conhecimento de certas questotildees disputadas como as Quaestiones de Veritate ou o De Potentia por exemplo natildeo eacute menos indispensaacutevel do que o das duas Sumas para quem quiser penetrar ateacute o fundo do pensamento de santo Tomaacutesrdquo 49 CORPUS THOMISTICUM Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorggt

48 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Rovighi e o medievalista francecircs Eacutetienne Gilson Em cada capiacutetulo colocamos agrave vista do leitor as referecircncias bibliograacuteficas Cada capiacutetulo apresenta tambeacutem uma introduccedilatildeo as devidas subdivisotildees uma conclusatildeo mdash logicamente parcial mdash assim como um fio condutor que o liga ao proacuteximo Na dinacircmica que resolvemos dar agrave nossa exposiccedilatildeo encontramos por vezes a necessidade de aprofundar temas jaacute tratados em capiacutetulos anteriores e a voltar a passagens jaacute citadas Quando isso ocorrer procuraremos justificar a razatildeo do nosso retorno agrave temaacutetica e ao periacuteodo Toda esta nossa propedecircutica quer atestar que mesmo quando fazemos digressotildees nossa direccedilatildeo eacute sempre para Tomaacutes e a nossa temaacutetica tal como a tentamos circunscrever nesta introduccedilatildeo tambeacutem remonta ao Aquinate

Capiacutetulo I Filosofia e Eacutetica

Uma vez que trataremos da eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino julgamos pertinente determo-nos por um instante na relaccedilatildeo existente entre filosofia e eacutetica a fim de estabelececirc-la E para que a nossa abordagem natildeo fique fechada no medievo mas se torne um texto mais aberto optamos por nos reportar primeiramente aos gregos mostrando em seguida como Tomaacutes mdash agrave sua maneira mdash retorna a eles Neste capiacutetulo portanto eacute nosso propoacutesito patentear que a filosofia nasce tambeacutem como ἦθος (ẽthos) 1 mdash com o η inicial mdash entendendo por este termo a pretensatildeo humana de construir um espaccedilo na ldquofyacutesisrdquo (φύσις) habitaacutevel para o homem

O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do ethos [] A metaacutefora da morada e do abrigo indica justamente que a partir do ethos o espaccedilo do mundo torna-se habitaacutevel para o homem2

Para tanto focaremos em alguns conceitos-chave Antes de

tudo abordaremos o ldquothaỹmardquo (θαῦμα) como origem do filosofar Em seguida discorreremos acerca da etimologia da palavra ldquofilosofiacuteardquo (φιλοσοφία) entendida como ldquofiliacuteardquo (φιλία) agrave ldquosofiacuteardquo (σοφία) que se desabrocha na persecuccedilatildeo e consecuccedilatildeo da

1 A bem da verdade a filosofia nasce poliacutetica no sentido de que ela nasce na e com a poacutelis nasce da poacutelis A filosofia comeccedila na Agoraacute [Ἀγορά] na praccedila sua gecircnese coincide pois com a do espaccedilo puacuteblico Como afirma Petrucciani a argumentaccedilatildeo filosoacutefica em seu iniacutecio eacute um fenocircmeno eminentemente urbano PETRUCCIANI Stefano Modelos de Filosofia Poliacutetica Trad Joseacute Raimundo Vidigal Satildeo Paulo Paulus 2014 p 37 ldquoA cidade-estado grega eacute o lugar no qual aparece pela primeira vez aquela novidade radical que eacute a discussatildeo poliacutetica no espaccedilo puacuteblico Com ela e junto com ela nascem aquelas praacuteticas que tecircm sido caracteriacutesticas por toda a histoacuteria da civilizaccedilatildeo ocidental como o discurso argumentativo a filosofia o debate poliacutetico o pensamento poliacuteticordquo 2 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura pp 12-13 Esta concepccedilatildeo de ẽthos precisa mdash sem duacutevida mdash ser completada Faremos este complemento no proacuteximo capiacutetulo mas desde jaacute podemos fixar que esta acepccedilatildeo de ἦθος (ẽthos) eacute bem atestada pelos filoacutelogos mais renomados (CHANTRAINE ἦθος [ẽthos] In Op Cit p 407)

50 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ldquoalḗtheiardquo (ἀλήθεια) luz inconteste Depois falaremos da filosofia como ldquotheōriacuteardquo (θεωρία) isto eacute como contemplaccedilatildeo que se daacute quando da posse da ldquoalḗtheiardquo que alcanccedilada atraveacutes do ldquodiaacutelogosrdquo (διάλογος) e esquematizada daacute origem agrave ldquoepistḗmērdquo (ἐπιστήμη)

Em todo este percurso projetamos acenar como Tomaacutes acolhe mdash agrave sua maneira mdash estes conceitos Mas cumpre deixarmos algo claro Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo esgotar a temaacutetica do nascimento da filosofia tampouco exaurir a riqueza dos conceitos arrolados nem a sua ressonacircncia em Tomaacutes Pretendemos apenas assinalar que a filosofia nasce tambeacutem como interrogaccedilatildeo acerca do ἦθος (ẽthos) mdash no sentido que por ora demos a este termo mdash e como o Aquinate segundo percebemos concebe-a assim A nossa fonte mdash maacutexime quanto agraves etimologias mdash seraacute a preleccedilatildeo de Emanuele Severino I Presocratici e la nascita della filosofia que integra a primeira seacuterie da coletacircnea Il Caffegrave Filosofico3 Quanto a Tomaacutes suas obras seratildeo a nossa fonte Passemos a considerar o thaỹma 11 DO MITO Agrave FILOSOFIA O ldquoTHAỸMArdquo COMO PRINCIacutePIO DO FILOSOFAR

Diz Aristoacuteteles na Metafiacutesica que a filosofia nasce do thaỹma (θαῦμα)4 O termo thaỹma comodamente traduzido por

3 I PRESOCRATICI e la nascita della filosofia Apresentado por Emanuele Severino Roma La repubblica e Lrsquoespresso 2009 1 DVD (90 min) widescreen color (Collana Il Caffegrave Filosofico v 1) Aqui vale uma advertecircncia seguiremos Emanuele Severino mormente enquanto filoacutelogo e estudioso dos primoacuterdios da filosofia sem desconhecer que ele tambeacutem eacute um eminente filoacutesofo Mas enquanto filoacutesofo suas conclusotildees satildeo o mais das vezes antiteacuteticas agraves dos autores que privilegiaremos 4 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 10 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 ldquoDe fato os homens comeccedilaram a filosofar agora como na origem por causa da admiraccedilatildeo [θαυμάζεινthaymaacutezein] na medida em que inicialmente ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples []rdquo Observemos a razatildeo da admiraccedilatildeo ficavam perplexos assustados ou assombrados diante das dificuldades mais simples Ademais importa ressaltarmos que Aristoacuteteles aqui daacute realce a um dito de Platatildeo PLATOacuteN Teeteto Trad Aacutelvaro Vallejo Campos Rev Fernando Garciacutea Romero Madrid Editorial Gredos 1992 t V 155 d ldquoQuerido amigo parece que Teodoro no se ha equivocado al juzgar tu condicioacuten natural pues experimentar eso que llamamos la admiracioacuten es muy caracteriacutestico del filosofo Eacuteste y no otro efetivamente es la origen de la filosofiacuteardquo ldquoSoacutecrates mdash Querido amigo parece que Teodoro natildeo se equivocou ao julgar sua condiccedilatildeo natural pois

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ldquomaravilhardquo evoca muito mais do que comumente se pensa a saber um indiviacuteduo que se admira diante de algo que antes simplesmente natildeo lhe causava espanto algum No original thaỹma quer dizer ldquomedordquo ldquoterrorrdquo5 Mas medo de quecirc Sobretudo da dor da infelicidade e da morte Em razatildeo disso a filosofia nasce tambeacutem do terror isto eacute do medo do homem em face da dor e da morte

Entretanto este caminho conheceu preacircmbulos Diante do estupor causado pelos fenocircmenos da natureza por vezes terrificantes e ateacute ameaccediladores o homem de antanho a priori sem recursos acurados para explicaacute-los comeccedilou por atribuiacute-los agrave vontade arbitraacuteria de figuras humanas que se lhe apresentavam como mais potentes do que ele A estas figuras humanas denominou deuses Por isso os deuses foram os que por primeiro passaram a dar sentido a todos os fenocircmenos naturais e a ser a explicaccedilatildeo natural do homem ante a precariedade da sua existecircncia tatildeo contingente quanto agraves coisas que o cercam A respeito do ldquomedordquo do homem ao perceber a sua contingecircncia Selvaggi assinala

Se com efeito o mundo existia quando outros ldquoeusrdquo natildeo existiam e continua a existir quando eles natildeo existem mais natildeo eram

experimentar isso que chamamos admiraccedilatildeo eacute muito caracteriacutestico do filoacutesofo Isto e natildeo outra coisa efetivamente eacute a origem da filosofiardquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 5 CHANTRAINE θαῦμα [thaỹma] In Op Cit p 424 BAILLY θαῦμα [thaỹma] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais p 413 Paris Librairie Hachette 1901 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Ambos os linguistas atestam existir a acepccedilatildeo do termo thaỹma como maravilha objeto de espanto e de admiraccedilatildeo mas tambeacutem de assombro monstruoso A propoacutesito tambeacutem Tomaacutes fala de um temor que causa admiraccedilatildeo TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 41 4 C ldquoMalum autem quod in exterioribus rebus consistit triplici ratione potest excedere hominis facultatem ad resistendum Primo quidem ratione suae magnitudinis cum scilicet aliquis considerat aliquod magnum malum cuius exitum considerare non sufficit Et sic est admiratiordquo ldquoO mal que estaacute nas coisas exteriores pode ultrapassar a capacidade do homem de trecircs maneiras 1 em razatildeo de sua grandeza Quando algueacutem considera um grande mal e natildeo consegue ver como sair dele Haacute entatildeo admiraccedilatildeo []rdquo Mais adiante nas respostas agraves objeccedilotildees o Aquinate afirma que esta espeacutecie de temor que eacute causa de admiraccedilatildeo eacute o princiacutepio do filosofar Idem Ibidem I-II 41 4 ad 5 ldquoUnde admiratio est principium philosophandi []rdquo ldquoPor isso a admiraccedilatildeo eacute o princiacutepio do filosofar []rdquo

52 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

necessaacuterios para o mundo satildeo temporais e satildeo contingentes porque o mundo ldquopode existirrdquo sem eles e de fato existia ou existe Mas o que vale para os outros vale tambeacutem para mim que lhes sou semelhante Portanto tambeacutem eu natildeo sou necessaacuterio para o mundo sou temporal e contingente e o mundo o mundo real que eacute o ldquomeurdquo mundo pode existir sem mim6

Mas o fato eacute que com estas primeiras espeacutecies de narraccedilatildeo

mdash mỹthos (μῦθος)7 em grego significa exatamente narraccedilatildeo mdash o homem tentava dar sentido ao seu assombro ante os fenocircmenos naturais ao mesmo tempo que buscava responder agrave sua vulnerabilidade diante deles Hoje conhecemos estas narraccedilotildees pelo nome de mitologia A princiacutepio eram apenas tradiccedilotildees orais Todavia na Greacutecia Homero e Hesiacuteodo mdash valendo-se de uma linguagem poeacutetica mdash comeccedilaram a consignar estas narraccedilotildees incorporando-as desta sorte ao registro da histoacuteria Aqui eacute muito importante notarmos o marco que a mitologia daacute porquanto doravante o homem natildeo procura mais defender-se da dor e da morte mdash e de tudo o que ameaccedila a sua vida mdash somente mediante ldquoteacutecnicasrdquo rudimentares ou procedimentos meramente ldquopraacuteticosrdquo mas tambeacutem buscando adquirir um senso do mundo que de certa forma sirva de proteccedilatildeo agrave sua vulnerabilidade Em outras palavras o homem comeccedila a valer-se mdash de uma forma nova mdash do loacutegos (λόγος) para viver (deveras natildeo ainda o loacutegos filosoacutefico) Reiteramos que isso eacute marcante porque o fato de dar sentido agraves coisas e agrave proacutepria existecircncia passa a servir como uma espeacutecie de ldquoremeacutediordquo ao homem que se sente ameaccedilado Aristoacuteteles chega a dizer que quem ama o mito jaacute eacute sob certo aspecto filoacutesofo

6 SELVAGGI Filippo Filosofia do Mundo Cosmologia Filosoacutefica Trad Alexander A Macintyre Rev H C de Lima Vaz Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1988 p 28 7 O termo mỹthos eacute encontrado de formas diversas nos dicionaacuterios ora com circunflexo ora com acento agudo como trazem os dicionaacuterios de grego moderno (MANIATOGLOU Maria da Piedade Faria Dicionaacuterio grego-portuguecircs 1 ed Porto Porto Editora 2010 p 906) Damos preferecircncia para a grafia mais antiga segundo a etimologia do grego claacutessico como eacute encontrada na obra de CHANTRAINE Μῦθος [mỹthos] Op Cit p 735

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Ora quem experimenta a sensaccedilatildeo de duacutevida e de admiraccedilatildeo reconhece que natildeo sabe e eacute por isso que tambeacutem aquele que ama o mito eacute de certo modo filoacutesofo o mito com efeito eacute constituiacutedo por um conjunto de coisas admiraacuteveis8

Eacute necessaacuterio acentuarmos ainda outro aspecto o homem

vive o mito natildeo como uma faacutebula e a escrita miacutetica em forma de poesia natildeo diminui em nada a forccedila que o mito exerce sobre ele Por isso eacute preciso esclarecermos que quando se diz que o mito eacute uma narraccedilatildeo poeacutetica isto natildeo significa de forma alguma que o homem vetusto o acolhe como uma faacutebula antes ele o recebe como algo produzido (poeacutetico vem de poiacuteēsis [ποίησις] = produccedilatildeo) por ele mesmo a partir da observaccedilatildeo de fatos atestaacuteveis e a fim de responder agrave precariedade existencial com a qual se depara e que o assombra a todo instante

Acontece poreacutem mdash e vale salientarmos que isto eacute peculiar ao gecircnio grego mdash que os mitos aos poucos vatildeo-se tornando insuficientes porque no final das contas todos eles satildeo passiacuteveis de ser negados visto que se respondem agrave sorte infausta do homem pelas representaccedilotildees fantaacutesticas natildeo respondem a ela com o rigor de um raciociacutenio irrefutaacutevel Nasce entatildeo o desejo de saber9 isto eacute de adquirir um conhecimento tatildeo soacutelido quanto indestrutiacutevel ou seja um conhecimento que natildeo seja mais negaacutevel nem passiacutevel de ser desmentido E adquirir este saber eacute mister pois sem ele o homem pode sempre volver ao estado de ldquoescravordquo do medo da dor e da morte pela duacutevida Por isso urge a aquisiccedilatildeo deste saber seguro e irrefutaacutevel que possa resguardar o homem do temor do infortuacutenio e da morte

Ora esta procura constante por um saber indefectiacutevel apresenta-se tambeacutem como a busca de algo a que os gregos

8 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 15 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 9 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 980 a In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 ldquoTodos os homens por natureza tendem ao saberrdquo

54 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino chamaram verdade e que natildeo eacute senatildeo a marca primeira do proacuteprio filosofar Portanto a filosofia nasce existencial uma vez que por ela o homem espera encontrar o remeacutedio definitivo que o ajude a se libertar da escravidatildeo da dor da desdita e da morte Mas a filosofia exprime-se ainda como ἦθος (ẽthos) entendendo sempre por este termo a pretensatildeo de o homem produzir (poiacuteēsis [ποίησις] = produccedilatildeo)10 por meio de um modo de portar-se ante o mundo e ante os seus semelhantes um espaccedilo humano que ainda natildeo estaacute dado Para consumaacute-lo o homem teraacute de passar do ldquoloacutegos miacuteticordquo ao filosoacutefico e assim chegar agrave reflexatildeo que constituiraacute a Eacutetica enquanto ciecircncia do eacutethos Lima Vaz indica este processo de forma feliz

Eacute pois no espaccedilo do ethos que o logos torna-se compreensatildeo e expressatildeo do ser do homem como exigecircncia radical de dever-ser ou do bem Assim na aurora da filosofia grega Heraacuteclito entendeu o ethos na sua sentenccedila ceacutelebre ethos antrocircpo daiacutemocircn O ethos eacute na concepccedilatildeo heracliacutetica regido pelo logos e eacute nessa obediecircncia ao logos que se datildeo os primeiros passos em direccedilatildeo agrave Eacutetica como saber racional do ethos assim como iraacute entendecirc-la a tradiccedilatildeo filosoacutefica do Ocidente11

Prossigamos na nossa tentativa de entender como o

itineraacuterio da eacutetica comeccedila a se delinear a partir da especulaccedilatildeo grega 12 FILOSOFIA E ldquoALḖTHEIArdquo A FILOSOFIA COMO ldquoFILIacuteArdquo Agrave ldquoSOFIacuteArdquo

Diziacuteamos acima acerca da importacircncia da busca da verdade Mas o que eacute a verdade Para o grego antigo a verdade eacute

10 Natildeo precisamos carregar a tinta todas as vezes que usamos o termo grego poiacuteēsis a fim de opor o fazer (obra que transita do sujeito para o objeto) ao agir (obra que termina no sujeito) Podemos entender o ldquoagirrdquo tambeacutem como uma produccedilatildeo construccedilatildeo De qualquer forma voltaremos com maior detenccedila a esta questatildeo numa nota que se encontra no proacuteximo capiacutetulo 11 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13

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alḗtheia (ἀλήθεια) O ldquoαrdquo aqui eacute uma partiacutecula privativa 12 enquanto lḗthē (λήθη)13 significa ldquoesquecimentordquo Logo alḗtheia eacute o que natildeo se pode esquecer porque patente evidente manifesto14 Diziacuteamos ainda que quem busca a verdade eacute o filoacutesofo Mas o que eacute a filosofiacutea (φιλοσοφία) Este termo eacute comumente traduzido e explicado por ldquoamor agrave sabedoriardquo Poreacutem isso natildeo basta para dizecirc-lo em seu sentido mais profundo Com efeito que amor eacute este Fiacutelos (φίλος) deriva de filiacutea (φιλία) que significa um amor de atenccedilatildeo de cuidado de curadoria Sofiacutea (σοφία) por seu lado vem

12 FREIRE Antocircnio Op Cit p 266 13 CHANTRAINE λήθη [lḗthē] In Op Cit p 636 Chantraine remete o leitor ao verbo λανθάνω Idem Λανθάνω [lanthaacutenō] Op Cit p 618 Tambeacutem Bailly usa do mesmo expediente BAILLY Λανθάνω [lanthaacutenō] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 516 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Os dois estudiosos preveem o significado de lḗthē como o que estaacute oculto escondido bem como o que eacute ignorado esquecido negligenciado No final da Repuacuteblica na narrativa do mito de Er lḗthē eacute o nome dado agrave planiacutecie de cujo rio as almas eram obrigadas a beber a aacutegua e as que bebiam mais do que deviam se esqueciam de tudo PLATOacuteN Repuacuteblica Trad Conrado Eggers Lan Rev Alberto Del Pozo Ortiz Madrid Editorial Gredos 1986 t IV X 621 a-b ldquoDespueacutes de que pasaron tambieacuten las demaacutes marcharon todos hacia la planicie del Olvido a traveacutes de un calor terrible y sofocante En efecto la planicie estaba desierta de aacuterboles y de cuanto crece de la tierra Llegada la tarde acamparon a la orilla del riacuteo de la Desatencioacuten cuyas aguas ninguna vasija puede retenerlas Todas las almas estaban obligadas a beber una medida de agua pero a algunas no las preservaba su sabiduriacutea de beber maacutes allaacute de la medida y asiacute tras beber se olvidaban de todordquo ldquoDepois passaram tambeacutem as demais marcharam todas para a planiacutecie do Esquecimento [lḗthē] atraveacutes de um calor terriacutevel e sufocante Com efeito a planiacutecie estava deserta de aacutervores e de tudo quanto cresce da terra Chegada a tarde acamparam agrave margem do rio da Desatenccedilatildeo cujas aacuteguas nenhuma vasilha pode retecirc-las Todas as almas estavam obrigadas a beber uma medida de aacutegua poreacutem a algumas natildeo as preservava a sua sabedoria de beber aleacutem da medida e assim depois de beber esqueciam-se de tudordquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 14 MOLINARO Aniceto Metafiacutesica curso sistemaacutetico Trad Joatildeo Paixatildeo Netto e Roque Frangiotti Rev Zolferino Tonon Satildeo Paulo Paulus 2014 pp 16-17 ldquoAleacutetheia significa etimologicamente natildeo escondimento a condiccedilatildeo daquilo que eacute na luz inegaacutevelrdquo Uma passagem do Fedro mostra com clareza a oposiccedilatildeo entre alḗtheia e lḗthē PLATOacuteN Fedro Trad Eacute Lledoacute Iacutentildeigo Rev Carlos Garciacutea Editorial Gredos Madrid 1988 t III 248 c ldquoCualquier alma que en el sequito de lo divino haya vislumbrado algo de lo verdadero estara indemne hasta el proximo giro y simpre que haga lo mismo estara libre de dano Pero cuando por no haber podido seguirlo no lo ha visto y por cualquier azaroso suceso se va gravitando llena de olvido y dejadez debido a este lastre pierde las alas y cae a tierrardquo ldquoQualquer alma que no seacutequito do divino tenha vislumbrado algo do verdadeiro estaraacute indene ateacute a proacutexima roda e sempre que faccedila o mesmo estaraacute livre do dano Poreacutem quando por natildeo haver podido segui-lo natildeo o viu e por qualquer evento desafortunado vai gravitando cheia de esquecimento [λήθηlḗthē] e negligecircncia devido a este lastro perde as asas e cai na terrardquo [A traduccedilatildeo eacute nossa]

56 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino de safḗs (σαφής)15 que significa claro luminoso O fḗs de safḗs vem de fȭs (φῶς) que designa luz Daiacute por exemplo a nossa palavra ldquofoto-grafiardquo (φωτο-γραφία) = grafia da luz Por conseguinte sofiacutea eacute o que natildeo se esconde o que essencialmente se mostra e o que precisamente por natildeo poder ser negado por ser uma luz inexpugnaacutevel natildeo pode ser tomado como uma mera ilusatildeo passando a figurar como um saber imorredouro Entatildeo o que eacute a filosofia Eacute a busca cuidadosa eacute a vontade de alcanccedilar a sofiacutea a saber a claridade a luz que se mostra e que natildeo se esconde e que por isso natildeo pode ser negada Por outro lado jaacute sabemos que a verdade (alḗtheia) eacute a que possui estes predicados Sendo assim a filosofia eacute a procura contiacutenua da sabedoria que se possui quando da posse da verdade isto eacute da luz incontrovertida16 a qual por sua vez seraacute como que a ldquoterapiardquo para o nosso medo da dor da desventura e da morte

Pela busca da verdade o homem tenta destacar-se daquilo que o rodeia e escapar agraves vicissitudes da sua proacutepria existecircncia a fim de construir um haacutebitat que lhe seja proacuteprio Assim sendo temos que a filosofia mdash mesmo com uma preponderante valecircncia teoreacutetica mdash nasce tambeacutem com uma exigecircncia ldquoeacuteticardquo que eacute muito mais do que mera necessidade ldquopragmaacuteticardquo (ldquotecnocratardquo diriacuteamos hoje) ao contraacuterio trata-se da afirmaccedilatildeo do homem enquanto homem que busca fazer um mundo onde possa viver humanamente Falamos pois de uma exigecircncia existencial

Este sentido de um lugar de estada permanente e habitual de um abrigo protetor constitui a raiz semacircntica que daacute origem agrave significaccedilatildeo do ethos como costume esquema praxeoloacutegico duraacutevel estilo de vida e accedilatildeo [] O domiacutenio da physis ou reino

15 CHANTRAINE σαφής [safḗs] In Op Cit p 991 BAILLY Σάφα [Saacutefa] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 782 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Ambos os autores falam de safḗs como o que eacute claro manifesto luminoso 16 MOLINARO OpCit p 16 ldquoA filosofia nesse caso eacute amor procura cuidado interesse por tudo o que por estar na luz do ser eacute absolutamente inegaacutevel eacute amor agrave verdade irrefutaacutevelrdquo

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da necessidade eacute rompido pela abertura do espaccedilo humano do ethos no qual iratildeo inscrever-se os costumes os haacutebitos as normas os valores e as accedilotildees17

Voltando ao tema da filosofia afirmaacutevamos que ela se

configura mdash desde os seus primoacuterdios mdash essencialmente como a busca da verdade Tomaacutes de Aquino retoma esta concepccedilatildeo quando assevera ldquo[] o estudo da filosofia natildeo eacute para que seja conhecido o que os homens pensaram mas para conhecer qual eacute a verdade das coisasrdquo18 Dito de outra forma podemos afirmar que a filosofia mdash em sua gecircnese mdash apresenta-se como uma busca ininterrupta pelo fundamento do devir ou seja o ldquoserrdquo Por isso tambeacutem a filosofia mostra-se mdash desde o seu iniacutecio mdash desejosa de conhecer a causa primeira de todas as coisas De sorte que ela aspira a ser uma ldquociecircnciardquo um conhecimento dotado de racionalidade proacutepria de controle proacuteprio Tambeacutem este rigor eacute muito bem frisado por Tomaacutes quando diz ldquo[] as liccedilotildees filosoacuteficas natildeo satildeo recebidas por causa da autoridade de quem as diz mas por causa da razatildeo do que se diz []rdquo19 Alhures afirma ainda o Aquinate

Outra disputa eacute a do professor nas escolas natildeo para remover o erro mas para instruir os ouvintes e levaacute-los agrave intelecccedilatildeo da verdade que se apresenta Entatildeo eacute necessaacuterio apoiar-se em razotildees que procurem a raiz da verdade e faccedilam saber como seja

17 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13 18 TOMAacuteS DE AQUINO De caelo Lib 1 22 n8 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgccm1htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] quia studium philosophiae non est ad hoc quod sciatur quid homines senserint sed qualiter se habeat veritas rerumrdquo Idem Suma Teoloacutegica I 107 2 C ldquoNon enim pertinet ad perfectionem intellectus mei quid tu velis vel quid tu intelligas cognoscere sed solum quid rei veritas habeatrdquo ldquoCom efeito natildeo pertence agrave perfeiccedilatildeo de meu intelecto saber o que tu queres ou conheces mas somente qual eacute a verdade da coisa Conhecer o que o outro pensa natildeo eacute algo insosso inoacutecuo eacute parar nas opiniotildees subjetivas sem se chegar agrave verdade 19 TOMAacuteS DE AQUINO Super De Trinitate pars 1 q 2 a 3 ad 8 Disponiacutevel em lt httpwwwcorpusthomisticumorgcbthtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoAd octavum dicendum quod in quantum sacra doctrina utitur philosophicis documentis propter se non recipit ea propter auctoritatem dicentium sed propter rationem dictorum []rdquo

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verdadeiro o que eacute dito De outro modo se um mestre determina uma questatildeo por autoridades nuas o ouvinte ficaraacute certificado de que eacute assim mas natildeo adquiriraacute nenhuma ciecircncia e inteligecircncia e se retiraraacute vazio [vacuus abscedet]20

Aleacutem disso a filosofia nasce ainda mdash ratificamos mdash

existencial porque de algum modo procedente do terror do homem ante a morte iminente terror este que o faz buscar construir mdash atraveacutes de um loacutegos (λόγος) cada vez mais depurado mdash uma habitaccedilatildeo que o distinga daquilo que o ameaccedila um abrigo A bem da verdade a filosofia nasce ontoloacutegica e existencial ao mesmo tempo A perspectiva existencial enraiacuteza-se na perplexidade do homem perante o devir das coisas e dele proacuteprio enquanto a perspectiva ontoloacutegica consiste na resposta adequada do homem frente a esta anguacutestia resposta esta que se encontra na aquisiccedilatildeo da verdade vale dizer da sabedoria que natildeo eacute senatildeo o ser enquanto fundamento do real Temos entatildeo que o aspecto existencial e o ontoloacutegico embora distintos satildeo indissociaacuteveis Em uma palavra atraveacutes do loacutegos mdash que lhe confere acesso ao ser mdash o homem busca produzir uma ambiecircncia onde possa viver segundo o lugar que lhe cabe na hierarquia dos seres

Outrossim eacute preciso notar tambeacutem como a filosofia aspira mdash desde o seu princiacutepio mdash a um caraacuteter ldquosocialrdquo e como o ẽthos que ela reclama abriga mdash a um soacute tempo mdash uma valecircncia individual e social uma vez que o que estaacute em jogo eacute a construccedilatildeo de um mundo onde todos os homens possam viver humanamente ldquoA experiecircncia primeira do ethos revela por outro lado uma estrutura dual caracteriacutestica e constitutiva o ethos eacute

20 TOMAacuteS DE AQUINO Quodlibet IV q 9 a 3 co Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgq04htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoQuaedam vero disputatio est magistralis in scholis non ad removendum errorem sed ad instruendum auditores ut inducantur ad intellectum veritatis quam intendit et tunc oportet rationibus inniti investigantibus veritatis radicem et facientibus scire quomodo sit verum quod dicitur alioquin si nudis auctoritatibus magister quaestionem determinet certificabitur quidem auditor quod ita est sed nihil scientiae vel intellectus acquiret et vacuus abscedetrdquo

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inseparavelmente social e individualrdquo 21 O filoacutesofo italiano Salvatore Natoli concebe a eacutetica antes de mais como o exerciacutecio do homem virtuoso a esculpir o mundo humano tornando esta terra capaz de hospedar a comunidade humana a fim de que haja um espaccedilo que seja um abrigo seguro para a estada desta comunidade A eacutetica eacute pois o criar as possibilidades de uma habitaccedilatildeo um tornar possiacutevel o existir do homem enquanto homem Ora nenhum ser humano sozinho pode criar esta morada para os seus semelhantes Daiacute a face social irrenunciaacutevel da eacutetica

O ser humano vive no mundo porque algueacutem o pocircs nele vive porque algueacutem o acolhe Encontra-se portanto desde o iniacutecio situado numa rede de relaccedilotildees da qual natildeo pode prescindir A eacutetica corresponde ao modo como os seres humanos habitam a terra e por isso antes mesmo de estar relacionada ao dever tem a ver com o habitar e em sentido estrito com o existir De fato a palavra grega eacutethos aleacutem de significar costume mdash justamente costume moral mdash tambeacutem significa estadia sede morada [] Ao vir ao mundo o ser humano toma posiccedilatildeo nele entra em relaccedilotildees de pertencimento [] A eacutetica coincide portanto com o pertencimento e ao mesmo tempo com o sentir-se parte22

Mas tentemos entender melhor como este aspecto dual

apontado acima jaacute se encontra nas origens da filosofia 13 A FILOSOFIA COMO ldquoTHEŌRIacuteArdquo O NASCIMENTO DA ldquoEPISTḖMĒrdquo PELO PROCEDER DO ldquoDIAacuteLOGOSrdquo

O que se segue quando o homem se depara com a verdade Inebriado por esta luz nasce nele a theōriacutea (θεωρία) termo costumeiramente traduzido por contemplaccedilatildeo Poreacutem uma vez mais a traduccedilatildeo reclama esclarecimentos Na Greacutecia antiga

21 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 58 22 NATOLI Salvatore Filosofia e formaccedilatildeo do caraacuteter Trad Marcelo Perine Rev Iranildo B Lopes Satildeo Paulo Paulus 2008 pp 71-72

60 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino theōriacutea significava antes de mais festa Theōriacutea eacute antes de qualquer coisa espetaacuteculo23 Pois bem a theōriacutea filosoacutefica natildeo eacute senatildeo a ldquofestardquo pela descoberta da verdade Eacute o homem absorto ante a claridade de uma luz inabarcaacutevel Como Platatildeo narra na Repuacuteblica o espetaacuteculo do filoacutesofo eacute a posse da verdade24 Diante da verdade natildeo haacute mais o que se temer nem a dor nem a infelicidade nem a morte Theōriacutea portanto trata-se de uma espeacutecie de celebraccedilatildeo salviacutefica na qual o homem se encontra em condiccedilotildees de superar o medo da dor e da morte e isto de uma vez por todas ou seja de uma forma incontestaacutevel sem a incerteza que a mitologia comportava Sendo assim nada mais inexato do que ler theōriacutea como algo puramente abstrato Falamos isto sim de um evento mdash ao mesmo tempo mdash profundamente existencial e ontoloacutegico Chamamos theōriacutea pois a um acontecimento feliz posto que por ele o homem celebra o encontro da ldquomedicinardquo para a sua existecircncia enferma Dizendo agora positivamente a filosofia tem sua arkhḗ (ἀρχή) num paacutethos (πάθος) pela eydaimoniacutea (εὐδαιμονία) isto eacute pela felicidade que soacute se perfaz quando se estaacute sob a eacutegide de um saber indestrutiacutevel de uma luz inconfundiacutevel

Digamos ainda que os antigos gregos tinham um nome para este conhecimento vivificante Designavam-no epistḗmē (ἐπιστήμη) Geralmente traduz-se o vocaacutebulo simplesmente por

23 CHANTRAINE 2 θέω [theacuteō] Θεωρέω [theōreacuteō] In Op Cit p 433 BAILLY θέω [theacuteō] Θεωρέω [theōreacuteō] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 433 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Uma das acepccedilotildees primeiras deste termo eacute justamente a de assistir a uma festa religiosa bem como ser espectator dos jogos oliacutempicos 24 PLATOacuteN Repuacuteblica V 475 e ldquomdash Entonces a quieacutenes llamas verdaderamente filoacutesofos mdash A quienes aman el espectaacuteculo de la verdadrdquo ldquo[Glauco] mdash Entatildeo a quem chama lsquoverdadeiramente filoacutesofosrsquo [Soacutecrates] mdash Agravequeles que amam o espetaacuteculo da verdaderdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] Lembremo-nos de que θεωρία (theōriacutea) vem do verbo θεωρέω (theōreacuteō) que significa examinar ou inspecionar com a inteligecircncia Na verdade θεωρέω (theōreacuteō) eacute um verbo composto do substantivo θέα (theacutea) que possui o sufixo -α de accedilatildeo ou resultado da accedilatildeo e significa a accedilatildeo de olhar um aspecto ou objeto e ὁράω (horaacuteō) que eacute um verbo que tambeacutem diz olhar observar e entender θεωρέω (theōreacuteō) por conseguinte eacute a accedilatildeo daquele que lanccedila o seu olhar examinador sobre um objeto ou aspecto a fim de especulaacute-lo com a sua inteligecircncia e contemplaacute-lo quando o encontra (PEREIRA Isidoro Dicionaacuterio grego-portuguecircs e portuguecircs-grego 2 ed Porto Livraria Apostolado da Imprensa 1957 p 248 BAILLY A Dicionnaire grec franccedilais 6 ed Paris Librairie Hachette 1979 p 919) No caso da θεωρία (theōriacutea) filosoacutefica este objeto ou aspecto eacute a verdade

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ldquoconhecimentordquo ou ldquociecircnciardquo Mas o fato eacute que ele natildeo eacute qualquer conhecimento ldquoEpiacuterdquo (ἐπί)25 significa ldquosobrerdquo e iacutestamai (ἴσταμαι)26 ldquoestar em peacuterdquo Em outras palavras a nomenclatura epistḗmē fala-nos de um saber que permanece ldquoem peacuterdquo porque sustentado ldquosobrerdquo uma argumentaccedilatildeo racional que atraveacutes do poacutelemos (πόλεμος) do diaacutelogos (διάλογος) alcanccedilou a verdade (alḗtheia) alcanccedilou a sabedoria (sofiacutea)27 Em virtude disso ldquoepistḗmērdquo eacute um conhecimento fundado na verdade acerca da existecircncia humana a partir de uma visatildeo eminente

Contra a nossa argumentaccedilatildeo neste passo poderia levantar-se a objeccedilatildeo segundo a qual a filosofia nasce como uma busca do saber pelo saber e natildeo com uma finalidade ldquoutilitaristardquo como poderia ser interpretada a construccedilatildeo de um mundo humano Neste sentido poderia ser evocada a ceacutelebre passagem da Metafiacutesica de Aristoacuteteles onde se afirma que a filosofia eacute a busca desinteressada do saber A passagem da Metafiacutesica ei-la

De modo que se os homens filosofaram para libertar-se da ignoracircncia eacute evidente que buscavam o conhecimento unicamente em vista do saber e natildeo por alguma utilidade praacutetica E o modo como as coisas se desenvolveram o demonstra quando jaacute se possuiacutea praticamente tudo de que se necessitava para a vida e

25 BAILLY ἐπί [epiacute] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 326 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt Bailly fala do termo epiacute como um estar ldquoagrave superfiacutecie derdquo 26 CHANTRAINE ἵτεμι [hiacutetemi] In Op Cit p 470 Chantraine precisa que o termo ἵτεμι (hiacutetemi) eacute derivado exatamente de ἴσταμαι [iacutestamai] que significa endireitar situar deter colocar na balanccedila pesar fixar etc Aristoacuteteles fala de ldquoepistḗmērdquo ligando-a a esta acepccedilatildeo ARISTOacuteTELES Fiacutesica Trad Guillermo R De Echandiacutea Rev Alberto Bernabeacute Pajares Madrid Editorial Gredos 1995 VII 3 247b 10 ldquoTampoco la aquisicioacuten inicial de conocimiento es una generacioacuten o una alteracioacuten pues decimos que la razoacuten conoce y piensa justamente cuando estaacute en reposo y en quietud []rdquo ldquoTampouco a aquisiccedilatildeo inicial de conhecimento [epistḗmē] eacute uma geraccedilatildeo ou uma alteraccedilatildeo pois dizemos que a razatildeo conhece e pensa justamente quando estaacute em repouso [ὴρεμεῖνēremeĩn] e em quietude []rdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 27 MOLINARO Op Cit p 16 ldquoEpisteacuteme eacute a palavra grega para ciecircncia Mas examinando a fundo o que os gregos pensaram com esta palavra constata-se que significa estar (=steacuteme de iacutestemi) sobre (=epigrave) si mesma impondo-se sobre (=epigrave) tudo o que pretende e presume negar o seu estar O significado de estar eacute o da inegabilidade e da irremovibilidade da indubitabilidade e da incontrovertibilidade []rdquo

62 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

tambeacutem para o conforto e para o bem-estar entatildeo se comeccedilou a buscar essa forma de conhecimento Eacute evidente portanto que natildeo o buscamos por nenhuma vantagem que lhe seja estranha e mais ainda eacute evidente que como chamamos livre o homem que eacute fim para si mesmo e natildeo estaacute submetido a outros assim soacute esta ciecircncia dentre todas as outras eacute chamada livre pois soacute ela eacute fim para si mesma28

O periacuteodo eacute claro e natildeo comporta dubiedade No entanto o

que defendemos natildeo se opotildee em nada a ele pois o ẽthos (ἦθος) do qual falamos a saber a ldquomorada do homemrdquo estaacute longe de ser algo que insira mdash nas origens do filosofar mdash uma visatildeo ldquopragmatistardquo ou ldquoutilitaristardquo Estamos a falar antes de algo intriacutenseco ao ser humano O ẽthos fala de uma ldquocasa espiritualrdquo afigura-se como a busca da proacutepria possibilidade da existecircncia humana isto eacute de o homem existir enquanto homem enquanto ser distinto dos ldquodeusesrdquo e do mundo ldquoinfra-humanordquo da fyacutesis (φύσις) Esta ponderaccedilatildeo eacute muito bem acentuada por Lima Vaz

O ethos eacute a morada do animal e passa a ser a lsquocasarsquo (oikos) do ser humano natildeo jaacute a casa material que lhe proporciona fisicamente abrigo e proteccedilatildeo mas a casa simboacutelica que o acolhe espiritualmente e da qual irradia para a proacutepria casa material uma significaccedilatildeo propriamente humana entretecida por relaccedilotildees afetivas eacuteticas e mesmo esteacuteticas que ultrapassam suas finalidades puramente utilitaacuterias e a integram plenamente no plano humano da cultura Do ponto de vista de sua plena auto-realizaccedilatildeo o ser humano antes de habitar no oikos da natureza deve morar no seu oikos espiritual mdash o mundo da cultura mdash que eacute constitutivamente eacutetico29

Mas voltando ao enredo perguntamo-nos como

alcanccedilamos este conhecimento sobre o qual falamos mais acima e

28 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 20-25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 29 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 pp 39-40

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que denominamos epistḗmē Segundo jaacute acenamos atraveacutes do diaacutelogo (διάλογος) O termo diaacute (διά) geralmente eacute traduzido como ldquoatraveacutesrdquo 30 enquanto loacutegos (λόγος) eacute tomado como palavra discurso pensamento31 Todavia diaacute conteacutem a partiacutecula dirsquo (διrsquo)32 que indica divisatildeo33 e no caso especiacutefico diferenccedila entre dois loacutegoi (λόγοι) que se separam e se distanciam por se contrastarem e se dissociam justamente por natildeo possuiacuterem num mesmo termo a verdade Esta ldquodivisatildeordquo para os gregos eacute a causa de uma espeacutecie de distensatildeo intelectual que eacute constitutiva do proacuteprio diaacutelogo Por meio dela o diaacutelogo acontece O ldquoquecircrdquo do diaacutelogo estaacute exatamente nisto num conhecimento que se produz e se fundamenta enquanto se estende por meio de argumentos que se contrastam Longe de ser uma concordacircncia o diaacutelogo pressupotildee uma discordacircncia e se inicia por ela Alguns dos diaacutelogos platocircnicos alongam-se alargam-se e como que se tornam cada vez mais claros luminosos a partir das respostas que Soacutecrates daacute agraves objeccedilotildees que satildeo levantadas ao seu proacuteprio pensamento Eacute pois do diaacutelogo assim concebido como duas ldquofalasrdquo (loacutegoiλόγοι) que se contrastam que nasce a epistḗmē isto eacute a clareza o esclarecimento a certeza inabalaacutevel sobre uma determinada tese Natildeo haacute o que negar soacute dilatamos o nosso

30 FREIRE Antocircnio Op Cit p 209 31 A palavra logos eacute derivada de um radical ldquolegrdquo que forma o verbo falar dizer (BAILLY λέγω [leacutegō] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 528 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt) MOLINARO Op Cit p 15 ldquoLoacutegos derivado de leacutego o termo natildeo significa apenas palavra mas sobretudo pensamento eacute daiacute que proveacutem a loacutegica O pensamento eacute o viacutenculo a unificaccedilatildeo De quecirc Do serrdquo 32 Tanto o διά quanto o διrsquo (forma suprimida) podem ser encarados como adveacuterbio (separando dividindo) ou como preposiccedilatildeo (PEREIRA Op Cit p 127 FREIRE Op Cit p 209) Como preposiccedilatildeo possuem dois casos genitivo e acusativo Como genitivo significam atraveacutes de como geralmente satildeo traduzidos (PEREIRA 1957 Op Cit p 127) Como acusativo podem indicar a causa (por causa de) e podem servir como elemento identificador de um gecircnero literaacuterio em particular como eacute o caso das etiologias Tambeacutem no caso acusativo podem significar com o auxiacutelio de (PEREIRA Op Cit p 127) Como substantivo parecem seguir a linha de acepccedilatildeo do adveacuterbio dividindo separando dispersando dum e doutro lado de onde provecircm diretamente os vocaacutebulos divisatildeo separaccedilatildeo distanciamento O διrsquo enquanto elisatildeo de διά tambeacutem eacute amparado pela gramaacutetica grega de Antocircnio Freire (FREIRE Op Cit p 275) e pelo dicionaacuterio grego-portuguecircs de Isidoro Pereira (PEREIRA Op Cit p 127) 33 Idem Op Cit p 127

64 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino pensamento soacute alcanccedilamos um saber inequiacutevoco quando pensamos por contrastes Saltam-nos agrave vista as palavras de Platatildeo na Repuacuteblica

[] Aquele que natildeo pode distinguir a Ideia do Bem com a razatildeo abstraindo-a das demais e natildeo pode atravessar todas as dificuldades como em meio a uma batalha nem aplicar-se a esta busca mdash natildeo segundo a aparecircncia senatildeo segundo a essecircncia mdash e tampouco fazer a marcha por todos estes lugares com um raciociacutenio que natildeo decaia natildeo diraacutes que semelhante homem possui o conhecimento do Bem em si nem de nenhuma outra coisa boa34

Tomaacutes tambeacutem falava disso

Se algueacutem quiser escrever contra isto ser-me-aacute aceitabiliacutessimo Com efeito natildeo haacute modo melhor de descobrir a verdade e confutar a falsidade do que resistir contraditando35

De mais a mais assim como nos tribunais natildeo se pode julgar sem ouvir as razotildees de ambas as partes assim tambeacutem eacute necessaacuterio que quem deve estudar filosofia para ter um melhor julgamento ouccedila todas as razotildees e as duacutevidas dos adversaacuterios36

34 PLATOacuteN Repuacuteblica VII 534 b-c [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] aquel que no pueda distinguir la Idea del Bien con la razoacuten abstrayeacutendola de las demaacutes y no pueda atravesar todas las dificultades como en medio de la batalla ni aplicar-se a esta buacutesqueda mdash no seguacuten la apariencia sino seguacuten la esencia mdash y tampoco hacer la marcha por todos estos lugares con un razonamiento que no decaiga no diraacutes que semejante hombre posee el conocimiento del Bien en siacute ni de ninguna otra cosa buena []rdquo 35 TOMAacuteS DE AQUINO De perfectione cap 26 Disponiacutevel em lt httpwwwcorpusthomisticumorgoaphtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoSi quidam vero contra haec rescribere voluerint mihi acceptissimum erit Nullo enim modo melius quam contradicentibus resistendo aperitur veritas et falsitas confutatur []rdquo 36 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 3 1 n 5 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp03htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoSicut autem in iudiciis nullus potest iudicare nisi audiat rationes utriusque partis ita necesse est eum qui debet audire philosophiam melius se habere in iudicando si audierit omnes rationes quasi adversariorum dubitantiumrdquo ARISTOacuteTELES Metafiacutesica III 1 995 b In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 ldquoAdemais quem ouviu as razotildees opostas como num processo estaacute necessariamente em melhor condiccedilatildeo de julgarrdquo

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Do quanto dissemos resta concluir que a filosofia eacute o lugar onde nasceraacute a eacutetica enquanto ciecircncia do ẽthos Em razatildeo disso a indagaccedilatildeo acerca do ẽthos caberaacute sempre mdash e primariamente mdash ao labor filosoacutefico Afirma Lima Vaz

[] tendo sido a Filosofia a forma originaacuteria com que historicamente se constituiu a ciecircncia do ethos e que persistimos em considerar a uacutenica forma adequada que nos permite pensar os fundamentos racionais desta ciecircncia37

Ora se a filosofia se perfaz atraveacutes do diaacutelogos tal qual o

entendemos acima como duas falas (loacutegoiλόγοι) que se contrastam a eacutetica mdash ciecircncia do ẽthos mdash iraacute pressupor sempre de algum modo a poacutelis (πόλις) isto eacute vaacuterios (πολύς) homens que compareccedilam agrave Agoraacute (Ἀγορά) com o seu loacutegos Acentua Vaz ldquoComo primeiro desses traccedilos apresenta-se sem duacutevida a estrutura dual do ethos ou seja a sua dupla face social e individualrdquo38 Sobre a importacircncia fundamental do ldquodiaacutelogosrdquo para a eacutetica o mesmo estudioso afirma noutro lugar

Somente nesse horizonte eacute possiacutevel o encontro com o Outro Ora esse encontro eacute em sua forma elementar uma interlocuccedilatildeo em que duas razotildees se comunicam diaacute-logos O diaacutelogo eacute fundamentalmente um evento de natureza eacutetica e eacute por ele que a estrutura intersubjetiva do agir eacutetico primeiramente se realiza39

Ademais pelo fato de em filosofia a verdade se dar mdash

prevalentemente mdash pelo poacutelemos (πόλεμος) do diaacutelogos (διάλογος) resta que a ciecircncia do ẽthos nunca estaraacute acabada e seraacute sempre um conhecimento mdash decerto cientiacutefico agrave sua maneira mdash poreacutem incompleto e aberto a novos aprofundamentos Jaacute dizia Aristoacuteteles acerca da sabedoria praacutetica ldquo[] e tambeacutem o tempo

37 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 35 38 Idem Ibidem p 39 39 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Eacutetica e Direito Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 pp 248-249

66 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino parece ser um bom descobridor e colaborador nessa espeacutecie de trabalhordquo40 Salienta tambeacutem Lima Vaz

O ethos natildeo eacute uma grandeza imoacutevel no tempo mas como a proacutepria cultura da qual eacute a dimensatildeo normativa e prescritiva revela um surpreendente dinamismo de crescimento adaptaccedilatildeo e recriaccedilatildeo de valores quando os chamados ldquoconflitos eacuteticosrdquo desencadeiam no seu seio a siacutendrome da crise cujo desfecho eacute em geral a invenccedilatildeo de uma nova forma eacutetica de vida41

Ao longo deste capiacutetulo jaacute comeccedilamos a mostrar como as

notas presentes na gecircnese do filosofar foram livremente assumidas por Tomaacutes de Aquino Gostariacuteamos agora de aprofundar isso tentando nos aproximar da estrutura do pensamento de Tomaacutes na sua siacutentese final a Summa Theologiae Com isso queremos atestar como a obra do Aquinate eacute um projeto aberto e vivo Agrave fecundidade dos diaacutelogos de Platatildeo os medievais mdash maacutexime Tomaacutes mdash propuseram o terreno natildeo menos feacutertil das disputas 14 TOMAacuteS DE AQUINO E A ldquoFILOSOFIacuteArdquo DO ldquoDIAacuteLOGOSrdquo Agrave ldquoDISPUTATIOrdquo

Sem pretendermos ser exaustivos queremos enfatizar que a Summa Theologiae e tambeacutem as outras obras do Aquinate comportam um conhecimento filosoacutefico que eacute buscado atraveacutes de uma forma que consideramos similar ao procedimento grego do diaacutelogos a saber a disputatio Assim a estrutura da Summa apresenta-se como um contiacutenuo lidar com reacuteplicas e treacuteplicas uma obra que soacute se perfaz pelo tirociacutenio das objeccedilotildees justamente porque nela parecem palpitar ainda as disputas Trata-se de um pensamento que se dilata um discurso que soacute se torna polido quando submetido agrave sabatina das ldquodiscordacircnciasrdquo Na Summa os

40 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco Trad Leonel Vallandro Gerd Bornheim 1 ed Satildeo Paulo Abril SA Cultural e Industrial 1973 II 7 1098 a 20 41 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 41

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argumentos se expandem quando contraditos e a clareza soacute resplandece quando a resposta se distende em respostas agraves objeccedilotildees Nela o contraditoacuterio eacute sempre uma oportunidade de aprofundamento Jaacute Aristoacuteteles na Metafiacutesica assevera acerca desta necessidade de se reconhecer preacutevia e cuidadosamente as dificuldades que uma questatildeo comporta antes de tomaacute-la em consideraccedilatildeo Afirma que os que natildeo se resguardam preliminarmente neste sentido tornam-se guias cegos que natildeo tendo tido a precauccedilatildeo de saber de onde partiram tampouco estatildeo aptos para distinguir se alcanccedilaram ou natildeo uma meta Tomaacutes comentando o mesmo trecho da Metafiacutesica aduz que eacute preciso cultivar uma espeacutecie de ldquoduacutevida metoacutedicardquo para se atingir a verdade Esta ldquoduacutevida metoacutedicardquo eacute exatamente o contraacuterio daquela que duvida sem escutar a palavra dos seus opositores De mais a mais que forma melhor haacute para se avaliar as dificuldades de uma questatildeo do que ser provocado pelas objeccedilotildees O filoacutesofo precisa ser provado pelas objeccedilotildees necessita delas para que se previna contra os assaltos da imaginaccedilatildeo e se ponha ao abrigo de uma sorte de precipitaccedilatildeo que pode conduzi-lo agrave desafortunada realidade de natildeo demonstrar o que se propocircs Ouccedilamos Aristoacuteteles e em seguida o comentaacuterio de Tomaacutes

Ora para quem pretende resolver bem um problema eacute uacutetil perceber adequadamente a dificuldade que ele comporta a boa soluccedilatildeo final consiste na resoluccedilatildeo das dificuldades previamente estabelecidas Quem ignora um noacute natildeo poderaacute desataacute-lo e a dificuldade encontrada pelo pensamento manifesta a dificuldade existente nas coisas De fato enquanto duvidamos estamos numa condiccedilatildeo semelhante a quem estaacute amarrado em ambos os casos eacute impossiacutevel ir adiante Por isso eacute preciso que primeiro sejam examinadas todas as dificuldades tanto por essas razotildees como porque os que pesquisam sem primeiro ter examinado as dificuldades assemelham-se aos que natildeo sabem aonde devem ir Ademais estes natildeo satildeo capazes de saber se encontraram ou natildeo o que buscam pois natildeo lhes eacute claro o fim que devem alcanccedilar

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enquanto isso eacute claro para quem antes compreendeu as dificuldades42

E primeiro disse [Aristoacuteteles] que agravequeles dispostos a investigar a verdade importa preparar bem o trabalho isto eacute duvidar convenientemente antes de fazecirc-lo ou seja considerar corretamente quais satildeo os pontos duvidosos E isto porque o que suceder agrave investigaccedilatildeo da verdade nada mais eacute do que a soluccedilatildeo das duacutevidas anteriormente postas43

E a Summa segue este caminho Mostra-se como uma obra

sem fecho porque potencialmente refutaacutevel e capaz de refutar um cume sim mas aberto a um horizonte sem fim diversa portanto da imagem que nos adveacutem do famoso deliacuterio de Braacutes Cubas44 Nada haacute nela de cadaveacuterico senatildeo o contraacuterio a Summa permanece em constante vicejar e pulsar como que esperando uma nova objeccedilatildeo Aliaacutes mesmo os por vezes densos comentaacuterios de Tomaacutes a Aristoacuteteles tambeacutem jaacute causavam este tipo de admiraccedilatildeo R Bongli um natildeo adepto do pensamento de Tomaacutes que traduziu parte da Metafiacutesica de Aristoacuteteles para o italiano no seacuteculo XIX acerca do Comentaacuterio de Tomaacutes agrave Metafiacutesica do Estagirita jaacute dizia

Grande figura verdadeiramente Santo Tomaacutes Que pensamento agudo e soacutelido Quanta clareza e equiliacutebrio Natildeo haacute dificuldade que o desencoraje questatildeo que o afaste obstaacuteculo que o detenha

42 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica III 1 995 b In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 43 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 3 1 n 2 Disponiacutevel lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp03htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] et primo dicit quod volentibus investigare veritatem contingit prae opere idest ante opus bene dubitare idest bene attingere ad ea quae sunt dubitabilia Et hoc ideo quia posterior investigatio veritatis nihil aliud est quam solutio prius dubitatorumrdquo 44 ASSIS Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas 9 ed Satildeo Paulo Aacutetica 1982 p 19 In NASCIMENTO Carlos Arthur R Santo Tomaacutes de Aquino o Boi Mudo da Siciacutelia Satildeo Paulo EDUC 1992 pp 87-88 ldquoLogo depois senti-me transformado na Summa Theologica de S Tomaacutes impressa num volume e encadernada em marroquim com fechos de prata e estampas ideacuteia esta que me dava ao corpo a mais completa imobilidade e ainda agora me lembra que sendo as minhas matildeos os fechos do livro e cruzando-as eu sobre o ventre algueacutem as descruzava (Virgiacutelia decerto) porque a atitude lhe dava a imagem de um defuntordquo

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Tentar compreender natildeo eacute para ele uma curiosidade mas uma obrigaccedilatildeo e o esforccedilo da inteligecircncia o demonstra mas natildeo o anuncia Jamais um desprezo uma maldiccedilatildeo uma trapaccedila uma ira uma reprovaccedilatildeo um riso para os seus adversaacuterios de qualquer espeacutecie sempre pronto a discutir seguro de suas armas sem ser pretensioso45

Mesmo no seacuteculo XX Tomaacutes ainda eacute lembrado como um

dos mais penetrantes inteacuterpretes de Aristoacuteteles Eloquente eacute o testemunho de Jaeger a este respeito

Os comentaacuterios de Santo Tomaacutes a Aristoacuteteles revelam um novo esforccedilo de concentraccedilatildeo para chegar a compreender quer o espiacuterito quer a letra de um autor novo que apresenta seacuterias dificuldades ao especialista e obstaacuteculos insuperaacuteveis ao leitor meacutedio despreparado [] natildeo haacute nada de comparaacutevel agrave seriedade e agrave tenacidade da feliz tentativa de Santo Tomaacutes de penetrar o sentido das obras do grande filoacutesofo a cuja anaacutelise e interpretaccedilatildeo ele dedicou uma parte tatildeo grande da sua vida Natildeo encontramos exemplos deste tipo de compreensatildeo mdash que eacute ao mesmo tempo particular e geral no estilo de ensaio mas mesmo assim absolutamente objetiva mdash nem mesmo considerando os seacuteculos do mais culto humanismo46

Tambeacutem nosso contemporacircneo o historiador italiano da

filosofia Giovanni Reale natildeo sendo tampouco um seguidor de Tomaacutes por ocasiatildeo do seu Comentaacuterio agrave Metafiacutesica de Aristoacuteteles confessa que as ldquointuiccedilotildees geniaisrdquo do Aquinate natildeo envelheceram inclusive do ponto de vista histoacuterico natildeo podem ser relegadas ao passado

E particularmente natildeo sendo tomista minha escolha de Tomaacutes

45 BONGLI R Metafisica drsquoAristotele volgarizzata e commentata da R Bonghi Livros I-VI Turim 1854 In REALE Giovanni Metafiacutesica vol I Ensaio introdutoacuterio Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 pp 18-19 46 JAEGER Werner Umanesimo e Teologia Milano Corsi dei Servi 1958 pp 35-36 In MONDIN Battista A Grandeza e Atualidade de Satildeo Tomaacutes de Aquino Trad Antocircnio Angonese Satildeo Paulo EDUSC 1998 p 15

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foi determinada justamente pela verificaccedilatildeo de sua excelecircncia objetiva e utilidade inclusive do ponto de vista histoacuterico47

Portanto a Summa e as Questotildees Disputadas de Tomaacutes

natildeo satildeo senatildeo partes que se desdobram em questotildees que por sua vez desmembram-se em artigos que por seu lado desdobram-se em argumentos e respostas agraves objeccedilotildees48 Por isso a Summa natildeo eacute algo inerme ou inerte ao contraacuterio em seu proacuteprio constituir-se ela aparece como um vigoroso movimento no qual a verdade se desvela com o fito de ser simplesmente dita Seus argumentos porquanto provindos direta ou indiretamente do ensino satildeo verdadeiros sinalizadores (Notemos que o verbo ensinar [insignare insignire] significa precisamente ldquosinalizarrdquo)49 e soacute o satildeo ratificamos enquanto Tomaacutes os recolhe das Disputas escolares do seu tempo cujo dinamismo exige um pensar que soacute se desabrocha e se consolida trabalhando com os ldquocontraditoacuteriosrdquo Por essa razatildeo a obra de Tomaacutes mostra-se como o ensino da verdade a desenvolver-se em permanente erudiccedilatildeo erudiccedilatildeo que segundo nos sugerem os proacuteprios termos dos quais proveacutem o vocaacutebulo (ldquoexrdquoldquoruderdquo) eacute um lanccedilar para fora tudo quanto nos embrutece um polir tudo quanto se encontre em noacutes em estado bruto O Aquinate em diversos momentos aponta para isso

Por isso ele [Aristoacuteteles] diz que eacute necessaacuterio amar tanto aquele de quem seguimos a opiniatildeo quanto aquele de quem a rejeitamos

47 REALE Giovanni Metafiacutesica vol I Ensaio introdutoacuterio Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 p 19 48 Ainda nesta mesma linha recordemos que em latim ldquoplicardquo significa dobra Daiacute a nossa palavra ldquocomplicadardquo significar antes de qualquer coisa algo natildeo visto porque dobrado e redobrado Natildeo nos esqueccedilamos ademais de que o termo ldquoexrdquo em latim significa o mais das vezes ldquopara forardquo Donde o nosso termo ldquoexplicarrdquo denotar antes de tudo lanccedilar para fora as dobras desdobrar desfazer as dobras a fim de que o leitor ou o ouvinte possam ver o que antes as dobras natildeo lhes permitiam ver Acerca da etimologia do termo ldquoexplicarrdquo vide LAUAND Luiz Jean As dobras da liacutengua Disponiacutevel em lthttpwwwjeanlauandcomLPo76htmgt 49 LAUAND Luiz Jean RUBIO Juliana Bassana As razotildees da liacutengua cultura e ensino de inglecircs CEMOrOC-FeuspIJI-Universidade do Porto Notandum 30 set-dez 2012 p 88

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De fato ambos aplicaram-se agrave inquiriccedilatildeo da verdade e um e outro nos ajudaram50

[Os pensadores foram tambeacutem ajudados] indiretamente quando os erros dos primeiros acerca da verdade deram ocasiatildeo para os seus poacutesteros exercitarem uma discussatildeo mais diligente que tem por finalidade resultar num maior esclarecimento da verdade Eacute verdadeiramente justo agradecer a todos aqueles que nos ajudaram na aquisiccedilatildeo de tatildeo grande bem que eacute o conhecimento da verdade51

Eis pois de que Tomaacutes queremos nos aproximar em nosso

estudo Estar com o Aquinate mdash atraveacutes das suas obras mdash eacute estar aberto agrave verdade venha ela de onde vier Quando consultado por um confrade sobre como se adquire a sabedoria Aquino mdash entre outras coisas mdash recomendou-lhe ldquoQue natildeo atentes a quem disse mas ao que de bom se diga guardando-o na memoacuteriardquo52 Na Summa afirma sem pestanejar

Portanto deve-se dizer que toda verdade [omne verum] dita por quem quer que seja [quocumque dicatur] vem do Espiacuterito Santo enquanto infunde em noacutes a luz natural e nos daacute a moccedilatildeo

50 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 12 9 n 14 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp12htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] ideo dicit quod oportet amare utrosque scilicet eos quorum opinionem sequimur et eos quorum opinionem repudiamus Utrique enim studuerunt ad inquirendam veritatem et nos in hoc adiuveruntrdquo 51 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia Metaphysicae Lib 2 1 n 15 e 16 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcmp02htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] indirecte vero inquantum priores errantes circa veritatem posterioribus exercitii occasionem dederunt ut diligenti discussione habita veritas limpidius appareret Est autem iustum ut his quibus adiuti sumus in tanto bono scilicet cognitione veritatis gratias agamusrdquo TOMAacuteS DE AQUINO Sentencia De anima lib 1 2 n 15 In NUNES Ruy Afonso da Costa Histoacuteria da educaccedilatildeo na Idade Meacutedia 2ordf ed Satildeo Paulo Kiacuterion 2018 p 270 ldquoDe qua scilicet anima intendentes ad praesens necesse est accipere opiniones antiquorum quicumque sint qui aliquid enunciaverunt de ipsa Et hoc quidem ad duo erit utile Primo quia illud quod bene dictum est ab eis accipiemus in adiutorium nostrum Secundo quia illud quod male enunciatum est cavebimusrdquo ldquoDevem escutar-se as opiniotildees dos Antigos por vetustas que sejam pois assim podemos apropriar-nos do que falaram certo e evitar o que disseram de errocircneordquo 52 TOMAacuteS DE AQUINO O modo de estudar 13 In TOMAacuteS DE AQUINO Opuacutesculos Filosoacuteficos Trad Paulo Faitanin Rev Esteve Jaulent Satildeo Paulo Sita-Brasil 2009 v 1 ldquo[] non respicias a quo audias sed quidquid boni dicatur memoriae recomenda []rdquo

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necessaacuteria para entender e exprimir esta verdade [intelligendum et loquendum veritatem]53

O Boi Mudo em vaacuterios momentos da sua imensa obra

sinaliza para um movimento que consiste justamente num progresso ininterrupto do pensar que se daacute por um aprofundamento e natildeo por uma substituiccedilatildeo do que jaacute foi conquistado 54 Ora sobretudo em eacutetica urge esta atitude de abertura como ainda voltaremos a ver no decorrer deste trabalho a eacutetica enquanto ciecircncia fundamentalmente se perfaz pelo ldquodiaacutelogosrdquo dos gregos ou pela ldquodisputatiordquo dos medievais E este debate realiza-se natildeo somente entre noacutes mas tambeacutem quando debatemos com as geraccedilotildees que nos precederam Como anotildees em ombros de gigantes de acordo com a sugestiva imagem de Bernardo de Chartres tambeacutem Tomaacutes acreditava que soacute podemos ver mais longe quando natildeo nos esquecemos do que eacute passado pelo tempo mas perene pela validade Todavia eacute preciso acentuar a cada geraccedilatildeo o condatildeo o muacutenus de aprofundar-se na verdade sem nunca pretender exauri-la

[] De fato se algueacutem procedendo no tempo investigar a verdade o tempo ajudaraacute a encontrar a verdade e quanto a um mesmo homem que depois veja o que natildeo via antes e tambeacutem quanto aos diversos homens como quando algueacutem capta as coisas que descobriram os seus predecessores e acrescenta algo

53 Idem Suma Teoloacutegica I-II 109 1 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod omne verum a quocumque dicatur est a spiritu sancto sicut ab infundente naturale lumen et movente ad intelligendum et loquendum veritatemrdquo 54 MARITAIN Jacques Sete Liccedilotildees Sobre o Ser Trad Nicolaacutes Nyimi Companaacuterio 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2001 p 17 ldquoOnde predomina ao contraacuterio o aspecto misteacuterio trata-se de penetrar sempre mais no mesmo O espiacuterito permanece no lugar gravita em torno de um centro ou penetra cada vez melhor uma mesma densidade Eacute um progresso no mesmo lugar um progresso por aprofundamento Eacute desta forma que no lsquoaumentorsquo intensivo dos haacutebitos a inteligecircncia diz Joatildeo de Santo Tomaacutes natildeo deixa de mergulhar no objeto no mesmo objeto vehementius et profundius mais veementemente e mais profundamente Deste modo podemos ler e reler sempre o mesmo livro ler e reler a Biacuteblia e a cada vez ocorre uma descoberta nova e mais profunda Claro estaacute que na vida da humanidade uma tradiccedilatildeo intelectual a continuidade estaacutevel de uma doutrina fundada sobre princiacutepios que natildeo mudam satildeo a condiccedilatildeo de tal progressordquo

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E por esse modo satildeo feitos os acreacutescimos nas artes dos quais em princiacutepio pouco foi inventado e depois atraveacutes de diversos homens pouco a pouco atingiu uma grande quantidade porque pertence a qualquer homem acrescentar o que falta ao considerado pelos predecessores55

Da parte da razatildeo porque parece ser natural da razatildeo humana chegar gradualmente do imperfeito ao perfeito Por isso vemos nas ciecircncias especulativas que aqueles que por primeiro filosofaram transmitiram algumas coisas imperfeitas que depois pelos poacutesteros se tornaram mais perfeitas56

Estabelecidos estes pressupostos eacute tempo de darmos mais

um passo no recorte do nosso trabalho Procuraremos definir com maior detenccedila e exaccedilatildeo o termo ldquoethosrdquo57 bem como qual o significado da ēthikḗ (ἠθική) concebida como ldquociecircncia do ethosrdquo

55 TOMAacuteS DE AQUINO Comentaacuterio de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica a Nicocircmaco I-III o bem e as virtudes Trade Rev Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rio de Janeiro Mutuus 20015 v I I Lect 11 ndeg 3 ldquoSi enim aliquis tempore procedente det se studio investigandae veritatis iuvatur ex tempore ad veritatem inveniendam et quantum ad unum et eumdem hominem qui postea videbit quod prius non viderat et etiam quantum ad diversos utpote cum aliquis intuetur ea quae sunt a praedecessoribus adinventa et aliquid superaddit Et per hunc modum facta sunt additamenta in artibus quarum a principio aliquid modicum fuit adinventum et postmodum per diversos paulatim profecit in magnam quantitatem quia ad quemlibet pertinet superaddere id quod deficit in consideratione praedecessorumrdquo 56 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 97 1 C ldquoEx parte quidem rationis quia humanae rationi naturale esse videtur ut gradatim ab imperfecto ad perfectum perveniat Unde videmus in scientiis speculativis quod qui primo philosophati sunt quaedam imperfecta tradiderunt quae postmodum per posteriores sunt magis perfecta Ita etiam est in operabilibus Nam primi qui intenderunt invenire aliquid utile communitati hominum non valentes omnia ex seipsis considerare instituerunt quaedam imperfecta in multis deficientia quae posteriores mutaverunt instituentes aliqua quae in paucioribus deficere possent a communi utilitaterdquo 57 Esta eacute a forma como Lima Vaz habitualmente grafa o vocaacutebulo

Capiacutetulo II A eacutetica enquanto ciecircncia em Aristoacuteteles

Aristoacuteteles como jaacute frisamos antes foi o fundador da Eacutetica enquanto ldquociecircnciardquo enquanto parte da filosofia Foi ele quem distinguiu os ramos das ciecircncias filosoacuteficas mdash teoreacuteticas praacuteticas e poieacuteticas mdash bem como definiu o campo das mesmas1 Sendo assim como diz Enrico Berti

[] Aristoacuteteles pode ser considerado o fundador do conceito de filosofia praacutetica entendida como ciecircncia diferente das teoreacuteticas poreacutem munida de racionalidade proacutepria2

Embora o gecircnero literaacuterio adotado por Aristoacuteteles natildeo seja

o diaacutelogo suas obras mdash inclusive a Ēthikagrave Nikomaacutekheia (Ἠθικὰ Νικομάχεια) mdash adotam um estilo no qual o autor mdash antes de tomar posiccedilatildeo mdash dialoga com os seus predecessores e mesmo com o senso comum Acerca do ldquomeacutetodordquo de Aristoacuteteles temos a assertiva de Berti

Com efeito os proacuteprios tratados escolaacutesticos de Aristoacuteteles tecircm um andamento nada sistemaacutetico e demonstrativo mas consistem inteiramente de discussotildees de problemas argumentaccedilotildees a favor e contra cada soluccedilatildeo contiacutenuas objeccedilotildees e refutaccedilotildees que em muitos casos deixam a discussatildeo completamente aberta Em siacutentese trata-se de uma espeacutecie de institucionalizaccedilatildeo escolaacutestica do meacutetodo socraacutetico e platocircnico3

1 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica VI 1 1025 b 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquo[] todo conhecimento racional eacute ou praacutetico [πρακτική] ou produtivo [ποιητική] ou teoreacutetico [θεωρητική] []rdquo 2 BERTI Enrico Perfil de Aristoacuteteles Trad Joseacute Bortolini Rev Iranildo Bezerra Lopes Caio Pereira Satildeo Paulo Paulus 2012 p 158 3 Idem Ibidem p 30

76 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Nosso objetivo neste capiacutetulo natildeo eacute expor a Eacutetica Nicomaqueia mas esboccedilar os seus grandes momentos sobretudo com o fito de evidenciar que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute uma eacutetica humana Para esta empresa valemo-nos de uma preleccedilatildeo de Enrico Berti mdash filoacutesofo italiano e dedicado leitor de Aristoacuteteles mdash sobre a Eacutetica a Nicocircmaco A liccedilatildeo de Berti fora ministrada no auditoacuterio da Societagrave Filosofica Italiana com o tiacutetulo Lrsquoetica in Aristotele De mais a mais para natildeo interrompermos o texto optamos por registrar vaacuterias citaccedilotildees em rodapeacute A propoacutesito o fato de usarmos a preleccedilatildeo de Berti para expormos alguns toacutepicos da Eacutetica natildeo significa que a tomamos como nossa fonte primaacuteria que seraacute sempre a proacutepria obra do Estagirita Recorremos a Berti a fim de nos servirmos da sua invulgar capacidade de siacutentese jaacute que soacute buscamos Aristoacuteteles para relacionaacute-lo com Tomaacutes o nosso verdadeiro objeto de pesquisa

A ordem da nossa exposiccedilatildeo seraacute a seguinte primeiro uma contextualizaccedilatildeo histoacuterica em seguida alguns preacircmbulos antropoloacutegicos nos daratildeo ensejo para circunscrevermos a noccedilatildeo de eacutetica em Aristoacuteteles dando continuidade consideraremos os conceitos de teacutelos e eydaimoniacutea no toacutepico seguinte trataremos dos conceitos de eacutergon aretḗ e kakiacutea depois abordaremos as concepccedilotildees de proaiacuteresis e boyacuteleysis a fim de conhecermos qual eacute a natureza das accedilotildees passiacuteveis de virtude ou de viacutecio Havendo dado estes passos definiremos e distinguiremos as virtudes eacuteticas das dianoeacuteticas passaremos entatildeo a discorrer sobre o papel da amizade na eacutetica de Aristoacuteteles por fim voltaremos ao tema da eydaimoniacutea com o intento de aprofundaacute-lo e trataremos da racionalidade proacutepria da eacutetica aristoteacutelica Sigamos com uma sucinta contextualizaccedilatildeo histoacuterica da Eacutetica 21 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO HISTOacuteRICA DA EacuteTICA

Aristoacuteteles escreveu alguns livros sobre eacutetica Eacutetica Nicomaqueia ou tambeacutem Eacutetica a Nicocircmaco a Grande Eacutetica (de

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autenticidade duvidosa) a Eacutetica Eudecircmica e a Poliacutetica A mais completa mdash como jaacute adiantamos mdash e que se tornou tambeacutem a mais famosa eacute justamente a Eacutetica a Nicocircmaco Observemos que esta obra dividida em dez livros foi escrita por Aristoacuteteles antes de mais para o seu filho Nicocircmaco4 Natildeo a escreveu portanto a um ldquocidadatildeordquo qualquer mas a seu dileto A Eacutetica natildeo nasce pois como uma ldquoobra acadecircmicardquo e sim como ldquoconselhosrdquo de um pai para o seu filho ldquoconselhosrdquo que tinham por finalidade que o filho fosse feliz na vida Isto eacute um fato muito revelador Aristoacuteteles fala da poacutelis sim fala do cidadatildeo sim mas a sua Eacutetica nasce de um pai educando o seu filho para o bem viver Nasce num ambiente familiar diriacuteamos hoje natildeo numa universidade nem sequer numa escola Quis a sorte que esta obra se tornasse a de maior sucesso de nosso filoacutesofo Por milecircnios vem sendo assim

Para entendermos esta obra magna devemos reportar-nos ao contexto histoacuterico em que ela foi concebida isto eacute agrave antiga Greacutecia no seacuteculo IV antes de Cristo Talvez a primeira coisa que temos de levar em conta eacute que os gregos natildeo obstante fossem um povo religioso e tivessem uma religiatildeo natildeo possuiacuteam como os outros povos um livro que transmitisse uma revelaccedilatildeo de Deus Eles natildeo tinham um livro que lhes fosse apresentado como a proacutepria palavra de Deus Fato notaacutevel porque distingue os gregos do povo hebreu e da religiatildeo hebraica outro tronco da nossa civilizaccedilatildeo De fato a religiatildeo hebraica se fundamenta na Torah que natildeo eacute senatildeo a Lei de Deus consignada em cinco livros Pentateuco em grego Para o hebreu Deus natildeo eacute somente o Criador do homem e de todas as coisas mas tambeacutem o Legislador Logo a moral judaica eacute uma moral fundada na Lei de Deus ditada pelo

4 Nicocircmaco era o nome do pai de Aristoacuteteles meacutedico afortunado porque a serviccedilo do rei Amintas da Macedocircnia O Estagirita o perdeu ainda jovem PHILIPPE Marie-Dominique Introduccedilatildeo agrave Filosofia de Aristoacuteteles Trad Gabriel Hibon Benocircni Ramos Satildeo Paulo Paulus 2002 p 9 ldquoSeu pai Nicocircmaco que parece ter vindo de Messecircnia era meacutedico ceacutelebre foi chamado agrave corte de Pela e foi meacutedico pessoal do rei Amintas III pai de Filipe [] Morreu antes de ter tempo de formar o filho em sua arterdquo Quando Aristoacuteteles teve o seu filho deu-lhe o nome do avocirc Idem Op Cit p 12 ldquoE sabemos que ao morrer Piacutetia ele desposou Herpillis que lhe deu um filho Nicocircmaco []rdquo

78 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mesmo Deus a Moiseacutes e registrada na Torah O quanto se disse dos judeus pode-se dizer mutatis mutandis da religiatildeo cristatilde e islacircmica porque ambas satildeo tambeacutem portadoras de uma moral fundada na Revelaccedilatildeo de um Deus que eacute tambeacutem um Legislador5

ldquoNo princiacutepio era o Logosrdquo diz o incipit do evangelho de Joatildeo que os cristatildeos interpretaram como ldquoNo princiacutepio era o Verbordquo ou seja ldquoa Palavrardquo ldquo[] e o Logos estava voltado para Deus e o Logos era Deusrdquo continua Joatildeo indicando com clareza de que ldquoPalavrardquo se trata Para os cristatildeos com efeito o princiacutepio eacute constituiacutedo por Deus entendido como Palavra que cria todas as coisas mas tambeacutem pela proacutepria palavra de Deus ou seja pela revelaccedilatildeo com que Ele se manifestou aos homens Esse uacuteltimo significado vale para todas as religiotildees pelo menos para as monoteiacutestas6

Os gregos quando pensavam em moral natildeo faziam

referecircncia a uma lei fundada numa revelaccedilatildeo divina justamente porque natildeo a tinham Decerto que entre os helecircnicos havia leis mas estas procediam das diversas cidades Cada uma delas tinha as suas proacuteprias leis Deste modo a concepccedilatildeo grega de moral natildeo eacute a de uma seacuterie de ditames ou prescriccedilotildees reveladas por um Deus legislador E a Eacutetica de Aristoacuteteles natildeo eacute exceccedilatildeo agrave regra Aliaacutes eacute o fato mesmo de ela natildeo ser uma eacutetica revelada que confere a ela uma atualidade inalienaacutevel Afirma Berti numa de suas obras mais recentes

Para os antigos gregos as coisas natildeo eram assim Como todos os povos tambeacutem os gregos tinham uma religiatildeo mas na base dela natildeo havia nenhuma revelaccedilatildeo natildeo havia nenhum livro natildeo havia nada que dissesse o que havia no ldquoprinciacutepiordquo Eles tinham os poemas de Homero a Iliacuteada e a Odisseia que falam dos deuses e os poemas de Hesiacuteodo especialmente a Teogonia que tratam da

5 Esta eacute uma asserccedilatildeo geral natildeo universal Como veremos no terceiro capiacutetulo num autor cristatildeo como Tomaacutes de Aquino a lei tem o papel de educadora de disciplinadora mas natildeo de fundamento do agir eacutetico 6 BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 10

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genealogia desses deuses mas natildeo os consideravam livros revelados obra dos deuses mas sim obra dos poetas dos ldquoteoacutelogosrdquo nos quais se podia acreditar se a proacutepria cidade o exigia ou ateacute natildeo acreditar7

Com efeito num tempo onde as religiotildees se digladiam e

vivemos a realidade patente do ateiacutesmo e do agnosticismo religioso a Eacutetica do Estagirita se oferece como uma eminecircncia entre crentes e natildeo crentes porque escrita fora do contexto de crenccedila e descrenccedila Assim a Eacutetica de Aristoacuteteles natildeo eacute a teologia moral predominante na cristandade medieval mas tambeacutem natildeo coincide com o ldquohumanismordquo ou ldquoracionalismordquo que prevalecem na eacutetica moderna A Eacutetica a Nicocircmaco eacute uma eacutetica humana integralmente humana fundada num certo modo de exercer a razatildeo humana E exatamente por isso vale dizer precisamente por natildeo admitir ldquoclichecircsrdquo ela pode ser reproposta a todos os homens de hoje crentes e natildeo crentes Nisto reside justamente a sua atualidade os homens de hoje num tempo onde cada vez mais entendemos que natildeo podemos viver isolados precisam de algo que os una Noutra obra em que trata da presenccedila de Aristoacuteteles no seacuteculo XX Enrico Berti esclarece que a ldquoteologia racionalrdquo de Aristoacuteteles natildeo abarca a existecircncia de um Deus concebido como Legislador supremo tampouco a sua filosofia praacutetica se fundamenta nesta ideia

Em todo caso natildeo se trata de uma fundaccedilatildeo teoloacutegica natildeo porque Aristoacuteteles exclua da sua filosofia (teoreacutetica) uma teologia (racional) mas porque o conceito de Deus delineado pela sua teologia natildeo eacute o de um Deus que domina isto eacute que prescreve aos homens uma lei da qual se possam deduzir as normas morais na medida em que Deus como ele mesmo afirma ldquonatildeo tem necessidade de nadardquo Nisto consiste a atualidade da filosofia praacutetica de Aristoacuteteles isto eacute a sua capacidade de corresponder agraves exigecircncias da vida cotidiana de uma eacutepoca como a presente

7 Idem Ibidem

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caracterizada pela interdependecircncia entre os homens de todo o planeta e entre as proacuteprias geraccedilotildees que se sucedem no tempo8

Dando prosseguimento passemos a considerar alguns

toacutepicos da antropologia de Aristoacuteteles que nos ajudaratildeo a compreender a sua concepccedilatildeo de eacutetica 22 PREAcircMBULOS ANTROPOLOacuteGICOS E A DEFINICcedilAtildeO DE EacuteTICA

Os gregos conheciam dois termos para designar vida ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) Zōḗ indica vida entendida como capacidade efetiva de viver (enteleacutekheia) e de viver de certa forma biacuteos antes indica o exerciacutecio mesmo de viver (eneacutergeia) e de viver de certa forma Biacuteos diz pois certo gecircnero de vida ldquoestilordquo de vida ou jeito de viver habitual Em uma palavra biacuteos indica a vida vivida9 Na

8 BERTI Enrico Aristoacuteteles no seacuteculo XX Trad Dion Davi Macedo Rev Mauriacutecio Balthazar Leal Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1997 pp 283-284 9 A distinccedilatildeo entre ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) natildeo eacute rigorosa em Aristoacuteteles Aqui no entanto ancorados em Berti consideramos esta distinccedilatildeo que o estudioso prevecirc Ele nos remete por exemplo a um passo do De Anima que julga elucidar esta distinccedilatildeo ARISTOacuteTELES Sobre a Alma Trad Ana Maria Loacutelio Rev Tomaacutes Calvo Martinez Lisboa Imprensa Nacional-Casa da Moeda 2010 (Obras Completas de Aristoacuteteles) II 1 20-25 ldquo[] eacute no ente em que a alma existe que existem quer o sono quer a vigiacutelia e esta eacute anaacuteloga ao exerciacutecio do saber enquanto o sono eacute anaacutelogo agrave posse deste sem exerciacuteciordquo ζωή (zōḗ) portanto designa a vida sem as suas operaccedilotildees sem a sua atividade como no sono βίος (biacuteos) eacute a vida enquanto atividade como quando estamos em vigiacutelia O termo βίος (biacuteos) tambeacutem eacute usado para designar um gecircnero de vida como Aristoacuteteles assevera num passo da Eacutetica a Nicocircmaco Idem Eacutetica a Nicocircmaco I 5 1095 b 15-20 ldquoA julgar pela vida que os homens levam em geral a maioria deles e os homens de tipo mais vulgar parecem (natildeo sem um certo fundamento) identificar o bem ou a felicidade com o prazer e por isso amam a vida dos gozos [βίος ὰπολαυστικόςbiacuteos apolaystikoacutes] Pode-se dizer com efeito que existem trecircs tipos principais de vida a que acabamos de mencionar a vida poliacutetica [βίος πολιτικόςbiacuteos politikoacutes] e a contemplativa [βίος θεωρητικόςbiacuteos theōrētikoacutes]rdquo Fermani confirma esta distinccedilatildeo partindo de uma anaacutelise semacircntica de zōḗ e biacuteos Zōḗ jaacute eacute viver mas eacute um simples estar vivo enquanto biacuteos avoca uma atividade a vida vivida que acaba se configurando como um modus vivendi FERMANI Arianna A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles Trad Renato Ambrosio Rev Tarcila Donaacute et al Satildeo Paulo Paulus 2015 pp 52-53 ldquoPorque se eacute verdade que como seres humanos estamos todos ligados pelo simples fato de viver isto eacute pelo fato de termos uma zoeacute (que eacute aquela vida que segundo os gregos compartilhamos tambeacutem com os animais e os deuses) cada homem vivendo realiza um biacuteos isto eacute um modus vivendi um modo singular de estar no mundordquo Reeve atenua a distinccedilatildeo mas a manteacutem Zōḗ eacute a vida num sentido mais global Zōḗ indica tanto o ato de nutrir-se crescer reproduzir-se sentir e entender quanto a potecircncia para realizar estes atos Jaacute biacuteos indica os tipos especiacuteficos de vida eacute a vida que se encontra por exemplo descrita nas histoacuterias naturais e nas

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Eacutetica a Nicocircmaco biacuteos aponta para o modo especiacutefico de vida de um ser No caso do homem por exemplo a vida segundo o loacutegos

A mesma doutrina se encontra na Eacutetica a Nicocircmaco em que aparece para indicar o tipo de vida melhor o termo βίος que significa a vida vivida medida por certo arco de tempo e pode ser precisamente de gecircnero diferente Existem assim o gecircnero de vida vivido pelas plantas os gecircneros de vida vividos pelos animais [] e os muitos tipos de vida vividos pelos homens []10

A fim de entendermos melhor a distinccedilatildeo feita acima entre

ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) seraacute proveitoso compreendermos o conceito de alma para Aristoacuteteles Na concepccedilatildeo do filoacutesofo de Estagira a alma eacute antes de tudo o princiacutepio de vida (ζωήzōḗ) de um corpo fiacutesico que possui a vida em potecircncia ldquoPor isso a alma eacute o primeiro acto de um corpo natural que possui vida em potecircnciardquo11 Ela eacute o ato (ἐντελέχειαenteleacutekheia) que torna um corpo vivo Assim se a alma da planta daacute-lhe capacidade para que se nutra e a alma dos animais para que sintam percebam e se movam a alma humana capacita efetivamente o homem para que chegue ao exerciacutecio de certo tipo de vida (βίοςbiacuteos) a saber segundo o loacutegos (λόγος) Esta precisatildeo do conceito de vida torna-se

biografias REEVE CDC Accedilatildeo contemplaccedilatildeo e felicidade Um ensaio sobre Aristoacuteteles Trad Celiacutelia Camargo Bartoltti Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 pp 277-278 ldquoDuas palavras gregas correspondem agrave traduccedilatildeo lsquovidarsquo zocircecirc e bios Zocircecirc refere-se aos tipos de processos de vida estudados por bioacutelogos zooacutelogos e outros cientistas (incluindo psicoacutelogos e teoacutelogos) crescimento e reproduccedilatildeo satildeo processos desse tipo assim como percepccedilatildeo e entendimento Portanto zocircecirc eacute ambiacuteguo significando ou o potencial para crescer reproduzir-se perceber ou o processo ou atividade de crescer reproduzir-se perceber e entender Bios refere-se ao tipo de vida que um historiador natural ou bioacutegrafo poderia investigar mdash a vida da lontra a vida de Peacutericles mdash e assim a uma duraccedilatildeo ao longo da qual algueacutem possui zocircecirc como uma potencialidaderdquo 10 BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos II Fiacutesica Antropologia e Metafiacutesica Trad Silvana Cobucci Leite Ceciacutelia Camargo Bartalotti Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2011 p 169 11 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 1 412 a 25 Idem Ibidem II 412 a 15-20 ldquoA alma portanto tem de ser necessariamente uma substacircncia no sentido de forma de um corpo natural que possui vida em potecircnciardquo

82 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino relevante quando pensamos que Aristoacuteteles afirma que a poacutelis surge para preservar a vida e promover a vida boa que eacute justamente a vida segundo o loacutegos ldquoFormada a princiacutepio para preservar a vida [ζῆνzẽn] a cidade subsiste para assegurar a boa vida [εὖ ζῆνeỹ zẽn]rdquo12

Tragamos a lume outra distinccedilatildeo acerca do proacuteprio termo ato Tanto ἐντελέχειαenteleacutekheia quanto ἐνέργειαeneacutergeia significam ato 13 Poreacutem enquanto enteleacutekheia numa primeira acepccedilatildeo significa o ldquoato primeirordquo isto eacute a capacidade efetiva de viver eneacutergeia significa o ldquoato segundordquo ou seja o exerciacutecio mesmo desta capacidade de viver a atividade a vida vivida como jaacute dissemos acima Ademais o termo eneacutergeia tem uma peculiaridade a saber aponta para uma atividade continuada prolongada constante ininterrupta no sentido de que natildeo se extingue mas perdura mesmo apoacutes ter alcanccedilado o resultado14 A todos os seres vivos eacute dado o ldquoato primeirordquo em sua primeira acepccedilatildeo mas cada um tem de construir mdash conforme a sua natureza mdash o seu ldquoato segundordquo o qual lhe eacute especiacutefico Mas haacute aleacutem disso como jaacute acenamos uma segunda acepccedilatildeo do termo enteleacutekheia Enteleacutekheia designa tambeacutem a perfeiccedilatildeo alcanccedilada pela eneacutergeia do eacutergon eacutergon que significa funccedilatildeo e sobre o qual voltaremos a falar mais adiante15 A alma mdash falando com exaccedilatildeo mdash eacute enteleacutekheia na

12 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 2 1252 b 29-30 13 Haacute passagens em suas obras eacute preciso advertir em que Aristoacuteteles parece abandonar a distinccedilatildeo entre ἐντελέχειαenteleacutekheia e ενέργειαeneacutergeia 14 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 372 ldquoEneacutergeia eacute um termo que natildeo aparece no corpus platonicum O substantivo que remete ao verbo energeacuteō (lsquoestou ativorsquo lsquoestou em atividadersquo lsquoajorsquo lsquoproduzorsquo) e aos adjetivos energeacutes (lsquooperantersquo lsquoeficazrsquo lsquooperosorsquo lsquoativorsquo lsquoeneacutergicorsquo ldquoprodutivordquo) e energoacutes (lsquoativorsquo lsquoeficazrsquo) significa lsquoforccedilarsquo lsquoeficaacuteciarsquo lsquoatividadersquo lsquoaccedilatildeorsquo lsquoobrarsquo lsquoenergiarsquo Essa lsquoatividadersquo ou lsquocapacidade de agirrsquo possui na realidade uma peculiaridade essencial a natildeo exauribilidade a capacidade de se conservar de se manter em vida mesmo depois de ter alcanccedilado o objetivordquo [O itaacutelico eacute nosso] 15 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica IX 8 1050 a 20 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado 2 ed Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquoA operaccedilatildeo [ἔργον] eacute fim [τέλος] e o ato [ἐνέργεια] eacute operaccedilatildeo [ἔργον] por isso tambeacutem o ato [ἐνέργεια] eacute dito em relaccedilatildeo com a operaccedilatildeo [ἔργον] que tende ao mesmo significado de enteleacutequeia [ἐντελέχειαν]rdquo

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sua primeira acepccedilatildeo apontada acima ldquoMas lsquoactorsquo diz-se em dois sentidos num como o eacute o saber no outro como o eacute o exerciacutecio do saber Eacute evidente que a alma eacute acto no sentido em que o eacute o saberrdquo16

Logo depois ele esclarece que a forma eacute ato [ἐντελέχεια] e distingue dois significados de ato correspondentes respectivamente agrave posse de uma capacidade por exemplo a ciecircncia e ao exerciacutecio dela A alma eacute ato no primeiro sentido ou seja ldquoato primeirordquo de um corpo natural que tem a vida em potecircncia o que significa que ela eacute a posse efetiva por parte de um corpo natural da capacidade de viver A vida portanto seraacute ato no segundo sentido ou seja como exerciacutecio da capacidade constituiacuteda pela alma quer dizer como atividade [ἐνέργεια]17

Com efeito eacute somente quando conhecemos o biacuteos

enquanto ato mesmo de viver o qual se desabrocha num modus vivendi numa maneira habitual de viver que se coloca o problema da eacutetica18 Mas para apreendermos o que o Estagirita entende por eacutetica eacute mister considerarmos o termo ldquoethosrdquo Este termo conforme jaacute acenamos remonta a uma transliteraccedilatildeo de dois vocaacutebulos gregos de significaccedilatildeo distinta 19 O primeiro ἦθος (ẽthos) grafado com o η inicial designa por assim dizer a morada do homem ou seja o ambiente habitaacutevel ao homem enquanto tal Nas palavras de Lima Vaz nesta acepccedilatildeo ldquoO ethos eacute a casa do

16 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 412 a 20 17 BERTI Novos Estudos Aristoteacutelicos II Fiacutesica Antropologia e Metafiacutesica p 164 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 7 1098 a 5 ldquoE como a lsquovida do elemento racionalrsquo tambeacutem tem dois significados devemos esclarecer aqui que nos referimos agrave vida no sentido de atividade pois esta parece ser a acepccedilatildeo mais proacutepria do termordquo 18 O biacuteos evoca uma vida plasmada FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 53 ldquoEacute somente a partir de nosso biacuteos isto eacute da vida que nunca pode ser separada da sua forma daquela orientaccedilatildeo daquela direccedilatildeo que a vida tomou e pela qual foi plasmada que podemos fazer a pergunta sobre a felicidaderdquo 19 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 12 ldquoO termo ethos eacute uma transliteraccedilatildeo dos dois vocaacutebulos gregos ethos (com eta) e ethos (com eacutepsilon)rdquo

84 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino homemrdquo20 Todavia em grego diz-se tambeacutem ἔθος (eacutethos) com um ε inicial significando desta feita haacutebito isto eacute a disposiccedilatildeo estaacutevel para agir de determinada maneira21 Ora unindo estas duas concepccedilotildees temos que pelos haacutebitos (habitus em latim ἕξις [heacutexis] em grego) mdash pelo ἔθος (eacutethos) enfim mdash o homem torna-se capaz de construir o seu mundo vale dizer o seu haacutebitat proacuteprio o seu ἦθος (ẽthos) desta sorte entendido como aquelas disposiccedilotildees estaacuteveis que permitem ao homem moldar a sua morada sobre a terra Haacute entatildeo na ldquofenomenologia do ethosrdquo uma espeacutecie de obra poieacutetica (poiacuteēsis [ποίησις] = produccedilatildeo)22 pois ela pressupotildee que o

20 Idem Ibidem 21 Idem Ibidem p 14 ldquoA segunda acepccedilatildeo de ethos (eacutepsilon inicial) diz respeito ao comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos [] [] o ethos (eacutepsilon inicial) designa o processo geneacutetico do haacutebito ou da disposiccedilatildeo habitual para agir de uma certa maneira []rdquo 22 Observemos que se deve ter cuidado ao tentar aproximar ēthikḗ e poiacuteēsis em Aristoacuteteles porquanto na distinccedilatildeo dos ramos das ciecircncias mdash teoreacuteticas praacuteticas e poieacuteticas mdash ele define bem o campo de cada uma ARISTOacuteTELES Metafiacutesica VI 1025 b 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado 2 ed Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquo[] todo conhecimento racional eacute ou praacutetico [πραχτιχή] ou produtivo [ποιητιχέ] ou teoreacutetico [θεωρητιχή] []rdquo Na proacutepria Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles diferencia atividade de produccedilatildeo ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 1 1094 a 5 ldquoMas observa-se entre os fins uma certa diferenccedila alguns satildeo atividades [ἐνέργειαιeneacuterγειαι] outros satildeo produtos [ἔργαeacuterga] distintos das atividades que os produzemrdquo Noutro lugar Aristoacuteteles precisa ainda que eacute necessaacuteria esta diferenciaccedilatildeo para que natildeo se confunda eacutetica e arte pois enquanto a primeira eacute um agir a segunda eacute um produzir Idem Ibidem VI 4 1140 a 15 ldquoDiferindo pois o produzir [ποίησιςpoiacuteēsis] e o agir [πρᾶξιςpratildexis] a arte [τέχνηνteacutekhnēn] deve ser uma questatildeo de produzir e natildeo de agirrdquo Mas eacute preciso ponderar bem este e outros textos Na primeira passagem citada da Eacutetica [I 1 1094 a 5] Aristoacuteteles usa o termo ldquoἔργαrdquo distinguindo-o de ldquoἐνέργειαιrdquo Contudo em seguida ao delimitar a accedilatildeo eacutetica fala que ela consiste numa atividade [ενέργεια] segundo a funccedilatildeo ou a obra [ἔργον] proacutepria do homem Eacute inegaacutevel a plurivocidade com que os termos satildeo empregados Pois bem considerando todos estes prolegocircmenos o que devemos reter parece ser o seguinte stricto sensu a atividade [ενέργειαeneacutergeia] eacute uma accedilatildeo [πρᾶξιςpratildexis] distinta daquela accedilatildeo produtiva que Aristoacuteteles define como ποίησις [poiacuteēsis] a qual eacute proacutepria da arte [τέχνηteacutekhnē] Todavia pensamos poder valer-nos da mesma polissemia agrave qual Aristoacuteteles recorre permanentemente para afirmarmos que lato sensu a ēthikḗ pode ter uma acepccedilatildeo de poiacuteēsis quando se entende que ela tambeacutem se traduz como a possibilidade de o homem mediante os atos virtuosos ldquoproduzirrdquo um mundo humano e ldquoconstruir-serdquo a si mesmo De resto ocorre-nos que isto seja mesmo necessaacuterio pois se o agir eacutetico natildeo for sob nenhum aspecto transeunte transformador da realidade na qual se insere podemos deveras cair num ldquosolipsismordquo caprichoso e assim perdermos a ligaccedilatildeo fundante em Aristoacuteteles entre eacutetica e poliacutetica Por fim as accedilotildees belas e justas satildeo o legado que o cidadatildeo deixa para a poacutelis Aliaacutes o proacuteprio Aristoacuteteles quando faz eacutetica natildeo deixa de evocar os ditos e feitos dos grandes homens Numa passagem ele diz que a obra de um homem manifesta em ato o que ele eacute em potecircncia Idem Ibidem IX 7 1168 a 5 ldquoE isso tem raiacutezes

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homem seja capaz de construindo-se e construindo o seu mundo destacar-se do mundo da fyacutesis (φύσις) sem separar-se dele Sintetiza Lima Vaz

A metaacutefora da morada e do abrigo indica justamente que a partir do ethos o espaccedilo do mundo torna-se habitaacutevel para o homem O domiacutenio da physis ou o reino da necessidade eacute rompido pela abertura do espaccedilo humano do ethos no qual iratildeo inscrever-se os costumes os haacutebitos as normas e os interditos os valores e as accedilotildees Por conseguinte o espaccedilo do ethos enquanto espaccedilo humano natildeo eacute dado ao homem mas por ele construiacutedo ou incessantemente reconstruiacutedo23

Ora a ἠθική (ēthikḗ) natildeo eacute senatildeo a ciecircncia que estudaraacute

quais satildeo estes haacutebitos pelos quais o homem pode se tornar artiacutefice da sua vida (βίοςbiacuteos) demiurgo do seu mundo Portanto a ēthikḗ mdash ciecircncia do ẽthos (ἦθος) mdash pode tambeacutem ser considerada a ciecircncia do eacutethos (ἔθος) vale lembrar dos haacutebitos (ἕξειςheacutexeis) que permitiratildeo ao homem construir o seu haacutebitat (ἦθος) O Estagirita parece fazer referecircncia a isso quando diz no comeccedilo do livro β da Eacutetica

[] enquanto a virtude moral eacute adquirida em resultado do haacutebito donde ter-se formado o seu nome (ἠθική) por uma pequena modificaccedilatildeo da palavra ἔθος (haacutebito)24

Eacute interessante seguindo ainda Lima Vaz introduzirmos

nova distinccedilatildeo mdash se bem que tecircnue mdash entre eacutethos e heacutexis Esta distinccedilatildeo natildeo eacute de todo infundada Poreacutem eacute preciso acrescer que entre ambos haacute tambeacutem uma continuidade Eacutethos (ἔθος) diz o processo geneacutetico no qual o sujeito pela pratildexis mdash o termo πρᾶξις (pratildexis) indica accedilatildeo mdash constante e reiterada vai acostumando-se a

profundas na natureza das coisas pois o que ele [o homem] eacute em potecircncia [δυνάμειdynaacutemei] sua obra [ἔργον] o manifesta em ato [ὲνεργείᾳenergeiacutea]rdquo 23 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13 24 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 1 1103 a 15

86 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino agir de determinada maneira ateacute que adquira o haacutebito (ἕξιςheacutexis) mdash disposiccedilatildeo estaacutevel mdash que eacute o termo desta circularidade Em outras palavras o eacutethos eacute o que instaura na pratildexis humana o haacutebito o qual inaugura por sua vez a vida eacutetica a vida humana Afirma Vaz

Mas se o ethos (eacutepsilon inicial) designa o processo geneacutetico do haacutebito ou da disposiccedilatildeo habitual para agir de uma certa maneira o termo dessa gecircnese do ethos mdash sua forma acabada e o seu fruto mdash eacute designado pelo termo hexis que significa haacutebito como possessatildeo estaacutevel [] Haacute pois uma circularidade entre os trecircs momentos costume (ethos) accedilatildeo (praxis) haacutebito (ethos-hexis) na medida em que o costume eacute fonte de accedilotildees tidas como eacuteticas e a repeticcedilatildeo destas accedilotildees acaba por plasmar os haacutebitos25

Se mdash como dissemos acima mdash o biacuteos especiacutefico do homem eacute

o loacutegos antes de adentrarmos na Eacutetica importa delinearmos o que seja o loacutegos O loacutegos eacute antes de tudo a capacidade que o homem tem de falar Em vez de simplesmente emitir voz mdash flatus vocis diratildeo os latinos mdash o homem pode ir aleacutem da simples expressatildeo de dor e prazer nominando o que eacute dor e o que eacute prazer significando o que lhe causa dor e prazer e chegando assim ao discernimento do que eacute justo e injusto bem e mal Ora para Aristoacuteteles isto eacute o loacutegos maacutexime no seu comportamento praacutetico Assim para o Estagirita eacute o loacutegos que cria a poacutelis porque o loacutegos mdash enquanto linguagem mdash eacute inteligiacutevel e portanto comunicaacutevel capaz de criar comunhatildeo entre os homens26

A natureza conforme dizemos nada faz ao desbarato e soacute o homem de entre todos os seres vivos possui a palavra [λόγος] Assim enquanto a voz indica prazer ou sofrimento e nesse sentido eacute tambeacutem atributo de outros animais (cuja natureza tambeacutem atinge sensaccedilotildees de dor e de prazer e eacute capaz de as

25 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura pp 14 -15 26 O proacuteprio verbo do qual vem loacutegos λέγω indica no grego arcaico uma accedilatildeo que cria ligame relaccedilatildeo Chantraine fala de ajuntamento reuniatildeo CHANTRAINE 2 λέγω [leacutegō] In Op Cit p 625

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indicar) o discurso [λόγος] serve para tornar claro o uacutetil e o prejudicial e por conseguinte o justo e o injusto Eacute que perante os outros seres vivos o homem tem as suas peculiaridades soacute ele sente o bem e o mal o justo e o injusto eacute a comunidade desses sentimentos que constitui a famiacutelia e a cidade27

O medievalista Reacutemi Brague lendo esta passagem da

Poliacutetica coloca em revelo a importacircncia da linguagem mdash enquanto comunicaccedilatildeo mdash para a constituiccedilatildeo da poacutelis Ele daacute ecircnfase agrave ideia de que natildeo eacute prioritariamente o fato de vivermos num mesmo espaccedilo geograacutefico nem o de intercambiarmos propriedades nem os laccedilos de famiacutelia que nos tornam ciacutevicos Antes o que nos faz consortes no acircmbito poliacutetico eacute a comunhatildeo que mediante o dinamismo da linguagem estabelecemos em torno dos valores ciacutevicos

O que eacute comum para o homem natildeo eacute um conjunto de propriedades passivamente constatadas Eacute o que ele coloca em comum por meio de um processo ativo A linguagem eacute o lugar dessa colocaccedilatildeo em comum [] na linguagem a comunidade eacute resultado da comunicaccedilatildeo28

Mas o que o constitui como espaccedilo [o espaccedilo poliacutetico] sua abertura eacute de ordem linguiacutestica A vida da poacutelis certamente seraacute tecida por trocas entre seus membros Mas o ato por meio do qual os cidadatildeos reconhecem uns aos outros como concidadatildeos eacute um ato de linguagem Eacute pois legiacutetimo que a comunidade seja aqui o objeto de uma comunicaccedilatildeo portanto de um ato de comunicaccedilatildeo29

Tambeacutem comentando a mesma passagem da Poliacutetica

Mario Vegetti ressalta que nela a concepccedilatildeo de loacutegos como

27 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 5-15 28 BRAGUE Reacutemi Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Rev Dayane Cristina Pal Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007 p 175 29 Idem Ibidem [O colchetes satildeo nossos]

88 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino linguagemrazatildeo e por conseguinte meio de comunicaccedilatildeo entre os homens eacute bem atestada e digna de destaque

A proacutepria posse do logos a linguagemrazatildeo especiacutefica do homem tem essencialmente uma destinaccedilatildeo eacutetico-poliacutetica ela serve com efeito ldquopara comunicar o uacutetil e o nocivo portanto tambeacutem o justo e o injustordquo (Pol I 2 1253a 9ss)30

De mais a mais se ldquo[] ser para todos os seres vivos eacute

viver []rdquo31 uma vez que o homem eacute um animal dotado de loacutegos mdash loacutegos entendido enquanto fala linguagem mdash o seu ser eacute viver como um ldquoanimal falanterdquo E como esta fala o torna capaz de expressar os estados da sua alma o homem pode ser definido tambeacutem como um ldquoanimal simboacutelicordquo Outrossim como eacute capaz de dar significado agraves coisas ele pode ser ainda chamado ldquoanimal significanterdquo

O que define o homem eacute mais que tudo a palavra [] Por conseguinte o homem eacute mais propriamente um animal dotado de palavra ou de linguagem [] o homem poderia ser definido como animal simboacutelico [] o homem poderia ser definido como animal semacircntico ou significante32

Enfim exatamente por ser capaz de significar valorar e

comunicar o homem eacute por natureza um animal poliacutetico De fato ldquo[] se o homem eacute ciacutevico eacute porque ele tambeacutem eacute provido de logosrdquo33

[] o homem [ἄνθρωποςaacutenthrōpos] eacute por natureza [φύσειfyacutesei] um ser vivo poliacutetico [ζῷον πολιτικόνzȭon

30 VEGETTI Op Cit p 223 31 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 415 b 10 32 BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 169 33 BRAGUE Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia 169

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politikoacuten] Aquele que por natureza e natildeo por acaso natildeo tiver cidade seraacute um ser decaiacutedo ou sobre-humano34

E ser um zȭon politikoacuten significa ser capaz de pensar o bem

e o mal o justo e o injusto com os seus semelhantes Donde a poacutelis (πόλις) ser justamente o resultado de homens que entram em comunhatildeo (κοινωνίαkoinōniacutea) porque comungam de princiacutepios cuja conquista se daacute pelo consoacutercio entre eles o qual acontece atraveacutes do loacutegos ldquoTornar comum eacute entrar em acordo sobre o que seraacute comum E eacute entrar em acordo por meio da linguagemrdquo35 Daiacute Aristoacuteteles dizer do homem ldquo[] soacute ele sente o bem e o mal o justo e o injusto eacute a comunidade destes sentimentos que produz a famiacutelia e a cidaderdquo36 Observa ainda Brague

De fato lemos o que constitui esses grupos satildeo menos seus componentes que o fato de que certas noccedilotildees sejam comuns E essas noccedilotildees e junto com elas o ser-em-comum soacute se tornam visiacuteveis no meio que constitui o logos Eacute poliacutetica toda relaccedilatildeo que se estabelece porque seus termos satildeo dotados de logos Eacute pois no caso da poacutelis que vemos mais claramente aflorar sob a comunidade como grupo um tipo determinado de ser-em-comum37

Ora uma vez que a ēthikḗ pode ser concebida tambeacutem

uma ciecircncia do eacutethos ou seja dos haacutebitos (heacutexeis) que permitiratildeo ao homem construir o seu haacutebitat (ἦθος) e jaacute que o homem eacute um zȭon politikoacuten a ēthikḗ seraacute naturalmente uma ldquociecircncia poliacuteticardquo (ἐπιστήμη πολιτικήepistḗmē politikḗ) O proacuteprio Aristoacuteteles assim introduz o seu estudo

34 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 5 35 BRAGUE Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia 173 36 ARISTOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 15 37 BRAGUE Introduccedilatildeo ao mundo grego Estudos de histoacuteria da filosofia p 169

90 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Tais satildeo por conseguinte os fins visados pela nossa investigaccedilatildeo pois que isso pertence agrave ciecircncia poliacutetica [μέθοδος πολιτικήmeacutethodos politikḗ] numa das acepccedilotildees do termo38

Agora podemos traccedilar em linhas gerais os grandes

momentos da Eacutetica Nicomaqueia indicando as suas passagens mais emblemaacuteticas Passemos a trabalhar dois conceitos basilares da eacutetica de Aristoacuteteles teacutelos e eydaimoniacutea39 23 TEacuteLOS E EYDAIMONIacuteA

O que Aristoacuteteles propotildee em sua Eacutetica No livro I da Eacutetica ele afirma de suacutebito que toda accedilatildeo humana tende para um fim (τέλοςteacutelos) ao mesmo tempo que reconhece que haacute uma multidatildeo de fins porque muitas satildeo as accedilotildees do homem40 Observa ainda que o que eacute fim numa accedilatildeo pode tornar-se meio noutra e que portanto haacute uma hierarquia dos bens como haacute dos fins41 Reconhece tambeacutem que na ordem dos fins deve haver um fim uacuteltimo ao qual todos os outros deveratildeo estar subordinados como meios pois ningueacutem agiria se natildeo houvesse um fim propriamente dito Qual eacute este fim Eacute o bem supremo o oacutetimo42 Em grego diz-

38 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 2 1094 a 10 39 Como jaacute advertimos seguiremos de perto Enrico Berti BERTI Enrico Lrsquoetica in Aristotele Disponiacutevel em lthttpwwwyoutubecomwatchv=fnsrqOiq6BMgt Outra siacutentese do pensamento Aristoteacutelico com a qual somente recentemente tomamos contato enconta-se em OTFRIED Houmlffe Aristoacuteteles Trad Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre Artmed 2008 40 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 1 1094 a 5 ldquoOra como satildeo muitas as accedilotildees [πολλῶν δὲ πράξεων] artes e ciecircncias muitos [πολλά] satildeo os seus fins [τέλη]rdquo 41 Idem Ibidem I 1 1094 a 5-15 ldquoMas quando tais artes se subordinam a uma uacutenica faculdade mdash assim como a selaria e as outras artes que se ocupam com os aprestos dos cavalos se incluem na arte da equitaccedilatildeo e esta juntamente com todas as accedilotildees militares na estrateacutegia haacute outras artes que tambeacutem se incluem em terceiras mdash em todas elas os fins das artes fundamentais devem se preferidos a todos os fins subordinados porque estes uacuteltimos satildeo procurados a bem dos primeirosrdquo 42 Idem Ibidem I 2 1094 a 15-20 ldquoSe pois para as coisas que fazemos existem um fim que desejamos por ele mesmo e tudo o mais eacute desejado no interesse desse fim e se eacute verdade que nem toda coisa desejamos com vistas em outra (porque entatildeo o processo se repetiria ao infinito e inuacutetil e vatildeo seria o nosso desejar) evidentemente tal fim seraacute o bem [τἀγαθόν] ou antes o sumo bem [ἄριστον]rdquo

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se ἄριστον (aacuteriston) que quer dizer bem supremo porquanto superlativo de ἀγαθόν (agathoacuten) que eacute bem Mas qual eacute este bem supremo que direta ou indiretamente eacute buscado em todas as accedilotildees humanas Digamos desde jaacute a felicidade em grego εὐδαιμονία (eydaimoniacutea)43 Eacute para sermos felizes que fazemos tudo o que fazemos A eydaimoniacutea eacute tanto o fim uacuteltimo quanto o primeiro princiacutepio de nossas accedilotildees ldquoE tambeacutem parece ser assim pelo fato de ser ela um primeiro princiacutepio [ἀρχή] pois eacute tendo-a em vista que fazemos tudo o que fazemos [πάντα πάντες πράττομεν]rdquo44 Aqui temos um primeiro corolaacuterio para Aristoacuteteles a eacutetica eacute uma disciplina filosoacutefica que reflete sobre como eacute possiacutevel ao homem alcanccedilar a felicidade

Mas em que consiste a felicidade Para responder a esta pergunta Aristoacuteteles potildee-se primeiramente a observar o que se entende comumente por felicidade Estaraacute a felicidade numa vida de prazeres como alguns a entendem ou na busca das riquezas do poder e das honras como pensam outros E depois de arrolar estas e outras opiniotildees o Estagirita retoma a palavra para dizer que nenhuma dessas asserccedilotildees responde com argumentos adequados o que ele busca saber o que eacute a felicidade45 Na verdade a pesquisa se prolonga ateacute o uacuteltimo livro De forma que soacute no livro X Aristoacuteteles nos daraacute a sua definiccedilatildeo final de felicidade Evidentemente que natildeo poderemos segui-lo pari passu neste capiacutetulo Teremos de ir abreviando os seus caminhos Dando continuidade fixemos a atenccedilatildeo em trecircs conceitos tambeacutem fundantes da eacutetica aristoteacutelica eacutergon aretḗ e kakiacutea

43 Idem Ibidem I 4 1095 a 15-20 ldquoVerbalmente quase todos estatildeo de acordo pois tanto o vulgo como os homens de cultura superior dizerm ser esse fim a felicidade [εὐδαιμονίαν] e identificam o bem viver e o bem agir com o ser feliz [εὐδαιμονεῖν]rdquo 44 Idem Ibidem I 12 1102 a 45 Idem Ibidem I 7 1097 a 15 ldquoVoltemos novamente ao bem que estamos procurando e indaguemos o que eacute ele [τί ποτrsquo ἂν εἴη] []rdquo

92 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino 24 EacuteRGON ARETḖ E KAKIacuteA

Outro conceito importante para compreendermos mdash in nuce mdash o que Aristoacuteteles entende por felicidade eacute o de ἔργον (eacutergon) que significa funccedilatildeo obra (em latim opus) O Estagirita afirma que cada homem tem o seu eacutergon a sua funccedilatildeo Assim o eacutergon do escultor eacute construir estaacutetuas o eacutergon do arquiteto eacute construir casas ou templos o que toca flauta tem como sua funccedilatildeo (eacutergon) tocar flauta etc46 Em seguida Aristoacuteteles coloca a seguinte questatildeo haveraacute um eacutergon que toque natildeo a um homem em particular mas ao homem enquanto tal ao homem enquanto homem Qual eacute a funccedilatildeo do homem propriamente dito O primeiro esboccedilo de uma resposta a esta importante questatildeo eacute o seguinte se o homem possui um eacutergon que lhe seja especiacutefico este deve consistir na realizaccedilatildeo da sua potencialidade proacutepria ou seja deve consistir na realizaccedilatildeo da capacidade que eacute especiacutefica do homem47 E a verdade eacute que o homem possui algo que lhe eacute peculiar Natildeo eacute deveras o alimentar-se porque isto ele tem em comum com as plantas tampouco eacute a sensibilidade porque esta ele compartilha com os animais Entatildeo qual a capacidade que distingue o homem destes seres e na qual pode residir o seu eacutergon Aristoacuteteles natildeo pestaneja em dizer o λόγος e loacutegos significa antes de tudo palavra linguagem como jaacute sabemos O homem eacute o uacutenico animal dotado de palavra Por isso o eacutergon proacuteprio do homem enquanto homem eacute o loacutegos e tudo o que esteja em conexatildeo com ele48

46 Idem Ibidem I 7 1097 b 25 ldquoPois assim como para um flautista um escultor ou um pintor e em geral para todas as coisas que tecircm funccedilatildeo [ἔργον] ou atividade considera-se que o bem e o lsquobem feitorsquo residem na funccedilatildeo [ἔργῳ] o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma funccedilatildeo [ἔργον]rdquo 47 Idem Ibidem I 7 1097 b 30 ldquoA vida parece ser comum ateacute agraves proacuteprias plantas mas agora estamos procurando o que eacute peculiar ao homemrdquo 48 Idem Ibidem I 7 1098 a 5 [] A funccedilatildeo [ἔργον] do homem [ἀνθρώπου] eacute uma atividade [ἐνέργεια] da alma [ψυχῆς] que segue ou que implica um princiacutepio racional [λόγου] []rdquo

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Mas neste passo da argumentaccedilatildeo ele introduz outro conceito de primeira grandeza para a sua eacutetica a saber o de virtude Aqui haacute que se ter cuidado Nos dias de hoje a palavra virtude estaacute muito vinculada a certa concepccedilatildeo ldquomoralistardquo qual seja a de ldquobom comportamentordquo Entretanto a palavra que Aristoacuteteles usa para significar virtude eacute ἀρετή (aretḗ) que vem da raiz ἀρίς da qual proveacutem tambeacutem ἄριστον (aacuteriston) que significa oacutetimo Assim sendo aretḗ (virtude) indica a capacidade que o homem tem de realizar da melhor forma possiacutevel mdash com excelecircncia mdash o seu ἔργον (eacutergon) isto eacute a sua funccedilatildeo a qual eacute o λόγος (loacutegos) e tudo quanto seja conexo com ele 49 Como eacute virtuoso o escultor que faz bem a sua estaacutetua o arquiteto que constroacutei bem a sua casa e o flautista que toca bem a sua flauta eacute virtuoso o homem que usa bem ou seja exercita da melhor forma possiacutevel o ἔργον (eacutergon) que lhe eacute especiacutefico vale dizer o loacutegos (λόγος) De fato uma coisa eacute fazer uma boa accedilatildeo outra adicional eacute fazecirc-la bem eis a aretḗ 50 E o que compete ao homem Compete ao homem que por meio de seu loacutegos (λόγος) crie koinōniacutea (κοινωνία) viacutenculos humanos laccedilos humanos E praticar esta accedilatildeo da melhor forma possiacutevel eacute realizaacute-la com aretḗ com excelecircncia Mas o que temos ateacute aqui Uma eacutetica cujo ponto nevraacutelgico estaacute

49 Sem o estigma do ldquoperfeccionismordquo podemos dizer que Aristoacuteteles eacute um ldquoperfeccionistardquo Adquirimos a perfeiccedilatildeo da virtude eacutetica treinando praticando E quando esta pratildexis torna-se heacutexis a atividade eacute facilitada destravada torna-se aacutegil O exerciacutecio do eacutergon fica mais ceacutelere menos moroso sem desleixo Ora esta perfeiccedilatildeo a ser perseguida se chama aretḗ Idem Ibidem II 2 1104 a 30-1104 b ldquoO mesmo ocorre com as virtudes tornamo-nos temperantes abstendo-nos de prazeres e eacute depois de nos tornarmos tais que somos mais capazes dessa abstenccedilatildeo E igualmente no toca agrave coragem pois eacute habituando-se a desprezar e arrostar coisas terriacuteveis que nos tornamos bravos e depois de nos tornarmos tais somos mais capazes de lhes fazer frenterdquo 50 Idem Ibidem I 7 1098 a 5 10 e 15 ldquoOra se a funccedilatildeo do homem eacute uma atividade da alma que segue ou que implica um princiacutepio racional e se dizemos que lsquoum tal-e-talrsquo e lsquoum bom tal-e-talrsquo tecircm uma funccedilatildeo que eacute a mesma em espeacutecie (por exemplo um tocador de lira e um bom tocador de lira e assim em todos os casos sem maiores discriminaccedilotildees sendo acrescentada ao nome da funccedilatildeo a eminecircncia com respeito agrave bondade mdash pois a funccedilatildeo de um tocador de lira eacute tocar lira e a de um bom tocador de lira eacute fazecirc-lo bem) se realmente assim eacute [] o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonacircncia com a virtude e se haacute mais de uma virtude com a melhor e mais completardquo

94 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino num conceito de felicidade que consiste na plena realizaccedilatildeo das capacidades (δυνάμειςdynaacutemeis) humanas

Observemos pois que toda virtude ou excelecircncia natildeo soacute coloca em boa condiccedilatildeo a coisa de que eacute a excelecircncia como tambeacutem faz com que a funccedilatildeo dessa coisa seja bem desempenhada Por exemplo a excelecircncia do olho torna bons tanto o olho como a sua funccedilatildeo pois eacute graccedilas agrave excelecircncia do olho que vemos bem Analogamente a excelecircncia de um cavalo tanto o torna bom em si como bom na corrida [] Portanto se isto vale para todos os casos a virtude do homem tambeacutem seraacute a disposiccedilatildeo de caraacuteter que o torna bom e que o faz desempenhar bem a sua funccedilatildeo51

Um homem eacutetico eacute pois aquele que se empenha em

realizar da melhor forma possiacutevel isto eacute com virtude com aretḗ o seu eacutergon a saber aquilo que lhe compete enquanto homem E o seu eacutergon eacute que ultrapassando o que o separa dos seus pares ele busque permanentemente mdash mediante o loacutegos (λόγος) mdash criar koinōniacutea (κοινωνία) entre os homens comunhatildeo em torno de alguns valores que exatamente porque descobertos em comunidade consolidam-na

Como ante um pianista que executa uma peccedila com perfeiccedilatildeo dizemos que pianista virtuoso Ou de uma sinfocircnica que toca com perfeiccedilatildeo um tema dizemos que execuccedilatildeo feliz Assim devemos dizer diante de um homem que pela mediaccedilatildeo do loacutegos (λόγος) procura continuamente criar koinōniacutea (κοινωνία) entre os seus semelhantes que homem feliz Que homem virtuoso Eacute neste sentido que podemos afirmar que a eacutetica aristoteacutelica eacute uma eacutetica bela porque concebida como uma espeacutecie de poiacuteēsis (ποίησις) como a bela obra de toda uma vida que busca constantemente mdash atraveacutes do loacutegos (λόγος) mdash fazer com que os homens comunguem a vida uns dos outros O proacuteprio Aristoacuteteles registra como objeto da sua ldquociecircncia poliacuteticardquo as belas accedilotildees ldquoOra as accedilotildees belas (τὰ

51 Idem Ibidem II 6 1106 a 15-20 Com estes exemplos tirados da vida cotidiana Aristoacuteteles mostra que adestrar as nossas accedilotildees torna a sua praacutetica aleacutem de mais eficaz mais prazerosa

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καλάtagrave kalaacute) e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga []rdquo52 Noutra passagem o Estagirita diz que o fim da vida poliacutetica e da proacutepria ciecircncia poliacutetica eacute ser fautora de cidadatildeos virtuosos capazes de accedilotildees boas e belas

[] o objetivo da vida poliacutetica [πολιτικῆςpolitikẽs] eacute o melhor dos fins e essa ciecircncia dedica o melhor de seus esforccedilos a fazer com que os cidadatildeos sejam bons e capazes de nobres accedilotildees [τῶν καλῶνtȭn kalȭn]53

Tambeacutem Berti mdash ao estudar a ldquociecircncia poliacuteticardquo de

Aristoacuteteles a qual engloba a eacutetica e a poliacutetica propriamente dita mdash define-a como o estudo das accedilotildees belas e justas

Aqui Aristoacuteteles descreve com muita clareza aquilo que denominamos a intenccedilatildeo topoloacutegica proacutepria da ciecircncia poliacutetica ela se ocupa das accedilotildees belas isto eacute nobres e justas54

Ao chegar a este ponto parece que dissemos tudo quanto

possa ser dito sobre a Eacutetica E no entanto abordamos apenas e sinteticamente o livro I Em seguida Aristoacuteteles reflete no fato de que o homem eacute capaz de muitas accedilotildees e que portanto haacute muitas virtudes Jaacute sabemos que fundamentalmente a virtude estaacute em realizar bem uma accedilatildeo Mas e se a realizamos mal Ora se agimos mal caiacutemos no viacutecio O termo que nosso autor usa para designar viacutecio eacute κακία (kakiacutea) que vem de κακός (kakoacutes) e que significa o que eacute mau bruto rude Daiacute que para Aristoacuteteles viciosa eacute toda accedilatildeo humana que vai aleacutem ou fica aqueacutem do que poderia e deveria

52 Idem Ibidem I 3 1094 b 10-15 53 Idem Ibidem I 9 1099 b 30 Idem Ibidem I 8 1098 b 20 ldquoSendo assim as accedilotildees virtuosas [] satildeo boas e nobres [καλαίkalaiacute] e possuem no mais alto grau cada um destes atributos []rdquo As accedilotildees virtuosas natildeo soacute satildeo belas mas possuem o atributo da beleza no mais alto grau Aristoacuteteles chama o temperante ldquoamigo do belordquo Idem Ibidem I 8 1099 a 10 ldquo[] os amantes do que eacute nobre [φιλοκάλοιςfilokaacutelois] se comprazem em coisas que tecircm aquela qualidade []rdquo 54 BERTI Enrico As razotildees de Aristoacuteteles Trad Dion Davi Macedo Rev Renato Rocha Carlos 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 p 121

96 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ser como veremos mais abaixo55 Mas quais satildeo as accedilotildees que satildeo propriamente passiacuteveis de virtude ou de viacutecio 25 PROAIacuteRESIS E BOYacuteLEYSIS

A virtude diz respeito agraves accedilotildees das quais o homem eacute o princiacutepio motor56 E o homem eacute o princiacutepio motor daquelas accedilotildees sobre as quais ele exerce a sua escolha (προαίρεσιςproaiacuteresis) por meio de uma deliberaccedilatildeo (βούλευσιςboyacuteleysis) A deliberaccedilatildeo e a escolha mdash esta uacuteltima fruto da deliberaccedilatildeo mdash por sua vez tratam dos meios exequiacuteveis para se alcanccedilar o fim57 Por isso as accedilotildees passiacuteveis de virtudes mdash e consequentemente de viacutecios58 mdash satildeo as factiacuteveis isto eacute as que estatildeo em nosso poder e que escolhemos59 mdash agrave guisa de meio mdash para chegarmos a um fim60 Do quanto dissemos temos que as accedilotildees eacuteticas satildeo aquelas que procedem de noacutes que nascem de noacutes porque filhas de nossas escolhas deliberadas Desta sorte para Aristoacuteteles a eacutetica trata daquelas accedilotildees das quais ldquo[] o homem [ἄνθρωπον] seja um princiacutepio [ἀρχήν] motor e pai [γεννητήν] de suas accedilotildees [πράξεων] como o eacute de seus filhosrdquo61 Por isso na concepccedilatildeo de nosso filoacutesofo cada

55 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 6 1106 b 35-1107 a 5 ldquoA virtude [ἀρετή] eacute pois uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξις] [] E eacute um meio-termo [μεσότες] entre dois viacutecios [κακιῶν] um por excesso e outro por falta pois que enquanto os viacutecios ou vatildeo muito longe ou ficam aqueacutem do que eacute conveniente no tocante agraves accedilotildees e paixotildees a virtude encontra e escolhe o meio-termordquo 56 Idem Ibidem III 3 1112 b 30 ldquoParece pois como jaacute ficou dito que o homem eacute um princiacutepio motor de accedilotildeesrdquo 57 Idem Ibidem III 3 1112 b 30 ldquoCom efeito o fim natildeo pode ser objeto de deliberaccedilatildeo mas apenas o meiordquo Idem Ibidem III 3 1112 b 10 ldquoNatildeo deliberamos acerca de fins mas a respeito de meiosrdquo 58 Idem Ibidem II 1 1103 b 5 ldquoAinda mais eacute das mesmas causas e pelos mesmos meios que se gera e se destroacutei toda virtude []rdquo 59 Idem Ibidem III 3 1113 a 10 ldquoSendo pois o objeto da escolha uma coisa que estaacute ao nosso alcance e que eacute desejada apoacutes deliberaccedilatildeo a escolha eacute um desejo deliberado de coisas que estatildeo ao nosso alcance []rdquo 60 Idem Ibidem III 5 1113 b 5 ldquoSendo pois o fim aquilo que desejamos e o meio aquilo acerca do qual deliberamos e que escolhemos as accedilotildees relativas ao meio devem concordar com a escolha e ser voluntaacuterias Ora o exerciacutecio da virtude diz respeito aos meios Por conseguinte a virtude estaacute em nosso poder do mesmo modo que o viacutecio []rdquo 61 Idem Ibidem III 5 1113 b 15

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accedilatildeo eacutetica afigura-se como um novo nascimento pois se ldquoDeliberamos sobre coisas que estatildeo ao nosso alcance e podem ser realizadasrdquo62 ou seja sobre coisas que natildeo estatildeo determinadas deliberamos acerca de coisas que ldquo[] em noacutes estaacute igualmente o fazecirc-las ou natildeo as fazerrdquo63 A eacutetica nos coloca assim ante o ineacutedito o imprevisiacutevel e por ela o homem mdash senhor de suas accedilotildees mdash faz-se e cria o mundo em que habita De sorte que a vida eacutetica eacute como uma segunda natureza64 e a felicidade obra de nossas matildeos pois ldquo[] ningueacutem eacute involuntariamente feliz [μακάριοςmakaacuterios] []rdquo65 O raciociacutenio eacute simples se estaacute em nosso poder agir ou natildeo agir de forma virtuosa ou viciosa estaacute em nosso poder tambeacutem sermos virtuosos ou viciosos Ademais se a virtude e o viacutecio geram em noacutes como uma segunda natureza estaacute ao nosso alcance ainda sermos bons ou maus justos ou injustos valentes ou covardes pois em grande medida transformamo-nos naquilo que fazemos naquilo que escolhemos ser

[] quando depende de noacutes o agir tambeacutem depende o natildeo agir e vice-versa de modo que quando temos o poder de agir quando isso eacute nobre tambeacutem temos o de natildeo agir quando eacute vil e se estaacute em nosso poder o natildeo agir quando isso eacute nobre tambeacutem estaacute o agir quando isso eacute vil Logo depende de noacutes praticar atos nobres ou vis e se eacute isso que se entende por ser bom ou mau entatildeo depende de noacutes sermos virtuosos ou viciosos66

Isso pois eacute o que tambeacutem ocorre com as virtudes pelos atos que praticamos em nossas relaccedilotildees com os homens nos tornamos justos ou injustos pelo que fazemos em presenccedila do perigo e pelo

62 Idem Ibidem III 3 1112 a 30 63 Idem Ibidem III 1 1110 a 15 64 ARISTOacuteTELES Retoacuterica Trad Manuel Alexandre Juacutenior Paulo Farmhouse Alberto e Abel Nascimento Pena Rev Levi Condinho 2 ed Lisboa Biblioteca de Autores Claacutessicos 2005 v VIII I 11 1370 a 5ldquo[] o haacutebito eacute de algum modo semelhante agrave natureza []rdquo 65 Idem Eacutetica a Nicocircmaco III 5 1113 b 15 66 Idem Ibidem III 5 1113 b 10

98 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

haacutebito do medo ou da ousadia nos tornamos valentes ou covardes67

Aubenque e Zingano dois importantes comentadores

repisam o que acabamos de dizer

Ele pretende dizer que a virtude eacute uma disposiccedilatildeo que exprime uma decisatildeo da qual somos princiacutepio que engaja nossa liberdade nossa responsabilidade nosso meacuterito o adjetivo προαιρετικός designa a diferenccedila especiacutefica que separa a virtude moral que nos eacute imputaacutevel da virtude natural cuja posse natildeo nos concede nenhum meacuterito porque natildeo concerne agrave nossa proaiacuteresis68

Graccedilas agrave razatildeo deliberativa sou senhor de minhas accedilotildees como as disposiccedilotildees satildeo geradas pelas accedilotildees sou em parte causa de minhas disposiccedilotildees Ora as disposiccedilotildees praacuteticas constituem o que se pode chamar de natureza praacutetica do agente e os fins aparecem ao agente em funccedilatildeo de sua natureza (praacutetica) por conseguinte em uma certa medida sou causa do fato que certos fins apareccedilam para mim69

Toquemos ainda que concisamente na distinccedilatildeo que

Aristoacuteteles estabelece entre virtudes dianoeacuteticas e virtudes eacuteticas e a partir de que criteacuterio ele concebe o conceito de justo meio 26 VIRTUDES DIANOEacuteTICAS E EacuteTICAS O CONCEITO DE JUSTO MEIO QUANTO AgraveS VIRTUDES EacuteTICAS

Do livro II da Eacutetica a Nicocircmaco ateacute o livro VII encontra-se o que podemos chamar tratado acerca das virtudes e dos viacutecios opostos Aristoacuteteles divide as virtudes em duas ordens haacute as virtudes eacuteticas tambeacutem chamadas virtudes de caraacuteter ou morais e

67 Idem Ibidem II 1 1103 b 10-15 68 AUBENQUE Pierre A Prudecircncia em Aristoacuteteles Trad Marisa Lopes Rev Siacutelvio Rosa Filho 2 ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2008 pp 193-194 69 ZINGANO Marco Estudos de Eacutetica Antiga 2 ed Satildeo Paulo Discurso Editorial Paulus 2009 pp 319-320

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as virtudes dianoeacuteticas70 O substantivo dianoeacutetica vem do verbo διὰ-νοεῖν (diagrave-noeĩn) que significa discorrer raciocinar Lembremos ainda que o substantivo νοῦς (noỹs) designa inteligecircncia Daiacute que as virtudes dianoeacuteticas satildeo as virtudes racionais ou intelectuais A elas cabe nos conduzir ao conhecimento da verdade71 A alma humana eacute pois uma alma intelectiva Mas observemos com atenccedilatildeo a alma humana natildeo eacute soacute intelectiva ela eacute uma alma intelectiva que acumula as funccedilotildees vegetativa e sensitiva Haacute portanto uma soacute alma que acumula estas trecircs funccedilotildees

E de entre os seres que possuem sensibilidade uns possuem a faculdade de se moverem de lugar outros natildeo Por fim um pequeno nuacutemero de animais possui raciociacutenio e pensamento discursivo De entre os seres pereciacuteveis os que possuem raciociacutenio possuem tambeacutem as restantes faculdades mas nem todos os que possuem cada uma daquelas dispotildeem de raciociacutenio []72

As virtudes referentes agrave correccedilatildeo da razatildeo satildeo justamente

as virtudes dianoeacuteticas conforme jaacute evidenciamos Poreacutem o homem repetimos natildeo eacute soacute razatildeo Ele sente e se nutre Todavia o que haacute de melhor no homem eacute a razatildeo Desta sorte natildeo seraacute feliz o homem cuja sensibilidade e prazeres se contrapuserem agrave razatildeo As virtudes que devem harmonizar aqueles comportamentos que natildeo satildeo apenas racionais mas dizem respeito agrave sensibilidade satildeo denominadas virtudes eacuteticas73 ou de caraacuteter74 Eacute neste contexto que

70 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 1 1103 a 15 ldquoSendo pois de duas espeacutecies a virtude intelectual e moral []rdquo 71 Idem Ibidem VI 2 1139 a 25 ldquoQuanto ao intelecto contemplativo e natildeo praacutetico nem produtivo o bom e o mau estado satildeo respectivamente a verdade e a falsidade []rdquo 72 ARISTOacuteTELES Sobre a Alma II 3 415 a 5 73 Idem Eacutetica a Nicocircmaco VI 2 1139 a 25-30 ldquoOra esta espeacutecie de intelecto e de verdade eacute praacutetica [] [] mas da parte praacutetica e intelectual o bom estado eacute a concordacircncia da verdade com o reto desejordquo

100 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino surge a famosa definiccedilatildeo de virtude de Aristoacuteteles como o justo meio (μεσότηςmesoacutetēs) entre dois extremos o excesso e a falta75

Por exemplo a virtude do guerreiro eacute ser corajoso ou seja natildeo se furtar agrave luta quando se tem uma causa nobre Contudo a eminecircncia da virtude da coragem proacutepria do guerreiro fica entre o viacutecio por excesso da temeridade que consiste em natildeo saber reconhecer os riscos que devem ser ponderados antes da guerra e o viacutecio da covardia que eacute simplesmente a falta de coragem para se encarar a luta quando isto se faz necessaacuterio O mesmo se pode dizer da virtude da generosidade entre o extremo da avareza e o excesso da prodigalidade haacute precisamente a virtude da generosidade Estes exemplos satildeo importantes a fim de entendermos que o justo meio natildeo eacute algo mediacuteocre como se pode pensar mas uma eminecircncia que se sobrepotildee ao excesso e agrave falta

E assim no que toca agrave sua substacircncia e agrave definiccedilatildeo que lhe estabelece a essecircncia a virtude eacute mediania com referecircncia ao sumo bem e ao mais justo eacute poreacutem um extremo76

As principais virtudes eacuteticas satildeo a fortaleza ou coragem

(ἀνδρείαandreiacutea) que eacute como vimos o justo meio em relaccedilatildeo aos sentimentos de medo e confianccedila a temperanccedila (σωφροσύνηsōfrosyacutenē) que eacute o justo meio em relaccedilatildeo aos prazeres e dores77 Contudo entre as virtudes eacuteticas Aristoacuteteles destaca a justiccedila (δικαιοσύνηdikaiosyacutenē) Esta consiste na equidade ldquo[] o justo eacute equumlitativo como aliaacutes pensam todos

74 Idem Ibidem II 5 1106 a 10 ldquoPor conseguinte se as virtudes natildeo satildeo paixotildees nem faculdades soacute resta uma alternativa a de que sejam disposiccedilotildees de caraacuteterrdquo 75 Idem Ibidem II 6 1106 b 25 ldquoOra a virtude diz respeito agraves paixotildees e accedilotildees em que o excesso eacute uma forma de erro assim como a carecircncia ao passo que o meio-termo eacute uma forma de acerto digna de louvor []rdquo 76 Idem Ibidem II 6 1107 a 5 77 Idem Ibidem II 7 1107 b 5 ldquoEm relaccedilatildeo aos sentimentos de medo e de confianccedila a coragem eacute o meio-termo [] Com relaccedilatildeo aos prazeres e dores mdash natildeo todos e menos no que tange agraves dores mdash o meio-termo eacute a temperanccedila e o excesso eacute a intemperanccedilardquo

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mesmo sem discussatildeordquo78 Haacute segundo Aristoacuteteles dois tipos de justiccedila a distributiva na qual se realiza uma igualdade geomeacutetrica que consiste em o governante dar do que eacute comum a cada qual segundo os seus meacuteritos e a comutativa ou corretiva que se realiza mediante uma igualdade aritmeacutetica que consiste na correccedilatildeo das comutas entre os indiviacuteduos79 Interessante eacute notar que estas virtudes eacuteticas satildeo conexas Por exemplo a virtude intelectual da froacutenēsis eacute conexa com a virtude eacutetica da sōfrosyacutenē Para expressar esta conexatildeo Aristoacuteteles chega a indicar que a sōfrosyacutenē teria este nome porque eacute ela que salva (σώζωsṓzō) a froacutenēsis ldquoE por isso mesmo damos agrave temperanccedila o nome de σωφροςύνη subentendendo que ela preserva a nossa sabedoria σώζουσα τήν φρόνησω [sṓzoysa tḗn froacutenēsō]rdquo80

Restaria muito por dizer mas nossa intenccedilatildeo era tatildeo somente fazer uma concisa apresentaccedilatildeo das virtudes eacuteticas Poreacutem ainda natildeo falamos acerca do papel da amizade na eacutetica aristoteacutelica 27 O PAPEL DA AMIZADE NA EacuteTICA

Eacute a amizade uma virtude Haacute quem pense que sim e alegue a seu favor que Aristoacuteteles dedica dois livros da Eacutetica a Nicocircmaco agrave temaacutetica Ademais para os que defendem esta posiccedilatildeo algumas passagens desta obra parecem tratar a filiacutea como heacutexis e aretḗ 81 Uma linha diversa reclama que Aristoacuteteles nunca aplica agrave

78 Idem Ibidem V 3 1131 a 10 79 Idem Ibidem V 4 1131 b 25-30-1132 a ldquoCom efeito a justiccedila que distribui posses comuns estaacute sempre de acordo com a proporccedilatildeo mencionada acima (e mesmo quando se trata de distribuir os fundos comuns de uma sociedade ela se faraacute segundo a mesma razatildeo que guardam entre si os fundos empregados no negoacutecio pelos diferentes soacutecios) e a injusticcedila contraacuteria a esta espeacutecie de injusticcedila eacute a que viola a proporccedilatildeo Mas a justiccedila nas transaccedilotildees entre um homem e outro eacute efetivamente uma espeacutecie de igualdade e a injusticcedila uma espeacutecie de desigualdade natildeo de acordo com essa espeacutecie de proporccedilatildeo todavia mas de acordo com uma proporccedilatildeo aritmeacuteticardquo 80 Idem Ibidem VI 5 1140 b 10 81 BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos III Filosofia Praacutetica Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 136 ldquoA amizade mdash e isso eacute notoacuterio mdash eacute a virtude (sim a

102 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino amizade a mesoacutetēs cuja funccedilatildeo eacute a de definir uma virtude eacutetica pelo que concluem que a amizade natildeo eacute virtude embora a implique82 Natildeo nos pronunciaremos sobre a questatildeo deixando-a adrede em aberto Para o nosso propoacutesito basta seguirmos o Filoacutesofo quanto ao papel da amizade na vida eacutetica o qual natildeo eacute como veremos um papel de somenos Antes de tudo para Aristoacuteteles a amizade eacute uma paixatildeo da alma

Devemos considerar agora o que eacute a virtude [ἀρετή] Visto que na alma se encontram trecircs espeacutecies de coisas mdash paixotildees [πάθη] faculdades e disposiccedilotildees de caraacuteter [ἕξεις] mdash a virtude deve pertencer a uma destas Por paixotildees [πάθη] entendo os apetites a coacutelera o medo a audaacutecia a inveja a alegria a amizade [φιλίαν] []83

Todavia no comeccedilo do livro VIII o Estagirita parece definir

a amizade como aretḗ ou algo que a implique

amizade eacute uma virtude natildeo conveacutem esquececirc-lo) da qual Aristoacuteteles fala mais longamente em suas obras consagrando-lhe dois livros inteiros da Eacutetica a Nicocircmaco e um livro da Eacutetica a Eudemo para natildeo falar da Grande eacutetica ou Grande moral de autenticidade duvidosardquo BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 294 ldquoAleacutem disso segundo Aristoacuteteles a amizade eacute uma virtude isto eacute uma forma de excelecircncia um bem []rdquo 82 HOBUSS J ldquoEthica Nicomachea 1165b 13-14 filia e mudanccedila de caraacuteterrdquo In Dissertatio n 36 2012 pp 177 -185 ldquoNo livro VIII Aristoacuteteles comeccedila com uma afirmaccedilatildeo que identifica a amizade com a virtude recuando logo em seguida e sublinhando que se natildeo eacute uma virtude ao menos envolve virtude Na realidade jamais Aristoacuteteles indica que a amizade seja uma virtude e se se observa o tratamento da virtude nos livros VIII e IX da EN ele jamais daacute a esta o mesmo tratamento que daacute agraves virtudes morais ou seja ela nunca eacute tratada nesses livros como uma mediedade entre o excesso e a falta Nem nesses livros nem no resto da EN pois nas passagens onde aparece a φιλία como uma mediedade ente o excesso e a falta (1108b 26-30 1126b 20-28) o contexto faz com que se traduza φιλία como lsquoamabilidadersquo Na primeira passagem o que peca por excesso eacute um obsequioso ou um lisonjeador e o que peca por falta eacute um importuno ou grosseiro na segunda a mediedade natildeo tem um nome proacuteprio mas se parece de certo modo com a amizaderdquo WOLF Ursula A Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Enio Paulo Giachini Rev Renato da Rocha e Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 p 230 ldquoTambeacutem a breve indicaccedilatildeo da teoria do mesotes (1158 a 10 ss) apenas reforccedila a impressatildeo de que natildeo se pode classificar a amizade como uma arete [] Assim a uacutenica referecircncia clara estabelecida por Aristoacuteteles entre amizade e arete eacutetica consiste no fato de que natildeo haacute amizade em sentido verdadeiro e proacuteprio sem que as pessoas envolvidas na relaccedilatildeo de amizade possuam arete eacuteticardquo 83 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 5 1105 b 20-25

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Depois do que dissemos segue-se naturalmente uma discussatildeo da amizade [φιλίας] visto que ela eacute uma virtude [ἀρετή] ou implica virtude [ἀρετής] sendo aleacutem disso sumamente necessaacuteria agrave vida84

Para entendermos a questatildeo precisamos ter presente que

filiacutea eacute um termo grego a priori de significado muito amplo empregado para expressar toda sorte de afetos humanos Poreacutem pelo contexto do tratado aristoteacutelico existe uma compreensatildeo de filiacutea que soacute se realiza quando haacute uma benevolecircncia reciacuteproca e habitual entre as pessoas e eacute a esta benevolecircncia muacutetua entre os homens que Aristoacuteteles chama propriamente amizade

Ora as pessoas amam por trecircs razotildees Para o amor dos objetos inanimados natildeo usamos a palavra ldquoamizaderdquo pois natildeo se trata de amor muacutetuo nem um deseja o bem ao outro (seria com efeito ridiacuteculo se desejaacutessemos bem ao vinho se algo lhe desejamos eacute que se conserve para que continuemos dispondo dele) no tocante aos amigos poreacutem diz-se que devemos desejar-lhes o bem no interesse deles proacuteprios Mas aos que desejam bem dessa forma soacute atribuiacutemos benevolecircncia se o desejo natildeo eacute reciacuteproco a benevolecircncia quando reciacuteproca torna-se amizade [φιλίαν]85

E assim como a amizade [φίλιας] depende mais do amar do que do ser amado e satildeo os que amam os seus amigos que satildeo louvados o amar parece ser a virtude caracteriacutestica dos amigos [φίλων ἀρετὴ τὸ φιλεῖν] de modo que soacute aqueles que amam na medida justa satildeo amigos duradouros e soacute a amizade desses resiste ao tempo86

O Estagirita distingue pois o amor entendido como

paacutethos por exemplo quando se manifesta como eacuterōs do amor enquanto filiacutea stricto sensu De fato eacute soacute a filiacutea entendida stricto

84 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 5 85 Idem Ibidem VIII 2 1155 b 25-30 86 Idem Ibidem VIII 8 1159 a 30-35

104 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino sensu que ele considera uma disposiccedilatildeo de caraacuteter isto eacute heacutexis visto que envolve proaiacuteresis e consiste como jaacute dissemos num amor muacutetuo Fato eacute que sem amigos verdadeiros ningueacutem consegue viver ainda que possua todos os outros bens o que torna a amizade um bem indispensaacutevel agrave eydaimoniacutea ldquoPorque sem amigos ningueacutem escolheria viver ainda que possuiacutesse todos os outros bensrdquo87

Ora dir-se-ia que o amor eacute um sentimento e a amizade [φιλία] eacute uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξει] porque se pode sentir amor mesmo pelas coisas inanimadas mas o amor muacutetuo envolve escolha [προαιρέσεως] e a escolha [προαίρεσις] procede de uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξεως] E os homens desejam bem agravequeles a quem amam por eles mesmos natildeo por efeito de um sentimento [πάθος] mas de uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξιν]88

Se quisermos ser mais precisos podemos distinguir com

Aristoacuteteles trecircs tipos de amizade Uma que se baseia no prazer outra que se funda na utilidade que um tem para o outro finalmente a mais perfeita e a mais rara a amizade propriamente dita a qual se baseia no fato mesmo de o outro ser quem eacute vale dizer virtuoso Esta uacuteltima forma de filiacutea acumula tambeacutem o prazer e a utilidade mas natildeo se alicerccedila neles89 Eacute rara porque exige tempo concoacuterdia e familiaridade90 As demais formas de amizade satildeo ditas amizades apenas acidentalmente porque logo que o prazer e a utilidade se esvaem elas se dissolvem Com efeito

87 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 5 88 Idem Ibidem VIII 5 1157 b 25-35 89 Idem Ibidem VIII 6 1158 b 5 ldquoEacute por sua semelhanccedila com a amizade da virtude que parecem ser amizades (pois uma delas envolve prazer e a outra utilidade e estas caracteriacutesticas pertencem tambeacutem agrave amizade dos virtuosos) []rdquo 90 Exige diriacuteamos hoje provas de confianccedila ateacute que confirmada a mesma amizade fique ela blindada contra as caluacutenias Idem Ibidem VIII 4 1157 a 20 ldquoA amizade entre os bons e soacute ela tambeacutem eacute invulneraacutevel agrave caluacutenia pois natildeo damos ouvidos facilmente agraves palavras de qualquer um a respeito de um homem que durante muito tempo submetemos agrave prova e eacute entre os bons que satildeo encontradas a confianccedila o sentimento expresso pelas palavras lsquoele nunca me faria uma deslealdadersquo e todas as outras coisas que se requerem numa verdadeira amizaderdquo

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amizades baseadas tatildeo somente no prazer ou na utilidade podem existir tambeacutem entre os viciosos jaacute a amizade propriamente dita soacute entre os virtuosos91 Haacute passagens particularmente elucidativas a este respeito

Haacute assim trecircs espeacutecies de amizade [] Ora os que se amam por causa de sua utilidade natildeo se amam por si mesmos [] Idecircntica coisa se pode dizer dos que se amam por causa do prazer [] De forma que essas amizades satildeo apenas acidentais pois a pessoa amada natildeo eacute amada por ser o homem que eacute mas porque proporciona algum bem ou prazer Eis por que tais amizades se dissolvem facilmente se as partes natildeo permanecem iguais a si mesmas com efeito se uma das partes cessa de ser agradaacutevel ou uacutetil a outra deixa de amaacute-la92

A amizade perfeita eacute a dos homens que satildeo bons e afins na virtude pois esses desejam igualmente bem um ao outro enquanto bons e satildeo bons em si mesmos Ora os que desejam bem aos seus amigos por eles mesmos satildeo os mais verdadeiramente amigos porque o fazem em razatildeo da sua proacutepria natureza e natildeo acidentalmente93

Uma tal amizade eacute como seria de esperar permanente jaacute que eles encontram um no outro todas as qualidades que os amigos devem possuir [] E agrave amizade entre homens bons pertencem todas as qualidades que mencionamos [prazer utilidade] [] Mas eacute natural que tais amizades natildeo sejam muito frequumlentes pois que tais homens satildeo raros Acresce que uma amizade dessa espeacutecie exige tempo e familiaridade [] Os que natildeo tardam a mostrar mutuamente sinais de amizade desejam ser amigos mas natildeo o satildeo a menos que ambos sejam estimaacuteveis e o saibam

91 Idem Ibidem VIII 4 1157 b ldquoDividindo-se pois a amizade nestas espeacutecies os maus seratildeo amigos com vistas na utilidade ou no prazer e a esse respeito se assemelharatildeo um ao outro mas os bons seratildeo amigos por eles mesmos isto eacute em razatildeo da sua bondade Esses pois satildeo amigos no sentido absoluto do termo e os outros o satildeo acidentalmente e por uma semelhanccedila com os primeirosrdquo 92 Idem Ibidem VIII 3 1156 a 5-20 93 Idem Ibidem VIII 3 1156 b 5-10

106 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

porque o desejo da amizade pode surgir depressa mas a amizade natildeo94

Como jaacute vimos apenas a filiacutea que se baseia no querer bem

ao outro como a si mesmo implica perfeiccedilatildeo ldquoEsta espeacutecie de amizade pois eacute perfeita (τελεία) []rdquo95 Ademais eacute esta forma de amizade calcada na virtude que inobstante rara deve ser buscada adquirida e conservada na e pela poacutelis Trata-se como jaacute dito de um haacutebito (heacutexis) que natildeo se perde com a distacircncia esta soacute interrompe a atividade (eneacutergeia) natildeo o haacutebito salvo se durar muito tempo

A distacircncia natildeo rompe a amizade [φιλίαν] em absoluto mas apenas a sua atividade [ἐνέργειαν] Todavia se a ausecircncia dura muito tempo parece realmente fazer com que os homens esqueccedilam a sua amizade daiacute o proveacuterbio ldquolonge dos olhos longe do coraccedilatildeordquo96

Aristoacuteteles fala ainda por assim dizer de outras espeacutecies

de amizade no bojo da proacutepria poacutelis entre pai e filho velho e jovem governante e suacutedito etc Poreacutem todas estas espeacutecies de amizade mdash inclusive a que eacute segundo a virtude mdash oriundas de comunidades mais particulares pressupotildeem a poacutelis como a parte supotildee o todo 97 Por isso tais amizades soacute podem ser buscadas vividas e conservadas no horizonte da mesma poacutelis que abarca todas

94 Idem Ibidem VIII 3 1156 b 15-30 95 Idem Ibidem VIII 4 1156 b 30 96 Idem Ibidem VIII 5 1157 b 10 97 Idem Ibidem VIII 9 1160 a 5-10 ldquoOra todas as formas de comunidade [κοινωνίαι] satildeo como partes da comunidade poliacutetica [πολιτικῆς] []rdquo Idem Ibidem VIII 9 1160 a 20 ldquoMas todos parecem incluir-se na comunidade poliacutetica [πολιτική] que natildeo visa agrave vantagem imediata mas ao que eacute vantajoso para a vida no seu todo []rdquo Idem Ibidem VIII 9 1160 a 25-30 ldquoTodas as comunidades [κοινωνίαι] por conseguinte parecem fazer parte da comunidade poliacutetica [πολιτικῆς] e as espeacutecies particulares de amizade devem corresponder agraves espeacutecies particulares de comunidaderdquo

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De qualquer maneira destas formas de amizade exceto a que eacute segundo a virtude natildeo satildeo um fim em si mesmas senatildeo meio visto que se tomadas como um fim elas tendem agrave degeneraccedilatildeo porque envolvem desigualdade ldquoTambeacutem nas amizades que se baseiam na superioridade surgem dissenccedilotildees pois cada qual espera obter mais proveito delas mas quando isso natildeo acontece a amizade se dissolverdquo 98 Por exemplo na relaccedilatildeo governantesuacutedito nem sempre eacute faacutecil manter a proporcionalidade que iguala os desiguais e conserva a amizade Em razatildeo disso como jaacute dissemos a filiacutea que deve ser querida inclusive no acircmbito da poacutelis eacute sempre a que traraacute um maior proveito comum99 a saber a amizade segundo a virtude entre pares Ora a constituiccedilatildeo que melhor propicia a amizade segundo a virtude eacute a que se baseia na meritocracia visto que nela se estabelece uma igualdade segundo a virtude e desta sorte ela fomenta a amizade perfeita que eacute a filiacutea entre irmanados na virtude

A amizade de irmatildeos eacute como a de camaradas porquanto satildeo iguais e proacuteximos uns dos outros pela idade e tais pessoas em geral assemelham-se nos sentimentos e no caraacuteter E tambeacutem eacute semelhante a esta a amizade apropriada ao governo timocraacutetico [τιμοκρατικήν] pois numa tal constituiccedilatildeo o ideal eacute serem os cidadatildeos iguais e equumlitativos e por isso o governo eacute assumido por turnos numa base de igualdade E a amizade [φιλία] apropriada a esta constituiccedilatildeo corresponde agrave que descrevemos100

Tendo presente o que dissemos ateacute aqui sobre a amizade

passemos a considerar o seu papel na eacutetica Friedo Ricken em O

98 Idem Ibidem VIII 14 1163 a 20-25 99 Idem Ibidem VIII 9 1160 a 10 ldquo[] e eacute por causa da vantagem que a comunidade poliacutetica parece ter-se formado e perdurar pois esse eacute o objetivo que os legisladores se propotildeem e chamam justo o que concorre para a vantagem comumrdquo 100 Idem Ibidem VIII 11 1161 a 25 Eacute claro que em qualquer forma de governo corrompida supressa a justiccedila suprime-se tambeacutem a possibilidade de amizades verdadeiras Idem Ibidem VIII 11 1161 a 30 ldquoNas formas de desvio poreacutem como mal existe justiccedila tambeacutem eacute rara a amizaderdquo

108 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino bem-viver em comunidade na parte dedicada agrave poliacutetica de Aristoacuteteles frisa que eacute soacute pela experiecircncia de uma sadia convivecircncia desde a famiacutelia ateacute a poacutelis que chegamos a conhecer e a nomear os autecircnticos valores humanos

Para ele os valores e regras surgem a partir da experiecircncia da convivecircncia bem-sucedida [] A experiecircncia no trato com as pessoas nos leva a uma visatildeo das regras a que devemos obedecer para que a convivecircncia humana seja bem-sucedida Os valores ou regras morais mdash num resumo provisoacuterio da minha interpretaccedilatildeo mdash mostram-se como tais quando promovem a comunidade eles satildeo reconhecidos em comunidades humanas elementares por causa de suas experiecircncias de vida101

Noutro passo da mesma obra Ricken estende para a poacutelis

de forma mais especiacutefica a concepccedilatildeo de que eacute somente a convivecircncia que nos faz descobrir e vivenciar o justo e o injusto Ele faz a sua exegese a partir de uma passagem da Poliacutetica jaacute citada neste texto [I 2 1253 a 5-15]

O espantoso nessa tese eacute a relaccedilatildeo de consequecircncia nela formulada a pergunta pelo benefiacutecio e pelo prejuiacutezo natildeo pode ser separada da pergunta de como o benefiacutecio e o prejuiacutezo satildeo distribuiacutedos a pergunta pela distribuiccedilatildeo do benefiacutecio e do prejuiacutezo eacute um aspecto da racionalidade do objetivo pois este soacute pode ser alcanccedilado em conjunto pelas pessoas Elas natildeo podem se reunir para realizar juntas um benefiacutecio sem perguntar como esse benefiacutecio e os esforccedilos necessaacuterios vinculados a ele seratildeo distribuiacutedos A cooperaccedilatildeo soacute pode ser estaacutevel sob a condiccedilatildeo de ser dada a essa pergunta uma resposta satisfatoacuteria a todos os envolvidos Portanto a necessidade do justo pode ser fundamentada assim parece com ajuda do conceito de comunidade102

101 RICKEN Friedo O bem-viver em comunidade A vida boa segundo Platatildeo e Aristoacuteteles Trad Inecircs Antocircnia Lohbauer Rev Renato da Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 pp 125-126 102 Idem Ibidem p 147

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A fim de constatarmos nos proacuteprios textos do Estagirita esta realidade basta lermos o que eacute dito sobre o homem a saber que ele eacute por natureza [fyacutesei] um vivente poliacutetico (zȭon politikoacuten) Isto implica que o homem natildeo eacute autossuficiente Por isso para Aristoacuteteles aquele que for incapaz de criar koinōniacutea mais ainda quem natildeo sente esta necessidade natildeo vive segundo a sua natureza

Quem for incapaz de se associar ou que natildeo sente essa necessidade por causa de sua auto-suficiecircncia natildeo faz parte de qualquer cidade e seraacute um bicho ou um deus103

Mas qual a melhor forma de convivecircncia Que nome dar agrave

convivecircncia virtuosa Ora a melhor forma de convivecircncia eacute a amizade pois nela sem abandonarmos o nosso ldquoeurdquo estendemo-lo pois o amigo eacute como outro ldquoeurdquo com quem compartilhamos palavras pensamentos e gestos Assim o bem viver do amigo seraacute o nosso bem viver e vice-versa E a ldquoconsciecircnciardquo do bem viver do amigo promoveraacute tambeacutem o nosso bem viver e vice-versa Cria-se pois uma circularidade na qual a felicidade individual existe mas de forma indissociaacutevel da coletiva

Ele [o homem] necessita por conseguinte ter consciecircncia tambeacutem da existecircncia do seu amigo e isso se verificaraacute se viverem em comum e compartilharem suas discussotildees e pensamentos pois isso eacute ο que o conviacutevio parece significar no caso do homem e natildeo como para o gado o pastar juntos no mesmo lugar Se portanto o ser eacute desejaacutevel em si mesmo para o homem sumamente feliz [] e o ser de seu amigo eacute mais ou menos idecircntico ao seu um amigo seraacute uma das coisas desejaacuteveis104

103 ARISTOacuteTELES Poliacutetica I 2 1253 a 25 104 Idem Eacutetica a Nicocircmaco IX 9 1170 b10-15

110 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

A amizade gera cooperaccedilatildeo parece mesmo ativar e dilatar a dimensatildeo poliacutetica do homem pois um amigo antecipa-se ao outro para fazer-lhe participar do seu gozo e adianta-se em ajudaacute- lo antes que este lhe peccedila auxiacutelio A dinacircmica da amizade se por um lado leva-nos a ajudar o amigo a carregar os seus pesos por outro leva-nos a natildeo querer sobrecarregaacute-lo com as nossas desditas

Segundo parece pois deveriacuteamos convocar sem demora os nossos amigos a compartilhar a nossa ventura (pois as pessoas de caraacuteter benfazejo satildeo nobres) mas hesitar em chamaacute-los nos dias de infortuacutenio pois que de nossos males devemos dar-lhes uma parte tatildeo pequena quanto possiacutevel mdash donde a frase jaacute basta o meu infortuacutenio Acima de tudo devemos chamar nossos amigos quando eles podem sem grande trabalho prestar-nos um grande serviccedilo Inversamente eacute decoroso acorrer sem ser convidado em auxiacutelio dos que foram colhidos pela adversidade (pois eacute caracteriacutestico de um amigo prestar serviccedilos e especialmente aos que deles necessitam e que natildeo os solicitaram uma tal accedilatildeo eacute mais nobre e mais apraziacutevel a ambos) []105

A amizade segundo a virtude nota ainda Enrico Berti a

partir de uma passagem da Eacutetica a Nicocircmaco106 que citaremos abaixo gera accedilotildees desinteressadas O amigo verdadeiro estaacute disposto a com alegria abrir matildeo de muitos bens pelos quais os homens lutam mdash riquezas honras etc mdash e ateacute da sua proacutepria vida pelo bem de seu amigo ou de sua paacutetria Ora esta espeacutecie de accedilatildeo abnegada e doadora que adveacutem da amizade segundo a virtude eacute a face bela da eacutetica

105 Idem Ibidem IX 11 1171 b 15-20 106 Trata-se de uma recente videoliccedilatildeo na qual Enrico Berti comenta uma tese de doutorado da qual ele foi um dos examinadores A tese eacute Aristotele e il bello Poesis praxis theoria A autora da referida tese Lisa Bressan A tese que se transformou em livro foi defendida em 2012 na Universitagrave di Padova No trabalho a autora defende que o belo em Aristoacuteteles estaacute presente natildeo soacute na poiacuteēsis mas tambeacutem na praacutexis e na theōriacutea BERTI Enrico La natura del bello nel pensiero di Aristotele Disponiacutevel em lt httpswwwyoutubecomwatchv=coiO_Fpo6z4gt

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Do homem bom tambeacutem eacute verdadeiro dizer que pratica muitos atos no interesse de seus amigos e de sua paacutetria e se necessaacuterio daacute a vida por eles Com efeito um tal homem de bom grado renuncia agrave riqueza agraves honras e em geral aos bens que satildeo objetos de competiccedilatildeo ganhando para si a nobreza [τὸ καλόν]107

A partir deste contexto entendemos a razatildeo por que a

grande virtude do poliacutetico seraacute sempre a de patrocinar e favorecer a amizade entre os homens pois dela todas as virtudes inclusive a justiccedila mdash que ela aperfeiccediloa mdash parecem dimanar fluir para a poacutelis A experiecircncia da amizade faz a poacutelis ganhar em altruiacutesmo unidade e estabilidade

[] se a vida eacute desejaacutevel e particularmente desejaacutevel para os homens bons porque para eles a existecircncia eacute boa e apraziacutevel [] e se o homem virtuoso eacute para o amigo tal como eacute para si proacuteprio (porquanto o amigo eacute um outro ldquoeurdquo) mdash se tudo isso eacute verdadeiro assim como o seu proacuteprio ser eacute desejaacutevel para cada homem igualmente (ou quase igualmente) o eacute o de seu amigo108

A amizade tambeacutem parece manter unidos os Estados e dir-se-ia que os legisladores tecircm mais amor agrave amizade do que agrave justiccedila pois aquilo a que visam acima tudo eacute agrave unanimidade que tem pontos de semelhanccedila com a amizade e repelem o facciosismo como se fosse o seu maior inimigo E quando os homens satildeo amigos natildeo necessitam de justiccedila ao passo que os justos necessitam tambeacutem da amizade e considera-se que a mais genuiacutena forma de justiccedila eacute uma espeacutecie de amizade109

Natildeo estamos mdash eacute claro mdash a identificar ou confundir

amizade e justiccedila mas a ressaltar a confluecircncia das duas Na verdade a justiccedila eacute a principal das virtudes eacuteticas porque o oacutetimo eacute aquele que exerce a virtude natildeo soacute em relaccedilatildeo a si mesmo mas em relaccedilatildeo a outrem e aacuterdua eacute esta funccedilatildeo ldquo[] o melhor natildeo eacute o

107 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 8 1169 a 15-20 108 Idem Ibidem IX 9 1170 b 5 109 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 20-25

112 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que exerce a sua virtude para consigo mesmo mas para com um outro pois que difiacutecil tarefa eacute essardquo110 O que ocorre eacute que a amizade intensifica a justiccedila pelo que haacute uma sincronia entre elas

E as imposiccedilotildees da justiccedila tambeacutem parecem aumentar com a intensidade da amizade o que implica que a amizade e a justiccedila existem entre as mesmas pessoas e satildeo coexistensivas111

A amizade em suma natildeo tolhe mas aperfeiccediloa a justiccedila

Mais ainda ldquo[] considera-se que a mais genuiacutena forma de justiccedila eacute uma espeacutecie de amizaderdquo112 Desta sorte praticar e promover habitualmente e da melhor forma possiacutevel a sadia convivecircncia entre os homens mdash que culmina na amizade mdash pela qual descobrimos nominamos e experienciamos juntos o beneacutefico e o prejudicial eacute agir com aretḗ eacute ser virtuoso

Chega o momento de darmos novos contornos ao conceito-chave da Eacutetica o de eydaimoniacutea 28 CONTORNOS ACERCA DO CONCEITO DE EYDAIMONIacuteA

A felicidade numa primeira acepccedilatildeo consiste no exerciacutecio dos atos das virtudes numa atividade portanto Neste sentido eacute claro que sendo virtuoso o homem pode ser feliz hic et nunc Contudo a εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) mdash termo a rigor intraduziacutevel mdash fala stricto sensu do exerciacutecio de toda uma vida que inobstante eventuais vicissitudes e infortuacutenios foi habitualmente bem vivida digna de ser vivida porque se desabrochou e se desdobra como uma constante e duradoura atividade das virtudes Aliaacutes como pontuamos acima o proacuteprio termo eneacutergeia evoca uma atividade que se conserva que se manteacutem Neste sentido eacute que a eydaimoniacutea

110 Idem Ibidem V 1 1130 a 5 111 Idem Ibidem VIII 9 1160 a 5 112 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 25

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pode ser tomada como o conjunto dinacircmico de toda uma vida Aristoacuteteles diz acerca da condiccedilatildeo da eydaimoniacutea

Porque como dissemos haacute mister natildeo soacute de uma virtude completa mas tambeacutem de uma vida completa jaacute que muitas mudanccedilas ocorrem na vida e eventualidades de toda sorte o mais proacutespero pode ser viacutetima de grandes infortuacutenios na velhice como se conta de Priacuteamo no Ciclo Troiano e a quem experimentou tais vicissitudes e terminou miseravelmente ningueacutem chama feliz113

Portanto se a felicidade eacute uma atividade a vida feliz por

assim dizer eacute a vida vivida em sua completude Aliaacutes aqui reside a razatildeo uacuteltima de o termo que traduz felicidade ser exatamente εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) Na verdade em grego εὖ (eỹ) significa bom e δαίμων (daiacutemōn) natildeo diz simplesmente divindade mas tambeacutem fortuna114 De modo que εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) nomina uma ldquoboa fortunardquo Cumpre poreacutem termos presente que definir a felicidade como ldquoboa fortunardquo natildeo significa confiaacute-la ao acaso ou confundi-la com uma vida de excessos115 Significa isto sim saber que para aleacutem das virtudes tambeacutem a fortuna corrobora para nos dar as condiccedilotildees que nos permitem realizar os atos virtuosos sem os quais natildeo podemos ser ou permanecer felizes116 Neste sentido

113 Idem Ibidem I 9 1100 a 5 114 O termo εὖ [eỹ] eacute uma preposiccedilatildeo etimoloacutegica e quer dizer bem bom conveniente agradaacutevel Faz parte da maioria das composiccedilotildees terminoloacutegicas em grego (FREIRE Op Cit p 267 BAILLY εὖ [eỹ] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 369 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt CHANTRAINE ἐύς [eyacutes] In Op Cit p 246) Conjugada com o termo δαίμον (daiacutemon) que significa ldquopotecircncia divina [] deus destino [] a fortuna o acasordquo forma a palavra eydaimoniacutea (BAILLY δαίμον [daiacutemon] In Abreacutegeacute du Dictionaire Grec Franccedilais Paris Librairie Hachette 1901 p 149 Disponiacutevel em lthttphomescarletbetabulariumbaillygt CHANTRAINE δαίμον [daiacutemon] In Op Cit p 246) 115 O proacuteprio Aristoacuteteles pondera ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VII 13 1153 b 20-25 ldquoE pelo fato de necessitarmos da fortuna [τύχης] como de outras coisas alguns identificam a boa fortuna [εὺτυχία] com a felicidade [εὺδαίμονιᾳ] mas sucede que a proacutepria boa fortuna quando em excesso eacute um obstaacuteculo e talvez jaacute natildeo mereccedila o nome de boa fortuna [εὺτυχίαν] pois que o seu limite eacute fixado com referecircncia agrave felicidade [εὺδαίμονιαν]rdquo 116 Idem Ibidem I 10 1101 a 15-20 ldquoEm verdade o futuro nos eacute impenetraacutevel enquanto a felicidade afirmamos noacutes eacute um fim e algo de final a todos os respeitos Sendo assim chamaremos felizes

114 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino talvez seja mais correto entender o daiacutemon de eydaimoniacutea na acepccedilatildeo socraacutetica soacute que em vez de identificar este daiacutemon com uma espeacutecie de ldquoanjo da guardardquo como parece fazer Platatildeo melhor seraacute identificaacute-lo com a froacutenēsis aristoteacutelica que a todo momento parece ldquoconspirarrdquo com as condiccedilotildees exteriores mdash dadas pela fortuna mdash a fim de que tudo concorra para o bem do froacutenimos (φρόνιμος) ldquo[] sem virtude [ἀρετῆςaretēs] natildeo eacute faacutecil carregar com elegacircncia os bens da fortuna [εὐτυχήματαeytykhḗmata]rdquo117 Nas passagens que se seguem na primeira Fermani coleta as principais interpretaccedilotildees semacircnticas de daiacutemon e eydaimoniacutea tentando sintetizaacute-las na segunda Reeve arrazoa qual delas parece estar mais proacutexima de Aristoacuteteles

Entatildeo podemos dizer que o daiacutemon pode ser visto de dois modos 1) como aquele que atribui um destino que estabelece uma sorte 2) como o proacuteprio destino ou seja simultaneamente como o guia do ser humano e como o proacuteprio ser humano no maacuteximo de suas pontecialidades (visto que ldquoa funccedilatildeo daiacutemon eacute ser o portador da divindade potencial do homemrdquo) ldquoEacutethos anthroacutepoi daiacutemonrdquo ldquoa iacutendole eacute o daiacutemon iacutentimo do homemrdquo escreveu Heraacuteclito []rdquo Nesse sentido somente o homem que cultivou seu daiacutemon tem a possibilidade de atingir a eudaimoniacutea isto eacute de encontrar a proacutepria plenitude a realizaccedilatildeo de seu proacuteprio teacutelos Em outras palavras na eudaimoniacutea a vida se reencontrou o daiacutemon identificou a sua morada o homem finalmente estaacute em sua proacutepria casa118

Etimologicamente a palavra eudaimoniacutea significa ter um bom (eu) espiacuterito (daimocircn) um anjo da guarda poderiacuteamos dizer Assim Soacutecrates usa o termo to daimonion para se referir agrave voz ou sinal que o continha se ele estivesse prestes a fazer algo natildeo

agravequeles dentre os seres humanos vivos em que essas condiccedilotildees [condiccedilotildees exteriores] se realizem ou estejam destinadas a realizar-se mdash mas homens felizesrdquo Idem Ibidem X 7 1177 b 20-25 ldquo[] segue-se que essa seraacute a felicidade completa do homem se ele tiver uma existecircncia completa quanto agrave duraccedilatildeo []rdquo 117 Idem Ibidem IV 3 1124 a 30 118 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 44

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aconselhaacutevel (Platatildeo Apologia 40a) Aleacutem disso essa voz ou sinal eacute claramente distinto de sua proacutepria razatildeo ou consciecircncia uma vez que lhe daacute conselhos de natureza profeacutetica natildeo prudencial [] Aristoacuteteles tambeacutem localiza o entendimento divino na cabeccedila e faz a analogia das raiacutezes de uma planta com a cabeccedila de um animal de modo que a proacutepria planta torna-se um animal de cabeccedila para baixo [] Mas nosso entendimento ainda que divino em origem e amado pelos deuses natildeo eacute profeacutetico embora possa nos ajudar a planejar o futuro []119

De modo que a rigor soacute no final da vida o homem vai

poder dizer mdash com certeza e propriedade mdash que eacute eydaiacutemōn (εὐδαίμων)

Mas eacute preciso ajuntar ldquonuma vida completardquo Porquanto uma andorinha natildeo faz veratildeo nem um dia tampouco e da mesma forma um dia ou um breve espaccedilo de tempo natildeo faz um homem feliz e venturoso120

Vegetti referindo-se agrave passagem na qual Aristoacuteteles afirma

que nem uma andorinha nem um dia fazem veratildeo adota esta acepccedilatildeo de eydaimoniacutea como uma vida tomada em sua inteireza

Pode-se falar de felicidade diz Aristoacuteteles somente se ela natildeo eacute condiccedilatildeo esporaacutedica mas ocupa todo o arco de uma vida mesmo se natildeo eacute necessaacuterio esperar a morte []121

Neste mesmo sentido Enrico Berti ao falar da felicidade

eacutetica em Aristoacuteteles a define distinguindo-a da ldquofelicidade sobrenaturalrdquo mdash como a das religiotildees monoteiacutestas mdash e da ldquofelicidade hedonistardquo e fugaz como as atuais ldquoA felicidade eacute uma caracteriacutestica da vida humana isto eacute da vida vivida neste mundo

119 REEVE Op Cit pp 261-262 120 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 7 1098 a 15 121 VEGETTI Op Cit p 213

116 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino com alma e corpo e da vida toda isto eacute natildeo soacute de uma de suas fasesrdquo122

Importa observarmos ainda que a felicidade natildeo consiste numa vida isenta de intempeacuteries Antes Aristoacuteteles adverte que a vida virtuosa requer lutas reclama persistecircncia e perseveranccedila ldquoPensa-se que a vida feliz eacute virtuosa Ora uma vida virtuosa exige esforccedilo e natildeo consiste em divertimentordquo 123 Haacute passagens inclusive em que o Estagirita assevera que se bem recebidos os reveses podem calibrar o nosso caraacuteter moldaacute-lo os infortuacutenios quando acolhidos da forma devida talham a nossa vida melhor dispondo-a para as virtudes Os incidentes natildeo interrompem ao contraacuterio cifram a nossa felicidade

Se as atividades satildeo como dissemos o que daacute caraacuteter agrave vida nenhum homem feliz pode tornar-se desgraccedilado porquanto jamais praticaraacute atos odiosos e vis Com efeito o homem verdadeiramente bom e saacutebio suporta com dignidade pensamos noacutes todas as contingecircncias da vida e sempre tira o maior proveito das circunstacircncias como um general que faz o melhor uso possiacutevel do exeacutercito sob o seu comando ou um bom sapateiro faz os melhores calccedilados com o couro que lhe datildeo e do mesmo modo com todos os outros artiacutefices E se assim eacute o homem feliz nunca pode tornar-se desgraccedilado []124

E tampouco seraacute ele versaacutetil e mutaacutevel pois nem se deixaraacute desviar facilmente do seu venturoso estado por quaisquer desventuras comuns mas somente por muitas e grandes []125

Todavia natildeo se pode deixar de notar como se vecirc pela

desdita de Priacuteamo que embora a felicidade comporte tambeacutem desalentos podem ocorrer desventuras tatildeo intensas que tornem

122 BERTI No princiacutepio era a maravilha ndash As grandes questotildees da filosofia antiga p 288 123 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 7 1177 a Idem Ibidem X 6 1176 b 25 ldquoA felicidade natildeo reside por conseguinte na recreaccedilatildeo []rdquo 124 Idem Ibidem I 10 1100 b 30-35 a 1101 a 5 125 Idem Ibidem I 10 1101 a 10

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impossiacuteveis as condiccedilotildees necessaacuterias para que ela aconteccedila inclusive no acircmbito teoacuterico Na verdade eacute por reconhecer as disposiccedilotildees da natureza humana na sua integridade que Aristoacuteteles admite a necessidade de uma seacuterie de bens exteriores natildeo em excesso mas em boa dosagem para se alcanccedilar a felicidade Em outros termos eacute por isso como antes jaacute observamos que o Estagirita insiste no papel da fortuna para a consecuccedilatildeo da felicidade

Mas o homem feliz como homem que eacute tambeacutem necessita de prosperidade exterior porquanto a nossa natureza natildeo basta a si mesma para os fins da contemplaccedilatildeo nosso corpo tambeacutem precisa gozar de sauacutede de ser alimentado e cuidado Natildeo se pense todavia que o homem para ser feliz necessite de muitas ou de grandes coisas soacute porque natildeo pode ser supremamente feliz sem bens exteriores A auto-suficiecircncia e a accedilatildeo natildeo implicam excesso e podemos praticar atos nobres sem sermos donos da terra e do mar126

[] e haacute coisas cuja ausecircncia empana a felicidade como a nobreza de nascimento uma boa descendecircncia a beleza Com efeito o homem de muito feia aparecircncia ou mal-nascido ou solitaacuterio e sem filhos natildeo tem muitas probabilidades de ser feliz e talvez tivesse menos ainda se seus filhos ou amigos fossem visceralmente maus e se a morte lhe houvesse roubado bons filhos ou bons amigos127

Tambeacutem Vegetti ao se deparar com as passagens acima

citadas aponta para o importante papel da fortuna para a persecuccedilatildeo da felicidade

Poreacutem eacute certo que a felicidade precisa de alguma dose de boa sorte e como precisa de condiccedilotildees e bens externos em razatildeo da sua dimensatildeo intrinsecamente puacuteblica ativa e temporal128

126 Idem Ibidem X 8 1178 b 30-35 - 1179 a 127 Idem Ibidem I 8 1009 b 5 128 VEGETTI Op Cit p 214

118 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Natildeo nos podemos esquecer ademais da complexa relaccedilatildeo entre hedonḗ e eydaimoniacutea em Aristoacuteteles Na Academia de Platatildeo da qual Aristoacuteteles fez parte durante vinte anos aconteceu um debate acalorado sobre o prazer Houve quem o defendesse irrestritamente e quem o rejeitasse sem mais Aristoacuteteles matiza o tema Para ele o prazer segue a atualizaccedilatildeo de uma tendecircncia da nossa natureza seja ela qual for129 Ora quando esta atualizaccedilatildeo eacute feita consoante uma escolha prudente ela eacute boa quando natildeo eacute ruim Haacute mesmo aqueles prazeres que satildeo neutros130 De maneira que o prazer quando congecircnere aos atos de virtude natildeo soacute natildeo os impede como os aperfeiccediloa e intensifica131 Entre estes prazeres tambeacutem os corporais natildeo devem ser rechaccedilados Debalde tentam argumentar os que defendem que o prazer corporal eacute um mal Basta pensar nas dores que se opotildeem aos prazeres do corpo Satildeo estas maacutes Se sim o contraacuterio delas a saber o prazer eacute bom porque o contraacuterio do mau eacute o bom132 Por isso malgrado haja prazeres nocivos quem afirma que um homem pode ser feliz mesmo em meio a dores atrozes natildeo sabe o que diz

129 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 4 1174 b 30 ldquoNa medida pois em que tanto o objeto inteligiacutevel ou sensiacutevel como a faculdade discriminadora ou contemplativa forem tais como conveacutem a atividade seraacute acompanhada de prazer [ἡδονή] []rdquo 130 Idem Ibidem X 5 1175 b 20-30 ldquoOra assim como as atividades diferem com respeito agrave bondade ou maldade e umas satildeo dignas de escolha outras devem ser evitadas e outras ainda satildeo neutras o mesmo sucede com os prazeres [ἡδοναί] pois cada atividade tem o seu prazer [ἡδονή] proacuteprio O prazer proacuteprio a uma atividade digna eacute bom e o prazer proacuteprio a uma atividade indigna eacute mau []rdquo 131 Idem Ibidem VII 12 1153 a 20 ldquoNem a sabedoria praacutetica [φρονήσει] nem qualquer estado do ser eacute impedido pelo prazer [ἡδονή] que ele proporciona Satildeo os prazeres estranhos que tecircm um efeito impeditivo visto que os prazeres advindos do pensar e do aprender nos fazem pensar e aprender ainda maisrdquo Idem Ibidem X 5 1175 a 35 ldquoE assim os prazeres [ἡδοναί] intensificam as atividades e o que intensifica uma coisa lhe eacute congecircnere mas coisas diferentes em espeacutecie tecircm propriedades diferentes em espeacuteciesrdquo 132 Idem Ibidem VII 14 1154 a 5-10 ldquoCom respeito aos prazeres corporais os que dizem que alguns prazeres satildeo muito dignos de escolha a saber os nobres poreacutem natildeo os corporais isto eacute aqueles a que se dedica o homem intemperante devem examinar por que nesse caso as dores contraacuterias satildeo maacutes Porquanto o contraacuterio do mau eacute bomrdquo

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Os que dizem que o homem torturado no cavalete ou aquele que sofre grandes infortuacutenios eacute feliz se for bom estatildeo disparatando [οὐθὲν λέγουσιν] quer falem a seacuterio quer natildeo133

Agreguemos outro elemento essencial agrave felicidade humana

em Aristoacuteteles Trata-se do que noacutes modernos chamamos ldquoconsciecircnciardquo (conscientia) Aristoacuteteles usa o termo aiacutesthēsis (αἴσθησις) que numa primeira acepccedilatildeo significa sensaccedilatildeo percepccedilatildeo Poreacutem pelo contexto natildeo haacute como natildeo notar certa proximidade com o termo latino conscientia De toda forma para Aristoacuteteles a felicidade consuma-se quando o homem tem a percepccedilatildeo ou toma ldquoconsciecircnciardquo de que age com correccedilatildeo de que eacute bom ldquoOra jaacute vimos que o seu ser eacute desejaacutevel porque ele percebe a sua proacutepria bondade e uma tal percepccedilatildeo eacute agradaacutevel em si mesmardquo134 Tal movimento integra-o tornando-o por assim dizer amigo de si mesmo Natildeo pode haver homem feliz sem uma ldquoconsciecircnciardquo conciliada ou reconciliada com as suas proacuteprias escolhas A busca desta integraccedilatildeo eacute pois uma exortaccedilatildeo aristoteacutelica repisada por seus comentadores Algumas passagens satildeo emblemaacuteticas As duas primeiras citadas abaixo satildeo da Eacutetica na seguinte Reeve mostra que a eydaimoniacutea envolve o homem todo natildeo podendo ocorrer por exemplo se houver o reato da consciecircncia

133 Idem Ibidem VII 13 1153 b 15-20 Tatildeo conatural o prazer eacute agrave natureza humana que Aristoacuteteles chega a dizer que algueacutem se ameaccedilado a ser submetido a uma dor tenaz e atrozmente desumana pratica uma accedilatildeo que natildeo deveria para natildeo a sofrer embora natildeo seja digno de louvor eacute digno de indulgecircncia Eacutetica a Nicoacutemaco Trad Mariacutea Arauacutejo y Juliaacuten Mariacuteas Madrid Instituto de Estudios Politicos 1970 (Ed Biliacutengue) III 1 1110 a 25 ldquoEn algunos casos si bien no se tributan alabalizas se tiene indulgencia cuando uno hace lo que no debe sometido a una presioacuten que rebasa la naturaleza humana y que nadie podria soportarrdquo ldquoEm alguns casos se bem que natildeo se tributem louvores tem-se indulgecircncia quando algueacutem faz o que natildeo deve submetido a uma pressatildeo que ultrapassa a natureza humana e que ningueacutem poderia suportarrdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 134 Idem Ibidem IX 9 1170 b 5-10 Alhures Aristoacuteteles vale-se dos termos syacutenesis [σύνεσις] e syneiacutedesis [συνείδεσις]

120 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

[] devemos envidar todos os esforccedilos para evitar a maldade e procurar ser bons porque soacute assim podemos ser amigos de noacutes mesmos e dos outros135

Portanto o homem bom deve ser amigo de si mesmo (pois ele proacuteprio lucraraacute com a praacutetica de atos nobres ao mesmo tempo que beneficiaraacute os seus semelhantes) []136

Em alguns aspectos portanto a eudaimonia aristoteacutelica poderia ser mais bem traduzida como ldquobem-estarrdquo ou ldquoprosperidaderdquo mdash embora pareccedila estranho se preocupar em esperar ateacute que a pessoa morra para poder dizer se ela era proacutespera Uma vantagem de usar ldquofelicidaderdquo em vez dessas alternativas de qualquer modo eacute precisamente que ela ressalta a importacircncia de um estado emocional favoraacutevel mdash de endosso e envolvimento mdash para a vida eudacircimon O necessaacuterio aleacutem disso eacute que aquilo que evoca esse estado emocional seja o melhor bem para um ser humano mdash um viver ativo de acordo com a virtude em que o estado seja realizado e expresso137

Fermani afinal conclui que desde a sua semacircntica o

termo eydaimoniacutea justamente porque implica integraccedilatildeo designa stricto sensu uma experiecircncia que ata a vida toda

[] Assim em toda eudaimoniacutea se desvela o percurso originaacuterio que toda existecircncia empreende para se unir a si mesma o sentido daquele complexo e cansativo itineraacuterio que todo ser humano deve percorrer na direccedilatildeo da conquista plena de si da realizaccedilatildeo de seu proacuteprio daiacutemon ou seja literalmente da proacutepria eu-daiacutemonia O que parece remeter a outro aspecto fundamental da eudaimoniacutea aquele da duraccedilatildeo da estabilidade da permanecircncia todas caracteriacutesticas que faltam agraves outras palavras com as quais os gregos denominaram a felicidade Um indiviacuteduo pode ser oacutelbios e eutykheacutes por breves momentos mas eacute eudaiacutemon por

135 Idem Ibidem IX 4 1166 b 25 136 Idem Ibidem IX 8 1169 a 10 137 REEVE Op Cit p 264

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toda a vida como emerge da tradiccedilatildeo filosoacutefica e literaacuteria ateacute o final do seacuteculo V a C138

Como pudemos observar jaacute nas citaccedilotildees acima este tornar-

se amigo de si mesmo leva-nos agravequele ciacuterculo virtuoso segundo o qual o homem feliz porque amigo de si mesmo consegue temperar todas as suas accedilotildees de sorte que passa a ser beneacutefico e natildeo prejudicial aos outros Em uma palavra o homem que vive virtuosamente na poacutelis eacute aquele que sabe governar politicamente antes de mais os seus proacuteprios apetites segundo o dito da Poliacutetica ldquoA alma governa o corpo com autoridade de senhor enquanto a inteligecircncia exerce uma autoridade poliacutetica ou reacutegia sobre o apetiterdquo139 Esta eacute a felicidade eacutetica que Aristoacuteteles prevecirc ela eacute deveras inferior agrave especulativa mas nem por isso deixa de ser uma forma de eydaimoniacutea aliaacutes eacute a eydaimoniacutea propriamente humana

Mas em grau secundaacuterio [δευτέρωςdeuteacuterōs] a vida de acordo com a outra espeacutecie de virtude eacute feliz porque as atividades que concordam com esta condizem com a nossa condiccedilatildeo humana [ἀνθρωπικαίanthrōpikaiacute]140

Outrossim Aristoacuteteles apresenta a felicidade como uma

realidade fundamentalmente polimorfa Os que tecircm temperamento especulativo seratildeo felizes especulando aqueles cujos humores convidam agrave vivecircncia eacutetica devem persegui-la ldquo[] e para cada homem a atividade [ἐνέργεια] que concorda com a sua disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξις] eacute a mais desejaacutevel []rdquo141 E na verdade por mais

138 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 45 139 ARISOacuteTELES Poliacutetica I 5 1254 b 5 140 Idem Eacutetica a Nicocircmaco X 8 1178 a 5-10 141 Idem Ibidem X 6 1176 b 25 Para uma discussatildeo sobre os diversos tipos de felicidade em Aristoacuteteles vide o artigo de Fermani muito bem embasado por uma farta documentaccedilatildeo das fontes e dos comentadores contemporacircneos mais abalizados FERMANI Arianna Aristoacuteteles e a felicidade Flexibilidade e versatilidade existencial In MIGLIORI Maurizio FERMANI Arianna [Orgs] Platatildeo

122 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que a vida especulativa seja εὐδαιμονέστατος [eydaimoneacutestatos] para aquele que natildeo eacute chamado agrave especulaccedilatildeo a menos que queira negar a si mesmo o que natildeo eacute proacuteprio do virtuoso deve escolher outro caminho para ser eydaiacutemon

Porquanto a existecircncia eacute boa [ἀγαθόν] para o homem virtuoso [σπουδαίῳ] e cada um deseja para si o que eacute bom ao passo que ningueacutem desejaria possuir o mundo inteiro se para tanto lhe fosse preciso tornar-se uma outra pessoa [] Tal homem soacute deseja essas coisas com a condiccedilatildeo de continuar sendo o que eacute142

A eacutetica do Estagirita noacutes a enxergamos como a ciecircncia que

nos ensina ldquoa arte de viverrdquo melhor visualizamo-la como a ciecircncia que estuda a ldquoarte de saber viver bemrdquo de bem viver Berti vecirc a felicidade mdash coroa da eacutetica em Aristoacuteteles mdash ldquo[] como uma plenitude (fulfilment) plena realizaccedilatildeo de si lsquoflorescimento de todas as capacidades humanasrsquo vida florescenterdquo143

Procuremos agora entender mais de perto a forma de racionalidade da eacutetica de Aristoacuteteles

e Aristoacuteteles Dialeacutetica e loacutegica Trad Ivone C Benedetti Rev Sandra Garcia Custoacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2012 pp 126-171 142 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 4 1166 a 15-20 143 BERTI Aristoacuteteles no seacuteculo XX p 275 NATALI Carlo Aristoacuteteles Trad Maria da Graccedila Gomes de Pina Rev Tarsila Donaacute Iranildo Bezerra Lopes e Leidson de Farias Barros Satildeo Paulo Paulus 2016 pp 277-278 ldquoAristoacuteteles entende por lsquofelicidadersquo uma condiccedilatildeo objetiva do homem (I 6) Essa natildeo consiste num estado de intensa alegria autoconsciente e prolongado por toda a existecircncia mas num estado de lsquoautorrealizaccedilatildeorsquo como na expressatildeo lsquouma vida realizadarsquo Com isso queremos dizer agir de modo oportuno sair-se bem na proacutepria atividade especiacutefica Portanto a felicidade eacute um modo de estar em atividade e as suas componentes satildeo as accedilotildees humanas lsquosegundo a virtudersquordquo

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29 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA CIEcircNCIA EacuteTICA 291 FROacuteNĒSIS E EPISTḖMĒ

Antes de mais parece-nos necessaacuterio precisar o entorno no qual Aristoacuteteles pensa a sua filosofia praacutetica Para tanto importa observarmos que o Estagirita no livro VI da Eacutetica afirma que a alma possui por assim dizer duas partes ldquo[] a que concebe uma regra ou princiacutepio racional e a privada de razatildeordquo144 Em seguida subdivide a parte racional em teoacuterica e praacutetica ou seja ldquo[] uma pela qual contemplamos as coisas cujas causas determinantes satildeo invariaacuteveis e outra pela qual contemplamos as coisas variaacuteveisrdquo145 A parte da razatildeo teoacuterica possui trecircs haacutebitos a saber o noỹs (νοῦς) haacutebito (heacutexis) dos princiacutepios conhecidos intuitivamente 146 a epistḗmē (ἐπιστήμη) ou ciecircncia que eacute o haacutebito do raciociacutenio ou de silogizar (trata-se portanto do haacutebito demonstrativo 147) e a ldquosofiacuteardquo (σοφία) a qual eacute a aretḗ da razatildeo teoacuterica que consiste na conjugaccedilatildeo de conhecimento cientiacutefico com conhecimento intuitivo A sofiacutea resulta pois da combinaccedilatildeo de epistḗmē com noỹs

De quanto se disse resulta claramente que a sabedoria filosoacutefica eacute um conhecimento cientiacutefico combinado com a razatildeo intuitiva daquelas coisas que satildeo as mais elevadas por natureza Por isso dizemos que Anaxaacutegoras Tales e os homens semelhantes a eles possuem sabedoria filosoacutefica mas natildeo praacutetica quando os vemos ignorar o que lhes eacute vantajoso []148

144 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VI 1 1139 a 5 145 Idem Ibidem 146 Idem Ibidem VI 6 1141a 5 ldquo[] soacute resta uma alternativa que seja a razatildeo intuitiva que apreende os primeiros princiacutepiosrdquo 147 Idem Ibidem VI 3 1139 b 30-35 ldquoEm suma o conhecimento cientiacutefico eacute um estado que nos torna capazes de demonstrar []rdquo 148 Idem Ibidem VI 7 1141 b 1-5

124 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Na razatildeo praacutetica haacute a froacutenēsis (φρόησις) mdash aretḗ desta ordem mdash sabedoria praacutetica que consiste no haacutebito de bem deliberar acerca das coisas humanas (tagrave anthrṓpina) isto eacute de deliberar segundo o que eacute razoaacutevel para o bem viver em geral149 e a teacutekhnē (τέχνη) que eacute o haacutebito de produzir150 Como grande exemplo de um homem dotado de froacutenēsis Aristoacuteteles cita Peacutericles Foi Peacutericles um filoacutesofo Decerto que natildeo Poreacutem era dotado de prudecircncia poliacutetica porquanto tomava as decisotildees corretas151 Disso decorre que a filosofia praacutetica natildeo eacute a froacutenēsis mas uma forma de epistḗmē inscrita na pratildexis cuja consecuccedilatildeo se daacute pelo estabelecimento a partir dos fatos humanos dos princiacutepios praacuteticos e o raciociacutenio a partir deles Afirma Aristoacuteteles ldquoQue a sabedoria praacutetica [froacutenēsis] natildeo se identifica com o conhecimento cientiacutefico [epistḗmē] eacute evidente []rdquo152

A froacutenēsis enfim natildeo pode ser ciecircncia mdash ratificamos mdash porque ela versa sobre os meios tendo um conhecimento apenas

149 Idem Ibidem VI 7 1141 b 5-10 ldquoA sabedoria praacutetica [froacutenēsis] pelo contraacuterio versa sobre coisas humanas [τὰ ἀνθρώπιναtagrave anthrṓpina] e coisas que podem ser objeto de deliberaccedilatildeo pois dizemos que essa eacute acima de tudo a obra do homem dotado de sabedoria praacutetica deliberar bemrdquo Idem Ibidem VI 5 1140 a 25 ldquoOra julga-se que eacute cunho caracteriacutestico de um homem dotado de sabedoria praacutetica o poder deliberar bem sobre o que eacute bom e conveniente para ele natildeo sob um aspecto particular [] mas sobre aquelas coisas que contribuem para a vida boa em geralrdquo Aristoacuteteles chega a distinguir formas de froacutenēsis Ela pode ser exercida por exemplo no acircmbito poliacutetico por meio da correccedilatildeo das leis e dos decretos no acircmbito domeacutestico e no acircmbito pessoal A froacutenēsis pode consistir entatildeo no bom governo da cidade da casa e de si mesmo Idem Ibidem VI 8 1141 b 20-30 ldquoA sabedoria poliacutetica e a praacutetica satildeo a mesma disposiccedilatildeo mental mas sua essecircncia natildeo eacute a mesma Da sabedoria que diz respeito agrave cidade a sabedoria praacutetica que desempenha um papel controlador eacute a sabedoria legislativa enquanto a que se relaciona com os assuntos da cidade como particulares dentro do seu universal eacute conhecida pela denominaccedilatildeo geral de lsquosabedoria poliacuteticarsquo e se ocupa com a accedilatildeo e a deliberaccedilatildeo pois um decreto eacute algo a ser executado sob a forma de um ato individual [] A sabedoria praacutetica tambeacutem eacute identificada especialmente com aquela de suas formas que diz respeito ao proacuteprio homem ao indiviacuteduo e essa eacute conhecida pela denominaccedilatildeo geral de lsquosabedoria praacuteticarsquo Das outras espeacutecies uma eacute chamada administraccedilatildeo domeacutestica []rdquo 150 Idem Ibidem VI 4 1140 a 30 ldquoLogo como jaacute dissemos a arte eacute uma disposiccedilatildeo que se ocupa de produzir envolvendo o reto raciociacuteniordquo 151 Idem Ibidem VI 5 1140 b 10 ldquoDaiacute atribuirmos sabedoria praacutetica a Peacutericles e homens como ele porque percebem o que eacute bom para si mesmos e para os homens em geral pensamos que os homens dotados de tal capacidade satildeo bons administradores de casas e de Estadosrdquo 152 Idem Ibidem VI 9 1142 a 20

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espontacircneo do fim 153 Jaacute a epistḗmē politikḗ que Aristoacuteteles pretende fundar busca refletir sobre o teacutelos da vida eacutetica a saber a eydaimoniacutea Uma prova do que dissemos eacute que o Estagirita discrimina a peculiaridade desta ciecircncia Diferentemente da medicina onde o meacutedico que pratica eacute tambeacutem aquele que ensina a ēthikḗ pode ser ensinada por quem natildeo a vive Eacute o caso justamente dos sofistas Mas mesmo os sofistas natildeo a ensinam com retidatildeo pois a confundem com a retoacuterica ou com algo inferior Duas passagens exemplificam esta preocupaccedilatildeo de Aristoacuteteles

Ou haveraacute uma diferenccedila manifesta entre a estadiacutestica [πολιτικῆς] e as outras ciecircncias e artes Nas outras vemos que as mesmas pessoas as praticam e se oferecem para ensinaacute-las como por exemplo os meacutedicos e os pintores Mas enquanto os sofistas pretendem ensinar poliacutetica natildeo satildeo eles que a praticam e sim os poliacuteticos que parecem fazecirc-lo graccedilas a uma espeacutecie de habilidade ou experiecircncia [ἐμπειρίᾳ] e natildeo pelo raciociacutenio [διανοίᾳ]154

Mas aqueles sofistas que professam a arte parecem estar muito longe de ensinaacute-la Com efeito para exprimir-nos em termos gerais esses homens nem sequer sabem que espeacutecie de coisa ela eacute nem sobre o que versa De outro modo natildeo a teriam classificado como idecircntica agrave retoacuterica ou mesmo inferior a esta nem julgariam faacutecil legislar mediante uma compilaccedilatildeo das leis mais bem reputadas155

Pelas passagens acima citadas fica claro que Aristoacuteteles

reconhece que um eacute o poliacutetico (πολιτικόςpolitikoacutes) ou o prudente (φρόνιμοςfroacutenimos) e outro eacute o que reflete com detenccedila sobre a eacutetica Um diriacuteamos hoje eacute o homem eacutetico outro por exemplo eacute o

153 Idem Ibidem VI 12 1144 a 5-10 ldquoPor outro lado a obra de um homem soacute eacute perfeita quando estaacute de acordo com a sabedoria praacutetica [φρόνεσιν] e com a virtude moral [ὴθικὴν ἀρετὴν] esta faz com que seja reto o nosso propoacutesito [σκοπὸν] aquela [φρόνησις] com que escolhamos os devidos meiosrdquo 154 Idem Ibidem X 9 1180 b 30-35 a 1181 a 155 Idem Ibidem X 9 1181 a 1-15

126 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ldquoprofessor de eacuteticardquo Infelizmente as duas coisas natildeo satildeo idecircnticas e a ciecircncia pode existir sem a praacutetica Seja como for Aristoacuteteles natildeo concorda com o modo de proceder dos sofistas que acabam por negar agrave eacutetica o status de ciecircncia Em razatildeo disso o Estagirita opta por tomar um caminho proacuteprio na construccedilatildeo de uma epistḗmē politikḗ A Eacutetica a Nicocircmaco eacute apenas o primeiro passo neste caminho pois ela se encerra com um convite agrave poliacutetica [politikḗ]

Ora os nossos antecessores nos legaram sem exame este assunto da legislaccedilatildeo Por isso talvez convenha estudaacute-lo noacutes mesmos assim como a questatildeo da constituiccedilatildeo em geral a fim de completar da melhor maneira possiacutevel a nossa filosofia da natureza humana [ἀνθρώπεια φιλοσοφία] Em primeiro lugar pois se alguma coisa foi bem exposta em detalhe pelos pensadores que nos antecederam passemo-la em revista depois agrave luz das constituiccedilotildees que noacutes mesmos coligimos examinaremos que espeacutecies de influecircncias preservam e destroem os Estados que outras tecircm os mesmos efeitos sobre os tipos particulares de constituiccedilatildeo e a que causas [αἰτίας] se deve o fato de serem umas bem e outras mal aplicadas Apoacutes estudar essas coisas teremos uma perspectiva mais ampla dentro da qual talvez possamos distinguir qual eacute a melhor constituiccedilatildeo como deve ser ordenada cada uma e que leis e costumes lhe conveacutem utilizar a fim de ser a melhor possiacutevel156

Natildeo haacute como natildeo notar no passo acima que fecha a Eacutetica a

Nicocircmaco uma espeacutecie de ldquodiscurso do meacutetodordquo acerca do que o proacuteprio filoacutesofo denomina filosofia humana (ἀνθρώπεια φιλοσοφίαanthrṓpeia filosofiacutea) Mas pensemos a que Aristoacuteteles chama epistḗmē Talvez seja oportuno acompanhar o Estagirita pois para ele o saber comporta niacuteveis O primeiro eacute a percepccedilatildeo sensorial aiacutesthēsis (αἴσθησις) ou sensaccedilatildeo Trata-se do conhecimento que se tem quando da presenccedila da coisa ante os nossos sentidos maacutexime o da visatildeo ldquoDe fato eles amam as sensaccedilotildees por si mesmas independentemente da sua utilidade e

156 Idem Ibidem X 9 1181 b 10-20

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amam acima de tudo a sensaccedilatildeo da visatildeordquo157 O segundo niacutevel do conhecimento eacute o da recordaccedilatildeo que se daacute pela memoacuteria quando nos lembramos do objeto mesmo ele natildeo estando mais presente ldquoPor isso estes uacuteltimos satildeo mais inteligentes e mais aptos a aprender do que aqueles que natildeo tecircm capacidade de recordar [μνήμηmnḗmē]rdquo158 O terceiro nisto se distingue do segundo a saber diz respeito natildeo a esta ou agravequela memoacuteria mas sim em se possuir um conjunto de recordaccedilotildees sobre um mesmo objeto ldquoDe fato muitas recordaccedilotildees [πολλαὶ μνῆμαιpollaigrave mnẽmai] do mesmo objeto na memoacuteria chegam a constituir uma experiecircncia [ἐμπειρίαςempeiriacuteas] uacutenicardquo 159 Um niacutevel superior de conhecimento eacute a ciecircncia (epistḗmē) e a arte (teacutekhnē) O que Aristoacuteteles diz da teacutekhnē na passagem da Metafiacutesica que ora analisamos pode aplicar-se agrave epistḗmē Por isso tambeacutem a epistḗmē se daacute quando a partir da experiecircncia da empeiriacutea construiacutemos juiacutezos que valem para todos os casos Assim acontece por exemplo com o meacutedico que pela experiecircncia ajuiacuteza-se de que certa moleacutestia deve ser sempre tratada com certo tipo de medicamento 160 Para sermos mais precisos enquanto a experiecircncia consiste num saber o ldquoquecircrdquo num conhecer o fato individual a epistḗmē consiste num saber 0 ldquoporquecircrdquo isto eacute num conhecer a causa de aquele fato ocorrer sempre ou ldquoo mais das vezesrdquo Portanto a epistḗmē daacute-se propriamente quando do

157 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 908 a In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 158 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 980 a 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 159 ARISTOacuteTELES I 1 980 b 25 Metafiacutesica In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 160 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 981 a 5 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquoCom efeito os homens adquirem ciecircncia [επιστήμηepistḗmē] e arte [τέχνηteacutekhnē] por meio da experiecircncia A arte [τέχνη] se produz quando de muitas observaccedilotildees da experiecircncia forma-se um juiacutezo geral e uacutenico passiacutevel de ser referido a todos os casos semelhantesrdquo

128 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino conhecimento da causa Afirma Aristoacuteteles ldquoOs empiacutericos conhecem o puro dado de fato mas natildeo o seu porquecirc ao contraacuterio os outros conhecem o porquecirc e a causardquo161 Ora na uacuteltima passagem da Eacutetica (citada acima) o nosso filoacutesofo diz procurar a aitiacutea (αἰτία) do bem e do mal o ldquoporquecircrdquo do justo e do injusto Logo ele procura fazer uma epistḗmē ēthikḗ Pode-se mesmo dizer que esta epistḗmē ēthikḗ eacute uma forma de sapiecircncia (σοφίαsofiacutea) Com efeito a sofiacutea se distingue das outras ciecircncias porque especula acerca das causas primeiras162 Ora a ēthikḗ ou epistḗmē politikḗ especula sobre a causa uacuteltima das coisas humanas (tagrave anthrṓpina) Por outro lado deve-se ter o cuidado de ponderar que ldquo[] uma vez [que] o homem (ἄνθρωποςaacutenthrōpοs) natildeo eacute a melhor coisa do mundordquo 163 a sofiacutea das coisas humanas (tagrave anthrṓpina) seraacute sempre uma sabedoria relativa

Mas como chegamos agrave ēthikḗ enquanto epistḗmē politikḗ 292 A EPISTḖMĒ ĒTHIKḖ ENQUANTO EPISTḖMĒ POLITIKḖ

Diziacuteamos acima que a virtude eacutetica consiste no justo meio (mesoacutetēs) entre o excesso e a falta Ora este meacutetron este loacutegos encontra-se encarnado no froacutenimos no spoydaĩos (σπουδαῖος) Destarte para Aristoacuteteles quando se quer fazer uma filosofia humana (anthroacutepeia filosofiacutea) deve-se comeccedilar olhando natildeo para Deus ou para uma Revelaccedilatildeo divina mas justamente para as coisas humanas (tagrave anthrṓpina) Seratildeo os ditos e feitos do froacutenimos o objeto de reflexatildeo desta ciecircncia Em outros termos uma ciecircncia

161 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 1 981 a 25 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II 162 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica I 2 982 b 5-10 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad Marcelo Perine Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005 v II ldquoDo que foi dito resulta que o nome do objeto de nossa investigaccedilatildeo refere-se a uma uacutenica ciecircncia esta deve especular [θεωρητικήνtheōrētikeacuten] sobre os princiacutepios primeiros [πρώτων ἀρχῶνproacutetōn arkhotilden] e as causas [αἴτιῶνaiacutetiȭn] pois o bem e o fim das coisas eacute uma causardquo 163 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VI 7 1141 a 20

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dos biacuteon praacutexeōn teraacute de principiar dos eacutendoxa (ἔνδοξα)164 vale dizer daquelas coisas que satildeo ditas por todos e vividas pelo froacutenimos importa refletir sobre elas mas natildeo soacute sobre elas senatildeo tambeacutem sobre os ditos dos filoacutesofos a fim de transformaacute-los em epistḗmē mediante uma argumentaccedilatildeo dialeacutetica165 Aristoacuteteles natildeo deixa de recorrer aos eacutendoxa pois segundo ele natildeo pode haver consenso duradouro entre teses conflitantes uma vez que soacute a verdade concorda com a verdade

Haacute quem objete a isso dizendo que o fim visado por todas as coisas natildeo eacute necessariamente bom mas podemos estar certos de que tais pessoas natildeo fazem mais do que disparatar [οὐθὲν λέγουσιν = dizer coisa sem sentido] Porquanto noacutes dizemos que aquilo que todos pensam eacute a verdade e o homem que atacar essa crenccedila natildeo teraacute outra coisa mais digna de creacutedito para sustentar em lugar dela166

Devemos consideraacute-lo no entanto natildeo soacute agrave luz da nossa consideraccedilatildeo mas tambeacutem do que a seu respeito se costuma dizer [λεγομένων] pois com uma opiniatildeo verdadeira [ἀληθεῖ] todos os dados se harmonizam mas com uma opiniatildeo falsa [ψευδεῖ] os fatos natildeo tardam a entrar em conflito [διαφωνεῖ]167

Ora jaacute que o froacutenimos eacute o ldquolaboratoacuteriordquo do filoacutesofo praacutetico

conveacutem determo-nos um momento nele Dentro desta perspectiva faz sentido a questatildeo de que modo o loacutegos eacute exercido no acircmbito da razatildeo praacutetica Como o froacutenimos estabelece o justo meio

164 Um artigo de Berti pode ser consultado com proveito para um aprofundamento acerca dos ἔνδοξα BERTI Enrico O valor epistemoloacutegico dos ἔνδοξα segundo Aristoacuteteles In BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos I Epistemologia loacutegica e dialeacutetica Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Rev Renato Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 pp 370-387 165 Acerca do uso cientiacutefico da dialeacutetica na Eacutetica de Aristoacuteteles vide o artigo de Berti acompanhado de uma bibliografia autorizada BERTI Enrico O uso cientiacutefico da dialeacutetica de Aristoacuteteles In BERTI Enrico Novos Estudos Aristoteacutelicos I Epistemologia loacutegica e dialeacutetica Trad Eacutelcio de Gusmatildeo Verccedilosa Filho Rev Renato Rocha Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2010 pp 312-330 166 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 2 1172 b 35 e 1173 [O itaacutelico eacute nosso] 167 Idem Ibidem I 8 1098 b 10 [O itaacutelico eacute nosso]

130 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino (μεσότηςmesoacutetēs) em suas accedilotildees Precisamente pelo loacutegos Mas atentemos para o fato de o loacutegos de Aristoacuteteles natildeo ser uma coisa mecacircnica Com efeito o justo meio natildeo eacute o mesmo para todos os homens Um exemplo bem simples a nutriccedilatildeo O justo meio entre o excesso e a falta de nutriccedilatildeo para um atleta certamente natildeo seraacute o mesmo que para um franzino em desenvolvimento Eacute neste sentido que a razatildeo deve intervir para ponderar sobre as diferentes circunstacircncias Outrossim natildeo nos devemos esquecer de que o justo meio eacute estabelecido em relaccedilatildeo a noacutes Dito doutra forma quanto ao objeto seis seraacute sempre o justo meio entre dez e dois pois a distacircncia entre ambos eacute quatro Mas isso eacute algo ldquoautomaacuteticordquo Nas coisas da vida certa quantidade de alimento pode ser razoaacutevel para um franzino mas natildeo para um atleta

Por meio-termo no objeto entendo aquilo que eacute equumlidistante de ambos os extremos e que eacute um soacute e o mesmo para todos os homens e por meio-termo relativamente a noacutes o que natildeo eacute nem demasiado nem demasiadamente pouco mdash e este natildeo eacute um soacute e o mesmo para todos Por exemplo se dez eacute demais e dois eacute pouco seis eacute o meio-termo considerado em funccedilatildeo do objeto porque excede e eacute excedido por uma quantidade igual esse nuacutemero eacute intermediaacuterio de acordo com uma proporccedilatildeo aritmeacutetica Mas o meio-termo relativamente a noacutes natildeo deve ser considerado assim se dez libras eacute demais para uma determinada pessoa comer e duas libras eacute demasiadamente pouco natildeo se segue daiacute que o treinador prescreveraacute seis libras porque isso tambeacutem eacute talvez demasiado para a pessoa que deve comecirc-lo ou demasiadamente pouco mdash demasiadamente pouco para Milo e demasiado para o atleta principiamente O mesmo se aplica agrave corrida e agrave luta Assim um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta buscando o meio-termo e escolhendo-o mdash o meio-termo natildeo no objeto mas relativamente a noacutes168

No uacuteltimo seacuteculo muito se questionou se Aristoacuteteles

conseguiu com esta forma de ldquopesquisa de campordquo fundamentar a

168 Idem Ibidem II 6 1106 a 25-35 ndash 1106 b 5

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eacutetica enquanto epistḗmē A ideia de que o Estagirita termina na froacutenēsis e de que esta natildeo eacute uma epistḗmē mas uma espeacutecie de sagacidade ou sensatez parece ser a interpretaccedilatildeo preponderante Os que defendem esta posiccedilatildeo frisam que olhando para o froacutenimos natildeo se pode deduzir dele nenhuma regra ou princiacutepio moral mas tatildeo somente decisotildees que dizem respeito a circunstacircncias irredutivelmente individuais 169 Natildeo eacute nossa intenccedilatildeo envolvermo-nos nesta questatildeo Importa-nos entender somente como Aristoacuteteles pretendeu demonstrar que a eacutetica eacute uma forma de epistḗmē Se esta fundamentaccedilatildeo eacute vaacutelida para outras correntes natildeo eacute da nossa alccedilada tratar aqui A bem dizer seria anacrocircnico esperar que Aristoacuteteles previsse todas as objeccedilotildees e as respondesse jaacute que a eacutetica se aperfeiccediloa com o tempo como o proacuteprio Aristoacuteteles atesta em passagem jaacute citada Tentemos uma vez mais apenas seguir o Filoacutesofo

Afirmamos acima que a eacutetica enquanto epistḗmē de certa forma fundamenta-se no froacutenimos Ora a froacutenēsis diz Aristoacuteteles eacute normativa ldquoCom efeito a prudecircncia [φρόνησις] eacute normativa [ἐπιτακτική] que se deve fazer [δεῖ πράττειν] ou natildeo tal eacute o fim [τέλος] a que se propotildee []rdquo170 De fato se ela consiste em bem deliberar (εὐβουλίαeyboyliacutea) acerca dos meios exequiacuteveis para se atingir o bem o teacutelos a eydaimoniacutea ela tambeacutem escolhe e decide (proaiacuteresis) em cada circunstacircncia o que se deve ou natildeo se deve fazer Em outros termos ela potildee diante do agente um deacuteon um

169 BRUumlLLMANN Philipp A teoria do bem na Eacutetica a Nicocircmaco de Aristoacuteteles Trad Milton Camargo Mota Rev Sandra Garcia Custoacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 p 196 ldquoEstaacute provavelmente certa a afirmaccedilatildeo de que Aristoacuteteles eacute um lsquoceacutetico sobre regrasrsquo Sua eacutetica representa uma posiccedilatildeo contraacuteria a abordagens que tentam reduzir a moral ao menor nuacutemero possiacutevel de princiacutepios e no caso ideal a um soacute princiacutepio O caso individual desempenha um papel decisivo para a avaliaccedilatildeo moral Todavia parece-me precipitado interpretar a figura do virtuoso como resposta aristoteacutelica a uma eacutetica legalistardquo Wolf atribui esta predominacircncia da questatildeo sobre a oposiccedilatildeo entre ldquoeacutetica das virtudesrdquo e ldquoeacutetica deontoloacutegicardquo em Aristoacuteteles a certo vieacutes kantiano que se misturou agrave leitura de Aristoacuteteles WOLF Op Cit p 66 ldquoNesse meio-tempo poreacutem alguns filoacutesofos da moral chegaram agrave concepccedilatildeo de que seria possiacutevel superar certas carecircncias presentes na vigente teoria moral kantiana se fossem completadas ou substituiacutedas por uma moral das virtudesrdquo 170 Idem Eacutetica a Nicoacutemaco VI 10 1143 a 5-10 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEn efecto la prudencia es normativa queacute se debe hacer o no tal es el fin que se propone []rdquo

132 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino noacutemos um kanṓn Certo isso natildeo eacute epistḗmē pois estamos diante de uma razatildeo que calcula ou delibera171 em cada circunstacircncia como se deve ou natildeo agir nesta ou naquela circunstacircncia e soacute haacute epistḗmē mdash e aqui citamos os Segundos Analiacuteticos mdash acerca do que deve ser sempre ou o mais das vezes

Com efeito todo raciociacutenio se faz mediante proposiccedilotildees necessaacuterias ou mediante proposiccedilotildees ltque se datildeogt na maior parte das vezes e se as proposiccedilotildees satildeo necessaacuterias tambeacutem o eacute a conclusatildeo se as proposiccedilotildees se datildeo na maior parte das vezes tambeacutem a conclusatildeo172

Antes de mais eacute preciso fazer a ressalva de que aquele que

quer se tornar um froacutenimos simplesmente um ldquohomem eacuteticordquo natildeo olha e natildeo precisa olhar para o froacutenimos com o fito de encontrar nele um kanṓn Antes olha para o froacutenimos a fim de aprender a bem deliberar e a descobrir por si mesmo como ser froacutenimos Com outras palavras o indiviacuteduo busca aprender como ldquo[] agir lsquocomo se ele fosse uma norma e uma medida dessas coisasrsquo []rdquo173 e isto natildeo porque natildeo haja um meacutetron objetivo mas sim porque este meacutetron eacute descoberto e assumido pelo froacutenimos enquanto passa pelo crivo da escolha (proaiacuteresis) deliberada a qual faz com que cada indiviacuteduo seja pai de suas accedilotildees como de seus filhos e ipso facto virtuoso ou vicioso Eis a passagem claacutessica a este respeito e que em parte jaacute citamos acima

171 Idem Eacutetica a Nicocircmaco VI 1 1139 a 10-15 ldquoChamemos cientiacutefica [ἐπιστημονικόν] a uma dessas partes e calculativa [λογιστικόν] agrave outra pois o mesmo satildeo deliberar [βουλεύσθαι] e calcular [λογίζεσθαι] mas ningueacutem delibera sobre o invariaacutevel Por conseguinte a calculativa eacute uma parte da faculdade que concebe um princiacutepio racionalrdquo 172 ARISTOacuteTELES Analiacuteticos Segundos I 87 b 20-25 In ______ Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) Trad Miguel Candel Sanmartiacuten Rev Quintiacuten Racionero Madrid Editorial Gredos 1995 v II p 384 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEn efecto todo razonamiento se hace mediante proposiciones necesarias o mediante proposiciones ltque se dangt la mayor parte de las veces y si las proposiciones son necesarias tambieacuten lo es la conclusioacuten si las proposiciones se dan la mayor parte de las veces tambieacuten la conclusioacutenrdquo 173 BRUumlLLMANN Op Cit p 192

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A virtude [ἀρετή] eacute pois uma disposiccedilatildeo de caraacuteter [ἕξις] relacionada com a escolha [προαιρετική] e consiste numa mediania [μεσότετι] isto eacute a mediania relativa a noacutes a qual eacute determinada por um princiacutepio racional [λόγῳ] proacuteprio do homem dotado de sabedoria praacutetica [πρόνιμος]174

O que ocorre poreacutem eacute que a ēthikḗ pode ser tambeacutem

tomada como uma epistḗmē Ora agravequele que a procura sob esta consideraccedilatildeo cumpre pesquisar com maior minudecircncia as constantes presentes nas accedilotildees deliberadas do froacutenimos ou seja alguns atos que habitualmente se apresentam como virtuosos e outros que geralmente se apresentam como viciosos Como deve ele proceder para perceber estas ldquoreincidecircnciasrdquo Aristoacuteteles assinala que a eacutetica mdash enquanto ciecircncia mdash deve partir dos fatos passar pelo poacutelemos do diaacutelogos a fim de por meio dele estabelecer a razoabilidade dos eacutendoxa (ἔνδοξα) que nada mais satildeo do que as opiniotildees comuns acerca do que concerne agrave vida humana e que existem por assim dizer em ldquocarne e ossordquo no froacutenimos refutando (ἔλεγχοςeacutelegkhos) as objeccedilotildees (ἀπορίαιaporiacuteai) que se levantam contra eles (eacutendoxa) Citemos um exemplo do proacuteprio Aristoacuteteles ldquoAs carnes leves satildeo saudaacuteveisrdquo ldquoa carne das aves eacute leverdquo ldquologo a carne das aves eacute saudaacutevelrdquo A premissa maior deste silogismo praacutetico eacute ldquoAs carnes leves satildeo saudaacuteveisrdquo A menor ldquoAs carnes das aves satildeo levesrdquo E a conclusatildeo do que se deve fazer eacute ldquoAs carnes das aves satildeo saudaacuteveisrdquo e por conseguinte devem ser preferidas 175 Transpondo-nos para o plano da eacutetica podemos ponderar Para o

174 Idem Ibidem II 6 1106 b 35-1107 a Eacute por isso que se Aristoacuteteles atribui ao ensino o aprendizado da virtude intelectual eacute ao haacutebito que ele atribui a aquisiccedilatildeo da virtude moral Idem Ibidem II 1 11093 a 15 ldquoSendo pois de duas espeacutecies a virtude intelectual e moral a primeira por via de regra gera-se e cresce graccedilas ao ensino mdash por isso requer experiecircncia e tempo enquanto a virtude moral eacute adquirida em resultado do haacutebito []rdquo Em outras palavras quando se trata de eacutetica para Aristoacuteteles aprende-se fazendo praticando Idem Ibidem II 1 1103 a 30 ldquoCom efeito as coisas que temos de aprender antes de poder fazecirc-las aprendemo-las fazendo []rdquo 175 Idem Ibidem VI 7 1141 b15-20 ldquo[] porque se um homem soubesse que as carnes leves satildeo digestiacuteveis e saudaacuteveis mas ignorasse que espeacutecies de carnes satildeo leves esse homem natildeo seria capaz de produzir a sauacutede poderia pelo contraacuterio produzi-la o que sabe ser saudaacutevel a carne de galinhardquo

134 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino froacutenimos basta saber o que se deve praticar interessa-lhe apenas a conclusatildeo Jaacute para o filoacutesofo eacutetico o que importa eacute antes de qualquer coisa a premissa maior Ela seraacute a oportunidade de ele saber por exemplo que o homem deseja ser saudaacutevel porque deseja viver e viver bem E a partir daiacute dialeticamente ele chegaraacute ao teacutelos do homem que eacute a eydaimoniacutea Como jaacute dito trata-se de um procedimento dialeacutetico

A exemplo do que fizemos em todos os outros casos passaremos em revista os fatos observados [φαινόμενα] e apoacutes discutir as dificuldades [διαπορήσαντας] trataremos de provar [δεικνύναι] se possiacutevel a verdade de todas as opiniotildees comuns [ἔνδοξα] a respeito desses afetos da mente mdash ou se natildeo todas pelo menos do maior nuacutemero e das mais autorizadas porque se refutarmos as objeccedilotildees e deixarmos intatas as opiniotildees comuns [ἔνδοξα] teremos provado [δεδειγμένον] suficientemente a tese176

Podemos observar nesta passagem que os eacutendoxa isto eacute as

opiniotildees comuns natildeo satildeo os fainoacutemena ou seja aquilo que pura e simplesmente aparece mas sim as constantes inseridas naquilo que aparece e que satildeo chamadas precisamente opiniotildees comuns (eacutendoxa) Aristoacuteteles busca estabelecer os eacutendoxa depurando-os das posiccedilotildees contraacuterias ldquo[] porque a soluccedilatildeo de uma dificuldade [ἀπορίας] eacute o encontro da verdade rdquo177 Natildeo haacute como natildeo ver neste movimento a tentativa de se fazer uma epistḗmē ēthikḗ pois ningueacutem que quisesse ser apenas um froacutenimos dar-se-ia ao trabalho de ir ao encalccedilo de tais justificativas Ademais podemos notar que esta epistḗmē ēthikḗ se apresenta como uma epistḗmē politikḗ pois satildeo as opiniotildees comuns (eacutendoxa) a saber vaacutelidas

176 Idem Ibidem VII 1 1145 b 1-5 177 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco [A traduccedilatildeo eacute nossa] VII 2 1146 b 5 ldquo[] porque la solucioacuten de una dificultad es el hallazgo de la verdadrdquo

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para todos ou para muitos e que se encontram encarnadas no froacutenimos que devem ser demonstradas dialeticamente178

De toda forma eacute a partir destas ldquoreincidecircnciasrdquo ou dos eacutendoxa retomados pela argumentaccedilatildeo dialeacutetica e que podemos chamar noacutemoi (νόμοι) mas que o homem comum e virtuoso vive e conhece apenas como virtudes que aquele que se esmera por fazer ldquociecircncia eacuteticardquo comeccedila a elaborar discursos sobre a natureza humana a virtude e o viacutecio e aborda questotildees como a da ldquopsicologia do agirrdquo do teacutelos da eydaimoniacutea coisas que o froacutenimos e o politikoacutes ratificamos natildeo tecircm necessidade de conhecer de forma douta Certamente a epistḗmē que deriva desta pesquisa natildeo teraacute nem a precisatildeo da matemaacutetica nem a finalidade teoacuterica da matemaacutetica e da fiacutesica De fato se Aristoacuteteles afirma que a eacutetica eacute uma ciecircncia natildeo afirma que ela seja uma ciecircncia como eacute por exemplo a filosofia primeira senatildeo que por tratar das accedilotildees humanas ela precisa comportar certa flexibilidade certa elasticidade De modo que deve haver um kanṓn (κανών) e jaacute sabemos de onde a princiacutepio ele vem e como chegamos a ele Entretanto como as escolhas dos homens satildeo muacuteltiplas e complexas este kanṓn certamente conheceraacute exceccedilotildees No entanto que haacute este kanṓn este deacuteon estes noacutemoi na epistḗmē ēthikḗ de Aristoacuteteles ele proacuteprio ressalta quando fala desta ciecircncia

Mas natildeo teraacute o seu conhecimento porventura grande influecircncia sobre a nossa vida [βίος] Semelhantes a arqueiros que tecircm um alvo certo para a sua pontaria natildeo alcanccedilaremos mais facilmente aquilo que nos cumpre alcanccedilar [τοῦ δέοντος]179

Ora como a poliacutetica utiliza as demais ciecircncias [ἐπιστεμῶν] e por outro lado legisla [νομοθετούσης] sobre o que devemos [δεῖ] e o que natildeo devemos fazer [πράττειν] a finalidade dessa ciecircncia deve

178 Sobre a demonstraccedilatildeo dialeacutetica e sobre o papel dos eacutendoxa em Aristoacuteteles vide ainda BERTI Enrico Contradiccedilatildeo e dialeacutetica nos antigos e nos modernos Trad Joseacute Bortolini Rev Tiago Joseacute Risi Leme Satildeo Paulo Paulus 2013 pp 198-213 179ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco I 2 1094 a 20-25

136 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

abranger as das outras de modo que essa finalidade seraacute o bem humano [τὰνθρώπινον ἀγαθόν]180

Estaacute claro pelo que jaacute dissemos ateacute aqui que aquilo que o

loacutegos estabelece no acircmbito de uma epistḗmē ēthikḗ eacute vaacutelido geralmente natildeo universalmente Assim eacute porque o objeto da eacutetica natildeo eacute o das ciecircncias teoreacuteticas onde as coisas satildeo sempre da mesma maneira o objeto da eacutetica por serem as accedilotildees humanas comporta um niacutevel de certeza que nos permite pensaacute-las boas ou maacutes tatildeo somente na maioria das vezes porquanto envolvem escolhas e circunstacircncias que podem variar ad infinitum Seriacuteamos insensatos pois e autodestruidores da ciecircncia eacutetica se buscaacutessemos aplicar a ela o mesmo niacutevel de certeza que aplicamos agraves ciecircncias teoreacuteticas Leiamos o Estagirita em duas passagens emblemaacuteticas a este respeito

Nossa discussatildeo seraacute adequada se tiver tanta clareza quanto comporta o assunto pois natildeo se deve exigir a precisatildeo em todos os raciociacutenios por igual assim como natildeo se deve buscaacute-la nos produtos de todas as artes mecacircnicas Ora as accedilotildees belas e justas que a ciecircncia poliacutetica investiga admitem grande variedade e flutuaccedilotildees de opiniotildees [] E em torno dos bens haacute uma flutuaccedilatildeo semelhante [] Ao tratar pois de tais assuntos e partindo de tais premissas devemos contentar-nos em indicar a verdade aproximadamente e em linhas geais e ao falar de coisas que satildeo verdadeiras apenas em sua maior parte e com base em premissas da mesma espeacutecie soacute poderemos tirar conclusotildees da mesma natureza E eacute dentro do mesmo espiacuterito que cada proposiccedilatildeo deveraacute ser recebida pois eacute proacuteprio do homem culto buscar a precisatildeo em cada gecircnero de coisas apenas na medida em que a admite a natureza do assunto [] Sirvam pois de prefaacutecio estas observaccedilotildees sobre o estudante a espeacutecie de tratamento a ser esperado e o propoacutesito da investigaccedilatildeo181

180 Idem Ibidem I 2 1094 b 5 181 Idem Ibidem I 3 1094 a 10-25 e 109 a 10

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Devemos igualmente recordar o que se disse antes e natildeo buscar a precisatildeo em todas as coisas por igual mas em cada classe de coisas apenas a precisatildeo que o assunto comportar e que for apropriada agrave investigaccedilatildeo182

Entretanto pensamos natildeo haver dito tudo pois ateacute agora

soacute falamos dos noacutemoi que dizem respeito ao teacutelos mas que natildeo satildeo o teacutelos do homem E a nosso ver existe um princiacutepio eacutetico que regula e rege todas as virtudes que incidem sobre a vida eacutetica isto eacute um princiacutepio pelo qual todas elas mdash a froacutenēsis a dikaiosyacutenē a andreiacutea a sōfrosyacutenē etc mdash se norteiam Este princiacutepio que no comeccedilo deste capiacutetulo jaacute nomeamos eacute a koinōniacutea Todas as virtudes eacuteticas tendem como para seu teacutelos agrave koinōniacutea que eacute por assim dizer outro nome da eydaimoniacutea eacutetica Em uma palavra a koinōniacutea eacute o teacutelos da natureza humana Por isso o kanṓn o noacutemos o deacuteon da ēthikḗ de Aristoacuteteles eacute simpliciter criar koinōniacutea E haacute passagens em que Aristoacuteteles afirma existir esta lei comum esta

182 Idem Ibidem I 7 1098 a 25 As leis inclusive natildeo podem ser executadas com um rigor caprichoso ao contraacuterio tambeacutem elas devem ser algo versaacuteteis isto eacute elaboradas com congruecircncia e aplicadas por homens equacircnimes Idem Ibidem V 10 1137 b 15-30 ldquoPortanto quando a lei [νόμος] se expressa universalmente e surge um caso que natildeo eacute abrangido pela declaraccedilatildeo universal eacute justo uma vez que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade corrigir a omissatildeo mdash em outras palavras dizer o que o proacuteprio legislador teria dito se estivesse presente e que teria incluiacutedo na lei se tivesse conhecimento do caso E essa eacute a natureza do equumlitativo uma correccedilatildeo da lei [νόνομ] quando ela eacute deficiente em razatildeo da sua universalidade E mesmo eacute esse o motivo por que nem todas as coisas satildeo determinadas pela lei [νόνομ] em torno de algumas eacute impossiacutevel legislar de modo que se faz necessaacuterio um decreto Com efeito quando a coisa eacute indefinida a regra [κανών] eacute indefinida []rdquo A questatildeo eacute que o legislador e a regra sempre vatildeo ldquofalharrdquo em alguma circunstacircncia Aristoacuteteles eacute bastante claro nos exemplos Idem Ibidem IX 2 1164 b 30-35 ndash 1165 ldquo[] e em geral eacute mais certo retribuir benefiacutecios do que obsequiar amigos e antes de fazer um empreacutestimo a um amigo devemos pagar o nosso credor Mas talvez nem isto seja sempre verdadeiro por exemplo deve um homem que foi resgatado das matildeos dos bandidos resgatar em troca o que o libertou seja ele quem for (ou pagar-lhe se ele natildeo foi capturado mas exige pagamento) ou em vez disso deve resgatar o seu pai Dir-se-ia que o certo eacute resgatar o pai mesmo de preferecircncia a si proacutepriordquo Na verdade o ldquoerrordquo natildeo estaacute na inexatidatildeo da lei nem em quem a elabora porque a incerteza reside nos proacuteprios fatos que variam indefinidamente Idem Ibidem V 10 1137 b 15 ldquoNos casos pois em que eacute necessaacuterio falar de modo universal mas natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo corretamente a lei considera o caso mais usual se bem que natildeo ignore a possibilidade de erro E nem por isso tal modo de proceder deixa de ser correto pois o erro natildeo estaacute na lei nem no legislador mas na natureza da proacutepria coisa jaacute que os assuntos praacuteticos satildeo dessa espeacutecie por naturezardquo Talvez o equiacutevoco esteja em imaginar que o noacutemos seja algo que nos dispense de um julgamento responsaacutevel e proporcional a cada circunstacircncia A lei natildeo pode ser feita nem aplicada por autocircmatos

138 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino justiccedila natural conhecida tacitamente por todos os homens vaacutelida para todos os homens desde tempos imemoriais uma forma de ldquolei naturalrdquo que se exprime como uma ldquoamizade naturalrdquo de todo homem para com todo homem uma espeacutecie de filantropia na melhor acepccedilatildeo do termo Na Retoacuterica o nosso filoacutesofo diz ldquoChamo particular agrave lei escrita pela qual se rege cada cidade e comuns agraves leis natildeo escritas sobre as quais parece haver um acordo unacircnime entre todosrdquo183 Um pouco mais adiante na mesma obra ele escreve

Pois haacute na natureza um princiacutepio comum do que eacute justo e injusto que todos de algum modo adivinham mesmo que natildeo haja entre si comunicaccedilatildeo ou acordo como por exemplo mostra a Antiacutegona de Soacutefocles ao dizer que embora seja proibido eacute justo enterrar Polinices porque esse eacute um direito natural Pois natildeo eacute de hoje nem de ontem mas desde sempre que esta lei existe e ningueacutem sabe desde quando apareceu E como diz Empeacutedocles acerca de natildeo matar o que tem vida pelo facto de isso natildeo ser justo para uns e injusto para outros Mas a lei universal estende-se largamente atraveacutes do eacuteter e da incomensuraacutevel terra184

Tambeacutem na Eacutetica Aristoacuteteles se expressa acerca deste

princiacutepio comum e natural

Da justiccedila poliacutetica uma parte eacute natural [φυσικόν] e outra parte legal natural [φυσικὸν] aquela que tem a mesma forccedila onde quer que seja [πανταχοῦ] e natildeo existe em razatildeo de pensarem os homens desde ou daquele modo legal a que de iniacutecio eacute indiferente mas deixa de secirc-lo depois que foi estabelecida185

Membros da mesma raccedila a sentem uns pelos outros e especialmente os homens por isso louvamos os amigos de seu semelhante [φιλανθρώπους] Ateacute em nossas viagens podemos ver

183 Idem Retoacuterica I 10 1368 b 184 Idem Ibidem I 13 1373 b 185 Idem Eacutetica a Nicocircmaco V 7 1134 b 15-20 [O iaacutelico eacute nosso]

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quanto cada homem eacute chegado e caro a todos os outros [ἄνθρωπος ἀνθρώπῳ καὶ φίλον]186

Enquanto escravo pois natildeo se pode ser seu amigo mas enquanto homem isso eacute possiacutevel pois parece haver uma certa justiccedila entre um homem qualquer e outro homem qualquer [δίκαιον παντὶ ἀνθρώπῳ ρπὸς πάντα] que tenham condiccedilotildees para participar de um sistema juriacutedico ou ser partes num ajuste logo pode haver amizade [φίλια] com ele na medida em que eacute um homem [ἄνθρωπος]187

Por conseguinte se a causa proacutexima da ēthikḗ enquanto

epistḗmē eacute a observaccedilatildeo do froacutenimos e o estabelecimento dos eacutendoxa a sua causa remota eacute esta lei comum esta justiccedila natural Em outros termos as ldquoconstantesrdquo vaacutelidas apenas geralmente e que comportam variaccedilatildeo as quais aquele que faz filosofia praacutetica nota nos feitos do froacutenimos e nos ditos comuns (eacutendoxa) mdash e que o froacutenimos experiencia apenas como virtudes e natildeo como noacutemoi mdash se reduzem e conduzem a um noacutemos universal um kanṓn que natildeo conhece variaccedilatildeo e que se chama koinōniacutea E haacute mais Os princiacutepios imediatamente deduzidos deste princiacutepio universal a saber aqueles que satildeo conditio sine qua non para se criar koinōniacutea tambeacutem natildeo variam Aristoacuteteles natildeo os olvida tanto que elenca accedilotildees que ele considera intrinsecamente maleacutevolas E considerar determinadas accedilotildees como intrinsecamente maacutes significa como o proacuteprio Aristoacuteteles o diz que elas seratildeo sempre e em todo lugar maacutes

Mas nem toda accedilatildeo e paixatildeo admite um meio-termo pois algumas tecircm nomes que jaacute de si mesmos implicam maldade como o despeito o despudor a inveja e no campo das accedilotildees o adulteacuterio o furto o assassiacutenio Todas essas coisas e outras semelhantes implicam nos proacuteprios nomes que satildeo maacutes em si

186 Idem Ibidem VIII 1 1155 a 20 [O itaacutelico eacute nosso] 187 Idem Ibidem VIII 11 1161 b 5 [Os itaacutelicos satildeo nossos]

140 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

mesmas e natildeo o seu excesso ou deficiecircncia Nelas jamais pode haver retidatildeo mas unicamente o erro188

Do quanto jaacute dissemos decorre que uma ēthikḗ que natildeo

seja politikḗ isto eacute que natildeo crie koinōniacutea entre os homens natildeo eacute condizente com a natureza humana pois o homem exatamente por ser zȭon logikoacuten (ζῷον λογικόν)189 eacute zȭon politikoacuten Natildeo sem razatildeo Aristoacuteteles afirma que a epistḗmē politikḗ eacute a arkhḗ da epistḗmē ēthikḗ

O estudo do prazer e da dor pertence ao campo do filoacutesofo poliacutetico [πολιτικὴν φιλοσοφοῦντος] pois ele eacute o arquiteto do fim com vistas no qual dizemos que uma coisa eacute maacute e outra eacute boa em absoluto190

Apoacutes termos dissertado sobre as diversas passagens da

Eacutetica e de outras obras de Aristoacuteteles que atestam o que temos afirmado acreditamos poder citar Richard Bodeacuteuumls o qual designa a poliacutetica precisamente como coroa da eacutetica aristoteacutelica

No fundo ter e perseguir uma meta uacuteltima para um indiviacuteduo eacute ter uma ldquopoliacuteticardquo e ordenar seus assuntos do mesmo modo que a cidade ordena os assuntos de todos Para Aristoacuteteles haacute aqui mais que uma simples analogia pois o fim uacuteltimo da poliacutetica natildeo pode ser formalmente diferente do que eacute visado pelos indiviacuteduos isoladamente Pelo contraacuterio o que daacute sentido agrave poliacutetica o que justifica em seus princiacutepios a ordem e as leis que ela proclama eacute precisamente o que daacute sentido agrave existecircncia dos indiviacuteduos para os quais essas leis satildeo feitas Em outras palavras a poliacutetica eacute definitivamente a maneira pela qual os indiviacuteduos reunidos na cidade pretendem dar sentido agrave sua existecircncia Ela responde pois agrave meta visada por cada um dos concidadatildeos e prescreve soberanamente em funccedilatildeo dessa meta o que cada um deve realizar Isso eacute o mesmo que dizer que a sagacidade que tem de

188 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 6 1107 a 5-15 189 Idem Poliacutetica I 2 1253 a 9-10 190 Idem Eacutetica a Nicocircmaco VII 11 1152 b

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ser colocada em accedilatildeo por cada um para atingir seu proacuteprio bem e dar um sentido perfeitamente racional agrave sua proacutepria existecircncia natildeo difere essencialmente da inteligecircncia poliacutetica que tem de ser colocada em accedilatildeo para organizar uma cidade na qual cada um pode atingir seu proacuteprio bem Essa convicccedilatildeo no filoacutesofo explica por que as questotildees de que ele trata nas Eacuteticas de maneira a estabelecer de modo criacutetico em que consiste o soberano bem do homem satildeo questotildees que ele apresenta com a cor de uma busca explicitamente chamada de ldquopoliacuteticardquo (Eacutet Nic 1094 b 11) e que ele dirige implicitamente aos legisladores Essa mesma convicccedilatildeo daacute tambeacutem a entender que as outras questotildees de que trata a coletacircnea de textos intitulada A Poliacutetica se reduzem a explicar como o soberano bem do homem pode ser atingido e preservado para cada homem dentro das sociedades que ele forma com os outros Para Aristoacuteteles natildeo existe nenhum conflito de princiacutepio entre as aspiraccedilotildees do indiviacuteduo e as do Estado (cidade) desde que o fim uacuteltimo de ambos seja formalmente idecircntico191

Um ponto no qual conveacutem insistir eacute que Aristoacuteteles mdash nem

de longe mdash considera a eacutetica ldquoterra de ningueacutemrdquo Para ele reafirmamos a eacutetica eacute uma forma de epistḗmē mais precisamente uma ldquociecircncia poliacuteticardquo Contudo diferentemente das ciecircncias teoreacuteticas ela eacute uma ciecircncia que tem uma finalidade praacutetica a saber conhecer o que torna os homens bons e felizes e quem sabe tornaacute-los Distingue-se pois das ldquociecircncias teoreacuteticasrdquo em razatildeo de natildeo visar ao saber por si mesmo mas aos fatos (πρᾶγμαpratildegma) agrave pratildexis onde mdash com um olhar ldquodoacutecilrdquomdash quer perscrutar o que eacute bom o que eacute mau o que eacute o bem e o que eacute o mal Eacute um modo diverso de se exercer a racionalidade Reiteramos que ela natildeo visa ao saber por si mesmo decerto que quer descobrir o quecirc e o porquecirc mas para uma finalidade conhecer o que torna e quiccedilaacute tornar os homens virtuosos Aristoacuteteles noutra passagem significativa deixa isso claro

191 BODEacuteUumlS Richard Aristoacuteteles A justiccedila e a cidade Trad Nicolaacutes Nyimi Campanaacuterio Rev Marcelo Perine Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007 p 14 [Os itaacutelicos satildeo nossos]

142 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Uma vez que a presente investigaccedilatildeo natildeo visa ao conhecimento teoacuterico como as outras mdash porque natildeo investigamos para saber o que eacute a virtude mas a fim de nos tornarmos bons do contraacuterio nosso estudo seria inuacutetil mdash devemos examinar agora a natureza dos atos isto eacute como devemos praticaacute-los []192

O Estagirita natildeo se cansa de dizer que a eacutetica eacute a ldquociecircnciardquo

dos fatos da vida (βίον πράξεωνbiacuteon praacutexeōn) Assim quando justifica a razatildeo pela qual o jovem natildeo estaacute bem disposto para esta ldquociecircnciardquo afirma ldquoCom efeito ele natildeo tem experiecircncia dos fatos da vida e eacute em torno desses que giram as nossas discussotildeesrdquo193 Haacute outras passagens eloquentes neste sentido

[] Tratando-se de sentimentos [πάθεσι] e de accedilotildees [πράξεσι] as palavras [λόγοι] natildeo inspiram tanta confianccedila como os fatos [ἔργων] e em consequecircncia quando as primeiras discrepam do que se percebe pelos sentidos satildeo desprezadas como falsas e desacreditam por sua vez a verdade194

[] Tratando-se de questotildees praacuteticas [πρακτικοῖς] julga-se pelos fatos [ἔργων] e pela vida [βίου] que satildeo nelas o principal Eacute preciso portanto considerar o que temos dito referindo-os aos fatos [ἔργα] e agrave vida [βίον] e aceitaacute-los se estaacute em harmonia com os fatos [ἔργοις] poreacutem consideraacute-los mera teoria [λόγους] se discrepa deles195

192 Idem Ibidem II 2 1103 b 25-30 193 Idem Ibidem X 2 1095 a e 1173 a 194 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicoacutemaco X 1 1172 a 35 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[hellip] trataacutendose de sentimientos y de acciones las palabras no inspiran tanta confianza como los hechos y en consecuencia cuando las primeras discrepan de lo que se percibe por los sentidos son despreciadas como falsas y desacreditan a la vez la verdadrdquo 195 Idem Ibidem X 8 1179 a 15-20 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] trataacutendose de cuestiones praacutecticas se juzga por los hechos y por la vida que son en nellas lo principal Es preciso por tanto considerar lo que llevamos dicho refirieacutendolo a los hechos y a la vida y aceptarlo si estaacute en harmoniacutea con los hechos pero considerarlo como mera teoriacutea si discrepa de ellosrdquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 143

E Berti precisa que com este conceito de ldquociecircncia poliacuteticardquo ou eacutetica Aristoacuteteles nos insere no ldquomundo da vidardquo funda pois as assim chamadas ldquociecircncias humanasrdquo

O seu ponto de partida eacute o quecirc o fato a experiecircncia a vida vivida os bons costumes e ela parte destes para buscar os princiacutepios isto eacute o fim supremo [] Com efeito a filosofia praacutetica de Aristoacuteteles fornece um exemplo de discurso que concerne aos mais importantes problemas humanos problemas que se referem ao assim chamado ldquomundo da vidardquo que se diferencia no meacutetodo dos discursos das ciecircncias propriamente ditas e todavia natildeo estaacute privado de racionalidade proacutepria isto eacute de controlabilidade proacutepria []196

Nasce assim a eacutetica aristoteacutelica como epistḗmē do ἦθος

(ẽthos) e do ἔθος (eacutethos) Distinta do que poderiacuteamos chamar uma ldquoeacutetica religiosardquo visto que ela se configura como uma reflexatildeo acerca de como o homem pode construir-se e construir o seu haacutebitat proacuteprio precisamente enquanto distinto do mundo dos deuses e do mundo da fyacutesis (φύσις) Natildeo haacute mdash nesse contexto mdash uma divindade que ajude o homem a se construir e a construir o mundo humano Natildeo haacute uma divindade legisladora que puna ou premie O homem exclusiva e integralmente mdash com a experiecircncia e com a razatildeo mdash eacute quem deve construir a sua felicidade que natildeo estaacute num momento fugaz de prazer mdash como nas eacuteticas hedonistas mdash mas tambeacutem natildeo estaacute noutro mundo mdash como nas eacuteticas teoloacutegicas mdash senatildeo que se encontra num mundo que ele proacuteprio teraacute ao menos em parte de construir Esta produccedilatildeo dar-se-aacute mediante o exerciacutecio das virtudes virtudes estas que ele descobriraacute olhando para o prudente (froacutenimos) proacuteximo a ele e homem como ele e natildeo para Deus para uma lei divina

Mas em todas as coisas o que parece a um homem bom eacute considerado como sendo realmente tal Se isto eacute correto como se

196 BERTI Perfil de Aristoacuteteles p 162

144 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

afigura ser e a virtude e o homem bom [καλῶςkalȭs] como tais satildeo a medida [μέτρονmeacutetron] de todas as coisas seratildeo verdadeiros prazeres os que lhe parecerem tais e verdadeiramente agradaacuteveis as coisas em que ele se deleitar197

Enrico Berti repristina o pensamento eacutetico de Aristoacuteteles

que temos visto ateacute aqui

Concluindo essa exposiccedilatildeo devemos observar que a eacutetica aristoteacutelica eacute confirmada como sendo essencialmente fundada sobre o conceito de fim uacuteltimo do homem Esse fim eacute concebido de forma exclusivamente humana sem implicaccedilotildees de ordem metafiacutesica ou teoloacutegica De fato a felicidade com a qual ele eacute identificado natildeo eacute como frequentemente se acreditou ldquocontemplaccedilatildeo de Deusrdquo nem exclusivamente busca de Deus [] Portanto se trata de eacutetica exclusivamente humana e ao mesmo tempo integralmente humana que leva em conta todas as dimensotildees do homem e ao mesmo tempo estabelece exata hierarquia entre elas []198

Antes de terminarmos importa ratificarmos um

esclarecimento jaacute delineado Quando pensamos ao longo do capiacutetulo o agir eacutetico tambeacutem como um ato poieacutetico natildeo o fazemos confundindo o haacutebito da teacutekhnē com o da froacutenēsis ou com o da sofiacutea Estaacute sempre bem presente ante os nossos olhos a passagem inequiacutevoca do livro VI da Eacutetica

[] de sorte que a capacidade raciocinada de agir difere da capacidade raciocinada de produzir Daiacute tambeacutem o natildeo se incluiacuterem uma na outra porque nem agir eacute produzir nem produzir eacute agir199

197 ARISOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco X 5 1176 a 15-20 198 BERTI Perfil de Aristoacuteteles pp 181-182 199 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco VI 4 1140 a 5

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Usamos o termo poiacuteēsis num sentido estendido valendo-nos da mesma polissemia utilizada por Aristoacuteteles De fato este estender-se eacute usado pelo proacuteprio Aristoacuteteles no acircmbito da filosofia praacutetica Ele diz num passo

Eacute assim que a sabedoria filosoacutefica produz [ποιοῦσιpoioỹsi] felicidade porque sendo ela uma parte da virtude inteira torna um homem feliz pelo fato de estar na sua posse e de atualizar-se200

Ao comentar esta passagem Berti tambeacutem entende que

Aristoacuteteles usa o termo poiacuteēsis num sentido estendido ldquoAleacutem disso ele observa que elas [sofiacuteafroacutenēsis] satildeo tambeacutem produtivas e precisamente a sapiecircncia [sofiacutea] produz a felicidaderdquo201 Na verdade haacute uma razatildeo especiacutefica para empregar o termo poieacutetico tambeacutem em eacutetica Eacute que em Aristoacuteteles o eacutethos deixa de ser apenas um caraacuteter dado pela natureza e passa a ser um caraacuteter impresso em noacutes por nossos proacuteprios haacutebitos isto eacute por aquelas accedilotildees que oriundas de nossas escolhas deliberadas tecircm em noacutes a sua causa Em outras palavras como jaacute dissemos acima noacutes nos tornamos aquilo que praticamos ldquo[] tornamo-nos justos praticando atos justos e assim com a temperanccedila a bravura etcrdquo202 Assim o homem passa a ser de certa forma causa de si ldquo[] cada homem eacute de certo modo responsaacutevel [αἴτιοςaiacutetios] pela sua disposiccedilatildeo de acircnimo [ἕξεώςheacutexeṓs] []rdquo203 Destarte cada homem acaba contribuindo para produzir ao seu derredor uma ambiecircncia (ethos) pela qual tambeacutem eacute responsaacutevel

A afirmaccedilatildeo da responsabilidade do homem em face a seus proacuteprios atos vai transformar o significado e o valor atribuiacutedos ao

200 Idem Ibidem VI 12 1144 a 5 201 BERTI Perfil de Aristoacuteteles p 173 202 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco II 1 1103 b 203 Idem Ibidem III 5 114 b

146 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

ethos Na Eacutetica a Nicocircmaco Aristoacuteteles repete que o ethos eacute o resultado de nossos atos adquire-se tal ou tal disposiccedilatildeo eacutetica agindo de tal ou tal maneira Realizando coisas justas assumem-se bons haacutebitos e o caraacuteter torna-se justo inversamente agindo de maneira intemperante adquire-se o haacutebito de ceder aos desejos e tornamo-nos intemperantes O caraacuteter natildeo eacute mais o que recebe suas determinaccedilotildees da natureza da educaccedilatildeo da idade da condiccedilatildeo social eacute o produto da seacuterie de atos dos quais sou o princiacutepio Posso pois ser declarado ldquoautorrdquo (aiacutetios) de meu caraacuteter como o sou de meus atos do mesmo modo que meus atos podem ser objeto de um elogio meu caraacuteter pode ser objeto de louvor Viacutecios e virtudes natildeo satildeo simples traccedilos psicoloacutegicos adquiridos tecircm significado moral porque pertencem ao campo do que depende de noacutes Esta responsabilidade testemunha a seriedade da accedilatildeo Quando ajo natildeo faccedilo somente algo de pontual pelo que terei que responder escolho o que vou ser204

Uma passagem que gostariacuteamos de comentar porque

exemplifica a relaccedilatildeo que estabelecemos entre ēthikḗ e poiacuteēsis diz o seguinte

Isso porque a existecircncia eacute para todos os homens uma coisa digna de ser escolhida e amada ora noacutes existimos em virtude da atividade [ἐνεργείᾳ] (isto eacute vivendo e agindo) e a obra [ἐνεργείᾳ] eacute em certo sentido uma produtora de atividade [ποιήσας τὸ ἔργου] portanto o artiacuteficie ama a sua obra [ἔργου] porque ama a existecircncia E isso tem raiacutezes profundas na natureza das coisas pois o que ele eacute em potecircncia [δυνάμει] sua obra [ἔργου] o manifesta em ato [ἐνεργείᾳ]205

Tem-se pela passagem acima que o homem de certo

modo eacute eacutergon em certo sentido ele eacute uma obra em marcha Com efeito se existir eacute uma atividade mui digna e o obrar alarga esta atividade entatildeo obrar com aretḗ eacute existir intensivamente Por isso

204 VERGNIEgraveRES Solange Eacutetica e poliacutetica em Aristoacuteteles physis ethos nomos Trad Marcondes Cesar Satildeo Paulo Paulus 1998 p 105 205 ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 7 1168 a 5-10

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todos aqueles que amam a sua existecircncia natildeo deixam de obrar Existindo constroem construindo existem Existir eacute fazer a si mesmo porque os nossos haacutebitos (heacutexeis) oriundos da atividade (eneacutergeia) do nosso eacutergon perfazem o nosso caraacuteter (eacutethos) Existir eacute produzir aleacutem disso a ambiecircncia (ẽthos) que nos cerca porquanto os nossos atos se difundem (maacutexime quando virtuosos satildeo difusivos) irradiando-se nela Na verdade a aretḗ porque qualifica o obrar torna o existir humano que se define como zȭon politikoacuten intenso E a reta atualizaccedilatildeo do zȭon politikoacuten eacute a koinōniacutea Por isso criar koinōniacutea na pluralidade de suas formas manifesta a natureza humana

Fazer de si mesmo a sua proacutepria obra significa entatildeo literalmente realizar-se cumprir a si mesmo pocircr-se em ato ou seja dar forma ao que se eacute somente em potecircncia E eacute exatamente por meio da eneacutergeia naquela eneacutergeia naquele agir proacuteprio do homem em que o proacuteprio homem tem a possibilidade de exprimir a sua humanidade que o ser humano se realiza como eacutergon que o indiviacuteduo se torna obra206

O termo desta expansatildeo eacute a morte207 e eacute justamente aqui

que temos tambeacutem que passar a indagar como Tomaacutes de Aquino para quem a morte eacute branda porque natildeo eacute o fim pocircde acolher a eacutetica de Aristoacuteteles num contexto teoloacutegico

206 FERMANI A vida feliz humana diaacutelogo com Platatildeo e Aristoacuteteles p 388 207 Idem Ibidem p 93 ldquoEntatildeo a morte como finis e como teacutelos eacute o que potildee termo agrave existecircncia o que faz com que ela acabe mas tambeacutem o que atribuindo-lhe um limite delimita um territoacuterio circunscreve uma regiatildeo um horizonte no interior do qual a vida humana pode desdobrar-serdquo

Capiacutetulo III A recepccedilatildeo da eacutetica aristoteacutelica na

teologia moral de Tomaacutes

Nas paacuteginas seguintes pretendemos apontar aqueles conceitos que permitiram a Tomaacutes acolher no acircmbito da sua teologia moral uma conceptualidade filosoacutefica A fim de levarmos a termo este objetivo julgamos pertinente nos resguardarmos de dois equiacutevocos O primeiro mdash e talvez o mais ingecircnuo mdash eacute imaginar que Tomaacutes foi tatildeo somente um filoacutesofo ou que tenha aceitado in totum todos os corolaacuterios da eacutetica aristoteacutelica Se assim fosse melhor seria ficarmos com Aristoacuteteles e natildeo com um comentador dele1 Tomaacutes eacute antes de tudo um teoacutelogo e mesmo a parte da Suma de Teologia que dedica agrave eacutetica sem duacutevida integra a sua teologia moral O segundo equiacutevoco eacute pensar que por ser um teoacutelogo e por natildeo ter parado na ldquoeacutetica naturalrdquo de Aristoacuteteles o Aquinate tenha renunciado agrave razatildeo filosoacutefica quando pensou as grandes questotildees eacuteticas Nem uma coisa nem outra Entendemos antes que em alguns momentos o Aquinate tenha sido ateacute mais realista e moderado do que o proacuteprio Estagirita Demos ensejo a uma breve contextualizaccedilatildeo criacutetica que justifique a nossa abordagem neste capiacutetulo 31 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO CRIacuteTICA TOMAacuteS COMO AUCTOR

Haacute hoje um consenso de que Tomaacutes redigiu o seu famoso Comentaacuterio agrave Eacutetica a Nicocircmaco durante seu segundo periacuteodo de

1 Imaginar que Tomaacutes foi um mero repetidor de Aristoacuteteles a ponto de se cogitar que a leitura de Aristoacuteteles possa substituir ou suprir a de Tomaacutes eacute uma tese que natildeo encontra sustentaccedilatildeo Natildeo sem razatildeo Maritain concordava com o parecer de Gilson sobre este assunto MARITAIN Jacques Le paysan de la Garrone Un vieux laique Srsquointerrogue Paris Descleacutee de Brower 1966 p 197 In MOURA Odilatildeo Introduccedilatildeo agrave Suma contra os Gentios Porto Alegre EDIPUCRS 1996 p 9 ldquoEacute um enorme erro mdash Gilson tem razatildeo quando insiste nisso mdash o dizer como repetem tantos professores de Filosofia que a Filosofia de santo Tomaacutes eacute a Filosofia de Aristoacuteteles []rdquo

150 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ensino parisiense mais especificamente entre os anos de 1271 a 12722 Parece natildeo haver mais duacutevidas tambeacutem quanto ao fato de que este Comentaacuterio influenciou sobremodo a redaccedilatildeo da IIa parte da Summa Theologiae a qual provavelmente se iniciou depois das feacuterias de 12713 A isto podemos acrescer outro dado importante qual seja a finalidade do comentaacuterio de Tomaacutes agrave Eacutetica Atualmente se sabe que ele natildeo buscou fazer uma expositio desta obra vale dizer um comentaacuterio aprofundado que se ativesse agrave literalidade do texto Tomaacutes natildeo pretendeu simplesmente conhecer o que Aristoacuteteles disse nem devemos esperar do Aquinate uma leitura do Estagirita que esteja de acordo com os instrumentos criacuteticos de nossa eacutepoca e isso por duas razotildees A primeira porque ele obviamente desconhecia estes elementos A segunda porque a sua finalidade natildeo era conhecer Aristoacuteteles como um historiador mas sim como um saacutebio Em uma palavra trata-se de um pensador que comenta outro pensador natildeo simplesmente para conhececirc-lo mas para pensaacute-lo4

No capiacutetulo anterior pudemos verificar que a eacutetica de Aristoacuteteles eacute exclusivamente humana no sentido de que se ateacutem ao que a razatildeo pode admitir Descobrimos ainda que esta eacutetica eacute por isso mesmo diversa da teologia moral da Idade Meacutedia que abriga em si componentes extraiacutedos da Revelaccedilatildeo cristatilde Mas agora eacute preciso aduzirmos que natildeo houve uma uacutenica teologia moral na Idade Meacutedia senatildeo teologias morais E a de Tomaacutes sem se coincidir eacute a que mais se aproxima da eacutetica de Aristoacuteteles5 E se

2 TORRELL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Sua pessoa e sua obra Trad Luiz Paulo Rouanet Rev Saulo Krieger et al 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 265 3 Idem Ibidem 4 Idem Ibidem pp 265 e 266 5 Eacute necessaacuterio acrescer que o comentaacuterio de Tomaacutes agrave Eacutetica que prepara a siacutentese da Summa Theologiae deve muito agrave convivecircncia com Alberto Magno seu mestre o qual tambeacutem comentou a Eacutetica no mesmo periacuteodo em que Tomaacutes seguia os seus cursos no Studium de Colocircnia Aliaacutes o Aquinate na qualidade de assistente participou ativamente da redaccedilatildeo do comentaacuterio Frisa Lima Vaz VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo aacute Eacutetica Filosoacutefica 1 pp 208-209 ldquo[] Santo Alberto Magno foi sem duacutevida o maior inteacuterprete latino de Aristoacuteteles no seacuteculo XIII tendo comentado a maior parte do Corpus Aristotelicum entatildeo conhecido No que diz respeito agrave Eacutetica foi igualmente o

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aproxima natildeo agrave guisa de um mero ldquocomentaacuteriordquo do filoacutesofo grego mdash conforme jaacute acenamos mdash mas como uma obra que perfilha as consideraccedilotildees de outra a fim de trazer a lume o seu proacuteprio pensamento6 Em uma palavra Tomaacutes eacute um auctor que usa de uma auctoritas no caso Aristoacuteteles para trazer agrave luz as suas proacuteprias ideias7 Sobre isso assinala Jeauneau

Por aqui vemos mdash mas os exemplos abundam mdash com que liberdade S Tomaacutes adapta aos seus fins o pensamento de Aristoacuteteles Professa pelo Filoacutesofo a admiraccedilatildeo mais sincera Mas natildeo eacute um arqueoacutelogo cuja uacutenica ambiccedilatildeo se limitasse agrave restauraccedilatildeo dum glorioso passado Pensa para o seu tempo com uma constante preocupaccedilatildeo de actualidade Haacute mesmo qualquer coisa de revolucionaacuterio no seu empreendimento Os contemporacircneos natildeo se enganaram E se certos admiradores de S Tomaacutes propuseram fazer do tomismo um relicaacuterio ideal dos

primeiro a expor sistematicamente uma eacutetica fundada na experiecircncia e na reta razatildeo e a mostrar sua compatibilidade com a moral revelada Os problemas eacuteticos ocupam um lugar relevante na produccedilatildeo literaacuteria de Alberto Magno desde seu Comentaacuterio ao livro das Sentenccedilas agrave tardia Summa Theologiae Em particular deve-se mencionar o De natura boni a Summa de Bonno fazendo parte da primeira Summa Theologiae a Summa de Creaturis contendo um De Homine e os comentaacuterios agrave Eacutetica de Nicocircmaco a Lectura in libros Ethicorum Aristotelis redigida por seu assististente Tomaacutes de Aquino no tempo do magisteacuterio de Alberto no Studium dominicano de Colocircnia (1248-1252) e os Commentarii in libros Ethicorum Aristotelis em forma de paraacutefrase redigidos provavelmente entre 1256 e 1270 O pensamento eacutetico medieval deve a Alberto Magno uma mais rigorosa fixaccedilatildeo conceptual de algumas de suas categorias fundamentais que iratildeo ser utilizadas e aprofundadas por seu disciacutepulo Tomaacutes de Aquinordquo Citemos ainda Roberto Grosseteste que entre 1246 e 1247 traduziu a Eacutetica Foi a traduccedilatildeo de Grosseteste a utilizada por Alberto e Tomaacutes Lembrando que esta traduccedilatildeo foi revisada e completada em 1260 talvez por Guilherme de Moerbeke Tomaacutes usou esta segunda ediccedilatildeo 6 Natildeo se pode esquecer ademais da influecircncia decisiva que categorias filosoacuteficas tomadas de Agostinho desempenharam na estruturaccedilatildeo da eacutetica filosoacutefica tomasiana Como diz Lima Vaz Idem Ibidem p 216 ldquoA Eacutetica de Tomaacutes de Aquino obedecendo ao modelo que prevalece em Toda Eacutetica claacutessica desde Platatildeo e que vimos genialmente transposto para o universo cristatildeo na Eacutetica agostiniana eacute uma eacutetica da perfeiccedilatildeo e da ordem Essas duas categorias de natureza mostram-se como fundamentais na Ontologia tomaacutesica encontram em sua Antropologia uma realizaccedilatildeo exemplar e por conseguinte orientaratildeo em profundidade a construccedilatildeo da Eacuteticardquo 7 GILSON A Filosofia na Idade Meacutedia p 627 ldquoCom efeito na Idade Meacutedia distinguia-se entre o escriba (scriptor) que soacute eacute capaz de recopiar as obras de outrem sem nada modificar o compilador (compilator) que acrescenta ao que copia mas sem que seja coisa sua o comentador (commentator) que potildee coisa sua no que escreve mas soacute acrescenta ao texto o necessaacuterio para tornaacute-lo inteligiacutevel e enfim o autor (auctor) cujo objetivo principal eacute expor suas proacuteprias ideacuteias soacute apelando para as ideacuteias alheias a fim de confirmar as suas []rdquo [O itaacutelico eacute nosso]

152 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

conservantismos de toda a espeacutecie poderatildeo ter retido a letra mas natildeo penetraram seguramente o espiacuterito8

Esta proximidade conjugada com uma ultrapassagem de

horizontes entre Tomaacutes e Aristoacuteteles ocorreu de acordo com o nosso entendimento sobretudo por uma razatildeo perpassa toda a obra do Aquinate o axioma que ele formula logo na primeira questatildeo da Suma de Teologia ldquo[] a graccedila natildeo suprime a natureza mas a aperfeiccediloa []rdquo9 Assim em sua obra o que haacute de humano nunca eacute tolhido mas assumido Por isso ele pocircde acolher Aristoacuteteles Contudo o componente humano eacute deveras aperfeiccediloado pela graccedila e pelo prodigioso poder especulativo do nosso pensador Em outros termos em Tomaacutes o componente humano eacute integrado agrave Revelaccedilatildeo mas sem ser suprimido por esta

Respondo dizendo que os dons da graccedila satildeo de tal modo acrescidos agrave natureza que eles natildeo a suprimem senatildeo que mais a aperfeiccediloam Eis porque a luz da feacute que eacute gratuitamente infusa em noacutes natildeo destroacutei a luz natural da razatildeo que nos eacute divinamente dada10

Lima Vaz condensa

Em nenhum momento os textos tomaacutesicos inflectem no sentido de uma eacutetica puramente humana ou entatildeo mais aristoteacutelica do que cristatilde o pensamento eacutetico que encontramos na Summa Mesmo o comentaacuterio da Eacutetica de Nicocircmaco rigorosamente filosoacutefico se permite abrir clareiras por onde filtra alguma luz

8 JEAUNEAU Eacutedouard A Filosofia Medieval Trad Joatildeo Afonso dos Santos Lisboa Ediccedilotildees 70 1986 p 85 9 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 8 ad 2 ldquo[] gratia non tollat naturam sed perficiat []rdquo 10 TOMAacuteS DE AQUINO Super De Trinitate pars 1 q 2 a 3 co 1 Disponiacutevel em lt httpwwwcorpusthomisticumorgcbthtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoResponsio Dicendum quod dona gratiarum hoc modo naturae adduntur quod eam non tollunt sed magis perficiunt unde et lumen fidei quod nobis gratis infunditur non destruit lumen naturalis rationis divinitus nobis inditumrdquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 153

que vem da Teologia A segunda chave que devemos denominar igualmente necessaacuteria ex hypothesi eacute a chave filosoacutefica A hipoacutetese eacute aqui em uacuteltima instacircncia a opccedilatildeo fundamental de Tomaacutes de Aquino que orienta toda a sua obra e que afirma a autonomia relativa da razatildeo e a vigecircncia de suas leis loacutegicas e de seu alcance ontoloacutegico em toda construccedilatildeo intelectual mdash de modo eminente na Teologia mdash segundo o axioma gratia non destruit naturam sed perficit Ora a mais alta obra da razatildeo eacute a Filosofia e segundo a convicccedilatildeo de Tomaacutes de Aquino e da maioria dos doutores medievais ningueacutem aproximou-se tanto quanto Aristoacuteteles do ideal do saber filosoacutefico A partir pois da necessidade teoacuterica da integraccedilatildeo da razatildeo filosoacutefica na edificaccedilatildeo da ciecircncia teoloacutegica e da necessidade histoacuterica de receber de Aristoacuteteles os instrumentos e as categorias fundamentais dessa razatildeo o Aquinatense natildeo hesita em utilizar amplamente e profundamente a Eacutetica de Nicocircmaco interpretando-a livremente segundo as exigecircncias da moral Evangeacutelica na grandiosa construccedilatildeo intelectual de uma Eacutetica cristatilde levada a cabo na IIa parte da Summa Theologiae11

Uma vez que ldquoa graccedila natildeo tolhe a naturezardquo passemos a

trabalhar aquele que nos parece ser o conceito primordial de nossa exposiccedilatildeo qual seja o de natureza 32 O CONCEITO DE NATUREZA EM TOMAacuteS

Tomando por base os pressupostos jaacute anteriormente estabelecidos tentemos refletir em primeiro lugar acerca do que nos possa fazer pensar que natildeo haja espaccedilo numa teologia cristatilde como a de Tomaacutes para o exerciacutecio de uma racionalidade filosoacutefica A primeira objeccedilatildeo que nos vem agrave mente e que Tomaacutes mesmo se fez eacute a natureza racional mdash cuja obra maior eacute a filosofia mdash natildeo foi corrompida pelo pecado Se sim como podemos pensar que o homem mdash abandonado agraves suas proacuteprias forccedilas mdash seja capaz de virtudes Tomaacutes natildeo se esquiva da dificuldade Ele argumenta no

11 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 pp 214-215

154 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino estado de integridade mdash antes do pecado mdash havia trecircs bens concernentes agrave natureza humana Satildeo eles os princiacutepios constitutivos dela (o homem eacute definido como um animal racional) a inclinaccedilatildeo para a virtude e a justiccedila original que eacute um dom sobrenatural Pelo pecado ldquo[] o primeiro natildeo eacute nem tirado nem diminuiacutedo []rdquo12 Conforme afirma Tomaacutes ldquo[] o pecado natildeo pode tirar completamente do homem que seja racional porque jaacute natildeo seria capaz de pecadordquo13 Gilson comentando esta passagem chega a dizer que ldquoSupor o contraacuteriordquo mdash isto eacute que o pecado corrompeu a natureza humana enquanto tal mdash ldquoseria admitir que o homem poderia continuar sendo homem deixando de ser homemrdquo14 O terceiro bem de fato foi totalmente subtraiacutedo do homem Mas observemos que este terceiro bem natildeo eacute considerado pelo Aquinate como algo devido agrave natureza humana No Compendium Theologiae ele o denomina ldquo[] virtude excedente agrave sua condiccedilatildeo natural []rdquo15 Finalmente o segundo bem o do

12 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 85 1 C ldquoPrimum igitur bonum naturae nec tollitur nec diminuitur per peccatumrdquo 13 Idem Ibidem I-II 85 2 C ldquoPer peccatum autem non potest totaliter ab homine tolli quod sit rationalis quia iam non esset capax peccatirdquo 14 GILSON Eacutetienne O Espiacuterito da Filosofia Medieval Trad Eduardo Brandatildeo Rev Tessa Moura Lacerda Satildeo Paulo Martins Fontes 2006 p 171 15 TOMAacuteS DE AQUINO Compecircndio de Teologia Trad Odilatildeo Moura 2 ed Porto Alegre EDIPUCRS 1996 I CLXXXVI 2 Na ediccedilatildeo biliacutengue a traduccedilatildeo permanece mais fiel ao original latino Idem Ibidem I 186 ldquoErat igitur hoc ex virtute superiori scilicet Dei qui sicut animam rationabilem corpori coniunxit omnem proportionem corporis et corporearum virtutum cuiusmodi sunt vires sensibiles transcendentem ita dedit animae rationali virtutem ut supra conditionem corporis ipsum continere posset et vires sensibiles secundum quod rationali animae competebat Ut igitur ratio inferiora sub se firmiter contineret oportebat quod ipsa firmiter sub Deo contineretur a quo virtutem praedictam habebat supra conditionem naturaerdquo ldquoEra pois uma virtude superior [virtute superiori] ou seja a de Deus que assim como uniu ao corpo uma alma racional que transcende toda a proporccedilatildeo do corpo e das virtudes corporais como as virtudes sensiacuteveis assim tambeacutem deu agrave alma racional a virtude de sobre a condiccedilatildeo do corpo poder contecirc-lo e agraves virtudes sensiacuteveis segundo o que competia agrave alma racional A fim pois de que a razatildeo contivesse firmemente sob si as coisas inferiores era necessaacuterio que ela mesma se contivesse firmemente sob Deus do qual tinha a referida virtude sobre a condiccedilatildeo da naturezardquo Na Summa Tomaacutes natildeo eacute menos claro quanto a isso Idem Suma Teoloacutegica I 95 1 C ldquoErat enim haec rectitudo secundum hoc quod ratio subdebatur Deo rationi vero inferiores vires et animae corpus Prima autem subiectio erat causa et secundae et tertiae quandiu enim ratio manebat Deo subiecta inferiora ei subdebantur ut Augustinus dicit Manifestum est autem quod illa subiectio corporis ad animam et inferiorum virium ad rationem non erat naturalis alioquin post peccatum mansisset cum etiam in

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meio a saber a inclinaccedilatildeo natural para a virtude foi ldquo[] apenas diminuiacutedo pelo pecadordquo16 Ao que Gilson conclui ldquoAssim o pecado natildeo poderia acrescentar nada agrave natureza humana nem nada lhe retirarrdquo17 Eacute a mesma conclusatildeo a que chega Vasoli ldquo[] natildeo se deve esquecer de que a filosofia tomista legitima assim a existecircncia de uma natureza conclusa e autossuficiente dotada de leis proacuteprias e processos necessaacuterios proacutepriosrdquo18 Em siacutentese ldquo[] pelo pecado natildeo eacute tirado o bem natural que pertence agrave espeacutecierdquo19 Diante disso a eacutetica de Tomaacutes mdash mesmo sendo fundamentalmente uma teologia moral mdash natildeo precisa considerar o homem como um ente totalmente depravado 20 E por isso mesmo ela se abre a consideraccedilotildees proacuteprias de uma eacutetica filosoacutefica Jaacute nas Quaestiones disputatae de veritate o Aquinate dizia que o homem perdendo a justiccedila original mdash que era uma virtude excedente agrave sua natureza

Daemonibus data naturalia post peccatum permanserint ut Dionysius dicit cap IV de Div Nom Unde manifestum est quod et illa prima subiectio qua ratio Deo subdebatur non erat solum secundum naturam sed secundum supernaturale donum gratiae non enim potest esse quod effectus sit potior quam causardquo ldquoEssa retidatildeo consistia em que a razatildeo estava submetida a Deus as forccedilas inferiores agrave razatildeo e o corpo agrave alma A primeira dessas submissotildees era a causa a um tempo da segunda e da terceira Pois enquanto a razatildeo estivesse submetida a Deus os inferiores lhe permaneciam submissos como afirma Agostinho Aliaacutes eacute claro que essa submissatildeo do corpo agrave alma e das forccedilas inferiores agrave razatildeo natildeo era natural de outra sorte teria persistido depois do pecado pois entre os democircnios tambeacutem os elementos naturais permaneceram depois do pecado como diz Dioniacutesio Por consequumlecircncia eacute claro que tambeacutem a primeira submissatildeo a da razatildeo a Deus natildeo era somente natural mas um dom sobrenatural da graccedila natildeo eacute possiacutevel que o efeito seja superior agrave causardquo 16 Idem Ibidem I-II 85 I C ldquoSed medium bonum naturae scilicet ipsa naturalis inclinatio ad virtutem diminuitur per peccatumrdquo 17 GILSON O Espiacuterito da Filosofia Medieval p 171 18 VASOLI Cesare Storia della filosofia II La filosofia medioevale Milano Feltrinelli 1961 p 311 [A traduccedilatildeo eacute nossa] p 311 ldquo[] non si deve dimenticare che la filosofia tomistica legittima cosiacute lrsquoesistencia di una natura conclusa ed autosufficiente dotada di leggi proprie e di propri processi necessarirdquo 19 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios IV LII 13 [3888] ldquoPer peccatum enim non tollitur bonum naturae quod ad speciem naturae pertinet []rdquo 20 O infiel ou qualquer que natildeo esteja em estado de graccedila natildeo estaacute fadado a fazer o mal em tudo quanto faz Idem Suma Teoloacutegica II-II 10 4 C ldquoLogo eacute claro que os infieacuteis natildeo podem fazer boas obras que decorram da graccedila isto eacute obras meritoacuterias entretanto podem de algum modo praticar boas obras para as quais basta o bem da natureza Portanto natildeo pecam necessariamente em tudo o que fazem mas sempre que fazem alguma obra procedente da infidelidade entatildeo pecamrdquo

156 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino um dom concedido pela liberalidade divina mdash natildeo passou a ser portador de uma natureza absolutamente prevaricada senatildeo que voltou a contar somente com o que lhe convinha naturalmente

Com efeito o que foi concedido ao homem no primeiro estado para que a razatildeo totalmente dominasse as potecircncias inferiores tambeacutem a alma e o corpo natildeo proveio do poder dos princiacutepios naturais mas do poder da justiccedila original acrescentada agrave natureza pela liberalidade divina Com efeito suprimida tal justiccedila pelo pecado o homem voltou ao estado que lhe convinha por seus princiacutepios naturais21

Haacute uma vexata quaestio que decorre do quanto jaacute dissemos

e que deve ser tratada sob pena de todo o nosso esforccedilo ser vatildeo Trata-se de saber mdash e o proacuteprio Aquinate se questiona acerca disso mdash se as virtudes eacuteticas ou morais (mos em latim) podem existir em noacutes sem a caridade Aqui segundo pensamos o gecircnio especulativo de Tomaacutes se manifesta de forma exemplar Depois de dizer que as virtudes naturais natildeo existem em noacutes por natureza salvo ldquo[] em estado de aptidatildeo e incoativamente []rdquo 22 mas devem ser adquiridas pela repeticcedilatildeo dos atos conducentes a elas23 conclui

Conforme foi dito acima as virtudes morais enquanto obram um bem em ordem a um fim que natildeo excede a capacidade natural humana podem ser adquiridas pelos atos humanos E assim

21 TOMAacuteS DE AQUINO A sensualidade Quaestiones disputatae de veritate questatildeo 25 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Beatriz Rodrigues de Lima Satildeo Paulo Edipro 2015 25 7 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoQuod enim homini in primo statu collatum fuit ut ratio totaliter inferiores vires contineret et anima corpus non fuit ex virtute principiorum naturalium sed ex virtute originalis iustitiae ex divina liberalitate superadditae Qua quidem iustitia per peccatum sublata homo rediit ad statum convenientem sibi per principia sua naturalia []rdquo 22 Idem Suma Teoloacutegica I-II 63 1 C ldquoSic ergo patet quod virtutes in nobis sunt a natura secundum aptitudinem et inchoationem []rdquo 23 Idem Ibidem I-II 63 2 C ldquoPortanto a virtude humana ordenada para o bem que eacute medido pela regra da razatildeo humana pode ser causada pelos atos humanos enquanto esses atos procedem da razatildeo de cujo poder e controle depende o referido bemrdquo

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adquiridas podem existir sem a caridade como existiram em muitos pagatildeos24

Isto exposto toda a questatildeo gira em torno do que Tomaacutes

fala em seguida acerca destas mesmas virtudes morais

Mas enquanto obram um bem em ordem ao fim uacuteltimo sobrenatural eacute que atingem perfeita e verdadeiramente a razatildeo da virtude e natildeo podem ser adquiridas pelos atos humanos mas satildeo infundidas por Deus E essas virtudes morais natildeo podem existir sem a caridade25

Eis o impasse como entender que as virtudes possam

existir em noacutes de forma imperfeita se a virtude se define justamente como uma excelecircncia O Aquinate natildeo pode simplesmente desdizer o que jaacute disse ou seja que as virtudes morais podem existir sem a caridade tanto que existiram em muitos pagatildeos Ele dirime a dificuldade saindo do plano da univocidade Perfeito diz-se de muitos modos No De Virtutibus Tomaacutes arrola trecircs modos de perfeiccedilatildeo Haacute uma perfeiccedilatildeo absoluta agrave qual nada falta de toda perfeiccedilatildeo possiacutevel haacute uma perfeiccedilatildeo segundo a natureza que existe no caso do homem hipoteticamente naquele que consegue desenvolver toda perfeiccedilatildeo possiacutevel agrave sua natureza e haacute finalmente uma perfeiccedilatildeo segundo o tempo que existe naquele que possui a perfeiccedilatildeo proporcional a um determinado tempo e condiccedilatildeo

24 Idem Ibidem I-II 65 2 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est virtutes morales prout sunt operativae boni in ordine ad finem qui non excedit facultatem naturalem hominis possunt per opera humana acquiri Et sic acquisitae sine caritate esse possunt sicut fuerunt in multis gentilibusrdquo 25 Idem Ibidem [O itaacutelico eacute nosso] ldquoSecundum autem quod sunt operativae boni in ordine ad ultimum finem supernaturalem sic perfecte et vere habent rationem virtutis et non possunt humanis actibus acquiri sed infunduntur a Deo Et huiusmodi virtutes morales sine caritate esse non possuntrdquo

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[] como quando dizemos que uma crianccedila eacute perfeita porque tem de acordo com aquela idade todos os elementos que se requerem para que chegue a ser um homem adulto26

A perfeiccedilatildeo absoluta mdash continua Tomaacutes no corpo do

mesmo artigo que trata da caridade mdash soacute Deus a possui A perfeiccedilatildeo segundo a natureza o homem pode tecirc-la mas natildeo nesta vida E a perfeiccedilatildeo quanto ao tempo o homem pode possuiacute-la nesta vida Ora aplicando isto mutatis mutandis ao tema das virtudes morais devemos dizer que a perfeiccedilatildeo que podemos ter delas sem a caridade eacute uma perfeiccedilatildeo segundo o tempo isto eacute o homem pode praticaacute-las de forma perfeita para satisfazer a vida poliacutetica a que elas se ordenam e agrave qual ele eacute chamado por natureza Isso eacute possiacutevel porque se por um lado mdash apoacutes o pecado mdash o ldquo[] homem falha naquilo que lhe eacute possiacutevel pela sua natureza a tal ponto que ele natildeo pode mais por suas forccedilas naturais realizar totalmente o bem proporcionado agrave sua naturezardquo27 por outro o bem comum que eacute aquilo que o homem busca na vida poliacutetica mdash agrave qual as virtudes eacuteticas o ordenam mdash tambeacutem natildeo reclama dele necessariamente o ato de todas as virtudes nem pretende coibir

26 TOMAacuteS DE AQUINO A Caridade a Correccedilatildeo Fraterna e a Esperanccedila Trad Paulo Faitanin Bernardo Veiga Satildeo Paulo Ecclesiae 2013 2 10 C ldquoPerfectum secundum tempus dicimus quando nihil deest alicui eorum quae natum est habere secundum tempus illud sicut dicimus puerum perfectum quia habet ea quae requiruntur ad hominem secundum aetatem illamrdquo Na Summa Tomaacutes fala do virtuoso como dotado de uma ldquoperfeiccedilatildeo deficienterdquo se comparada com a divina Idem Suma Teoloacutegica II-II 161 1 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod perfectum dicitur aliquid dupliciter Uno modo simpliciter in quo scilicet nullus defectus invenitur nec secundum suam naturam nec per respectum ad aliquid aliud Et sic solus Deus est perfectus cui secundum naturam divinam non competit humilitas sed solum secundum naturam assumptam Alio modo potest dici aliquid perfectum secundum quid puta secundum suam naturam vel secundum statum aut tempus Et hoc modo homo virtuosus est perfectus Cuius tamen perfectio in comparatione ad Deum deficiens invenitur []rdquo ldquoDeve-se dizer que de duas maneiras se atesta que um ser eacute perfeito Primeiro absolutamente quando nele nenhum defeito existe nem em si mesmo nem em relaccedilatildeo a outros seres Neste sentido perfeito eacute soacute Deus a cuja natureza divina natildeo cabe a humildade mas soacute pela natureza assumida mdash Segundo em sentido relativo por exemplo quanto agrave sua natureza ou quanto agrave sua condiccedilatildeo ou ainda quanto ao tempo Nesse sentido o homem virtuoso eacute perfeito malgrado sua perfeiccedilatildeo seja deficiente comparada com Deus []rdquo 27 Idem Ibidem I-II 109 2 C ldquoSed in statu naturae corruptae etiam deficit homo ab hoc quod secundum suam naturam potest ut non possit totum huiusmodi bonum implere per sua naturaliardquo

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todos os viacutecios Tomaacutes natildeo eacute afeito a represaacutelias Aliaacutes segundo ele querer reprimir toda sorte de pecados pode incitar a viacutecios maiores ldquoDeve-se dizer que agraves vezes como foi dito natildeo eacute bom corrigir o pecado para que ele natildeo fique piorrdquo28 De sorte que agraves vezes conclui o Aquinate noutro trecho o remeacutedio eacute tolerar para que as coisas natildeo fiquem ainda piores ldquo[] como diz Agostinho lsquoSuprime as meretrizes da sociedade humana e perturbaraacutes tudo com a libidinagemrsquordquo29 O fato eacute que a lei natildeo visa a coibir todos viacutecios ou a preceituar todas as virtudes

E assim pela lei humana natildeo satildeo proibidos todos os viacutecios dos quais se abstecircm os virtuosos mas tatildeo-soacute os mais graves dos quais eacute possiacutevel agrave maior parte dos homens se abster e principalmente aqueles que satildeo em prejuiacutezo dos outros sem cuja proibiccedilatildeo a sociedade humana natildeo pode conservar-se []30

A lei humana poreacutem natildeo preceitua sobre todos os atos de todas as virtudes mas apenas sobre aqueles que satildeo ordenaacuteveis ao bem comum ou imediatamente como quando algumas coisas se fazem diretamente em razatildeo do bem comum ou mediatamente como quando satildeo ordenadas pelo legislador algumas coisas pertencentes agrave boa disciplina por meio da qual os cidadatildeos satildeo

28 Idem Ibidem II-II 150 1 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod aliquando correctio peccatoris est intermittenda ne fiat inde deterior ut supra dictum estrdquo 29 Idem Ibidem II-II 10 11 C ldquo[] sicut Augustinus dicit in II de ordine aufer meretrices de rebus humanis turbaveris omnia libidinibusrdquo 30 Idem Ibidem I-II 96 2 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoEt ideo lege humana non prohibentur omnia vitia a quibus virtuosi abstinent sed solum graviora a quibus possibile est maiorem partem multitudinis abstinere et praecipue quae sunt in nocumentum aliorum sine quorum prohibitione societas humana conservari non posset sicut prohibentur lege humana homicidia et furta et huiusmodirdquo Nas respostas agraves objeccedilotildees o Aquinate chega a dizer que embora a lei mire a virtude quando se tenta pela lei fazer com que a multidatildeo se abstenha de suacutebito de todos os males esta pretensatildeo acaba por gerar um colapso social Idem Ibidem I-II 96 2 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod lex humana intendit homines inducere ad virtutem non subito sed gradatim Et ideo non statim multitudini imperfectorum imponit ea quae sunt iam virtuosorum ut scilicet ab omnibus malis abstineant Alioquin imperfecti huiusmodi praecepta ferre non valentes in deteriora mala prorumperent []rdquo ldquoDeve-se dizer que a lei humana tenciona induzir os homens agrave virtude natildeo de suacutebito mas gradualmente E assim natildeo impotildee imediatamente agrave multidatildeo dos imperfeitos aquelas coisas que satildeo jaacute dos virtuosos como por exemplo que se abstenham de todos os males De outro modo os imperfeitos natildeo podendo suportar tais preceitos se lanccedilariam a males piores []rdquo

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formados para que conservem o bem comum da justiccedila e da paz31

Mas entatildeo natildeo eacute necessaacuteria a caridade para a consecuccedilatildeo

do bem comum Novamente Tomaacutes natildeo se deixa levar pela univocidade Necessaacuterio segundo o Aquinate pode ser entendido de duas formas

[] ou porque sem ele algo natildeo pode existir por exemplo o alimento eacute necessaacuterio para a conservaccedilatildeo da vida humana ou porque com ele se chega ao fim de modo melhor e mais conveniente por exemplo o cavalo eacute necessaacuterio para viajar32

Quanto ao primeiro modo de necessidade pode-se dizer

que a caridade natildeo eacute necessaacuteria agrave persecuccedilatildeo do bem comum jaacute que este natildeo exige nem uma perfeiccedilatildeo segundo a natureza nem visa a coibir todos os viacutecios Quanto ao segundo modo de necessidade parece evidente que a caridade eacute necessaacuteria pois com a sua correccedilatildeo podemos chegar ao bem viver de forma melhor e mais completa Tendo presentes estes conceitos fundantes passemos a aplicaacute-los agrave eacutetica tal como concebida por Tomaacutes 33 A CONCEPCcedilAtildeO TOMASIANA DA EacuteTICA

No opuacutesculo Quaestiones disputatae De Virtutibus que data da mesma eacutepoca do Comentaacuterio agrave Eacutetica portanto entre 1271 e 1272 mdash ao disputar sobre as virtudes cardeais ou seja a prudecircncia a justiccedila a fortaleza e a temperanccedila mdash Tomaacutes afirma serem elas

31 Idem Ibidem I-II 96 3 C [O itaacutelico eacute nosso] ldquoNon tamen de omnibus actibus omnium virtutum lex humana praecipit sed solum de illis qui sunt ordinabiles ad bonum commune vel immediate sicut cum aliqua directe propter bonum commune fiunt vel mediate sicut cum aliqua ordinantur a legislatore pertinentia ad bonam disciplinam per quam cives informantur ut commune bonum iustitiae et pacis conserventrdquo 32 Idem Ibidem III 1 2 C ldquoRespondeo dicendum quod ad finem aliquem dicitur aliquid esse necessarium dupliciter uno modo sine quo aliquid esse non potest sicut cibus est necessarius ad conservationem humanae vitae alio modo per quod melius et convenientius pervenitur ad finem sicut equus necessarius est ad iterrdquo

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ditas cardeais porque satildeo como a dobradiccedila que gira uma porta no sentido de que eacute por meio do exerciacutecio delas que o homem eacute como que introduzido no humano isto eacute numa vida condizente com a sua natureza enquanto tal Aquino daacute tal valecircncia a estas virtudes morais que diz ser a vida praacutetica qual seja a vida moral mdash na qual elas como que nos entronizam mdash a vida propriamente humana sendo a vida que se apega unicamente aos sentidos bestial e a vida contemplativa sobre-humana Vemos aqui que o Aquinate com a analogia da dobradiccedila que gira uma porta aproxima-se muito da metaacutefora do ἤθος (ḗthos) como a casa do homem bem como de uma concepccedilatildeo da ἠθική (ēthikḗ) como a ciecircncia do eacutethos Em outros termos Tomaacutes concebe que a eacutetica tenha de forma irrevogaacutevel uma face humana destinada agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica Tomemos as palavras do proacuteprio autor

Respondo dizendo que ldquocardealrdquo se diz da dobradiccedila na qual se gira a porta [] Por isso se chamam virtudes cardeais aquelas nas quais se fundam a vida humana pela qual se entra pela porta A vida humana poreacutem eacute a proporcionada ao homem No entanto em relaccedilatildeo ao homem se encontra primeiramente uma certa natureza sensitiva na qual coincide com a dos animais irracionais A razatildeo praacutetica que eacute proacutepria do homem se encontra conforme o seu grau e o intelecto especulativo que natildeo se encontra de modo perfeito no homem assim como se encontra nos anjos mas segundo uma certa participaccedilatildeo da alma Por isso a vida contemplativa natildeo eacute propriamente humana mas sobre-humana Contudo a vida voluptuosa que se apega aos bens sensiacuteveis natildeo eacute humana mas bestial Logo a vida propriamente humana eacute a vida ativa que consiste no exerciacutecio das virtudes morais E por isso satildeo chamadas propriamente de virtudes cardeais aquelas pelas quais de algum modo a vida moral se funda e se altera assim como em certos princiacutepios de tal vida33

33 TOMAacuteS DE AQUINO As Virtudes Morais Trad Paulo Faitanin Bernardo Veiga Satildeo Paulo Ecclesiae 2012 5 1 C [Os itaacutelicos satildeo nossos] ldquoRespondeo Dicendum quod cardinalis a cardine dicitur in quo ostium vertitur [] Unde virtutes cardinales dicuntur in quibus fundatur vita humana per quam in ostium introitur vita autem humana est quae est homini proportionata In hoc homine autem invenitur primo quidem natura sensitiva in qua convenit cum brutis ratio practica quae est homini propria secundum suum gradum et intellectus speculativus qui non

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Neste sentido pensamos poder afirmar que Tomaacutes permanece fiel ao ideal da eacutetica antiga inclusive da aristoteacutelica No nosso entendimento a leitura da eacutetica aristoteacutelica pelo Aquinate corresponde por assim dizer ao exerciacutecio que ele empreende para girar a dobradiccedila da porta que o possibilita adentrar na casa do homem a qual tem o seu alicerce exatamente nas virtudes cardeais as principais virtudes relacionadas agrave vida eacutetica Mas qual eacute o papel da razatildeo na formulaccedilatildeo da eacutetica tomasiana 34 O PAPEL DA RAZAtildeO DA LINGUAGEM E DA LEI NA EacuteTICA TOMASIANA

A razatildeo faculta ao homem a capacidade de ir aleacutem da simples ldquoemissatildeo de vozrdquo para a comunicaccedilatildeo pela palavra (verbum) pela linguagem (locutio) A falar com maacutexima exaccedilatildeo Tomaacutes distingue a palavra enquanto simples ldquoemissatildeo de vozrdquo do verbum que segundo o Aquinate eacute uma palavra dotada de significado Em passagem jaacute citada ele afirma ldquoA palavra [vox=voz] que natildeo eacute significativa natildeo pode ser chamada de verbo [verbum=palavra]rdquo34 Sendo pois a palavra [verbum] uma voz dotada de significado temos que a ldquosimples vozrdquo eacute uma peculiaridade dos seres vivos em geral mdash ldquo[] nenhum ente inanimado tem vozrdquo35 mdash enquanto a palavra (verbum) eacute exclusiva dos seres racionais Desta sorte na concepccedilatildeo de Aquino a palavra (verbum) eacute obra da razatildeo36 A partir desta visatildeo de razatildeo como a

perfecte in homine invenitur sicut invenitur in Angelis sed secundum quamdam participationem animae Ideo vita contemplativa non est proprie humana sed superhumana vita autem voluptuosa quae inhaeret sensibilibus bonis non est humana sed bestialis Vita ergo proprie humana est vita activa quae consistit in exercitio virtutum moralium et ideo proprie virtutes cardinales dicuntur in quibus quodammodo vertitur et fundatur vita moralis sicut in quibusdam principiis talis vitae []rdquo 34 Idem Suma Teoloacutegica I 34 1 C ldquoVox autem quae non est significativa verbum dici non potestrdquo 35 TOMAacuteS DE AQUINO Sentencia De anima Lib 2 18 n 1 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgcan2htmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoNullum autem inanimatum habet vocemrdquo 36 Idem Suma Teoloacutegica I 34 1 C Sic igitur primo et principaliter interior mentis conceptus verbum dicitur secundario vero ipsa vox interioris conceptus significativa []rdquo ldquoVerbo

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capacidade de se expressar de forma significativa pensamos que a conceptualidade filosoacutefica da eacutetica tomasiana recupera mdash a seu modo mdash o fundamento da eacutetica aristoteacutelica Mesmo os leitores mais tradicionais de Tomaacutes reconhecem que a linguagem desempenha um papel preponderante no seu pensamento poliacutetico ldquoMas o sinal mais evidente da natureza social do homem eacute a faculdade de exprimir as suas ideias aos outros homens por meio da linguagemrdquo37 No De Regno Tomaacutes afirma ter sido a linguagem o fator fundante da vida poliacutetica

Isto se patenteia com muita evidecircncia no ser proacuteprio do homem usar da linguagem pela qual pode exprimir totalmente a outrem o seu conceito [] Eacute pois o homem mais comunicativo que qualquer outro animal gregaacuterio como o grou a formiga e a abelha38

Porro comentando esta passagem natildeo deixa duacutevidas ldquoA

comunidade poliacutetica fundamenta-se tambeacutem na linguagem pois o homem eacute absolutamente o animal lsquomais comunicativorsquordquo 39 Destarte pela razatildeo o homem torna-se capaz de dizer o que eacute bem e o que eacute mal de distinguir as accedilotildees justas das injustas Poreacutem exatamente por esta razatildeo ser comunicaacutevel estaacute inscrita na proacutepria natureza humana que a consecuccedilatildeo destes valores mdash bemmal justoinjusto mdash soacute se pode dar em comunhatildeo com outros

[verbum=palavra] portanto significa primeira e principalmente o conceito interior da mente Em segundo lugar a palavra que exprime o conceito interiorrdquo 37 COPLESTON Frederick Storia della Filosofia Vol II La Filosofia Medioevale da Agostino a Escoto Trad A Balestrieri Sacchi Rev Enzo Maccagnolo Brescia Paideia 1971 p 524 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoMa il segno piugrave evidente della natura sociale dellrsquouomo egrave la facoltagrave di esprimere le sue idee ad altri uomini per mezzo del linguaggiordquo 38 TOMAacuteS DE AQUINO Do reino ou do governo dos priacutencipes ao Rei de Chipre Trad Arlindo Veiga dos Santos Rev Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento I II In Escritos Poliacuteticos de Santo Tomaacutes de Aquino Rio de Janeiro Vozes 1997 (Claacutessicos do pensamento poliacutetico) p 127 ldquoHoc etiam evidentissime declaratur per hoc quod est proprium hominis locutione uti per quam unus homo aliis suum conceptum totaliter potest exprimere [] Magis igitur homo est communicativus alteri quam quodcumque aliud animal quod gregale videtur ut grus formica et apisrdquo 39 PORRO Tomaacutes de Aquino Um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 209

164 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino homens De sorte que o discernimento do que eacute justo e do que eacute injusto deve ser celebrado quando os homens comungam da vida uns dos outros Eacute assim que nasce a civitas No Comentaacuterio agrave Poliacutetica Tomaacutes argumenta

Vemos com efeito que se certos animais tecircm a voz ou o grito apenas o homem tem a linguagem (locutio) [] A palavra humana serve para significar o que eacute uacutetil e o que eacute nocivo e tambeacutem o justo e o injusto Justiccedila e injusticcedila consistem em que alguns se ajustam ou natildeo em mateacuteria de utilidade ou de nocividade A palavra eacute pois proacutepria aos homens porque em comparaccedilatildeo aos animais lhes eacute proacuteprio ter o conhecimento do bem e do mal do justo e do injusto e de outras realidades desse gecircnero que podem ser significadas pela palavra (sermo)40

Uma vez que a palavra foi dada ao homem pela natureza e uma vez que ela eacute ordenada a permitir a ldquocomunicaccedilatildeordquo entre os homens em mateacuteria de utilidade e nocividade de justiccedila e de injusticcedila e de outros valores semelhantes segue-se mdash dado que a natureza nada faz em vatildeo mdash que eacute natural aos homens ldquocomunicarrdquo entre si sobre essas realidades Ora eacute precisamente a ldquocomunicaccedilatildeordquo nesses valores que constitui a famiacutelia e a cidade o homem eacute pois por natureza um ser domeacutestico e poliacutetico41

Nem podemos dizer que esta seja uma posiccedilatildeo que o

Aquinate assume enquanto comentarista de Aristoacuteteles jaacute que ele a

40 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia libri Politicorum Lib 1 1 n 28 e 29 In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 336 ldquoVidemus enim quod cum quaedam alia animalia habeant vocem solus homo supra alia animalia habeat loquutionem [] Sed loquutio humana significat quid est utile et quid nocivum Ex quo sequitur quod significet iustum et iniustum Consistit enim iustitia et iniustitia ex hoc quod aliqui adaequentur vel non aequentur in rebus utilibus et nocivis Et ideo loquutio est propria hominibus quia hoc est proprium eis in comparatione ad alia animalia quod habeant cognitionem boni et mali ita et iniusti et aliorum huiusmodi quae sermone significari possuntrdquo 41 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia libri Politicorum Lib 11 n 29 In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 336 ldquoCum ergo homini datus sit sermo a natura et sermo ordinetur ad hoc quod homines sibiinvicem communicent in utili et nocivo iusto et iniusto et aliis huiusmodi sequitur ex quo natura nihil facit frustra quod naturaliter homines in his sibi communicent Sed communicatio in istis facit domum et civitatem Igitur homo est naturaliter animal domesticum et civilerdquo

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retoma em suas obras de siacutentese Na Summa Contra Gentiles ele define que ldquo[] o homem eacute naturalmente animal poliacutetico e socialrdquo 42 Mas tentemos aprofundar o que buscamos dizer Quando Tomaacutes pensa na lei por exemplo ele a pensa como regra e medida dos atos humanos43 afirmando que esta regra estaacute na razatildeo ldquoA regra e a medida dos atos humanos eacute com efeito a razatildeo []rdquo44 E diz mais ao afirmar que a razatildeo eacute ldquo[] o primeiro princiacutepio dos atos humanos []rdquo45 Noutro lugar mdash depois de destacar que no homem se encontram muitas coisas mdash sublinha que ldquoA razatildeo no homem ocupa o lugar do que domina e natildeo do que estaacute submetido agrave dominaccedilatildeordquo46 Entretanto haacute mais Ao propugnar que a razatildeo eacute a regra dos atos humanos discrimina tambeacutem o que de especiacutefico a razatildeo dita ao homem E entre outras coisas a razatildeo dita ao homem ldquo[] que viva em sociedade [] que natildeo ofenda aqueles com os quais deve conviver []rdquo47

Todavia o Aquinate natildeo para por aiacute Quando deseja definir qual eacute a obra proacutepria da razatildeo assinala de forma coerente ldquo[] a linguagem obra proacutepria da razatildeo []rdquo48 Desta sorte se a regra dos atos humanos eacute a razatildeo sendo a obra proacutepria dela a linguagem isto eacute a capacidade de comunicaccedilatildeo e por conseguinte de criar comunhatildeo entre os homens torna-se claro que o que a razatildeo nos ordena de mais proacuteprio eacute viver em comunidade Logo qualquer ordenaccedilatildeo ulterior da razatildeo ou seja qualquer lei ldquo[] por primeiro e principalmente visa a ordenaccedilatildeo ao bem

42 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios III LXXXV 10 [2607] ldquoHomo naturaliter est animal politicum vel sociale []rdquo 43 Idem Suma Teoloacutegica I-II 90 1 C ldquo[] lex quaedam regula est et mensura actuum []rdquo 44 Idem Ibidem ldquoRegula autem et mensura humanorum actuum est ratio []rdquo 45 Idem Ibidem ldquoPrimum principium actuum humanorum []rdquo 46 Idem Ibidem I 96 2 C ldquoRatio autem in homine habet locum dominantis et non subiecti dominiordquo 47 Idem Ibidem I-II 94 2 C ldquo[] quod in societate vivat [] quod alios non offendat cum quibus debet conversari []rdquo 48 Idem Ibidem I 91 3 ad 3 ldquo[] locutionem quae est proprium opus rationis []rdquo

166 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino comumrdquo49 De acordo com Tomaacutes ldquoComo pois cada homem eacute parte da cidade eacute impossiacutevel que um homem seja bom a menos que seja bem proporcionado ao bem comum []rdquo50 Assim toda lei soacute tem valor de lei se for instituiacuteda pela multidatildeo ou por quem a representa Neste sentido se o legislador for um deacutespota ldquoDeve-se dizer que a lei tiracircnica uma vez que natildeo eacute segundo a razatildeo natildeo eacute simplesmente lei mas antes certa perversidade da leirdquo51 Em outras palavras soacute pode haver lei quando ela eacute constituiacuteda pela comunicaccedilatildeo da linguagem vale dizer pela comunhatildeo de valores que nasce desta comunicaccedilatildeo Diz Tomaacutes

Ordenar poreacutem algo para o bem comum eacute ou de toda a multidatildeo ou de algueacutem que faz as vezes de toda a multidatildeo E assim constituir a lei ou pertence a toda a multidatildeo ou pertence agrave pessoa puacuteblica que tem o cuidado de toda a multidatildeo52

Abbagnano ao comentar esta passagem da Suma afirma

ldquoSanto Tomaacutes desta forma explicitamente afirmou a origem popular das leisrdquo53 Aliaacutes o proacuteprio Tomaacutes acena para isso

Se com efeito eacute uma multidatildeo livre que pode fazer-se a lei o consenso de toda a multidatildeo para algo a observar-se que o costume manifesta eacute mais do que a autoridade do priacutencipe que

49 Idem Ibidem I-II 90 3 C ldquo[] primo et principaliter respicit ordinem ad bonum commune []rdquo 50 Idem Ibidem I-II 92 1 ad 3 ldquoCum igitur quilibet homo sit pars civitatis impossibile est quod aliquis homo sit bonus nisi sit bene proportionatus bono communi []rdquo 51 Idem Ibidem I-II 92 1 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod lex tyrannica cum non sit secundum rationem non est simpliciter lex sed magis est quaedam perversitas legisrdquo 52 Idem Ibidem I-II 90 3 C ldquoOrdinare autem aliquid in bonum commune est vel totius multitudinis vel alicuius gerentis vicem totius multitudinis Et ideo condere legem vel pertinet ad totam multitudinem vel pertinet ad personam publicam quae totius multitudinis curam habet Quia et in omnibus aliis ordinare in finem est eius cuius est proprius ille finisrdquo 53 ABBAGNANO Nicola Storia della Filosofia La Filosofia Antica la Patristica e la Escolastica Torino UTET Libreria 2003 p 581 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoS Tommaso ha cosiacute esplicitamente affermato lrsquoorigine popolare delle leggirdquo

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natildeo tem poder de fazer a lei a natildeo ser enquanto gere a pessoa da multidatildeo54

Contudo podemos nos perguntar no caso de transferir

para o priacutencipe a missatildeo de legislar a multidatildeo natildeo se estaacute alienando da sua missatildeo proacutepria De modo algum Urge que entendamos ao menos em suas linhas gerais como Tomaacutes pensa o governo Natildeo se tem duacutevida de que para ele havendo acomodaccedilatildeo para tanto o governo de um soacute eacute o melhor de todos os regimes Poreacutem o governo de um soacute natildeo significa pura e simplesmente que somente uma pessoa venha a deter todo o poder55 Antes a autoridade constituiacuteda (o priacutencipe ou o rei) natildeo pode assegurar o bem comum do povo sem o povo Por conseguinte eacute de suma importacircncia que aquele que governa junte a si mdash de todas as partes do corpo social mdash os que possam conjuntamente colaborar na busca do bem comum Ora isto leva o Aquinate a optar na verdade por uma espeacutecie de regime misto como o melhor

O priacutencipe rei ou de qualquer modo que se o designe natildeo pode assegurar o bem comum do povo senatildeo apoiando-se nele Por conseguinte deve buscar a colaboraccedilatildeo de todas as forccedilas sociais para o bem comum para dirigi-las e uni-las Daiacute nasce o que o mesmo Santo Tomaacutes denomina um ldquoregime bem dosadordquo que eacute o que considera melhor56

54 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 97 3 ad 3 ldquoSi enim sit libera multitudo quae possit sibi legem facere plus est consensus totius multitudinis ad aliquid observandum quem consuetudo manifestat quam auctoritas principis qui non habet potestatem condendi legem nisi inquantum gerit personam multitudinisrdquo 55 GILSON Eacutetienne Introduccioacuten a La Filosofiacutea de Santo Tomaacutes de Aquino Trad Alberto Oteiza Quirno Buenos Aires Ediciones Descleacutee de Brouwer 1951 pp 458-459 ldquoPor lo dicho debemos entender que el mejor de los regiacutemenes poliacuteticos es el que somete el cuerpo social al gobierno de uno solo pero no que el mejor reacutegimen sea el gobierno del Estado por uno solordquo ldquoPelo que foi dito devemos entender que o melhor dos regimes poliacuteticos eacute o que submete o corpo social ao governo de um soacute poreacutem natildeo que o melhor regime seja o governo do Estado por um soacuterdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 56 Idem Ibidem p 459 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEl priacutencipe rey o de cualquier modo con que se lo designe no puede asegurar el bieacuten comuacuten del pueblo sino apoyaacutendose en eacutel Por conseguiente debe buscar la colaboracioacuten de todas as fuerzas sociales para el bien comuacuten para dirigirlas y unirlasrdquo Assim fica esclarecido que Tomaacutes nunca defendeu uma monarquia no sentido moderno do termo Longe dele por exemplo defender uma monarquia absolutista fundada no direito de sangue Idem

168 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Mas como este regime misto funcionaria Duas coisas seriam necessaacuterias para o seu bom funcionamento a primeira conforme jaacute referimos eacute que todos os cidadatildeos de alguma forma participem da autoridade A segunda consiste em determinar o modo adequado segundo o qual se deve distribuir esta mesma autoridade Tal distribuiccedilatildeo deve ser feita consoante a virtude Assim sendo o proacuteprio rei ou priacutencipe seria eleito como cabeccedila de todo o corpo segundo a sua virtude Abaixo dele e igualmente conforme as suas virtudes seriam eleitos tambeacutem alguns chefes Mas o fato de apenas alguns participarem diretamente da autoridade natildeo excluiria tampouco o resto do povo do governo pois estes chefes poderiam ser escolhidos dentre o povo e pelo povo57

Eis em suas linhas gerais qual seria o melhor regime para Tomaacutes porque conteacutem mdash ldquobem dosadordquo mdash o melhor de cada um dos regimes justos Da monarquia o fato de que um soacute preside Da aristocracia porque o povo tambeacutem delega certo poder a alguns cidadatildeos de acordo com as suas virtudes Da democracia porque estes deputados a chefes do povo satildeo eleitos dentre o povo e pelo

Ibidem ldquoEste reacutegimen no se parece en nada a las monarquiacuteas absolutas fundadas en el derecho de la sangre que han pretendido a veces justificarse en la autoridad de Santo Tomaacutes de Aquinordquo ldquoEste regime natildeo se parece em nada com as monarquias absolutistas fundadas no direito de sangue que pretenderam agraves vezes justificar-se na autoridade de Santo Tomaacutesrdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] 57 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 105 1 C ldquoRespondeo dicendum quod circa bonam ordinationem principum in aliqua civitate vel gente duo sunt attendenda Quorum unum est ut omnes aliquam partem habeant in principatu per hoc enim conservatur pax populi et omnes talem ordinationem amant et custodiunt [] Aliud est quod attenditur secundum speciem regiminis vel ordinationis principatuum [] Unde optima ordinatio principum est in aliqua civitate vel regno in qua unus praeficitur secundum virtutem qui omnibus praesit et sub ipso sunt aliqui principantes secundum virtutem et tamen talis principatus ad omnes pertinet tum quia ex omnibus eligi possunt tum quia etiam ab omnibus eligunturrdquo ldquoDuas coisas devem ser consideradas acerca da boa ordenaccedilatildeo dos priacutencipes numa cidade ou povo Uma das quais eacute que todos tenham alguma parte no principado Com efeito por meio disso conserva-se a paz do povo e todos amam e guardam tal ordenaccedilatildeo [] Outra coisa eacute o que se considera segundo a espeacutecie de regime ou de ordenaccedilatildeo dos priacutencipes [] Donde a melhor ordenaccedilatildeo dos priacutencipes numa cidade ou reino eacute aquela na qual um eacute posto como chefe com poder o qual a todos preside e sob o mesmo estatildeo todos os que governam com poder e assim tal principado pertence a todos quer porque podem ser escolhidos dentre todos quer porque tambeacutem satildeo escolhidos por todosrdquo [Os itaacutelicos satildeo nossos]

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povo58 Assim o fato de o povo eleger o rei ou o priacutencipe natildeo o aliena da missatildeo de legislar

Eacute preciso ratificar ainda que Tomaacutes de Aquino natildeo eacute um ldquoconvencionalistardquo Ele admite como temos visto que haacute uma lei natural uma lei racional comum a todos os homens O que queremos frisar eacute que ele natildeo deixa de defender tambeacutem que esta lei soacute pode ser descoberta pelos homens quando eles comungam da vida uns dos outros e instituem leis pela mediaccedilatildeo da linguagem (locutio) obra proacutepria da ratio Dito de outro modo pela ldquolocutiordquo daacute-se um exerciacutecio da ldquorazatildeo praacuteticardquo que nos faz chegar por deduccedilatildeo agraves disposiccedilotildees mais particulares da lei natural que satildeo justamente as leis humanas conforme atesta o proacuteprio Aquinate

[] assim tambeacutem dos preceitos da lei natural como de alguns princiacutepios comuns e indemonstraacuteveis eacute necessaacuterio que a razatildeo humana proceda para dispor mais particularmente algumas coisas E estas disposiccedilotildees particulares descobertas segundo a razatildeo humana dizem-se leis humanas []59

Natildeo obstante a lei precise ainda de outros requisitos para

ser efetivada como lei humana este eacute o seu cerne um movimento pelo qual os homens pela mediaccedilatildeo da linguagem descobrem juntos atraveacutes do exerciacutecio das virtudes e do raciociacutenio alguns valores dos quais podem comungar porque inerentes agrave sua natureza Reacutemi Brague ao lidar com estas passagens conclui que a lei natildeo nasce como algo imposto ao homem de fora mas sim como

58 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 105 1 C ldquoTalis enim est optima politia bene commixta ex regno inquantum unus praeest et aristocratia inquantum multi principantur secundum virtutem et ex democratia idest potestate populi inquantum ex popularibus possunt eligi principes et ad populum pertinet electio principumrdquo ldquoTal eacute com efeito o melhor governo bem combinado de reino enquanto um soacute preside de aristocracia enquanto muitos governam com poder e de democracia isto eacute com o poder do povo enquanto os priacutencipes podem ser eleitos dentre as pessoas do povo e ao povo pertence a eleiccedilatildeo dos priacutencipesrdquo 59 Idem Ibidem I-II 91 3 C ldquo[] ita etiam ex praeceptis legis naturalis quasi ex quibusdam principiis communibus et indemonstrabilibus necesse est quod ratio humana procedat ad aliqua magis particulariter disponenda Et istae particulares dispositiones adinventae secundum rationem humanam dicuntur leges humanae []rdquo

170 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino algo que lhe eacute proposto pela vivecircncia em comum e pela atividade da ldquoratiordquo que ele assume como seu no dinamismo razatildeovontade

Mas em toda a extensatildeo do termo [ratio] fica uma ideacuteia de uma capacidade de tornar seu de se apropriar do que eacute dado Podemos nos inserir numa ordem e natildeo nos submeter a ela apenas podemos compreender uma forma de agir e natildeo imitaacute-la servilmente apenas E em contrapartida essa ratio diz Tomaacutes eacute proposita agrave criatura racional Podemos traduzir esta palavra por ldquopropostardquo mas desde que se entenda como ldquoposta peranterdquo em todo caso natildeo imposta pelo alto60

Ora eacute este exerciacutecio racional precipuamente que leva a

ato o habitus natural dos primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica que Tomaacutes denomina sindeacuterese

Por conseguinte os princiacutepios da ordem da accedilatildeo de que somos dotados naturalmente natildeo pertencem a uma potecircncia especial mas a um haacutebito natural especial que chamamos sindeacuterese Por isso se diz que a sindeacuterese incita ao bem e condena o mal na medida em que noacutes mediante os primeiros princiacutepios buscamos descobrir e julgamos o que encontramos61

E o ato do habitus da sindeacuterese que se daacute de forma

privilegiada quando os homens pelo raciociacutenio descobrem que alguns valores satildeo intriacutensecos agrave sua natureza eacute denominado por Tomaacutes consciecircncia ldquoMas pelo fato de o habitus ser princiacutepio do ato agraves vezes se atribui o nome de consciecircncia ao primeiro haacutebito natural isto eacute agrave sindeacutereserdquo62 Na verdade eacute deste exerciacutecio que

60 BRAGUE Reacutemi A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila Trad Luacutecia Pereira de Souza Rev Sandra G Custoacutedio Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2009 p 291 61 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 79 12 C ldquoUnde et principia operabilium nobis naturaliter indita non pertinent ad specialem potentiam sed ad specialem habitum naturalem quem dicimus synderesim Unde et synderesis dicitur instigare ad bonum et murmurare de malo inquantum per prima principia procedimus ad inveniendum et iudicamus inventardquo 62 Idem Ibidem I 79 13 C ldquoQuia tamen habitus est principium actus quandoque nomen conscientiae attribuitur primo habitui naturali scilicet synderesi []rdquo

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acabamos de tentar descrever que nasce a civitas e o conceito de beatitude natural no Aquinate Mas antes de passarmos ao proacuteximo toacutepico importa esclarecermos um ponto 341 EacuteTICA DAS VIRTUDES E LEI NATURAL

Estamos a falar de uma eacutetica das virtudes ou de uma eacutetica dos princiacutepios de obrigaccedilatildeo do direito natural A questatildeo faz sentido mas eacute preciso ponderar que talvez esta natildeo seja a sua melhor formulaccedilatildeo A pergunta correta seria a uma eacutetica das virtudes opotildee-se a existecircncia de uma lei natural A princiacutepio de fato parece mesmo que a lei nos eacute imposta de fora Nesta direccedilatildeo diz Tomaacutes ldquoJaacute o princiacutepio que move exteriormente ao bem eacute Deus que nos instrui pela lei []rdquo63 Poreacutem o que eacute a lei A lei jaacute pudemos constatar ldquo[] eacute algo que pertence agrave razatildeordquo64 Ora a razatildeo eacute o que especifica a natureza humana Assim tanto a virtude quanto a lei natural dispotildeem-nos a seguir a nossa natureza Neste sentido a lei natural natildeo nos eacute imposta de fora nem nos eacute dada de uma soacute vez como um decaacutelogo inscrito em ldquotaacutebuas de pedrardquo Ela se quisermos permanecer na imagem biacuteblica estaacute inscrita em ldquotaacutebuas de carnerdquo a saber em nossos ldquocoraccedilotildeesrdquo

O homem natildeo eacute apenas capaz de conhecer a lei moral natural como lei de seu dever mas essa mesma lei o obriga tambeacutem de uma maneira racionalmente fundamentada a estar ativamente soliacutecito de si e de seu proacuteximo A razatildeo humana eacute assim a faculdade propriamente legisladora do homem ela estaacute na origem do dever Nenhuma espeacutecie de obrigaccedilatildeo pode ser

63 Idem Ibidem I-II 90 ldquoPrincipium autem exterius movens ad bonum est Deus qui et nos instruit per legem []rdquo A traduccedilatildeo de ldquoinstruitrdquo por ldquoinstruirdquo eacute equiacutevoca e induz a erro BRAGUE A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila p 289 ldquoPela lei Deus nos instruit (latim) o que de forma alguma deve ser traduzido em francecircs pelo falso cognato lsquoinstruirsquo mas por lsquoprovecircrsquo natildeo se trata de ensinar aos homens o que eles devem fazer mas de provecirc-los de instrumentos para que possam fazecirc-lordquo [O itaacutelico eacute nosso] 64 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 90 1 C ldquoUnde relinquitur quod lex sit aliquid pertinens ad rationemrdquo

172 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

imposta ao homem que natildeo seja ditada por sua razatildeo pois o dever moral fundamenta-se exclusivamente numa intuiccedilatildeo interior e natildeo numa ordem imposta de fora Num vago paralelo com o conceito kantiano de razatildeo praacutetica pode-se falar aqui de uma autonomia moral da razatildeo mas sem esquecer que em teologia o ponto de partida eacute a ordem da criaccedilatildeo e que para Tomaacutes de Aquino o fundamento uacuteltimo se entende com base na Sabedoria divina65

Ora descobrimos as leis da nossa razatildeo quando esta

conhece as suas proacuteprias regras captando-as na experiecircncia da vida virtuosa bem como no ldquocoloacutequiordquo com os nossos coetacircneos e com aqueles que nos precederam ldquoCom efeito quando se trata de accedilotildees e paixotildees humanas em que a experiecircncia vale mais que tudo os exemplos movem mais que as palavrasrdquo66 Por isso Tomaacutes afirma que ldquo[] tambeacutem pelos atos maximamente multiplicados que constituem o costume pode a lei ser mudada e expostardquo67 Isto nos faz perceber que o Aquinate natildeo tem um conceito de todo estaacutetico da lei mas dinacircmico Muitas coisas foram e podem na lida com a experiecircncia humana ser acrescidas agrave lei ldquo[] muitas coisas com efeito foram acrescentadas agrave lei natural uacuteteis para a vida humana tanto pela lei divina quanto tambeacutem pelas leis humanasrdquo68 Natildeo soacute mas no tempo que inexoravelmente corre esta lei mdash salvo em seus princiacutepios primeiros e incoerciacuteveis mdash pode tambeacutem ser olvidada pelos homens

65 LEacuteCRIVAIN Ph SESBOUumlEacute Bernard [et al] Histoacuteria dos Dogmas O homem e sua Salvaccedilatildeo Trad Orlando Soares Moreira Rev Sheila Tonon Fabre e Cristina Peres 3 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 v 2 p 463 66 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 34 1 C ldquoIn operationibus enim et passionibus humanis in quibus experientia plurimum valet magis movent exempla quam verbardquo 67 Idem Ibidem I-II 97 3 C ldquoUnde etiam et per actus maxime multiplicatos qui consuetudinem efficiunt mutari potest lex et exponi []rdquo 68 Idem Ibidem I-II 94 5 C ldquoEt sic nihil prohibet legem naturalem mutari multa enim supra legem naturalem superaddita sunt ad humanam vitam utilia tam per legem divinam quam etiam per leges humanasrdquo

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Quanto poreacutem aos outros preceitos segundos pode a lei natural ser destruiacuteda dos coraccedilotildees dos homens ou por causa das maacutes persuasotildees do mesmo modo como no especulativo acontecem os erros a respeito das conclusotildees necessaacuterias ou tambeacutem em razatildeo dos costumes depravados e haacutebitos corruptos como entre alguns natildeo se reputavam pecados os latrociacutenios ou tambeacutem os viacutecios contra a natureza []69

De tudo quanto jaacute dissemos decorre qual corolaacuterio

espontacircneo que o fundamento da eacutetica tomasiana eacute a experiecircncia da virtude Em outros termos natildeo satildeo as leis que fundam o cataacutelogo das accedilotildees virtuosas ao contraacuterio eacute a vivecircncia das virtudes que permite ao homem reconhecer a lei da sua natureza e codificaacute-la O ato virtuoso portanto natildeo significa pura e simplesmente seguir os ditames de um coacutedigo mas agir de acordo com a proacutepria natureza no parto que eacute o ato livre70 Se natildeo houvesse accedilotildees virtuosas que fossem expressotildees da lei natural natildeo haveria como reconhecer com clareza os ditames da nossa natureza A assertiva de Tomaacutes quanto ao conhecimento da lei natural portanto natildeo difere da sua teoria do conhecimento a qual comeccedila sempre com a

69 Idem Ibidem I-II 94 6 C ldquoQuantum vero ad alia praecepta secundaria potest lex naturalis deleri de cordibus hominum vel propter malas persuasiones eo modo quo etiam in speculativis errores contingunt circa conclusiones necessarias vel etiam propter pravas consuetudines et habitus corruptos []rdquo 70 Klaus Demmer em sua Introduccedilatildeo agrave Teologia Moral afirma que soacute o ato livre personifica os valores no sentido de que soacute ele torna aquela norma por assim dizer propriedade de quem a pratica e por conseguinte expressatildeo de sua liberdade Com o ato livre proacuteprio da pessoa a regra eacute assimilada a um ldquoeurdquo o ditame ganha um caraacuteter extraordinaacuterio torna-se se assim pudermos expressar-nos imprevisiacutevel justamente porque livre DEMMER Klaus Introduccedilatildeo agrave Teologia Moral Trad Pier Luigi Cabra Rev Sandra Garcia 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2007 p 79 ldquoAs normas se satisfazem apenas agrave primeira vista com uma accedilatildeo ordinaacuteria enquanto as obras extraordinaacuterias encontram abundante espaccedilo na medida em que o indiviacuteduo se esforccedila para se tornar uma personalidade moral desenvolvendo uma fisionomia inconfundiacutevel que em sua relaccedilatildeo com a norma supera o mero cumprimento material e que eacute posta agrave prova sobretudo nas relaccedilotildees interpessoais Se a virtude natildeo chega a formar o coraccedilatildeo ela natildeo atinge seu objetivordquo Eacute pelo ato humano tal como tentamos descrever que a lei eacute reconhecida como inerente agrave natureza humana e eacute com a observaccedilatildeo dos atos humanos que uma lei natural pode vir a ser assumida como lei humana e positiva Natildeo eacute pois pela mera obrigaccedilatildeo que tomamos nota de que um ditame eacute uma lei ao contraacuterio eacute pela espontaneidade com o qual o ditame eacute cumprido no ato livre isto eacute no ato virtuoso que atestamos o seu valor E mesmo quando o ldquodeverrdquo se apresenta como um ldquodeverrdquo eacute somente quando eacute assumido livremente que temos um ato virtuoso

174 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino maacutexima de cunho aristoteacutelico ldquo[] todo o nosso conhecimento se origina a partir dos sentidosrdquo71 Dito de outro modo tambeacutem o nosso conhecimento da lei natural origina-se pela experiecircncia da vida virtuosa Tomaacutes noutro passo cita um exemplo

[] se aqueles que ensinavam que todos os prazeres satildeo maus fossem flagrados desfrutando de algum prazer os homens seriam levados mais ainda ao prazer pelo exemplo de seu comportamento deixando de lado a doutrina de suas palavras72

Aleacutem disso toda lei positiva soacute existe e tem razatildeo de ser

quando se baseia na lei natural a qual por sua vez eacute descoberta jaacute o sabemos pela nossa proacutepria experiecircncia das virtudes ou pela observaccedilatildeo dos que vivem ou viveram uma vida virtuosa Daiacute o Aquinate poder dizer acerca da lei humana ldquoSe contudo algo discorda da lei natural jaacute natildeo seraacute lei mas corrupccedilatildeo da leirdquo73 Fato eacute que o papel da lei no trato com a virtude eacute sempre ancilar porque se os legisladores soacute aprendem a legislar olhando para os exemplos e modelos de vida virtuosa a lei jaacute formulada tambeacutem pode e deve servir agrave virtude educando para ela isto eacute ensinando os homens enquanto os adestra aos atos virtuosos sendo enfim uma espeacutecie de propedecircutica que treina e prepara para a liberdade responsaacutevel Assinala Tomaacutes ldquoComo a virtude eacute lsquoaquela que torna bom quem a possuirsquo segue-se que o efeito proacuteprio da lei eacute tornar bons aqueles aos quais eacute dada []rdquo 74 MacIntyre observa justamente

71 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 9 C ldquo[] quia omnis nostra cognitio a sensu initium habetrdquo 72 Idem Ibidem I-II 34 1 C ldquo[] si illi qui docent omnes delectationes esse malas deprehendantur aliquas delectationes suscipere magis homines ad delectationes erunt proclives exemplo operum verborum doctrina praetermissardquo 73 Idem Ibidem I-II 95 2 C ldquoSi vero in aliquo a lege naturali discordet iam non erit lex sed legis corruptiordquo 74 Idem Ibidem I-II 92 1 C ldquoCum igitur virtus sit quae bonum facit habentem sequitur quod proprius effectus legis sit bonos facere eos quibus datur []rdquo

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Compreender a aplicaccedilatildeo de regras como parte do exerciacutecio das virtudes significa compreender o sentido de seguir as regras uma vez que se pode compreender o exerciacutecio das virtudes somente nos termos da funccedilatildeo que elas exercem na formaccedilatildeo do tipo de vida que eacute o uacutenico no qual se pode conseguir o telos humano As regras que satildeo os preceitos negativos da lei natural natildeo fazem mais que pocircr limites agravequele tipo de vida e desse modo soacute parcialmente definem o tipo de bondade ao qual aspirar Separadas de seu papel para a definiccedilatildeo e formaccedilatildeo de todo um modo de vida elas se tornam apenas uma seacuterie de proibiccedilotildees arbitraacuterias75

As regras satildeo necessaacuterias mas mdash observa MacIntyre mdash nenhuma espeacutecie de regra nem as negativas inviolaacuteveis nem as prescriccedilotildees positivas ldquopodem constituir sozinhas um guia suficiente para a accedilatildeordquo de modo que ldquosaber como agir virtuosamente implica sempre algo mais que simplesmente seguir uma regrardquo76

Eleonore Stump tambeacutem se pronunciou acerca da relaccedilatildeo

entre virtude e lei natural em Tomaacutes

Eacute um erro considerar a teoria tomasiana da eacutetica como construiacuteda sobre leis Antes de tudo embora a lei natural seja uma codificaccedilatildeo da eacutetica as leis natildeo fundam a eacutetica mas se limitam a exprimir o que se funda na natureza das coisas ou nos acordos convencionais entre os seres humanos Em segundo lugar o modo pelo qual Tomaacutes estrutura sua teoria eacutetica natildeo se funda em leis ou regras Ao contraacuterio satildeo as virtudes que constituem o princiacutepio que estrutura sua exposiccedilatildeo da eacutetica Aleacutem disso tambeacutem na descriccedilatildeo e anaacutelise das virtudes ele dedica pouquiacutessimo espaccedilo agraves regras que codificam aquelas virtudes ou prescrevem o modo pelo qual agiria uma pessoa virtuosa77

75 MACINTYRE A Three rival versions of moral enquiry Duckworth London 1990 p 139 In MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 68 76 MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 69 77 STUMP E Aquinas Routhedge London-New York 2003 pp 310-311 In MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 70 A lei humana conquanto natildeo seja uma sucedacircnea

176 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Anthony Kenny acredita que Tomaacutes supera a oposiccedilatildeo entre eacutetica das virtudes e lei natural e esta superaccedilatildeo estaacute no fato de que a lei eacute antes de tudo a natureza do homem a sua razatildeo e eacute descoberta pela proacutepria razatildeo quando a sua ordem inteligiacutevel torna-se palpaacutevel concretizada no dinamismo do ato livre

Tomaacutes de Aquino procura conciliar eacutetica aristoteacutelica com biacuteblica da maneira que se segue Para Aristoacuteteles eacute a razatildeo que fixa a meta da accedilatildeo e fornece o criteacuterio pelo qual as accedilotildees devem ser consideradas virtuosas ou viciosas na Biacuteblia o criteacuterio eacute estabelecido por um coacutedigo de leis Natildeo haacute nenhum conflito sustenta Tomaacutes de Aquino porque a lei eacute um produto da razatildeo78

Se entendermos que a lei natural prevecirc o exerciacutecio da razatildeo

para se estabelecer enquanto tal compreenderemos tambeacutem o

da virtude desempenha natildeo o negamos um papel importante em Tomaacutes a saber o de ser pedagoga A lei positiva pode ser uma forma didaacutetica de o homem aprender a reconhecer em seus atos aquilo que promove e aquilo que natildeo promove a sua natureza Eacute uma disciplina que faz o homem conhecer os seus proacuteprios limites E natildeo haacute nisso heteronomia alguma Satildeo intriacutensecos agrave lei o precircmio e o castigo Podemos entender melhor isso comparando o comportamento das coisas naturais com as humanas Naquelas as que observam a reta ordem alcanccedilam necessariamente a conservaccedilatildeo e as que a transgridem naturalmente sofrem a destruiccedilatildeo Pois bem entre os homens segue-se algo anaacutelogo somente que o castigo ou o precircmio satildeo estabelecidos e aplicados de acordo com a natureza humana a qual estaacute votada agrave liberdade Tem-se entatildeo que eacute um legislador quem deliberadamente impotildee a quem infringiu ou cumpriu a lei por meio de um ato voluntaacuterio o castigo ou o precircmio Assim nas coisas humanas natildeo haacute castigo ou precircmio senatildeo para quem tem consciecircncia de que estaacute sendo punido ou premiado em vista do restabelecimento ou permanecircncia da reta ordem Em outras palavras quem eacute punido eacute punido por natildeo ter seguido a lei da sua natureza E o precircmio natildeo eacute senatildeo apanaacutegio de quem seguiu a sua natureza Idem Suma Contra os Gentios III CXL 3 [3148] ldquoSicut igitur res naturales cum in eis debitus ordo naturalium principiorum et actionum servatur sequitur ex necessitate naturae conservatio et bonum in ipsis corruptio autem et malum cum a debito et naturali ordine receditur ita etiam in rebus humanis oportet quod cum homo voluntarie servat ordinem legis divinitus impositae consequatur bonum non velut ex necessitate sed ex dispensatione gubernantis quod est praemiari et e converso malum cum ordo legis fuerit praetermissus et hoc est punirirdquo ldquoAssim pois nas coisas naturais quando nelas eacute conservada a devida ordenaccedilatildeo dos princiacutepios naturais e das accedilotildees haacute necessariamente conservaccedilatildeo da natureza e do bem mas haveraacute corrupccedilatildeo e mal se forem desviadas do devido fim e da ordem natural Analogicamente tambeacutem nas coisas humanas quando o homem segue voluntariamente a ordenaccedilatildeo imposta pela lei divina eacute necessaacuterio que ele consiga o bem natildeo por necessidade mas pela dispensa do governante e isto eacute ser premiado mas em contraacuterio obteraacute o mal se a ordem da lei for desobedecida e isto eacute ser punidordquo 78 KENNY Anthony Uma Nova Histoacuteria da Filosofia Ocidental Filosofia Medieval Trad Edson Bini Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2008 v 2 pp 300-301

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porquecirc de o direito natural natildeo excluir uma eacutetica das virtudes pois esta se fundamenta no ato livre que tem a sua raiz no juiacutezo racional acerca dos bens contingentes 342 EacuteTICA E DIREITO

Para Tomaacutes o justo consiste sempre numa certa relaccedilatildeo de igualdade que implica certa alteridade ldquo[] o direito ou o justo vem a ser uma obra ajustada a outrem segundo certo modo de igualdaderdquo79 Ora de dois modos pode-se estabelecer a igualdade na alteridade Primeiro pode a igualdade ser fundada na natureza mesma da coisa por exemplo quando dou uma importacircncia para receber o equivalente A isto chamamos direito natural80 O direito natural por sua vez apresenta uma subdivisatildeo Aplicando-se agravequilo que em virtude da sua proacutepria natureza eacute ajustado ou proporcional a outrem o direito natural eacute estabelecido pela proacutepria natureza Poreacutem para Tomaacutes e aqui estaacute o cerne do argumento uma coisa pode ser naturalmente justa a outrem de duas maneiras Em primeiro lugar em si mesma e absolutamente falando Assim o macho eacute naturalmente ajustado agrave fecircmea para dela gerar filhos e o pai ao seu filho para que o nutra81 Em segundo lugar diz-se que

79 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 57 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est ius sive iustum est aliquod opus adaequatum alteri secundum aliquem aequalitatis modumrdquo 80 Idem Ibidem II-II 57 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est ius sive iustum est aliquod opus adaequatum alteri secundum aliquem aequalitatis modum Dupliciter autem potest alicui homini aliquid esse adaequatum Uno quidem modo ex ipsa natura rei puta cum aliquis tantum dat ut tantundem recipiat Et hoc vocatur ius naturalerdquo ldquoComo jaacute foi dito o direito ou o justo vem a ser uma obra ajustada a outrem segundo certo modo de igualdade Ora isto pode realizar-se de duas maneiras 1 em virtude da natureza mesma da coisa Por exemplo se algueacutem daacute tanto para receber tanto isso se chama o direito naturalrdquo 81 Idem Ibidem II-II 57 3 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est ius sive iustum naturale est quod ex sui natura est adaequatum vel commensuratum alteri Hoc autem potest contingere dupliciter Uno modo secundum absolutam sui considerationem sicut masculus ex sui ratione habet commensurationem ad feminam ut ex ea generet et parens ad filium ut eum nutriatrdquo ldquoComo se disse o direito ou o justo natural eacute o que por natureza eacute ajustado ou proporcional a outrem Ora isso se pode dar de duas maneiras primeiro segundo a consideraccedilatildeo absoluta da coisa em si mesma Assim o macho por natureza estaacute adaptado agrave fecircmea para dela gerar filhos e o pai ao filho para que o nutrardquo

178 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino uma coisa eacute naturalmente ajustada agrave outra natildeo em si mesma mas tendo em conta certas consequecircncias Por exemplo o direito agrave propriedade privada Absolutamente falando um campo considerado unicamente em si mesmo estaacute destinado a todos os homens Todavia visto sob o ponto de vista do seu cultivo ele pertence propriamente agravequele que pode tornaacute-lo mais produtivo Destarte o direito agrave propriedade privada natildeo eacute um direito natural absoluto e em si mesmo82 Absolutamente falando natural eacute a destinaccedilatildeo universal dos bens No entanto a propriedade privada continua sendo tambeacutem um direito natural se se considera que tambeacutem eacute de direito natural aquilo que cai sob a consideraccedilatildeo da razatildeo que eacute parte da natureza humana Na verdade eacute exatamente isto que distingue o direito natural comum ao gecircnero animal isto eacute aos homens e aos demais animais do direito natural das gentes que eacute comum somente agrave espeacutecie humana Neste sentido sendo o homem um animal racional os bens que satildeo por ele queridos levando em conta a consideraccedilatildeo da razatildeo mdash que prevecirc as consequecircncias da utilizaccedilatildeo destes mesmos bens mdash tambeacutem pertencem ao direito natural Portanto o direito natural tambeacutem pressupotildee a observaccedilatildeo dos fatos e a intervenccedilatildeo da razatildeo

Ora apreender as coisas de maneira absoluta natildeo conveacutem apenas ao homem mas tambeacutem aos animais Eis por quecirc o direito chamado natural no primeiro sentido nos eacute comum a noacutes e aos animais [] Ora considerar alguma coisa confrontando-a com

82 Idem Ibidem ldquoAlio modo aliquid est naturaliter alteri commensuratum non secundum absolutam sui rationem sed secundum aliquid quod ex ipso consequitur puta proprietas possessionum Si enim consideretur iste ager absolute non habet unde magis sit huius quam illius sed si consideretur quantum ad opportunitatem colendi et ad pacificum usum agri secundum hoc habet quandam commensurationem ad hoc quod sit unius et non alterius []rdquo ldquoSegundo algo eacute naturalmente adaptado a outrem natildeo segundo a razatildeo absoluta da coisa em si mas tendo em conta as suas consequumlecircncias por exemplo a propriedade privada Com efeito a considerar tal campo de maneira absoluta nada tem que o faccedila pertencer a um indiviacuteduo mais do que a outro Poreacutem considerado sob o acircngulo da oportunidade de cultivaacute-lo ou de seu uso paciacutefico tem certa conveniecircncia que seja de um e natildeo de outro []rdquo

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suas consequumlecircncias eacute proacuteprio da razatildeo Portanto isso eacute natural ao homem segundo a razatildeo natural que dita esse proceder83

O segundo modo de se estabelecer a igualdade nas relaccedilotildees

entre os homens eacute por convenccedilatildeo o que ocorre por exemplo quando algueacutem dando uma coisa daacute-se por satisfeito ao receber outra Ora esta convenccedilatildeo tambeacutem pode ocorrer de dois modos A convenccedilatildeo ou o comum acordo pode dar-se entre duas pessoas privadas ou pode encerrar um caraacuteter social Entre duas pessoas em particular acontece quando elas estabelecem as regras de suas permutas Assim uma pessoa se daacute por satisfeita quando em troca de um produto que ela possui recebe determinado valor pecuniaacuterio A convenccedilatildeo assume um caraacuteter social quando o povo ou o priacutencipe que o representa estabelece que algo seja adequado e proporcional a outrem Pois bem este direito que se encontra fundado numa convenccedilatildeo eacute chamado direito positivo84 Sobre a

83 Idem Ibidem ldquoAbsolute autem apprehendere aliquid non solum convenit homini sed etiam aliis animalibus Et ideo ius quod dicitur naturale secundum primum modum commune est nobis et aliis animalibus Considerare autem aliquid comparando ad id quod ex ipso sequitur est proprium rationis Et ideo hoc quidem est naturale homini secundum rationem naturalem quae hoc dictatrdquo Eacute bem verdade por exemplo que todo mundo nasceu nu Por isso eacute um direito natural o homem ficar nu Contudo diz Tomaacutes a razatildeo humana que eacute parte da natureza humana inventou as vestes e a natureza nada diz de contraacuterio agraves vestes Por isso passou a ser um direito humano ter vestes apropriadas e natildeo precisar andar nu e nada haacute nisso de antinatural Idem Ibidem I-II 94 5 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod aliquid dicitur esse de iure naturali dupliciter Uno modo quia ad hoc natura inclinat sicut non esse iniuriam alteri faciendam Alio modo quia natura non induxit contrarium sicut possemus dicere quod hominem esse nudum est de iure naturali quia natura non dedit ei vestitum sed ars adinvenitrdquo ldquoDeve-se dizer que algo eacute dito de direito natural de dois modos De um modo porque a isso inclina a natureza como natildeo dever fazer injuacuteria a outrem De outro modo porque a natureza natildeo induziu ao contraacuterio como podemos dizer que estar o homem nu eacute de direito natural porque a natureza natildeo lhe deu a veste mas a arte inventourdquo 84 Idem Ibidem II-II 57 2 C ldquoAlio modo aliquid est adaequatum vel commensuratum alteri ex condicto sive ex communi placito quando scilicet aliquis reputat se contentum si tantum accipiat Quod quidem potest fieri dupliciter Uno modo per aliquod privatum condictum sicut quod firmatur aliquo pacto inter privatas personas Alio modo ex condicto publico puta cum totus populus consentit quod aliquid habeatur quasi adaequatum et commensuratum alteri vel cum hoc ordinat princeps qui curam populi habet et eius personam geritrdquo ldquo2 Por convenccedilatildeo ou comum acordo Por exemplo quando algueacutem se daacute por satisfeito de receber tanto O que se pode dar de dois modos primeiro por uma convenccedilatildeo particular quando pessoas privadas firmam entre si um pacto segundo por uma convenccedilatildeo puacuteblica quando todo o povo consente que algo seja tido como adequado ou proporcionado a outrem ou assim o ordena o priacutencipe que governa o povo e o representardquo

180 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino flexibilidade e a natureza dos acordos que acontecem no direito positivo esclarece Gilson

Dois homens podem entender-se para estabelecer que o gozo de uma propriedade valha certa quantidade de dinheiro todo um povo pode entender-se para fixar uma escala de preccedilos os representantes do povo ou o chefe do Estado podem fazecirc-lo com validez em seu nome Estas decisotildees criam relaccedilotildees de equivalecircncia mais flexiacuteveis que as de estrita igualdade natural o direito que se origina em virtude de tais convenccedilotildees se denomina ldquodireito positivordquo85

Eacute necessaacuterio afirmar por fim a primazia do direito natural

sobre o direito positivo Em que sentido se baseia esta primazia No sentido de que o direito positivo natildeo pode ser estabelecido em contradiccedilatildeo com o direito natural Por exemplo de nenhuma forma estaacute no poder dos homens tornar liacutecito mdash por qualquer convenccedilatildeo que seja mdash o roubo o adulteacuterio ou qualquer coisa intrinsecamente desordenada86 Mas vale lembrar que o direito natural natildeo se coloca sem a atividade racional

Estamos jaacute nos contornos que esboccedilam a possibilidade de uma eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes Tendo desfeito o cipoal que parecia contrapor uma eacutetica das virtudes agrave lei natural tomemos em consideraccedilatildeo o conceito de felicidade

85 GILSON Introduccioacuten a La Filosofiacutea de Santo Tomaacutes de Aquino p 426 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoDos hombres pueden entenderse para convenir que el goce de una propiedad valga cierta cantidad de dinero todo un pueblo puede entenderse para fijar una escala de precios los representantes del pueblo o el jefe de Estado pueden hacerlo con validez en su nombrerdquo 86 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 57 2 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod voluntas humana ex communi condicto potest aliquid facere iustum in his quae secundum se non habent aliquam repugnantiam ad naturalem iustitiam Et in his habet locum ius positivum Unde philosophus dicit [] Sed si aliquid de se repugnantiam habeat ad ius naturale non potest voluntate humana fieri iustum puta si statuatur quod liceat furari vel adulterium committere ldquoDeve-se dizer que a vontade humana por uma convenccedilatildeo comum pode tornar justa uma coisa entre aquelas que em nada se oponham agrave justiccedila natural [] Mas se algo de si mesmo se opotildee ao direito natural natildeo se pode tornar justo por disposiccedilatildeo da vontade humana Se por exemplo se decretasse que eacute liacutecito roubar ou cometer adulteacuteriordquo

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35 CIVITAS E BEATITUDO OU FELICITAS EM TOMAacuteS

Como toda eacutetica antiga tambeacutem a eacutetica medieval incluindo a de Tomaacutes satildeo fundadas na busca da εὐδαιμονία (eydaimoniacutea) em latim beatitudo ou felicitas ldquoCom efeito o fim uacuteltimo do homem [] chama-se felicidade ou beatituderdquo 87 Tal eacute a importacircncia deste conceito que Lima Vaz afirma que da noccedilatildeo de beatitude depende a proacutepria possibilidade de uma leitura filosoacutefica da eacutetica medieval inclusive a tomasiana

A noccedilatildeo de beatitude herdada da Eacutetica claacutessica mas profundamente transformada segundo a tradiccedilatildeo agostiniana pela Revelaccedilatildeo cristatilde torna-se assim a noccedilatildeo matricial de toda a Eacutetica tomaacutesica ficando a depender da sua interpretaccedilatildeo os juiacutezos diversos que sobre ela tecircm sido propostos88

Ora o Aquinate distingue uma beatitude imperfeita que

pode ser alcanccedilada nesta vida mdash porque proporcionada agrave natureza humana mdash de uma beatitude perfeita que eacute a visatildeo de Deus e que natildeo pode ser alcanccedilada nesta vida nem sem a graccedila porque transcende a natureza humana89 Diz Tomaacutes ldquoDuas satildeo as bem-aventuranccedilas a imperfeita que se tem nesta vida e a perfeita que consiste na visatildeo de Deusrdquo90 E precisa noutro lugar

[] a felicidade ou bem-aventuranccedila humana eacute dupla uma eacute proporcional agrave natureza humana ou seja pode o homem consegui-la pelos princiacutepios de sua natureza a outra supera sua

87 Idem Suma Contra os Gentios III XXV 13 [2068] ldquoUltimus autem finis hominis et cuiuslibet intellectualis substantiae felicitas sive beatitudo nominatur []rdquo 88 VAZ Escritos de Filosofia IV Introduccedilatildeo agrave Eacutetica Filosoacutefica 1 p 220 89 Por exemplo se nos propuseacutessemos discorrer sobre a beatitude perfeita ou felicidade uacuteltima do homem teriacuteamos de afirmar com Tomaacutes que ela natildeo consiste nos atos das virtudes morais ou no ato da prudecircncia TOMAacuteS DE AQUINO Suma contra os gentios III XXXIV-XXXV Ela reside soacute na visatildeo de Deus face a face Idem Ibidem XXXVII 90 Idem Suma Teoloacutegica I-II 4 5 C ldquoRespondeo dicendum quod duplex est beatitudo una imperfecta quae habetur in hac vita et alia perfecta quae in Dei visione consistitrdquo

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natureza e soacute pode ser alcanccedilada por graccedila divina por certa participaccedilatildeo da divindade []91

Ao prever a existecircncia de uma beatitude imperfeita

consentacircnea agrave natureza humana e que por conseguinte pode ser alcanccedilada pelo homem nesta vida a partir dos princiacutepios de sua natureza Tomaacutes admite a nosso juiacutezo a possibilidade de uma eacutetica filosoacutefica no proacuteprio bojo de sua teologia moral Nas palavras do Aquinate

A bem-aventuranccedila imperfeita que nesta vida se pode ter o homem pode adquiri-la por seus dons naturais do mesmo modo que a virtude em cuja accedilatildeo ela consiste92

Falta dizer no entanto que esta beatitude imperfeita eacute

aquela que se daacute no acircmbito da civitas a qual em Tomaacutes natildeo eacute fruto do pecado mas procede da proacutepria natureza humana porque o homem eacute por natureza um animal poliacutetico Neste sentido a civitas mdash e o governo poliacutetico que lhe segue mdash existiriam mesmo sem o pecado O que natildeo existiria natildeo fosse o pecado mdash e o que pode existir agora mdash eacute a possibilidade de um governo tiracircnico O Frade de Roccasecca aponta para isso com clareza

Assim algueacutem domina a outro como livre quando o dirige para o proacuteprio bem daquele que eacute dirigido ou para o bem comum E haveria tal domiacutenio do homem sobre o homem no estado de inocecircncia por dois motivos Primeiro porque o homem eacute

91 Idem Ibidem I-II 62 1 C ldquoEst autem duplex hominis beatitudo sive felicitas ut supra dictum est Una quidem proportionata humanae naturae ad quam scilicet homo pervenire potest per principia suae naturae Alia autem est beatitudo naturam hominis excedens ad quam homo sola divina virtute pervenire potest secundum quandam divinitatis participationem []rdquo 92 Idem Ibidem I-II 5 5 C ldquoRespondeo dicendum quod beatitudo imperfecta quae in hac vita haberi potest potest ab homine acquiri per sua naturalia eo modo quo et virtus in cuius operatione consistit []rdquo ABBAGNANO Op Cit p 580 ldquoLe virtuacute intellettuali e morali sono virtuacute umane esse conducono alla felicitagrave che lrsquouomo puograve conseguire con le stesse forze naturali in questa vitardquo ldquoAs virtudes intelectuais e morais satildeo virtudes humanas essas conduzem agrave felicidade que o homem pode conseguir com as proacuteprias forccedilas naturais nesta vidardquo [A traduccedilatildeo eacute nossa]

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naturalmente um animal social portanto os homens viveriam socialmente no estado de inocecircncia Natildeo poderia haver uma vida social de muitos a natildeo ser que algueacutem presidisse tendo a intenccedilatildeo do bem comum93

Natildeo sendo consequecircncia do pecado Tomaacutes concebe a

civitas como tendo uma finalidade proacutepria a saber o bem viver E pensa o governo poliacutetico como aquele que conduz a multidatildeo a este bem comum que eacute justamente aquela felicidade conforme a natureza Mas tentemos entender melhor como o Frade Dominicano concebe a civitas Segundo Storck na concepccedilatildeo de Tomaacutes a civitas se diferencia das famiacutelias e aldeias enquanto eacute uma comunidade de homens que busca um fim mais alto ou seja um fim que excede o da mera sobrevivecircncia o bem viver94 Este fim o homem o alcanccedila pela sua razatildeo razatildeo esta que o adverte da impossibilidade de alcanccedilar este mesmo fim sem consortes A propoacutesito diz o Aquinate no opuacutesculo De Regno

Foi poreacutem o homem criado sem a preparaccedilatildeo de nada disso pela natureza e em lugar de tudo coube-lhe a razatildeo pela qual pudesse granjear por meio das proacuteprias matildeos todas essas coisas para o que eacute insuficiente um homem soacute Por cuja causa natildeo poderia um homem levar suficientemente a vida por si Logo eacute natural ao homem viver na sociedade de muitos95

93 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 96 4 C ldquoTunc vero dominatur aliquis alteri ut libero quando dirigit ipsum ad proprium bonum eius qui dirigitur vel ad bonum commune Et tale dominium hominis ad hominem in statu innocentiae fuisset propter duo Primo quidem quia homo naturaliter est animal sociale unde homines in statu innocentiae socialiter vixissent Socialis autem vita multorum esse non posset nisi aliquis praesideret qui ad bonum commune intenderet []rdquo 94 STORCK Alfredo Carlos O Indiviacuteduo e a Ordem Poliacutetica na Dimensatildeo da Civitas In DE BONI (Org) Idade Media Eacutetica e Poliacutetica Porto Alegre EDIPUCRS 1996 FILOSOFIA-38 p 326 ldquoPortanto a civitas tem como primeira caracteriacutestica que a diferencia das formas preacute-poliacuteticas de associaccedilatildeo a ordenaccedilatildeo de suas partes para um fim superior agrave mera sobrevivecircncia podemos chamaacute-lo bem viverrdquo 95 TOMAacuteS DE AQUINO Do reino ou do governo dos priacutencipes ao Rei de Chipre Trad Arlindo Veiga dos Santos Rev Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento I II In Escritos Poliacuteticos de Santo Tomaacutes de Aquino Rio de Janeiro Vozes 1997 (Claacutessicos do pensamento poliacutetico) p 127 ldquoHomo autem institutus est nullo horum sibi a natura praeparato sed loco omnium data est ei ratio per quam sibi

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Ora natildeo eacute possiacutevel abarcar um homem todas essas coisas pela razatildeo Por onde eacute necessaacuterio ao homem viver em multidatildeo para que um seja ajudado por outro []96

Por isso ldquoA civitas eacute para Santo Tomaacutes uma criaccedilatildeo

coletiva dos homensrdquo97 ou seja uma obra produzida construiacuteda feita por homens concordes Na civitas cada um e todos trabalham mdash cada qual dentro de funccedilotildees determinadas98 mdash em prol do bem comum que nada mais eacute do que a realizaccedilatildeo da natureza humana 99 Homens vivendo em comunidade com o fim de alcanccedilar o bem especiacutefico da sua natureza eis a civitas De sorte que ela mdash ratifica Storck mdash natildeo eacute uma consequecircncia do pecado mas sim a atualizaccedilatildeo de uma disposiccedilatildeo da proacutepria natureza humana100

Ora como o pecado natildeo corrompeu a natureza humana enquanto tal esta ordem natural da qual emerge a civitas natildeo foi quebrada nem perdeu a sua ldquoautonomiardquo Pelo que mdash para Tomaacutes mdash a civitas e o seu governo gozam de certa ldquoautonomiardquo frente ao proacuteprio poder eclesial Com efeito como tanto o poder secular quanto o eclesial procedem diretamente de Deus segue-se que o poder secular natildeo proveacutem do eclesial tendo assim ldquoautonomiardquo perante ele No Comentaacuterio agraves Sentenccedilas mdash obra de juventude mdash o Frade Mendicante jaacute previa esta ldquoautonomiardquo com clareza

haec omnia officio manuum posset praeparare ad quae omnia praeparanda unus homo non sufficit Nam unus homo per se sufficienter vitam transigere non posset Est igitur homini naturale quod in societate multorum vivatrdquo 96 Idem Ibidem ldquoNon est autem possibile quod unus homo ad omnia huiusmodi per suam rationem pertingat Est igitur necessarium homini quod in multitudine vivat ut unus ab alio adiuvetur []rdquo 97 STORCK Op Cit p 327 98 Idem Op Cit ldquoResulta disto que no interior da civitas natildeo somente eacute possiacutevel que os indiviacuteduos possam alcanccedilar uma quantidade de bens maior do que os necessaacuterios para a mera sobrevivecircncia como tambeacutem lhes sobraraacute tempo para se dedicarem a atividades mais nobresrdquo 99 Idem Op Cit p 328 ldquoSegundo Santo Tomaacutes a civitas natildeo eacute essencialmente coercitiva mas cooperativa ou seja eacute o resultado dos esforccedilos compartilhados para se alcanccedilar um bem comumrdquo 100 Idem Op Cit ldquoAs accedilotildees humanas instauradoras da comunidade poliacutetica possuem sua raiz na natureza humana de sorte que a criaccedilatildeo da civitas pode ser entendida como a atualizaccedilatildeo de uma disposiccedilatildeo naturalrdquo

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O poder espiritual e o poder secular derivam ambos do poder divino eis por que o poder secular soacute se subordina ao poder espiritual agrave medida que foi submetido por Deus isto eacute no que respeita ao estatuto das almas nesse domiacutenio mais vale obedecer ao poder espiritual que ao poder secular Mas no que concerne ao bem poliacutetico mais vale obedecer ao poder secular que ao poder espiritual segundo o que se diz em Mateus 22 21 ldquoDai a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesarrdquo101

101 TOMAacuteS DE AQUINO Super Sent Lib 2 d 44 q 2 a 3 expos ad 4 In TORRELL Jean-Pierre Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Sua pessoa e sua obra Trad Luiz Paulo Rouanet Rev Saulo Krieger et al 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 p 16 ldquoAd quartum dicendum quod potestas spiritualis et saecularis utraque deducitur a potestate divina et ideo intantum saecularis potestas est sub spirituali inquantum est ei a Deo supposita scilicet in his quae ad salutem animae pertinent et ideo in his magis est obediendum potestati spirituali quam saeculari In his autem quae ad bonum civile pertinent est magis obediendum potestati saeculari quam spirituali secundum illud Matth 22 21 reddite quae sunt Caesaris Caesarirdquo Nesta citaccedilatildeo vemos que a posiccedilatildeo de Tomaacutes natildeo se alinhava agrave visatildeo teocraacutetica do seu tempo De fato nos anos que precederam o Comentaacuterio agraves Sentenccedilas de Tomaacutes o Papa Inocecircncio IV que faleceu em 1254 aprofundando a teoria da ldquoplenitudo potestatisrdquo que havia inicialmente sido proposta por Gregoacuterio VII dentro dos limites da Igreja e que depois foi estendida por Inocecircncio III tambeacutem ao acircmbito laico jaacute havia proposto ainda que apenas teoricamente uma forma de teocracia nunca vista POTESTAgrave Gian Luca VIAN Giovanni Histoacuteria do Cristianismo Trad Orlando Soares Moreira Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2013 p 183 ldquoNo quadro do conflito Inocecircncio IV jurista de formaccedilatildeo chegou a teorizar a ilegitimidade de qualquer poder que natildeo se fundasse em Cristo passando pelo reconhecimento papal Nessa perspectiva o poder dos soberanos natildeo cristatildeos eacute como tal ilegiacutetimo Desse modo Inocecircncio IV ampliava para aleacutem das fronteiras da cristandade as prerrogativas reivindicadas pelo papa como vigaacuterio de Cristo teorizando que na linha do direito toda criatura dotada de razatildeo lhe estava submetidardquo Mas afinal e se houver conflito entre as duas instacircncias a saber a civil e a eclesiaacutestica Tomaacutes prevecirc que as leis podem ser injustas de dois modos Primeiro quando atentam contra o bem humano E isso ocorre nos seguintes casos quando o legislador legifera em causa proacutepria por exemplo onerando os suacuteditos para proveito proacuteprio quando exorbita da sua funccedilatildeo legiferando sobre o que excede a sua competecircncia finalmente quando natildeo distribui congruamente as obrigaccedilotildees Nestes casos natildeo se trata de leis mas de violecircncias Tais regras pois natildeo obrigam no foro da consciecircncia salvo se se obedece a elas para evitar um mal maior TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 96 4 C ldquoEt huiusmodi magis sunt violentiae quam leges quia sicut Augustinus dicit in libro de Lib Arb lex esse non videtur quae iusta non fuerit Unde tales leges non obligant in foro conscientiae nisi forte propter vitandum scandalum vel turbationem propter quod etiam homo iuri suo debet cedere []rdquo ldquoE essas satildeo mais violecircncias que leis pois como diz Agostinho lsquoNatildeo parece ser lei a que natildeo for justarsquo Portanto tais leis natildeo obrigam no foro da consciecircncia a natildeo ser talvez para evitar o escacircndalo ou a perturbaccedilatildeo em razatildeo do que o homem deve ceder do seu direito []rdquo Segundo as leis podem ser injustas tambeacutem quanto ao bem divino por exemplo quando o legislador ordena a idolatria Nestes casos de nenhum modo eacute liacutecito ao suacutedito observar tais leis Idem Ibidem ldquoEt tales leges nullo modo licet observare []rdquo ldquoE tais leis de modo algum eacute liacutecito observar []rdquo A propoacutesito parece ser a previsatildeo de um direito divino que supera mas natildeo tolhe o direito humano que daacute agrave civitas de Tomaacutes um horizonte diferente do da poacutelis de Aristoacuteteles

186 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Emanuele Severino autor jaacute citado neste trabalho quando estuda Tomaacutes de Aquino comeccedila analisando precisamente como o dito evangeacutelico se reflete na obra do Aquinate

Enunciando o seu princiacutepio Jesus afirma ademais que Ceacutesar mdash o Estado mdash tem a capacidade de estabelecer retamente e autonomamente o quanto lhe eacute devido De fato Jesus natildeo se intromete na elaboraccedilatildeo deste caacutelculo e dizendo para dar a Ceacutesar o que lhe respeita reconhece a retidatildeo e a autonomia de tal caacutelculo [] De modo sempre mais decisivo o pensamento medieval e sobretudo Tomaacutes de Aquino estendeu agrave relaccedilatildeo entre razatildeo e feacute os caracteres revelados pelo texto evangeacutelico a propoacutesito da relaccedilatildeo entre o ordenamento racional da sociedade (O Estado) e o ordenamento da realidade que se manifesta no interior da feacute cristatilde102

Pelas razotildees elencadas percebemos que a teologia moral de

Tomaacutes prevecirc a existecircncia de uma ldquocultura laicardquo de uma eacutetica filosoacutefica Ele proacuteprio atesta ldquoO direito divino fundado na graccedila natildeo destroacutei o direito humano que vem da razatildeo naturalrdquo103 A civitas denominada por Tomaacutes comunidade perfeita 104 tem

102 SEVERINO Emanuele La Filosofia dai Greci al nostro Tempo La Filosofia Antica e Medioevale Milano Bur 2004 p 284 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoEnunciando il suo principio Gesugrave afferma inoltre che Cesare mdash lo Stato mdash abbia la capacitagrave di stabilire rettamente e autonomamente quanto gli egrave dovuto Infatti Gesugrave non si intromette nella elaborazione di questo calcolo e dicendo di dare a Cesare quel che gli spetta riconosce la rettitudine e lrsquoautonomia di tale calcolo [] In modo sempre piugrave deciso il pensiero medioevale e soprattutto Tommaso drsquoAquino hanno esteso al rapporto tra ragione e fede i caratteri rivelati dal testo evangelico a proposito del rapporto tra lrsquoordinamento razionale della societagrave (lo Stato) e lrsquoordinamento della realtagrave che si manifesta allrsquointerno della fede cristianardquo Franco Pierini historiador da Igreja tambeacutem ressalta a candente questatildeo que agitou a segunda metade do seacuteculo XIII PIERINI Franco A Idade Meacutedia Curso da Histoacuteria da Igreja Trad Joseacute Maria de Almeida Satildeo Paulo Paulus 1998 v II p 188 ldquoEntre 1260 e 1277 em particular delineia-se um momento de agudas batalhas doutrinaacuterias As questotildees em jogo satildeo teoacutericas e praacuteticas Trata-se de decidir se a verdade de feacute e as racionais devem necessariamente estar em harmonia as segundas submetidas agraves primeiras e se consequumlentemente devem tambeacutem estar de acordo as duas sociedades a eclesiaacutestica e a civil o poder pontifiacutecio e o dos soberanos seculares com a submissatildeo do Estado agrave Igrejardquo 103 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 10 10 C ldquoIus autem divinum quod est ex gratia non tollit ius humanum quod est ex naturali rationerdquo 104 Idem Ibidem I-II 90 2 C ldquo[] perfecta enim communitas civitas []rdquo ldquoesta perfeita comunidade com efeito eacute a cidade []rdquo

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exatamente por ser perfeita a capacidade de perfazer-se e eacute isto que nos autoriza a falar de uma eacutetica filosoacutefica em Aquino enquanto fruto de uma reflexatildeo acerca das condiccedilotildees de possibilidade da civitas hominis Neste sentido conclui Sciacca

Desta forma Tomaacutes funda a autonomia do saber ou a ciecircncia proacutepria do homem isto eacute a cultura ldquolaicardquo mas ao mesmo tempo inclusive porque natildeo a contrapotildee agrave sapiecircncia divina revelada exclui aquilo que seraacute o ldquolaicismordquo []105

O jesuiacuteta Copleston jaacute citado neste capiacutetulo tambeacutem

ressalta

O estado eacute uma ldquosociedade perfeitardquo (communitas perfecta) isto eacute tem a sua disposiccedilatildeo todos os meios necessaacuterios para a consecuccedilatildeo do seu fim o bonum commune ou o bem comum dos cidadatildeos106

Natildeo eacute todavia menos verdadeiro que o estado eacute uma ldquosociedade perfeitardquo autocircnoma na sua esfera107

Entretanto estas noccedilotildees de civitas e de felicidade que

acabamos de destacar natildeo existiriam sem antes Tomaacutes definir o ato humano e o que lhe confere moralidade O homem eacute chamado ao ato livre e se deixamos para agora uma breve reflexatildeo acerca do livre-arbiacutetrio foi por uma opccedilatildeo expositiva Eacute tempo de tocarmos neste tema a fim de que natildeo caiamos na tentaccedilatildeo de

105 SCIACCA Michele Federico La filosofia nel suo sviluppo storico 1 Antichitagrave e Medioevo 30 ed Edizione Cremonese Roma 1969 p 232 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCosigrave Tommaso fonda lrsquoautonomia del sapere o scienza propria dellrsquouomo cioegrave la cultura lsquolaicarsquo ma nello stesso tempo proprio percheacute non la contrappone alla sapienza divina rivelata esclude quel che saragrave il lsquolaicismorsquo []rdquo 106 COPLESTON Storia della Filosofia Vol II La Filosofia Medioevale da Agostino a Escoto p 526 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoLo stato egrave una lsquosocietagrave perfettarsquo(communitas perfecta) cioegrave ha a sua disposizione tutti i mezzi necessari per il conseguimento del suo fine il bonum commune o bene comune dei citadini rdquo 107 Idem Ibidem ldquoNon egrave tuttavia men vero che lo stato egrave una lsquosocietagrave perfettarsquo autonoma nella sua sferardquo

188 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino pensarmos que Tomaacutes encerra a sua eacutetica num ldquocomunitarismordquo que olvida a singularidade de cada ser humano A bem dizer o contraacuterio eacute que eacute verdadeiro Com Vignaux defendemos que o estreito conuacutebio entre antropologia e eacutetica em Tomaacutes eacute o melhor caminho para pensarmos em sua siacutentese uma eacutetica filosoacutefica

Digamos que o tomismo coloca como uma possibilidade essencial uma filosofia pura obra da pura razatildeo Esta ideia corresponde evidentemente a sua ideia de homem como ser dotado de uma luz natural108

Tentemos desenvolver esta ideia de homem Como jaacute

tratamos da razatildeo acentuaremos o livre-arbiacutetrio e a perfeiccedilatildeo da pessoa 36 DO LIVRE-ARBIacuteTRIO DISTINTIVO DO ATO HUMANO Agrave PESSOA

Para Tomaacutes o homem eacute vocacionado a ser livre E ser livre mdash raciocina o Aquinate mdash consiste em possuir livre-arbiacutetrio Possuiacutemos livre-arbiacutetrio mdash diz Tomaacutes mdash ldquo[] com relaccedilatildeo agraves coisas que natildeo queremos por necessidade ou por instinto naturalrdquo109 O livre-arbiacutetrio eacute pois uma capacidade de escolha de decisatildeo ldquoSomos livres enquanto podemos aceitar uma coisa rejeitada outra o que eacute escolherrdquo110 A princiacutepio natildeo importa se escolhemos bem ou mal jaacute que o livre-arbiacutetrio consiste simplesmente em poder escolher uma coisa e natildeo outra Daiacute dizer Tomaacutes ldquo[] o livre-arbiacutetrio eacute indiferente

108 VIGNAUX El pensamiento en la Edad Media Trad Tomaacutes Segovia Fondo de Cultura Econoacutemica Buenos Aires 1954 p 120 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoDigamos que lo tomismo plantea como una posibilidad esencial una filosofiacutea pura obra de pura raacutezon Esta idea corresponde evidentemente a su idea del hombre como ser dotado de una luz naturalrdquo 109 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 19 10 C ldquoRespondeo dicendum quod liberum arbitrium habemus respectu eorum quae non necessario volumus vel naturali instincturdquo 110 Idem Ibidem I 83 3 C ldquo[] ex hoc enim liberi arbitrii esse dicimur quod possumus unum recipere alio recusato quod est eligererdquo

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a escolher bem ou mal []rdquo111 Ora a escolha recai natildeo sobre o fim mas sobre os meios conducentes a ele como pontua o Aquinate ldquoA escolha natildeo versa sobre o fim ela versa sobre os meios para o fim []rdquo112 Por exemplo o homem natildeo eacute livre para escolher ser feliz ou natildeo pois este eacute o seu fim uacuteltimo113 o que pode ocorrer mdash e agraves vezes ocorre mdash eacute ele escolher mal os meios conducentes agrave felicidade

Mas o que confere ao homem esta capacidade de escolha O que lhe daacute este poder eacute a sua razatildeo Como isso se daacute Eacute verificaacutevel que algumas coisas diz Tomaacutes agem sem julgamento Eacute o caso da pedra por exemplo que cai somente em virtude da sua forma E assim acontece com todas as coisas que satildeo destituiacutedas de conhecimento114

Haacute outras poreacutem que agem com julgamento mas eacute um julgar por instinto e por isso natildeo livre Assim a ovelha foge do lobo porque por instinto julga que ele lhe eacute nocivo O mesmo sucede com todos os animais O julgamento por instinto natildeo eacute livre porque natildeo procede de uma comparaccedilatildeo que eacute uma operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo115

111 Idem Ibidem I 83 2 C ldquoLiberum autem arbitrium indifferenter se habet ad bene eligendum vel malerdquo 112 Idem Ibidem I 82 1 ad 3 ldquoElectio autem non est de fine sed de his quae sunt ad finem ut dicitur in III Ethicrdquo 113 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 82 1 C ldquoQuinimmo necesse est quod sicut intellectus ex necessitate inhaeret primis principiis ita voluntas ex necessitate inhaereat ultimo fini qui est beatitudo finis enim se habet in operativis sicut principium in speculativis []rdquo ldquo[] eacute necessaacuterio que assim como o intelecto adere necessariamente aos primeiros princiacutepios a vontade adira necessariamente ao fim uacuteltimo que eacute a bem-aventuranccedila pois o fim estaacute para o agir como o princiacutepio estaacute para o conhecer []rdquo GARDEIL Henri-Dominique Iniciaccedilatildeo agrave filosofia de satildeo Tomaacutes de Aquino psicologia e metafiacutesica Trad Cristiane Negreiros Abbud Ayoub Carlos Eduardo de Oliveira 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2013 p 173 ldquo[] natildeo eacute possiacutevel para mim natildeo querer o bem como tal ou minha bem-aventuranccedilardquo 114 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 83 1 C ldquoAd cuius evidentiam considerandum est quod quaedam agunt absque iudicio sicut lapis movetur deorsum et similiter omnia cognitione carentiardquo ldquo[] certas coisas agem sem julgamento Por exemplo a pedra que se move para baixo e igualmente todas as coisas que natildeo tecircm o conhecimentordquo 115 Idem Ibidem ldquoQuaedam autem agunt iudicio sed non libero sicut animalia bruta Iudicat enim ovis videns lupum eum esse fugiendum naturali iudicio et non libero quia non ex collatione sed ex naturali instinctu hoc iudicatrdquo ldquomdash Outras coisas agem com julgamento mas esse natildeo eacute livre como os animais Por exemplo a ovelha vendo o lobo julga que eacute preciso fugir eacute um julgamento natural mas natildeo livre pois natildeo julga por comparaccedilatildeo mas por instinto naturalrdquo

190 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Com efeito no caso do homem que eacute um animal racional haacute nele um julgamento livre Ele foge de uma coisa ou a procura mediante uma comparaccedilatildeo da razatildeo e natildeo por um instinto natural Ora esta comparaccedilatildeo exercida pela razatildeo no homem eacute possiacutevel porque as suas accedilotildees particulares satildeo contingentes e desta sorte natildeo se encontram determinadas a uma uacutenica coisa Destarte pela proacutepria natureza contingente das accedilotildees particulares nelas a razatildeo pode orientar-se para alternativas diversas sem ser constrangida a nenhuma116 Realmente o julgamento livre acontece por comparaccedilatildeo e esta eacute uma operaccedilatildeo proacutepria da razatildeo Mas como acontece esta comparaccedilatildeo Acontece no dizer de Tomaacutes quando a razatildeo reflete sobre o seu proacuteprio ato julga o seu proacuteprio juiacutezo acerca das coisas

No entanto julgar de seu proacuteprio juiacutezo eacute proacuteprio soacute da razatildeo que volta sobre seu proacuteprio ato e conhece as disposiccedilotildees das coisas acerca das quais julga e pelas quais julga Por isso toda raiz da liberdade estaacute constituiacuteda na razatildeo117

Noutro momento voltaremos com maior detenccedila agrave temaacutetica

da estrutura do ato humano Agora basta retermos que pelo juiacutezo racional o homem pode escapar ao determinismo dos apetites inferiores e a qualquer outro ldquomoacutevel externordquo porque a sua vontade

116 Idem Ibidem ldquoSed homo agit iudicio quia per vim cognoscitivam iudicat aliquid esse fugiendum vel prosequendum Sed quia iudicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili sed ex collatione quadam rationis ideo agit libero iudicio potens in diversa ferri [] Particularia autem operabilia sunt quaedam contingentia et ideo circa ea iudicium rationis ad diversa se habet et non est determinatum ad unumrdquo ldquoO homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute o efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas de uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetos [] Como as accedilotildees particulares satildeo contingentes o julgamento da razatildeo sobre elas se refere a diversas e natildeo eacute determinado a uma uacutenicardquo 117 TOMAacuteS DE AQUINO O livre-arbiacutetrio Quaestiones disputatae de veritate Questatildeo 24 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Beatriz Rodrigues de Lima Satildeo Paulo Edipro 2105 24 2 C ldquoIudicare autem de iudicio suo est solius rationis quae super actum suum reflectitur et cognoscit habitudines rerum de quibus iudicat et per quas iudicat unde totius libertatis radix est in ratione constitutardquo

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pode sempre escolher o que lhe for apresentado pela razatildeo118 Por isso pode-se dizer ldquo[] que o homem seja dotado de livre-arbiacutetrio pelo fato mesmo de ser racionalrdquo119

Contudo eacute preciso entender bem nem mesmo ao domiacutenio da razatildeo mdash entenda-se da reta razatildeo (recta ratio)120 mdash a vontade estaacute submetida Em outros termos ela pode agir contra a reta razatildeo (recta ratio) e consoante a razatildeo errocircnea e os apetites inferiores De maneira que nem a razatildeo pode determinar necessariamente a vontade a nada mdash exceto agrave felicidade mdash porquanto no campo onde se desenvolve a accedilatildeo humana como dissemos a razatildeo soacute apresenta agrave vontade bens particulares bens relativos isto eacute coisas boas por um lado poreacutem onerosas por outro coisas portanto que podem ser queridas ou repelidas Em outras palavras um bem relativo proposto como apraziacutevel por sua razatildeo de bem natildeo deixa de esconder a sua razatildeo de natildeo bem por outro lado o mesmo bem se proposto como rejeitaacutevel

118 Na concepccedilatildeo tomasiana esclarece Franca haacute dois tipos de atos livres aqueles que procedem formalmente da vontade e aqueles que embora procedam de outras faculdades estatildeo sob o domiacutenio da vontade FRANCA Leonel A Psicologia da Feacute 7 ed Rio de Janeiro Agir Editora 1958 p 33 ldquoDe dois modos chamam-se livres os nossos atos ou porque emanam de uma faculdade formalmente livre ou porque procedem imediatamente de outra faculdade mas sob o impeacuterio de uma determinaccedilatildeo livrerdquo Livres propriamente satildeo somente os atos da vontade entretanto aquelas faculdades que estatildeo sob o impeacuterio da vontade pelo influxo que esta pode exercer sobre elas tambeacutem podem agir livremente Idem Op Cit Desta sorte com exceccedilatildeo das funccedilotildees vegetativas mdash nutriccedilatildeo assimilaccedilatildeo circulaccedilatildeo etc mdash todos os demais atos humanos podem estar sob a influecircncia da vontade Idem Op Cit pp 33-34 Por isso o movimento a visatildeo e a estudiosidade conquanto estejam reduzidos quanto aos seus princiacutepios mais imediatos a outras faculdades (muacutesculos olhos e aplicaccedilatildeo mental) podem ser determinados pelo livre-arbiacutetrio Assim podemos escolher andar ou parar de andar abrir ou fechar os olhos estudar histoacuteria ou matemaacutetica etc Com efeito Franca nada mais faz do que explicitar o que Tomaacutes registra na Summa TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 6 4 C ldquoRespondeo dicendum quod duplex est actus voluntatis unus quidem qui est eius immediate velut ab ipsa elicitus scilicet velle alius autem est actus voluntatis a voluntate imperatus et mediante alia potentia exercitus ut ambulare et loqui qui a voluntate imperantur mediante potentia motivardquo ldquoO ato da vontade eacute duplo um que lhe eacute imediato como emanado dela querer outro que eacute por ela imperado e exercido por outra potecircncia como andar falar que satildeo imperados pela vontade mas exercidos por uma potecircncia motorardquo 119 Idem Ibidem I 83 1 C ldquoEt pro tanto necesse est quod homo sit liberi arbitrii ex hoc ipso quod rationalis estrdquo 120 Querer e agir de acordo com a reta razatildeo eacute o ato proacuteprio da virtude da prudecircncia A falar com exaccedilatildeo a prudecircncia eacute a reta razatildeo do agir Idem Ibidem II-II 47 8 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est recta ratio agibilium ut supra dictum est ldquoA prudecircncia eacute a reta razatildeo do que deve ser feito jaacute foi ditordquo

192 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mostra-se tambeacutem deleitaacutevel por sua razatildeo de bem E a razatildeo e a vontade cientes deste ldquocustobenefiacuteciordquo de todos os bens relativos comportam-se em relaccedilatildeo a eles considerando os proacutes e os contras Eacute este o dilema que torna a eleiccedilatildeo humana livre e dramaacutetica Afirma Tomaacutes

Ademais como a falta de qualquer bem tem a razatildeo de natildeo-bem por isso soacute aquele bem perfeito ao qual nada falta eacute o bem que a vontade natildeo pode deixar de querer e este bem eacute bem-aventuranccedila Qualquer outro bem particular deficiente em algo do bem pode ser tido como natildeo-bem Segundo essa consideraccedilatildeo pode ser repudiado ou aprovado pela vontade que eacute capaz de se dirigir para o mesmo objeto considerado sob diversos aspectos121

Tudo aquilo que a razatildeo pode apreender como bem para isso a vontade pode tender Ademais pode a razatildeo apreender como bem natildeo somente querer ou agir como tambeacutem natildeo querer e natildeo agir Ainda em todos os bens particulares pode considerar a

121 Idem Ibidem I-II 10 2 C ldquoEt quia defectus cuiuscumque boni habet rationem non boni ideo illud solum bonum quod est perfectum et cui nihil deficit est tale bonum quod voluntas non potest non velle quod est beatitudo Alia autem quaelibet particularia bona inquantum deficiunt ab aliquo bono possunt accipi ut non bona et secundum hanc considerationem possunt repudiari vel approbari a voluntate quae potest in idem ferri secundum diversas considerationesrdquo E ainda Idem Ibidem I-II 13 6 C ldquoSolum autem perfectum bonum quod est beatitudo non potest ratio apprehendere sub ratione mali aut alicuius defectus Et ideo ex necessitate beatitudinem homo vult nec potest velle non esse beatus aut miser Electio autem cum non sit de fine sed de his quae sunt ad finem ut iam dictum est non est perfecti boni quod est beatitudo sed aliorum particularium bonorum Et ideo homo non ex necessitate sed libere eligitrdquo ldquoSomente o bem perfeito que eacute a bem-aventuranccedila natildeo pode a razatildeo apreender sob a razatildeo de mal ou de alguma deficiecircncia Daiacute que o homem necessariamente quer a bem-aventuranccedila nem pode natildeo querer ser bem-aventurado ou querer ser desgraccedilado Como a eleiccedilatildeo natildeo eacute do fim mas do que eacute para o fim como jaacute foi dito natildeo eacute do bem perfeito que eacute a bem-aventuranccedila mas de outros bens imperfeitos Por isso o homem natildeo elege necessariamente mas livrementerdquo Tambeacutem no Compecircndio de Teologia encontramos a mesma tese Segue a citaccedilatildeo a partir da ediccedilatildeo biliacutengue Idem Compecircndio de Teologia I 76 ldquoAdhuc Liberum est quod non est obligatum ad aliquid unum determinatum Appetitus autem substantiae intellectivae non est obligatus ad aliquid unum determinatum bonum sequitur enim apprehensionem intellectus quae est de bono universaliter Igitur appetitus substantiae intelligentis est liber utpote communiter se habens ad quodcumque bonumrdquo ldquoAdemais eacute livre o que natildeo eacute obrigado a uma soacute e determinada coisa Ora o apetite das substacircncias intelectivas natildeo eacute obrigado a um soacute e determinado bem segue-se com efeito da apreensatildeo do intelecto a qual eacute do bem em universal Por conseguinte o apetite da substacircncia inteligente eacute livre dado que comumente se tem para todo e qualquer bemrdquo

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razatildeo de bem de um e a deficiecircncia de algum bem que tem a razatildeo de mal Assim pode apreender cada um desses bens como capaz de ser eleito ou rejeitado Somente o bem perfeito que eacute a bem-aventuranccedila natildeo pode a razatildeo apreender sob a razatildeo de mal ou de alguma deficiecircncia Daiacute que o homem necessariamente quer a bem-aventuranccedila nem pode querer natildeo ser bem-aventurado ou querer ser desgraccedilado122

Em razatildeo disso a liberdade humana implica sempre a

traacutegica possibilidade de fazermos escolhas contraacuterias agrave reta razatildeo e em consonacircncia com os apetites inferiores e assim trairmos a nossa vocaccedilatildeo agrave beatitude De sorte que o homem estaacute entregue ao seu arbiacutetrio de modo que nem o poder poliacutetico o pode tolher desta sua liberdade antes o poder poliacutetico pressupotildee que o homem seja livre e eacute justamente isto que o distingue do poder despoacutetico Neste aspecto o poder poliacutetico natildeo eacute senatildeo uma extensatildeo da natureza livre do homem Assim como a razatildeo pode controlar os apetites inferiores integrando-os agrave sua ordem assim o poder reacutegio domina os homens conduzindo-os a um fim comum Afirma o Boi Mudo

Donde dizer o Filoacutesofo no livro I da Poliacutetica que a razatildeo eacute superior ao irasciacutevel e ao concupisciacutevel natildeo por um domiacutenio despoacutetico que eacute proacuteprio do senhor em relaccedilatildeo ao escravo mas por um domiacutenio poliacutetico e reacutegio que eacute proacuteprio dos homens livres que natildeo se submetem totalmente a domiacutenio algum123

122 Idem Suma Teoloacutegica I-II 13 6 C ldquoQuidquid enim ratio potest apprehendere ut bonum in hoc voluntas tendere potest Potest autem ratio apprehendere ut bonum non solum hoc quod est velle aut agere sed hoc etiam quod est non velle et non agere Et rursum in omnibus particularibus bonis potest considerare rationem boni alicuius et defectum alicuius boni quod habet rationem mali et secundum hoc potest unumquodque huiusmodi bonorum apprehendere ut eligibile vel fugibile Solum autem perfectum bonum quod est beatitudo non potest ratio apprehendere sub ratione mali aut alicuius defectus Et ideo ex necessitate beatitudinem homo vult nec potest velle non esse beatus aut miserrdquo 123 Idem Ibidem I-II 17 7 C ldquoEt tunc ille motus est praeter imperium rationis quamvis potuisset impediri a ratione si praevidisset Unde philosophus dicit in I Polit quod ratio praeest irascibili et concupiscibili non principatu despotico qui est domini ad servum sed principatu politico aut regali qui est ad liberos qui non totaliter subduntur imperiordquo

194 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Podemos ir mais longe Nem mesmo o poder religioso pode subjugar o livre-arbiacutetrio do homem no seu poder de decisatildeo O Aquinate chega a dizer que se a razatildeo errocircnea concebe a fornicaccedilatildeo como um bem mdash inobstante seja ela um mal em si mdash maacute seraacute a vontade que natildeo escolher fornicar porque estaraacute contrariando o juiacutezo mdash deveras errocircneo mdash da razatildeo E vai mais longe ainda Se a razatildeo apresentar agrave vontade que crer em Cristo eacute um mal mdash e a vontade mesmo assim aderir a Cristo mdash esta vontade seraacute maacute porque iraacute contrariar a razatildeo embora crer em Cristo seja necessaacuterio agrave salvaccedilatildeo Pela importacircncia desta passagem citemo-la

Por exemplo abster-se da fornicaccedilatildeo eacute um certo bem mas este bem a vontade natildeo aceita a natildeo ser que seja proposto pela razatildeo Se portanto foi proposto como mal pela razatildeo errocircnea seraacute levada a isso sob a razatildeo de mal Daiacute que a vontade seraacute maacute por querer o mal natildeo o que eacute mau por si mas o que eacute mau acidentalmente por causa da apreensatildeo da razatildeo Semelhantemente crer em Cristo eacute um bem por si e necessaacuterio para a salvaccedilatildeo Mas a vontade natildeo eacute levada a esta verdade se natildeo lhe for proposta pela razatildeo Portanto se a razatildeo a propuser como mal a vontade a aceitaraacute como mal natildeo porque seja um mal em si mas porque eacute mal acidentalmente pela apreensatildeo da razatildeo [] Portanto deve-se dizer de modo absoluto que toda vontade que discorda da razatildeo seja reta ou errocircnea eacute sempre maacute124

O que quisemos acentuar eacute que razatildeovontade satildeo de certa

forma a instacircncia uacuteltima de nossas escolhas mdash sejam estas felizes ou natildeo mdash gozando ambas na simbiose em que interagem de

124 Idem Ibidem I-II 19 5 C ldquoPuta abstinere a fornicatione bonum quoddam est tamen in hoc bonum non fertur voluntas nisi secundum quod a ratione proponitur Si ergo proponatur ut malum a ratione errante feretur in hoc sub ratione mali Unde voluntas erit mala quia vult malum non quidem id quod est malum per se sed id quod est malum per accidens propter apprehensionem rationis Et similiter credere in Christum est per se bonum et necessarium ad salutem sed voluntas non fertur in hoc nisi secundum quod a ratione proponitur Unde si a ratione proponatur ut malum voluntas feretur in hoc ut malum non quia sit malum secundum se sed quia est malum per accidens ex apprehensione rationis[] Unde dicendum est simpliciter quod omnis voluntas discordans a ratione sive recta sive errante semper est malardquo

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ldquoautonomiardquo em relaccedilatildeo aos ldquocostumesrdquo ao poder poliacutetico e ao proacuteprio domiacutenio religioso Tomaacutes resume esta sua concepccedilatildeo afirmando ldquoO motivo disso eacute que o livre difere do servo porque o livre eacute causa de si []rdquo125 Na verdade para o Aquinate somente as accedilotildees que procedem do livre-arbiacutetrio ou seja unicamente da sinergia entre razatildeo e vontade podem ser ditas accedilotildees propriamente humanas Donde a claacutessica distinccedilatildeo entre ato do homem (actus hominis) e ato humano (actus humanus)

O homem diferencia-se das criaturas irracionais porque tem o domiacutenio de seus atos Por isso somente satildeo ditas propriamente humanas aquelas accedilotildees sobre as quais o homem tem domiacutenio Ora o homem tem domiacutenio de suas accedilotildees pela razatildeo e pela vontade Donde seraacute chamada de livre-arbiacutetrio a faculdade da vontade e da razatildeo Assim sendo satildeo propriamente ditas humanas as accedilotildees que procedem da vontade deliberada Se outras accedilotildees poreacutem satildeo proacuteprias do homem poderatildeo ser chamadas de accedilotildees do homem mas natildeo satildeo propriamente humanas pois natildeo satildeo do homem enquanto homem126

Ora eacute exatamente este domiacutenio intransferiacutevel e ineludiacutevel

do ato livre que torna o homem responsaacutevel por suas accedilotildees vale dizer capaz de virtudes e de viacutecios ldquoO homem eacute dotado de livre-arbiacutetrio do contraacuterio os conselhos as exortaccedilotildees os preceitos as proibiccedilotildees as recompensas e os castigos seriam vatildeosrdquo127 O livre-

125 Idem Ibidem I 96 4 C ldquoCuius ratio est quia servus in hoc differt a libero quod liber est causa sui []rdquo 126 Idem Suma Teoloacutegica I-II 1 1 C ldquoDiffert autem homo ab aliis irrationalibus creaturis in hoc quod est suorum actuum dominus Unde illae solae actiones vocantur proprie humanae quarum homo est dominus Est autem homo dominus suorum actuum per rationem et voluntatem unde et liberum arbitrium esse dicitur facultas voluntatis et rationis Illae ergo actiones proprie humanae dicuntur quae ex voluntate deliberata procedunt Si quae autem aliae actiones homini conveniant possunt dici quidem hominis actiones sed non proprie humanae cum non sint hominis inquantum est homordquo 127 Idem Ibidem I 83 1 C ldquoRespondeo dicendum quod homo est liberi arbitrii alioquin frustra essent consilia exhortationes praecepta prohibitiones praemia et poenaerdquo Este princiacutepio natildeo eacute negado em teologia pois a graccedila natildeo anula mas pressupotildee e aperfeiccediloa a natureza racional Em contextos estritamente teoloacutegicos o Aquinate afirma Idem Ibidem III 27 2 C ldquoCulpa autem non potest emundari nisi per gratiam cuius subiectum est sola creatura rationalisrdquo ldquoOra a culpa soacute pode

196 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino arbiacutetrio inaugura pois a vida eacutetica As nossas accedilotildees satildeo nossas mas por isso mesmo devemos responder por elas Aliaacutes a uacutenica coisa que nos pertence e que podemos dar ao mundo de ineacutedito satildeo os nossos atos No De veritate o Aquinate diz ldquoNo entanto natildeo podemos dar senatildeo isso que eacute nosso do que somos donos Contudo como somos donos de nossos atos pela vontade []rdquo128 Destarte para Tomaacutes pelo livre-arbiacutetrio mdash que adveacutem do consoacutercio entre razatildeo e vontade mdash o homem dono de suas accedilotildees passa a ser ele proacuteprio ldquo[] depois que ele tiver o uso da razatildeo ele comeccedila a ser ele mesmo e pode [] decidir-se por si mesmordquo129 O ato livre mdash prossegue ainda o Aquinate mdash faz o homem senhor de si pois este ato implica que conhecendo os proacutes e os contras das coisas o homem pode deixar de estar entre elas para estar diante delas130 De maneira que o homem livre natildeo pode ser compelido nem coagido mesmo a crer ldquoE entatildeo ele eacute induzido agrave feacute natildeo por coaccedilatildeo mas por persuasatildeo []rdquo131 Em suma pelo livre-arbiacutetrio o homem torna-se capaz de perfazer-se virtuoso ou vicioso jaacute que as suas potecircncias racionais soacute satildeo determinadas por suas livres e

ser purificada pela graccedila e o sujeito da graccedila eacute exclusivamente a criatura racionalrdquo Idem O livre-arbiacutetrio Quaestiones disputatae de veritate Questatildeo 24 24 1 C ldquoAd hoc enim fides astringit cum sine libero arbitrio non possit esse meritum vel demeritum iusta poena vel praemiumrdquo ldquoCom efeito a feacute tambeacutem obriga a isso pois sem o livre-arbiacutetrio natildeo pode haver meacuterito ou demeacuterito justa pena ou precircmiordquo 128 TOMAacuteS DE AQUINO As paixotildees da alma Quaestiones disputatae de veritate Questatildeo 26 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Beatriz Rodrigues de Lima Satildeo Paulo Edipro 2015 26 6 C ldquoDare autem non possumus nisi id quod nostrum est cuius domini sumus Sumus autem domini nostrorum actuum per voluntatem []rdquo 129 Idem Suma Teoloacutegica II-II 10 12 C ldquoPostquam autem incipit habere usum liberi arbitrii iam incipit esse suus et potest [] sibi ipsi providererdquo 130 Eacute verdade admite Tomaacutes que natildeo eacute contraacuterio agrave razatildeo de ato livre seguir conselhos Poreacutem adverte Aquino aquele que segue conselhos sem saber tomar as suas proacuteprias decisotildees ainda natildeo eacute perfeito na virtude Idem Ibidem I-II 57 5 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod cum homo bonum operatur non secundum propriam rationem sed motus ex consilio alterius nondum est omnino perfecta operatio ipsius quantum ad rationem dirigentem et quantum ad appetitum moventem Unde si bonum operetur non tamen simpliciter bene quod est bene vivererdquo ldquoDeve-se dizer que quando o homem faz o bem natildeo pela proacutepria razatildeo mas levado pelo conselho de outrem sua obra ainda natildeo eacute totalmente perfeita nem quanto agrave razatildeo que a dirige nem quanto ao apetite que a move Portanto se o bem eacute feito natildeo o eacute absolutamente bem que eacute viver bemrdquo 131 Idem Ibidem ldquoEt tunc est inducendus ad fidem non coactione sed persuasione []rdquo

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reiteradas escolhas que se tornam disposiccedilotildees estaacuteveis as quais Tomaacutes denomina haacutebitos

Jaacute as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam indeterminadamente a muitas coisas Ora eacute pelos haacutebitos que elas se determinam aos atos como se mostrou acima132

Nas Quaestiones Disputatae de Veritate o Aquinate remata

esta questatildeo dizendo que Deus deu ao homem o ser autor dos seus atos e por conseguinte do seu porvir ldquolsquoDeus deixou o homem nas matildeos de seu conselhorsquo (Sr 15 14) na medida em que ele o constituiu intendente de seus proacuteprios atosrdquo133 Noutro lugar volta a afirmar que Deus concedeu ao homem participar da Sua Providecircncia natildeo soacute como ldquoobjetordquo mas tambeacutem como ldquosujeitordquo que provecirc ldquoPor conseguinte a criatura racional participa da providecircncia natildeo somente enquanto eacute governada mas tambeacutem enquanto governa pois governa as suas proacuteprias accedilotildees e as dos outrosrdquo134 Por isso para o Aquinate atentar contra a accedilatildeo proacutepria das coisas mdash no caso do homem contra o seu livre-arbiacutetrio mdash eacute atentar contra a virtude divina ldquoLogo tirar das coisas as suas proacuteprias accedilotildees eacute diminuir a bondade divinardquo135 Importa ressaltar

132 Idem Ibidem I-II 55 1 C ldquoPotentiae autem rationales quae sunt propriae hominis non sunt determinatae ad unum sed se habent indeterminate ad multa determinantur autem ad actus per habitus sicut ex supradictis patet Et ideo virtutes humanae habitus suntrdquo 133 Idem De veritate q 5 a 5 ad 4 In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 344 ldquoAd quartum dicendum quod Deus permisit hominem in manu consilii sui inquantum constituit eum propriorum actuum provisorem []rdquo Torrell arrola outras passagens em que Tomaacutes mdash na Suma de Teologia mdash cita o versiacuteculo do Eclesiaacutestico para expressar a mesma ideia o ato humano eacute dotado de uma causalidade proacutepria 134 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios III CXIII 5 [2873] ldquoCreatura rationalis sic providentiae divinae subiacet quod non solum ea gubernatur sed etiam rationem providentiae utcumque cognoscere potest []rdquo BRAGUE A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila p 288 ldquoA criatura racional tem parte na providecircncia natildeo apenas como objeto mas tambeacutem como sujeitordquo 135 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios III LXIX 11 [2446] ldquoDetrahere ergo actiones proprias rebus est divinae bonitati derogarerdquo Idem Ibidem III LXIX 10 [2445] ldquoSed si nulla creatura habet aliquam actionem ad aliquem effectum producendum multum detrahitur perfectioni

198 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino no entanto que o fato de Tomaacutes dar ecircnfase agrave liberdade do homem natildeo o torna por assim dizer um ldquodeiacutestardquo posto que a ordem da Providecircncia dispocircs de tal forma os seres criados ldquo[] que o efeito da providecircncia divina natildeo eacute unicamente que algo aconteccedila de qualquer modo mas que aconteccedila seja de modo necessaacuterio seja de modo contingenterdquo136 Em razatildeo disso a liberdade humana natildeo estaacute fora do controle da Providecircncia nem eacute tolhida por ela inclusive na ordem da graccedila Conclui o Frade Mendicante

[] Deus tudo move segundo o modo proacuteprio de cada um [] Ora a natureza proacutepria do homem eacute estar dotado de livre-arbiacutetrio Portanto quando se trata de um indiviacuteduo que tem o uso de seu livre-arbiacutetrio a moccedilatildeo de Deus para a justiccedila natildeo acontece sem que se exerccedila este livre-arbiacutetrio137

Do que expusemos acerca do livre-arbiacutetrio decorre que o

homem eacute livre por ser racional e volitivo e sendo livre pode ter domiacutenio sobre os seus atos e responder por eles Haacute entatildeo uma realidade humana um mundo ou um haacutebitat construiacutedo pelos homens fundado por seus atos porquanto o homem eacute de certo modo providecircncia para si mesmo Ele provecirc para si e para os seus ldquo[] Deus quis comunicar a sua semelhanccedila agraves coisas natildeo soacute quanto ao ser mas tambeacutem quanto ao serem causas de outrasrdquo 138

creaturae ex abundantia enim perfectionis est quod perfectionem quam aliquid habet possit alteri communicare Detrahit igitur haec positio divinae virtutirdquo ldquoOra se nenhuma criatura tem accedilatildeo efetiva muito eacute diminuiacutedo de sua perfeiccedilatildeo pois eacute proacuteprio da excelecircncia da perfeiccedilatildeo de uma coisa poder comunicaacute-la agrave outra coisa Logo tal tese diminui a virtude divinardquo 136 Idem Suma Teoloacutegica I 22 4 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod effectus divinae providentiae non solum est aliquid evenire quocumque modo sed aliquid evenire vel contingenter vel necessariordquo 137 Idem Ibidem I-II 113 3 C ldquoDeus autem movet omnia secundum modum uniuscuiusque [] Unde et homines ad iustitiam movet secundum conditionem naturae humanae Homo autem secundum propriam naturam habet quod sit liberi arbitriirdquo 138 Idem Suma Contra os Gentios III LXX 5 [2465] ldquoNon enim hoc est ex insufficientia divinae virtutis sed ex immensitate bonitatis ipsius per quam suam similitudinem rebus communicare voluit non solum quantum ad hoc quod essent sed etiam quantum ad hoc quod aliorum causae essent []rdquo BRAGUE A Lei de Deus Histoacuteria filosoacutefica de uma alianccedila p 288 ldquoDeus lhe delega sua providecircncia ateacute fazer coincidir Sua providecircncia com a prudecircncia palavra que na histoacuteria da

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Mais uma vez nos deparamos com a face filosoacutefica da eacutetica de Tomaacutes Comentando estas passagens Brague destaca a perspectiva poieacutetica da eacutetica tomasiana visto que nela o homem natildeo eacute soacute ldquoobjetordquo de uma realidade jaacute dada mas ldquosujeitordquo que cria a sua morada por sua capacidade de agir livremente

Este bem do homem natildeo eacute soacute um bem criado para ele mas um bem que ele eacute capaz de criar A partir do momento em que eacute percebido dessa forma o homem entra em cena como sujeito e natildeo apenas como objeto Assim penetra-se no campo da moral como teoria do bem enquanto criaacutevel pelo homem o qual se apropria desse bem na excelecircncia humana ou virtude139

Mondin define a moral exatamente como o exerciacutecio de o

homem construir-se como homem ldquoFazer o homem mdash que eacute a tarefa proacutepria da moral mdash significa fazer o homem em todas as suas dimensotildees []rdquo140 Noutro lugar ele retoma a mesma ideia ldquoA tarefa da eacutetica eacute fazer o homemrdquo141 Por fim Tomaacutes integra todos estes dados sobre o ato humano para definir o homem como pessoa Passemos agrave consideraccedilatildeo deste conceito

liacutengua constitui aliaacutes a coacutepia da primeira originaacuteria como ela do latim providentiardquo Idem Ibidem ldquoEis aqui o fruto produzido por um princiacutepio formulado fora a bondade de Deus vai ateacute transmitir ao que Ele cria Seu proacuteprio poder criadorrdquo 139 Idem Ibidem p 292 140 MONDIN Battista Definiccedilatildeo Filosoacutefica da Pessoa Humana Trad Jacinta Turolo Garcia Satildeo Paulo EDUSC 1998 p 23 141 Idem Ibidem p 37 Ao usar os verbos ldquoagordquo e ldquofaciordquo natildeo desconhecemos que eles possuem stricto sensu significaccedilotildees distintas pois o agir eacute um ato que termina na perfeiccedilatildeo do sujeito e o fazer eacute um ato transeunte que termina na perfeiccedilatildeo do objeto TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 57 4 C ldquoDiffert autem facere et agere quia ut dicitur in IX Metaphys factio est actus transiens in exteriorem materiam sicut aedificare secare et huiusmodi agere autem est actus permanens in ipso agente sicut videre velle et huiusmodirdquo ldquoFazer e agir satildeo coisas diferentes O primeiro como se diz no livro IX da Metafiacutesica eacute um ato que passa para uma mateacuteria exterior como construir cortar e outros enquanto que o segundo eacute um ato que fica no proacuteprio agente como ver querer e semelhantesrdquo Contudo lato sensu no sentido de que o agir perfaz o nosso caraacuteter e assim as nossas relaccedilotildees e o ambiente que nos circunda natildeo haacute razatildeo a nosso ver para natildeo aproximarmos o agir eacutetico de uma espeacutecie de fazer poieacutetico

200 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino 361 A PESSOA

Assim chegamos a um ponto importante da eacutetica tomasiana Afirma Tomaacutes ldquoPessoa significa o que haacute de mais perfeito em toda natureza a saber o que subsiste numa natureza racionalrdquo142 No De Potentia diz o mesmo ldquoA natureza implicada na significaccedilatildeo do nome pessoa eacute a mais digna de todas as naturezas uma vez que eacute a natureza intelectiva em toda a sua amplidatildeordquo143 E o que haacute de mais nobre no proacuteprio ser pessoa e por isso livre eacute a sua possibilidade de fazer-se

Diversamente dos outros seres vivos cujo ser eacute inteiramente produzido preacute-fabricado pela natureza o homem eacute grande em medida o artiacutefice de si mesmo [] Ele deve se construir com suas proacuteprias matildeos cultivando a si mesmo144

A liberdade eacute dada ao homem para que ele possa realizar a si mesmo seu proacuteprio ser porque ele realiza tudo aquilo que a natureza apenas comeccedilou a esboccedilar145

Pensa Battista Mondin que Tomaacutes ao definir o homem

como pessoa e ao dizer que eacute na liberdade da pessoa que se radica a vida eacutetica retoma a ideia dos antigos de que a eacutetica eacute sob certo aspecto uma ldquoarterdquo Diz o estudioso ldquoNa origem a pessoa humana eacute um projeto mais do que uma obra completa A pessoa eacute uma obra de arte a maior de todas as obras de arterdquo146 Aliaacutes o proacuteprio Tomaacutes concebe a vida eacutetica como uma vida bela Para ele a beleza

142 Idem Ibidem I 29 3 C ldquoRespondeo dicendum quod persona significat id quod est perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturardquo 143 TOMAacuteS DE AQUINO De Potentia q 9 a 1 co In TORRELL Jean-Pierre Santo Tomaacutes de Aquino Mestre Espiritual Trad J Pereira 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola p 371 ldquoNatura autem quam persona in sua significatione includit est omnium naturarum dignissima scilicet natura intellectualis secundum genus suumrdquo 144 MONDIN Definiccedilatildeo Filosoacutefica da Pessoa Humana pp 15 e 16 145 Idem Ibidem p 18 146 Idem Ibidem p 38

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espiritual consiste numa vida vivida e construiacuteda segundo a reta razatildeo

[] Do mesmo modo a beleza espiritual consiste em ter o homem comportamento e atividade bem equilibrados pelo esplendor espiritual da razatildeo Mas isso diz respeito agrave razatildeo de honesto que acabamos de declarar idecircntico agrave virtude a qual regula todas as coisas humanas de acordo com a razatildeo Por isso o honesto eacute o mesmo que a beleza espiritual []147

Com os resultados jaacute obtidos podemos aprofundar o

conceito de pessoa a fim de percebermos quais satildeo as suas implicaccedilotildees eacuteticas Segundo Garrigou-Lagrange na sua siacutentese do pensamento de Tomaacutes ldquo[] a pessoa eacute um sujeito inteligente e livre []rdquo148 Para bem compreendermos o enunciado cumpre analisarmos cada um dos termos contidos na definiccedilatildeo Antes de mais importa entendermos o que nela estaacute pressuposto a saber o conceito de substacircncia (substantia) conforme a definiccedilatildeo que Tomaacutes retoma de Boeacutecio ldquo[] a pessoa eacute segundo Boeacutecio a lsquosubstacircncia individual de uma natureza racionalrsquordquo 149 Ora a substacircncia eacute aquilo que existe por si eacute o ens per se diriam os escolaacutesticos Em outros termos a substacircncia eacute aquilo que estaacute apto para existir em oposiccedilatildeo agravequilo que natildeo pode existir por si a saber ao acidente (accidens) Este uacuteltimo por natildeo possuir um ato de ser (actus essendi) proacuteprio soacute pode subsistir na e pela substacircncia que ao contraacuterio possui um actus essendi proacuteprio150

147 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 145 2 C ldquoEt similiter pulchritudo spiritualis in hoc consistit quod conversatio hominis sive actio eius sit bene proportionata secundum spiritualem rationis claritatem Hoc autem pertinet ad rationem honesti quod diximus idem esse virtuti quae secundum rationem moderatur omnes res humanas Et ideo honestum est idem spirituali decorirdquo 148 GARRIGOU-LAGRANGE Reacuteginald La Siacutentesis Tomista Trad Eugenio S Melo Buenos Aires Ediciones Descleacutee 1946 p 247 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] la persona es un sujeto inteligente y libre []rdquo 149 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica III 2 2 C ldquo[] persona quam rationalis naturae individua substantia secundum Boetium []rdquo 150 MONDIN Battista Substacircncia In ______ Glossaacuterio dos Principais Termos Teoloacutegico-Filosoacuteficos Trad Joseacute Maria de Almeida 2 ed Satildeo Paulo Paulus 2005 p 440

202 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Dessa anaacutelise chegamos a outro conceito fundamental Se a substacircncia possui um ato de ser proacuteprio e natildeo existe em outra coisa senatildeo em si mesma ela eacute entatildeo distinta de tudo eacute um indiviacuteduo Com efeito um indiviacuteduo como define Tomaacutes ldquo[] eacute o que eacute indiviso em si e distinto dos outrosrdquo151 De fato o universal e o particular se encontram em todos os gecircneros do ser poreacutem eacute no gecircnero substacircncia que particularmente se encontra o indiviacuteduo Enquanto os acidentes subsistem como indiviacuteduos nas substacircncias as substacircncias satildeo individuadas por si mesmas Em outras palavras se os acidentes tornam-se indivisos por existirem numa substacircncia a proacutepria substacircncia eacute indivisa em si mesma Por isso eacute ao indiviacuteduo do gecircnero substacircncia isto eacute agravequele que subsiste em si mesmo que damos formalmente o nome de hipoacutestase ou substacircncia primeira152

Todavia a pessoa natildeo eacute somente uma substacircncia individual mas como jaacute havia definido Boeacutecio uma substacircncia individual de natureza racional (individua substantia rationalis naturae) Com efeito o particular e o individual se encontram de maneira ainda mais especial e perfeita nas chamadas substacircncias racionais Isto se daacute pelo fato de as substacircncias racionais possuiacuterem o domiacutenio dos seus atos (dominium sui actus) Elas natildeo estatildeo fadadas a agir somente por causalidade natural mas podem desencadear uma causalidade proacutepria Aliaacutes eacute esta peculiaridade que distingue as substacircncias racionais das demais substacircncias elas satildeo capazes de agir por si mesmas (per se agunt) De fato denominamos pessoa (persona) precisamente a substacircncia racional que aleacutem de existir por si (ens per se) ou exatamente por isso eacute capaz em virtude da sua racionalidade de agir por si Disso

151 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 29 4 C ldquoIndividuum autem est quod est in se indistinctum ab aliis vero distinctumrdquo GILSON O Espiacuterito da Filosofia Medieval p 265 ldquoUm indiviacuteduo eacute um ser dividido de todos os outros seres e por sua vez natildeo divisiacutevel em outros seresrdquo 152 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 29 1 C ldquoSubstantia enim individuatur per seipsam sed accidentia individuantur per subiectum quod est substantia []rdquo ldquoA substacircncia com efeito eacute individuada por si mesma Mas os acidentes o satildeo pelo sujeito isto eacute pela substacircncia []rdquo

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decorre que o homem eacute uma pessoa isto eacute uma substacircncia racional resultante da uniatildeo substancial entre alma e corpo que existe e age por si Vale ceder a palavra ao proacuteprio Tomaacutes

O particular e o indiviacuteduo realizam-se de maneira ainda mais especial e perfeita nas substacircncias racionais que tecircm o domiacutenio de seus atos e natildeo satildeo apenas movidas na accedilatildeo como as outras mas agem por si mesmas Ora as accedilotildees estatildeo nos singulares Por isso entre as outras substacircncias os indiviacuteduos de natureza racional tecircm o nome especial de pessoa153

Para prosseguirmos na abordagem sobre a pessoa cumpre

que ponderemos o que eacute o bem e quais satildeo os seus desdobramentos a fim de verificarmos em qual escala se encontra a pessoa na hierarquia dos bens 362 O BEM UacuteTIL HONESTO E DELEITAacuteVEL

O bem em Tomaacutes natildeo eacute um conceito uniacutevoco mas pluriacutevoco154 Contudo abstraiacutedo relativamente dos modos como se realiza podemos defini-lo como aquilo para o qual todos tendem ou aquilo que todos desejam155 Dito isso podemos considerar a existecircncia de um bem uacutetil honesto e deleitaacutevel O bem uacutetil eacute aquele que eacute desejado como meio para se chegar a um fim isto eacute aquele que eacute apetecido tendo em vista este fim Jaacute o bem honesto eacute aquele

153 Idem Ibidem ldquoSed adhuc quodam specialiori et perfectiori modo invenitur particulare et individuum in substantiis rationalibus quae habent dominium sui actus et non solum aguntur sicut alia sed per se agunt actiones autem in singularibus sunt Et ideo etiam inter ceteras substantias quoddam speciale nomen habent singularia rationalis naturae Et hoc nomen est personardquo 154 Idem Ibidem I 5 6 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod bonum non dividitur in ista tria sicut univocum aequaliter de his praedicatum sed sicut analogum []rdquo ldquoDeve-se dizer que o bem natildeo se divide nestes trecircs gecircneros como um termo uniacutevoco atribuiacutedo igualmente a eles mas como um termo anaacutelogo [hellip]rdquo 155 Idem Ibidem I 5 1 C ldquoRatio enim boni in hoc consistit quod aliquid sit appetibile unde philosophus in I Ethic dicit quod bonum est quod omnia appetuntrdquo ldquo[] a razatildeo do bem consiste em que alguma coisa seja atrativa Por isso mesmo o Filoacutesofo no livro I da Eacutetica assim define o bem lsquoAquilo para o qual todas as coisas tendemrsquordquo

204 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que eacute desejado por si ou seja querido por si mesmo e natildeo como meio para se alcanccedilar outra coisa por isso tem razatildeo de fim e natildeo de meio O bem deleitaacutevel eacute aquele no qual repousa a vontade vale dizer eacute o termo uacuteltimo do seu movimento156 Estes bens natildeo satildeo opostos ou excludentes mas complementares entretanto pode acontecer que acidentalmente um contrarie o outro Por exemplo um bem que seja apetecido uacutenica e exclusivamente em razatildeo de ser deleitaacutevel inobstante seja deleitaacutevel pode ser desonesto Desta sorte o sexo cujo fim eacute a procriaccedilatildeo quando praticado apenas por luxuacuteria torna-se um bem desonesto Assim acontece tambeacutem com um remeacutedio amargo que eacute um bem uacutetil porque desejado tatildeo somente como meio para se alcanccedilar a sauacutede se no entanto por absurdo fosse ingerido como um fim em si mesmo tornar-se-ia desonesto157 Atendo-nos agrave definiccedilatildeo de bem exposta fica evidente

156 Idem Suma Teoloacutegica I 5 6 C ldquoRespondeo dicendum quod haec divisio proprie videtur esse boni humani Si tamen altius et communius rationem boni consideremus invenitur haec divisio proprie competere bono secundum quod bonum est Nam bonum est aliquid inquantum est appetibile et terminus motus appetitus Cuius quidem motus terminatio considerari potest ex consideratione motus corporis naturalis Terminatur autem motus corporis naturalis simpliciter quidem ad ultimum secundum quid autem etiam ad medium per quod itur ad ultimum quod terminat motum et dicitur aliquis terminus motus inquantum aliquam partem motus terminat Id autem quod est ultimus terminus motus potest accipi dupliciter vel ipsa res in quam tenditur utpote locus vel forma vel quies in re illa Sic ergo in motu appetitus id quod est appetibile terminans motum appetitus secundum quid ut medium per quod tenditur in aliud vocatur utile Id autem quod appetitur ut ultimum terminans totaliter motum appetitus sicut quaedam res in quam per se appetitus tendit vocatur honestum quia honestum dicitur quod per se desideratur Id autem quod terminat motum appetitus ut quies in re desiderata est delectatiordquo ldquoEsta divisatildeo propriamente parece ser do bem humano No entanto se consideramos a razatildeo de bem de maneira mais profunda e geral vemos que esta divisatildeo cabe propriamente ao bem enquanto tal Com efeito uma coisa eacute boa enquanto atrativa e enquanto termo do movimento do apetite Ora o termo deste movimento pode ser comparado ao do corpo fiacutesico O movimento do corpo fiacutesico termina absolutamente em seu termo uacuteltimo mas sob certo aspecto ele termina no espaccedilo intermediaacuterio por onde se vai ateacute o termo uacuteltimo que termina o movimento Assim se chama termo de um movimento o que termina uma parte do movimento O termo uacuteltimo do movimento pode-se entender de duas maneiras ou a coisa agrave qual se tende como a forma o lugar ou o repouso naquela coisa Assim no movimento do apetite chama-se uacutetil aquilo que eacute atrativo e termina o movimento sob certo aspecto como um meio pelo qual se tende para outra coisa Aquilo que eacute atrativo como uacuteltimo e termina completamente o movimento do apetite chama-se honesto por exemplo alguma coisa para a qual o apetite tende por si Por isso chama-se honesto o que eacute desejaacutevel em si mesmo Enfim aquilo que termina o movimento do apetite como repouso na coisa desejada eacute o agradaacutevelrdquo 157 Idem Ibidem I 5 6 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod haec divisio non est per oppositas res sed per oppositas rationes Dicuntur tamen illa proprie delectabilia quae nullam habent aliam

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que a razatildeo de bem se realiza mais perfeitamente naquele que eacute desejado por si mesmo a saber o bem honesto Em segundo lugar no bem deleitaacutevel onde a vontade se aquieta Por uacuteltimo no bem uacutetil no qual a razatildeo de bem se realiza de forma menos proacutepria pois ele soacute eacute desejado enquanto meio que leva a um fim158

Ora Tomaacutes admite um bem honesto relativo agrave ordem natural a saber o homem Procuremos entender Diz o Aquinate ldquoNo homem se encontram de certo modo todas as coisasrdquo159 A partir disso prossegue dizendo que sendo o homem de certa forma um microcosmo tem-se que o modo como ele domina as coisas que estatildeo nele eacute o mesmo pelo qual ele domina todas as coisas Pois bem pela razatildeo o homem se equipara aos anjos pelas potecircncias sensitivas aos animais pelas naturais agraves plantas pelo corpo agraves coisas inanimadas De sorte que a razatildeo eacute o que haacute de mais nobre no homem e eacute pela razatildeo que o homem se ordena a dominar todas as coisas do macrocosmo e consequentemente a natildeo ser dominado por nenhuma delas Em passagem jaacute citada diz Tomaacutes ldquoA razatildeo no homem ocupa o lugar do que domina e natildeo do que estaacute submetido agrave dominaccedilatildeordquo160 A questatildeo que se segue eacute esta como o homem exerce este seu domiacutenio racional sobre todas as coisas Em relaccedilatildeo agraves potecircncias sensiacuteveis a razatildeo domina dando-lhes ordens Assim o homem domina os animais dando-lhes ordens em relaccedilatildeo agraves plantas e agraves coisas inanimadas como agraves

rationem appetibilitatis nisi delectationem cum aliquando sint et noxia et inhonesta Utilia vero dicuntur quae non habent in se unde desiderentur sed desiderantur solum ut sunt ducentia in alterum sicut sumptio medicinae amarae Honesta vero dicuntur quae in seipsis habent unde desiderenturrdquo ldquoDeve-se dizer que esta divisatildeo natildeo eacute por coisas opostas mas por razotildees opostas Entretanto chama-se apropriadamente agradaacutevel aquilo cuja uacutenica razatildeo de atraccedilatildeo eacute o deleite ainda que alguma vez seja natildeo soacute nocivo como tambeacutem desonesto Chama-se uacutetil o que em si mesmo nada tem por onde ser atrativo mas eacute desejado apenas enquanto leva a outras coisas como tomar um remeacutedio amargo Pelo contraacuterio chama-se honesto o que em si mesmo tem por onde ser desejadordquo 158 Idem Ibidem I 5 6 ad 3 ldquoPer prius enim praedicatur de honesto et secundario de delectabili tertio de utilirdquo ldquoEm primeiro lugar atribui-se ao honesto em segundo ao agradaacutevel e em terceiro ao uacutetilrdquo 159 Idem Ibidem I 96 2 C ldquoRespondeo dicendum quod in homine quodammodo sunt omnia []rdquo 160 Idem Ibidem ldquoRatio autem in homine habet locum dominantis et non subiecti dominiordquo

206 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino suas potecircncias naturais e ao seu proacuteprio corpo o homem domina utilizando-os Poreacutem quando domina outros homens o homem natildeo os domina dando-lhes ordens ou utilizando-os mas sim como ldquo[] algueacutem domina a outro como livre quando o dirige para o proacuteprio bem daquele que eacute dirigido ou para o bem comumrdquo161 Nisto pois reside a dignidade da pessoa humana por ser livre e capaz de ser senhor de si o homem natildeo pode ser tomado como meio ou como servo mas deve ser sempre respeitado como fim Retomemos toda a passagem

O motivo disso eacute que o livre difere do servo porque o livre eacute causa de si como se diz no iniacutecio da Metafiacutesica o servo poreacutem eacute ordenado para outro Entatildeo algueacutem domina outrem como servo quando refere aquele que eacute dominado agrave proacutepria utilidade a saber do que domina E porque o proacuteprio bem eacute apeteciacutevel a cada um consequumlentemente eacute contristador a algueacutem ceder a outrem o bem que deveria pertencer-lhe assim tal domiacutenio natildeo pode existir sem pena dos suacuteditos162

Natildeo se trata de negar as raiacutezes cristatildes de Tomaacutes mas de

perceber como ele se utiliza de algumas verdades reveladas tambeacutem para dar ldquocidadaniardquo agrave ordem natural Todo o argumento acima esconde um estreito laccedilo com a tradiccedilatildeo judaico-cristatilde na qual o homem eacute o aacutepice da criaccedilatildeo Na verdade o Aquinate reconquista em termos filosoacuteficos algumas ldquoverdades cristatildesrdquo Diz ele ldquo[] na hierarquia dos seres os menos perfeitos satildeo para os mais perfeitos []rdquo163 Em seguida revela de onde retira este argumento ldquo[] como no processo da geraccedilatildeo a natureza vai do

161 Idem Ibidem I 96 4 C ldquoTunc vero dominatur aliquis alteri ut libero quando dirigit ipsum ad proprium bonum eius qui dirigitur vel ad bonum communerdquo 162 Idem Ibidem ldquoCuius ratio est quia servus in hoc differt a libero quod liber est causa sui ut dicitur in principio Metaphys servus autem ordinatur ad alium Tunc ergo aliquis dominatur alicui ut servo quando eum cui dominatur ad propriam utilitatem sui scilicet dominantis refert Et quia unicuique est appetibile proprium bonum et per consequens contristabile est unicuique quod illud bonum quod deberet esse suum cedat alteri tantum ideo tale dominium non potest esse sine poena subiectorumrdquo 163 Idem Ibidem II-II 64 1 C ldquoIn rerum autem ordine imperfectiora sunt propter perfectiora []rdquo

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imperfeito ao perfeitordquo164 Por fim chega a exemplificar ldquo[] na geraccedilatildeo do homem primeiro existe o ser vivo depois o animal e finalmente o homemrdquo165 Aqui natildeo eacute o lugar de discutirmos os limites dos conhecimentos bioloacutegicos de Tomaacutes O que nos importa reter eacute o seguinte na argumentaccedilatildeo de Tomaacutes a ordem das coisas nos ensina que ldquo[] os seres que soacute tecircm a vida os vegetais satildeo no conjunto destinados a servir aos animais todos e os animais ao homemrdquo 166 Ora eacute deste raciociacutenio que ele deduz que ldquo[] conserva-se a vida dos animais e das plantas natildeo por causa deles mas do homemrdquo167 ou seja o homem na ordem da geraccedilatildeo natural apresenta-se como um bem querido por si mesmo um fim A bem da verdade ao discriminar o que distingue o homem dos outros seres vivos Aquino aduz ainda o mesmo argumento no qual fundamenta o seu conceito de pessoa a saber a capacidade de agir por si mesmo ldquoDeve-se dizer que os animais e as plantas natildeo tecircm a vida racional que lhes facultaria agir por eles mesmosrdquo168 E eacute soacute apoacutes esta complexa argumentaccedilatildeo e como um corolaacuterio moral e natildeo como parte dela que o Aquinate cita uma passagem do livro do Gecircnesis

Pois se lecirc no livro do Gecircnesis ldquoEis que vos dou todas as ervas e todas as aacutervores para vos servirem de sustento para voacutes e os animais da terrardquo E ainda ldquoTudo o que se move e vive vos serviraacute de alimentordquo169

164 Idem Ibidem ldquo[] sicut etiam in generationis via natura ab imperfectis ad perfecta proceditrdquo 165 Idem Ibidem ldquoEt inde est quod sicut in generatione hominis prius est vivum deinde animal ultimo autem homo []rdquo 166 Idem Ibidem ldquo[] ita etiam ea quae tantum vivunt ut plantae sunt communiter propter omnia animalia et animalia sunt propter hominemrdquo 167 Idem Ibidem II-II 64 1 ad 1 ldquo[] conservatur vita animalium et plantarum non propter seipsam sed propter hominemrdquo 168 Idem Ibidem II-II 64 1 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod animalia bruta et plantae non habent vitam rationalem per quam a seipsis agantur []rdquo 169 Idem Ibidem II-II 64 1 C ldquo[] dicitur enim Gen I ecce dedi vobis omnem herbam et universa ligna ut sint vobis in escam et cunctis animantibus Et Gen IX dicitur omne quod movetur et vivit erit vobis in cibumrdquo

208 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Com efeito ao definir o homem como pessoa Tomaacutes o coloca como imagem de Deus Natildeo sem razatildeo eacute seguindo esta linha que ele pode dizer que a perfeiccedilatildeo da pessoa conveacutem antes de mais a Deus ldquoOra tudo o que diz perfeiccedilatildeo deve ser atribuiacutedo a Deus [] Conveacutem portanto atribuir a Deus este nome pessoardquo170 Em outros termos o que o Aquinate faz natildeo eacute senatildeo traduzir em termos filosoacuteficos uma parte da teologia do homem como imagem de Deus (Gn 1 26) a saber o fato de o homem ser pessoa Pelo contexto da uacuteltima citaccedilatildeo da Summa podemos observar ainda que a imagem de Deus no homem mostra-se precisamente pelo dinamismo do ato livre o qual por sua vez eacute derivado da sua natureza racional Numa passagem agrave qual voltaremos no proacuteximo capiacutetulo Tomaacutes resume exatamente nestes termos a sua eacutetica

Afirma Damasceno que o homem eacute criado agrave imagem de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto de livre-arbiacutetrio e revestido por si de poder Apoacutes ter discorrido sobre o exemplar a saber Deus e sobre as coisas que procederam do poder voluntaacuterio de Deus deve-se considerar agora a sua imagem a saber o homem enquanto ele eacute o princiacutepio de suas accedilotildees possuindo livre-arbiacutetrio e domiacutenio sobre suas accedilotildees171

Este passo daacute-nos a conhecer que na ordem natural

exatamente enquanto imagem de Deus ou em termos filosoacuteficos enquanto pessoa capaz de ser princiacutepio de suas accedilotildees o homem eacute sempre um fim para o qual se ordenam os meios a serem escolhidos pelo diaacutelogo entre razatildeo e vontade Em outras palavras

170 Idem Ibidem I-II 29 3 C ldquoUnde cum omne illud quod est perfectionis Deo sit attribuendum eo quod eius essentia continet in se omnem perfectionem conveniens est ut hoc nomen persona de Deo dicaturrdquo 171 Idem Ibidem I-II Proacutelogo [O segundo itaacutelico eacute nosso] ldquoQuia sicut Damascenus dicit homo factus ad imaginem Dei dicitur secundum quod per imaginem significatur intellectuale et arbitrio liberum et per se potestativum postquam praedictum est de exemplari scilicet de Deo et de his quae processerunt ex divina potestate secundum eius voluntatem restat ut consideremus de eius imagine idest de homine secundum quod et ipse est suorum operum principium quasi liberum arbitrium habens et suorum operum potestatemrdquo

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o homem natildeo pode ser tomado como bem uacutetil ou simplesmente deleitaacutevel Ele eacute inclusive em teologia a seu modo um bem honesto porquanto querido por si mesmo por Deus que a ele tudo submeteu Natildeo eacute de pouca monta que Tomaacutes num ceacutelebre artigo do tratado De Homine da Summa argumenta que tendo sido o homem ldquo[] estabelecido como um intermediaacuterio entre as criaturas corruptiacuteveis e incorruptiacuteveis pois sua alma eacute por natureza incorruptiacutevel e seu corpo eacute por natureza corruptiacutevelrdquo172 ele foi querido por si mesmo enquanto indiviacuteduo e natildeo somente em virtude da perpetuaccedilatildeo da espeacutecie

Pela alma incorruptiacutevel ao contraacuterio conveacutem que a multidatildeo dos indiviacuteduos seja visada por si pela natureza ou antes pelo autor da natureza que eacute o uacutenico criador das almas humanas173

Natildeo eacute o lugar para dissertarmos sobre o complexo tema da

imortalidade da alma nem eacute preciso insistir no paradigma ldquoteiacutestardquo O que Tomaacutes quer frisar pode ser assim resumido se o agir segue o ser em ato174 e o modo de agir o modo de ser175 uma vez que o homem eacute capaz de ser senhor de suas accedilotildees pois sua razatildeo torna-o capaz de pelo juiacutezo racional preferir um bem a outro176 segue-se

172 Idem Ibidem I 98 1 C ldquoEst ergo considerandum quod homo secundum suam naturam est constitutus quasi medium quoddam inter creaturas corruptibiles et incorruptibiles nam anima eius est naturaliter incorruptibilis corpus vero naturaliter corruptibilerdquo 173 Idem Ibidem ldquoEx parte vero animae quae incorruptibilis est competit ei quod multitudo individuorum sit per se intenta a natura vel potius a naturae auctore qui solus est humanarum animarum creatorrdquo 174 Idem Suma Contra os Gentios III LXIX 10 [2450] ldquo[] agit enim unumquodque secundum quod est acturdquo ldquo[] o agir segue o ser em ato []rdquo 175 Idem Suma Teoloacutegica I 89 1 C ldquo[] modus operandi uniuscuiusque rei sequitur modum essendi ipsiusrdquo ldquo[] o modo de agir de toda coisa eacute uma consequumlecircncia de seu modo de existirrdquo 176 Idem Ibidem I 83 1 C ldquoO homem poreacutem age com julgamento porque por sua potecircncia cognoscitiva julga que se deve fugir de alguma coisa ou procuraacute-la Mas como esse julgamento natildeo eacute o efeito de um instinto natural aplicado a uma accedilatildeo particular mas uma certa comparaccedilatildeo da razatildeo por isso o homem age com julgamento livre podendo se orientar para diversos objetosrdquo Uma autorizada e atualizada concepccedilatildeo do homem como pessoa mdash em larga medida devedora da siacutentese tomasiana mdash como ser livre dotado de abertura e da capacidade de transcender-se encontra-se em Lima Vaz que adentra na temaacutetica a partir de uma revalorizaccedilatildeo da especificidade da dimensatildeo

210 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que ele eacute um bem em si mesmo a saber um bem honesto Mas eacute preciso ressaltar que exaltando a dignidade da pessoa Tomaacutes natildeo se afasta de uma eacutetica das virtudes nem da eydaimoniacutea porque o bem honesto reside justamente no ldquoflorescimento da pessoa humanardquo o qual consiste na accedilatildeo de acordo com a reta razatildeo ou seja no agir virtuosamente

O honesto tem o mesmo objeto que o uacutetil e deleitaacutevel mas se distingue deles pela razatildeo pois uma coisa eacute dita honesta quando possui certo brilho por estar de acordo com os princiacutepios da razatildeo Ora o que estaacute conforme a razatildeo eacute por natureza conveniente ao homem E todo ser naturalmente se compraz com o que lhe conveacutem Assim o honesto eacute naturalmente prazeroso para o homem como prova o Filoacutesofo a propoacutesito dos atos virtuosos No entanto nem tudo o que eacute deleitaacutevel eacute honesto porque pode um bem ser conveniente aos sentidos e natildeo agrave razatildeo Nesse caso poreacutem eacute deleitaacutevel contra a ordem da razatildeo a qual aperfeiccediloa a natureza humana177

Todavia quando pensamos que estaacute tudo dito a respeito da

racionalidade humana e da incomunicabilidade do ser pessoa verificamos que o Aquinate em outros textos descobre como que outra face desta mesma racionalidade a saber a dimensatildeo da comunicabilidade ldquoA pessoa [] eacute essencialmente comunicaccedilatildeordquo178 Podemos assim retornar ao tema da civitas mas desta feita ancorados na fundamentaccedilatildeo do caraacuteter intransferiacutevel do ato humano isto eacute do homem concebido como pessoa A

pneumaacutetica do homem VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Antropologia Filosoacutefica I 7 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2004 pp 181-264 177 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 145 3 C ldquoRespondeo dicendum quod honestum concurrit in idem subiectum cum utili et delectabili a quibus tamen differt ratione Dicitur enim aliquid honestum sicut dictum est inquantum habet quendam decorem ex ordinatione rationis Hoc autem quod est secundum rationem ordinatum est naturaliter conveniens homini Unumquodque autem naturaliter delectatur in suo convenienti Et ideo honestum est naturaliter homini delectabile sicut de operatione virtutis philosophus probat in I Ethic Non tamen omne delectabile est honestum quia potest etiam aliquid esse conveniens secundum sensum non secundum rationem sed hoc delectabile est praeter hominis rationem quae perficit naturam ipsiusrdquo 178 MONDIN Definiccedilatildeo Filosoacutefica da Pessoa Humana p 30

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mencionada comunicabilidade proacutepria da pessoa baseada no ato livre daacute-se tambeacutem pelo que podemos denominar ldquoamizade poliacuteticardquo De fato assim como a ldquopessoardquo eacute o que existe de mais perfeito no universo a comunidade das pessoas humanas a civitas eacute a comunidade perfeita porque por ela as potencialidades da pessoa se perfazem no dinamismo do ato livre 37 A AMIZADE

Do fato de o homem natildeo poder viver tampouco viver bem sozinho segue-se que ele precisa do seu semelhante para ser feliz e construir o seu mundo Nasce entatildeo a ldquoamizade poliacuteticardquo Acerca desta amizade quando fala da felicidade da civitas afirma o Frade Dominicano

Se falamos da felicidade da vida presente como diz o Filoacutesofo no livro IX da Eacutetica o homem feliz necessita de amigos [] Necessita ainda dos amigos para praticar o bem tanto nas obras da vida ativa como nas da vida contemplativa179

Mas soacute entenderemos como se daacute este viacutenculo entre

homens se compreendermos o proacuteprio conceito de amizade Para Tomaacutes o laccedilo criado pela amizade natildeo eacute o de qualquer amor pois deve implicar benevolecircncia E benevolecircncia significa querer o bem de quem se ama180 Natildeo podemos dizer-nos amigos do vinho ou do cavalo pois deles natildeo queremos senatildeo o bem que eles nos podem dar Natildeo eacute assim na amizade Nela pensamos antes no bem que

179 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 4 8 C ldquoRespondeo dicendum quod si loquamur de felicitate praesentis vitae sicut philosophus dicit in IX Ethic felix indiget amicis non quidem propter utilitatem cum sit sibi sufficiens [] Indiget enim homo ad bene operandum auxilio amicorum tam in operibus vitae activae quam in operibus vitae contemplativaerdquo 180 Idem Ibidem II-II 23 1 C ldquo[] non quilibet amor habet rationem amicitiae sed amor qui est cum benevolentia quando scilicet sic amamus aliquem ut ei bonum velimusrdquo ldquo[] natildeo eacute qualquer amor que realiza a noccedilatildeo de amizade mas somente o amor de benevolecircncia pelo qual queremos bem a quem amamosrdquo

212 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino podemos dar ao outro do que naquele que podemos receber dele181 Por isso o indicativo da amizade eacute a reciprocidade Sem reciprocidade de amor natildeo haacute amizade verdadeira Eacute preciso pois que o amigo tambeacutem queira o nosso bem Tomaacutes chega a dizer que ldquo[] o homem considera o amigo como um outro eurdquo182 Em virtude disso a amizade consiste numa muacutetua benevolecircncia em torno da qual se funda uma comunhatildeo que se pauta em um querer o bem do outro183 Na concepccedilatildeo de Tomaacutes haacute mdash como jaacute dissemos mdash uma ldquoamizade poliacuteticardquo agrave qual todo homem se inclina naturalmente E eacute ela que condiciona a ldquovida eacuteticardquo

Aleacutem disso sendo o homem naturalmente um animal social necessita do auxiacutelio dos outros homens para alcanccedilar o seu fim Isto com efeito realiza-se com muita conveniecircncia se existe o amor muacutetuo entre os homens184

Acerca desta ldquoamizade poliacuteticardquo mdash agrave qual todos os homens

tendem por natureza mdash gostariacuteamos de citar outro texto significativo

[] Eacute natural aos homens amarem-se mutuamente Vecirc-se o sinal disto no instinto natural segundo o qual um homem auxilia outro homem qualquer nas necessidades como por exemplo

181 Idem Ibidem ldquoSi autem rebus amatis non bonum velimus sed ipsum eorum bonum velimus nobis sicut dicimur amare vinum aut equum aut aliquid huiusmodi non est amor amicitiae sed cuiusdam concupiscentiae ridiculum enim est dicere quod aliquis habeat amicitiam ad vinum vel ad equumrdquo ldquoSe poreacutem natildeo queremos o bem daquilo que amamos e antes queremos para noacutes o bem que haacute neles quando por exemplo dizemos amar o vinho ou o cavalo etc natildeo haacute amor de amizade mas um amor de concupiscecircnciardquo 182 Idem Suma Contra os Gentios IV XXI 5 [3579] ldquo[] cum homo amicum habeat ut se alterum []rdquo 183 Idem Suma Teoloacutegica II-II 23 1 C ldquoSed nec benevolentia sufficit ad rationem amicitiae sed requiritur quaedam mutua amatio quia amicus est amico amicus Talis autem mutua benevolentia fundatur super aliqua communicationerdquo ldquo[] eacute preciso que haja reciprocidade de amor pois um amigo eacute amigo de seu amigo Ora essa muacutetua benevolecircncia eacute fundada em alguma comunhatildeordquo 184 Idem Suma Contra os Gentios III CXVII 3 [2897] ldquoCum homo sit naturaliter animal sociale indiget ab aliis hominibus adiuvari ad consequendum proprium finem Quod convenientissime fit dilectione mutua inter homines existenterdquo

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afastando-o do caminho errado levantando-o na queda etc como se todo homem fosse ao homem naturalmente familiar e amigo185

Mas a amizade extravasa os limites da civitas e ganha uma

feiccedilatildeo pessoal Passamos a arrolar agora algumas caracteriacutesticas peculiares da amizade segundo Tomaacutes Quando somos amigos de algueacutem afirma o Aquinate amamos tambeacutem as pessoas e as coisas que lhes satildeo caras Se este amor eacute muito intenso amamos mesmo aqueles que nos ofendem se ao menos eles satildeo estimados pelos nossos amigos186 Aleacutem disso poder gozar da presenccedila do amigo dos seus gestos e palavras principalmente nas agruras e infortuacutenios que a vida nos reserva eacute-nos um grande consolo187 Ademais eacute mesmo natural da amizade natildeo soacute que um amigo revele ao outro os seus segredos188 senatildeo que tambeacutem o socorra em suas necessidades189 partilhando com alegria os seus bens pois na

185 Idem Idem III CXVII 5 [2899] ldquoEst autem omnibus hominibus naturale ut se invicem diligant Cuius signum est quod quodam naturali instinctu homo cuilibet homini etiam ignoto subvenit in necessitate puta revocando ab errore viae erigendo a casu et aliis huiusmodi ac si omnis homo omni homini esset naturaliter familiaris et amicusrdquo 186 Idem Suma Teoloacutegica II-II 23 1 ad 2 ldquoEt tanta potest esse dilectio amici quod propter amicum amantur hi qui ad ipsum pertinent etiam si nos offendant vel odiantrdquo ldquoE a amizade que temos por um amigo pode ser tatildeo grande que por causa dela sejam amadas as pessoas que lhe satildeo proacuteximas mesmo que elas nos ofendam ou nos odeiemrdquo 187 Idem Suma Contra os Gentios IV XXII 2 [3586] ldquoEst autem et amicitiae proprium quod aliquis in praesentia amici delectetur et in eius verbis et factis gaudeat et in eo consolationem contra omnes anxietates inveniat unde in tristitiis maxime ad amicos consolationis causa confugimusrdquo ldquoEacute tambeacutem proacuteprio da amizade deleitar-se com a presenccedila do amigo alegrar-se com as suas palavras e atos e nele encontrar o consolo de todas as contrariedades Por isso nas tristezas nos refugiamos principalmente nos amigos devido ao seu consolordquo 188 Idem Ibidem IV XXI 4 [3578] ldquoEst autem hoc amicitiae proprium quod amico aliquis sua secreta revelet Cum enim amicitia coniungat affectus et duorum faciat quasi cor unum []rdquo ldquoEacute tambeacutem proacuteprio da amizade que o amigo revele ao amigo os seus segredos Sendo que a amizade une as afeiccedilotildees e faz de dois um soacute coraccedilatildeo []rdquo 189 Idem Ibidem IV XXII 3 [3587] ldquoSimiliter autem et amicitiae proprium est consentire amico in his quae vult []rdquo ldquoPois bem como tambeacutem eacute proacuteprio da amizade consentir naquilo que o amigo quer []rdquo

214 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino amizade cada qual considera outrem como outro eu190 Na Summa Tomaacutes conclui

[] Enquanto pelos movimentos externos nos ordenamos aos outros a moderaccedilatildeo deles eacute operada pela amizade ou afabilidade que demonstra por palavras e por obras nossa solidariedade com as alegrias e as tristezas dos que vivem conosco191

Observemos que mesmo quando ganha este caraacuteter

privado a amizade tanto na poacutelis de Aristoacuteteles quanto na civitas de Tomaacutes aperfeiccediloa e intensifica a justiccedila mdash virtude social por excelecircncia A amizade eacute pois um bem indispensaacutevel agrave vida em sociedade Ela eacute remeacutedio para muitos viacutecios desagregadores tais como a difamaccedilatildeo que consiste em criar intrigas em segredo com vista a destruir a reputaccedilatildeo alheia e a adulaccedilatildeo que se excede nas adjetivaccedilotildees192 Ademais vendo no amigo outro eu eacute refreada a soberba que consiste num olhar depreciativo que soacute repara os defeitos do outro 193 Outrossim a amizade instaura uma cooperaccedilatildeo que veda ao homem tomar como conquista exclusiva

190 Idem Ibidem IV XXI 5 [3579] ldquoNon solum autem est proprium amicitiae quod amico aliquis revelet sua secreta propter unitatem affectus sed eadem unitas requirit quod etiam ea quae habet amico communicet quia cum homo amicum habeat ut se alterum necesse est quod ei subveniat sicut et sibi sua ei communicans[]rdquo ldquoNatildeo obstante natildeo eacute somente proacuteprio da amizade revelar ao amigo os segredos devido agrave uniatildeo afetiva como tambeacutem ela exige ainda que se partilhe com o amigo aquilo que se possui como o homem considera o amigo como um outro eu e deve auxiliaacute-lo como se fosse a si mesmo dando-lhe o que pertence a si []rdquo 191 Idem Ibidem II-II 168 1 ad 3 ldquoInquantum enim per exteriores motus ordinamur ad alios pertinet exteriorum motuum moderatio ad amicitiam vel affabilitatem quae attenditur circa delectationes et tristitias quae sunt in verbis et factis in ordine ad alios quibus homo convivitrdquo 192 Idem Ibidem II-II 115 1 ad 3 C ldquoQuae ei contrariatur quantum ad ea quae dicuntur non autem directe quantum ad finem quia adulator quaerit delectationem eius cui adulatur detractor autem non quaerit eius contristationem cum aliquando occulte detrahat sed magis quaerit eius infamiamrdquo ldquoHaacute contrariedade entre elas naquilo que dizem mas natildeo diretamente no que concerne ao fim porque o adulador procura o prazer daquele que estaacute sendo adulado enquanto o difamador natildeo procura tanto a tristeza da sua viacutetima pois muitas vezes ele age em segredo e busca principalmente atingir sua reputaccedilatildeordquo 193 Idem Ibidem II-II 162 3 ad 2 ldquoEt ideo quaecumque ad hoc conferant quod aliquis existimet se supra id quod est inducunt hominem ad superbiam Quorum unum est quod aliquis consideret defectus aliorum []rdquo ldquoE por isso todas as coisas que levam algueacutem agrave superestima de si mesmo levam-no agrave soberba Uma delas eacute ficar reparando os defeitos dos outros []rdquo

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sua o que recebeu como benefiacutecio corporativo194 Ela tolhe o ldquoindividualismordquo incitado tambeacutem pela soberba que consiste em desprezar os outros a fim de preocupar-se apenas com a proacutepria excelecircncia195 Natildeo somente mas a amizade inaugura a proacutepria dimensatildeo da gratuidade que se daacute quando ultrapassamos o acircmbito do ldquoestritamente justordquo isto eacute quando fazemos aleacutem do que nos eacute devido196 Instala nas relaccedilotildees humanas aleacutem disso a gratidatildeo e a gratidatildeo os viacutenculos duradouros197 A troca de benefiacutecios enseja uma muacutetua estima ldquoDaiacute a frase de Secircneca lsquoQueres pagar um benefiacutecio Recebe-o de bom gradorsquordquo198 Por fim a amizade daacute

194 Idem Ibidem II-II 162 4 C ldquoEt ideo cum aliquis aestimat bonum quod habet ab alio ac si haberet a seipso fertur per consequens appetitus eius in propriam excellentiam supra suum modumrdquo ldquoPor essa razatildeo quando algueacutem considera um bem recebido de outro como conquista sua seu apetite eacute levado a buscar a proacutepria excelecircncia aleacutem do que lhe eacute devidordquo 195 Idem Ibidem II-II 162 4 C ldquoUnde et ex hoc etiam fertur inordinate appetitus in propriam excellentiam Et secundum hoc sumitur quarta species superbiae quae est cum aliquis despectis ceteris singulariter vult viderirdquo ldquoDonde resulta tambeacutem que seu apetite eacute levado a buscar de forma desordenada a proacutepria excelecircncia dando lugar entatildeo agrave quarta espeacutecie de soberba que eacute desprezando os outros querer ser visto como o uacutenicordquo 196 Idem Ibidem II-II 106 3 ad 4 ldquoAd quartum dicendum quod sicut Seneca dicit in III de Benefic quandiu servus praestat quod a servo exigi solet ministerium est ubi plus quam a servo necesse beneficium est Ubi enim in affectum amici transit incipit vocari beneficiumrdquo ldquoDeve-se dizer como Secircneca lsquoEnquanto o servo se limita a fazer aquilo que se costuma exigir de um servo ele estaacute apenas cumprindo um ofiacutecio quando o que ele faz eacute mais do que se pode exigir trata-se de um benefiacutecio Porque quando faz surgir uma afeiccedilatildeo de amizade comeccedila entatildeo a se chamar benefiacuteciorsquordquo 197 Tomaacutes citando Secircneca fala que a gratidatildeo nos move a estreitar laccedilos Idem Ibidem II-II 106 3 ad 5 ldquoEt Seneca dicit in VI de Benefic multa sunt per quae quidquid debemus reddere et felicibus possumus fidele consilium assidua conversatio sermo communis et sine adulatione iucundusrdquo ldquoE Secircneca afirma lsquoHaacute vaacuterios meios de retribuir o que devemos mesmo agraves pessoas felizes conselho leal frequentaccedilatildeo assiacutedua conversa simples alegre e sem bajulaccedilatildeorsquordquo Noutro lugar tambeacutem citanto Secircneca o Aquinate afirma que a verdadeira gratidatildeo rompe com as formalidades da relaccedilatildeo credordevedor Idem Ibidem II-II 106 4 C ldquoUt enim Seneca dicit IV de Benefic qui nimis cito cupit solvere invitus debet et qui invitus debet ingratus estrdquo ldquoComo diz Secircneca lsquoquem demonstra pressa excessiva em pagar o que deve deve contra a vontade e quem se sente contrariado com uma diacutevida eacute um ingratorsquordquo A gratidatildeo diz Aquino sempre na esteira de Secircneca leva-nos a fazer o melhor juiacutezo possiacutevel de quem nos deve Idem Ibidem II-II 107 4 C ldquoPrimo namque debet non esse facilis ad ingratitudinem iudicandam quia frequenter aliquis ut Seneca dicit qui non reddidit gratus est quia forte non occurrit ei facultas aut debita opportunitas reddendirdquo ldquoPrimeiramente natildeo prejulgar facilmente a ingratidatildeo porque como diz Secircneca lsquomuitas vezes aquele que natildeo retribuiu eacute no entanto gratorsquo porque talvez natildeo tenha tido meios ou oportunidade de o fazerrdquo 198 Idem Ibidem II-II 106 4 C ldquoUnde Seneca dicit in II de Benefic vis reddere beneficium Benigne acciperdquo

216 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino vazatildeo agrave praacutetica da solidariedade assim como ao exerciacutecio de outras virtudes como a da fortaleza199 Por exemplo a amizade exercita a paciecircncia e a perseveranccedila na praacutetica do bem pois nos leva a natildeo pagar exasperadamente ingratidatildeo com ingratidatildeo bem como a nos afastar daqueles que rejeitam com persistecircncia a nossa proximidade200 Em uma palavra a amizade humaniza as relaccedilotildees entre os homens

Donde Santo Isidoro afirmar ldquoAlgueacutem eacute considerado humano porque tem para com os outros amor e afeto de consideraccedilatildeo Por isso humanidade eacute proteger-nos mutuamenterdquo mdash Por isso a amizade eacute considerada enquanto ordena o conviacutevio social como diz Aristoacuteteles201

De sorte que natildeo haacute felicidade possiacutevel nem ocasiotildees

propiacutecias agraves accedilotildees virtuosas senatildeo onde prevaleccedila a leveza de relaccedilotildees amistosas e sinceras onde o entrelace natildeo nasccedila de amenidades pueris mas de um ver no outro um fim e natildeo um meio um bem honesto e natildeo uacutetil ou oportuno202 Em passagem jaacute citada que retomamos afirma o Aquinate

199 Idem Ibidem II-II 123 5 C ldquoSed et circa pericula cuiuscumque alterius mortis fortis bene se habet praesertim quia et cuiuslibet mortis homo potest periculum subire propter virtutem puta cum aliquis non refugit amico infirmanti obsequi propter timorem mortiferae infectionis []rdquo ldquoMas o homem forte se comporta bem diante dos perigos mortais de qualquer espeacutecie principalmente porque a virtude pode expor a muitos perigos por exemplo quando algueacutem apesar do medo de contaacutegio mortal natildeo se recusa a prestar assistecircncia a um amigo doente []rdquo 200 Idem Ibidem II-II 107 4 C ldquoSecundo debet tendere ad hoc quod de ingrato gratum faciat quod si non potest primo beneficio facere forte faciet secundo Si vero ex beneficiis multiplicatis ingratitudinem augeat et peior fiat debet a beneficiorum exhibitione cessarerdquo ldquoEm segundo lugar o benfeitor deve se esforccedilar para transformar o ingrato em um agradecido se natildeo conseguir isto com um primeiro benefiacutecio talvez o consiga com um segundo Se no entando a multiplicaccedilatildeo dos benefiacutecios conseguir apenas aumentar e agravar a ingratidatildeo seraacute preciso cessar a concessatildeo de favoresrdquo 201 Idem Ibidem II-II 80 1 ad 2 ldquoDicit enim Isidorus in libro Etymol quod humanus dicitur aliquis quia habeat circa hominem amorem et miserationis affectum unde humanitas dicta est qua nos invicem tuemur Et secundum hoc amicitia sumitur prout ordinat exteriorem convictum sicut de ea philosophus tractat in IV Ethicrdquo 202 A propoacutesito Tomaacutes novamente recorrendo a Secircneca afirma que a primeira coisa que devemos nos perguntar quando recebemos um benefiacutecio eacute de quem o recebemos Idem Ibidem II-II 106 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod sicut Seneca dicit in VI de Benefic multum interest utrum aliquis

Saacutevio Laet de Barros Campos | 217

Se falamos da felicidade da vida presente como diz o Filoacutesofo no livro IX da Eacutetica o homem feliz necessita de amigos natildeo para sua utilidade pois ele se basta a si nem para seu prazer porque possui em si o perfeito prazer na accedilatildeo da virtude mas para bem agir a saber para lhes fazer o bem e para alegrar-se ao vecirc-los fazendo o bem e tambeacutem para ser por eles auxiliado na praacutetica do bem203

Aleacutem disso se Aristoacuteteles deixa em aberto se a amizade eacute

ou natildeo uma virtude para o Aquinate natildeo resta duacutevida de que ela eacute uma virtude eacutetica204 Uma vez que a justiccedila trata da nossa lida com os outros e que por natureza somos chamados a viver em comunidade saber interagir com o outro de forma afaacutevel eacute uma virtude visto que eacute insuportaacutevel pondera Tomaacutes manter um trato razoaacutevel com pessoas habitualmente desagradaacuteveis por exemplo as afeitas a contendas205 Eacute pois uma obrigaccedilatildeo natural continua

beneficium nobis det sua causa an sua et nostra Ille qui totus ad se spectat et nobis prodest quia aliter sibi prodesse non potest eo mihi loco habendus videtur quo qui pecori suo pabulum prospicit Si me in consortium admisit si duos cogitavit ingratus sum et iniustus nisi gaudeo hoc illi profuisse quod proderat mihi Summae malignitatis est non vocare beneficium nisi quod dantem aliquo incommodo afficitrdquo ldquoDeve-se dizer como Secircneca diz lsquoPara mim eacute muito importante saber se quem faz o benefiacutecio tem em vista apenas seu interesse ou o dele e o meu Aquele que pensa unicamente em si e que soacute nos oferece proveito em alguma coisa porque esta eacute a uacutenica maneira de ele proacuteprio auferir tambeacutem algum proveito me parece comparaacutevel a algueacutem que fornece alimento para seus animais Se ele me aceita como soacutecio se pensa em noacutes dois eu serei ingrato e injusto se natildeo me regozijar de vecirc-lo tirar proveito daquilo que a mim tambeacutem foi vantagem Porque eacute na realidade uma grande maldade qualificar como benefiacutecio somente aquilo que provoca algum dano para o doadorrdquo 203 Idem Ibidem I-II 4 8 C ldquoRespondeo dicendum quod si loquamur de felicitate praesentis vitae sicut philosophus dicit in IX Ethic felix indiget amicis non quidem propter utilitatem cum sit sibi sufficiens nec propter delectationem quia habet in seipso delectationem perfectam in operatione virtutis sed propter bonam operationem ut scilicet eis benefaciat et ut eos inspiciens benefacere delectetur et ut etiam ab eis in benefaciendo adiuveturrdquo 204 Idem Suma Teoloacutegica II-II 114 1 C ldquoEt ideo oportet esse quandam specialem virtutem quae hanc convenientiam ordinis observet Et haec vocatur amicitia sive affabilitasrdquo ldquoPor isso eacute necessaacuteria uma virtude especial que mantenha a harmonia desta ordem E esta virtude se chama amizade ou afabilidaderdquo 205 De fato Tomaacutes chega a citar o exemplo dado por Aristoacuteteles dos impugnadores a saber daqueles que passam o tempo todo contestando e que natildeo sabem se contentar com nada Idem Ibidem II-II 116 1 C ldquoEt sic fit litigium quod praedictae amicitiae vel affabilitati opponitur ad quam pertinet delectabiliter aliis convivere Unde philosophus dicit in IV Ethic quod illi qui ad omnia contrariantur causa eius quod est contristare neque quodcumque curantes discoli et litigiosi

218 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino o Aquinate que o homem aprenda a se entreter com os outros homens com uma habitual afabilidade Por isso para Tomaacutes a amizade eacute uma virtude social anexa agrave virtude da justiccedila

Ora assim como o homem natildeo poderia viver numa sociedade sem verdade assim tambeacutem natildeo poderia viver numa sociedade sem prazer Aristoacuteteles diz ldquoningueacutem consegue passar um dia inteiro com uma pessoa triste e sem atrativosrdquo Por isso o homem eacute obrigado por uma espeacutecie de diacutevida natural de honestidade a tornar agradaacuteveis as relaccedilotildees com os outros []206

Queremos passar a abordar a eacutetica enquanto se apresenta

como uma ldquociecircnciardquo para Tomaacutes 38 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA EacuteTICA 381 PRUDEcircNCIA E FILOSOFIA PRAacuteTICA

Tambeacutem em Tomaacutes existe uma distinccedilatildeo entre prudecircncia e filosofia praacutetica Vejamos como ele chega ao mesmo caminho jaacute percorrido por Aristoacuteteles pois soacute assim compreenderemos a racionalidade que a eacutetica tomasiana comporta O Aquinate tal como Aristoacuteteles distingue as virtudes intelectuais das morais De fato os haacutebitos da razatildeo teoacuterica satildeo aqueles que aperfeiccediloam o nosso intelecto na consecuccedilatildeo da verdade207 A verdade de dois

vocanturrdquo ldquoE assim se origina a contestaccedilatildeo que se opotildee agravequela amizade ou afabilidade que permite conviver agradavelmente com os outros Por isso Aristoacuteteles diz lsquoAqueles que contestam tudo e todo mundo com a simples finalidade de contrariar os outros sem levar em consideraccedilatildeo nada e ningueacutem satildeo chamados de rudes e contestadoresrsquordquo 206 Idem Ibidem II-II 114 2 ad 1 ldquoSicut autem non posset vivere homo in societate sine veritate ita nec sine delectatione quia sicut philosophus dicit in VIII Ethic nullus potest per diem morari cum tristi neque cum non delectabili Et ideo homo tenetur ex quodam debito naturali honestatis ut homo aliis delectabiliter convivat nisi propter aliquam causam necesse sit aliquando alios utiliter contristarerdquo 207 Idem Ibidem I-II 57 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut iam dictum est virtus intellectualis speculativa est per quam intellectus speculativus perficitur ad considerandum verum hoc enim est bonum opus eiusrdquo ldquo[] eacute pela virtude intelectual especulativa que o intelecto especulativo se aperfeiccediloa na consideraccedilatildeo da verdade jaacute que esta eacute a sua accedilatildeo boardquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 219

modos pode ser conhecida ou por si mesma ou por inquiriccedilatildeo da razatildeo 208 Quando conhecemos a verdade por si mesma conhecemo-la enquanto princiacutepio209 O habitus que aperfeiccediloa o intelecto na consideraccedilatildeo da verdade imediatamente evidente eacute chamado intelecto210 Contudo mdash continua o Aquinate mdash existem aquelas verdades que satildeo percebidas pelo intelecto somente mediante outras verdades 211 Trata-se pois daquele grupo de verdades que passa a gozar de evidecircncia apenas atraveacutes do raciociacutenio Ora entre estas verdades haacute ainda aquelas que satildeo as uacuteltimas no seu gecircnero de conhecimento e aquelas que satildeo as uacuteltimas em relaccedilatildeo a todo o conhecimento humano212 O habitus que aperfeiccediloa o intelecto na persecuccedilatildeo das verdades uacuteltimas de um determinado gecircnero chama-se ciecircncia 213 De resto jaacute que existem vaacuterios gecircneros de coisas cognosciacuteveis haveraacute tambeacutem diversos haacutebitos de ciecircncia um para cada gecircnero214 No entanto como assinalamos existem aquelas verdades que satildeo as uacuteltimas em relaccedilatildeo a todo o conhecimento humano Mas o que eacute uacuteltimo

208 Idem Ibidem ldquoVerum autem est dupliciter considerabile uno modo sicut per se notum alio modo sicut per aliud notumrdquo ldquoOra a verdade pode ser considerada de dois modos ou por si mesma ou por meio de outra verdaderdquo 209 Idem Ibidem ldquoQuod autem est per se notum se habet ut principium et percipitur statim ab intellecturdquo ldquoPor si mesma comporta-se como um princiacutepio e eacute imediatamente percebida pelo intelectordquo 210 Idem Ibidem ldquoEt ideo habitus perficiens intellectum ad huiusmodi veri considerationem vocatur intellectus qui est habitus principiorumrdquo ldquoE por isso o haacutebito que aperfeiccediloa o intelecto para essa consideraccedilatildeo da verdade chama-se intelecto que eacute o haacutebito dos princiacutepiosrdquo 211 Idem Ibidem ldquoVerum autem quod est per aliud notum non statim percipitur ab intellectu sed per inquisitionem rationis et se habet in ratione terminirdquo ldquoQuanto agrave verdade conhecida mediante outra ela natildeo eacute apreendida imediatamente pelo intelecto mas inquirida pela razatildeo e comporta-se como um termordquo 212 Idem Ibidem ldquoQuod quidem potest esse dupliciter uno modo ut sit ultimum in aliquo genere alio modo ut sit ultimum respectu totius cognitionis humanaerdquo ldquoE isso pode ser de dois modos ou eacute o uacuteltimo num determinado gecircnero ou eacute o uacuteltimo em relaccedilatildeo com todo conhecimento humanordquo 213 Idem Ibidem ldquoAd id vero quod est ultimum in hoc vel in illo genere cognoscibilium perficit intellectum scientiardquo ldquoPor fim quanto agravequilo que eacute uacuteltimo neste ou naquele gecircnero das coisas conheciacuteveis eacute a ciecircncia que aperfeiccediloa o intelectordquo 214 Idem Ibidem ldquoEt ideo secundum diversa genera scibilium sunt diversi habitus scientiarum []rdquo ldquoPor isso haveraacute tantos diferentes haacutebitos das ciecircncias quanto satildeo os diferentes gecircneros de coisas conheciacuteveis []rdquo

220 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino segundo o conhecimento do homem eacute primeiro na ordem da natureza215 Trata-se deveras daquele conhecimento que temos das causas primeiras Ora o conhecimento delas aperfeiccediloa inclusive a ciecircncia Assim sendo somente remontando agraves causas primeiras pode-se chegar a um juiacutezo mais perfeito e universal216 Com efeito o habitus que se aplica ao conhecimento destas causas eacute o da sabedoria217

Por fim haacute a prudecircncia que aperfeiccediloa o uso praacutetico do conhecimento jaacute adquirido e a arte que ldquo[] eacute lsquoa razatildeo reta das coisas factiacuteveisrsquordquo218 A prudecircncia que eacute a que mais nos interessa aqui eacute a virtude que conduz agrave perfeiccedilatildeo inclusive concretizando na accedilatildeo a deliberaccedilatildeo e a escolha dos meios conducentes ao fim Logo a prudecircncia tambeacutem eacute uma virtude intelectual219 Observemos ainda que para Tomaacutes como para Aristoacuteteles a prudecircncia trata dos meios concernentes a um fim jaacute estabelecido Por esta razatildeo uma eacute a filosofia praacutetica que eacute o conhecimento por racioniacutecio dos fins outra eacute a prudecircncia que versa sobre a aplicabilidade dos meios proporcionados a estes fins Natildeo se trata de negar a racionalidade da prudecircncia mas de atentar para o fato de que a

215 Idem Ibidem ldquo[] ideo id quod est ultimum respectu totius cognitionis humanae est id quod est primum et maxime cognoscibile secundum naturamrdquo ldquo[] o que eacute uacuteltimo relativamente a todo conhecimento humano eacute o que por natureza eacute o primeiro e o mais cognosciacutevelrdquo 216 Idem Ibidem ldquoUnde convenienter iudicat et ordinat de omnibus quia iudicium perfectum et universale haberi non potest nisi per resolutionem ad primas causasrdquo ldquoPortanto convenientemente analisa e organiza todas as coisas pois eacute remontando agraves causas primeiras que se pode ter um juiacutezo perfeito e universalrdquo 217 Idem Ibidem ldquoEt circa huiusmodi est sapientia quae considerat altissimas causas []rdquo ldquoOra sobre isso eacute que se aplica a sabedoria que considera as causas altiacutessimas []rdquo 218 Idem Ibidem I-II 57 4 C ldquo[] quia ars est recta ratio factibilium []rdquo 219 Idem Ibidem I-II 57 5 C ldquoAd id autem quod convenienter in finem debitum ordinatur oportet quod homo directe disponatur per habitum rationis quia consiliari et eligere quae sunt eorum quae sunt ad finem sunt actus rationis Et ideo necesse est in ratione esse aliquam virtutem intellectualem per quam perficiatur ratio ad hoc quod convenienter se habeat ad ea quae sunt ad finem Et haec virtus est prudentia Unde prudentia est virtus necessaria ad bene vivendumrdquo ldquoQuanto aos meios adequados a esse fim importa que o homem esteja diretamente disposto pelo haacutebito da razatildeo porque aconselhar e escolher que satildeo accedilotildees relacionadas com os meios satildeo atos da razatildeo Eacute necessaacuterio pois haver na razatildeo alguma virtude intelectual que a aperfeiccediloe para ela proceder com acerto em relaccedilatildeo com os meios Essa virtude eacute a prudecircncia virtude portanto necessaacuteria para se viver bemrdquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 221

racionalidade da filosofia praacutetica eacute distinta Enquanto o filoacutesofo praacutetico julga as coisas por um conhecimento silogiacutestico conhecendo por exemplo o que eacute ser casto e por que se deve ser casto por um raciociacutenio que parte das causas primeiras da ordem praacutetica o prudente conhece o que eacute a castidade como e por que ser casto sendo casto por uma espeacutecie de conaturalidade proacutepria do haacutebito adquirido Assim pode acontecer que quem se ocupa de filosofia praacutetica conheccedila minuciosamente o que eacute ser prudente mas natildeo o seja e o prudente que talvez natildeo tenha esse julgamento meticuloso saiba o que eacute a prudecircncia sendo prudente

Pode-se julgar por inclinaccedilatildeo como quem possui um habitus virtuoso julga com retidatildeo o que deve ser feito na linha deste habitus estando jaacute inclinado neste sentido Eis por que se ensina no livro X da Eacutetica que o homem virtuoso eacute a medida e a regra dos atos humanos Mas existe outra maneira de julgar a saber por conhecimento como o instruiacutedo em ciecircncia moral pode julgar os atos de uma virtude ainda que natildeo a possua220

Esta retidatildeo de julgamento pode existir de duas maneiras ou por um uso perfeito da razatildeo ou por uma certa conaturalidade com as coisas sobre as quais se deve julgar Assim no que diz respeito agrave castidade aquele que aprendeu a ciecircncia moral julga bem em consequumlecircncia de uma inquiriccedilatildeo racional enquanto aquele que tem o haacutebito de castidade julga bem por uma certa conaturalidade com ela221

220 Idem Ibidem I 1 6 ad 3 ldquoContingit enim aliquem iudicare uno modo per modum inclinationis sicut qui habet habitum virtutis recte iudicat de his quae sunt secundum virtutem agenda inquantum ad illa inclinatur unde et in X Ethic dicitur quod virtuosus est mensura et regula actuum humanorum Alio modo per modum cognitionis sicut aliquis instructus in scientia morali posset iudicare de actibus virtutis etiam si virtutem non haberetrdquo 221 Idem Ibidem II-II 45 2 C ldquoRectitudo autem iudicii potest contingere dupliciter uno modo secundum perfectum usum rationis alio modo propter connaturalitatem quandam ad ea de quibus iam est iudicandum Sicut de his quae ad castitatem pertinent per rationis inquisitionem recte iudicat ille qui didicit scientiam moralem sed per quandam connaturalitatem ad ipsa recte iudicat de eis ille qui habet habitum castitatisrdquo

222 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Talvez falte dizer que Tomaacutes pontua que o fato de a eacutetica ser uma ldquociecircncia praacuteticardquo natildeo significa que a melhor forma de ser eacutetico eacute possuindo esta ldquociecircncia moralrdquo Com efeito a ldquociecircncia moralrdquo inobstante tenha por objeto a praacutetica eacute ela proacutepria teoacuterica e natildeo praacutetica Por isso para o Aquinate o melhor modo de se aprender a ser prudente eacute praticando os atos da prudecircncia Daiacute ele dizer com Aristoacuteteles ldquoPor isso diz o Filoacutesofo lsquoPara a praacutetica da virtude nada ou pouco adianta o saberrsquordquo222

Chegamos assim a uma perfeita correspondecircncia entre Aristoacuteteles e Tomaacutes acerca dos haacutebitos De fato o intelecto habitus dos princiacutepios corresponde ao noỹs a ciecircncia como conhecimento via raciociacutenio das causas primeiras de cada gecircnero agrave epistḗmē a sabedoria conhecimento das causas primeiras agrave sofiacutea a arte reta razatildeo de fazer algumas obras 223 agrave teacutekhnē e a prudecircncia conhecimento e aplicaccedilatildeo dos meios da accedilatildeo agrave froacutenēsis O que defendemos eacute que Aquino prevecirc a existecircncia de uma ciecircncia eacutetica de cunho filosoacutefico que tem seu alicerce na sua concepccedilatildeo do homem como bem honesto como fim Se o Aquinate desenvolve em todos os seus pormenores o que ele prevecirc natildeo eacute o mais importante ao menos se levarmos em conta que estamos lidando com um teoacutelogo que pretende fazer uma teologia moral Como observa Vignaux ao tratar do tema ldquoTenhamos Santo Tomaacutes por um pensador que tendo fundado a possibilidade de uma pura filosofia prefere sem embargo ser teoacutelogordquo224 O que parece natildeo possa ser mais olvidado sem prejuiacutezo para a histoacuteria das ideias eacute que Tomaacutes tenha previsto um plano humano e mundano ainda que natildeo tenha escrito uma Summa Philosophiae

222 Idem Ibidem II-II 181 1 C ldquo[] unde philosophus dicit in II Ethic quod ad virtutem scire quidem parum aut nihil potestrdquo 223 Idem Ibidem I-II 57 3 C 224 VIGNAUX Op Cit p 124 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoTengamos a Santo Tomaacutes por un pensador que habiendo fundado la posibilidad de una pura filosofiacutea prefiere sin embargo ser teoacutelogordquo

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[] a forte exigecircncia racional que estaacute presente no pensamento de Tomaacutes natildeo pode ser ignorada e subestimada posto que esta representa jaacute um reconhecimento ao menos teoacuterico dos direitos da pura pesquisa filosoacutefica e cientiacutefica cuja influecircncia devia pesar ao longo da evoluccedilatildeo do uacuteltimo pensamento medieval225

No entanto resta esclarecer uma questatildeo importante qual

eacute a fonte primaacuteria da ciecircncia eacutetica A fonte primaacuteria como jaacute vimos eacute o homem eacutetico Em outros termos natildeo eacute o prudente que tem de olhar para a lei mas eacute a lei que eacute descoberta enquanto encarnada no prudente ldquoEis por que se ensina no livro X da Eacutetica que o homem virtuoso eacute a medida e a regra dos atos humanosrdquo226 Natildeo eacute do dever que nasce a eacutetica mas eacute da experiecircncia da virtude que brota o dever e o dever soacute eacute cumprido plenamente quando deixa de ser dever e volta por assim dizer a ser virtude Em eacutetica a experiecircncia do virtuoso eacute o princiacutepio da sabedoria ldquoA prudecircncia eacute portanto sabedoria a respeito das coisas humanas []rdquo227 Noutro passo o Aquinate afirma com clareza

Em relaccedilatildeo a essas determinaccedilotildees se tem o juiacutezo dos experientes e prudentes como a certos princiacutepios a saber enquanto vecircem de imediato o que particularmente haacute de se determinar de modo mais congruente Donde dizer o Filoacutesofo que em tais coisas ldquoeacute preciso atender agraves enunciaccedilotildees e opiniotildees indemonstraacuteveis dos experientes e dos anciatildeos ou dos prudentes natildeo menos que agraves demonstraccedilotildeesrdquo228

225 VASOLI Op Cit p 299 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] la forte esigencia razionale che egrave presente nel pensiero di Tommaso non puograve essere ignorata e sottovalutata poicheacute essa rappresenta giagrave un riconoscimento almeno teorico dei diritti della pura ricerca filosofica filosofica e scientifica la cui influenza doveva pesare a lungo nellrsquoevoluzione dellrsquoultimo pensiero medioevalerdquo 226 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 6 ad 3 ldquo[] unde et in X Ethic dicitur quod virtuosus est mensura et regula actuum humanorumrdquo 227 Idem Ibidem II-II 47 2 ad 1 ldquoUnde manifestum est quod prudentia est sapientia in rebus humanis []rdquo 228 Idem Ibidem I-II 95 2 ad 4 ldquo[] ad quas quidem determinationes se habet expertorum et prudentum iudicium sicut ad quaedam principia inquantum scilicet statim vident quid congruentius sit particulariter determinari Unde philosophus dicit in VI Ethic quod in talibus oportet attendere expertorum et seniorum vel prudentum indemonstrabilibus enuntiationibus et opinionibus non minus quam demonstrationibusrdquo

224 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Mas como se adquire esta ldquosabedoria praacuteticardquo e como pode ela passar a ser uma ldquosabedoria filosoacuteficardquo Haacute muitas maneiras de se abordar a questatildeo da prudentia em Tomaacutes Natildeo eacute nosso intuito aqui fazer uma anaacutelise pormenorizada do quanto o Aquinate diz sobre o assunto Seguiremos apenas o essencial para mostrarmos o que tencionamos a saber que eacute da percepccedilatildeo da memoacuteria e da experiecircncia do homem prudente que Tomaacutes parte para pensar a eacutetica enquanto filosofia praacutetica Segundo o Aquinate a partir de uma etimologia que remonta a Isidoro prudentia consiste antes de tudo num pro videre ou porro videns isto eacute num prever ou ver ao longe mediante uma deduccedilatildeo das coisas presentes e passadas o desenlace dos fatos humanos Ora este antever ou ver ao longe eacute um ato da razatildeo que calcula229 Com efeito como os fatos humanos variam ad infinitum a aquisiccedilatildeo da prudecircncia exige tempo experiecircncia e um esforccedilo ingente para se deslindar algumas constantes nos eventos humanos230 Outrossim estas constantes

229 Idem Ibidem II-II 47 1 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut Isidorus dicit in libro Etymol prudens dicitur quasi porro videns perspicax enim est et incertorum videt casus Visio autem non est virtutis appetitivae sed cognoscitivae Unde manifestum est quod prudentia directe pertinet ad vim cognoscitivam Non autem ad vim sensitivam quia per eam cognoscuntur solum ea quae praesto sunt et sensibus offeruntur Cognoscere autem futura ex praesentibus vel praeteritis quod pertinet ad prudentiam proprie rationis est quia hoc per quandam collationem agitur Unde relinquitur quod prudentia proprie sit in rationerdquo ldquoSegundo Isidoro lsquoprudente significa o que vecirc ao longe eacute perspicaz vecirc o desenlace dos casos incertosrsquo A visatildeo natildeo pertence agrave potecircncia apetitiva mas a cognoscitiva Por isso eacute evidente que a prudecircncia pertence diretamente agrave potecircncia cognoscitiva Natildeo poreacutem agrave sensitiva porque por meio desta se reconhecem as coisas que estatildeo presentes e aparecem aos sentidos enquanto que conhecer o futuro a partir das coisas presentes ou passadas o que eacute proacuteprio da prudecircncia pertence agrave razatildeo dado que se faz por deduccedilatildeo Portanto resulta que a prudecircncia reside propriamente na razatildeordquo Idem Ibidem II-II 49 6 C ldquoUtrumque autem horum importatur in nomine providentiae importat enim providentia respectum quendam alicuius distantis ad quod ea quae in praesenti occurrunt ordinanda sunt Unde providentia est pars prudentiaerdquo ldquoOra o termo previdecircncia implica ambas as coisas implica com efeito que o olhar se prenda a qualquer coisa distante como a um termo ao qual devem ser ordenadas as accedilotildees presentes A previdecircncia eacute pois uma parte da prudecircnciardquo 230 Idem Ibidem II-II 47 3 ad 2 ldquoTamen per experientiam singularia infinita reducuntur ad aliqua finita quae ut in pluribus accidunt quorum cognitio sufficit ad prudentiam humanamrdquo ldquoNo entanto pela experiecircncia a infinidade dos singulares eacute reduzida a um nuacutemero finito de casos mais frequumlentes cujo conhecimento eacute suficiente para a prudecircncia humanardquo Idem Ibidem II-II 47 14 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod prudentia acquisita causatur ex exercitio actuum unde indiget ad sui generationem experimento et tempore ut dicitur in II Ethic Unde non potest esse in iuvenibus nec secundum habitum nec secundum actumrdquo ldquoDeve-se dizer que a prudecircncia adquirida eacute causada pela

Saacutevio Laet de Barros Campos | 225

nunca legaratildeo ao prudente eacute bom que se diga regras inamoviacuteveis mas apenas gerais231 E mesmo estas ldquoregras geraisrdquo natildeo poderatildeo ser aplicadas pelo homem virtuoso sem que este tenha um conhecimento preacutevio e invulgar das circunstacircncias um conhecimento de circunspecccedilatildeo diz Tomaacutes porque o que se mostra bom numa determinada circunstacircncia noutra pode resultar num empecilho agrave consecuccedilatildeo do fim232 De todo modo como exige experiecircncia e tempo para se conhecer o que eacute mais frequente a virtude da prudecircncia exige tambeacutem uma memoacuteria robusta233 Natildeo soacute mas como versa sobre os meios ela requer que se tenha um conhecimento taacutecito dos fins isto eacute dos primeiros princiacutepios da razatildeo praacutetica234 bem como uma capacidade de raciocinar bem a partir destes princiacutepios a fim de saber aplicaacute-los corretamente hic et nunc235 Ademais porque trata do que se deve

repeticcedilatildeo dos atos portanto lsquopara sua aquisiccedilatildeo eacute necessaacuteria a experiecircncia e o temporsquo como se diz no livro II da Eacutetica e natildeo pode encontrar-se nos jovens nem atual nem habitualmente []rdquo 231 Idem Ibidem II-II 49 1 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est circa contingentia operabilia sicut dictum est In his autem non potest homo dirigi per ea quae sunt simpliciter et ex necessitate vera sed ex his quae ut in pluribus accidunt []rdquo ldquoA prudecircncia como foi explicado trata das accedilotildees contingentes Nessas accedilotildees o homem natildeo pode ser dirigido por verdades absolutas e necessaacuterias mas pelo que sucede comumenterdquo 232 Idem Ibidem II-II 49 7 C ldquoSed quia prudentia sicut dictum est est circa singularia operabilia in quibus multa concurrunt contingit aliquid secundum se consideratum esse bonum et conveniens fini quod tamen ex aliquibus concurrentibus redditur vel malum vel non opportunum ad finemrdquo ldquoOra porque a prudecircncia como se disse tem como objeto as accedilotildees singulares agraves quais concorrem muitas coisas acontece que alguma coisa considerada em si mesma seja boa e conveniente ao fim a qual entretanto pode tornar-se maacute ou inoportuna ao fimrdquo 233 Idem Ibidem II-II 49 1 C ldquoQuid autem in pluribus sit verum oportet per experimentum considerare unde et in II Ethic philosophus dicit quod virtus intellectualis habet generationem et augmentum ex experimento et tempore Experimentum autem est ex pluribus memoriis ut patet in I Metaphys Unde consequens est quod ad prudentiam requiritur plurium memoriam habererdquo ldquoOra o que eacute verdade na maioria dos casos natildeo pode ser sabido senatildeo por experiecircncia tambeacutem o Filoacutesofo diz que a lsquovirtude intelectual nasce e cresce graccedilas agrave experiecircncia e ao temporsquo Por sua vez lsquoa experiecircncia resulta de muitas recordaccedilotildeesrsquo diz ele ainda Consequumlentemente a prudecircncia exige a memoacuteria de muitas coisasrdquo 234 Idem Ibidem II-II 49 2 C ldquoOmnis autem deductio rationis ab aliquibus procedit quae accipiuntur ut prima Unde oportet quod omnis processus rationis ab aliquo intellectu procedatrdquo ldquoOra toda deduccedilatildeo da razatildeo procede de proposiccedilotildees aceitas como primeiras Portanto eacute necessaacuterio que todo processo da razatildeo proceda de algo conhecidordquo 235 Idem Ibidem II-II 49 5 C ldquoRespondeo dicendum quod opus prudentis est esse bene consiliativum ut dicitur in VI Ethic Consilium autem est inquisitio quaedam ex quibusdam ad alia

226 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino fazer hic et nunc a prudecircncia implica sagacidade ou seja rapidez na deliberaccedilatildeo dos meios 236 aleacutem de solicitude vale dizer agilidade em se fazer hic et nunc o que deve ser feito237 Ligeireza e destreza que natildeo significam no entanto pressa a qual eacute uma precipitaccedilatildeo Por conseguinte quando se trata de accedilotildees contingentes haacute que se ter precauccedilatildeo para se avaliar retamente o que aquela circunstacircncia pede e assim natildeo tomar o mal como bem ou vice-versa 238 Aleacutem disso como as flutuaccedilotildees dos fatos humanos satildeo infindas o homem prudente deve estar revestido de docilidade ou seja deve estar disposto a ouvir os mais experientes maacutexime os anciatildeos pois seria impossiacutevel que um homem sozinho conseguisse abarcar todas as variaccedilotildees inerentes aos fatos da vida239 A prudecircncia natildeo eacute pois uma perspicaacutecia natural mas uma

procedens Hoc autem est opus rationis Unde ad prudentiam necessarium est quod homo sit bene ratiocinativusrdquo ldquoA obra do prudente eacute a de deliberar acertadamente como diz o Filoacutesofo E a deliberaccedilatildeo eacute uma pesquisa que partindo de certos dados passa para outros Isso eacute obra da razatildeo Portanto a prudecircncia requer que o homem saiba raciocinar bemrdquo 236 Idem Ibidem II-II 49 4 C ldquo[] solertia autem est facilis et prompta coniecturatio circa inventionem medii ut dicitur in I Posterrdquo ldquo[] a sagacidade poreacutem eacute lsquoa conjectura faacutecil e raacutepida a respeito dos meios como diz o Filoacutesofordquo 237 Idem Ibidem II-II 47 9 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dicit Isidorus in libro Etymol sollicitus dicitur quasi solers citus inquantum scilicet aliquis ex quadam solertia animi velox est ad prosequendum ea quae sunt agenda Hoc autem pertinet ad prudentiam cuius praecipuus actus est circa agenda praecipere de praeconsiliatis et iudicatis Unde philosophus dicit in VI Ethic quod oportet operari quidem velociter consiliata consiliari autem tarde Et inde est quod sollicitudo proprie ad prudentiam pertinetrdquo ldquoSegundo diz Isidoro soliacutecito vem de solers (sagaz) e de citus (raacutepido) enquanto algueacutem a partir de certa sagacidade do espiacuterito eacute raacutepido para cumprir o que se deve fazer Ora isso pertence agrave prudecircncia cujo ato principal eacute comandar em mateacuteria de accedilatildeo aquilo que antes foi deliberado e julgado Por isso diz o Filoacutesofo que lsquoeacute preciso pocircr em accedilatildeo prontamente aquilo que foi deliberado mas deliberar calmamentersquo Donde se conclui que a solicitude tem propriamente relaccedilatildeo com a prudecircnciardquo 238 Idem Ibidem II-II 49 8 C ldquoRespondeo dicendum quod ea circa quae est prudentia sunt contingentia operabilia in quibus sicut verum potest admisceri falso ita et malum bono propter multiformitatem huiusmodi operabilium in quibus bona plerumque impediuntur a malis et mala habent speciem boni Et ideo necessaria est cautio ad prudentiam ut sic accipiantur bona quod vitentur malardquo ldquoA mateacuteria da prudecircncia satildeo as accedilotildees contingentes nas quais assim como o verdadeiro se mistura com o falso o mal se mistura com o bem devido agrave grande variedade dessas accedilotildees nas quais o bem eacute frequumlentemente impedido pelo mal e nas quais o mal assume aparecircncia de bem Eacute por isso que a precauccedilatildeo eacute necessaacuteria agrave prudecircncia para escolher os bens e evitar os malesrdquo 239 Idem Ibidem II-II 49 3 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est prudentia consistit circa particularia operabilia In quibus cum sint quasi infinitae diversitates non possunt ab uno homine sufficienter omnia considerari nec per modicum tempus sed per temporis

Saacutevio Laet de Barros Campos | 227

virtude moral um haacutebito adquirido agrave custa de muito trabalho240 Tomaacutes prevecirc ainda a existecircncia de uma prudecircncia poliacutetica proacutepria do governante e de uma prudecircncia econocircmica proacutepria do chefe de famiacutelia241 Mas o que nos garante que esta ldquosabedoria praacuteticardquo eacute verdadeira Parece que aqui ainda que natildeo tenha desenvolvido esta doutrina ex professo Tomaacutes retoma os eacutendoxa de Aristoacuteteles 382 OS EacuteNDOXA EM TOMAacuteS DE AQUINO

Tomaacutes como amiuacutede tambeacutem aqui permanece fiel a Aristoacuteteles e assevera que o conhecimento da verdade a evidecircncia dela e a posse de sua certeza podem ser alcanccedilados por todos e efetivamente em alguma medida o satildeo pois naturalmente procuramos a verdade e rejeitamos o erro242 Aliaacutes por natureza

diuturnitatem Unde in his quae ad prudentiam pertinent maxime indiget homo ab alio erudiri et praecipue ex senibus qui sanum intellectum adepti sunt circa fines operabiliumrdquo ldquoComo se disse anteriormente a prudecircncia concerne agraves accedilotildees particulares nas quais a diversidade eacute quase infinita Natildeo eacute possiacutevel que um soacute homem seja plenamente informado de tudo o que a isso se refere nem em um curto tempo senatildeo em um longo tempo Por isso no que se refere agrave prudecircncia em grande parte o homem tem necessidade de ser instruiacutedo por outro e sobretudo pelos anciatildeos que chegaram a formar um juiacutezo satildeo a respeito dos fins das operaccedilotildeesrdquo 240 Idem Ibidem I-II 47 15 C ldquoQuia igitur prudentia non est circa fines sed circa ea quae sunt ad finem ut supra habitum est ideo prudentia non est naturalisrdquo ldquoPortanto dado que a prudecircncia natildeo tem por objeto os fins mas os meios em vista do fim como se viu acima ela tambeacutem natildeo eacute natural no homemrdquo Idem Ibidem II-II 47 4 C ldquoEt ideo prudentia non solum habet rationem virtutis quam habent aliae virtutes intellectuales sed etiam habet rationem virtutis quam habent virtutes morales quibus etiam connumeraturrdquo ldquoEacute por isso que a prudecircncia natildeo realiza somente o conceito de virtude como as outras virtudes intelectuais mas possui tambeacutem a noccedilatildeo de virtude proacutepria das virtudes morais entre as quais ela estaacute enumeradardquo 241 Idem Ibidem II-II 50 3 C ldquoEt ideo sicut prudentia communiter dicta quae est regitiva unius distinguitur a politica prudentia ita oportet quod oeconomica distinguatur ab utraquerdquo ldquoPor conseguinte assim como a prudecircncia em geral que governa uma soacute pessoa se distingue da prudecircncia poliacutetica de igual modo a econocircmica deve ser distinta de ambasrdquo 242 TOMAacuteS DE AQUINO Suma contra os gentios I LXI 7 [513] ldquoSicut verum est bonum intellectus ita falsum est malum ipsius naturaliter enim appetimus verum cognoscere et refugimus falso decipi Malum autem in Deo esse non potest ut probatum est Non potest igitur in eo esse falsitasrdquo ldquo[] assim como o verdadeiro eacute o bem do intelecto o falso eacute o seu mal segundo o Filoacutesofo (VI da Eacutetica 2 1139a cmt 2 1130) pois naturalmente desejamos conhecer o verdadeiro e fugimos de ser enganados pelo falsordquo Noutro lugar precisa Idem A unidade do intelecto contra os Averroiacutestas I 1 ldquoSicut omnes homines naturaliter scire desiderant veritatem ita naturale desiderium inest hominibus fugiendi errores et eos cum facultas adfuerit confutandirdquo ldquoComo todos

228 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino natildeo soacute buscamos a verdade e fugimos do que eacute falso mas tambeacutem tentamos desbaratar o que eacute enganoso Pois bem justificar o que se afirma eacute a tarefa preciacutepua do filoacutesofo De fato a experiecircncia nos atesta que quando afirmamos algo repelimos o seu contraacuterio243 Repugna agrave razatildeo uma afirmaccedilatildeo do gecircnero o cavalo branco de Napoleatildeo eacute preto Nesta linha Tomaacutes aduz que os nossos sentidos bem como a nossa razatildeo natildeo se enganam quanto a seus objetos proacuteprios porque quanto a eles satildeo unidimensionais Em outras palavras o olho soacute pode ver e ipso facto natildeo se pode enganar quando vecirc244 Dispostos assim agrave verdade acrescentemos que ela eacute uma adequaccedilatildeo do intelecto agrave coisa245 Esta adequaccedilatildeo daacute-se por uma espeacutecie de assimilaccedilatildeo que consiste em o conhecido estar intencionalmente naquele que conhece 246 Tal assertiva eacute de

os homens por natureza desejam saber a verdade (Metafiacutesica I 1 980 a 22) tambeacutem neles eacute natural o desejo de fugir dos erros e de os refutar quanto tecircm essa faculdaderdquo 243 Idem Suma contra os gentios I I 3 [6] ldquoEiusdem autem est unum contrariorum prosequi et aliud refutare sicut medicina quae sanitatem operatur aegritudinem excluditrdquo ldquoPertence com efeito ao que aceita um dos termos contraacuterios refutar o outro como por exemplo acontece na medicina esta trata da sauacutede e afasta a doenccedila []rdquo 244 Idem Suma Teoloacutegica I 85 6 C ldquoSensus enim circa proprium obiectum non decipitur sicut visus circa colorem nisi forte per accidens ex impedimento circa organum contingente [] Obiectum autem proprium intellectus est quidditas rei Unde circa quidditatem rei per se loquendo intellectus non falliturrdquo ldquoOs sentidos natildeo se enganam a respeito de seu objeto proacuteprio assim a vista em relaccedilatildeo agrave cor a natildeo ser talvez por acidente em razatildeo de um impedimento proveniente do oacutergatildeo [] O objeto proacuteprio do intelecto eacute a quumlididade Por isso falando de maneira absoluta o intelecto natildeo erra sobre a quumlididade da coisardquo 245 Idem Ibidem I 16 2 C ldquoEt propter hoc per conformitatem intellectus et rei veritas definiturrdquo ldquoEis por que se define a verdade pela conformidade do intelecto e da coisardquo TOMAacuteS DE AQUINO Questotildees Disputadas Sobre a Verdade I 1 C In LAUAND Luiz Jean SPROVIERO Mario Bruno Verdade e Conhecimento Trad Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 ldquoPrima ergo comparatio entis ad intellectum est ut ens intellectui concordet quae quidem concordia adaequatio intellectus et rei dicitur et in hoc formaliter ratio veri perficiturrdquo ldquoA primeira consideraccedilatildeo quanto a ente e intelecto eacute pois que o ente concorde com o intelecto esta concordacircncia diz-se adequaccedilatildeo do intelecto e da coisa e nela formalmente realiza-se a noccedilatildeo de verdadeirordquo 246 Idem Ibidem I 16 1 C ldquo[] quia cognitio est secundum quod cognitum est in cognoscente []rdquo ldquoO conhecimento consiste em que o conhecido estaacute naquele que conhece []rdquo Idem Questotildees Disputadas Sobre a Verdade I 1 C In LAUAND Luiz Jean SPROVIERO Mario Bruno Verdade e Conhecimento Trad Luiz Jean Lauand e Mario Bruno Sproviero Satildeo Paulo Martins Fontes 1999 p 149 ldquoOmnis autem cognitio perficitur per assimilationem cognoscentis ad rem cognitam ita quod assimilatio dicta est causa cognitionis sicut visus per hoc quod disponitur secundum speciem coloris cognoscit coloremrdquo ldquoPois todo conhecimento realiza-se pela assimilaccedilatildeo do cognoscente agrave

Saacutevio Laet de Barros Campos | 229

primeira ordem Ela nos leva a afirmar que conhecimento noacutes o temos primeiramente das coisas que existem fora de noacutes e natildeo das espeacutecies impressas inteligiacuteveis ou mesmo dos conceitos (espeacutecies expressas inteligiacuteveis) que estatildeo no nosso intelecto247 Em termos analiacuteticos contemporacircneos poderiacuteamos classificar Tomaacutes como um ldquoexternistardquo248 Em outras palavras para Aquino eacute o intelecto que se deve conformar agrave realidade e natildeo o contraacuterio249 A verdade natildeo estaacute pois nas ldquosutilezasrdquo mas na conformidade do intelecto com o real250 De modo que ao menos tanto quanto agraves sentenccedilas dos filoacutesofos devemos dar creacutedito ao que a multidatildeo afirma pois ela estaacute de certo modo mais proacutexima das coisas do que as ldquosofisticaccedilotildeesrdquo daqueles251 A propoacutesito Tomaacutes natildeo tinha

coisa conhecida de modo que a assimilaccedilatildeo diz-se causa do conhecimento por exemplo a vista capacitada para cor conhece a corrdquo 247 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 85 2 C ldquoSi igitur ea quae intelligimus essent solum species quae sunt in anima sequeretur quod scientiae omnes non essent de rebus quae sunt extra animam sed solum de speciebus intelligibilibus quae sunt in anima [] Et sic species intellectiva secundario est id quod intelligitur Sed id quod intelligitur primo est res cuius species intelligibilis est similitudordquo ldquoSe pois aquilo que conhecemos fosse somente as espeacutecies que estatildeo na alma todas as ciecircncias natildeo seriam de coisas que estatildeo fora da alma mas somente das espeacutecies inteligiacuteveis que estatildeo na alma [] Assim a espeacutecie inteligiacutevel eacute o que eacute conhecido em segundo lugar Mas o que eacute primeiramente conhecido eacute a coisa da qual a espeacutecie inteligiacutevel eacute a semelhanccedilardquo 248 MICHELETTI Op Cit p 46 ldquoEm Warrant The Current Debate (1993) e em Warrant and Proper Funcion (1993) Plantinga sustenta que a crise na epistemologia contemporacircnea daquela tradiccedilatildeo lsquointernistarsquo que havia tido preponderacircncia depois de Descartes Locke e o Iluminismo permitiu o reaparecimento do lsquoexternismorsquo da concepccedilatildeo epistemoloacutegica que segundo a reveladora genealogia desenhada por Plantinga remonta a Thomas Reid Tomaacutes de Aquino e Aristoacutetelesrdquo 249 Falamos da verdade loacutegica natildeo da ontoloacutegica Esta uacuteltima consiste no fato de as coisas serem verdadeiras enquanto se adequam agrave mente divina e natildeo o contraacuterio TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 16 1 C ldquoEt similiter res naturales dicuntur esse verae secundum quod assequuntur similitudinem specierum quae sunt in mente divina dicitur enim verus lapis qui assequitur propriam lapidis naturam secundum praeconceptionem intellectus divinirdquo ldquoAssim tambeacutem as coisas naturais satildeo verdadeiras na medida em que se assemelham agraves representaccedilotildees que estatildeo na mente divina uma pedra eacute verdadeira quanto tem a natureza proacutepria da pedra preconcebida como tal pelo intelecto divinordquo 250 Idem Ibidem II-II 1 2 ad 2 ldquo[] non enim formamus enuntiabilia nisi ut per ea de rebus cognitionem habeamus sicut in scientia ita et in fiderdquo ldquo[] natildeo formamos enunciados a natildeo ser para que tenhamos conhecimento das coisas como acontece na ciecircncia e tambeacutem na feacute []rdquo 251 Idem Suma contra os gentios I I 1 [2] ldquoMultitudinis usus quem in rebus nominandis sequendum philosophus censet []rdquo ldquoA terminologia vulgar que o Filoacutesofo diz ser conveniente respeitar ao se dar nome agraves coisas (II Toacutepicos I 109 a) []rdquo

230 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino um conceito elevado demais acerca de si mesmo nem de seus ldquocolegasrdquo filoacutesofos como deixa claro quando diz que nenhum filoacutesofo conseguiu conhecer perfeitamente nem sequer a essecircncia de uma mosca ou abelha252 Por traacutes disso estaacute a convicccedilatildeo de que a nossa mente natildeo inventa verdades natildeo eacute criadora Daiacute que para ele a docilidade de uma velhinha pode ser mais uacutetil do que a ldquoagudezardquo de um ldquofiloacutesofordquo quando se trata de se conformar agraves coisas253 O fato a se destacar aqui eacute que quando haacute adequaccedilatildeo do intelecto agrave realidade vale dizer assimilaccedilatildeo da coisa por parte daquele que conhece haacute entatildeo a evidecircncia e a certeza da verdade E disto resulta em primeiro lugar que natildeo eacute a boa argumentaccedilatildeo que nos daacute a verdade A bem dizer a argumentaccedilatildeo estabelece a verdade do discurso O que nos faculta ou possibilita o conhecimento da verdade eacute a confiabilidade na funccedilatildeo proacutepria das nossas potecircncias cognoscitivas a vista diz Tomaacutes eacute capaz de ver e conhece o que vecirc Por isso quando digo que o cavalo branco de Napoleatildeo eacute branco e natildeo preto natildeo haacute nesta asserccedilatildeo nenhuma presunccedilatildeo de se fazer com que o cavalo seja branco ou mesmo de que se pareccedila branco Haacute sim a pretensatildeo de se afirmar que ele eacute branco O cognoscente portanto confia na funccedilatildeo proacutepria da sua visatildeo que eacute ver e no enunciado que a sua razatildeo formula Ora os conhecimentos fundados nesta confiabilidade de funccedilatildeo proacutepria chamam-se eacutendoxa E eacute a adequaccedilatildeo ou assimilaccedilatildeo do intelecto agrave coisa a qual natildeo seria possiacutevel ou perceptiacutevel sem esta

252 TOMAacuteS DE AQUINO Exposiccedilatildeo sobre o credo Trad Odilatildeo Moura 4 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1997 p 19 ldquo[] sed cognitio nostra est adeo debilis quod nullus philosophus potuit unquam perfecte investigare naturam unius muscae unde legitur quod unus philosophus fuit triginta annis in solitudine ut cognosceret naturam apisrdquo ldquoMas o nosso conhecimento eacute tatildeo limitado que nenhum filoacutesofo ateacute hoje conseguiu perfeitamente investigar a natureza de uma soacute mosca Conta-se ateacute que certo filoacutesofo levou trinta anos no deserto para conhecer a natureza das abelhasrdquo 253 Idem Ibidem p 18 ldquoEt hoc patet quia nullus philosophorum ante adventum Christi cum toto conatu suo potuit tantum scire de Deo et de necessariis ad vitam aeternam quantum post adventum Christi scit una vetula per fidemrdquo ldquoEis porque nenhum filoacutesofo antes da vinda de Cristo apesar do grande esforccedilo intelectual que despendia pocircde chegar ao conhecimento de Deus e dos meios necessaacuterios para alcanccedilar a vida eterna como depois do advento de Cristo qualquer velhinha o pocircde pela feacuterdquo

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confiabilidade que estabelece a verdade e a evidecircncia da proposiccedilatildeo Enfim esta evidecircncia existe como certeza espontacircnea para um simples camponecircs e como certeza refletida para um filoacutesofo

Diziacuteamos que se trata da mesma verdade da mesma evidecircncia e da mesma certeza aquela que existe no camponecircs e no filoacutesofo Contudo suponhamos que haja um terceiro homem sagaz e erudito mdash chamemo-lo K mdash que consiga produzir uma argumentaccedilatildeo falsa fundada em ldquoconveniecircnciasrdquo ou naquilo que simplesmente aparece Suponhamos ainda que ele habilmente consiga ser mais coerente do que o nosso camponecircs e teremos entatildeo que a falsidade da sua tese iraacute prevalecer inobstante seja uma tese falsa Pois bem a tarefa do filoacutesofo natildeo eacute estabelecer uma nova verdade mas sim fazer com que a verdade exprimida espontaneamente pelo camponecircs prevaleccedila Ora o filoacutesofo faraacute isso antes de mais por meio de uma argumentaccedilatildeo correta que consistiraacute no caso da eacutetica em estabelecer que a proposiccedilatildeo de K eacute menos provaacutevel ou que natildeo atinge os eacutendoxa Sim ldquomenos provaacutevelrdquo jaacute que em eacutetica quase sempre natildeo lidamos com ldquoo que eacute semprerdquo mas sim com o que eacute ldquona maioria das vezesrdquo Destarte uma tese que pretenda impugnar os eacutendoxa porque eles natildeo se verificam sempre eacute uma falsa refutaccedilatildeo porque simplesmente natildeo os refuta jaacute que os eacutendoxa tratam do que acontece ldquona maioria das vezesrdquo mas natildeo ldquosemprerdquo Da mesma forma uma demonstraccedilatildeo que pretenda demonstrar que eles ldquosatildeo semprerdquo eacute uma demonstraccedilatildeo enganosa Quem faz filosofia praacutetica deve se precaver contra estes dois erros De qualquer forma o constatar como ldquomenos provaacutevelrdquo o que eacute contraacuterio aos eacutendoxa natildeo basta Natildeo basta pois estabelecer que o que acontece na maioria das vezes eacute a verdade Eacute mister fazer com que esta verdade prevaleccedila e para isso o discurso precisa ser natildeo somente correto e verdadeiro mas persuasivo Do contraacuterio K por penetrar ateacute as tendecircncias do auditoacuterio convenceraacute Assim a praacutetica da retoacuterica deve entrar em cena para persuadir por assim dizer acerca da verdade do que eacute

232 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino verdadeiro e da falsidade do que eacute falso A boa argumentaccedilatildeo portanto natildeo eacute nem soacute verdadeira nem soacute retoacuterica mas verdadeira e retoacuterica Por isso o bom dialeacutetico tem de conhecer tambeacutem a arte retoacuterica e praticaacute-la Teraacute de conhecer os eacutendoxa saber argumentar corretamente sobre eles estabelecendo que sejam verdadeiros enquanto prova que o que eacute contraacuterio a eles eacute ldquomenos provaacutevelrdquo ou natildeo os atinge e aleacutem disso teraacute de ser expressivo e convincente Maacutexime em Eacutetica onde as accedilotildees valem mais do que as palavras e onde a praacutetica prevalece sobre a teoria urge ser natildeo soacute verdadeiro mas tambeacutem comunicativo e praacutetico

Tomando por base estes pressupostos podemos considerar como funciona a razatildeo na eacutetica tomasiana 383 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA EacuteTICA TOMASIANA

Em primeiro lugar vale ressaltar que para o Aquinate mdash tal como para Aristoacuteteles mdash natildeo haacute lugar para um ldquolegalismordquo na ldquociecircncia poliacuteticardquo Os atos humanos mdash afirma o Frade de Roccasecca mdash precisamente enquanto atos livres comportam uma contingecircncia que pode fazecirc-los variar indefinidamente pelo que nenhum legislador conseguiraacute prever mdash no ato mesmo de legislar mdash uma lei que contemple todos os casos Assim sendo pode acontecer que o que eacute justo na maioria das vezes se torne deleteacuterio em determinadas circunstacircncias e o legislador deveraacute levar isto em conta tanto quando concebe a lei como quando a aplica Tomaacutes afirma isso com clareza em duas passagens emblemaacuteticas

Acontece poreacutem frequumlentemente que observar algo eacute uacutetil agrave salvaccedilatildeo comum o mais das vezes eacute contudo em alguns casos maximamente nocivo Dado que o legislador natildeo pode intuir todos os casos particulares propotildee uma lei segundo aquelas coisas que acontecem o mais das vezes levando sua intenccedilatildeo agrave utilidade comum Por isso se surge um caso no qual a

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observacircncia de tal lei eacute danosa agrave salvaccedilatildeo comum natildeo deve ela ser observada254 Quando se tratou das leis foi dito que os atos humanos que as leis devem regular satildeo particulares e contingentes e podem variar ao infinito Por isso foi sempre impossiacutevel instituir uma regra legal que fosse absolutamente sem falha e abrangesse todos os casos Os legisladores examinando atentamente o que sucede com mais frequumlecircncia procuraram legislar levando em conta isto Mas em alguns casos observar rigidamente a lei vai contra a igualdade da justiccedila e contra o bem comum que a lei visa255

Do exposto segue-se ainda que a eacutetica mdash tanto em Tomaacutes

quanto em Aristoacuteteles mdash enquanto reflexatildeo acerca dos costumes haacutebitos e leis humanas natildeo poderaacute ser uma ldquociecircncia do universalrdquo mdash exceto no que concerne aos primeiros princiacutepios da lei natural que ordenam a vida em comum e satildeo imutaacuteveis comuns e inolvidaacuteveis a todo homem e dos quais emanam todos os demais256 mdash mas somente do ldquogeralrdquo ou seja de princiacutepios que embora procedendo de princiacutepios peacutetreos soacute habitualmente ou na maioria das vezes se apresentam como benfazejos ao bem comum

254 Idem Suma Teoloacutegica I-II 96 6 C ldquoContingit autem multoties quod aliquid observari communi saluti est utile ut in pluribus quod tamen in aliquibus casibus est maxime nocivum Quia igitur legislator non potest omnes singulares casus intueri proponit legem secundum ea quae in pluribus accidunt ferens intentionem suam ad communem utilitatem Unde si emergat casus in quo observatio talis legis sit damnosa communi saluti non est observandardquo 255 Idem Ibidem II-II 120 1 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est cum de legibus ageretur quia humani actus de quibus leges dantur in singularibus contingentibus consistunt quae infinitis modis variari possunt non fuit possibile aliquam regulam legis institui quae in nullo casu deficeret sed legislatores attendunt ad id quod in pluribus accidit secundum hoc legem ferentes quam tamen in aliquibus casibus servare est contra aequalitatem iustitiae et contra bonum commune quod lex intenditrdquo 256 Idem Ibidem I-II 94 4 C ldquoSic igitur dicendum est quod lex naturae quantum ad prima principia communia est eadem apud omnes et secundum rectitudinem et secundum notitiamrdquo ldquoDeve-se dizer portanto que a lei da natureza quanto aos primeiros princiacutepios comuns eacute a mesma em todos tanto segundo a retidatildeo como segundo o conhecimentordquo Idem Ibidem I-II 94 5 C ldquoEt sic quantum ad prima principia legis naturae lex naturae est omnino immutabilisrdquo ldquoE assim quanto aos primeiros princiacutepios da lei da natureza a lei da natureza eacute totalmente imutaacutevelrdquo Idem Ibidem I-II 94 6 C ldquoQuantum ergo ad illa principia communia lex naturalis nullo modo potest a cordibus hominum deleri in universalirdquo ldquoQuanto pois agravequeles princiacutepios comuns a lei natural de nenhum modo pode ser destruiacuteda dos coraccedilotildees dos homens de modo universalrdquo

234 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Deve-se dizer que ldquonatildeo se deve procurar a mesma certeza em todas as coisasrdquo como se diz no Livro I da Eacutetica Por isso nas realidades contingentes como satildeo as naturais e as realidades humanas eacute suficiente a certeza tal que algo seja verdadeiro o mais das vezes embora agraves vezes falhe em poucos casos257

Aleacutem disso a tarefa da reflexatildeo eacutetica tampouco conheceraacute

fim A eacutetica seraacute sempre um projeto inacabado pois ldquoa razatildeo humana eacute mutaacutevel e imperfeitardquo258 Haveraacute sempre a possibilidade de as leis os haacutebitos e os costumes humanos serem aperfeiccediloados por reflexotildees ulteriores Diz Tomaacutes

Assim tambeacutem ocorre nas obras a realizar Com efeito os primeiros entenderam achar algo de uacutetil agrave comunidade dos homens natildeo podendo considerar por si mesmos todas as coisas instituiacuteram algumas imperfeitas que falhavam em muitos casos e essas os posteriores mudaram instituindo algumas que em poucos casos pudessem falhar quanto agrave utilidade comum259

Posto isso pensamos ter dado a circularidade que

pretendiacuteamos neste capiacutetulo no sentido de apanhar as principais repercussotildees da eacutetica aristoteacutelica no pensamento de Tomaacutes Comeccedilamos por afirmar um ldquoconceito positivordquo de natureza humana em Tomaacutes e como a civitas eacute oriunda desta natureza Depois movimentamos o texto na tentativa de justificar esta assertiva mostrando como o homem possui domiacutenio sobre as suas accedilotildees e eacute senhor delas e desta reflexatildeo deduzimos o corolaacuterio de que ele eacute pessoa Em seguida procuramos atestar como a incomunicabilidade da pessoa longe de tornaacute-la uma ldquoilhardquo traz

257 Idem Ibidem I-II 96 1 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod non est eadem certitudo quaerenda in omnibus ut in I Ethic dicitur Unde in rebus contingentibus sicut sunt naturalia et res humanae sufficit talis certitudo ut aliquid sit verum ut in pluribus licet interdum deficiat in paucioribusrdquo 258 Idem Ibidem I-II 97 1 ad 1 ldquo[] ratio humana mutabilis est et imperfectardquo 259 Idem Ibidem I-II 97 1 C ldquoIta etiam est in operabilibus Nam primi qui intenderunt invenire aliquid utile communitati hominum non valentes omnia ex seipsis considerare instituerunt quaedam imperfecta in multis deficientia quae posteriores mutaverunt instituentes aliqua quae in paucioribus deficere possent a communi utilitaterdquo

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em si o signo da abertura porque ser pessoa e ser racional tambeacutem eacute ser capaz de livremente criar relaccedilatildeo comunicar-se criar comunhatildeo comunidade o que se consolida mdash na ldquoesfera puacuteblicardquo mdash na ldquoamizade poliacuteticardquo E esta ldquoamizade poliacuteticardquo aperfeiccediloa a justiccedila que acentuamos natildeo ser legalista De mais a mais esforccedilamo-nos por mostrar que tipo de racionalidade mdash na concepccedilatildeo do Aquinate mdash confere agrave eacutetica o status de ldquociecircnciardquo De resto esta ordem natural ou eacutetica filosoacutefica que defendemos haver no Aquinate o mesmo Tomaacutes ainda que admita que ela vaacute sempre carecer de uma perfeiccedilatildeo absoluta reconhece tambeacutem que ela poderaacute lograr uma perfeiccedilatildeo quanto ao tempo conforme tambeacutem verificamos neste capiacutetulo Gostariacuteamos de citar novamente e desta feita integralmente uma passagem na qual Lima Vaz arrazoa sobre o ideal da eacutetica antiga que segundo a nossa compreensatildeo eacute retomado por Tomaacutes de Aquino

O domiacutenio da physis ou reino da necessidade eacute rompido pela abertura do espaccedilo humano do ethos no qual iratildeo inscrever-se os costumes os haacutebitos as normas e os interditos os valores e as accedilotildees Por conseguinte o espaccedilo do ethos enquanto espaccedilo humano natildeo eacute dado ao homem mas por ele construiacutedo ou incessantemente reconstruiacutedo Nunca a casa do ethos estaacute pronta e acabada para o homem e esse seu essencial inacabamento eacute o signo de uma presenccedila a um tempo proacutexima e infinitamente distante e que Platatildeo designou como a presenccedila exigente do Bem que estaacute aleacutem de todo ser (ousiacutea) ou para aleacutem do que se mostra acabado e completo260

Falta entretanto responder a uma pergunta como um

teoacutelogo cujas obras mais originais satildeo evidentemente teoloacutegicas conseguiu mdash nelas mdash desenvolver uma conceptualidade filosoacutefica uma abordagem eacutetico-filosoacutefica A resposta a esta questatildeo depende mdash a nosso ver mdash de uma reta compreensatildeo da concepccedilatildeo de

260 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 13

236 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino teologia de Tomaacutes Delinear mdash ainda que sumariamente mdash esta concepccedilatildeo eis o que nos propomos fazer a seguir

Capiacutetulo IV O conceito de Teologia em Tomaacutes de Aquino

Neste capiacutetulo nosso intento eacute delinear qual o conceito de teologia elaborado por Tomaacutes Natildeo temos a pretensatildeo de acompanhar todos os pormenores da construccedilatildeo deste conceito Tomaacutes trata ex professo deste assunto logo na primeira questatildeo da primeira parte da Summa Theologiae A questatildeo eacute composta de dez artigos que discorrem sobre a sacra doctrina O que tentaremos fazer eacute apenas movimentar este texto junto com alguns outros a fim de mostrarmos que o conceito de teologia de Tomaacutes concede ldquodireito de cidadaniardquo agrave filosofia mdash inclusive no acircmbito da eacutetica mdash sem com isso romper a unidade da sacra doctrina A importacircncia de se estabelecer este conceito de teologia em Tomaacutes eacute salientada por Gilson

A principal razatildeo que dificulta a tantos historiadores filoacutesofos e teoacutelogos nomearem teologia o que eles preferem nomear filosofia eacute que em seus espiacuteritos a noccedilatildeo de teologia exclui a de filosofia Para eles verdades propriamente filosoacuteficas que dependem unicamente da razatildeo natildeo conseguiriam encontrar lugar na teologia onde todas as conclusotildees dependem da feacute E eacute verdade que todas as conclusotildees do teoacutelogo dependem da feacute mas natildeo eacute verdade que da feacute todas elas podem ser deduzidas Portanto era o sentido verdadeiro do termo teologia que se fazia necessaacuterio encontrar em primeiro lugar1

Tambeacutem Sofia Vanni Rovighi mdash talvez a que mais tenha

defendido em seu tempo a existecircncia de uma ldquofilosofia autocircnomardquo na teologia de Tomaacutes mdash aponta para a importacircncia de se compreender a concepccedilatildeo de teologia de Aquino com o fito de captar a universalidade do seu pensamento

1 GILSON Eacutetienne O Filoacutesofo e a Teologia Trad e Rev Tiago Joseacute Risi Leme Satildeo Paulo Paulus 2009 p 102

238 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Tomaacutes de Aquino foi e quis ser teoacutelogo Hoje se insiste muito e justamente sobre este fato mas talvez natildeo se devesse esquecer de que foi teoacutelogo a seu modo e natildeo ao modo dos teoacutelogos de hoje e que na sua concepccedilatildeo de teologia a indagaccedilatildeo racional (ou seja a filosofia) tem um lugar e uma funccedilatildeo essencial Jaacute dissemos falando da Summa contra Gentiles que segundo ele uma exposiccedilatildeo da doutrina catoacutelica que se queira dirigir a todos os homens (e pode ser catoacutelica sem se voltar para todos) deve comeccedilar por aquilo que a razatildeo pode descobrir porque a razatildeo eacute aquela que reuacutene todos os homens 2

Procuremos entatildeo encontrar o sentido verdadeiro do

termo ldquoteologiardquo em Tomaacutes pois soacute assim conseguiremos entender a razatildeo por que a filosofia ganha ldquoforos de cidaderdquo em sua obra 41 O CONCEITO DE TEOLOGIA COMO CIEcircNCIA EM TOMAacuteS

Logo no primeiro artigo da Summa o Aquinate coloca a seguinte questatildeo ldquoEacute necessaacuteria outra doutrina aleacutem das disciplinas filosoacuteficasrdquo3 E isto jaacute diz muita coisa A primeira eacute que Tomaacutes natildeo questiona que a filosofia seja uma ciecircncia antes indaga se aleacutem das disciplinas filosoacuteficas existe outra ciecircncia A maneira como ele coloca a questatildeo jaacute mostra que na sua concepccedilatildeo eacute a teologia mdash e natildeo a filosofia mdash que teraacute de se justificar como ciecircncia Nas palavras de Reacutemi Brague

Santo Tomaacutes de Aquino no comeccedilo de sua Suma Teoloacutegica natildeo se pergunta se eacute legiacutetimo fazer filosofia Muito pelo contraacuterio ele

2 ROVIGHI Sofia Vanni Introduzione a Tommaso DrsquoAquino Bari Laterza 1981 pp 40-41 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoTommaso drsquoAquino fu e volle essere teologo Oggi si insiste molto e giustamente su questo fatto mas forse non bisognerebbe dimenticare che fu teologo a modo suo e non al modo dei teologi di oggi e che nella sua concezione della teologia lrsquoindagine razionale (ossia la filosofia) ha un posto e una funzione essenziale Abbiamo giagrave detto parlando della Summa contra Gentiles che secondo lui unrsquoesposizione della dottrina cattolica che voglia rivolgersi a tutti gli uomini (e puograve essere cattolica senza rivolgersi a tutti) deve prendere le mosse da ciograve che la ragione umana puograve scoprire percheacute egrave la ragione quella che accomuna tutti gli uominirdquo 3 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 1 ldquoUtrum sit necessarium praeter philosophicas disciplinas aliam doctrinam haberirdquo

Saacutevio Laet de Barros Campos | 239

se coloca a questatildeo de saber se haacute necessidade de uma ciecircncia que venha a se juntar agrave filosofia mdash trata-se nessas circunstacircncias decerto da teologia A filosofia eacute suposta como indispensaacutevel O que mais for eacute perante seu tribunal que a teologia eacute convocada e que ela deve se justificar4

Depois de defender no corpo do primeiro artigo que

existe sim outra ciecircncia aleacutem da filosofia qual seja a teologia no artigo segundo busca fundamentar a teologia como ciecircncia5 Para levar a termo esta empresa vale-se da ldquoteoria da ciecircnciardquo aristoteacutelica Nos Analiacuteticos Posteriores Aristoacuteteles prevecirc a existecircncia de ciecircncias subalternas Assim a oacutetica deve agrave geometria seus princiacutepios e a muacutesica agrave aritmeacutetica Leiamos o trecho em que o Estagirita abre esta possibilidade

[] nem lteacute possiacutevel demonstrargt o proacuteprio de uma ciecircncia mediante outra a natildeo ser que todas em questatildeo estejam subordinadas umas agraves outras por exemplo as questotildees oacuteticas com respeito agrave geometria e as harmocircnicas com respeito agrave aritmeacutetica6

Pois bem o Boi Mudo assume esta ldquobrechardquo aberta por

Aristoacuteteles a fim de conferir o caraacuteter de ciecircncia agrave teologia Diz ele que haacute dois tipos de ciecircncia Umas procedem ldquo[] de princiacutepios que satildeo conhecidos agrave luz natural do intelecto como a aritmeacutetica a geometria etcrdquo7 outras ao contraacuterio procedem ldquo[] de princiacutepios conhecidos agrave luz de uma ciecircncia superior tais como [] a muacutesica

4 BRAGUE Mediante a Idade Meacutedia Filosofias medievais na cristandade no judaiacutesmo e no islatilde p 55 5 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 2 6 ARISTOacuteTELES Analiacuteticos Segundos I 75 b 10-15 In ______ Tratados de Loacutegica (Oacuterganon) Trad Miguel Candel Sanmartiacuten Rev Quintiacuten Racionero Madrid Editorial Gredos 1995 v II pp 332-333 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] ni ltes posible demostrargt lo propio de una ciencia mediante otra a no ser que todas las cosas en cuestioacuten esteacuten subordinadas las unas a las otras Vg las cuestiones oacuteptimas respecto a la geometriacutea y las armoacutenicas respecto a la aritmeacuteticardquo 7 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 2 C ldquoQuaedam enim sunt quae procedunt ex principiis notis lumine naturali intellectus sicut arithmetica geometria et huiusmodirdquo

240 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino nos princiacutepios elucidados pela aritmeacuteticardquo8 Ora para Tomaacutes a teologia eacute ciecircncia no segundo sentido pois ela natildeo toma seus princiacutepios da luz natural da razatildeo mas sim de uma ciecircncia arquitetocircnica isto eacute a ciecircncia de Deus e dos celiacutecolas a qual ela conhece natildeo por visatildeo mas por Revelaccedilatildeo Eis o texto

Eacute desse modo que a doutrina sagrada eacute ciecircncia ela procede de princiacutepios conhecidos agrave luz de uma ciecircncia superior a saber da ciecircncia de Deus e dos bem-aventurados E como a muacutesica aceita os princiacutepios que lhe satildeo passados pelo aritmeacutetico assim tambeacutem a doutrina sagrada aceita os princiacutepios revelados por Deus9

O que nos interessa reter aqui eacute que desde a sua

constituiccedilatildeo como ciecircncia a teologia mdash em Tomaacutes mdash depende de uma reflexatildeo filosoacutefica tomada em grande parte de Aristoacuteteles Neste sentido diz Gilson sobre Tomaacutes ldquoEle sabe pela feacute para que termo se dirige contudo soacute progride graccedilas aos recursos da razatildeordquo10 Mas qual seraacute o ldquoobjetordquo da teologia

8 Idem Ibidem I 1 2 C ldquoQuaedam vero sunt quae procedunt ex principiis notis lumine superioris scientiae sicut perspectiva procedit ex principiis notificatis per geometriam et musica ex principiis per arithmeticam notisrdquo 9 Idem Ibidem ldquoEt hoc modo sacra doctrina est scientia quia procedit ex principiis notis lumine superioris scientiae quae scilicet est scientia Dei et beatorum Unde sicut musica credit principia tradita sibi ab arithmetico ita doctrina sacra credit principia revelata sibi a Deordquo Noutro passo o Aquinate eacute ainda mais claro Idem Ibidem II-II 1 7 C ldquoRespondeo dicendum quod ita se habent in doctrina fidei articuli fidei sicut principia per se nota in doctrina quae per rationem naturalem habeturrdquo ldquoOs artigos da feacute tecircm na doutrina da feacute o mesmo papel que os princiacutepios evidentes na doutrina que se constroacutei a partir da razatildeo naturalrdquo 10 GILSON A Filosofia na Idade Meacutedia p 657 Lapidar tambeacutem eacute a foacutermula adotada por Paul Gilbert para o proceder de Tomaacutes GILBERT Paul Introduccedilatildeo agrave Teologia Medieval Trad Dion Davi Macedo Rev Mauriacutecio Leal e Milton Camargo Mota Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1999 p 135 ldquoA feacute erige somente o que diz a razatildeordquo Isto natildeo significa que a razatildeo possa demonstrar os misteacuterios revelados mas sim que a teologia depende dos recursos da razatildeo para progredir com ordem Como jaacute dissemos Tomaacutes de Aquino tem um papel preponderante na formulaccedilatildeo da teologia como ciecircncia POSTESTAgrave VIAN Op Cit p 191 ldquoEstabelecendo seu estatuto de ciecircncia Tomaacutes levou (provisoriamente) a cabo seu longo percurso de se emancipar da exegese agora a teologia jaacute natildeo deveria ser considerada contemplaccedilatildeo da Escritura mas um saber autonomamente estruturado a partir dos princiacutepios revelados poreacutem desenvolvido e articulado segundo processos argumentativos de tipo racionalrdquo

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42 O ldquoOBJETOrdquo DA TEOLOGIA

A teologia enquanto ciecircncia tem um sujeito mdash diriacuteamos hoje um ldquoobjetordquo mdash e este eacute Deus ldquoDeus eacute o sujeito desta ciecircnciardquo11 Poreacutem Tomaacutes precisa que natildeo eacute qualquer conhecimento de Deus que eacute ldquoobjetordquo da teologia O ldquoobjetordquo desta ciecircncia natildeo eacute formalmente aquele conhecimento de Deus que os filoacutesofos mdash com mescla de erros mdash conseguiram alcanccedilar senatildeo aquele ldquo[] que soacute Deus conhece de si mesmo e que eacute comunicado aos outros por revelaccedilatildeordquo 12 Assim a ldquorazatildeo formalrdquo desta ciecircncia eacute o conhecimento de Deus obtido por Revelaccedilatildeo ldquo[] tudo o que eacute cognosciacutevel por revelaccedilatildeo divina tem em comum a uacutenica razatildeo formal do objeto desta ciecircnciardquo13 Em vaacuterias ocasiotildees Frei Tomaacutes reafirma isso Donde concluir que ldquoEra necessaacuterio existir para a salvaccedilatildeo do homem [] uma doutrina fundada na revelaccedilatildeo divinardquo 14 Mais abaixo afirma ainda ldquoPortanto aleacutem das disciplinas filosoacuteficas [] era necessaacuteria uma doutrina sagrada tida por revelaccedilatildeordquo15 Outras passagens poderiam ser citadas mas estas nos parecem suficientes Agora qual eacute o lugar da filosofia nesta ciecircncia 43 O PAPEL DA FILOSOFIA NA TEOLOGIA TOMASIANA

A impressatildeo que fica eacute que sendo a Revelaccedilatildeo o ldquoobjeto formalrdquo da teologia natildeo resta espaccedilo algum nela para a filosofia Contudo natildeo eacute assim Em primeiro lugar como Deus se revelou a

11 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 7 C ldquo[] Deus est subiectum huius scientiaerdquo 12 Idem Ibidem I 1 6 C ldquo[] sed etiam quantum ad id quod notum est sibi soli de seipso et aliis per revelationem communicatumrdquo 13 Idem Ibidem I 1 3 C ldquo[] omnia quaecumque sunt divinitus revelabilia communicant in una ratione formali obiecti huius scientiaerdquo 14 Idem Ibidem I 1 1 C ldquoUt igitur salus hominibus et convenientius et certius proveniat necessarium fuit quod de divinis per divinam revelationem instruanturrdquo 15 Idem Ibidem ldquoNecessarium igitur fuit praeter philosophicas disciplinas quae per rationem investigantur sacram doctrinam per revelationem haberirdquo

242 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino noacutes A fonte primeira da Revelaccedilatildeo eacute a Sagrada Escritura E o que temos laacute Deus revelando-Se a noacutes por meio das Suas criaturas ldquoConveacutem agrave Sagrada Escritura nos transmitir as coisas divinas e espirituais mediante imagens corporaisrdquo16 Mais do que atestar este fato Tomaacutes o justifica dizendo que assim deveria ser pois uma vez que natildeo somos espiacuteritos puros mas uma unidade entre alma e corpo eacute-nos natural conhecermos as coisas inteligiacuteveis atraveacutes das sensiacuteveis ldquo[] eacute natural ao homem elevar-se ao inteligiacutevel pelo sensiacutevel porque todo o nosso conhecimento se origina a partir dos sentidosrdquo17 Sendo assim mdash continua o Frade de Roccasecca mdash ldquo[] eacute entatildeo conveniente que na Escritura Sagrada as realidades espirituais nos sejam transmitidas por meio de metaacuteforas corporaisrdquo18

A questatildeo que se coloca entatildeo eacute a seguinte qual a ciecircncia que estuda as realidades naturais Eacute a filosofia Satildeo as disciplinas filosoacuteficas que nos datildeo a conhecer as coisas enquanto tais Neste sentido diraacute o Aquinate ldquo[] a filosofia humana as considera enquanto tais Donde as diversas partes da filosofia serem constituiacutedas segundo os diversos gecircneros das coisasrdquo19 A seguir Tomaacutes passa a distinguir com clareza como a filosofia e a teologia abordam as criaturas Enquanto o filoacutesofo quer conhecer apenas a natureza proacutepria de cada coisa ldquo[] por exemplo o fogo enquanto soberdquo20 o fiel ao contraacuterio quer conhecer nas criaturas ldquo[] somente aquilo que a elas conveacutem enquanto estatildeo

16 Idem Ibidem I 1 9 C ldquoRespondeo dicendum quod conveniens est sacrae Scripturae divina et spiritualia sub similitudine corporalium tradererdquo 17 Idem Ibidem ldquoEst autem naturale homini ut per sensibilia ad intelligibilia veniat quia omnis nostra cognitio a sensu initium habetrdquo 18 Idem Ibidem ldquoUnde convenienter in sacra Scriptura traduntur nobis spiritualia sub metaphoris corporaliumrdquo 19 Idem Suma Contra os Gentios II IV 1 [871] ldquoNam philosophia humana eas considerat secundum quod huiusmodi sunt unde et secundum diversa rerum genera diversae partes philosophiae inveniunturrdquo 20 Idem Ibidem II IV 2[872 a] ldquo[] sicut igni ferri sursum []rdquo

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relacionadas com Deusrdquo21 De mais a mais o filoacutesofo considera as coisas a partir das suas causas proacuteximas enquanto o teoacutelogo as considera a partir da causa primeira Deus22 Mas e este eacute o ponto o Aquinate observa que natildeo eacute inuacutetil ao teoacutelogo o conhecimento das coisas enquanto tais porque tambeacutem na natureza mesma das coisas podemos descobrir traccedilos da sabedoria criadora da causa primeira Diz ele

Daiacute podermos pela consideraccedilatildeo das obras recolher a sabedoria divina que estaacute como que espelhada nas criaturas por certa comunicaccedilatildeo da sua semelhanccedila23

Entretanto nem sequer isso eacute o mais importante Devemos

ter um conhecimento reto das criaturas porque uma vez que Deus Se revelou a noacutes mediante ldquoimagens corporaisrdquo se natildeo entendermos o que as coisas satildeo em si mesmas podemos compreender de forma equivocada estas metaacuteforas ou interpretaacute-las de forma que atente contra a proacutepria feacute Por essa razatildeo Frei Tomaacutes julga falsa e danosa agrave feacute a opiniatildeo daqueles que pensam poder fazer correta teologia sem dispor de um soacutelido conhecimento natural Na Suma de Teologia ele diz ldquoA feacute pressupotildee o conhecimento natural como a graccedila pressupotildee a natureza e a perfeiccedilatildeo o que eacute perfectiacutevelrdquo24 Jaacute na Suma Contra os Gentios eacute ainda mais contundente

21 Idem Ibidem ldquo[] idelis autem ea solum considerat circa creaturas quae eis conveniunt secundum quod sunt ad Deum relata []rdquo 22 Idem Ibidem II IV 2 [873] ldquoNam philosophus argumentum assumit ex propriis rerum causis fidelis autem ex causa prima ut puta quia sic divinitus est traditum vel quia hoc in gloriam Dei cedit vel quia Dei potestas est infinitardquo ldquoO filoacutesofo deduz os seus argumentos partindo das proacuteprias causas das coisas o fiel poreacutem da causa primeira mostrando que assim eacute porque foi revelado por Deus ou porque redunda na gloacuteria de Deus ou porque a gloacuteria de Deus eacute infinitardquo 23 Idem Ibidem II II 1 [859] ldquoUnde ex factorum consideratione divinam sapientiam colligere possumus sicut in rebus factis per quandam communicationem suae similitudinis sparsamrdquo 24 Idem Suma Teoloacutegica I 2 2 ad 1 ldquo[] fides praesupponit cognitionem naturalem sicut gratia naturam et ut perfectio perfectibilerdquo

244 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Vecirc-se pois como eacute falsa a afirmaccedilatildeo de alguns de que era indiferente para as verdades da feacute o que se pensasse a respeito das criaturas contanto que se pensasse retamente sobre Deus como nos relata Agostinho O erro acerca das criaturas redunda em falsa ideacuteia de Deus e ao submeter as mentes humanas a quaisquer outras coisas afasta-as de Deus para quem a feacute as quer encaminhar25

Porro comenta esta passagem mostrando nela o vieacutes

filosoacutefico que Tomaacutes nunca abandonou quando fez teologia

Como eacute evidente essa passagem natildeo reivindica apenas o direito mas tambeacutem e sobretudo o dever para o teoacutelogo de se ocupar das criaturas levando em conta esse ponto pode-se talvez comeccedilar a compreender por que Tomaacutes continuou e ateacute intensificou a proacutepria leitura dos textos aristoteacutelicos ateacute os uacuteltimos anos de sua vida26

Pelas razotildees arroladas Aquino pocircde concluir que embora

distintas filosofia e teologia devem caminhar juntas a fim de que a filosofia confira solidez agrave teologia Decerto que o Aquinate toma o cuidado de dizer que esta integraccedilatildeo entre as duas ordens diversas do conhecimento natildeo eacute estritamente necessaacuteria como se a teologia fosse inferior agrave filosofia Todavia tal interaccedilatildeo eacute muito pertinente dado que devido agrave debilidade do nosso intelecto que soacute eleva ao inteligiacutevel mediante o sensiacutevel eacute mais seguro valermo-nos da filosofia porque ela enquanto nos daacute a conhecer o que satildeo as coisas em si mesmas nos possibilita tambeacutem entender o dado revelado posto que Deus mdash jaacute o sabemos mdash Se revela a noacutes mediante ldquoimagens corporais ou sensiacuteveisrdquo A filosofia nos ajuda

25 Idem Suma Contra os Gentios II III 5 [869] ldquoSic ergo patet falsam esse quorundam sententiam qui dicebant nihil interesse ad fidei veritatem quid de creaturis quisque sentiret dummodo circa Deum recte sentiatur ut Augustinus narrat in libro de origine animae nam error circa creaturas redundat in falsam de Deo sententiam et hominum mentes a Deo abducit in quem fides dirigere nititur dum ipsas quibusdam aliis causis supponitrdquo 26 PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 137

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pois a nos elevarmos do sensiacutevel ao inteligiacutevel com correccedilatildeo Ouccedilamos o proacuteprio Tomaacutes

Deve-se dizer que a ciecircncia sagrada pode tomar emprestada alguma coisa agraves ciecircncias filosoacuteficas Natildeo que lhe seja necessaacuterio mas em vista de melhor manifestar o que ela proacutepria ensina Seus princiacutepios natildeo lhe vecircm de nenhuma outra ciecircncia mas de Deus imediatamente por revelaccedilatildeo Por conseguinte ela natildeo toma emprestado das outras ciecircncias como se lhe fossem superiores mas delas se vale como de inferiores e servas [] Que a ciecircncia sagrada se valha das outras ciecircncias natildeo eacute por uma falha sua ou deficiecircncia sua mas por falha de nosso intelecto A partir dos conhecimentos naturais de onde procedem as outras ciecircncias nosso intelecto eacute mais facilmente introduzido nos objetos que ultrapassam a razatildeo e satildeo a mateacuteria desta ciecircncia 27

No entanto a doutrina sagrada utiliza tambeacutem a razatildeo humana natildeo para provar a feacute o que lhe tiraria o meacuterito mas para iluminar alguns outros pontos que esta doutrina ensina28

E por essa razatildeo sendo a sabedoria principal serve-se da filosofia humana E ainda por este motivo a sabedoria divina parte algumas vezes dos princiacutepios da sabedoria humana29

Ao se depararem com esta temaacutetica em Tomaacutes Reale e

Antiseri mdash em sua Histoacuteria da Filosofia mdash concluem ldquo[] sendo necessaacuteria uma correta filosofia para ser possiacutevel uma boa

27 Idem Ibidem I 1 5 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod haec scientia accipere potest aliquid a philosophicis disciplinis non quod ex necessitate eis indigeat sed ad maiorem manifestationem eorum quae in hac scientia traduntur Non enim accipit sua principia ab aliis scientiis sed immediate a Deo per revelationem Et ideo non accipit ab aliis scientiis tanquam a superioribus sed utitur eis tanquam inferioribus et ancillis [] Et hoc ipsum quod sic utitur eis non est propter defectum vel insufficientiam eius sed propter defectum intellectus nostri qui ex his quae per naturalem rationem (ex qua procedunt aliae scientiae) cognoscuntur facilius manuducitur in ea quae sunt supra rationem quae in hac scientia tradunturrdquo 28 Idem Ibidem I 1 8 ad 2 ldquoUtitur tamen sacra doctrina etiam ratione humana non quidem ad probandum fidem quia per hoc tolleretur meritum fidei sed ad manifestandum aliqua alia quae traduntur in hac doctrinardquo 29 Idem Suma Contra os Gentios II IV 4 [875] ldquoEt propter hoc sibi quasi principali philosophia humana deservit Et ideo interdum ex principiis philosophiae humanae sapientia divina proceditrdquo

246 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino teologiardquo30 Aliaacutes tambeacutem nesta mesma linha de interpretaccedilatildeo o proacuteprio Aquinate jaacute defendia que a filosofia poderia ser estudada inclusive pelos religiosos Afirma ele

Deve-se dizer que os filoacutesofos professavam o estudo das letras no que diz respeito agraves ciecircncias humanas Mas aos religiosos compete principalmente dedicar-se ao estudo das letras que se referem agrave ldquodoutrina que eacute segundo a piedaderdquo como diz o Apoacutestolo Dedicar-se poreacutem ao estudo das outras doutrinas natildeo eacute proacuteprio dos religiosos que consagram toda a sua vida ao ministeacuterio divino a natildeo ser na medida em que elas satildeo ordenadas agrave teologia31

A propoacutesito eacute digno de nota que a primeira constituiccedilatildeo da

Ordem Dominicana mdash Livro dos costumes dos frades pregadores mdash orientava que os noviccedilos estudassem sim mas estudassem apenas e tatildeo somente livros teoloacutegicos vedando-lhes a possibilidade de se dedicarem aos estudos profanos O teor do texto eacute este

Natildeo se dediquem aos livros dos gentios e dos filoacutesofos se os examinarem de vez em quando natildeo se instruam nas ciecircncias seculares nem nas artes que chamam de liberais mas tanto os jovens como os outros estudem apenas livros teoloacutegicos32

30 REALE Giovanni ANTISERI Dario Histoacuteria da Filosofia Antiguumlidade e Idade Meacutedia Rev Honoacuterio Dalbosco 6 ed Satildeo Paulo Paulus 1990 p 554 31 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 188 5 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod philosophi profitebantur studia litterarum quantum ad saeculares doctrinas Sed religiosis competit principaliter intendere studio litterarum pertinentium ad doctrinam quae secundum pietatem est ut dicitur Tit I Aliis autem doctrinis intendere non pertinet ad religiosos quorum tota vita divinis obsequiis mancipatur nisi inquantum ordinantur ad sacram doctrinamrdquo [O itaacutelico eacute nosso] 32 LIVRO DOS COSTUMES DOS FRADES PREGADORES Distinccedilatildeo II cap 6 Trad Gelabert M Milagro et al Madrid BAC 1947 p 900 In NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 p 23 Aliaacutes desde o iniacutecio o estudo foi uma das notas distintivas da ordem dos frades pregadores LENZENWEGER Josef STOCKMEIER Peter [et al] Op Cit p 170 ldquoFoi com Domingos que pela primeira vez na histoacuteria das ordens religiosas a finalidade pastoral foi formulada claramente A ascese tinha de estar a serviccedilo da pregaccedilatildeo contemplata predicare Costumes de ascetismos ateacute entatildeo considerados indispensaacuteveis foram sacrificados em prol do estudo Por exemplo os irmatildeos ganharam celas individuais e uma luz para que tambeacutem de noite pudessem estudar algo completamente impensaacutevel nas ordens monaacutesticasrdquo

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Contudo durante o capiacutetulo de Valenciennes em 1259 no qual Tomaacutes mdash jaacute regente de teologia em Paris mdash estava presente bem como Alberto Magno o Conselho decidiu que os pregadores estudassem tambeacutem os textos filosoacuteficos As palavras da Ata satildeo as seguintes ldquoQue se organizem nas proviacutencias que tiverem necessidade um ou mais estuacutedios de artes onde os jovens sejam instruiacutedosrdquo33 Esta novidade causou grande alvoroccedilo e acabou por render criacuteticas a Alberto inclusive dos seus proacuteprios confrades Algumas de suas respostas a estas criacuteticas dos seus coevos podem ser mencionadas com proveito porque sua iacutendole vem ao encontro da nossa temaacutetica Para as universidades mdash afirma Alberto mdash aqueles que satildeo avessos a toda sorte de novidades satildeo

[] como o fiacutegado pois em todo corpo haacute o humor da biacutelis que ao evaporar torna amargo todo o corpo igualmente na universidade haacute sempre homens muitiacutessimo amargos e biliosos que levam todos os outros agrave amargura e natildeo lhes permitem buscar a verdade em prazerosa companhia34

Digo isto para certos preguiccedilosos que buscam conforto agrave sua preguiccedila indo agrave caccedila de erros nos escritos dos outros E dado que dormem na sua preguiccedila para natildeo parecerem os uacutenicos a dormir buscam atribuir desonras aos eleitos Tais foram aqueles que mataram Soacutecrates exilaram Platatildeo de Atenas e com as suas maquinaccedilotildees constrangeram tambeacutem Aristoacuteteles a ir embora35

33 ATAS DOS CAPIacuteTULOS GERAIS DA ORDEM DOS PREGADORES Roma R M Reichert p 99 v I In NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 p 24 34 ALBERTO MAGNO Comentaacuterio aos VIII livros da Poliacutetica de Aristoacuteteles Paris Ed A Borgnet Vivegraves 1890-99 p 804 v 8 In NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 p 24 35 ALBERTO MAGNO In octo libros Politicorum Aristotelis l VIII cap 6 In ROVIGHI Sofia Vanni Introduzione a Tommaso DrsquoAquino Bari Laterza 1981 p 12 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoDico questo per certi pigri che cercano conforto alla sua loro pigrizia andando a caccia di errori negli scritti altrui E poicheacute dormono nella sua pigrizia per non sembrare i soli a dormire cercano di attribuire macchie agli eletti Tali furono coloro que uccisero Socrate esiliarono Platone di Atene e con le sue macchinazioni costrinsero anche Aristotele ad andarsenerdquo

248 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Alguns ignorantes querem combater de todos os modos o estudo da filosofia e especialmente entre os Pregadores onde ningueacutem resiste a eles Satildeo como animais brutos que praguejam contra aquilo que ignoram36

Tomaacutes parece ser ele proacuteprio a ldquotestemunha vivardquo da

orientaccedilatildeo dada pelo capiacutetulo de Valenciennes Mesmo natildeo tendo lecionado na faculdade de artes e portanto natildeo tendo obrigaccedilatildeo alguma de comentar Aristoacuteteles ainda assim comentou incansavelmente o corpus aristotelicum optando sempre que possiacutevel por traduccedilotildees feitas diretamente do grego em sua maioria obras de Guilherme de Moerbeke seu confrade Natildeo eacute de pouca monta observar que jaacute com a sua obra teoloacutegica quase toda realizada vale dizer nos uacuteltimos anos de sua vida o Aquinate nunca cessou de comentar as obras aristoteacutelicas o que nos daacute a convicccedilatildeo de que ele natildeo as comentava exclusivamente como preparaccedilatildeo para outras obras teoloacutegicas mas sim para manter atualizados os seus conhecimentos filosoacuteficos Outro fato digno de acento eacute que depois de sua morte os mestres da faculdade de artes mdash e natildeo os da teologia mdash pediram agrave Ordem dos Frades Pregadores o envio natildeo propriamente da Summa Theologiae mas dos comentaacuterios de Frei Tomaacutes a Aristoacuteteles Eacute interessante lermos as consideraccedilotildees de Porro a este respeito

Tomaacutes natildeo comentou Aristoacuteteles ateacute os uacuteltimos anos da sua vida porque fosse obrigado a isso por estatutos ou programas de ensino (embora seus comentaacuterios sejam depois solicitados apoacutes sua morte pelos mestres da faculdade das artes mdash o que atesta o indiscutiacutevel prestiacutegio que Tomaacutes conquistara como comentarista de Aristoacuteteles entre os que por profissatildeo eram obrigados a ler e a comentar Aristoacuteteles) [] Portanto natildeo resta senatildeo apelar ao que tambeacutem se dizia antes o interesse de Tomaacutes pelas obras

36 ALBERTO MAGNO In Epistolas B Dionisii Areop VIII 2 In ROVIGHI Sofia Vanni Introduzione a Tommaso DrsquoAquino Bari Laterza 1981 p 12 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoAlcuni ignoranti vogliono combattere in tutti i modi lo studio della filosofia e specialmente fra i Pedicatori dove nessuno resiste loro Sono como animali bruti che imprecano contro quello che ignoranordquo

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aristoteacutelicas natildeo eacute simplesmente instrumental ou natildeo tem por objetivo apenas chegar ao depoacutesito do saber aristoteacutelico para dele retirar o material uacutetil e necessaacuterio para construir o novo edifiacutecio cientiacutefico do saber cristatildeo mas eacute antes um traccedilo essencial da sua atitude geral Tomaacutes procurou ateacute os uacuteltimos anos confrontar-se com o sistema geral das ciecircncias (procurando se manter atualizado tambeacutem a propoacutesito dos textos postos agrave disposiccedilatildeo pelas traduccedilotildees acabadas naqueles mesmos anos) Talvez o conhecimento dos raios e dos terremotos natildeo fosse imediatamente utilizaacutevel nos seus escritos teoloacutegicos mas Tomaacutes ficou convencido (pela sua formaccedilatildeo pessoal pela aprendizagem sob Alberto Magno por sua proacutepria curiosidade intelectual) de que um bom teoacutelogo deveria ser em primeiro lugar um homem de ciecircncia em geral e manter o dever de jamais se subtrair ao confronto com as ciecircncias profanas se natildeo ateacute aprofundar cada uma delas de modo analiacutetico37

Eacute que mdash acrescentariacuteamos ao que diz Porro mdash sendo a

teologia certa participaccedilatildeo na ciecircncia de Deus38 uma vez que Deus quando Se conhece conhece tambeacutem as Suas obras39 pertence ao teoacutelogo sempre para entender melhor a Revelaccedilatildeo 40 e assim assemelhar a teologia menos imperfeitamente agrave ciecircncia de Deus conhecer tambeacutem as Suas obras41 E para conhecer as obras de Deus eacute oportuno que o teoacutelogo se valha das ciecircncias filosoacuteficas

37 PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico pp 293-294 [O itaacutelico eacute nosso] 38 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 1 3 ad 2 ldquo[] ut sic sacra doctrina sit velut quaedam impressio divinae scientiae quae est una et simplex omniumrdquo ldquoIsto faz com que esta ciecircncia apareccedila como impressatildeo da ciecircncia de Deus una e simples com relaccedilatildeo a tudordquo 39 Idem Ibidem I 1 4 C ldquo[] sicut et Deus eadem scientia se cognoscit et ea quae facitrdquo ldquo[] assim como Deus por uma mesma ciecircncia conhece a si proacuteprio e conhece suas obrasrdquo 40 Idem Ibidem I 1 3 ad 2 ldquoEt similiter ea quae in diversis scientiis philosophicis tractantur potest sacra doctrina una existens considerare sub una ratione inquantum scilicet sunt divinitus revelabiliardquo ldquoDa mesma forma a uacutenica ciecircncia sagrada pode considerar sob uma mesma razatildeo isto eacute como objetos de revelaccedilatildeo divina objetos tratados em ciecircncias filosoacuteficas diferentesrdquo 41 Idem Suma contra os gentios II IV 5 [876 b] ldquoEt sic est perfectior utpote Dei cognitioni similior qui seipsum cognoscens alia intueturrdquo ldquoE assim ela [a doutrina da feacute] eacute mais perfeita justamente por ser semelhante ao conhecimento de Deus que ao se conhecer vecirc as outras coisas em si mesmordquo

250 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Mas onde entra mdash nesta visatildeo de teologia mdash o discurso filosoacutefico no que tange especificamente agrave eacutetica 44 A FACE HUMANA DA TEOLOGIA TOMASIANA

Entre as criaturas o homem mdash enquanto pessoa mdash destaca-se como imagem e semelhanccedila de Deus tal como definimos este importante conceito (o de pessoa) no capiacutetulo anterior De fato ser pessoa eacute um atributo que pertence acima de tudo a Deus Tomemos um periacuteodo jaacute citado

Pessoa significa o que haacute de mais perfeito em toda natureza a saber o que subsiste em uma natureza racional Ora tudo o que diz perfeiccedilatildeo deve ser atribuiacutedo a Deus pois sua essecircncia conteacutem em si toda perfeiccedilatildeo Conveacutem portanto atribuir a Deus este nome pessoa Natildeo poreacutem da mesma maneira como se atribui agraves criaturas Seraacute de maneira mais excelente42

Ora se Deus se revelou aos homens por Suas criaturas e

entre estas criaturas o homem eacute a que eacute pessoa mdash atributo que pertence mormente a Deus mdash para entendermos o que este termo significa com maior amplitude importa que estudemos o homem mdash imagem e semelhanccedila de Deus mdash em sua natureza proacutepria isto eacute enquanto ser dotado de razatildeo e livre-arbiacutetrio Pois bem este preacircmbulo acerca do homem eacute tarefa da ldquofilosofia praacuteticardquo e deve integrar o labor do teoacutelogo Eacute assim que Tomaacutes abre a Prima Secundae da Summa Theologiae Voltemos a uma passagem jaacute citada

Afirma Damasceno que o homem eacute criado agrave imagem de Deus enquanto o termo imagem significa o que eacute dotado de intelecto

42 Idem Suma Teoloacutegica I 29 3 C ldquoRespondeo dicendum quod persona significat id quod est perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali natura Unde cum omne illud quod est perfectionis Deo sit attribuendum eo quod eius essentia continet in se omnem perfectionem conveniens est ut hoc nomen persona de Deo dicatur Non tamen eodem modo quo dicitur de creaturis sed excellentiori modo []rdquo

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de livre-arbiacutetrio e revestido por si de poder Apoacutes ter discorrido sobre o exemplar a saber Deus e sobre as coisas que procederam do poder voluntaacuterio de Deus deve-se considerar agora a sua imagem a saber o homem enquanto ele eacute o princiacutepio de suas accedilotildees possuindo livre-arbiacutetrio e domiacutenio sobre suas accedilotildees43

Observemos que o Aquinate soacute aparentemente afasta-se de

Deus quando trata do homem Na verdade Deus continua sendo a uacutenica razatildeo formal que daacute unidade a toda a sua sabedoria teoloacutegica Insistimos ocorre que para se entender a Revelaccedilatildeo de Deus mais amplamente na concepccedilatildeo do Aquinate cumpre entender a Sua criaccedilatildeo sobretudo o homem que eacute imagem e semelhanccedila de Deus Desta forma debruccedilar-se sobre o homem em si mesmo ajuda a amplificar o nosso entendimento do ser pessoa e a conhecer melhor por analogia Deus Carlos Josaphat assim define a teologia de Tomaacutes

Assim se constitui uma teologia antropoloacutegica Eacute o projeto audacioso e humilde de conhecimento do Misteacuterio de Deus enquanto se deixa vislumbrar no que haacute de mais sublime no ser humano na realidade e no dinamismo de seu espiacuterito Este eacute considerado analisado e discernido qual imagem menos improacutepria embora permaneccedila sempre infinitamente distante do Princiacutepio Primeiro e Exemplar da vida do conhecer e do amar 44

Deste modo ao teoacutelogo eacute conveniente conhecer o homem

na sua inteireza Eacute pois conveniente conhececirc-lo do ponto de vista da moral isto eacute conhecer as suas paixotildees e as suas accedilotildees enquanto estas satildeo virtuosas ou viciosas importa consideraacute-lo tambeacutem enquanto ser poliacutetico ou seja enquanto as suas accedilotildees satildeo louvaacuteveis

43 Idem Ibidem I-II Proacutelogo [O segundo itaacutelico eacute nosso] 44 JOSAPHAT Op Cit p 166 [O itaacutelico eacute nosso] NASCIMENTO Carlos Arthur Ribeiro do Um mestre no ofiacutecio Tomaacutes de Aquino Satildeo Paulo Paulus 2011 pp 75-76 ldquoO filoacutesofo alematildeo Ludwig Feuerbach (1804-1872) natildeo deixaria de ter uma ponta de razatildeo ao pretender que a verdade da teologia eacute a antropologia

252 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ou condenaacuteveis enfim eacute conveniente ainda conhecer a oratoacuteria para saber como escusar ou acusar um homem de forma reta

Deve-se dizer que a consideraccedilatildeo das circunstacircncias eacute objeto da moral da poliacutetica e da oratoacuteria Da moral enquanto nela se encontra ou eacute afastado o meio da virtude nos atos humanos e nas paixotildees Da poliacutetica e da oratoacuteria enquanto pelas circunstacircncias o ato torna-se louvaacutevel ou condenaacutevel escusaacutevel ou acusaacutevel Entretanto de modos diversos pois o que o orador persuade o poliacutetico julga Ao teoacutelogo a quem todas as outras artes servem pertence a consideraccedilatildeo das circunstacircncias de todos esses modos Assim com o moralista considera os atos virtuosos e viciosos e com o orador e o poliacutetico considera os atos enquanto merecem pena ou louvor45

Mas natildeo seria mais adequado conhecer a Deus pelo proacuteprio

Deus Sim mas aprouve ao proacuteprio Deus como temos dito revelar-Se a noacutes por meio das Suas criaturas a ponto de o Aquinate dizer que ldquo[] a humanidade de Cristo eacute o caminho pelo qual se vai agrave divindaderdquo46 De resto na perspectiva de Tomaacutes como tambeacutem jaacute notamos isto foi muito oportuno em razatildeo da debilidade do nosso intelecto que soacute se eleva ao inteligiacutevel atraveacutes de adminiacuteculos sensiacuteveis ldquo[] a origem do nosso conhecimento ateacute mesmo das coisas que transcendem os sentidos estaacute nos

45 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 7 2 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod consideratio circumstantiarum pertinet ad moralem et politicum et ad rhetorem Ad moralem quidem prout secundum eas invenitur vel praetermittitur medium virtutis in humanis actibus et passionibus Ad politicum autem et rhetorem secundum quod ex circumstantiis actus redduntur laudabiles vel vituperabiles excusabiles vel accusabiles Diversimode tamen nam quod rhetor persuadet politicus diiudicat Ad theologum autem cui omnes aliae artes deserviunt pertinent omnibus modis praedictis nam ipse habet considerationem de actibus virtuosis et vitiosis cum morali et considerat actus secundum quod merentur poenam vel praemium cum rhetore et politicordquo 46 Idem Compecircndio de Teologia I II 2 [O itaacutelico eacute nosso] ldquoNec mirum quia Christi humanitas via est qua ad divinitatem perveniturrdquo Na ediccedilatildeo biliacutengue traduz-se Idem Ibidem I 2 ldquoNatildeo eacute de admirar porque a humanidade de Cristo eacute o caminho pelo qual se chega agrave divindaderdquo Idem Suma Teoloacutegica I 2 ldquo[] tertio de Christo qui secundum quod homo via est nobis tendendi in Deumrdquo ldquo3 do Cristo que enquanto homem eacute para noacutes o caminho que leva a Deusrdquo [O itaacutelico eacute nosso]

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sentidosrdquo47 Em razatildeo disso pensamos eacute que Tomaacutes considera a humanidade de Cristo como um dos cernes da Revelaccedilatildeo cristatilde ldquo[] todo o conhecimento da feacute resume-se nestas duas verdades na divindade da Trindade e na humanidade de Cristordquo48 A partir desta loacutegica eacute mister estudarmos o homem tal como eacute em sua natureza proacutepria visto que isso nos ajudaraacute mdash ratificamos mdash a conhecermos melhor por analogia Deus que Se revelou a noacutes maximamente enquanto Se fez homem (Jo 1 14) Em outras palavras um correto entendimento do misteacuterio de Cristo passa por um reto conhecimento da natureza humana que ele assumiu49

47 Idem Suma Contra os Gentios I XII 8 [80] ldquoEt sic nostrae cognitionis origo in sensu est etiam de his quae sensum exceduntrdquo 48 Idem Compecircndio de Teologia I II 2 ldquoCirca haec ergo duo tota fidei cognitio versatur scilicet circa divinitatem Trinitatis et humanitatem Christirdquo 49 Sobre a grande relevacircncia filosoacutefica dos problemas levantados em torno da questatildeo teoloacutegica da Encarnaccedilatildeo indicamos o videocurso do filoacutesofo Alain de Libera Este estudioso em 2010 ministrou um curso no Istituto di Filosofia Applicata di Lugano intitulado Lrsquoidentitagrave personale nella filosofia medievale Nas dez liccedilotildees do curso ele demonstra com denodo e pormenorizadamente o quanto deve agraves controveacutersias cristoloacutegicas e trinitaacuterias dos padres gregos e latinos e depois agrave cristologia dos medievais mdash inclusive agrave de Tomaacutes de Aquino mdash o debate moderno e contemporacircneo sobre a identidade pessoal o sujeito a subjetividade o eu etc Aqui transcrevemos e depois traduzimos apenas a Apresentaccedilatildeo do curso LIBERA Alain de Lrsquoidentitagrave personale nella filosofia medievale Disponiacutevel em lthttpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismolidentita-personale-nella-filosofia-medievalegt ldquoLrsquoargomento generale del corso egrave il seguente I concetti il linguaggio teoretico i problemi filosofici dellrsquoidentitagrave non si possono capire senza riferirsi alla storia della teologia cristiana Cioegrave alle genealogie e a lrsquoarcheologia del soggetto e della soggettivitagrave della persona dellrsquoagente dellrsquoIo o dellrsquoEgo La prospettiva contemporanea dipende parzialmente dalle discussioni moderne vale a dire dalle discussioni della teoria lockeana dellrsquoidentitagrave personale questa teoria dipende essa stessa dalla discussione medievale dei problemi della persona di Cristo mdash ad esempio se la persona di Cristo sia composta se la natura umana sia stata unita al Verbo di Dio accidentalmente mdash e sopratutto dalla discussione dei problemi dellunitagrave di Cristo in rapporto alle operazioni Un altro problema teologico quello del battesimo dei gemelli siamesi viene studiato qui sulla base di una questione quodlibetale di Enrico di Gandavo (1281)rdquo ldquoO argumento geral do curso eacute o seguinte os conceitos a linguagem teoacuterica os problemas filosoacuteficos da identidade natildeo se podem compreender sem referimento agrave histoacuteria da teologia cristatilde Isto eacute agraves genealogias e agrave arqueologia do sujeito e da subjetividade da pessoa do agente do eu ou do ego A perspectiva contemporacircnea depende parcialmente das discussotildees modernas vale dizer das discussotildees da teoria lockeana da identidade pessoal esta mesma teoria depende das discussotildees medievais dos problemas da pessoa de Cristo mdash por exemplo se a pessoa de Cristo seja composta se a natureza humana teria sido unida ao Verbo de Deus acidentalmente mdash e sobretudo da discussatildeo dos problemas da unidade de Cristo em relaccedilatildeo agraves operaccedilotildees Outro problema teoloacutegico aquele do batismo dos gecircmeos siameses vem estudado aqui sobre a base de uma questatildeo quodlibetale de Henrique de Gand (1281)rdquo [A traduccedilatildeo eacute nossa]

254 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino Exatamente por isso Battista Mondin aponta para a riqueza do estudo do homem no Aquinate em muito devedor de uma conceptualidade tomada de Aristoacuteteles

Santo Tomaacutes poder ser chamado de humanista e precursor dos humanistas quer porque tem uma concepccedilatildeo altamente positiva do ser humano certamente muito mais positiva do que a dos seus contemporacircneos quer porque promoveu o retorno agrave cultura grega atraveacutes de uma revalorizaccedilatildeo substancial de Aristoacuteteles50

A nosso ver esta visatildeo teoloacutegica coligida acima torna a

teologia de Tomaacutes capaz de abrigar em si uma rede de conceitos estritamente racionais Por isso defendemos que inclusive no acircmbito da eacutetica haacute espaccedilo no Aquinate para pensarmos uma eacutetica filosoacutefica Contudo haacute mais razotildees para o exerciacutecio da racionalidade filosoacutefica na teologia de Tomaacutes 45 OS ldquoPREacuteSTIMOSrdquo DA FILOSOFIA Agrave TEOLOGIA

O Aquinate pensava que as verdades biacuteblicas inobstante fossem todas reveladas nem todas eram essencialmente reveladas senatildeo que algumas foram reveladas somente quanto ao modo pois muitos filoacutesofos chegaram a conhececirc-las Estas verdades mdash pondera o Frade Mendicante mdash embora em si mesmas admissiacuteveis agrave razatildeo foram oportunamente reveladas porque nem todos teriam capacidade tempo ou disposiccedilatildeo para alcanccedilaacute-las e mesmo entre aqueles que as alcanccedilaram natildeo as atingiram sem resquiacutecios de erros E como estatildeo elas relacionadas com a nossa salvaccedilatildeo nosso pensador conclui ldquoEacute necessaacuterio que o homem receba pela feacute natildeo soacute aquilo que supera a razatildeo mas tambeacutem o que pode ser

50 MONDIN Battista O Humanismo Filosoacutefico de Tomaacutes de Aquino Trad Antocircnio Angonese Satildeo Paulo EDUSC 1998 p 7

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conhecido pela razatildeordquo51 E ainda ldquoAssim para que a salvaccedilatildeo chegasse aos homens com mais facilidade e maior garantia era necessaacuterio fossem eles instruiacutedos a respeito de Deus por uma revelaccedilatildeo divinardquo52

No entanto o fato de elas terem sido reveladas natildeo dispensa o teoacutelogo de propocirc-las demonstrativamente isto eacute de reconquistaacute-las com rigor filosoacutefico Assim mdash acresce Tomaacutes mdash ldquo[] a doutrina sagrada usa tambeacutem da autoridade dos filoacutesofos quando por sua razatildeo natural puderam atingir a verdaderdquo53 Demonstrar o que eacute passiacutevel de demonstraccedilatildeo eacute importante agrave proacutepria Revelaccedilatildeo porque eacute uma forma de persuadir ou refutar aqueles que pretendem contradizecirc-la ldquoDeve-se proceder na manifestaccedilatildeo da primeira ordem de verdades [as demonstraacuteveis] por razotildees demonstrativas pelas quais o adversaacuterio possa ser convencidordquo54 A bem da verdade o Aquinate aplicou este princiacutepio mdash certamente de modo diverso mdash nas duas sumas De todo modo torna-se claro que Tomaacutes abre as portas da teologia agrave filosofia com o intento de integrar esta uacuteltima agrave sua sabedoria teoloacutegica

E haacute mais Mesmo no campo das verdades indemonstraacuteveis pela razatildeo haacute espaccedilo para a filosofia porque embora natildeo possamos demonstraacute-las podemos ao menos demonstrar que aqueles que tentam refutaacute-las o fazem por razotildees falaciosas ou natildeo conclusivas Eacute pois mais uma janela que o Aquinate abre agrave filosofia em sua teologia Diz ele

51 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 2 4 C ldquoRespondeo dicendum quod necessarium est homini accipere per modum fidei non solum ea quae sunt supra rationem sed etiam ea quae per rationem cognosci possuntrdquo 52 Idem Ibidem I 1 1 C ldquoUt igitur salus hominibus et convenientius et certius proveniat necessarium fuit quod de divinis per divinam revelationem instruanturrdquo 53 Idem Ibidem I 1 8 ad 2 ldquoEt inde est quod etiam auctoritatibus philosophorum sacra doctrina utitur ubi per rationem naturalem veritatem cognoscere potuerunt []rdquo 54 Idem Suma Contra os Gentios I IX 2 [52] ldquoAd primae igitur veritatis manifestationem per rationes demonstrativas quibus adversarius convinci possit procedendum estrdquo

256 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

De todos esses raciociacutenios conclui-se que quaisquer razotildees que possam ser apresentadas contra as verdades ensinadas pela feacute natildeo procedem corretamente dos primeiros princiacutepios conhecidos por si mesmos e vindos da proacutepria natureza Donde natildeo possuiacuterem forccedila demonstrativa pois natildeo passam de razotildees provaacuteveis ou sofiacutesticas que por si mesmas datildeo motivo para serem destruiacutedas55

Aleacutem destas outras razotildees poderiam ser ainda elencadas

para estabelecerem que a teologia tomasiana abarca uma rica conceptualidade filosoacutefica mas cremos que as que compendiamos sejam suficientes para afirmarmos que natildeo eacute contraditoacuterio pensar que em Tomaacutes haja obras teoloacutegicas repletas de razotildees filosoacuteficas Lima Vaz concebe a sabedoria teoloacutegica do Aquinate como construiacuteda por dois focos

Eacute uma teologia que eacute gerada pela conjugaccedilatildeo de um duplo foco a ciecircncia de Deus comunicada pela revelaccedilatildeo (teologia) e a ciecircncia do homem alcanccedilada pela reflexatildeo autocircnoma (filosofia)56

Sobre a siacutentese teoloacutegico-filosoacutefica de Tomaacutes que resulta

desta conjugaccedilatildeo o mesmo autor remata

A originalidade de santo Tomaacutes consistiu em descobrir que o ponto de vista de Deus e o ponto de vista do homem podem realmente conjugar-se para dar origem a uma visatildeo de mundo coerente e harmoniosa57

55 Idem Ibidem I VII 7 [47 c] ldquoEx quo evidenter colligitur quaecumque argumenta contra fidei documenta ponantur haec ex principiis primis naturae inditis per se notis non recte procedere Unde nec demonstrationis vim habent sed vel sunt rationes probabiles vel sophisticae Et sic ad ea solvenda locus relinquiturrdquo 56 VAZ Henrique Claacuteudio de Lima Escritos de Filosofia I Problemas de Fronteira Rev Marcos Marcionilo Silvana Cobucci 3 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2002 p 32 57 Idem Ibidem

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Portanto se perguntaacutessemos ao mesmo estudioso qual seraacute a filosofia que encontraremos na teologia do Aquinate ele responderia

Eacute sem duacutevida uma filosofia autocircnoma Mas natildeo uma filosofia ldquoisoladardquo que evolui num plano paralelo ou mesmo divergente ao plano da teologia [] Uma filosofia a um soacute tempo autocircnoma e estruturalmente ligada agrave revelaccedilatildeo58

Deste modo retornamos agrave conclusatildeo sendo ldquoautocircnomardquo

podemos ler esta filosofia independentemente da teologia poreacutem como se encontra estruturalmente ligada agrave teologia devemos ter sempre presente mesmo lendo-a em sua inegaacutevel autonomia que ela se encontra integrada agrave teologia Acrescentariacuteamos apenas com Rovighi que esta leitura filosoacutefica autocircnoma de Tomaacutes eacute possiacutevel natildeo soacute em metafiacutesica mas tambeacutem em eacutetica

Mas assim como admitir a insuficiecircncia da metafiacutesica da theologia philosophica natildeo exclui que as verdades metafiacutesicas possam e devam ser justificadas racionalmente assim tambeacutem a insuficiecircncia da eacutetica filosoacutefica natildeo exime do dever de justificar racionalmente as proposiccedilotildees fundamentais da eacutetica59

Creio portanto que como falamos da filosofia de Tomaacutes de Aquino sem entrar por exemplo no discurso sobre a Trindade assim podemos falar da sua eacutetica sem falar das virtudes teologais60

58 Idem Ibidem pp 32-33 59 ROVIGHI Introduzione a Tommaso DrsquoAquino p 111 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoMa como lrsquoammettere lrsquoinsufficienza della metafisica della theologia philosophica non esclude che la veritagrave metafisiche possano e debbano essere giustificate razionalmente cosigrave lrsquoinsufficienza dellrsquoetica filosofica non esime dal dovere di giustificare razionalmente le proposizioni fondamentali dellrsquoeacuteticardquo 60 Idem Ibidem p 112 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCredo dunque che como abbiamo parlato della filosofia di Tommaso drsquoAquino senza entrare per esempio nel discorso sulla Trinitagrave cosigrave possiamo parlare della sua etica senza parlare delle virtugrave teologalirdquo

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Dito isso resta saber o que o Aquinate pretende ao adotar este modo de proceder em teologia A Summa Contra Gentiles faz-nos enxergar muito bem qual o objetivo do nosso pensador 46 O MODO DE PROCEDER DE TOMAacuteS

Esta Summa (1259 Paris mdash 12641265 Itaacutelia) que haacute muito deixou de ser considerada pela criacutetica apenas um manual para missionaacuterios hoje deve ser lida como uma obra pensada para natildeo cristatildeos vale dizer dirigida para que os cristatildeos pudessem debater com os natildeo cristatildeos61 Ora Tomaacutes propotildee nela algo muito semelhante mdash decerto natildeo de todo igual mdash ao que vimos Berti pensar ser o que confere agrave eacutetica de Aristoacuteteles uma atualidade que se impotildee vale lembrar um lugar onde prevaleccedila o que somente a razatildeo pode admitir Diz o Aquinate logo no capiacutetulo II do livro I

[] Porque entre os que erram alguns como os maometanos e os pagatildeos natildeo aceitam como noacutes a autoridade de algum texto das Escrituras pelo qual possam ser convencidos Por meio delas no entanto podemos disputar contra os judeus usando do Velho Testamento e contra os hereacuteticos usando do Novo Mas natildeo o podemos contra quem natildeo aceita nenhum dos dois Por esses motivos deve-se recorrer agrave razatildeo natural com a qual todos satildeo obrigados a concordar62

De fato os trecircs primeiros livros desta obra mdash dos quatro

que a constituem mdash tinham como proposta inicial valerem-se apenas de argumentos racionais demonstrativos e provaacuteveis sendo somente o livro quarto inteiramente dedicado agrave especulaccedilatildeo

61 TORRELL Iniciaccedilatildeo a Santo Tomaacutes de Aquino Sua pessoa e sua obra pp 122-125 62 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Contra os Gentios I II 3 [11] [Os itaacutelicos satildeo nossos] ldquoSecundo quia quidam eorum ut Mahumetistae et Pagani non conveniunt nobiscum in auctoritate alicuius Scripturae per quam possint convinci sicut contra Iudaeos disputare possumus per vetus testamentum contra haereticos per novum Hi vero neutrum recipiunt Unde necesse est ad naturalem rationem recurrere cui omnes assentire cogunturrdquo

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das verdades essencialmente reveladas Eacute o que afirma o proacuteprio Tomaacutes

Pretendendo proceder nesta obra conforme o meacutetodo a que nos propusemos em primeiro lugar envidaremos esforccedilos para o esclarecimento daquela verdade professada pela feacute e investigada pela razatildeo apresentando argumentos demonstrativos e provaacuteveis alguns dos quais fomos buscar nos livros dos filoacutesofos e dos santos e pelos quais a verdade seja confirmada e o adversaacuterio confundido (1 I II e III)63

Porro comentando este passo da obra natildeo se exime de

dizer que tendo em vista os criteacuterios estabelecidos acima pelo autor a Contra Gentiles natildeo deixa de ser tambeacutem uma obra de cunho filosoacutefico

[] como exposiccedilatildeo da verdade da feacute catoacutelica a Suma eacute certamente uma obra teoloacutegica mas como o saacutebio eacute chamado a ilustrar essa verdade e defendecirc-la nos trecircs distintos modos antes lembrados ela eacute ao mesmo tempo tambeacutem uma obra de filosofia mdash natildeo em abstrato mas precisamente segundo os criteacuterios estabelecidos pelo proacuteprio Tomaacutes []64

Eacute certo que a Summa Theologiae natildeo adota a mesma forma

de proceder da Contra Gentiles mas algo segundo a nossa percepccedilatildeo prevalece nas duas quando Tomaacutes potildee-se a filosofar a argumentar como filoacutesofo eacute como filoacutesofo que ele se comporta65 E

63 Idem Ibidem I IX 4 [55] [Os itaacutelicos satildeo nossos] ldquoModo ergo proposito procedere intendentes primum nitemur ad manifestationem illius veritatis quam fides profitetur et ratio investigat inducentes rationes demonstrativas et probabiles quarum quasdam ex libris philosophorum et sanctorum collegimus per quas veritas confirmetur et adversarius convincaturrdquo 64 PORRO Tomaacutes de Aquino um perfil histoacuterico-filosoacutefico p 117 65 Quando se trata de conhecer as verdades naturais Tomaacutes afirma que natildeo eacute necessaacuteria uma iluminaccedilatildeo divina sobrenatural mas somente a luz do intelecto Na verdade a doutrina da unidade do intelecto agente e possiacutevel proclama a autossuficiecircncia do conhecimento humano na sua ordem proacutepria Elimina a necessidade de um intelecto separado ldquodoador de formasrdquo (Avicena) e da iluminaccedilatildeo divina agostiniana TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 109 1 C ldquoSic igitur intellectus humanus habet aliquam formam scilicet ipsum intelligibile lumen quod est de se sufficiens ad quaedam intelligibilia cognoscenda ad ea scilicet in quorum notitiam per sensibilia

260 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino portar-se como filoacutesofo mesmo em uma obra teoloacutegica significa para o Aquinate ser capaz de dizer uma palavra que todos possam entender Disto decorre qual corolaacuterio espontacircneo que ser capaz de dizer uma palavra que todos possam compreender para Tomaacutes eacute tarefa que pertence tambeacutem ao teoacutelogo De posse destes conceitos que satildeo como que os prolegocircmenos pelos quais Aquino deu agrave sua teologia moral condiccedilotildees para comportar um lugar agrave meditaccedilatildeo filosoacutefica podemos passar a expor decerto natildeo toda a eacutetica mas ao menos os conceitos-chave que julgamos serem os pilares da eacutetica filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino

possumus devenire [] Non autem indiget ad cognoscendam veritatem in omnibus nova illustratione superaddita naturali illustrationi []rdquo ldquoDo mesmo modo o intelecto humano tem uma forma determinada isto eacute a luz inteligiacutevel que por si soacute eacute suficiente para conhecer algumas coisas inteligiacuteveis aquelas que podemos adquirir a partir das percepccedilotildees sensiacuteveis [] Mas uma nova iluminaccedilatildeo acrescentada agrave luz natural do intelecto natildeo eacute requerida para conhecer todas as espeacutecies de verdades []rdquo

Capiacutetulo V Toacutepicos da Eacutetica Filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino

Neste capiacutetulo como se deduz do proacuteprio tiacutetulo natildeo eacute nossa intensatildeo expor sistematicamente mas apenas visitar alguns toacutepicos da eacutetica de Tomaacutes O que tencionamos eacute definir os fundamentos desta eacutetica isto eacute aqueles conceitos pelos quais adentramos na concepccedilatildeo eacutetica do Aquinate E pensamos que estes conceitos basilares passam antes de tudo pela sua compreensatildeo de homem porque para Tomaacutes o agir segue o ser Destarte partindo da sua concepccedilatildeo de homem e de que a moral eacute o ser do homem mdash unidade entre alma e corpo mdash buscaremos traccedilar o que eacute virtude para o Aquinate e quais satildeo as virtudes que encabeccedilam a sua eacutetica sempre procurando tipificar com algumas aplicaccedilotildees praacuteticas estas virtudes Tentemos primeiramente definir o que eacute o homem para Aquino 51 O QUE Eacute O HOMEM

Para respondermos a esta questatildeo precisamos perceber com que alento Tomaacutes se esforccedila para pensar o homem como uma unidade substancial entre alma e corpo Comecemos por distinguir uniatildeo acidental de uniatildeo substancial A uniatildeo acidental eacute aquela que se daacute entre a substacircncia e os seus acidentes Nela a uniatildeo natildeo passa da existecircncia de uma entidade em outra Jaacute a uniatildeo substancial consiste na composiccedilatildeo de dois seres que tomados separadamente permanecem incompletos mas que unidos completam-se formando um soacute ser Ora a uniatildeo substancial eacute a que se daacute entre forma e mateacuteria eacute a uniatildeo existente entre alma e corpo1 Para Tomaacutes no homem em consequecircncia desta unidade substancial entre alma e corpo realiza-se uma uniatildeo tatildeo intriacutenseca entre as accedilotildees e o sujeito delas que os atos das suas faculdades

1 BOEHNER GILSON Histoacuteria Da Filosofia Cristatilde Desde as Origens ateacute Nicolau de Cusa p 468

262 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino (isto eacute das faculdades do sujeito da accedilatildeo) tanto das sensiacuteveis quanto das inteligiacuteveis satildeo chamados atos da pessoa e natildeo simplesmente das faculdades Assim quando saboreio uma maccedilatilde natildeo eacute o meu paladar que a saboreia mas sou eu quem por meio do meu paladar saboreia-a Quando quero fazer uma coisa natildeo eacute a minha vontade que quer mas sou eu quem quer realizar determinada accedilatildeo Do mesmo modo se o meu intelecto conhece algo natildeo eacute o meu intelecto que conhece simplesmente mas sou eu quem por meio do meu intelecto conhece2 Nos exemplos citados embora as accedilotildees sejam realizadas por um ldquoquerdquo elas devem ser atribuiacutedas e reduzidas a um ldquoquemrdquo ou seja por meio das faculdades eacute o sujeito a pessoa quem age3

Levando em consideraccedilatildeo a exposiccedilatildeo jaacute feita passemos a indagar o que levou Tomaacutes a natildeo se encontrar entre aqueles que sustentavam (o platonismo e a corrente dos agostinistas) que somente a forma entra na razatildeo da espeacutecie Acontece que para o Aquinate a razatildeo da espeacutecie eacute dada pela definiccedilatildeo E a definiccedilatildeo natildeo contempla apenas a forma mas tambeacutem a mateacuteria Assim nos seres naturais a mateacuteria tambeacutem eacute algo que os torna especiacuteficos Eacute claro que natildeo falamos aqui da mateacuteria assinalada que eacute princiacutepio

2 VAZ Henrique C de Lima Vaz Experiecircncia Miacutestica e Filosofia na Tradiccedilatildeo Ocidental Rev Cristina Peres Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000 p 12 ldquoA ordem que deve reinar no mundo das experiecircncias humanas supotildee evidentemente a unidade na diferenccedila do nosso ser segundo a qual em cada uma das nossas operaccedilotildees estaacute empenhada a unidade total do sujeito segundo o princiacutepio enunciado por Tomaacutes de Aquino lsquoNatildeo eacute o intelecto que entende mas o homem por meio do intelectorsquordquo [O itaacutelico eacute nosso] 3 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 3 8 C ldquoQuod autem venit in compositionem alicuius non est primo et per se agens sed magis compositum non enim manus agit sed homo per manum []rdquo ldquoOra o que entra como parte num composto natildeo eacute o que age primeiro e por si mesmo eacute antes o composto Assim natildeo eacute a matildeo que age eacute o homem por sua matildeo []rdquo BARROS Manuel Correcirca de Liccedilotildees de Filosofia Tomista Disponiacutevel em lthttpwwwmicrobookstudioorgmcbarroshtmgt Acesso em 19082017 ldquoO homem natildeo eacute como os Anjos um ser puramente espiritual Tem um corpo material extenso composto de partes diferenciadas Esse corpo natildeo eacute um simples agregado acidental das partes que o compotildeem Uma observaccedilatildeo atenta da nossa maneira de ser convence-nos de que ele tem unidade substancial Sou eu por exemplo que me nutro sou eu que me movo sou eu que sinto eacute a mim que doacutei quando me magocirco na matildeo e natildeo agrave matildeo que magoei Satildeo meus todos os oacutergatildeos do meu corpo meus todos os atos que eles executam Sou eu que existo em mim mesmo plenamente eacute para a minha vida que estatildeo dispostas todas as partes do corpo sou no sentido que a palavra tem em metafiacutesica uma substacircnciardquo

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de individuaccedilatildeo nos seres mas da mateacuteria comum que se encontra em todos os seres de uma espeacutecie4 Aplicando estes princiacutepios ao homem podemos concluir que se natildeo eacute da razatildeo de homem ter esta alma esta carne e estes ossos faz parte da natureza humana ter alma carne e ossos5 Portanto a alma natildeo eacute o homem Diz Tomaacutes ldquoA alma [] natildeo eacute todo o homem minha alma natildeo sou eurdquo6 Noutra obra completa ldquo[] o homem natildeo se identifica nem com o seu corpo nem com a sua almardquo7 Entatildeo o que eacute o homem Responde o Aquinate ldquo[] o homem resulta da uniatildeo da alma com o corpordquo8 A natureza humana ldquo[] se mostra composta de alma e corpo []rdquo9

Mas compreendamos bem natildeo se trata de um ldquodualismordquo o homem eacute um todo uno que procede da uniatildeo substancial entre alma e corpo ldquo[] eacute necessaacuterio que da alma e do corpo se faccedila um todo uno e que natildeo sejam diversos quanto ao serrdquo10 Em outras

4 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 75 4 C ldquoUnde materia est pars speciei in rebus naturalibus non quidem materia signata quae est principium individuationis sed materia communisrdquo ldquoPor isso a mateacuteria eacute parte especiacutefica nas coisas naturais natildeo a mateacuteria assinalada que eacute o princiacutepio da individuaccedilatildeo mas a mateacuteria comumrdquo 5 Idem Ibidem ldquoSicut enim de ratione huius hominis est quod sit ex hac anima et his carnibus et his ossibus ita de ratione hominis est quod sit ex anima et carnibus et ossibusrdquo ldquoAssim como eacute da razatildeo deste homem ter esta alma estas carnes e estes ossos assim tambeacutem eacute da razatildeo de homem ter alma carnes e ossosrdquo 6 TOMAacuteS DE AQUINO Super I Cor 15 lect 2 Disponiacutevel em lthttpwwwcorpusthomisticumorgc1vhtmlgt [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] anima autem cum sit pars corporis hominis non est totus homo et anima mea non est egordquo Com a morte o homem deixa de ser homem em virtude da separaccedilatildeo de alma e corpo Idem Suma Teoloacutegica III 50 4 C ldquoPertinet autem ad veritatem mortis hominis vel animalis quod per mortem desinat esse homo vel animal mors enim hominis vel animalis provenit ex separatione animae quae complet rationem animalis vel hominisrdquo ldquoOra eacute na verdade proacuteprio da morte de um homem ou animal que pela morte deixe de ser homem ou animal pois a morte do homem ou do animal proveacutem da separaccedilatildeo da alma que eacute a que completa a razatildeo de animal ou de homemrdquo 7 Idem Suma Contra os Gentios II LXXXIX 16 [1752] ldquo[] non enim homo est suum corpus neque sua animardquo 8 Idem Ibidem II LVII 2 [1327] ldquoEx unione autem animae et corporis fit homordquo 9 Idem Ibidem II LVII 1 [1326] ldquo[] ex anima intellectuali et corpore videtur esse compositus []rdquo 10 Idem Ibidem II LVII 4 [1331] ldquo[] portet igitur ex anima et corpore unum fieri et quod non sint secundum esse diversardquo Idem Suma Teoloacutegica I 76 7 ad 3 ldquoSed inquantum anima est forma corporis non habet esse seorsum ab esse corporis sed per suum esse corpori unitur immediaterdquo

264 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino palavras natildeo eacute que exista de um lado a alma e de outro o corpo Para entendermos isso eacute preciso que recorramos agraves noccedilotildees basilares de ato e potecircncia pois para Tomaacutes ldquo[] a potecircncia e o ato dividem o ente e qualquer gecircnero de ente []rdquo11 Mas o que eacute ato e potecircncia A rigor natildeo se pode defini-los senatildeo descrevecirc-los Assim o ato designa o que jaacute eacute algo o jaacute realizado e acabado enquanto a potecircncia eacute o que ainda natildeo eacute algo mas tem a capacidade de vir a secirc-lo em ato Por exemplo a imagem a ser esculpida na madeira estaacute em potecircncia nela e a imagem jaacute esculpida estaacute em ato 12 Por isso quem diz potecircncia diz indeterminaccedilatildeo e imperfeiccedilatildeo quem diz ato diz determinaccedilatildeo e perfeiccedilatildeo Na antropologia tomasiana o binocircmio ato e potecircncia eacute aplicado sob a formulaccedilatildeo de forma e mateacuteria A alma humana eacute a forma do corpo13 ela eacute o ato que daacute unidade e vida a um agregado de mateacuteria tornando-o um corpo humano14 Isto quer dizer que

ldquoMas enquanto forma do corpo a alma natildeo tem o ser separadamente do ser do corpo mas estaacute unida a ele por seu serrdquo 11 Idem Ibidem I 77 1 C ldquoPrimo quia cum potentia et actus dividant ens et quodlibet genus entis []rdquo 12 TOMAacuteS DE AQUINO Sententia libri Metaphysicae Lib 9 5 n 3 In GARDEIL Henri-Dominique Iniciaccedilatildeo agrave filosofia de satildeo Tomaacutes de Aquino psicologia e metafiacutesica Trad Cristiane Negreiros Abbud Ayoub Carlos Eduardo de Oliveira 2 ed Satildeo Paulo 2013 p 480 ldquoSecundo ibi est autem determinat de actu Et primo ostendit quid sit actus Secundo quomodo diversimode dicatur in diversis ibi dicuntur autem actu Circa primum duo facit Primo ostendit quid est actus dicens quod actus est quando res est nec tamen ita est sicut quando est in potentia Dicimus enim in ligno esse imaginem Mercurii potentia et non actu antequam lignum sculpatur sed si sculptum fuit tunc dicitur esse in actu imago Mercurii in lignordquo ldquoAristoacuteteles mostra de iniacutecio o que eacute o ato O ato eacute quando uma coisa eacute natildeo entretanto como quando ela estaacute em potecircncia Dizemos com efeito que a imagem de Mercuacuterio estaacute em potecircncia e natildeo em ato na madeira antes que esta seja esculpida uma vez esculpida dizemos entatildeo que a imagem de Mercuacuterio estaacute em ato na madeirardquo 13 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 76 7 C ldquo[] tum etiam quia anima immediate corpori unitur ut forma materiaerdquo ldquo[] seja porque enfim a alma se une imediatamente ao corpo como a forma agrave mateacuteriardquo 14 Idem Ibidem I 76 1 C ldquoEt cum vita manifestetur secundum diversas operationes in diversis gradibus viventium id quo primo operamur unumquodque horum operum vitae est anima anima enim est primum quo nutrimur et sentimus et movemur secundum locum et similiter quo primo intelligimusrdquo ldquoOra eacute claro que o primeiro pelo qual um corpo vive eacute a alma E como a vida se revela pelas diversas atividades conforme os diversos graus dos seres vivos aquilo pelo qual por primeiro realizamos cada uma dessas operaccedilotildees vitais eacute a alma Ela eacute pois o primeiro pelo qual nos alimentamos e sentimos pelo qual nos movemos localmente e igualmente pelo qual por primeiro conhecemosrdquo

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sem alma natildeo haacute corpo haacute uma agregaccedilatildeo de mateacuteria em potecircncia para ser um corpo um cadaacutever por exemplo natildeo eacute mais um corpo humano A bem dizer natildeo existe a querela de como a alma se une ao corpo pois o corpo natildeo preexiste agrave alma nem a alma ao corpo sendo que eacute da essecircncia da alma estar unida ao corpo como seu ato15

Pois bem toda a eacutetica tomasiana eacute construiacuteda a partir desta rica concepccedilatildeo de natureza humana Para Tomaacutes a moral pressupotildee o natural Afirma ele ldquo[] as coisas naturais satildeo pressupostas pelas moraisrdquo16 Por isso em Aquino a moral eacute o ser do homem Daiacute ele dizer que a accedilatildeo humana ldquo[] nas coisas morais ordena-se para o fim comum de toda vida humanardquo17 De sorte que diferentemente das coisas relacionadas agrave arte onde o erro diz respeito apenas a um fim particular a saber agrave obra a ser feita em se tratando de moral mdash quando o erro implica o desvio do que eacute consoante a natureza humana enquanto tal mdash ldquo[] o

15 Idem Ibidem I 75 7 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod corpus non est de essentia animae sed anima ex natura suae essentiae habet quod sit corpori unibilisrdquo ldquoDeve-se dizer que o corpo natildeo eacute da essecircncia da alma mas a alma pela natureza da sua essecircncia eacute capaz de ser unir ao corpordquo BARROS Op Cit ldquoA alma e o corpo natildeo satildeo dois seres distintos satildeo princiacutepios distintos do mesmo ser Natildeo haacute dum lado a alma do outro um corpo com existecircncia separada da da alma Sem a alma natildeo haacute um corpo haacute a mateacuteria que compocircs ou vai compor um corpo humano mas dominada por outras formas constituindo outras substacircncias Um cadaacutever natildeo eacute um corpo humano eacute um agregado acidental de ceacutelulas sem unidade essencial Cada uma das suas partes segue a sua evoluccedilatildeo proacutepria independentemente das outras sem se subordinar a nenhuma lei que regule o conjunto Eacute a alma o princiacutepio de unidade do corpo humano eacute elemento indispensaacutevel agrave sua existecircncia como corpo a da sua uniatildeo ao corpo eacute questatildeo que natildeo existerdquo Para uma exposiccedilatildeo clara e sucinta sobre a questatildeo da uniatildeo alma e corpo veja ainda a intervenccedilatildeo de Franccedilois-Xavier Putallaz PUTALLAZ Franccedilois-Xavier Lunion de lacircme et du corps Disponiacutevel em lt httpswwwyoutubecomwatchv=mTZCN50VOXMampindex=5amplist=PLoF9tICw5xHMFru4TuxUim_cLoO6fHgphgt Para o nosso trabalho natildeo nos parece necessaacuterio colocar as questotildees filosoacuteficas de Deus (Ato Puro) que cria a alma humana e da imortalidade da alma que se baseia no fato de ela possuir um ato a saber a intelecccedilatildeo da essecircncia das coisas materiais que natildeo depende de nenhum oacutergatildeo corpoacutereo Acerca da imortalidade da alma pode ser consultada com proveito outra intervenccedilatildeo de Putallaz PUTALLAZ Franccedilois-Xavier Lacircme est-elle immortelle Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=NHMkPtA9v40ampindex=4amplist=PLoF9tICw5xHMFru4TuxUim_cLoO6fHgphgt 16 TOMAacuteS DE AQUINO A Caridade a Correccedilatildeo Fraterna e a Esperanccedila 3 1 ad 5 ldquoAd quintum dicendum quod naturalia praesupponuntur moralibus []rdquo 17 Idem Suma Teoloacutegica I-II 21 2 ad 2 ldquoIn moralibus autem ordinatur ad finem communem totius humanae vitaerdquo

266 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino homem eacute culpado enquanto homemrdquo18 Ora desta concepccedilatildeo resulta uma eacutetica encarnada ou melhor uma eacutetica que integra alma e corpo Seria o caso de primeiro definir formalmente as paixotildees depois o haacutebito em seguida a virtude e o viacutecio para finalmente passar aos exemplos Poreacutem por uma opccedilatildeo didaacutetica optamos comeccedilar por uma ldquofenomenologiardquo da vida eacutetica enquanto vida humana Soacute entatildeo passaremos a abordar formalmente as paixotildees o haacutebito e as virtudes cardeais 52 A EacuteTICA INTEGRADA DE TOMAacuteS

Como o homem natildeo eacute a sua alma mas um todo uno que resulta da uniatildeo entre alma e corpo o agir do homem mdash se quiser seguir o seu ser19 mdash se quiser ser um agir propriamente humano uma vez que ldquo[] o modo de agir de toda coisa eacute uma consequecircncia de seu modo de existirrdquo20 natildeo deveraacute levar em conta apenas a alma Sob este ponto de vista um homem que quisesse viver como um ldquoanjordquo mdash na concepccedilatildeo de Tomaacutes mdash longe de se tornar um ldquoanjordquo ou propriamente um homem tornar-se-ia ao contraacuterio algueacutem aqueacutem ou aleacutem do que deveria ser21 Ele cita Aristoacuteteles

18 Idem Ibidem ldquo[] culpatur homo inquantum homo []rdquo 19 Idem Suma Contra os Gentios III LXIX 10 [2450] ldquo[] o agir segue o ser em ato []rdquo 20 Idem Suma Teoloacutegica I 89 1 C ldquo[] modus operandi uniuscuiusque rei sequitur modum essendi ipsiusrdquo 21 A propoacutesito do estado da alma quando separada do corpo pela morte o Aquinate mesmo defendendo a imortalidade da alma afirma que enquanto estiver separada do corpo a alma se encontraraacute num estado antinatural Idem Ibidem I 89 1 C ldquo[] sed esse separatum a corpore est praeter rationem suae naturae []rdquo ldquoMas ser separada do corpo estaacute aleacutem de sua natureza []rdquo Noutro passo Tomaacutes eacute ainda mais incisivo Idem Ibidem I 118 3 C ldquoSi enim animae naturale est corpori uniri esse sine corpore est sibi contra naturam et sine corpore existens non habet suae naturae perfectionemrdquo ldquoSe para a alma eacute natural estar unida ao corpo estar sem o corpo seria contraacuterio a sua natureza sendo que uma alma sem corpo natildeo possuiria a perfeiccedilatildeo de sua naturezardquo Em outro lugar ele volta a dizer Idem Suma Contra os Gentios IV LXXIX 8 [4135] ldquoManifestum est etiam ex his quae in secundo dicta sunt quod anima corpori naturaliter unitur est enim secundum suam essentiam corporis forma Est igitur contra naturam animae absque corpore esse Nihil autem quod est contra naturam potest esse perpetuumrdquo ldquoDepreende-se tambeacutem do que no mesmo livro estaacute escrito que a alma se une naturalmente ao corpo pois eacute essencialmente forma do

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[] Como diz o livro I da Eacutetica O homem nesta vida precisa das coisas necessaacuterias para o corpo tanto para a accedilatildeo das potecircncias contemplativas como para a accedilatildeo das potecircncias ativas para as quais muitas outras coisas satildeo exigidas pelas quais se exercem as obras da potecircncia ativa22

Neste sentido a insensibilidade ou a ldquocastraccedilatildeordquo de todos

os prazeres eacute mdash para o Aquinate mdash um viacutecio contra a razatildeo

Deve-se dizer que como natildeo pode o homem usar a razatildeo sem recorrer agraves potecircncias sensitivas que precisam de oacutergatildeos corpoacutereos conforme se estabeleceu na I Parte segue-se daiacute a necessidade de que ele sustente o seu corpo para poder se servir da razatildeo Ora esse sustento realiza-se mediante accedilotildees que proporcionam prazer Natildeo pode entatildeo existir o bem da razatildeo no homem se ele se abstiver de todos os prazeres23

Tomaacutes afirma que natildeo se privar de certos prazeres como

alimentaccedilatildeo bebida etc eacute uma exigecircncia da natureza humana na medida em que estes e outros atos satildeo necessaacuterios para manter a sauacutede do homem Assim mdash exemplifica o Aquinate mdash natildeo eacute somente a embriaguez que eacute um viacutecio mas tambeacutem o seu contraacuterio Por exemplo ldquo[] se algueacutem se abstivesse conscientemente do vinho a ponto de prejudicar a proacutepria sauacutede

corpo Por conseguinte eacute contraacuterio agrave natureza da alma estar fora do corpordquo Ora se eacute contra a natureza e perfeiccedilatildeo da alma estar separada do corpo uma eacutetica que tolha a sensibilidade eacute contraacuteria agrave natureza e agrave perfeiccedilatildeo do homem Assim Tomaacutes insere o prazer inclusive corporal no acircmago da vida eacutetica distanciando-se por exemplo do estoicismo inobstante recorra a fontes estoicas Aliaacutes ele conhece e distingue o estoicismo da tradiccedilatildeo aristoteacutelica optando por esta uacuteltima Conhecida eacute a sua sentenccedila Idem Suma Teoloacutegica I-II 34 1 C ldquo[] nullus possit vivere sine aliqua sensibili et corporali delectatione []rdquo ldquo[] ningueacutem pode viver sem algum prazer sensiacutevel e corporal []rdquo 22 Idem Ibidem I-II 4 7 C ldquo[] ut dicitur in I Ethic Indiget enim homo in hac vita necessariis corporis tam ad operationem virtutis contemplativae quam etiam ad operationem virtutis activae ad quam etiam plura alia requiruntur quibus exerceat opera activae virtutisrdquo 23 Idem Ibidem II-II 142 1 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod quia ratione homo uti non potest sine sensitivis potentiis quae indigent organo corporali ut in primo habitum est necesse est quod homo sustentet corpus ad hoc quod ratione utatur Sustentatio autem corporis fit per operationes delectabiles Unde non potest esse bonum rationis in homine si abstineat ab omnibus delectabilibusrdquo

268 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino natildeo estaria isento de pecadordquo24 Outrossim natildeo eacute soacute a luxuacuteria que eacute um viacutecio mas tambeacutem o seu oposto Por exemplo o cocircnjuge que se recusar com pertinaacutecia a manter uma vida sexual ativa comete pecado25 De maneira que se abster de todo prazer necessaacuterio para o sustento da vida eacute um ato contra a razatildeo um viacutecio e os que o cometem natildeo satildeo ldquoascetasrdquo mas rudes ldquoDeve-se dizer que quem se absteacutem de todos os prazeres sem seguir a reta razatildeo como se eles por si mesmos lhe incutissem horror eacute insensiacutevel e ruderdquo26

Tudo o que contraria a ordem natural eacute vicioso Ora a natureza ajuntou o prazer agraves atividades necessaacuterias agrave vida do homem [] Portanto pecaria quem evitasse os prazeres sensiacuteveis a ponto de desprezar o que eacute necessaacuterio agrave conservaccedilatildeo da natureza contrariando assim a ordem natural Nisto consiste o viacutecio da insensibilidade27

Percebe-se bem esta integraccedilatildeo entre ldquoalma e corpordquo

tambeacutem na relaccedilatildeo que o Aquinate estabelece entre estudiosidade e eutrapelia Assim como o homem precisa de repouso para refazer as forccedilas do corpo que tem uma potecircncia limitada e natildeo pode

24 Idem Ibidem II-II 150 1 ad 1 ldquoEt tamen si quis scienter in tantum a vino abstineret ut naturam multum gravaret a culpa immunis non essetrdquo 25 Idem Ibidem II-II 153 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod oppositum luxuriae non contingit in multis eo quod homines magis sint proni ad delectationes Et tamen oppositum vitium continetur sub insensibilitate Et accidit hoc vitium in eo qui in tantum detestatur mulierum usum quod etiam uxori debitum non redditrdquo ldquoDeve-se dizer que o viacutecio oposto agrave luacutexuria natildeo eacute comum porque os homens satildeo mais inclinados agrave luacutexuria mesmo Entretanto esse viacutecio oposto existe Eacute a insensibilidade que estaacute presente naqueles que rejeitam de tal modo unir-se a uma mulher que natildeo cumprem sequer o deacutebito conjugalrdquo 26 Idem Ibidem II-II 152 2 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod ille qui abstinet ab omnibus delectationibus praeter rationem rectam quasi delectationes secundum se abhorrens est insensibilis sicut agricolardquo 27 Idem Ibidem II-II 142 1 C ldquoRespondeo dicendum quod omne illud quod contrariatur ordini naturali est vitiosum Natura autem delectationem apposuit operationibus necessariis ad vitam hominis Et ideo naturalis ordo requirit ut homo intantum huiusmodi delectationibus utatur quantum necessarium est saluti humanae vel quantum ad conservationem individui vel quantum ad conservationem speciei Si quis ergo intantum delectationem refugeret quod praetermitteret ea quae sunt necessaria ad conservationem naturae peccaret quasi ordini naturali repugnans Et hoc pertinet ad vitium insensibilitatisrdquo

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trabalhar sem parar assim tambeacutem a alma por possuir uma capacidade limitada natildeo se pode entregar ininterruptamente agraves operaccedilotildees que lhe satildeo proacuteprias sem descanso algum28 Aleacutem disso nas atividades racionais natildeo eacute somente a alma que se desgasta mas tambeacutem o corpo Com efeito a potecircncia intelectiva se serve das potecircncias sensitivas que operam por meio dos oacutergatildeos corporais para conhecer29 Ora os bens sensiacuteveis satildeo conaturais ao homem30 Por isso abstrair-se deles gera cansaccedilo Assim sendo do mesmo modo que o corpo se desgasta quando se prolonga em atividades superiores tambeacutem a alma agrave medida que se eleva acima das coisas sensiacuteveis pela operaccedilatildeo da razatildeo eacute acometida por uma espeacutecie de ldquofadiga psiacutequicardquo decorrente tanto do exerciacutecio da razatildeo especulativa quanto do da razatildeo praacutetica E esta fadiga passa a ser ainda maior quando a alma se dedica agrave contemplaccedilatildeo pois enquanto contempla ela se afasta sobremaneira das coisas sensiacuteveis31 De mais a mais da mesma maneira que a fadiga corporal desaparece pelo repouso corporal a fadiga mental pelo

28 Idem Ibidem II-II 168 2 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut homo indiget corporali quiete ad corporis refocillationem quod non potest continue laborare propter hoc quod habet finitam virtutem quae determinatis laboribus proportionatur ita etiam est ex parte animae cuius etiam est virtus finita ad determinatas operationes proportionata []rdquo ldquoAssim como o homem precisa de repouso para refazer as forccedilas do corpo que natildeo pode trabalhar sem parar pois tem resistecircncia limitada proporcional a determinadas tarefas assim tambeacutem a alma cuja capacidade tambeacutem eacute limitada e proporcional a determinadas operaccedilotildeesrdquo 29 Idem Ibidem ldquo[] quando ultra modum suum in aliquas operationes se extendit laborat et ex hoc fatigatur praesertim quia in operationibus animae simul etiam laborat corpus inquantum scilicet anima etiam intellectiva utitur viribus per organa corporea operantibusrdquo ldquoPortanto quando realiza certas atividades superiores agrave sua capacidade ela se desgasta e se cansa sobretudo porque nessas atividades o corpo se consome juntamente pois a proacutepria alma intelectiva se serve de potecircncias que operam por meio dos oacutergatildeos corporaisrdquo 30 Idem Ibidem ldquoSunt autem bona sensibilia connaturalia hominirdquo ldquoOra os bens sensiacuteveis satildeo conaturais ao homemrdquo 31 Idem Ibidem ldquoEt ideo quando anima supra sensibilia elevatur operibus rationis intenta nascitur exinde quaedam fatigatio animalis sive homo intendat operibus rationis practicae sive speculativae Magis tamen si operibus contemplationis intendat quia per hoc magis a sensibilibus elevatur []rdquo ldquoPor isso quando a alma se eleva sobre o sensiacutevel para se dedicar a atividades racionais gera-se aiacute certa fadiga psiacutequica seja nas atividades da razatildeo praacutetica seja nas da razatildeo especulativa Mas a fadiga eacute maior quando o homem se entrega agrave atividade contemplativa porque eacute assim que ele se eleva ainda mais sobre as coisas sensiacuteveis []rdquo

270 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino repouso mental E o repouso mental acontece no que eacute deleitaacutevel Donde ser necessaacuterio reiteramos para o bem da proacutepria atividade racional buscar o remeacutedio para a fadiga da alma e do corpo em algum prazer que afrouxe o esforccedilo do estudo racional32 E esta espeacutecie de prazer que dilata a alma e descansa o corpo ambos riacutegidos pela intensa atividade racional chama-se divertimento ou recreaccedilatildeo 33 Acentua Tomaacutes que estas recreaccedilotildees satildeo sempre necessaacuterias de quando em quando tendo em vista o repouso da alma e do corpo34 Mais do que isto como jaacute acenamos acima este tipo de divertimento que relaxa a alma e o corpo para o Aquinate eacute uma virtude tanto quanto o eacute a estudiosidade Aristoacuteteles chama esta virtude eutrapelia E quem pratica quando necessaacuterio estas recreaccedilotildees eacute virtuoso e pode ser chamado eutrapeacutelico porque consegue converter atos e palavras em diversatildeo repousante35 Por

32 Idem Ibidem ldquoSicut autem fatigatio corporalis solvitur per corporis quietem ita etiam oportet quod fatigatio animalis solvatur per animae quietem Quies autem animae est delectatio [] Et ideo oportet remedium contra fatigationem animalem adhibere per aliquam delectationem intermissa intentione ad insistendum studio rationisrdquo ldquoOra assim como a fadiga corporal desaparece pelo repouso do corpo assim tambeacutem eacute preciso que o cansaccedilo mental se dissipe pelo repouso mental O repouso da mente eacute o prazer [] Daiacute a necessidade de buscar remeacutedio agrave fadiga da alma em algum prazer afrouxando o esforccedilo do labor mentalrdquo 33 Idem Ibidem ldquoHuiusmodi autem dicta vel facta in quibus non quaeritur nisi delectatio animalis vocantur ludicra vel iocosardquo ldquoEssas palavras e accedilotildees nas quais natildeo se busca senatildeo o prazer da alma chamam-se divertimentos ou recreaccedilotildeesrdquo Idem Suma Contra os Gentios III XXV 7 [2063] ldquoNam etiam ipsae actiones ludicrae quae videntur absque fine fieri habent aliquem finem debitum scilicet ut per eas quodammodo mente relevati magis simus postmodum potentes ad studiosas operationes []rdquo ldquoAssim eacute que as proacuteprias accedilotildees luacutedicas que parecem natildeo se dirigir para um fim determinado tecircm o seu fim devido a saber que por meio delas a mente se distraia e apoacutes possa o homem estar mais apto para operaccedilotildees mais difiacuteceisrdquo 34 Idem Suma Teoloacutegica II-II 168 2 C ldquoEt ideo necesse est talibus interdum uti quasi ad quandam animae quietemrdquo ldquoLanccedilar matildeo delas de quando em quando eacute uma necessidade para o descanso da almardquo 35 Idem Ibidem II-II 168 2 C ldquoHabitus autem secundum rationem operans est virtus moralis Et ideo circa ludos potest esse aliqua virtus quam philosophus eutrapeliam nominat Et dicitur aliquis eutrapelus a bona versione quia scilicet bene convertit aliqua dicta vel facta in solatiumrdquo ldquoPortanto pode haver uma virtude que se ocupe com os jogos virtude que o Filoacutesofo denomina lsquoeutrapeliarsquo E quem a pratica eacute chamado de lsquoeutrapeacutelicorsquo ou de lsquojeito bomrsquo porque facilmente ajeita palavras e atos em diversatildeo repousanterdquo Tomaacutes fala ainda que sendo as accedilotildees luacutedicas necessaacuterias agrave vida aqueles que fazem do luacutedico uma profissatildeo a saber os comediantes desde que natildeo faltem com o decoro devem ser respeitados e subsidiados pois ganham a vida honestamente Idem Ibidem II-II 168 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod sicut dictum est ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae Ad omnia autem quae sunt utilia conversationi humanae deputari possunt aliqua

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outro lado quem natildeo brinca natildeo conta nenhuma piada e natildeo gosta de quem o faccedila natildeo eacute aos olhos de Tomaacutes um ldquointelectualrdquo antes atenta contra a virtude da estudiosidade pois insiste em permanecer e fazer com que os outros permaneccedilam enrijecidos pelo cansaccedilo Trata-se pois de uma pessoa dura e mal-educada

Nas accedilotildees humanas tudo o que vai contra a razatildeo eacute vicioso Ora eacute contra a razatildeo ser um peso para os outros natildeo lhes proporcionando por exemplo nenhum prazer e impedindo o prazer deles [] Ora os que se privam de toda diversatildeo nem eles dizem pilheacuterias e satildeo molestos aos que as dizem natildeo aceitando brincadeiras normais dos outros E por isso tais pessoas satildeo viciosas ldquoduras e mal-educadasrdquo como diz o Filoacutesofo36

Mesmo os que se dedicam agrave contemplaccedilatildeo das coisas

divinas e que devem ser louvados por conseguirem abster-se de muitos prazeres natildeo se podem abster de todos os prazeres Por exemplo o viacutecio da aciacutedia mdash que tolhe a contemplaccedilatildeo mdash eacute causado por um jejum excessivo

Assim toda deficiecircncia corporal por si mesma dispotildee agrave tristeza por isso os que jejuam quando pelo meio-dia comeccedilam a sentir

officia licita Et ideo etiam officium histrionum quod ordinatur ad solatium hominibus exhibendum non est secundum se illicitum nec sunt in statu peccati dummodo moderate ludo utantur idest non utendo aliquibus illicitis verbis vel factis ad ludum et non adhibendo ludum negotiis et temporibus indebitis [] Unde illi qui moderate eis subveniunt non peccant sed iusta faciunt mercedem ministerii eorum eis attribuendordquo ldquoDeve-se dizer que na vida humana o jogo eacute uma necessidade Ora a tudo o que serve agrave existecircncia humana correspondem algumas ocupaccedilotildees honestas entre as quais a dos comediantes Destinada a distrair as pessoas esta profissatildeo nada tem em si de iliacutecito nem vivem em pecado os comediantes se agirem com moderaccedilatildeo ou seja sem palavras ou accedilotildees iliacutecitas nem levando na brincadeira assuntos e situaccedilotildees inadequadas para isso [] Por isso os que os subsidiam razoavelmente natildeo pecam mas procedem com justiccedila recompensando-lhes o serviccedilordquo 36 Idem Ibidem II-II 168 4 C ldquoRespondeo dicendum quod omne quod est contra rationem in rebus humanis vitiosum est Est autem contra rationem ut aliquis se aliis onerosum exhibeat puta dum nihil delectabile exhibet et etiam delectationes aliorum impedit [] Illi autem qui in ludo deficiunt neque ipsi dicunt aliquod ridiculum et dicentibus molesti sunt quia scilicet moderatos aliorum ludos non recipiunt Et ideo tales vitiosi sunt et dicuntur duri et agrestes ut philosophus dicit in IV Ethicrdquo

272 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

a falta do alimento e satildeo fustigados pelo ardor do sol sofrem mais os assaltos da aciacutedia37

O Aquinate natildeo pestaneja em afirmar que a proacutepria razatildeo

exige que o seu uso seja amainado de quando em quando Daiacute ele dizer que se o sexo dentro do casamento fosse pecaminoso mdash como alguns queriam mdash soacute porque ele amaina por algum tempo o uso da razatildeo tambeacutem teriacuteamos de dizer que dormir eacute um pecado pois durante o sono o uso da razatildeo tambeacutem eacute arrefecido Por conseguinte por mais paradoxal que possa parecer estatildeo de acordo com a razatildeo mesmo aqueles atos que de vez em quando afrouxam a sua atividade

[] O prazer do ato conjugal embora se decirc em algo que estaacute conforme agrave razatildeo impede o exerciacutecio dela por causa da mudanccedila corporal que o acompanha Mas nem por isso segue-se uma maliacutecia moral como no sono que impede o exerciacutecio da razatildeo e natildeo eacute moralmente mau se for tomado de acordo com a razatildeo pois a proacutepria razatildeo tem como proacuteprio que o seu uso seja interrompido de vez em quando38

E o ato veneacutereo natildeo eacute querido apenas e tatildeo somente por

causa da procriaccedilatildeo O gozo que se daacute no coito aponta o Aquinate natildeo eacute contraacuterio agrave razatildeo e consequentemente eacute conforme a virtude da temperanccedila

Deve-se dizer que natildeo se mede o meio-termo da virtude quantitativamente mas pelo seu ajustamento com a reta razatildeo

37 Idem Ibidem II-II 35 1 ad 2 ldquoOmnis autem corporalis defectus de se ad tristitiam disponit Et ideo ieiunantes circa meridiem quando iam incipiunt sentire defectum cibi et urgeri ab aestibus solis magis ab acedia impugnanturrdquo 38 Idem Ibidem I-II 34 1 ad 1 [O itaacutelico eacute nosso] ldquo[] sicut in concubitu coniugali delectatio quamvis sit in eo quod convenit rationi tamen impedit rationis usum propter corporalem transmutationem adiunctam Sed ex hoc non consequitur malitiam moralem sicut nec somnus quo ligatur usus rationis moraliter est malus si sit secundum rationem receptus nam et ipsa ratio hoc habet ut quandoque rationis usus intercipiaturrdquo

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Por isso o intenso prazer gozado no ato sexual feito segundo a reta razatildeo natildeo contaria o meio-termo da virtude39

Mesmo a ldquosensualidaderdquo entre os cocircnjuges natildeo pode ser

vista como algo antinatural Com efeito eacute da natureza humana o se vestir com requinte 40 Por isso nada impede que as esposas procurem agradar ao esposo adornando-se Desde que natildeo haja excesso como o despudor e a falta de recato isso eacute ateacute mesmo aconselhaacutevel pois natildeo cuidar de si mdash e isto implica tambeacutem natildeo cuidar de manter a beleza com a qual a natureza nos afortunou mdash tambeacutem eacute um excesso um viacutecio

Cipriano fala da mesma coisa mas natildeo proiacutebe agraves mulheres casadas que se arrumem para agradar aos esposos a fim de natildeo lhes dar ocasiatildeo de pecarem com outras [] Entende-se por aiacute que o adorno feminino soacutebrio e moderado natildeo eacute proibido mas o exagerado despudorado e indecente41

Importa contudo considerar que natildeo eacute a mesma coisa fingir uma beleza que natildeo se tem e esconder um defeito proveniente de alguma causa como uma doenccedila ou de outra coisa qualquer Neste caso nada haacute de errado []42

39 Idem Ibidem II-II 153 2 C ldquoAd secundum dicendum quod sicut supra dictum est medium virtutis non attenditur secundum quantitatem sed secundum quod convenit rationi rectae Et ideo abundantia delectationis quae est in actu venereo secundum rationem ordinato non contrariatur medio virtutisrdquo 40 Idem Ibidem II-II 169 1 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod huiusmodi exterior cultus indicium quoddam est conditionis humanaerdquo 41 Idem Ibidem II-II 169 2 ad 1 ldquoIn quo etiam casu loquitur Cyprianus non autem prohibet mulieribus coniugatis ornari ut placeant viris ne detur eis occasio peccandi cum aliis [] per quod datur intelligi quod sobrius et moderatus ornatus non prohibetur mulieribus sed superfluus et inverecundus et impudicusrdquo 42 Idem Ibidem II-II 169 2 ad 2 ldquoSciendum tamen quod aliud est fingere pulchritudinem non habitam et aliud est occultare turpitudinem ex aliqua causa provenientem puta aegritudine vel aliquo huiusmodi Hoc enim est licitum []rdquo Tomaacutes tem uma palavra inclusive para a ldquoinduacutestria de cosmeacuteticosrdquo de seu tempo Segundo ele eacute uma profissatildeo digna aquela que decorre de uma necessidade natural Ora eacute natural agrave esposa procurar agradar ao marido Logo todos os produtos que favoreccedilam isso desde que natildeo sejam indecentes natildeo satildeo iliacutecitos Idem Ibidem II-II 170 2 ad 4 ldquoQuia ergo mulieres licite se possunt ornare vel ut conservent decentiam sui status vel etiam aliquid superaddere ut placeant viris consequens est quod artifices talium ornamentorum non peccant in

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Podemos observar que tambeacutem nas coisas mais corriqueiras Tomaacutes enxerga a uniatildeo entre alma e corpo Diz ele que ldquoA tristeza entre todas as paixotildees da alma eacute a mais nociva ao corpordquo 43 Mas o que ldquocurardquo a tristeza Tomaacutes chega a ser redundante ao dizer que o sorriso mdash aumentando a alegria mdash tende a afastar a tristeza ldquoPor isso os risos e outros efeitos da alegria a aumentam []rdquo44 Outrossim eacute interessante dar-se conta de que Frei Tomaacutes natildeo recorre ao expediente da oraccedilatildeo quando se trata de espantar a tristeza mas ao prazer

Entatildeo como qualquer repouso do corpo traz remeacutedio a qualquer fadiga provinda de qualquer causa natildeo natural assim tambeacutem todo prazer eacute remeacutedio que alivia qualquer tristeza seja qual for sua origem45

O importante eacute notar aqui mdash e em todos os exemplos mdash

como o Aquinate interliga alma e corpo estabelecendo entre eles uma verdadeira unidade A tristeza por exemplo eacute uma ldquopaixatildeo da almardquo No entanto como dito acima nada eacute mais nocivo ao corpo Por isso embora a tristeza seja uma ldquopaixatildeo da almardquo a sua cura pode estar num sorriso ou seja num gesto facial porque alma e corpo estatildeo em sinergia De resto saber-se amado alivia a tristeza porque causa prazer Ora sabemos que somos amados por nossos amigos quando percebemos que eles se entristecem conosco Assim os amigos mdash a sua companhia e conversa mdash tambeacutem nos

usu talis artis nisi forte inveniendo aliqua superflua et curiosardquo ldquoPor conseguinte como as mulheres podem se enfeitar licitamente para conservar sua dignidade pessoal ou tambeacutem para acrescentar algo mais que agrade ao marido segue-se que os fabricantes de tais produtos natildeo pecam excercendo esse mister salvo se vierem a inventar novidades exageradas e estranhasrdquo 43 Idem Ibidem I-II 37 4 C ldquoRespondeo dicendum quod tristitia inter omnes animae passiones magis corpori nocetrdquo 44 Idem Ibidem I-II 38 2 ad 2 ldquoEt ideo per risum et alios effectus laetitiae augetur laetitia []rdquo 45 Idem Ibidem I-II 38 1 C ldquoSicut igitur quaelibet quies corporis remedium affert contra quamlibet fatigationem ex quacumque causa innaturali provenientem ita quaelibet delectatio remedium affert ad mitigandam quamlibet tristitiam ex quocumque procedatrdquo

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ajudam a sair da tristeza porque dividem o fardo dela conosco Estas razotildees satildeo coligidas por Tomaacutes

A primeira eacute que como eacute proacuteprio da tristeza acabrunhar e isso tem razatildeo de um certo peso do qual o que estaacute acabrunhado procura aliviar-se Quando algueacutem vecirc os outros contristados pela tristeza que sente imagina que aquele peso esteja sendo dividido com outros que se esforccedilam para aliviaacute-lo dele e assim suporta melhor o peso da tristeza o que acontece com os carregadores de pesos materiais mdash A segunda razatildeo a melhor eacute que pelo fato de os amigos se entristecerem com ele percebe que ele eacute amado por eles o que eacute deleitaacutevel como se disse Portanto jaacute que todo prazer alivia a tristeza como tambeacutem se disse acima segue-se que o amigo compassivo alivia a tristeza46

Quando natildeo dar lugar agraves laacutegrimas e se permitir ficar triste

tambeacutem pode ser um ldquosanto remeacutediordquo contra a tristeza O Frade de Roccasecca acreditava que seguir os atos proacuteprios de cada momento como rir quando se estaacute alegre chorar quando se estaacute triste ou gemer quando se estaacute doente eacute sempre agradaacutevel e mitiga as dores

Porque a accedilatildeo que conveacutem ao homem segundo sua disposiccedilatildeo do momento eacute sempre agradaacutevel O choro e os gemidos satildeo accedilotildees que convecircm aos que estatildeo tristes ou doentes Por isso se tornarm deleitaacuteveis para eles Como todo prazer alivia a tristeza ou dor de

46 Idem Ibidem I-II 38 3 C ldquoQuarum prima est quia cum ad tristitiam pertineat aggravare habet rationem cuiusdam oneris a quo aliquis aggravatus alleviari conatur Cum ergo aliquis videt de sua tristitia alios contristatos fit ei quasi quaedam imaginatio quod illud onus alii cum ipso ferant quasi conantes ad ipsum ab onere alleviandum et ideo levius fert tristitiae onus sicut etiam in portandis oneribus corporalibus contingit Secunda ratio et melior est quia per hoc quod amici contristantur ei percipit se ab eis amari quod est delectabile ut supra dictum est Unde cum omnis delectatio mitiget tristitiam sicut supra dictum est sequitur quod amicus condolens tristitiam mitigetrdquoIdem Ibidem I-II 38 3 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod in utroque amicitia manifestatur scilicet et quod congaudet gaudenti et quod condolet dolentirdquo ldquoPortanto deve-se dizer que a amizade se manifesta nos dois casos quando se alegra com quem se alegra e quando se compadece com quem padecerdquo

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certo modo como foi dito segue-se que pelo choro e pelos gemidos se alivia a tristeza47

E quando natildeo haacute mais o que se fazer banhar-se e dormir

pode ser um lenitivo contra a tristeza e certas doenccedilas Um opositor levanta a seguinte objeccedilatildeo ldquoCom efeito a tristeza se localiza na alma Ora o sono e o banho pertencem ao corpo Logo nada podem fazer para aliviar a tristezardquo48 Ante esta sentenccedila mdash tipicamente ldquodualistardquo mdash Tomaacutes responde ldquo[] deve-se dizer que a devida disposiccedilatildeo do corpo enquanto eacute sentida causa prazer e consequentemente alivia a tristezardquo49 No Sed Contra o Aquinate cita Agostinho que alude ao fato de que o corpo mdash e os prazeres que a ele se referem mdash estatildeo em iacutentima relaccedilatildeo com o bem-estar da alma

Agostinho diz ldquoEu ouvia dizer que a palavra banho vem de que expulsa a ansiedade da almardquo E mais adiante ldquoDormi e acordei e me encontrei que boa parte de minha dor estava aliviadardquo50

Os exemplos poderiam continuar mas julgamos que estes

sejam suficientes para atestar como o Boi Mudo da Siciacutelia pensa a vida humana segundo a virtude como constituiacuteda por uma espeacutecie

47 Idem Ibidem I-II 38 2 C ldquoSecundo quia semper operatio conveniens homini secundum dispositionem in qua est sibi est delectabilis Fletus autem et gemitus sunt quaedam operationes convenientes tristato vel dolenti Et ideo efficiuntur ei delectabiles Cum igitur omnis delectatio aliqualiter mitiget tristitiam vel dolorem ut dictum est sequitur quod per planctum et gemitum tristitia mitigeturrdquo Idem Ibidem ldquoEt propter hoc quando homines qui sunt in tristitiis exterius suam tristitiam manifestant vel fletu aut gemitu vel etiam verbo mitigatur tristitiardquo ldquoAssim quando os homens que estatildeo na tristeza a manifestam externamente por choro ou gemido ou mesmo por palavras a tristeza fica mitigadardquo 48 Idem Ibidem I-II 38 5 1 ldquoPraeterea idem effectus non videtur causari ex contrariis causis Sed huiusmodi cum sint corporalia repugnant contemplationi veritatis quae est causa mitigationis tristitiae ut dictum est Non ergo per huiusmodi tristitia mitigaturrdquo 49 Idem Ibidem I-II 38 5 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod ipsa debita corporis dispositio inquantum sentitur delectationem causat et per consequens tristitiam mitigatrdquo 50 Idem Ibidem I-II 38 5 SC ldquoSed contra est quod Augustinus dicit IX Confess audieram balnei nomen inde dictum quod anxietatem pellat ex animo et infra dormivi et evigilavi et non parva ex parte mitigatum inveni dolorem meumrdquo

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de simbiose entre alma e corpo que se perfaz somente quando alma e corpo interagem como um todo uno Eacute apenas tendo bem presente esta conjugaccedilatildeo que podemos abordar as virtudes Antes poreacutem jaacute eacute tempo de falarmos especificamente sobre as paixotildees pois as virtudes morais natildeo tecircm outra tarefa senatildeo comedi-las 53 AS PAIXOtildeES DA ALMA

Por paixatildeo entende-se aqui toda mudanccedila corporal decorrente do apetite sensiacutevel mdash que definiremos formalmente no proacuteximo toacutepico mdash o qual se desdobra em apetite concupisciacutevel e irasciacutevel51 O concupisciacutevel considera o bem absolutamente e a sua primeira paixatildeo eacute o amor que eacute certa complacecircncia no bem segue-se ao amor o seu contraacuterio ou seja o oacutedio ou repugnacircncia ao mal oposto52 Se o bem estaacute ausente o amor daacute lugar ao desejo ou concupiscecircncia assim como o oacutedio se o mal estaacute ausente daacute lugar agrave fuga ou aversatildeo53 Se o bem estaacute presente haacute o termo do apetite que estaacute no prazer ou alegria sendo a alegria que eacute como

51 Idem Ibidem I-II 22 3 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut iam dictum est passio proprie invenitur ubi est transmutatio corporalis Quae quidem invenitur in actibus appetitus sensitivi []rdquo ldquoComo jaacute dito existe propriamente paixatildeo onde haacute transmutaccedilatildeo do corpo e esta se encontra nos atos do apetite sensiacutevel []rdquo 52 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoBonum ergo primo quidem in potentia appetitiva causat quandam inclinationem seu aptitudinem seu connaturalitatem ad bonum quod pertinet ad passionem amoris Cui per contrarium respondet odium ex parte malirdquo ldquoDesse modo o bem causa primeiramente na potecircncia apetitiva uma certa inclinaccedilatildeo ou aptidatildeo ou conaturalidade para o bem e isso pertence agrave paixatildeo do amor ao qual por contrariedade corresponde o oacutedio por parte do malrdquo Idem Ibidem I-II 29 1 C ldquoSicut autem omne conveniens inquantum huiusmodi habet rationem boni ita omne repugnans inquantum huiusmodi habet rationem mali Et ideo sicut bonum est obiectum amoris ita malum est obiectum odiirdquo ldquoMas como tudo o que eacute conveniente enquanto tal tem razatildeo de bem do mesmo modo tudo o que eacute repugnante enquanto tal tem natureza de mal Portanto assim como o bem eacute objeto do amor do mesmo modo o mal eacute objeto do oacutediordquo Idem Ibidem I-II 29 2 C ldquoUnde necesse est quod amor sit prior odio et quod nihil odio habeatur nisi per hoc quod contrariatur convenienti quod amaturrdquo ldquoLogo eacute necessaacuterio que o amor seja anterior ao oacutedio e que soacute se odeie o que eacute contraacuterio ao bem conveniente que se amardquo 53 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoSecundo si bonum sit nondum habitum dat ei motum ad assequendum bonum amatum et hoc pertinet ad passionem desiderii vel concupiscentiae Et ex opposito ex parte mali est fuga vel abominatiordquo ldquomdash Em segundo lugar o bem ainda natildeo possuiacutedo lhe daacute o movimento para conseguir o bem amado o que pertence agrave paixatildeo do desejo ou da concupiscecircncia e por contrariedade e quanto ao mal estaacute a fuga ou a aversatildeordquo

278 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino a ldquoconsciecircnciardquo do prazer proacutepria somente dos seres racionais pois neles haacute a possibilidade por exemplo de se ter um gozo corporal que cause repulsa agrave razatildeo de haver prazeres que natildeo tragam suavidade agrave alma54 se eacute o mal contraacuterio que estaacute presente o termo do apetite eacute a dor ou tristeza sendo a tristeza a qual eacute como a ldquoconsciecircnciardquo da dor exclusiva dos seres racionais pois se pode sentir dor sem que isso se apresente como indigno ou cause repuacutedio agrave razatildeo55 Do quanto dissemos ateacute aqui jaacute se pode inferir que a primeira paixatildeo a qual desencadeia todas as outras eacute o amor como o proacuteprio Tomaacutes assinala em vaacuterias ocasiotildees56 Natildeo

54 Idem Ibidem I-II 31 3 C ldquoSed nomen gaudii non habet locum nisi in delectatione quae consequitur rationem unde gaudium non attribuimus brutis animalibus sed solum nomen delectationis [] Quamvis non semper de omnibus sit gaudium quandoque enim aliquis sentit aliquam delectationem secundum corpus de qua tamen non gaudet secundum rationemrdquo ldquoMas a palavra alegria soacute se emprega para prazeres consecutivos agrave razatildeo assim natildeo atribuiacutemos alegria aos animais irracionais mas apenas o prazer [] Embora nem sempre haja alegria a respeito de tudo pois agraves vezes algueacutem sente certo prazer segundo o corpo sem que se alegre segundo a razatildeordquo 55 Idem Ibidem I-II 35 2 C ldquoSola igitur illa delectatio quae ex interiori apprehensione causatur gaudium nominatur ut supra dictum est Et similiter ille solus dolor qui ex apprehensione interiori causatur nominatur tristitia Et sicut illa delectatio quae ex exteriori apprehensione causatur delectatio quidem nominatur non autem gaudium ita ille dolor qui ex exteriori apprehensione causatur nominatur quidem dolor non autem tristitiardquo ldquoPortanto soacute o prazer causado por uma apreensatildeo interior se chama alegria como foi dito Igualmente soacute a dor causada por apreensatildeo interior se chama tristeza E como prazer causado pela apreensatildeo exterior se chama prazer e natildeo alegria assim a dor causada por apreensatildeo exterior se chama dor e natildeo tristezardquo 56 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoTertio cum adeptum fuerit bonum dat appetitus quietationem quandam in ipso bono adepto et hoc pertinet ad delectationem vel gaudium Cui opponitur ex parte mali dolor vel tristitiardquo ldquomdash Terceiro obtido o bem daacute-lhe um certo repouso no bem possuiacutedo o que pertence ao prazer ou alegria a que se opotildee do lado do mal a dor ou a tristezardquo Idem Ibidem I-II 25 2 C ldquoIpsa autem aptitudo sive proportio appetitus ad bonum est amor qui nihil aliud est quam complacentia boni motus autem ad bonum est desiderium vel concupiscentia quies autem in bono est gaudium vel delectatio Et ideo secundum hunc ordinem amor praecedit desiderium et desiderium praecedit delectationemrdquo ldquoOra a aptidatildeo ou proporccedilatildeo do apetite ao bem eacute o amor que natildeo eacute mais do que a complacecircncia no bem enquanto o movimento para o bem eacute o desejo ou concupiscecircncia e por fim o repouso no bem eacute a alegria ou prazerrdquo Idem Ibidem I-II 25 2 ad 1 ldquoNos autem ut plurimum per effectum cognoscimus causam Effectus autem amoris quando quidem habetur ipsum amatum est delectatio quando vero non habetur est desiderium vel concupiscentiardquo ldquoOra comumente conhecemos a causa pelo efeito Portanto o efeito do amor quando o objeto amado jaacute eacute possuiacutedo eacute prazer quando poreacutem ainda natildeo eacute possuiacutedo eacute desejo ou concupiscecircnciardquo Idem Ibidem I-II 26 2 C ldquoPrima ergo immutatio appetitus ab appetibili vocatur amor qui nihil est aliud quam complacentia appetibilis et ex hac complacentia sequitur motus in appetibile qui est desiderium et ultimo quies quae est gaudiumrdquo ldquoA primeira mudanccedila do apetite pelo objeto apeteciacutevel se chama amor que natildeo eacute senatildeo a complacecircncia no objeto apeteciacutevel da qual resulta o movimento para esse objeto que eacute o desejo e por uacuteltimo o repouso que eacute a alegriardquo

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resta duacutevida pois que da retidatildeo do amor que deve aspirar a bens verdadeiros dependeraacute a retidatildeo dos nossos atos Por isso o Aquinate fala que o amor propriamente humano eacute uma dileccedilatildeo porque pressupotildee uma eleiccedilatildeo Podemos escolher o que e a quem amar E a caridade natural eacute aquela que acresce ao amor o apreccedilo porque o homem pode prezar e estimar o objeto do seu beneplaacutecito57 Mas para que essa decisatildeo ocorra com correccedilatildeo haacute que se ter uma reta razatildeo isto eacute uma razatildeo capaz de propor bens verdadeiros agrave vontade

O irasciacutevel natildeo considera o bem absolutamente senatildeo sob a razatildeo de aacuterduo Por isso eacute evidente que se o bem estaacute presente natildeo haacute nenhuma paixatildeo no irasciacutevel58 mas se ele estaacute ausente tem-se a esperanccedila que diz respeito a um bem futuro que se apresenta como alcanccedilaacutevel59 e o desespero que se daacute quando um

57 Idem Ibidem I-II 26 3 C ldquoDifferenter tamen significatur actus per ista tria Nam amor communius est inter ea omnis enim dilectio vel caritas est amor sed non e converso Addit enim dilectio supra amorem electionem praecedentem ut ipsum nomen sonat Unde dilectio non est in concupiscibili sed in voluntate tantum et est in sola rationali natura Caritas autem addit supra amorem perfectionem quandam amoris inquantum id quod amatur magni pretii aestimatur ut ipsum nomen designatrdquo ldquoEssas trecircs palavras exprimem o ato de diversas maneiras Assim o mais geral deles eacute o amor pois toda dileccedilatildeo ou caridade eacute amor mas natildeo inversamente A dileccedilatildeo acrescenta ao amor uma eleiccedilatildeo precedente como a proacutepria palavra indica Por isso a dileccedilatildeo natildeo estaacute no concupisciacutevel mas somente na vontade e apenas na natureza racional A caridade por sua vez acrescenta ao amor uma certa perfeiccedilatildeo na medida em que se tem grande apreccedilo por aquilo que se ama como a proacutepria palavra o indicardquo 58 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoIn passionibus autem irascibilis praesupponitur quidem aptitudo vel inclinatio ad prosequendum bonum vel fugiendum malum ex concupiscibili quae absolute respicit bonum vel malum [] Respectu autem boni adepti non est aliqua passio in irascibili quia iam non habet rationem ardui ut supra dictum estrdquo ldquoAs paixotildees do irasciacutevel poreacutem jaacute pressupotildeem a aptidatildeo ou inclinaccedilatildeo a buscar o bem ou a evitar o mal proacuteprias do concupisciacutevel que visa o bem e o mal absolutamente [] Com respeito poreacutem ao bem possuiacutedo natildeo haacute no irasciacutevel nenhuma paixatildeo porque natildeo existe nesse caso a razatildeo de aacuterduo como jaacute foi dito []rdquo 59 Idem Ibidem I-II 40 2 C ldquoEt secundum hoc spes est motus appetitivae virtutis consequens apprehensionem boni futuri ardui possibilis adipisci scilicet extensio appetitus in huiusmodi obiectumrdquo ldquoAssim a esperanccedila eacute o movimento da potecircncia apetitiva subsequumlente agrave apreensatildeo do bem futuro aacuterduo e possiacutevel de ser obtido eacute a extensatildeo do apetite para esse objetordquo Idem Ibidem I-II 40 4 C ldquoObiectum autem spei quod est bonum arduum habet quidem rationem attractivi prout consideratur cum possibilitate adipiscendi et sic tendit in ipsum spes quae importat quendam accessumrdquo ldquoO objeto da esperanccedila que eacute o bem aacuterduo tem a razatildeo de atrativo enquanto se considera possiacutevel alcanccedilaacute-lo e assim tende para ele a esperanccedila que implica uma certa aproximaccedilatildeordquo Idem Ibidem I-II 40 5 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est spei

280 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino bem futuro se apresenta como inalcanccedilaacutevel60 No caso do mal ausente temos o temor que o evita por medo de que ele sobrevenha e de que seja irresistiacutevel61 e a audaacutecia que contraacuteria ao temor enfrenta o mal iminente porque acredita que lhe pode oferecer resistecircncia debelaacute-lo6263 Poreacutem se o mal estaacute presente daacute-se a ira que eacute o desejo esperanccediloso de punir quem nos impocircs algum mal64 Vecirc-se que a potecircncia irasciacutevel se desperta como uma espeacutecie de defensora da concupisciacutevel porque visa de algum modo repelir os entraves postos ao encalccedilo do bem desejaacutevel65 Daiacute se deduz tambeacutem que o amor natildeo eacute somente a primeira paixatildeo

obiectum est bonum futurum arduum possibile adipiscirdquo ldquoComo se disse antes o objeto da esperanccedila eacute o bem futuro aacuterduo e possiacutevel de obter-serdquo 60 Idem Ibidem I-II 40 4 C ldquoSed secundum quod consideratur cum impossibilitate obtinendi habet rationem repulsivi quia ut dicitur in III Ethic cum ventum fuerit ad aliquid impossibile tunc homines discedunt Et sic respicit hoc obiectum desperatiordquo ldquoMas enquanto se considera impossiacutevel obtecirc-lo tem a razatildeo de repulsivo pois como diz o livro III da Eacutetica lsquoQuando os homens chegam a algo impossiacutevel entatildeo se afastamrsquo Eacute este o objeto do desesperordquo 61 Idem Ibidem I-II 41 2 C ldquoSicut enim obiectum spei est bonum futurum arduum possibile adipisci ita obiectum timoris est malum futurum difficile cui resisti non potestrdquo ldquoCom efeito como o objeto da esperanccedila eacute um bem futuro aacuterduo de ser obtido assim o objeto do temor eacute o mal futuro difiacutecil ao qual natildeo se pode resistirrdquo 62 Idem Ibidem I-II 45 1 C ldquoIllud autem quod maxime distat a timore est audacia timor enim refugit nocumentum futurum propter eius victoriam super ipsum timentem sed audacia aggreditur periculum imminens propter victoriam sui supra ipsum periculumrdquo ldquoO que dista mais do temor eacute a audaacutecia o temor evita o dano futuro por pensar que este vai vencecirc-lo a audaacutecia afronta o perigo iminente porque acredita na sua vitoacuteria sobre o perigordquo 63 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoEt respectu boni nondum adepti est spes et desperatio Respectu autem mali nondum iniacentis est timor et audaciardquo ldquoAssim em relaccedilatildeo ao bem ainda natildeo possuiacutedo estaacute a esperanccedila e o desespero em relaccedilatildeo ao mal natildeo presente o temor e a audaacuteciardquo 64 Idem Ibidem I-II 23 4 C ldquoSed ex malo iam iniacenti sequitur passio iraerdquo ldquo[] mas do mal jaacute presente resulta a paixatildeo da irardquo Idem Ibidem I-II 46 1 C ldquoNon enim insurgit motus irae nisi propter aliquam tristitiam illatam et nisi adsit desiderium et spes ulciscendi []rdquo ldquoNatildeo surge o movimento da ira a natildeo ser por causa de alguma tristeza sofrida e se natildeo houver tambeacutem o desejo e a esperanccedila de vinganccedilardquo 65 Idem Ibidem I 81 2 C ldquoPatet etiam ex hoc quod irascibilis est quasi propugnatrix et defensatrix concupiscibilis dum insurgit contra ea quae impediunt convenientia quae concupiscibilis appetit et ingerunt nociva quae concupiscibilis refugit Et propter hoc omnes passiones irascibilis incipiunt a passionibus concupiscibilis et in eas terminantur []rdquo ldquoDisso fica claro tambeacutem que a potecircncia irasciacutevel eacute uma espeacutecie de combatente defensor da concupisciacutevel insurgindo-se contra aquilo que impede o que eacute conveniente que a concupisciacutevel deseja e contra aquilo que causa dano do qual essa uacuteltima foge Por conseguinte todas as paixotildees irasciacuteveis tecircm origem nas paixotildees concupisciacuteveis e nelas terminamrdquo

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do concupisciacutevel mas absolutamente falando jaacute que as demais estaratildeo sempre no seu encalccedilo

Ora estas paixotildees satildeo da natureza humana natildeo haacute como eliminaacute-las nem eacute reto querer isso em si mesmas elas natildeo satildeo nem boas nem maacutes Contudo como o homem eacute dotado de razatildeo e vontade importa que ele as submeta agrave reta razatildeo e agrave vontade natildeo tentando as tolher mas governando-as politicamente como diz o Aquinate

Deve-se dizer que como diz o Filoacutesofo no livro I da Poliacutetica a razatildeo na qual estaacute a vontade move por seu impeacuterio o irasciacutevel e o concupisciacutevel natildeo por um primado despoacutetico como o servo eacute movido por seu senhor mas por um primado real e poliacutetico como os homens livres satildeo regidos por seus governantes podendo opor-se a eles66

Sob esta consideraccedilatildeo a saber enquanto as paixotildees podem

ser imperadas pela razatildeo e pela vontade elas passam a ser voluntaacuterias e podem entatildeo ser boas ou maacutes de acordo com a sua conformidade ou natildeo com a razatildeo E isso natildeo eacute de se estranhar porque temos de saber lidar com o que sentimos a fim de colocarmos a nossa sensibilidade a nosso favor Por exemplo a experiecircncia precisa ser bem usada porque ela nos pode livrar do desespero enquanto lanccedila fora o receio e os recalques do inaacutebil afianccedila-nos que em determinada situaccedilatildeo encontramo-nos aptos para realizar o bem aacuterduo67 Mas a experiecircncia pode tambeacutem nos desiludir ou desenganar e tambeacutem aqui se bem moderada ela

66 Idem Ibidem I-II 9 2 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod sicut philosophus dicit in I Polit ratio in qua est voluntas movet suo imperio irascibilem et concupiscibilem non quidem despotico principatu sicut movetur servus a domino sed principatu regali seu politico sicut liberi homines reguntur a gubernante qui tamen possunt contra movererdquo 67 Idem Ibidem I-II 40 5 C ldquo[] per experientiam homo acquirit facultatem aliquid de facili faciendi et ex hoc sequitur spes Unde Vegetius dicit in libro de re militari nemo facere metuit quod se bene didicisse confiditrdquo ldquo[] pela experiecircncia o homem adquire a capacidade de fazer algo com facilidade e disso resulta a esperanccedila Por isso diz Vegeacutecio lsquoNingueacutem receia fazer o que confia ter aprendido bemrdquo

282 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino pode nos poupar de desgastes inuacuteteis dando-nos conta de que natildeo adianta agirmos com contumaacutecia para revertermos determinada situaccedilatildeo68 A experiecircncia deve ser usada ainda para treinar os jovens pois eles por natildeo conhecerem os percalccedilos da vida podem facilmente fiar-se em sua capacidade aleacutem do que eacute devido e tornarem-se semelhantes aos estuacutepidos e desajuizados que acreditam poder tudo69 Ademais paixotildees como a esperanccedila se bem ordenadas podem concorrer para o nosso bem porque a clareza de que um bem eacute aacuterduo mas possiacutevel pode a um soacute tempo aticcedilar a atenccedilatildeo e impedir o retardo da accedilatildeo para consegui-lo70 O temor tambeacutem precisa ser moderado do contraacuterio ele nos leva agrave preguiccedila pois um bem aacuterduo pode causar desacircnimo por ser oneroso71 Ainda aqui os mais experientes podem e devem adestrar os inexperientes uma vez que a falta de costume pode levar os jovens a fazer uma apreciaccedilatildeo enganosa do desafio calculando ser

68 Idem Ibidem I-II 40 5 C ldquoQuia sicut per experientiam fit homini existimatio quod aliquid sibi sit possibile quod reputabat impossibile ita e converso per experientiam fit homini existimatio quod aliquid non sit sibi possibile quod possibile existimabatrdquo ldquomdash Do mesmo modo a experiecircncia pode ser causa da falta de esperanccedila pois como pela experiecircncia o homem pode pensar que lhe seja possiacutevel o que antes julgava impossiacutevel inversamente pode pela experiecircncia julgar impossiacutevel o que antes pensava ser possiacutevelrdquo 69 Idem Ibidem I-II 40 6 C ldquoEx amplitudine autem cordis est quod aliquis ad ardua tendat Et ideo iuvenes sunt animosi et bonae spei Similiter etiam illi qui non sunt passi repulsam nec experti impedimenta in suis conatibus de facili reputant aliquid sibi possibile Unde et iuvenes propter inexperientiam impedimentorum et defectuum de facili reputant aliquid sibi possibile Et ideo sunt bonae spei [] Et propter eandem rationem etiam omnes stulti et deliberatione non utentes omnia tentant et sunt bonae speirdquo ldquoIgualmente quem natildeo sofreu rejeiccedilatildeo nem experimentou obstaacuteculos em suas tentativas julga facilmente que as coisas satildeo possiacuteveis Por isso os jovens pela falta de experiecircncia dos obstaacuteculos e das deficiecircncias facilmente julgam que as coisas lhes satildeo possiacuteveis E por isso tecircm boa esperanccedila [] mdash Pela mesma razatildeo todos os estuacutepidos e os estouvados se atrevem a tudo e tecircm boa esperanccedilardquo 70 Idem Ibidem I-II 40 8 C ldquoSed per hunc modum experientia potest etiam esse causa defectus spei Quia sicut per experientiam fit homini existimatio quod aliquid sibi sit possibile quod reputabat impossibile ita e converso per experientiam fit homini existimatio quod aliquid non sit sibi possibile quod possibile existimabatrdquo ldquoA esperanccedila por si ajuda a accedilatildeo intensificando-a E por dois motivos 1 em razatildeo do seu objeto que eacute o bem aacuterduo possiacutevel A consideraccedilatildeo do aacuterduo excita a atenccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do possiacutevel natildeo retarda o esforccedilo Daiacute se segue que o homem age intensamente por causa da esperanccedila []rdquo 71 Idem Ibidem I-II 41 4 C ldquoEt sic causatur segnities cum scilicet aliquis refugit operari propter timorem excedentis laborisrdquo ldquoDaiacute surge a preguiccedila quando se recusa a agir por causa do temor do trabalho excessivordquo

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ele muito mais aacuterduo do que realmente eacute e deixando por conseguinte de conquistarem um bem que estava ao seu alcance natildeo fosse o equiacutevoco da imaginaccedilatildeo72 E os exemplos poderiam multiplicar-se mas o que eacute mais importante reter neste momento eacute que o prazer natildeo pode ser posto de lado porque ele aperfeiccediloa a accedilatildeo jaacute que quando agimos com deleite agimos com mais atenccedilatildeo afinco e perseveranccedila 73 Aliaacutes isso eacute um corolaacuterio espontacircneo pois para Tomaacutes natildeo haacute ldquopaixotildees do corpordquo de um lado e ldquopaixotildees da almardquo de outro uma vez que alma humana eacute o princiacutepio da vida racional animal e vegetal Afora o que haacute de inadequado nas palavras tudo em noacutes animalidade e racionalidade estaacute interligado natildeo isolado Do quanto dissemos segue-se que as paixotildees enquanto estatildeo sob o impeacuterio da razatildeo e da vontade podem ser boas ou maacutes em virtude da sua conformidade ou natildeo com a mesma razatildeo e vontade Acerca da moralidade das paixotildees afirma Tomaacutes

As paixotildees da alma podem ser consideradas de duas maneiras primeiro em si mesmas segundo enquanto dependem do impeacuterio da razatildeo e da vontade Se pois as paixotildees forem consideradas em si mesmas ou seja enquanto movimentos do apetite irracional desse modo natildeo haacute nelas bem ou mal moral o que depende da razatildeo conforme foi dito antes Mas se forem consideradas enquanto dependem do impeacuterio da razatildeo e da vontade entatildeo nelas haacute bem e mal moral pois o apetite sensitivo

72 Idem Ibidem ldquoSecundo ratione dissuetudinis quia scilicet aliquod malum inconsuetum nostrae considerationi offertur et sic est magnum nostra reputationerdquo ldquomdash 2 em razatildeo da falta de costume Quando um mal insoacutelito se oferece agrave nossa consideraccedilatildeo e assim eacute grande para nossa apreciaccedilatildeo Haacute entatildeo estupor produzido por uma imagem insoacutelitardquo 73 Idem Ibidem I-II 33 3 C ldquo[] cum autem attentio fortiter inhaeserit alicui rei debilitatur circa alias res vel totaliter ab eis revocaturrdquo ldquo[] porque fazemos com mais atenccedilatildeo aquilo em que nos deleitamos e a atenccedilatildeo facilita a accedilatildeordquo Idem Ibidem I-II 33 4 C ldquoRespondeo dicendum quod delectatio [] operationem perficiat [] Indirecte autem inquantum scilicet agens quia delectatur in sua actione vehementius attendit ad ipsam et diligentius eam operaturrdquo ldquoO prazer aperfeiccediloa a accedilatildeo [] Indiretamente enquanto o agente porque se deleita em sua accedilatildeo presta-lhe mais atenccedilatildeo e a realiza com mais diligecircnciardquo Idem Ibidem I-II 37 1 C ldquo[] qui quanto maior fuerit magis retinet intentionem animi ne omnino feratur ad doloremrdquo ldquoQuanto maior este amor mais reteacutem a atenccedilatildeo do espiacuterito para que natildeo se deixe entregar agrave dorrdquo

284 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

estaacute mais proacuteximo da razatildeo e da vontade do que os membros exteriores cujos movimentos e atos satildeo bons ou maus moralmente na medida em que satildeo voluntaacuterios Por conseguinte com muito maior razatildeo tambeacutem as paixotildees enquanto voluntaacuterias podem ser chamadas de boas ou maacutes moralmente74

Cumpre agora determo-nos com maior cuidado na

estrutura do ato humano a fim de que conheccedilamos melhor como a pessoa daacute agrave luz o ato livre condiccedilatildeo de possibilidade tanto da virtude quanto do viacutecio 54 A ESTRUTURA DO ATO HUMANO

Com efeito toda forma possui uma tendecircncia natural para o seu fim O fogo por exemplo tende a subir a terra tende para o centro Chamamos esta tendecircncia apetite natural Haacute poreacutem os seres dotados de conhecimento Estes possuem uma inclinaccedilatildeo natildeo soacute em virtude de sua forma mas tambeacutem no que concerne ao objeto conhecido Por conhecerem o fim enquanto atrativo distendem-se para o que lhes eacute condicente Ora o conhecimento comporta dois niacuteveis o sensitivo e o intelectivo A tendecircncia que se segue agrave simples sensaccedilatildeo nominamos apetite sensiacutevel a que se segue ao conhecimento intelectual apetite intelectivo ou vontade75

74 Idem Ibidem I-II 24 1 C ldquoRespondeo dicendum quod passiones animae dupliciter possunt considerari uno modo secundum se alio modo secundum quod subiacent imperio rationis et voluntatis Si igitur secundum se considerentur prout scilicet sunt motus quidam irrationalis appetitus sic non est in eis bonum vel malum morale quod dependet a ratione ut supra dictum est Si autem considerentur secundum quod subiacent imperio rationis et voluntatis sic est in eis bonum et malum morale Propinquior enim est appetitus sensitivus ipsi rationi et voluntati quam membra exteriora quorum tamen motus et actus sunt boni vel mali moraliter secundum quod sunt voluntarii Unde multo magis et ipsae passiones secundum quod sunt voluntariae possunt dici bonae vel malae moraliterrdquo 75 Idem Ibidem I-II 26 1 C ldquoEst enim quidam appetitus non consequens apprehensionem ipsius appetentis sed alterius et huiusmodi dicitur appetitus naturalis Res enim naturales appetunt quod eis convenit secundum suam naturam non per apprehensionem propriam sed per apprehensionem instituentis naturam ut in I libro dictum est Alius autem est appetitus consequens apprehensionem ipsius appetentis sed ex necessitate non ex iudicio libero Et talis est appetitus sensitivus in brutis qui tamen in hominibus aliquid libertatis participat inquantum obedit rationi Alius autem est appetitus consequens apprehensionem appetentis secundum liberum iudicium Et talis est appetitus

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Quanto agrave vontade cabe discriminar Tal como o intelecto assente aos primeiros princiacutepios assim a vontade adere necessariamente agrave beatitude seu fim uacuteltimo Poreacutem haacute coisas sem as quais podemos ser felizes A estas a vontade natildeo adere necessariamente Mas natildeo eacute tudo Da mesma forma que por vezes o nosso intelecto anui a proposiccedilotildees decorrentes dos seus primeiros princiacutepios mas sem reconhecer-lhes a necessidade a saber de forma contingente assim tambeacutem acontece com a vontade Tambeacutem esta pode natildeo aquiescer necessariamente agraves coisas que conduzem ao fim ainda que elas sejam necessaacuterias agrave consecuccedilatildeo do fim e isto por natildeo reconhecer a conexatildeo necessaacuteria entre o meio e o fim76

De posse destes pressupostos podemos distinguir os graus do ato humano Comecemos pela intenccedilatildeo Esta consiste naquele ato uacutenico pelo qual a vontade inclina-se ao fim proposto e aos meios que reconhece como condizentes com este fim77 Como

rationalis sive intellectivus qui dicitur voluntasrdquo ldquoOra haacute um apetite natildeo consequumlente agrave apreensatildeo do que apetece mas agrave de outrem e este se chama apetite natural As coisas naturais desejam o que lhes conveacutem por natureza natildeo por apreensatildeo proacutepria mas pela apreensatildeo do autor da natureza como se disse na I Parte mdash Haacute aleacutem disso outro apetite consequumlente agrave apreensatildeo do que apetece mas por necessidade e natildeo por um juiacutezo livre e tal eacute o apetite sensitivo dos animais irracionais que nos homens participa de alguma liberdade enquanto obedece agrave razatildeo mdash Enfim haacute outro apetite consequumlente agrave apreensatildeo do que apetece por um juiacutezo livre e tal eacute o apetite racional ou intelectivo e este se chama vontaderdquo 76 Idem Ibidem I 82 2 C ldquoSimiliter etiam est ex parte voluntatis Sunt enim quaedam particularia bona quae non habent necessariam connexionem ad beatitudinem quia sine his potest aliquis esse beatus et huiusmodi voluntas non de necessitate inhaeret Sunt autem quaedam habentia necessariam connexionem ad beatitudinem quibus scilicet homo Deo inhaeret in quo solo vera beatitudo consistit Sed tamen antequam per certitudinem divinae visionis necessitas huiusmodi connexionis demonstretur voluntas non ex necessitate Deo inhaeret nec his quae Dei suntrdquo ldquoO mesmo acontece com a vontade Haacute bens particulares que natildeo tecircm relaccedilatildeo necessaacuteria com a bem-aventuranccedila porque se pode ser bem-aventurado sem eles A tais bens a vontade natildeo adere necessariamente Mas haacute outros bens que tecircm uma relaccedilatildeo necessaacuteria com a bem-aventuranccedila satildeo aqueles pelos quais o homem adere a Deus em quem somente se encontra a verdadeira bem-aventuranccedila Todavia antes que a necessidade dessa conexatildeo seja demonstrada pela certeza da visatildeo divina a vontade natildeo adere necessariamente nem a Deus nem agraves coisas que satildeo de Deusrdquo 77 Idem Ibidem I-II 12 2 C ldquoSicut in motu quo itur de a in c per b c est terminus ultimus b autem est terminus sed non ultimus Et utriusque potest esse intentiordquo ldquoAssim no movimento pelo qual se vai de A a C por B C eacute o termo uacuteltimo B eacute termo mas natildeo o uacuteltimo E a intenccedilatildeo pode referir-se a ambosrdquo Idem Ibidem I-II 12 3 C ldquoEst enim intentio non solum finis ultimi ut dictum est sed etiam finis medii Simul autem intendit aliquis et finem proximum et ultimum sicut confectionem

286 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino descobre estes meios A resposta a este questionamento conhece desdobramentos Antes de mais daacute-se o conselho ou deliberaccedilatildeo nele a razatildeo inquire acerca dos meios concernentes a um fim proposto No tirociacutenio da inquisiccedilatildeo apoacutes ldquosabatinarrdquo as vaacuterias possibilidades a razatildeo formula juiacutezos que natildeo satildeo senatildeo ldquoestrateacutegiasrdquo para alcanccedilar o fim a que aspira78 Em seguida a vontade compraz-se nos meios considerados pela razatildeo A este beneplaacutecito chamamos consentimento79 Apoacutes isso a menos que haja um soacute juiacutezo ocorre a eleiccedilatildeo ou a escolha de um destes juiacutezos ou seja de uma destas ldquoestrateacutegiasrdquo80 Finalmente segue o impeacuterio da razatildeo que intima ou adverte dando-nos um preceito ou

medicinae et sanitatemrdquo ldquoComo foi dito natildeo haacute intenccedilatildeo somente do fim uacuteltimo mas tambeacutem dos meios para o fim Pode-se ter intenccedilatildeo ao mesmo tempo do fim proacuteximo e do fim uacuteltimo como elaborar o remeacutedio e a curardquo 78 Idem Ibidem I-II 14 1 C ldquoIn rebus autem dubiis et incertis ratio non profert iudicium absque inquisitione praecedente Et ideo necessaria est inquisitio rationis ante iudicium de eligendis et haec inquisitio consilium vocatur Propter quod philosophus dicit in III Ethic quod electio est appetitus praeconsiliatirdquo ldquoA razatildeo natildeo profere juiacutezos sobre as coisas duacutebias e incertas sem preacutevia investigaccedilatildeo Por isso eacute necessaacuteria a investigaccedilatildeo da razatildeo antes do julgamento do que se vai eleger Esta investigaccedilatildeo chama-se deliberaccedilatildeo Por isso diz o Filoacutesofo no livro III da Eacutetica lsquoA eleiccedilatildeo eacute apetite do previamente deliberadorsquordquo 79 Idem Ibidem I-II 15 3 C ldquoSed appetitus eorum quae sunt ad finem praesupponit determinationem consilii Et ideo applicatio appetitivi motus ad determinationem consilii proprie est consensus Unde cum consilium non sit nisi de his quae sunt ad finem consensus proprie loquendo non est nisi de his quae sunt ad finemrdquo ldquoMas o apetite das coisas que satildeo para o fim pressupotildee determinaccedilatildeo da deliberaccedilatildeo Por isso a aplicaccedilatildeo do movimento apetitivo agrave determinaccedilatildeo da deliberaccedilatildeo eacute propriamente o consentimento Por conseguinte como a deliberaccedilatildeo eacute apenas sobre as coisas que satildeo para o fim o consentimento propriamente falando eacute somente sobre as coisas que satildeo para o fimrdquo 80 Idem Ibidem I-II 15 3 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod electio addit supra consensum quandam relationem respectu eius cui aliquid praeeligitur et ideo post consensum adhuc remanet electio Potest enim contingere quod per consilium inveniantur plura ducentia ad finem quorum dum quodlibet placet in quodlibet eorum consentitur sed ex multis quae placent praeaccipimus unum eligendo Sed si inveniatur unum solum quod placeat non differunt re consensus et electio sed ratione tantum ut consensus dicatur secundum quod placet ad agendum electio autem secundum quod praefertur his quae non placentrdquo ldquoDeve-se dizer que a eleiccedilatildeo acrescenta ao consentimento uma relaccedilatildeo com respeito agravequilo para o que se escolheu previamente algo e por isso apoacutes o consentimento ainda permanece a eleiccedilatildeo Mas pode acontecer que pela deliberaccedilatildeo encontrem-se muitas coisas que levam ao fim e se qualquer uma delas agrada nelas se consente Todavia entre as muitas coisas que agradam escolhemos uma a ser eleita Mas se houver uma soacute que agrade o consentimento e a eleiccedilatildeo natildeo se diferenciam por distinccedilatildeo real mas por distinccedilatildeo de razatildeo Assim consentimento se diz enquanto agrada para agir eleiccedilatildeo enquanto se prefere agraves coisas que natildeo agradamrdquo

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movendo-nos agrave accedilatildeo De sorte que se na eleiccedilatildeo livremente se opta por um meio ou outro no impeacuterio a razatildeo ordena que se execute o meio escolhido em detrimento dos outros81 Sucede ao impeacuterio a accedilatildeo82 Cumpre dizer que o impeacuterio natildeo eacute algo coercitivo porque eacute precedido e depende jaacute vimos do escrutiacutenio da deliberaccedilatildeo e da eleiccedilatildeo83 Trata-se pois de um ato interno da razatildeo ldquoO impeacuterio como foi dito nada mais eacute do que o ato da razatildeo ordenante para se fazer alguma coisardquo84

Ora fazer com que a intenccedilatildeo a deliberaccedilatildeo o consentimento a eleiccedilatildeo e o impeacuterio sigam a reta razatildeo eacute tarefa das virtudes e disso dependeraacute a bondade ou a maliacutecia de nossas accedilotildees Por isso tendo estudado a estrutura do ato livre podemos afinal conhecer como ele se torna virtuoso ou vicioso

81 Idem Ibidem I-II 17 1 C ldquoImperare autem est quidem essentialiter actus rationis imperans enim ordinat eum cui imperat ad aliquid agendum intimando vel denuntiando sic autem ordinare per modum cuiusdam intimationis est rationis Sed ratio potest aliquid intimare vel denuntiare dupliciter Uno modo absolute quae quidem intimatio exprimitur per verbum indicativi modi sicut si aliquis alicui dicat hoc est tibi faciendum Aliquando autem ratio intimat aliquid alicui movendo ipsum ad hoc et talis intimatio exprimitur per verbum imperativi modi puta cum alicui dicitur fac hocrdquo ldquoImperar eacute pois essencialmente ato da razatildeo porque o que impera ordena o que eacute imperado para agir intimando ou advertindo Assim sendo ordenar mediante intimaccedilatildeo pertence agrave razatildeo Ela intima ou adverte de dois modos Primeiro absolutamente eacute o que faz por um verbo no indicativo como se algueacutem dissesse a outro Isso deves fazer Outras vezes a razatildeo intima algo a algueacutem movendo-o para tal E essa intimaccedilatildeo a faz usando o verbo no imperativo dizendo Faz issordquo 82 Idem Ibidem I-II 17 3 C ldquoImperium autem non est simul cum actu eius cui imperatur sed naturaliter prius est imperium quam imperio obediatur et aliquando etiam est prius tempore Unde manifestum est quod imperium est prius quam ususrdquo ldquoO impeacuterio poreacutem natildeo eacute simultacircneo com o ato daquele que recebeu a ordem mas naturalmente eacute anterior a que seja obedecido e agraves vezes anterior no tempordquo 83 Idem Ibidem I-II 17 3 ad 1 ldquoQuia post determinationem consilii quae est iudicium rationis voluntas eligit et post electionem ratio imperat ei per quod agendum est quod eligitur et tunc demum voluntas alicuius incipit uti exequendo imperium rationis quandoque quidem voluntas alterius cum aliquis imperat alteri quandoque autem voluntas ipsius imperantis cum aliquis imperat sibi ipsirdquo ldquoDepois da determinaccedilatildeo da deliberaccedilatildeo que eacute um juiacutezo da razatildeo a vontade efetua a eleiccedilatildeo A seguir a razatildeo impera ao que deve realizar aquilo que finalmente foi eleito e a vontade de algueacutem comeccedila a usar executando o impeacuterio da razatildeordquo 84 Idem Ibidem I-II 17 5 C ldquoRespondeo dicendum quod sicut dictum est imperium nihil aliud est quam actus rationis ordinantis cum quadam motione aliquid ad agendumrdquo

288 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino 55 AS VIRTUDES 551 A BONDADE E A MALIacuteCIA DO ATO HUMANO

Levando em consideraccedilatildeo os resultados alcanccedilados no toacutepico acima e antes de passarmos agrave temaacutetica da virtude importa agora sabermos como recai a bondade ou a maliacutecia sobre a accedilatildeo A moralidade da accedilatildeo eacute definida pelo ato interior pela intenccedilatildeo85 Haveraacute bondade na accedilatildeo se o fim estiver conforme a razatildeo antes maacute seraacute a accedilatildeo se o fim for contraacuterio agrave razatildeo86 Assim sendo o ato exterior eacute em uacuteltima instacircncia somente a consequecircncia do interior 87 Tomaacutes chega a citar um dito de Aristoacuteteles para arrematar a questatildeo ldquoDonde dizer o Filoacutesofo no livro V da Eacutetica Aquele que rouba para cometer adulteacuterio propriamente falando eacute mais aduacuteltero do que ladratildeordquo88 Quando a razatildeo versa sobre algo que natildeo eacute nem conveniente nem repugnante a ela damos a este objeto e ao ato correspondente o nome de indiferentes 89 A

85 Idem Ibidem I-II 19 7 C ldquoUnde cum bonitas voluntatis dependeat a bonitate voliti ut supra dictum est necesse est quod dependeat ex intentione finisrdquo ldquoPor isso por que a bondade da vontade depende da bondade do objeto que se quis como acima foi dito eacute necessaacuterio que dependa da intenccedilatildeo do fimrdquo 86 Idem Ibidem I-II 19 3 SC ldquoSed bonitas voluntatis consistit in hoc quod non sit immoderata Ergo bonitas voluntatis dependet ex hoc quod sit subiecta rationirdquo ldquoMas a bondade da vontade consiste em natildeo ser sem moderaccedilatildeo Logo a bondade da vontade depende de ser submetida agrave razatildeordquo 87 Idem Ibidem I-II 18 6 C ldquoFinis autem proprie est obiectum interioris actus voluntarii [] Et ideo actus humani species formaliter consideratur secundum finem materialiter autem secundum obiectum exterioris actusrdquo ldquoO fim eacute propriamente o objeto do ato voluntaacuterio interior [] E assim a espeacutecie de um ato humano se considera formalmente segundo o fim materialmente segundo o objeto do ato exteriorrdquo 88 Idem Ibidem I-II 18 6 C ldquoUnde philosophus dicit in V Ethic quod ille qui furatur ut committat adulterium est per se loquendo magis adulter quam furrdquo 89 Idem Ibidem I-II 18 8 C ldquoContingit autem quod obiectum actus non includit aliquid pertinens ad ordinem rationis sicut levare festucam de terra ire ad campum et huiusmodi et tales actus secundum speciem suam sunt indifferentesrdquo ldquoAcontece poreacutem que o objeto do ato natildeo inclui algo pertinente agrave ordem da razatildeo como levantar uma palha da terra ir ao campo e coisas semelhantes tais atos satildeo indiferentes segundo sua espeacutecierdquo Eacute muito importante natildeo confundir atos indiferentes com atos displicentes Por exemplo nem todo ato que procede da ignoracircncia eacute involuntaacuterio Haacute omissotildees ou atos voluntaacuterios procedentes de uma ignoracircncia tambeacutem ela voluntaacuteria Assim se tomado por uma paixatildeo ou pela forccedila de algum haacutebito desordenado um homem proceder com

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necessidade da correccedilatildeo da virtude nasce justamente do fato de que a vontade seguindo uma razatildeo errocircnea ou vencida pelas paixotildees pode tomar como conveniente agrave sua beatitude coisas que na verdade a repelem da mesma forma que o intelecto pode deduzir conclusotildees falsas de premissas verdadeiras 90 Tomaacutes afirma sem duacutevida que o intelecto propotildee o bem agrave vontade Contudo pondera o seguinte

negligecircncia em relaccedilatildeo a conhecimentos que deveria e poderia possuir agiraacute ou mesmo natildeo agiraacute com maliacutecia O agir ou ainda a omissatildeo decorrentes desta displicecircncia seratildeo pois consequecircncias de uma ignoracircncia afetada ou voluntaacuteria Notemos como Tomaacutes descreve Idem Ibidem I-II 6 8 C ldquoUno modo quia actus voluntatis fertur in ignorantiam sicut cum aliquis ignorare vult ut excusationem peccati habeat vel ut non retrahatur a pecando [] Et haec dicitur ignorantia affectata Alio modo dicitur ignorantia voluntaria eius quod quis potest scire et debet sic enim non agere et non velle voluntarium dicitur ut supra dictum est Hoc igitur modo dicitur ignorantia sive cum aliquis actu non considerat quod considerare potest et debet quae est ignorantia malae electionis vel ex passione vel ex habitu proveniens sive cum aliquis notitiam quam debet habere non curat acquirere et secundum hunc modum ignorantia universalium iuris quae quis scire tenetur voluntaria dicitur quasi per negligentiam proveniensrdquo ldquoPrimeiro porque o ato da vontade leva agrave ignoracircncia como quando se quer ignorar para se livrar da acusaccedilatildeo ou natildeo se afastar do pecado [] Esta se chama de ignoracircncia afetada mdash Segundo eacute a ignoracircncia voluntaacuteria quanto agravequilo que se deve e se pode saber pois natildeo agir nem querer neste caso eacute voluntaacuterio como foi acima dito [art 3] Nesse caso haacute ignoracircncia ou por que natildeo se considera realmente aquilo que se pode e se deve considerar ignoracircncia esta vinda de maacute eleiccedilatildeo ou de paixatildeo ou de algum haacutebito ou de algum desconhecimento daquilo que se devia ter mas que se descuidou de tecirc-lo e eacute segundo este modo a ignoracircncia das leis universais que todos devem conhecer havendo entatildeo ignoracircncia voluntaacuteria como proveniente da inteligecircnciardquo Agora se mesmo quando um homem conhece e considera o que deveria e poderia conhecer e considerar ainda assim surge um imprevisto entatildeo tal homem natildeo teraacute moralmente agido ou deixado de agir de maacute-feacute O seu agir ou natildeo agir teraacute sido involuntaacuterio Tomaacutes exemplifica Idem Ibidem ldquoSicut cum homo ignorat aliquam circumstantiam actus quam non tenebatur scire et ex hoc aliquid agit quod non faceret si sciret puta cum aliquis diligentia adhibita nesciens aliquem transire per viam proiicit sagittam qua interficit transeuntem Et talis ignorantia causat involuntarium simpliciterrdquo ldquoPor exemplo quando o homem ignora alguma circunstacircncia de um ato que natildeo deveria saber e por isso age o que natildeo faria se o soubesse Assim quando algueacutem prestada a devida atenccedilatildeo desconhecendo que um homem passava pelo caminho lanccedila sua flecha que iraacute mataacute-lo Essa ignoracircncia causa um ato absolutamente involuntaacuteriordquo 90 TOMAacuteS DE AQUINO O Apetite do Bem e a Vontade Quaestiones disputatae de veritate questatildeo 22 Trad Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rev Karine Moreto Massoca Satildeo Paulo EDIPRO 2015 22 6 C ldquoSecundum vero horum est respectu quorumdam obiectorum scilicet respectu eorum quae sunt ad finem et non ipsius finis et etiam secundum quemlibet statum naturae Tertium vero non est respectu omnium obiectorum sed quorumdam scilicet eorum quae sunt ad finem []rdquo ldquoCom efeito assim como de algum princiacutepio verdadeiro dado natildeo se segue uma falsa conclusatildeo a natildeo ser por alguma falsidade da razatildeo ou por assumir algo falso ou ordenando de modo falso o princiacutepio agrave conclusatildeo assim tambeacutem do que inere no apetite reto do fim uacuteltimo natildeo se pode seguir que algueacutem apeteccedila algo desordenado a natildeo ser que a razatildeo tomasse algo que natildeo seja ordenaacutevel ao fim como ordenaacutevel ao fim []rdquo

290 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

Logo para que a vontade tenda para algo natildeo eacute necessaacuterio que seja o bem da coisa mas que seja apreendido na razatildeo de bem Donde o Filoacutesofo dizer no livro II da Fiacutesica ldquoO fim eacute o bem ou o que tenha aparecircncia de bemrdquo91

Por isso eacute possiacutevel que a vontade vaacute contra a reta razatildeo Agrave

razatildeo incauta pode-se solidarizar a incuacuteria da vontade Daiacute a necessidade da aquisiccedilatildeo das virtudes 552 A DEFINICcedilAtildeO DE VIRTUDE COMO HABITUS E MEIO-TERMO DA RAZAtildeO

Neste contexto a virtude humana apresenta-se como uma disposiccedilatildeo estaacutevel para agir (ldquohabitus operativusrdquo) conforme o bem verdadeiro92 Prosseguindo cabe compreender em primeiro lugar que a virtude eacute um habitus porque se as potecircncias naturais satildeo determinadas por seus atos as potecircncias racionais intelectuais ou volitivas como podem tender para vaacuterias coisas 93 satildeo determinadas natildeo por um ato isolado mas por uma disposiccedilatildeo estaacutevel adquirida por muitos atos94 Quando este habitus estaacute

91 Idem Ibidem I-II 8 1 C ldquoAd hoc igitur quod voluntas in aliquid tendat non requiritur quod sit bonum in rei veritate sed quod apprehendatur in ratione boni Et propter hoc philosophus dicit in II Physic quod finis est bonum vel apparens bonumrdquo [O itaacutelico eacute nosso] 92 Idem Ibidem I-II 55 3 C ldquoUnde virtus humana quae est habitus operativus est bonus habitus et boni operativusrdquo ldquoLogo a virtude humana que eacute um haacutebito de accedilatildeo eacute um haacutebito bom e produtor de bemrdquo Idem Ibidem I-II 55 4 C ldquo[] virtus autem est habitus semper se habens ad bonumrdquo ldquoMas a virtude eacute um haacutebito sempre voltado para o bemrdquo 93 Idem Ibidem I-II 55 1 C ldquoPotentiae autem rationales quae sunt propriae hominis non sunt determinatae ad unum sed se habent indeterminate ad multa determinantur autem ad actus per habitus sicut ex supradictis patet Et ideo virtutes humanae habitus suntrdquo ldquomdash Jaacutes as potecircncias racionais proacuteprias do homem natildeo satildeo determinadas a uma coisa soacute antes se prestam indeterminadamente a muitas coisas Ora eacute pelos haacutebitos que elas se determinam aos atos como se mostrou acima Por isso as virtudes humanas satildeo haacutebitosrdquo 94 Idem Ibidem I-II 51 2 C ldquo[] unde ex multiplicatis actibus generatur quaedam qualitas in potentia passiva et mota quae nominatur habitus ldquo[] os atos multiplicados geram na potecircncia passiva e movida uma qualidade que se chama haacutebitordquoIdem Ibidem I-II 51 3 C ldquoManifestum est autem quod principium activum quod est ratio non totaliter potest supervincere appetitivam potentiam in uno actu eo quod appetitiva potentia se habet diversimode et ad multa [] Unde ex hoc non totaliter vincitur appetitiva potentia ut feratur in idem ut in pluribus per modum naturae quod pertinet ad habitum virtutis Et ideo habitus virtutis non potest causari per unum actum sed

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conforme a razatildeo tem-se entatildeo a virtude e os atos da virtude mas se ele discorda da razatildeo tem-se o viacutecio e os atos viciosos 95 Da mesma forma que adquirimos e intensificamos os haacutebitos virtuosos ou viciosos pelas accedilotildees multiplicadas podemos diminuiacute-los e ateacute perdecirc-los pelas mesmas causas a saber os atos voluntaacuterios96 ou mesmo pela inatividade97

O bem do homem segundo vimos coincide com a sua natureza E o peculiar agrave sua natureza eacute a razatildeo Logo a causa e a raiz do bem do homem eacute a razatildeo98 Donde a virtude consistir numa disposiccedilatildeo estaacutevel (habitus) para agir conforme a razatildeo99 Por isso

per multosrdquo ldquoOra eacute manifesto que o princiacutepio ativo que eacute a razatildeo natildeo pode num soacute ato dominar a parte apetitiva porque esta se presta de diversas maneiras a muitas coisas [] E por isso a potecircncia apetitiva natildeo eacute vencida totalmente a ponto de na maioria das vezes ser levada de modo natural para o mesmo objeto o que pertence ao haacutebito da virtude Essa a razatildeo por que esse haacutebito natildeo pode ser causado por um uacutenico ato mas por muitosrdquo 95 Idem Ibidem I-II 54 3 C ldquoUno modo secundum convenientiam ad naturam vel etiam secundum disconvenientiam ab ipsa Et hoc modo distinguuntur specie habitus bonus et malus nam habitus bonus dicitur qui disponit ad actum convenientem naturae agentis habitus autem malus dicitur qui disponit ad actum non convenientem naturae Sicut actus virtutum naturae humanae conveniunt eo quod sunt secundum rationem actus vero vitiorum cum sint contra rationem a natura humana discordant Et sic manifestum est quod secundum differentiam boni et mali habitus specie distinguunturrdquo ldquoA primeira conforme a harmonia ou desarmonia com a natureza E assim se distinguem especificamente o bom haacutebito e o mau pois chama-se bom o haacutebito que dispotildee a atos convenientes agrave natureza do agente e mau o que dispotildee a atos natildeo convenientes a essa natureza como os atos das virtudes convecircm agrave natureza humana quando conformes agrave razatildeo ao passo que os atos viciosos sendo contra a razatildeo estatildeo em desarmonia com essa naturezardquo 96 Idem Ibidem I-II 53 2 C ldquoEt sicut ex eadem causa augentur ex qua generantur ita ex eadem causa diminuuntur ex qua corrumpuntur nam diminutio habitus est quaedam via ad corruptionem sicut e converso generatio habitus est quoddam fundamentum augmenti ipsiusrdquo ldquoE assim como aumentam pela mesma causa que os gera assim tambeacutem diminuem pela mesma causa que os destroacutei pois a diminuiccedilatildeo de um haacutebito eacute o caminho para a sua destruiccedilatildeo e inversamente a geraccedilatildeo do haacutebito eacute uma base para seu crescimentordquo 97 Idem Ibidem I-II 53 3 C ldquoCum autem aliquis non utitur habitu virtutis ad moderandas passiones vel operationes proprias necesse est quod proveniant multae passiones et operationes praeter modum virtutis ex inclinatione appetitus sensitivi et aliorum quae exterius movent Unde corrumpitur virtus vel diminuitur per cessationem ab actu ldquoQuando poreacutem natildeo se utiliza desse haacutebito virtuoso para moderar as paixotildees e accedilotildees muitas delas necessariamente sobreviratildeo sem o comedimento da virtude pela inclinaccedilatildeo do apetite sensitivo e de outros que movem exteriormente e em consequumlecircncia deixando de ser excercida a virtude desaparece ou diminuirdquo 98 Idem Ibidem I-II 66 1 C ldquoManifestum est autem ex dictis quod causa et radix humani boni est ratiordquo ldquo[] a causa e raiz do bem humano eacute a razatildeo []rdquo 99 BOEHNER GILSON Histoacuteria Da Filosofia Cristatilde Desde as Origens ateacute Nicolau de Cusa p 479 ldquoA virtude define-se como uma disposiccedilatildeo ou inclinaccedilatildeo (ldquohabitusrdquo) para agir conformemente agrave

292 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino quando praticada a virtude torna bom natildeo soacute o ato mas o proacuteprio homem pois enquanto aperfeiccediloa os seus atos realiza a sua proacutepria natureza100 jaacute que o agir eacute consecutivo da natureza Assim o ser do homem realiza-se quando este age de acordo com a razatildeo De resto para o ser humano conservar-se no ser eacute manter-se em conformidade com os ditames da razatildeo Neste sentido a praacutetica da virtude que consiste na accedilatildeo em conformidade com a razatildeo produz e conserva a harmonia do ser do homem ldquoDeve-se dizer que o homem eacute propriamente o que eacute pela razatildeo E por isso se diz que algueacutem se conteacutem quando se restringe ao que eacute racionalrdquo101

Ora sendo que a virtude consiste em adequar as paixotildees agrave regra ou medida da razatildeo deve-se considerar que toda regra ou medida pode ser ultrapassada ou simplesmente natildeo ser alcanccedilada Por isso diz-se que a regra ou medida da razatildeo eacute um meio-termo entre o excesso e a falta 102 Mas eacute preciso acrescer que esta

razatildeordquo TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 47 6 C ldquoRespondeo dicendum quod finis virtutum moralium est bonum humanum Bonum autem humanae animae est secundum rationem esse []rdquo ldquoO fim das virtudes morais eacute o bem humano Ora o bem da alma humana eacute estar conformada agrave razatildeo []rdquo 100 Idem Ibidem I-II 55 3 SC ldquoEt philosophus dicit in II Ethic quod virtus est quae bonum facit habentem et opus eius bonum redditrdquo ldquoE o Filoacutesofo diz lsquoA virtude torna bom quem a tem e boas as obras que praticarsquordquo Idem Ibidem II-II 58 3 C ldquoRespondeo dicendum quod virtus humana est quae bonum reddit actum humanum et ipsum hominem bonum facitrdquo ldquoA virtude humana torna bons os atos humanos e o proacuteprio homemrdquo 101 Idem Ibidem II-II 155 1 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod homo proprie est id quod est secundum rationem Et ideo ex hoc dicitur aliquis in seipso se tenere quod tenet se in eo quod convenit rationirdquo 102 Idem Ibidem I-II 64 1 C ldquoMensura autem et regula appetitivi motus circa appetibilia est ipsa ratio Bonum autem cuiuslibet mensurati et regulati consistit in hoc quod conformetur suae regulae sicut bonum in artificiatis est ut consequantur regulam artis Malum autem per consequens in huiusmodi est per hoc quod aliquid discordat a sua regula vel mensura Quod quidem contingit vel per hoc quod superexcedit mensuram vel per hoc quod deficit ab ea sicut manifeste apparet in omnibus regulatis et mensuratis Et ideo patet quod bonum virtutis moralis consistit in adaequatione ad mensuram rationis Manifestum est autem quod inter excessum et defectum medium est aequalitas sive conformitas Unde manifeste apparet quod virtus moralis in medio consistitrdquo ldquoOra a medida e a regra do movimento apetitivo em relaccedilatildeo aos seus objetos eacute a proacutepria razatildeo Por outro lado o bem de tudo o que eacute medido e regulado estaacute em conformar-se agrave sua regra como o bem nas obras artiacutesticas estaacute em seguir as regras da arte Consequumlentemente nesses casos o mal estaacute ao contraacuterio no desacordo de uma coisa com a sua regra ou medida E isso pode acontecer ou porque ela ultrapassa a medida ou porque fica aqueacutem dela como se vecirc claramente em tudo o que eacute medido e regulado E assim eacute oacutebvio que o bem da virtude moral consiste no ajustamento agrave medida da razatildeo

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mediania natildeo eacute uma mediocridade senatildeo o contraacuterio pois ela visa atingir a excelecircncia que eacute conformar as paixotildees agrave regra da razatildeo103

Do quanto dissemos pode parecer que Tomaacutes despreze a parte apetitiva do homem ao dizer que o bem do homem eacute ditado pela sua razatildeo Mas natildeo eacute assim A razatildeo eacute a regra porque eacute ela que nos distingue das outras espeacutecies de animais Poreacutem o homem natildeo eacute soacute inteligente senatildeo que ele apetece as coisas que conhece Assim os atos humanos que seguem o seu ser tambeacutem possuem dois princiacutepios o intelecto e o apetite104 Desta sorte toda virtude que aperfeiccediloe o agir humano inclinando-o para o bem 105 aperfeiccediloa consequentemente um destes dois princiacutepios 106 Quando a virtude aperfeiccediloa o proceder do intelecto mdash seja o especulativo seja o praacutetico mdash chamamo-la virtude intelectual107 Quando a virtude aperfeiccediloa o apetite denominamo-la virtude moral108 Para a nossa temaacutetica basta atermo-nos agraves virtudes morais E entre elas haacute as virtudes cardeais das quais procedem todas as outras As virtudes cardeais satildeo a prudecircncia que embora

mdash Mas evidentemente entre o excesso e o defeito o meio eacute a igualdade ou a conformidade e por isso eacute claro que a virtude moral consiste no meio-termordquo 103 Idem Ibidem I-II 64 1 ad 1 ldquoUnde philosophus dicit in II Ethic quod virtus secundum substantiam medietas est inquantum regula virtutis ponitur circa propriam materiam secundum optimum autem et bene est extremitas scilicet secundum conformitatem rationisrdquo ldquoAssim se entende por que o Filoacutesofo ensina que lsquoa virtude em sua substacircncia estaacute no meiorsquo enquanto impotildee regra agrave sua proacutepria mateacuteria mas lsquoeacute um extremo no que ela tem de melhor e perfeitorsquo isto eacute enquanto conforme agrave razatildeordquo 104 Idem Ibidem I-II 58 3 C ldquoPrincipium autem humanorum actuum in homine non est nisi duplex scilicet intellectus sive ratio et appetitu []rdquo ldquoOra os atos humanos soacute tecircm dois princiacutepios ou seja o intelecto ou razatildeo e o apetiterdquo 105 Idem Ibidem ldquoRespondeo dicendum quod virtus humana est quidam habitus perficiens hominem ad bene operandumrdquo ldquoA virtude humana eacute um haacutebito que aperfeiccediloa o homem para proceder bemrdquo 106 Idem Ibidem ldquoUnde omnis virtus humana oportet quod sit perfectiva alicuius istorum principiorumrdquo ldquoEacute preciso pois que toda virtude humana aperfeiccediloe um desses dois princiacutepiosrdquo 107 Idem Ibidem ldquoSi quidem igitur sit perfectiva intellectus speculativi vel practici ad bonum hominis actum erit virtus intellectualis []rdquo ldquoSe for virtude que aperfeiccediloa o intelecto especulativo ou praacutetico para o bom agir do homem a virtude seraacute intelectual []rdquo 108 Idem Ibidem ldquo[] si autem sit perfectiva appetitivae partis erit virtus moralis []rdquo ldquo[] se aperfeiccediloar a potecircncia apetitiva seraacute virtude moral []rdquo

294 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino sendo uma virtude intelectual rege ou dirige as demais virtudes morais a justiccedila a temperanccedila e a fortaleza Resume o Aquinate

Sintetizando portanto toda a mateacuteria moral no estudo das virtudes podemos reduzir todas as virtudes a sete trecircs teologais que abordaremos em primeiro lugar (q 1-46) e quatro cardeais que trataremos em seguida Entre as virtudes intelectuais uma delas eacute a prudecircncia que se arrola e enumera entre as virtudes cardeais (q 47-56) [] Quanto agraves outras virtudes morais todas se reduzem de algum modo agraves virtudes cardeais como estaacute claro pelo que acima foi dito109

Arrazoaremos mais abaixo sobre as virtudes cardeais jaacute

que as virtudes teologais pertencem ao acircmbito estritamente teoloacutegico Antes poreacutem de passarmos ao toacutepico das virtudes cardeais cabe esclarecermos algo Eacute caro a Tomaacutes o tema da conexatildeo das virtudes de tal sorte que quem natildeo possui por exemplo a prudecircncia tampouco possuiraacute as demais virtudes morais 553 A CONEXAtildeO DAS VIRTUDES

Com o fito de situarmos bem esta questatildeo cumpre termos em mente alguns dados jaacute arrolados neste texto Sabemos que

109 Idem Ibidem II-II Proacutelogo ldquoSic igitur tota materia morali ad considerationem virtutum reducta omnes virtutes sunt ulterius reducendae ad septem quarum tres sunt theologicae de quibus primo est agendum aliae vero quatuor sunt cardinales de quibus posterius agetur Virtutum autem intellectualium una quidem est prudentia quae inter cardinales virtutes continetur et numeratur ars vero non pertinet ad moralem quae circa agibilia versatur cum ars sit recta ratio factibilium ut supra dictum est aliae vero tres intellectuales virtutes scilicet sapientia intellectus et scientia communicant etiam in nomine cum donis quibusdam spiritus sancti unde simul etiam de eis considerabitur in consideratione donorum virtutibus correspondentium Aliae vero virtutes morales omnes aliqualiter reducuntur ad virtutes cardinales ut ex supradictis patet unde in consideratione alicuius virtutis cardinalis considerabuntur etiam omnes virtutes ad eam qualitercumque pertinentes et vitia opposita Et sic nihil moralium erit praetermissumrdquo Idem Ibidem II-II 123 23 C ldquoUnde inter virtutes cardinales prudentia est potior secunda iustitia tertia fortitudo quarta temperantia Et post has ceterae virtutesrdquo ldquoDaiacute a seguinte classificaccedilatildeo das virtudes cardeais primeiro a prudecircncia segundo a justiccedila terceiro a fortaleza quarto a temperanccedila Depois vecircm as outras virtudesrdquo

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apoacutes o pecado de origem embora quanto agrave sua essecircncia a nossa natureza tenha permanecido iacutentegra natildeo se pode negar que o exerciacutecio das virtudes tornou-se claudicante por causa do divoacutercio estabelecido entre os apetites inferiores e a razatildeo De modo que nem o concupisciacutevel eacute facilmente temperado nem o irasciacutevel se deixa sem mais moderar-se pela fortaleza Assim o homem tende a ser subjugado pelo concupisciacutevel e irasciacutevel Ademais estabeleceu-se mesmo entre razatildeo e vontade uma rebeliatildeo uma vez que a vontade apoacutes a queda dos nossos primeiros pais tende a pelejar contra a razatildeo a fim de ceder aos caprichos dos apetites inferiores Pelo que o Aquinate conclui que se no estado de integridade era possiacutevel a praacutetica das virtudes naturais sem o auxiacutelio da graccedila no estado atual mesmo no que toca ao plano natural o auxiacutelio da graccedila eacute requerido Algumas passagens emblemaacuteticas e particularmente elucidativas podem ser citadas com proveito

Portanto deve-se dizer que se a natureza humana tivesse permanecido iacutentegra prevaleceria nela a inclinaccedilatildeo da razatildeo Mas na natureza corrompida o que prevalece eacute a inclinaccedilatildeo da concupiscecircncia que domina no homem Por esta razatildeo o homem eacute mais inclinado a suportar sofrimentos por causa daquilo em que a concupiscecircncia encontra seu prazer desde agora do que a aturar adversidades em vista de bens futuros desejados segundo a razatildeo110

No estado de integridade com respeito agrave capacidade da potecircncia operativa o homem podia com suas forccedilas naturais querer e fazer o bem proporcionado agrave sua natureza como eacute o bem da virtude adquirida mas natildeo um bem que a ultrapassa como eacute o bem da virtude infusa No estado de corrupccedilatildeo o homem falha naquilo que lhe eacute possiacutevel pela sua natureza a tal ponto que ele

110 Idem Ibidem II-II 136 3 ad 1 ldquoAd primum ergo dicendum quod in natura humana si esset integra praevaleret inclinatio rationis sed in natura corrupta praevalet inclinatio concupiscentiae quae in homine dominatur Et ideo pronior est homo ad sustinendum mala in quibus concupiscentia delectatur praesentialiter quam tolerare mala propter bona futura quae secundum rationem appetuntur quod tamen pertinet ad veram patientiamrdquo

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natildeo pode mais por suas forccedilas naturais realizar totalmente o bem proporcionado agrave sua natureza111

Assim no estado de integridade o homem tinha necessidade de uma forccedila acrescentada gratuitamente agravequela de sua natureza unicamente para realizar e querer o bem sobrenatural No estado de corrupccedilatildeo tem necessidade disso para duas coisas primeiro para que seja curado e depois para realizar o bem da ordem sobrenatural isto eacute o bem meritoacuterio112

Daiacute para Tomaacutes ser imperioso que ateacute para que

cumpramos integralmente o bem que nos eacute conatural tenhamos o auxiacutelio da virtude teologal da caridade E isso natildeo nos deve causar espanto pois Tomaacutes eacute um teoacutelogo cristatildeo para ele o fim absolutamente uacuteltimo do homem eacute a visatildeo beatiacutefica de Deus Ora este fim ultrapassa o que eacute devido agrave nossa natureza Desta sorte soacute podemos alcanccedilaacute-lo se formos socorridos pela caridade que eacute uma virtude natildeo adquirida mas infusa Sem ela as demais virtudes natildeo se encontram dispostas a nos ordenar ao nosso fim verdadeiramente uacuteltimo Estamos no limiar de uma moral teoloacutegica Neste sentido eacute interessante coligirmos algumas passagens que atestem isso

Deve-se dizer que o fim eacute na accedilatildeo o que eacute o princiacutepio no conhecimento especulativo Assim como natildeo pode haver ciecircncia absolutamente verdadeira sem uma exata avaliaccedilatildeo do princiacutepio primeiro e indemonstraacutevel assim tambeacutem natildeo pode haver absolutamente verdadeira justiccedila ou verdadeira castidade se

111 Idem Ibidem I-II 109 2 C ldquoSed in statu naturae integrae quantum ad sufficientiam operativae virtutis poterat homo per sua naturalia velle et operari bonum suae naturae proportionatum quale est bonum virtutis acquisitae non autem bonum superexcedens quale est bonum virtutis infusae Sed in statu naturae corruptae etiam deficit homo ab hoc quod secundum suam naturam potest ut non possit totum huiusmodi bonum implere per sua naturaliardquo 112 Idem Ibidem ldquoSic igitur virtute gratuita superaddita virtuti naturae indiget homo in statu naturae integrae quantum ad unum scilicet ad operandum et volendum bonum supernaturale Sed in statu naturae corruptae quantum ad duo scilicet ut sanetur et ulterius ut bonum supernaturalis virtutis operetur quod est meritorium Ulterius autem in utroque statu indiget homo auxilio divino ut ab ipso moveatur ad bene agendumrdquo

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faltar a ordenaccedilatildeo devida para o fim produzida pela caridade embora algueacutem se comporte com retidatildeo em tudo o mais113

Deve-se dizer que a caridade eacute comparada ao fundamento e agrave raiz por nela se sustentarem e nutrirem todas as outras virtudes mas natildeo no sentido em que fundamento e raiz tecircm razatildeo de causa material114

Deve-se dizer que a caridade eacute considerada o fim das outras virtudes porque as ordena para o seu fim proacuteprio E sendo a matildee a que concebe em si mesma por um outro pode-se dizer que a caridade eacute a matildee das outras virtudes porque pelo desejo do fim uacuteltimo concebe os atos das demais virtudes imperando-os115

Eacute digno de nota que em toda esta argumentaccedilatildeo Tomaacutes

nunca perde de vista que haacute uma perfeiccedilatildeo quanto ao tempo tal como a discriminamos no terceiro capiacutetulo Esta perfeiccedilatildeo proacutepria agrave ordem natural podemos vivenciaacute-la sem precisar necessariamente praticar com heroiacutesmo todas as virtudes naturais isto eacute sem precisar por uma necessidade absoluta da graccedila Com efeito tantos pagatildeos chegaram a esta perfeiccedilatildeo Em outros termos para a perfeiccedilatildeo que requer a vida na civitas eacute suficiente que pratiquemos as virtudes morais o quanto for necessaacuterio para a convivecircncia entre os homens deixando de lado aqueles viacutecios que tolhem a coexistecircncia harmoniosa que a vida em comum exige Tomaacutes prevecirc esta perfeiccedilatildeo

113 Idem Ibidem II-II 23 7 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod cum finis se habeat in agibilibus sicut principium in speculativis sicut non potest esse simpliciter vera scientia si desit recta aestimatio de primo et indemonstrabili principio ita non potest esse simpliciter vera iustitia aut vera castitas si desit ordinatio debita ad finem quae est per caritatem quantumcumque aliquis se recte circa alia habeatrdquo 114 Idem Ibidem II-II 23 8 ad 2 ldquoAd secundum dicendum quod caritas comparatur fundamento et radici inquantum ex ea sustentantur et nutriuntur omnes aliae virtutes et non secundum rationem qua fundamentum et radix habent rationem causae materialisrdquo 115 Idem Ibidem II-II 23 8 ad 3 ldquoAd tertium dicendum quod caritas dicitur finis aliarum virtutum quia omnes alias virtutes ordinat ad finem suum Et quia mater est quae in se concipit ex alio ex hac ratione dicitur mater aliarum virtutum quia ex appetitu finis ultimi concipit actus aliarum virtutum imperando ipsosrdquo

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Eacute evidente pois pelo que foi dito que soacute as virtudes infusas satildeo perfeitas e de modo absoluto devem ser chamadas virtudes porque ordenam bem o homem ao fim absolutamente uacuteltimo As outras virtudes ou seja as adquiridas satildeo virtudes em sentido relativo e natildeo absolutamente porque ordenam bem o homem a um fim uacuteltimo natildeo em sentido absoluto mas soacute em determinado gecircnero []116

Kenny confirma este entendimento ao afirmar que esta

linha de argumentaccedilatildeo justifica-se e autoriza-nos a falar de uma eacutetica tomasiana que pode ser lida por qualquer filoacutesofo secular

Somente aqueles que partilham da feacute de Sto Tomaacutes na visatildeo beatiacutefica como culminaccedilatildeo de uma vida virtuosa podem ingressar completamente no sistema moral que ele apresenta Mas em grande parte graccedilas ao suporte aristoteacutelico de sua reflexatildeo moral muito de sua reflexatildeo de toacutepicos morais individuais eacute altamente instrutivo tambeacutem para o filoacutesofo secular117

Ora estes ldquotoacutepicos morais individuaisrdquo que podem ser

ldquoaltamente instrutivosrdquo ao filoacutesofo secular satildeo a nosso ver as virtudes cardeais Assim a conexatildeo das virtudes natildeo implica que a ordem proacutepria de cada uma seja suprimida

Como filosofia e teologia distintas mas conexas representam dois graus de conhecimento cada um autocircnomo mas ordenado ao outro assim as virtudes naturais mantecircm todo o seu valor e a sua autonomia embora o seu fim terreno deva ser ordenado ao fim superior e supremo da beatitude eterna118

116 Idem Ibidem I-II 65 2 C ldquoPatet igitur ex dictis quod solae virtutes infusae sunt perfectae et simpliciter dicendae virtutes quia bene ordinant hominem ad finem ultimum simpliciter Aliae vero virtutes scilicet acquisitae sunt secundum quid virtutes non autem simpliciter ordinant enim hominem bene respectu finis ultimi in aliquo genere non autem respectu finis ultimi simpliciterrdquo 117 KENNY Op Cit p 300 118 VASOLI Op Cit p 310 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCome filosofia e teologia distinte ma connesse rappresentano due gradi di conoscenza ognuno autonomo ma lrsquouno ordinato allrsquoaltro cosiacute anche le virtuacute naturali mantengono tutto il loro valore e la loro autonomia anche se il loro fine terreno devrsquoessere ordinato al fine superiore e supremo della beatitudine eternardquo

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Chegamos assim agrave certeza de que na siacutentese de Tomaacutes as virtudes eacuteticas naturais tecircm a sua autonomia salvaguardada Elas seratildeo o resultado de uma boa ldquopoliacuteticardquo da nossa razatildeo e vontade com os nossos apetites inferiores No resumo que se segue elencaremos apenas as definiccedilotildees das virtudes cardeais sugerindo alguns exemplos119 554 AS VIRTUDES CARDEAIS

Entre as virtudes cardeais a primeira eacute a prudecircncia A ela cabe aperfeiccediloar o uso praacutetico e adequado de um conhecimento jaacute adquirido Na verdade a prudecircncia consiste na reta razatildeo do que deve ser feito Como trata de accedilotildees circunstanciais e contingentes e como consiste na reta razatildeo do agir120 mais do que aperfeiccediloar a deliberaccedilatildeo ou a eleiccedilatildeo a prudecircncia aperfeiccediloa o impeacuterio o qual ordena que faccedilamos o que devemos fazer e precede imediatamente a accedilatildeo Destarte a prudecircncia precipuamente faz com que decidamos bem o que devemos fazer hic et nunc121 Em razatildeo

119 Natildeo caberia reiteramos discorrer sobre as virtudes teologais Natildeo obstante os tratados consagrados a elas sejam ricos de conceitos filosoacuteficos por se tratarem de virtudes infusas e natildeo adquiridas entendemos que elas pertencem ao menos em Tomaacutes a um discurso estritamente teoloacutegico De todo modo houve quem magistralmente soube perceber as riquezas filosoacuteficas escondidas nos tratados dedicados agraves virtudes teologais PIEPER Josef Crer Esperar e Amar Antropologia do Crer Trad Luiz Jean Lauand Disponiacutevel em lthttpsformadorcatolicowordpresscom20160922crer-esperar-e-amargt 120 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 57 4 C ldquoCuius differentiae ratio est quia ars est recta ratio factibilium prudentia vero est recta ratio agibiliumrdquo ldquoA razatildeo dessa diferenccedila eacute que a arte eacute a lsquorazatildeo reta das coisas factiacuteveisrsquo enquanto que a prudecircncia eacute lsquoa razatildeo reta de nosso agirrsquordquo 121 Idem Ibidem II-II 47 8 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est recta ratio agibilium ut supra dictum est Unde oportet quod ille sit praecipuus actus prudentiae qui est praecipuus actus rationis agibilium Cuius quidem sunt tres actus Quorum primus est consiliari quod pertinet ad inventionem nam consiliari est quaerere ut supra habitum est Secundus actus est iudicare de inventis et hic sistit speculativa ratio Sed practica ratio quae ordinatur ad opus procedit ulterius et est tertius actus eius praecipere qui quidem actus consistit in applicatione consiliatorum et iudicatorum ad operandum Et quia iste actus est propinquior fini rationis practicae inde est quod iste est principalis actus rationis practicae et per consequens prudentiaerdquo ldquoA prudecircncia eacute a reta razatildeo do que deve ser feito jaacute foi dito Portanto eacute necessaacuterio que o ato principal da prudecircncia seja o ato principal da razatildeo orientado ao que deve ser feito Nela se distinguem trecircs atos o primeiro eacute deliberar ao qual compete a descoberta porque deliberar eacute procurar como foi dito acima O segundo ato eacute o julgamento relativo ao que foi descoberto o que eacute funccedilatildeo da razatildeo especulativa Mas

300 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino disso ela eacute uma virtude especialiacutessima porque se ldquoO fim das virtudes morais eacute o bem humanordquo122 e o bem da vida humana consiste na accedilatildeo ldquo[] estar conformada agrave razatildeordquo123 uma vez que a prudecircncia eacute a reta razatildeo do agir ldquoA prudecircncia eacute a virtude mais necessaacuteria agrave vida humana pois viver bem consiste em agir bemrdquo124 Ademais sendo recta ratio agibilium a prudecircncia torna-se de algum modo o fim proacuteprio de toda virtude moral125

Como a decisatildeo prudencial consagra as etapas anteriores que estruturam o ato humano pois realiza de modo benfazejo a intersecatildeo entre elas Carlos Josaphat celebra a prudecircncia como a virtude que integra o homem consigo mesmo ldquoO ser humano prudente eacute como um soberano que manda em seu reino interiorrdquo126 Natildeo soacute mas sendo que os nossos atos e as suas consequecircncias atingem aqueles e aquilo que estatildeo sob nosso governo ou dependem de noacutes pode-se dizer que a prudecircncia tambeacutem realiza uma conjunccedilatildeo harmoniosa dos homens uns com os outros e com as coisas ldquoSer prudente eacute bem governar bem governar-se e bem governar aqueles e aquilo que depende de noacutesrdquo127 Todos estes dados convergem para a seguinte definiccedilatildeo de prudecircncia ldquo[] a virtude do governo de si e dos outrosrdquo128 sempre com o objetivo de levar o outro a unificar-se

a razatildeo praacutetica ordenada agrave accedilatildeo efetiva vai mais longe e eacute seu terceiro ato comandar Este ato consiste em aplicar agrave accedilatildeo o resultado obtido na descoberta e no julgamento E porque este ato estaacute mais proacuteximo do fim da razatildeo praacutetica segue-se que este eacute o ato principal da razatildeo praacutetica e consequumlentemente da prudecircnciardquo 122 Idem Ibidem II-II 47 6 C ldquoRespondeo dicendum quod finis virtutum moralium est bonum humanumrdquo 123 Idem Ibidem ldquoBonum autem humanae animae est secundum rationem esse []rdquo 124 Idem Ibidem I-II 57 5 C ldquoRespondeo dicendum quod prudentia est virtus maxime necessaria ad vitam humanam Bene enim vivere consistit in bene operarirdquo 125 Idem Ibidem II-II 47 7 C ldquoRespondeo dicendum quod hoc ipsum quod est conformari rationi rectae est finis proprius cuiuslibet moralis virtutis []rdquo ldquoA conformidade com a reta razatildeo eacute o fim proacuteprio de toda virtude moralrdquo 126 JOSAPHAT Op Cit p 568 127 Idem Op Cit 128 Idem Op Cit p 570

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Outra virtude cardeal eacute a justiccedila Como a qualquer outra virtude tambeacutem a ela cabe tornar bons os atos humanos129 E o ato humano soacute eacute bom quando estiver conforme a razatildeo130 Ora justiccedila designa igualdade e nada eacute igual a si mesmo131 Destarte agrave virtude da justiccedila compete ordenar as nossas relaccedilotildees com os outros132 Ela consiste em fazer com que cada qual decirc ao outro o que lhe eacute devido133

No que toca estritamente agrave virtude cardeal da justiccedila haacute duas espeacutecies134 a justiccedila comutativa que abrange toda sorte de intercacircmbios realizados entre as partes de um todo social por exemplo entre duas pessoas 135 e a justiccedila distributiva que abrange toda forma de relaccedilatildeo que o todo estabelece com as suas partes136 No caso da justiccedila distributiva ela se realiza quando

129 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica II-II 58 3 C ldquoUnde cum iustitia operationes humanas rectificet manifestum est quod opus hominis bonum redditrdquo ldquoOra como a justiccedila retifica as accedilotildees humanas eacute claro que as torna boasrdquo 130 Idem Ibidem ldquoActus enim hominis bonus redditur ex hoc quod attingit regulam rationis secundum quam humani actus rectificanturrdquo ldquoPois o ato humano se torna bom ao atingir a regra da razatildeo que o retificardquo 131 Idem Ibidem II-II 58 2 C ldquo[] nihil enim est sibi aequale sed alteri []rdquo ldquoPois nada eacute igual a si mesmo mas a um outrordquo 132 Idem Ibidem ldquoRespondeo dicendum quod sicut supra dictum est cum nomen iustitiae aequalitatem importet ex sua ratione iustitia habet quod sit ad alterum []rdquo ldquo[] o nome de justiccedila implica igualdade por isso em seu conceito mesmo a justiccedila comporta relaccedilatildeo com outremrdquo 133 Idem Ibidem I-II 60 3 C ldquo[] iustitiam enim pertinere videtur ut quis debitum reddat []rdquo ldquo[] cabe agrave justiccedila parece pagar a cada um o que deverdquo 134 Idem Ibidem II-II 61 1 C ldquoEt ideo duae sunt iustitiae species scilicet commutativa et distributivardquo ldquoHaacute portanto duas espeacutecies de justiccedila a comutativa e a distributivardquo Tomaacutes fala ainda de uma justiccedila geral que consiste em ordenar as relaccedilotildees dos membros com o todo social E como este ordenamento eacute estabelecido pelas leis chama-se esta justiccedila tambeacutem justiccedila legal Idem Ibidem II-II 58 5 C ldquoEt quia ad legem pertinet ordinare in bonum commune ut supra habitum est inde est quod talis iustitia praedicto modo generalis dicitur iustitia legalis []rdquo ldquoE como compete agrave lei ordenar o homem ao bem comum como jaacute foi dito essa justiccedila geral eacute chamada legal []rdquo 135 Idem Ibidem II-II 61 1 C ldquoUnus quidem partis ad partem cui similis est ordo unius privatae personae ad aliam Et hunc ordinem dirigit commutativa iustitia quae consistit in his quae mutuo fiunt inter duas personas ad invicemrdquo Uma de parte a parte agrave qual corresponde a relaccedilatildeo de uma pessoa privada a oura Tal relaccedilatildeo eacute dirigida pela justiccedila comutativa que visa o intercacircmbio muacutetuo entre duas pessoasrdquo 136 Idem Ibidem ldquoAlius ordo attenditur totius ad partes et huic ordini assimilatur ordo eius quod est commune ad singulas personas Quem quidem ordinem dirigit iustitia distributiva quae est

302 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino ocorre uma igualdade de proporcionalidade geomeacutetrica isto eacute quando o que preside daacute a cada qual o que lhe eacute devido do que eacute comum segundo a sua relevacircncia para o bem comum137 no caso da justiccedila comutativa que se daacute entre iguais deve-se estabelecer uma igualdade aritmeacutetica a saber quantitativa138

Mas os deacutebitos satildeo diversos Logo agrave virtude da justiccedila se anexam outras virtudes conforme os diferentes tipos de deacutebitos existentes139 Por exemplo pela virtude da religiatildeo buscamos dar a Deus o que lhe eacute devido por nos ter criado pela piedade endereccedilamos o nosso amor aos pais e agrave paacutetria pela gratidatildeo dedicamos aos nossos benfeitores uma disposiccedilatildeo de habitual solicitude140

distributiva communium secundum proportionalitatemrdquo ldquoA outra relaccedilatildeo eacute do todo agraves partes a ela se assemelha a relaccedilatildeo entre o que eacute comum e cada uma das pessoas A esta segunda relaccedilatildeo se refere a justiccedila distributiva que reparte o que eacute comum de maneira proporcionalrdquo 137 Idem Ibidem II-II 61 2 C ldquoEt ideo in iustitia distributiva non accipitur medium secundum aequalitatem rei ad rem sed secundum proportionem rerum ad personas ut scilicet sicut una persona excedit aliam ita etiam res quae datur uni personae excedit rem quae datur alii Et ideo dicit philosophus quod tale medium est secundum geometricam proportionalitatem in qua attenditur aequale non secundum quantitatem sed secundum proportionemrdquo ldquoAssim na justiccedila distributiva o meio-termo natildeo se considera por uma igualdade de coisa a coisa poreacutem segundo uma proporccedilatildeo das coisas agraves pessoas de sorte que se uma pessoa eacute superior agrave outra assim tambeacutem o que lhe eacute dado excederaacute o que eacute dado agrave outra Por isso o Filoacutesofo declara que esse meio-termo se considera segundo uma lsquoproporcionalidade geomeacutetricarsquo em que a igualdade natildeo eacute de quantidade mas de proporccedilatildeordquo 138 Idem Ibidem ldquoSed in commutationibus redditur aliquid alicui singulari personae propter rem eius quae accepta est ut maxime patet in emptione et venditione in quibus primo invenitur ratio commutationis Et ideo oportet adaequare rem rei ut quanto iste plus habet quam suum sit de eo quod est alterius tantundem restituat ei cuius est Et sic fit aequalitas secundum arithmeticam medietatem quae attenditur secundum parem quantitatis excessum []rdquo ldquoAo contraacuterio nas comutaccedilotildees daacute-se algo a uma pessoa particular por causa de uma coisa que dela se recebeu o que eacute da maior evidecircncia nas compras e vendas nas quais primeiro se manifesta a noccedilatildeo de comutaccedilatildeo Eacute entatildeo necessaacuterio igualar uma coisa agrave outra E assim se algueacutem guarda aleacutem do que eacute seu um tanto de outrem deve restituir-lhe exatamente essa diferenccedila Dessa forma se realiza a igualdade segundo uma meacutedia lsquoaritmeacuteticarsquo estabelecida por um excedente quantitativo igual []rdquo 139 Idem Ibidem I-II 60 3 C ldquoSed debitum non est unius rationis in omnibus [] Et secundum has diversas rationes debiti sumuntur diversae virtutes []rdquo ldquomdash Mas a razatildeo de deacutebito natildeo eacute a mesma em todas as situaccedilotildees [] E a essas diferentes razotildees de deacutebito correspondem diferentes virtudesrdquo 140 Idem Ibidem ldquo[] puta religio est per quam redditur debitum Deo pietas est per quam redditur debitum parentibus vel patriae gratia est per quam redditur debitum benefactoribus et sic de aliisrdquo ldquoPor exemplo a religiatildeo eacute a virtude pela qual damos a Deus o que lhes eacute devido a piedade pela qual damos aos pais e agrave paacutetria o que lhe eacute devido a gratidatildeo aos benfeitores e assim tambeacutem as demais virtudesrdquo

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Quando falamos de justiccedila eacute importante natildeo nos esquecermos de que estamos a falar realmente de uma virtude e natildeo de um mero cumprimento de leis ou obrigaccedilotildees Trata-se para Tomaacutes de uma vontade habitual mdash constante e perpeacutetua mdash de dar a cada um o que lhe eacute de direito141 Neste sentido a justiccedila se apresenta como a descoberta do outro enquanto detentor de direitos ela eacute pois a vitoacuteria sobre o egocentrismo142 Acerca deste toacutepico natildeo podemos senatildeo ceder a palavra a Carlos Josaphat

O sentido da justiccedila se constitui e se afirma primordialmente como o ldquosentido do outrordquo Na evoluccedilatildeo na marcha para a plena humanizaccedilatildeo de cada indiviacuteduo e de toda a sociedade emerge e haacute de dominar a percepccedilatildeo a aceitaccedilatildeo do outro O outro surge e haacute de ser reconhecido natildeo apenas na sua diferenccedila do eu que o considera mas tambeacutem na sua originalidade singular no seu valor incomparaacutevel de ser humano O ldquooutrordquo passa a ser visto e acatado como ldquogenterdquo [] Na sua verdade e densidade humanas agrave luz do sentido eacutetico da justiccedila mdash o ldquooutrordquo eacute reconhecido e aceito como uma ldquopessoardquo []143

Agrave temperanccedila mdash outra virtude cardeal mdash cumpre regular os

nossos atos internos para que natildeo se rendam ao iacutempeto das

141 Idem Ibidem II-II 58 1 C ldquoEt si quis vellet in debitam formam definitionis reducere posset sic dicere quod iustitia est habitus secundum quem aliquis constanti et perpetua voluntate ius suum unicuique tribuitrdquo ldquoPara dar a essa definiccedilatildeo sua devida forma bastaria dizer lsquoA justiccedila eacute o haacutebitus pelo qual com vontade constante e perpeacutetua se daacute a cada um o seu direitorsquordquo 142 JOSAPHAT Op Cit p 580 ldquoA justiccedila emerge assim como uma conquista como um triunfo constante sobre todo apetite ou desejo que torne o homem escravo das coisas e do seu egocentrismordquo PIEPER Josef As virtudes fundamentais Trad Narino e Silva e Beckert da Assumpccedilatildeo Editorial Aster Lisboa 1960 p 93 ldquoDistinguir o proacuteprio do alheio mdash isso eacute a justiccedilardquo [O itaacutelico eacute nosso] 143 JOSAPHAT Op Cit pp 585-586 Josef Pieper quando estuda a justiccedila comutativa daacute uma definiccedilatildeo de justiccedila menos vibrante mas natildeo menos de acordo com o pensamento de Tomaacutes PIEPER As virtudes fundamentais p 111 ldquoO que isto quer dizer sem romantismos e sem ilusotildees eacute que a exigecircncia contida na ideia de uma iustitia commutativa consiste em reconhecer precisamente o estranho mdash o semelhante que na realidade eacute estranho ou eacute por noacutes interiormente sentido como tal e talvez ateacute dum momento para o outro por noacutes visto como uma lsquoconcorrecircnciarsquo ou uma ameaccedila aos nossos proacuteprios interesses o estranho a quem nada se pede de quem natildeo se gosta a quem natildeo ocorre oferecer coisa alguma e ao qual tem antes de se oferecer resistecircncia mdash para lhe dar soacute o que lhe pertence nada menos e nada mais isto eacute a justiccedilardquo [O segundo itaacutelico eacute nosso]

304 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino paixotildees que costumam inclinar-nos para o que eacute contraacuterio agrave razatildeo144 Jaacute agrave fortaleza pertence firmar as nossas accedilotildees no que eacute racional natildeo permitindo que o temor do perigo ou o medo do sofrimento nos impeccedilam de agir conforme a reta razatildeo145 Assim temos que a temperanccedila educa o concupisciacutevel a fortaleza o irasciacutevel Longe pois de suprimir a nossa sensibilidade as virtudes morais conduzem-nos a um uso disciplinado dela

Agora seria a ocasiatildeo de passarmos a tratar de cada uma das virtudes cardeais dos viacutecios opostos etc Contudo natildeo tencionamos isso Aqui apenas elencaremos algumas notas Para exemplificar falaremos da crueldade e da ferocidade bem como do assalto das paixotildees desordenadas na aprendizagem Crueldade vem de crueza146 Satildeo ditos crueacuteis aqueles que embora tendo motivos para punir algueacutem natildeo tecircm medida ao fazecirc-lo147 Tomaacutes afirma ldquoA crueldade ao contraacuterio visa agrave culpa daquele que eacute castigado mas se excede no modo de punirrdquo148 Jaacute a ferocidade recebe este nome pela semelhanccedila que os que a possuem tecircm com as feras 149 Diferentemente dos crueacuteis os ferozes punem natildeo

144 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 61 2 C ldquoUno modo secundum quod passio impellit ad aliquid contrarium rationi et sic necesse est quod passio reprimatur et ab hoc denominatur temperantiardquo ldquo[] quando a paixatildeo impele a algo contraacuterio agrave razatildeo e aiacute eacute preciso que a paixatildeo seja controlada o que chamamos de temperanccedila []rdquo 145 Idem Ibidem ldquoAlio modo secundum quod passio retrahit ab eo quod ratio dictat sicut timor periculorum vel laborum et sic necesse est quod homo firmetur in eo quod est rationis ne recedat et ab hoc denominatur fortitudordquo ldquo[] quando a paixatildeo nos afasta das normas da razatildeo como o temor do perigo ou do sofrimento e nesse caso devemos nos firmar inarredavelmente no que eacute racional e a isso se daacute o nome de fortalezardquo 146 Idem Ibidem II-II 159 1 C ldquoRespondeo dicendum quod nomen crudelitatis a cruditate sumptum esse videturrdquo ldquoCrueldade eacute palavra que parece derivada de cruezardquo 147 Idem Ibidem II-II 157 1 ad 3 ldquoUnde dicit Seneca in II de Clem quod crudeles vocantur qui puniendi causam habent modum non habentrdquo ldquoPor isso diz Secircneca lsquochamam-se crueacuteis os que tecircm motivo para punir mas natildeo tecircm medidas no fazecirc-lordquo 148 Idem Ibidem II-II 159 2 C ldquoSed crudelitas attendit culpam in eo qui punitur sed excedit modum in puniendordquo 149 Idem Ibidem ldquoRespondeo dicendum quod nomen saevitiae et feritatis a similitudine ferarum accipitur quae etiam saevae dicuntur Huiusmodi enim animalia nocent hominibus ut ex eorum corporibus pascantur non ex aliqua iustitiae causa cuius consideratio pertinet ad solam rationemrdquo ldquoOs termos lsquoseviacuteciarsquo e lsquoferocidadersquo vecircm da semelhanccedila com as feras tambeacutem chamadas sevas pois

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visando agrave culpa mas somente ao prazer de ver o sofrimento alheio 150 Raciocina Tomaacutes este prazer natildeo eacute humano mas animalesco ldquoTrata-se eacute claro de uma bestialidade pois esse prazer natildeo eacute humano mas de ferasrdquo151 Noutro lugar o Aquinate precisa que os que gostam de castigar os seus semelhantes sem razatildeo assemelham-se agraves feras por natildeo terem o natural sentimento de amor que todo homem deve ter por outro homem Por isso satildeo chamados ferozes

E quanto aos que gostam de castigar os outros mesmo sem motivo pode-se chamaacute-los de selvagens ou ferozes por natildeo terem aquele sentimento humano pelo qual o homem ama naturalmente o homem152

Nosso pensador acena ainda para os males que uma

sensibilidade malsatilde pode causar impedindo inclusive a educaccedilatildeo e a convivecircncia na civitas Por exemplo quando natildeo moderadas pela razatildeo as paixotildees podem causar bloqueio agrave proacutepria aprendizagem Assim quem natildeo se conteacutem e provoca excessiva dor e tristeza ao estudante acaba prejudicando a sua aprendizagem pois ningueacutem pode aprender algo novo sentindo muita dor e se a dor for realmente muito intensa inabilita ateacute

esses animais atacam os homens para se alimentarem com sua carne e natildeo o fazem por alguma causa justa cuja consideraccedilatildeo se refere unicamente agrave razatildeordquo 150 Idem Ibidem ldquoEt ideo proprie loquendo feritas vel saevitia dicitur secundum quam aliquis in poenis inferendis non considerat aliquam culpam eius qui punitur sed solum hoc quod delectatur in hominum cruciaturdquo ldquo[] a ferocidade ou seviacutecia eacute atribuiacuteda aos que ao punirem algueacutem natildeo visam agrave culpa da pessoa mas soacute ao proacuteprio prazer do sofrimento alheiordquo 151 Idem Ibidem ldquoEt sic patet quod continetur sub bestialitate nam talis delectatio non est humana sed bestialis []rdquo 152 Idem Ibidem II-II 157 1 ad 3 ldquoQui autem in poenis hominum propter se delectantur etiam sine causa possunt dici saevi vel feri quasi affectum humanum non habentes ex quo naturaliter homo diligit hominemrdquo

306 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mesmo a memoacuteria do que jaacute foi aprendido153 Pode-se pensar que com dor nem o professor pode lecionar sobre o que sabe

Tambeacutem eacute evidente que para aprender algo novo se exige estudo e esforccedilo com grande atenccedilatildeo [] Por isso se a dor for intensa o homem eacute impedido de poder aprender E a dor pode intensificar-se a ponto de natildeo permitir enquanto dura que o homem pense em coisas que aprendera antes154

Se a dor ou tristeza eacute moderada pode acidentalmente ajudar a aprender enquanto retira o excesso de prazeres Mas por si impede o estudo e se for intensa suprime de todo155

Tomaacutes mdash professor que sempre foi mdash considera um viacutecio o

haacutebito daqueles que corrigem os outros com menoscabo difamando-os ou inquietando-os Resoluto sobre estes sentencia ldquoAo contraacuterio eacute vicioso reparar nos erros do proacuteximo para menosprezaacute-lo difamaacute-lo ou simplesmente inquietaacute-lo sem proveito algumrdquo156 Decerto que a correccedilatildeo eacute necessaacuteria mas esta deve ser fruto de uma sensibilidade temperada pela razatildeo157

153 Aliaacutes a melhor ldquoreceitardquo para uma boa memoacuteria eacute amar o que se faz Idem Ibidem I-II 47 2 C ldquo[] ea enim quae magna aestimamus magis memoriae infigimusrdquo ldquoAs coisas que julgamos importantes fixamos melhor na memoacuteriardquo 154 Idem Ibidem I-II 37 1 C ldquoSimiliter etiam manifestum est quod ad addiscendum aliquid de novo requiritur studium et conatus cum magna intentione [] Et ideo si sit dolor intensus impeditur homo ne tunc aliquid addiscere possit Et tantum potest intendi quod nec etiam instante dolore potest homo aliquid considerare etiam quod prius scivitrdquo 155 Idem Ibidem I-II 37 1 ad 2 ldquoSi ergo dolor seu tristitia fuerit moderata per accidens potest conferre ad addiscendum inquantum aufert superabundantiam delectationum Sed per se impedit et si intendatur totaliter aufertrdquo 156 Idem Ibidem II-II 167 2 ad 3 ldquoSed quod aliquis intendit ad consideranda vitia proximorum ad despiciendum vel detrahendum vel saltem inutiliter inquietandum est vitiosumrdquo 157 Idem Ibidem ldquoAd tertium dicendum quod prospicere facta aliorum bono animo vel ad utilitatem propriam ut scilicet homo ex bonis operibus proximi provocetur ad melius vel etiam ad utilitatem illius ut scilicet corrigatur si quid ab eo agitur vitiose secundum regulam caritatis et debitum officii est laudabile []rdquo ldquoDeve-se dizer que eacute louvaacutevel atentar com boa intenccedilatildeo para o que os outros fazem se for para utilidade proacutepria vendo as boas accedilotildees alheias como estiacutemulo a ser melhores ou se for para a utilidade do proacuteximo para que este seguindo as regras da caridade e do seu dever do ofiacutecio se corrija no que estiver praticando de malrdquo

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Com estes exemplos mdash tirados do tratado acerca da temperanccedila da Summa Theologiae mdash queremos mais uma vez pontuar que as virtudes natildeo visam tolher a nossa sensibilidade mas harmonizaacute-la humanizaacute-la a fim de tornar possiacutevel a fundaccedilatildeo de um mundo de uma ambiecircncia capaz de hospedar os homens

Para o escacircndalo de alguns de seus contemporacircneos o Aquinate defende que o homem natildeo tem trecircs almas mas apenas uma forma substancial uma alma intelectiva que acumula as funccedilotildees vegetativas sensitivas e intelectivas Eis uma passagem paradigmaacutetica

Deve-se pois dizer que nenhuma outra forma substancial existe no homem senatildeo a alma intelectiva E que ela assim como virtualmente conteacutem a alma sensitiva e a alma vegetativa assim tambeacutem conteacutem todas as formas inferiores e ela realiza por si soacute tudo o que as formas menos perfeitas realizam nos outros158

Destarte ldquo[] deve-se dizer que no homem a alma

sensitiva intelectiva e vegetativa eacute numericamente a mesmardquo159 Eacute pois uma uacutenica e mesma forma intelectiva ldquo[] a forma pela qual o homem eacute um ente em ato um corpo um ser vivo um animal e um homemrdquo160 Conclui ainda Tomaacutes ldquo[] Soacutecrates natildeo eacute homem por uma alma e animal por outra mas por uma soacute e mesma almardquo161 Ora as virtudes visam precisamente direcionar a nossa sensibilidade para que ela natildeo se manifeste de forma animalesca

158 Idem Ibidem I 76 4 C ldquoUnde dicendum est quod nulla alia forma substantialis est in homine nisi sola anima intellectiva et quod ipsa sicut virtute continet animam sensitivam et nutritivam ita virtute continet omnes inferiores formas et facit ipsa sola quidquid imperfectiores formae in aliis faciuntrdquo 159 Idem Ibidem I 76 3 C ldquoSic ergo dicendum quod eadem numero est anima in homine sensitiva et intellectiva et nutritivardquo 160 Idem Ibidem I 76 6 ad 1 ldquoUna enim et eadem forma est per essentiam per quam homo est ens actu et per quam est corpus et per quam est vivum et per quam est animal et per quam est homordquo 161 Idem Ibidem I 76 3 C ldquo[] ita nec per aliam animam Socrates est homo et per aliam animal sed per unam et eandemrdquo

308 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino mas de maneira racional afinada com a complexidade do nosso ser

Estamos cientes de que restaria muito por ser desenvolvido neste capiacutetulo mas nosso objetivo era apenas sinalizar para a existecircncia de uma leitura em chave filosoacutefica de uma parte que integra a teologia moral de Tomaacutes de Aquino Esta leitura eacute possiacutevel porque Tomaacutes natildeo pensa que o pecado tenha corrompido a natureza humana enquanto tal Em razatildeo disso o homem mdash para o Aquinate mdash eacute sempre capaz de adquirir as virtudes naturais ao menos o necessaacuterio para ser um bom cidadatildeo Ora uma vez que existe a possibilidade de uma vivecircncia eacutetica no acircmbito restrito do humano mdash o que procuramos estabelecer com definiccedilotildees e exemplos neste capiacutetulo e ao longo do nosso texto mdash eacute possiacutevel tambeacutem haver uma inquiriccedilatildeo de cunho filosoacutefico acerca da eacutetica Pois bem no capiacutetulo quarto verificamos que esta inquiriccedilatildeo da razatildeo sobre os pilares de uma eacutetica humana isto eacute estritamente filosoacutefica Tomaacutes pensou poder ser integrada no bojo mesmo da sua sabedoria teoloacutegica e isto sem nenhum prejuiacutezo no que tange agrave unidade da ciecircncia teoloacutegica visto que esta natildeo pode descurar das coisas naturais pois eacute por meio delas mdash maacutexime do homem mdash que aprouve a Deus revelar-Se Tendo pois estabelecido a existecircncia de uma eacutetica filosoacutefica integrada agrave teologia moral do Aquinate pensamos poder passar agraves consideraccedilotildees finais deste trabalho

Conclusatildeo

No primeiro capiacutetulo mostramos que a filosofia nasce do thaỹma (θαῦμα) tendo este vocaacutebulo grego neutro a significaccedilatildeo de estupor espanto assombro do homem ao se deparar com a sua ignoracircncia com a sua vulnerabilidade e com a precariedade da sua existecircncia Para sair deste estado de indigecircncia o homem busca entatildeo um conhecimento incancelaacutevel que natildeo se pode ocultar busca em uma palavra a alḗtheia (ἀλήθεια) E como a busca Busca-a atraveacutes do poacutelemos (πόλεμος) do diaacutelogos (διάλογος) Mediante o diaacutelogos nasce a epistḗmē (ἐπιστήμη) que natildeo eacute senatildeo um saber que ldquopara em peacuterdquo justamente porque passou pelo crivo do diaacutelogos Assim a palavra filosofia (φιλοσοφία) conteacutem fiacutelos (φίλος) que deriva de filiacutea (φιλία) termo que designa um amor de curadoria e sofiacutea (σοφία) que vem de safḗs (σαφής) nome que designa o que eacute claro luminoso A filosofia pode entatildeo ser definida como a procura constante da sabedoria que se possui quando da posse da verdade isto eacute da luz incontrovertida a qual por sua vez seraacute como que o unguento a mitigar o nosso medo da dor da desventura e da morte Daiacute que a filosofia nasce tambeacutem como ẽthos (ἦθος) enquanto este termo exprime a pretensatildeo intriacutenseca ao homem de construir um espaccedilo humano distinto do da fyacutesis (φύσις) ou seja de construir uma ambiecircncia humana um mundo habitaacutevel para o homem Ora a filosofia entendida como busca da verdade eacute assumida pelos medievais inclusive por Tomaacutes e tambeacutem para eles o filosofar soacute se perfaz mediante a disputatio que eacute como os latinos expressam por assim dizer a ideia do diaacutelogos grego

Mas a eacutetica soacute se constitui como ldquociecircnciardquo e como um ramo da filosofia praacutetica em Aristoacuteteles Disto tratou o nosso segundo capiacutetulo Eacute Aristoacuteteles que a partir da semacircntica de dois termos dotou a eacutetica de uma racionalidade proacutepria De fato o termo ldquoethosrdquo pode ser grafado e entendido de dois modos Primeiro como ἦθος (ẽthos) com um η inicial Quando assim escrito

310 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino nomeia a morada do homem o haacutebitat humano enquanto tal Segundo como ἔθος (eacutethos) com um ε inicial e entatildeo designa haacutebito isto eacute a disposiccedilatildeo estaacutevel para agir de determinada maneira Unindo estas duas acepccedilotildees podemos construir o seguinte raciociacutenio pelos haacutebitos isto eacute pelo ἔθος (eacutethos) o homem torna-se capaz de construir a sua ambiecircncia o seu ἦθος (ẽthos) Desta sorte a ēthikḗ mdash ciecircncia do ẽthos (ἦθος) e do eacutethos (ἔθος) mdash pode ser definida como a ciecircncia que estuda quais satildeo os haacutebitos (heacutexeis) que permitem ao homem construir o seu mundo

Sendo a eacutetica uma ciecircncia que pretende entender o que significa viver como homem ela precisa compreender antes o que eacute o homem Ora o homem eacute um animal dotado de loacutegos Loacutegos entendido enquanto fala linguagem capacidade de ir aleacutem da simples emissatildeo de voz para a palavra significativa Esta concepccedilatildeo revela ser o homem um zȭon politikoacuten isto eacute um ente essencialmente comunicativo capaz de pensar o bem e o mal o justo e o injusto com os seus semelhantes Pois bem a poacutelis (πόλις) nasce justamente como o resultado de homens que criam koinōniacutea (κοινωνία) porquanto comungam de princiacutepios cuja conquista soacute se daacute quando exercem o seu loacutegos De mais a mais uma vez que o homem eacute um zȭon politikoacuten a ēthikḗ seraacute mdash se quiser ser uma ldquociecircncia humanardquo mdash uma ldquociecircncia poliacuteticardquo (ἐπιστήμη πολιτικήepistḗmē politikḗ) De resto sendo os atos humanos flexiacuteveis e variaacuteveis a ēthikḗ seraacute uma ciecircncia que comporta flutuaccedilotildees Trataraacute do que ocorre quase sempre mas natildeo sempre

Nos capiacutetulos seguintes apontamos os conceitos basilares de que Tomaacutes se serve para assumir estas noccedilotildees em seu pensamento Buscamos sem pretender expor sistematicamente aclarar como esta conceptualidade da eacutetica antiga mdash preponderantemente da aristoteacutelica mdash estaacute presente na teologia moral do Aquinate Com este intuito mostramos como nas Quaestiones disputatae De Virtutibus mdash escrito contemporacircneo ao Comentaacuterio agrave Eacutetica e agrave redaccedilatildeo da IIa parte da Summa mdash o Aquinate ao tratar das virtudes cardeais define-as como cardeais

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exatamente por serem como a dobradiccedila que gira uma porta mediante a qual adentramos por assim dizer na casa do homem isto eacute na vida propriamente humana Parece-nos que com isso Tomaacutes retoma a metaacutefora do ἦθος (ẽthos) e a concepccedilatildeo de ēthikḗ como o estudo de quais satildeo os haacutebitos que condicionam o homem a construir o seu mundo permitindo assim que nasccedila no bojo de sua teologia moral uma reflexatildeo filosoacutefica acerca da eacutetica Mas as semelhanccedilas natildeo param por aiacute

A fim de darmos um remate agrave tentativa de formular uma concepccedilatildeo de eacutetica procuramos estabelecer a distinccedilatildeo mdash conhecida pelos gregos mdash entre ζωή (zōḗ) e βίος (biacuteos) Verificamos que zōḗ diz vida enquanto capacidade efetiva de viver e de viver de certa maneira Jaacute biacuteos nomina o exerciacutecio mesmo de viver e de viver de certa maneira Biacuteos fala portanto de certo estilo de vida de um jeito de viver habitual Biacuteos em uma palavra eacute a vida vivida o ato mesmo de viver Em Aristoacuteteles o biacuteos proacuteprio do homem eacute a vida segundo o loacutegos que se desdobra na vida da poacutelis Tambeacutem em Tomaacutes observamos que a vida proacutepria do homem eacute a vida segundo a ratio que se perfaz pelo exerciacutecio da linguagem (locutio) a qual estabelecendo a comunicaccedilatildeo entre os homens consolida entre eles a comunhatildeo que constitui a civitas A linguagem enquanto comunicativa visto que racional passa a ser entatildeo um lugar privilegiado na obra moral de Tomaacutes porque acena para a possibilidade de se pensar uma eacutetica filosoacutefica dotada de consistecircncia

Ademais a vida propriamente humana mdash para Tomaacutes mdash eacute a vida eacutetica que eacute necessariamente vida poliacutetica Donde tanto para o Aquinate quanto para Aristoacuteteles a vida mdash entendida como zōḗ mdash eacute algo dado pela natureza mas a vida compreendida como biacuteos eacute obra de nossas matildeos dos nossos haacutebitos Neste sentido sinaliza Mondin ldquo[] o homem eacute uma realidade essencialmente projetual um projeto aberto para definir-se e realizar-serdquo1 E a eacutetica mdash que se

1 MONDIN Battista Os Valores Fundamentais Trad Jacinta Turolo Gargia Satildeo Paulo EDUSC 2005 pp 159-160

312 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino exerce na dinacircmica do ato livre mdash natildeo eacute senatildeo o realizar-se do homem que com os seus semelhantes constroacutei a sua proacutepria ldquobiosferardquo a sua felicidade Dito de outro modo a eacutetica se apresenta como a tentativa de o homem construir uma ambiecircncia um vivarium humano Destarte uma vez msid a experiecircncia eacutetica se apresenta como dotada de certa suficiecircncia posto que filha do homem

A virtude eacute condiccedilatildeo sine qua non para alcanccedilar o proacuteprio verdadeiro bem o fim uacuteltimo a felicidade e o que se quer dizer com essas palavras eacute plena realizaccedilatildeo de si mesmo do proacuteprio ser do proacuteprio projeto de humanidade []2

Algo que gostariacuteamos ainda de destacar eacute a abertura que a

ratio dos latinos herda do loacutegos grego Para ambos a verdade eacute sob certo aspecto filha do tempo Por conseguinte a eacutetica enquanto ciecircncia eacute um projeto inacabado uma reflexatildeo a ser completada a cada geraccedilatildeo O proacuteprio exerciacutecio da ratio que se perfaz pela linguagem natildeo comporta exaustatildeo O raciacuteocinio eacute um ato dinacircmico por essecircncia Explica Tomaacutes

Conhecer eacute simplesmente apreender a verdade inteligiacutevel Raciocinar eacute ir de um objeto conhecido a um outro em vista de conhecer a sua verdade inteligiacutevel [] Os homens [] chegam ao conhecimento da verdade inteligiacutevel procedendo de um elemento a outro e por isso satildeo chamados racionais3

Pela passagem acima pode-se constatar que o Aquinate

distingue o conhecer do raciocinar O conhecimento que eacute a apreensatildeo da verdade inteligiacutevel eacute sempre o fim o raciocinar eacute o ldquocomordquo o homem conhece vale dizer passando de uma verdade agrave

2 Idem Ibidem p 160 3 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 79 8 C ldquoIntelligere enim est simpliciter veritatem intelligibilem apprehendere Ratiocinari autem est procedere de uno intellecto ad aliud ad veritatem intelligibilem cognoscendam [] Homines autem ad intelligibilem veritatem cognoscendam perveniunt procedendo de uno ad aliud ut ibidem dicitur et ideo rationales dicunturrdquo

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outra Notemos entatildeo que Aquino pensa o conhecimento natildeo como algo estaacutetico mas dinacircmico ou seja como um movimento pelo qual a partir de verdades jaacute conhecidas chegamos a verdades ainda por noacutes desconhecidas A falar com exaccedilatildeo na concepccedilatildeo de Tomaacutes ser racional a saber conhecer de um modo humano consiste justamente em conhecer passando de uma verdade agrave outra sem perder o encadeamento e isto vale para a razatildeo praacutetica a qual consiste no exerciacutecio que nos daacute a conhecer a regra e a medida da nossa natureza Poreacutem eacute importante notar que este exerciacutecio de descoberta pelo raciociacutenio deve ser feito pela mediaccedilatildeo da linguagem que eacute por definiccedilatildeo comunicativa Em uma palavra eacutetica natildeo se faz sozinho E isto nos leva a dizer que a construccedilatildeo da eacutetica enquanto ciecircncia inicia-se ou melhor deveria iniciar-se no exerciacutecio mesmo de ser eacutetico ou seja no ato mesmo de nos abrirmos agrave possibilidade de pela linguagem descobrirmos que o que nos une mdash a lei natural mdash eacute maior do que o que nos separa4 Por outro lado conforme jaacute acenamos a eacutetica eacute uma ciecircncia que se mostra como um movimento que se aperfeiccediloa pelo labor das geraccedilotildees Neste sentido Aristoacuteteles afirma algo interessante em sua Metafiacutesica

[] de fato se cada um pode dizer algo a respeito da realidade e se tomada individualmente essa contribuiccedilatildeo pouco ou nada acrescenta ao conhecimento da verdade todavia da uniatildeo de todas as contribuiccedilotildees individuais decorre um resultado consideraacutevel [] Ora eacute justo ser gratos natildeo soacute agravequeles com os quais dividimos as opiniotildees mas tambeacutem agravequeles que

4 Enrico Berti afirma que a condiccedilatildeo para se fazer eacutetica com excelecircncia com virtude eacute fazecirc-la em muacutetua colaboraccedilatildeo BERTI Novos Estudos Aristoteacutelicos III Filosofia Praacutetica p 177 ldquoAleacutem disso como vimos Aristoacuteteles diz explicitamente que para o filoacutesofo eacute seguramente melhor ter colaboradores de modo que a colaboraccedilatildeo na filosofia eacute preferiacutevel agrave solidatildeo e tendo em vista ser a felicidade o que haacute de mais preferiacutevel em absoluto a felicidade suprema para o filoacutesofo natildeo eacute a solidatildeo mas a colaboraccedilatildeo com os outros filoacutesofosrdquo Citemos o texto do Estagirita sobre este assunto ARISTOacuteTELES Eacutetica a Nicocircmaco IX 12 1172 a 1-5 ldquoE daquilo que a existecircncia significa para cada classe de homens daquilo que para eles daacute valor agrave vida disso mesmo desejam ocupar-se em companhia de seus amigos Por isso alguns bebem juntos outros jogam dados juntos outros associam-se nos exerciacutecios atleacuteticos na caccedila ou no estudo da filosofia [συμφιλοσοφοῦσιν] []rdquo

314 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

expressaram opiniotildees ateacute mesmo superficiais tambeacutem eles com efeito deram alguma contribuiccedilatildeo agrave verdade enquanto ajudaram a formar nosso haacutebito especulativo5

Ora estas consideraccedilotildees de Aristoacuteteles que Tomaacutes retoma

fazem-nos pensar que tanto o loacutegos quanto a ratio implicam intrinsecamente tradiccedilatildeo (traditio) isto eacute natildeo soacute a capacidade de passar de um conhecimento a outro mas ainda de transmitir o empoacuterio do saber de uma geraccedilatildeo para outra a fim de que esta o aprofunde Aliaacutes estes apontamentos valem especialmente para a ldquociecircncia eacuteticardquo jaacute que o objeto de estudo da eacutetica eacute fundamentalmente os atos humanos e sendo estes naturalmente por demais elaacutesticos a ciecircncia que os estuda convida os homens a sempre retomarem a reflexatildeo sobre eles Sob esta oacutetica a eacutetica mdash ldquociecircncia dos costumesrdquo mdash nunca pode perder de vista o horizonte da tradiccedilatildeo Em outras palavras natildeo eacute possiacutevel fazer eacutetica filosoacutefica sem estar mdash de algum modo mdash inserido na tradiccedilatildeo E o lugar propiacutecio para que a tradiccedilatildeo natildeo se perca e prevaleccedila como um ponto de partida para o aprimoramento da reflexatildeo eacutetica eacute a educaccedilatildeo Lima Vaz indica isso numa passagem que julgamos de todo emblemaacutetica para ser omitida

A tradicionalidade ou o poder-ser transmitido eacute pois um constitutivo essencial do ethos e decorre necessariamente do ponto de vista da anaacutelise filosoacutefica da relaccedilatildeo dialeacutetica que se estabelece entre o ethos como costume e o ethos como haacutebito singularizado na praxis eacutetica Natildeo haacute sentido em se falar de um ethos estritamente individual pois a perenidade do ethos efetivada e atestada na tradiccedilatildeo tem em mira exatamente resgatar a existecircncia efecircmera e contingente do indiviacuteduo empiacuterico [] atraveacutes da sua suprassunccedilatildeo na universalidade do ethos ou na continuidade da tradiccedilatildeo eacutetica Entendida nessa sua essencialidade com relaccedilatildeo ao ethos a tradiccedilatildeo eacute a relaccedilatildeo intersubjetiva primeira na esfera eacutetica eacute a relaccedilatildeo que se

5 ARISTOacuteTELES Metafiacutesica II 993 b 1-15 In REALE Giovanni Metafiacutesica II Texto grego com traduccedilatildeo ao lado Trad e Rev Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2005

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estabelece entre a comunidade educadora e o indiviacuteduo que eacute educado justamente para se elevar ao niacutevel das exigecircncias do universal eacutetico ou do ethos da comunidade6

O que esperamos ter esclarecido neste trabalho eacute que a

Summa Theologiae de Tomaacutes de Aquino conteacutem mdash em sua IIa parte mdash um todo (totus) filosoacutefico de cunho eacutetico integrado agrave totalidade (totum) da sua teologia moral sem que isto acarrete uma quebra de unidade porque a feacute pressupotildee o conhecimento natural e a graccedila natildeo tolhe mas aperfeiccediloa a natureza Para transitarmos por este tema tivemos de frequentar outras obras de Tomaacutes e mesmo autores gregos particularmente Aristoacuteteles de quem o Aquinate assume mdash natildeo sem originalidade mdash grande parte do pensamento eacutetico Ao final deste trabalho julgamos poder dizer o que Chesterton afirma de Tomaacutes

Em termos humanos foi ele quem salvou o elemento humano na teologia cristatilde ainda que tenha usado por conveniecircncia alguns elementos da filosofia pagatilde Mas como jaacute se disse enfaticamente o elemento humano tambeacutem eacute cristatildeo 7

De fato com Tomaacutes o pensamento cristatildeo torna-se capaz

de dialogar com o profano ou melhor torna-se capaz de integrar-se ao laico sem abrir matildeo de seus direitos e sem querer suprimir o do outro Nada explica melhor este movimento de respeito agraves duas ordens distintas do que o dito de Jesus ldquoDai pois o que eacute de Ceacutesar a Ceacutesar e o que eacute de Deus a Deusrdquo (Mt 2221) Com efeito aplicando esta maacutexima evangeacutelica em sua obra entendemos que o Aquinate tornou-se portador de uma palavra secular ateacute mesmo no acircmbito da eacutetica Mario dal Pra quando estuda a doutrina eacutetico-poliacutetica de Tomaacutes natildeo deixa de ressaltar este aspecto

6 VAZ Escritos de Filosofia II Eacutetica e Cultura p 19 7 CHESTERTON Op Cit p 260

316 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

[] Quanto agrave visatildeo de mundo Tomaacutes introduz no pensamento cristatildeo uma atitude antiteacutetica agravequela da tradiccedilatildeo platocircnico-agostiniana os expoentes desta uacuteltima natildeo poderatildeo senatildeo condenar uma visatildeo que a seu ver distancia Deus do homem e do mundo e apresenta a feacute somente como termo integrativo de uma natureza em si mesma subsistente e determinada8

A nosso ver natildeo se trata de distanciar Deus do homem e

do mundo Ao contraacuterio foi precisamente enquanto religioso e fiel ao dito de Cristo de natildeo tomar de Ceacutesar o que pertence a Ceacutesar que Tomaacutes nunca deixou de dialogar com outras tradiccedilotildees inclusive natildeo religiosas pois reconhecia nelas expressotildees da mesma natureza criada por Deus

O que todavia mais impressiona em Tomaacutes eacute a tenacidade com a qual continuou a buscar e a procurar ler traduccedilotildees de textos filosoacuteficos gregos e aacuterabes ateacute os uacuteltimos anos de sua vida movido por uma curiosidade intelectual natildeo comum e por um sentido de real abertura para com todas as tradiccedilotildees do pensamento tambeacutem aquelas preacute-cristatildes e natildeo cristatildes9

Aleacutem disso a partir do conceito de razatildeo tal como o

trabalhamos no texto a saber como uma capacidade de se expressar de forma significativa e comunicativa pensamos que a conceptualidade filosoacutefica da eacutetica tomasiana possa ser revisitada e proposta mdash de forma inteligiacutevel mdash a todos os homens De fato nos uacuteltimos cinquenta anos estaacute ocorrendo algo inaudito isto eacute Tomaacutes

8 PRA Mario dal Sommario di Storia della Filosofia La Filosofia Antica e Medievale Firenze La Nuova Italia 1990 p 308 v 1 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquo[] quanto alla visione del mondo Tommaso introduce nel pensiero cristiano un atteggiamento antitetico a quello della tradizione platonico-agostiniana gli esponenti di questultima non possono che condannare una visione della realtagrave che a loro avviso allontana Dio dalluomo e dal mondo e prospetta la fede solo come termine integrativo duna natura in se stessa sussistente e determinatardquo 9 ESPOSITO PORRO Filosofia Antica e Medievale v 1 p 367 [A traduccedilatildeo eacute nossa] ldquoCiograve che tuttavia piugrave colpisce in Tommaso egrave la tenacia con cui ha continuato a cercare di procurarsi e di leggere traduzioni di testi filosofici greci e arabi fino agli ultimi anni della sua vita mosso da una curiositagrave intellettuale assolutamente non comune e da un senso di reale apertura verso tutte le tradizioni di pensiero anche quelle precristiane o non-cristianerdquo

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vem perdendo dentro do ambiente catoacutelico a sua ateacute entatildeo absoluta preeminecircncia que parecia imarcesciacutevel Mas este acontecimento mdash como nota Anthony Kenny mdash eacute acompanhado por outro fenocircmeno qual seja a obra de Tomaacutes estaacute imiscuindo-se nas instituiccedilotildees seculares com uma forccedila estimulante e inesperada Nas palavras do estudioso

Por outro lado a desvalorizaccedilatildeo de Sto Tomaacutes nas fronteiras do catolicismo tem sido acompanhada por uma revalorizaccedilatildeo do santo nas universidades seculares em vaacuterias regiotildees do mundo Nos primeiros anos do seacuteculo XXI natildeo eacute exagerado falar de um renascimento do tomismo mdash natildeo um tomismo confessional mas um estudo de Tomaacutes que transcende os limites natildeo apenas da Igreja Catoacutelica como tambeacutem do proacuteprio cristianismo10

Ora o nosso trabalho mdash ancorado nas palavras de Kenny mdash

buscou justamente evidenciar a presenccedila desta eacutetica natildeo confessional ou seja uma eacutetica filosoacutefica porque fundada somente na especulaccedilatildeo racional no bojo da teologia moral de Tomaacutes A britacircnica Philippa Foot uma das filoacutesofas analiacuteticas mais notaacuteveis do nosso tempo e pioneira nas pesquisas de metaeacutetica trilhando seus proacuteprios caminhos chegou agrave mesma conclusatildeo em relaccedilatildeo agrave Summa

Em minha opiniatildeo a Summa Theologica eacute uma das melhores fontes das quais dispomos para a filosofia moral e aleacutem disso os

10 KENNY Op Cit p 99 Nesse tempo que nos separa do Conciacutelio Vaticano II os proacuteprios pensadores de inspiraccedilatildeo catoacutelica jaacute comeccedilaram a fazer um mea-culpa admitindo que na sede de modernizar o pensamento filosoacutefico-teoloacutegico de cunho cristatildeo natildeo souberam separar o joio do trigo no que toca agraves interpretaccedilotildees de Tomaacutes Um deles confessa ldquodesoladordquo VENTIMIGLIA Giovanni Distinctio Realis Ontologie aristotelico-tomiste nella prima metagrave del Novecento Lugano EUPRESS FTL 2012 p 8 ldquoSuccede che il mondo veramente moderno nel frattempo ha riscoberto tutta la profonditagrave delle cosiddette questione obsolete del vecchio tomismordquo ldquoSucede que o mundo verdadeiramente moderno neste iacutenterim redescobriu toda a profundidade das assim chamadas questotildees obsoletas do velho tomismordquo [A traduccedilatildeo eacute nossa] Em outras palavras no juiacutezo deste estudioso o pensamento de Tomaacutes eacute mais atual e mais apto para dialogar com o mundo moderno do que a ldquonouvelle theologierdquo

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escritos eacuteticos de santo Tomaacutes satildeo uacuteteis tanto para o ateu quanto para o catoacutelico ou para um outro crente cristatildeo11

A nosso ver mesmo as reflexotildees estritamente teoloacutegicas de

Tomaacutes estatildeo prenhes de filosofia Tentemos exprimir-nos agora com exemplos Tomemos a sua teologia do pecado original Quando os nossos primeiros pais pecaram aconteceram duas coisas A primeira foi que o homem perdeu a justiccedila original virtude excedente agrave sua natureza a segunda foi que esta mesma natureza embora enfraquecida permaneceu iacutentegra no que lhe eacute constitutivo a razatildeo e a tendecircncia natural agrave virtude ainda que esta uacuteltima tenha sido diminuiacuteda Ora permanecendo iacutentegras em sua raiz 12 as faculdades humanas continuaram dignas de

11 FOOT Philippa Virtues and Vices and Other Essays in Moral Philosophy Oxford 19981 pp XI-XII In MICHELETTI Mario Tomismo Analiacutetico Trad Benocircni Lemos e Patrizia Collina Bastinetto Rev Eliana Maria Barreto Ferreira Satildeo Paulo Ideacuteias amp Letras 2009 p 76 Por exemplo a temaacutetica da eacutetica que concebe este mundo como a nossa casa comum permanece atual e foi o tema escolhido para a mais recente Enciacuteclica do Papa Francisco Laudato Sirsquo sobre o cuidado da casa comum de maio de 2015 Na percepccedilatildeo do Pontiacutefice esta temaacutetica eacute de interesse de todos os homens De fato nas paacuteginas da Enciacuteclica o Papa alerta que inobstante tenhamos coisas que nos distingam ao menos uma tarefa pertence a todos noacutes a saber a de natildeo deixar que esta terra se torne um espaccedilo inoacutespito luacutegubre Vide FRANCISCO Papa Laudato Sirsquo Disponiacutevel lt httpw2vaticanvacontentfrancescoptencyclicalsdocumentspapa-francesco_20150524_enciclica-laudato-sihtmlgt 12 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I-II 85 2 C ldquoEt ideo aliter est dicendum quod praedicta inclinatio intelligitur ut media inter duo fundatur enim sicut in radice in natura rationali et tendit in bonum virtutis sicut in terminum et finem Dupliciter igitur potest intelligi eius diminutio uno modo ex parte radicis alio modo ex parte termini Primo quidem modo non diminuitur per peccatum eo quod peccatum non diminuit ipsam naturam ut supra dictum est Sed diminuitur secundo modo inquantum scilicet ponitur impedimentum pertingendi ad terminum Si autem primo modo diminueretur oporteret quod quandoque totaliter consumeretur natura rationali totaliter consumpta Sed quia diminuitur ex parte impedimenti quod apponitur ne pertingat ad terminum manifestum est quod diminui quidem potest in infinitum quia in infinitum possunt impedimenta apponi secundum quod homo potest in infinitum addere peccatum peccato non tamen potest totaliter consumi quia semper manet radix talis inclinationisrdquo ldquoEacute preciso pois explicar de outra maneira A inclinaccedilatildeo predita concebe-se como um meio entre duas coisas ela tem um fundamento uma raiz na natureza racional e tende ao bem da virtude como a um termo e a um fim Por conseguinte a diminuiccedilatildeo pode se conceber de duas maneiras do lado da raiz e do lado do termo Do lado da raiz o pecado natildeo produz nenhuma dimininuiccedilatildeo pois que ele natildeo diminui a proacutepria natureza como foi dito Mas do lado do termo haacute uma diminuiccedilatildeo enquanto se potildee um impedimento para chegar ao termo Se houvesse diminuiccedilatildeo pela raiz deveria alguma vez desaparecer totalmente tendo desaparecido totalmente a natureza racional Mas porque haacute diminuiccedilatildeo pelo impedimento posto para natildeo chegar ao termo eacute claro que isso pode ir ao infinito porque os obstaacuteculos podem ser postos ao infinito uma vez que o homem pode acrescentar ao

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confiabilidade em sua funccedilatildeo proacutepria Em outros termos o homem pode natildeo somente conhecer a verdade consoante a sua natureza senatildeo tambeacutem adquirir as virtudes naturais e alcanccedilar certa beatitude sem o auxiacutelio da graccedila Nisso percebemos que a teologia do pecado original em Tomaacutes eacute uma fresta uma espeacutecie de fenda para uma reflexatildeo filosoacutefica autocircnoma porquanto ao mesmo tempo que afirma ter o homem perdido os dons preternaturais salvaguarda os atributos da natureza humana

Outro exemplo eacute quando Tomaacutes veda ao homem a visatildeo do bem supremo nesta vida De fato se o homem natildeo pode ver o bem supremo (Deus) nesta vida ele tem acesso somente a bens relativos parciais ou seja bens por um lado mas natildeo bens por outro 13 Eacute certo outrossim que o homem natildeo conhece necessariamente nem sequer os bens necessaacuterios agrave beatitude Ora isso torna o seu juiacutezo praacutetico e a sua vontade indeterminados quanto a estes bens Dito doutro modo ele pode querer ou natildeo querer qualquer bem mais ainda pode agir ou natildeo agir em relaccedilatildeo a qualquer um destes bens E aqui reside o livre-arbiacutetrio o qual daacute ao homem o domiacutenio sobre os seus atos e o ser senhor de si entregue ao seu conselho o homem eacute pai de suas accedilotildees como o eacute de seus filhos Nasce entatildeo de um teoacutelogo e no seio mesmo da sua teologia a possibilidade de uma ldquocultura laicardquo Sob este aspecto pode-se ateacute dizer que a maacutexima ldquophilosophia ancilla theologiaerdquo eacute invertida em Tomaacutes ldquotheologia ancilla

infinito pecado sobre pecado Entretanto a inclinaccedilatildeo natildeo pode desaparecer completamente pois sempre fica a raizrdquo [Os itaacutelicos satildeo nossos] 13 Idem Ibidem I 82 2 C ldquoSed tamen antequam per certitudinem divinae visionis necessitas huiusmodi connexionis demonstretur voluntas non ex necessitate Deo inhaeret nec his quae Dei sunt Sed voluntas videntis Deum per essentiam de necessitate inhaeret Deo sicut nunc ex necessitate volumus esse beati Patet ergo quod voluntas non ex necessitate vult quaecumque vultrdquo ldquoTodavia antes que a necessidade dessa conexatildeo seja demonstrada pela certeza da visatildeo divina a vontade natildeo adere necessariamente nem a Deus nem agraves coisas que satildeo de Deus Mas a vontade daquele que vecirc Deus em sua essecircncia adere necessariamente a Deus da mesma maneira que agora queremos necessariamente ser felizes Eacute evidente portanto que a vontade natildeo quer necessariamente tudo o que ela querrdquo

320 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino philosophiaerdquo14 E foi precisamente isto que quisemos mostrar a saber que tal respeito pelo secular sai da pena de um religioso

Por traacutes destes exemplos vislumbramos enfim a tarefa principal do saacutebio ou seja alcanccedilar uma visatildeo integral da coisa uma visatildeo prospectiva E uma visatildeo prospectiva natildeo contempla apenas o conjunto senatildeo a relaccedilatildeo das partes com o todo Mas a relaccedilatildeo da parte com o todo natildeo eacute nem a parte nem o todo mas eacute a forma como a parte se relaciona com o todo O olhar humano eacute capaz de ver natildeo somente a parte e o todo mas a ordenaccedilatildeo da parte no todo Uma casa e uma fileira de tijolos satildeo ambas um conjunto de tijolos Poreacutem para aquele que consegue ver a disposiccedilatildeo da parte em relaccedilatildeo ao todo a casa eacute algo distinto de uma simples montanha de tijolos porque afinal a ordenaccedilatildeo das partes na casa eacute diversa da de um amontoado de tijolos Ora um homem quando consegue ver com periacutecia a disposiccedilatildeo da parte em relaccedilatildeo ao todo de sua proacutepria obra destaca-se dela porque se torna capaz de criar ou ao menos entrever uma nova forma de ordem entre as partes uma nova casa por exemplo Materialmente falando a Summa Theologiae de Tomaacutes abarca um conjunto de questotildees muito semelhantes com as sumas e outros gecircneros literaacuterios de seu tempo Talvez ateacute o modo como o Aquinate relaciona ou ordena as partes de sua teologia natildeo seja o que mais a destaque das outras teologias O que diferencia a Summa de Tomaacutes das outras eacute que o Aquinate consegue entrever como por um ldquoponto de fugardquo de sua inteligecircncia que a filosofia a mesma que na sua teologia eacute uma parte que se relaciona com o todo teoloacutegico pode constituir ela proacutepria um todo Ele consegue ver dentro de sua visatildeo no caso da sua visatildeo da relaccedilatildeo entre filosofia e teologia outra visatildeo qual seja a de uma ordem filosoacutefica autocircnoma Este ldquoponto de fugardquo jaacute transparece em sua obra por exemplo quando Tomaacutes rejeita a evidecircncia para noacutes da existecircncia

14 Vide o interessante artigo que mostra que esta inversatildeo jaacute existe em Boaventura COLLI Andrea Theologia ancilla Philosophiae Una lettura dellrsquoItinerarium Disponiacutevel em lthttprivisteunimiitindexphpDoctorVirtualisarticleview73122gt

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de Deus Em filosofia ou se demonstra que Deus existe ou Sua existecircncia permanece uma incoacutegnita 15 Esta visatildeo permitiu ao Aquinate a nosso juiacutezo entrever ldquomundos possiacuteveisrdquo com um olhar que ultrapassava a proacutepria cristandade Em outras palavras ele foi um saacutebio natildeo somente porque conseguiu ordenar ofiacutecio proacuteprio do saacutebio16 mas tambeacutem porque entreviu outras ordens possiacuteveis e mesmo coexistentes e assim pocircde eleger dentre vaacuterias alternativas uma Em uma palavra Tomaacutes escolheu ser teoacutelogo natildeo por falta de opccedilatildeo mas porque quis17

Natildeo buscamos portanto com este trabalho mdash e isto seria antes a ruiacutena do nosso texto mdash transformar Tomaacutes de Aquino num ldquofiloacutesofo purordquo um moderno Ao contraacuterio nosso foco foi tornar patente como um religioso e teoacutelogo como Tomaacutes que viveu no seacuteculo XIII foi tambeacutem um filoacutesofo ou melhor um ldquofilosofanterdquo18 e em moral soube acolher e debater com o secular bem como admitiu a existecircncia de uma eacutetica que sem eliminar as diferenccedilas pode ser compartilhada pelo homo religiosus e pelo homo profanus De toda maneira se ao menos tivermos conseguido ser persuasivos ao optar por comeccedilarmos dos

15 TOMAacuteS DE AQUINO Suma Teoloacutegica I 2 1 C ldquoDico ergo quod haec propositio Deus est quantum in se est per se nota est quia praedicatum est idem cum subiecto Deus enim est suum esse ut infra patebit Sed quia nos non scimus de Deo quid est non est nobis per se nota sed indiget demonstrari per ea quae sunt magis nota quoad nos []rdquo ldquoDigo portanto que a proposiccedilatildeo Deus existe enquanto tal eacute evidente por si porque nela o predicado eacute idecircntico ao sujeito Deus eacute seu proacuteprio ser como ficaraacute claro mais adiante Mas como natildeo conhecemos a essecircncia de Deus esta proposiccedilatildeo natildeo eacute evidente para noacutes precisa ser demonstrada por meio do que eacute mais conhecido para noacutes []rdquo 16 Idem Suma Contra os Gentios I I 1 [2] ldquoUnde inter alia quae homines de sapiente concipiunt a philosopho ponitur quod sapientis est ordinarerdquo ldquo[] entre outras funccedilotildees que os homens atribuem ao saacutebio a de que pertence ao saacutebio ordenar eacute proposta pelo Filoacutesofo (I Metafiacutesica 2 982a Cmt 2 42-43)rdquo 17 Vide a abordagem de Barzaghi que aplica o conceito de ldquoponto de fugardquo agrave teologia de Tomaacutes BARZAGHI Giuseppe La Fuga Il gioco dellimmagine Disponiacutevel em lthttpswwwyoutubecomwatchv=HALef5f18Iogt 18 GILSON Eacutetienne A existecircncia na filosofia de Santo Tomaacutes de Aquino Trad Geraldo Pinheiro Machado e Gilda Lessa Rev Guilherme Nery Pinto Satildeo Paulo Livraria duas cidades 1962 p 8 ldquoSe um teoacutelogo julgasse conveniente recorrer agrave Filosofia nos seus trabalhos teoloacutegicos como foi o caso de S Tomaacutes de Aquino natildeo era normalmente chamado lsquofiloacutesoforsquo e sim philosophans theologus (teoacutelogo filosofante) ou simplesmente philosophans (um filosofante)rdquo

322 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino primoacuterdios e de Aristoacuteteles antes de verificarmos a sua ressonacircncia em Tomaacutes de que natildeo se pode fazer filosofia seguindo o esquema de Proclo a Descartes deve-se passar como por um salto jaacute nos daremos por satisfeito19 De resto fazemos nossas as palavras de Giovanni Reale

E entatildeo natildeo soacute eacute loucura renunciar a filosofar mas eacute tambeacutem loucura devendo inexoravelmente filosofar acreditar que se pode limitar ao hoje jaacute que o presente natildeo eacute inteligiacutevel sem o passado do qual nasce e ademais natildeo eacute nunca verdadeiramente atual ou soacute eacute ilusoriamente atual porque atual natildeo eacute o momento que foge mas o que resiste aleacutem do momento e no limite soacute o eterno eacute verdadeiramente atual20

Entre outras razotildees tambeacutem estas justificam mdash a nosso ver

mdash o inusitado e entusiasmante renascimento (renaissance) do pensamento do Aquinate no acircmbito laico Restaria expor de forma sistemaacutetica esta eacutetica mas isto jaacute seria outra empresa de focirclego

19 DE BONI Luis Alberto Estudar Filosofia Medieval In Idem Filosofia Medieval Textos Porto Alegre EDIPUCRS 2000 p 8 ldquoA histoacuteria dos estudos de Filosofia Medieval natildeo eacute tatildeo longa e pode ser relativamente bem datada O Renascimento a Reforma e o Iluminismo voltaram-se conscientemente contra a Idade Meacutedia Este principalmente partiu de um preconceito era necessaacuterio deixar de lado tudo o que foi escrito como Filosofia entre a Antiguumlidade e os tempos modernos Eacute ceacutelebre o dito de que entre o fechamento da Academia Platocircnica por Justiniano em 529 e o lsquoDiscurso sobre o Meacutetodorsquo de Descartes em 1637 existe um vazio de 1108 anos A afirmaccedilatildeo pode parecer estranha para o leitor moderno mas foi no espiacuterito dela que se fundou o Curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da USP na deacutecada de 30 no esquema ceacutelebre Sprung uumlber das Mittelalter (o salto por sobre a Idade Meacutedia) passava-se de Proclo a Descartes com a maior naturalidade Transcorreu meio seacuteculo antes que se criasse a cadeira de Filosofia Medieval na mais renomada instituiccedilatildeo de ensino superior do Brasilrdquo 20 REALE Giovanni Histoacuteria da Filosofia grega e romana vol IV Aristoacuteteles Trad Henrique Claacuteudio de Lima Vaz e Marcelo Perine 2 ed Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2014 p 195

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Para saber mais

Exortaccedilatildeo ao estudo deixada por Tomaacutes de Aquino

ldquoTerceira quando diz lsquoE o tempo eacute um bom inventor ou colaborador de tais tarefasrsquo etc mostra de que modo o homem eacute ajudado pelo dito E diz sobre essas coisas que o tempo parece ser como um descobridor ou um bom colaborador para o que estaacute bem circunscrito Natildeo de fato que o tempo por si mesmo tenha algo para aquele que age mas na medida em que as coisas satildeo feitas no tempo De fato se algueacutem procedendo no tempo investigar a verdade o tempo ajudaraacute a encontrar a verdade e quanto a um mesmo homem que depois veja o que natildeo via antes e tambeacutem quanto aos diversos homens como quando algueacutem capta as coisas que descobriram os seus predecessores e acrescenta algo E por esse modo satildeo feitos os acreacutescimos nas artes dos quais em princiacutepio pouco foi inventado e depois atraveacutes de diversos homens pouco a pouco atingiu uma grande quantidade porque pertence a qualquer homem acrescentar o que falta ao considerado pelos predecessores Se poreacutem ao contraacuterio se deixa de lado o exerciacutecio do estudo o tempo eacute antes causa de esquecimento como se diz no livro quarto da Fiacutesica e quanto a um homem que se entrega agrave negligecircncia esquece-se do que sabia e de tantas outras coisas diversas Por isso vemos que muitas ciecircncias ou artes que vigoraram entre os antigos cessaram pouco a pouco no esquecimento pelo teacutermino do estudordquo [TOMAacuteS DE AQUINO Comentaacuterio de Tomaacutes de Aquino agrave Eacutetica a Nicocircmaco I-III o bem e as virtudes Trade Rev Paulo Faitanin e Bernardo Veiga Rio de Janeiro Mutuus 20015 v I I Lect 11 ndeg 3-4 O itaacutelico eacute nosso]

1) Haacute um site francoacutefono (Aquinas) todo ele dedicado ao Aquinate e idealizado

por dominicanos ligados agrave Universiteacute de Fribourg (Suiacuteccedila) que se preocupou em corrigir as legendas para facilitar o acesso dos que tecircm pouca familiaridade com a liacutengua francesa Neste site haacute cursos de iniciaccedilatildeo ao pensamento de Tomaacutes oferecidos gratuitamente on-line Basta se inscrever

httpsiaquinascom a) No que toca agrave filosofia aos que se interessarem indico particularmente as

liccedilotildees sobre antropologia filosoacutefica tomasiana de Franccedilois-Xavier Putallaz

340 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

httpswwwyoutubecomwatchlist=PLoF9tICw5xHMFru4TuxUim_cLoO6fHgphampv=yIPpc6c0H8s

2) Haacute um canal no Youtube chamado Civilisation chreacutetienne que vem registrando as famosas journeacutees thomistes de onde saem fasciacuteculos que estatildeo em sintonia com a Commissio Leonina hoje presidida pelo dominicano italiano Adriano Oliva o qual organiza tambeacutem estas journeacutees junto com Laurent Lemoine OP httpswwwyoutubecomwatchv=W6YYqSL34qgamplist=PLp1nhiHAIwkg2

fu08nXsKWzLlAsBK2j56 3) Haacute um viacutedeo (com legendas ativas) ilustrativo e divertido que apresenta

Tomaacutes tal como ele eacute um pensador de estilo ldquosuave luacutecido civil e judiciosordquo (Anthony Kenny)

httpswwwyoutubecomwatchv=GJvoFf2wCBU 4) No canal da Editrice La Scuola haacute uma interessante seacuterie de entrevistas

imaginaacuterias Nesta os grandes estudiosos italianos dos filoacutesofos claacutessicos entrevistam os seus autores Assim Giovanni Reale entrevista Platatildeo Enrico Berti Aristoacuteteles Umberto Eco Tomaacutes de Aquino e assim por diante Aprecio o que Eco potildee na boca do Aquinate mas com ressalvas Divulgo a bela iniciativa httpswwwyoutubecomwatchv=c_Dg4cXD0qIamplist=PLTpVCciFlnXaE4

7aN4p_bltIKYxAkTJvkampindex=43

5) Haacute uma seacuterie de encontros promovida pela Associazione Culturale Benedetto XVI sobre a histoacuteria da filosofia ocidental Esta seacuterie foi denominada Il viaggio dei filosofi Ela estaacute dividida em quatro etapas A primeira foi dedicada ao Genio dei Greci Alguns encontros destas etapas estatildeo total ou parcialmente disponiacuteveis no Youtube O que segue abaixo eacute uma apresentaccedilatildeo da primeira etapa e toca em alguns dos conceitos-chave dos primoacuterdios da filosofia Um dos expositores eacute o professor Luigi Girlanda um dos idealizadores do projeto

httpswwwyoutubecomwatchv=DqCaF2s1SUMampt=1s 6) Existe um site chamado Cattedra Rosmini ligado ao Rosmini Institute ao

Istituto di Studi Filosofici di Lugano e agrave Facoltagrave di Teologia di Lugano que se dedica a disponibilizar cursos congressos e conferecircncias on-line sobre Rosmini metafiacutesica claacutessica ldquotomismo analiacuteticordquo etc Haacute vaacuterios estudos por

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exemplo sobre a atualidade do chamado argumento ontoloacutegico de Anselmo Destacaria

a) O videocurso (dez liccedilotildees) de Alain de Libera mdash em italiano mdash sobre Lrsquoidentitagrave personale nella filosofia medievale ldquoO argumento do curso eacute aquele da lsquoidentidade pessoalrsquo na filosofia moderna (Descartes e Locke) e no medievo (um problema filosoacutefico-teoloacutegico) O curso trata da pessoa da personalidade e do sujeito na filosofia e teologia antiga e medieval tocando temas como o lsquosujeito da accedilatildeorsquo na escolaacutestica e na filosofia moderna (Tomaacutes de Aquino Locke Kant Reid)rdquo(A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismolidentita-personale-nella-filosofia-medievale

b) O videocurso (dez liccedilotildees) Filosofia Pratica ministrado por Enrico Berti ldquoPor que eacute atual a filosofia praacutetica O curso eacute principalmente baseado em comentaacuterios de passagens de autores que vatildeo de Platatildeo a Gadamer contidos no livro lsquoE Berti Filosofia pratica 2004 Guidarsquordquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa) O curso procura mostrar entre outras coisas quando e como se originou a identificaccedilatildeo entre a froacutenēsis e a filosofia praacutetica Berti defende que a filosofia praacutetica em Aristoacuteteles eacute uma ciecircncia distinta da froacutenēsis que natildeo eacute uma ciecircncia

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismofilosofia-pratica c) O videocurso (dez liccedilotildees) Le prove dellrsquoesistenza di Dio nella filosofia classica

ministrado por Enrico Berti ldquoO curso se propotildee a ilustrar as principais provas da existecircncia de Deus elaboradas por alguns filoacutesofos que se podem considerar claacutessicos ou seja Aristoacuteteles Anselmo de Aosta e Tomaacutes de Aquino A propoacutesito de cada um deles seratildeo ilustradas e discutidas tambeacutem as retomadas ou as criacuteticas desenvolvidas por alguns filoacutesofos modernos (Descartes Leibniz Kant Hegel) e por alguns filoacutesofos contemporacircneos que se reportam agrave lsquometafiacutesica claacutessicarsquo (S Vanni Rovighi G Bontadini M Gentile)rdquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa) httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismole-prove-dellesistenza-

di-dio-nella-filosofia-classica

d) O videocurso (dez liccedilotildees) La teologia razionale nella filosofia analitica ministrado por Mario Micheletti ldquoO curso tem como objeto o renascimento jaacute faz ao menos vinte anos da teologia racional no interior daquela filosofia

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analiacutetica que inicialmente tinha sido ateia e inimiga declarada da metafiacutesica O curso em particular ilustraraacute as principais formulaccedilotildees das provas da existecircncia de Deus em alguns filoacutesofos analiacuteticos contemporacircneos pondo o acento sobretudo na reelaboraccedilatildeo em chave modal da prova ontoloacutegica e sobre as novas apresentaccedilotildees do argumento cosmoloacutegico e da lsquoteologia naturalrsquo e os desenvolvimentos da apologeacutetica negativardquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismola-teologia-razionale-nella-filosofia-analitica

e) ldquoNesta entrevista o Prof G Ventimiglia discute com o Prof E Berti sobre temas comuns e sobre as diferenccedilas entre a ontologia aristoteacutelica e a [ontologia] analiacutetica contemporacircnea Detecircm-se tambeacutem em uma particular corrente da ontologia analiacutetica que mostra segundo Berti uma concepccedilatildeo univocista do ser Vem abordada ainda a questatildeo da difiacutecil acolhida da ontologia analiacutetica no interior do pensamento cristatildeordquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismodifferenze-tra-lontologia-aristotelica-e-quella-analitica-contemporanea

f) ldquoA importacircncia destas videoconferecircncias estaacute em particular no fato de que naquela ocasiatildeo o professor Berti declarou publicamente depois de ter ouvido a conferecircncia de Varzi natildeo ter mais nenhuma espeacutecie de reserva sobre a ontologia e sobre a metafiacutesica analiacutetica Trata-se portanto em certo sentido de um documento histoacuterico porque pela primeira vez um grande estudioso da chamada metafiacutesica claacutessica declara encontrar-se completamente lsquoem casarsquo na metafiacutesica analiacutetica e reconhece que os grandes temas da metafiacutesica aristoteacutelica estatildeo de novo vivos no atual debate em acircmbito analiacuteticordquo (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo eacute nossa)

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismometafisica-classica-e-metafisica-analitica-oggi1564731804205-1b711eb7-c8fb

g) O videocurso Dio come Essere (duas liccedilotildees) ldquoNa primeira parte do curso dada pelo prof E Berti examinam-se as criacuteticas de PT Geach e A Kenny agrave concepccedilatildeo de Deus como Esse ipsum subsistens professada por Tomaacutes de Aquino e se reconstroacutei a origem de tais criacuteticas nas objeccedilotildees feitas por Aristoacuteteles agrave doutrina de um ente que tenha por essecircncia o ser mesmo por ele atribuiacuteda a Platatildeo Com este propoacutesito se leem e se comentam as passagens da Metafiacutesica (livro III e livro X) nas quais Aristoacuteteles desenvolve

Saacutevio Laet de Barros Campos | 343

tais objeccedilotildees Depois segue-se o desenvolvimento da concepccedilatildeo de Deus como ser em Fiacutelon em Plotino no comentaacuterio ao Parmecircnides atribuiacutedo a Porfiacuterio e nos primeiros filoacutesofos cristatildeos Finalmente examina-se a posiccedilatildeo assumida a este respeito por Tomaacutes de Aquino destacando nela a presenccedila de duas concepccedilotildees diversas do ser de Deus uma que reduz tal ser agrave simples existecircncia outra ao contraacuterio que o concebe como o somatoacuterio de todas as perfeiccedilotildees Enquanto a primeira concepccedilatildeo eacute exposta agraves criacuteticas de Aristoacuteteles e dos filoacutesofos analiacuteticos a segunda eacute subtraiacuteda (A traduccedilatildeo livre da apresentaccedilatildeo do curso eacute nossa) Mesmo natildeo aderindo agraves criacuteticas dirigidas a Tomaacutes divulgo a existecircncia da discussatildeo httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismodio-come-essere-prof-

berti h) Intervenccedilatildeo de Enrico Berti por ocasiatildeo do Convegno Internazionale di

Filosofia Dio come Essere Metafisiche classiche e metafisiche analitiche O encontro foi promovido pelo Istituto di Studi Filosofici e Giornale di Metafisica de Lugano em maio de 2015 A intervenccedilatildeo eacute intitulada Argomenti aristotelici contro lrsquoesistencia di un Essere per essenza Novamente ressalto que natildeo concordo com as criacuteticas dirigidas a Tomaacutes de Aquino apenas registro a existecircncia do debate

httpswwwrosminiinstituteitconfrontitomismodio-come-essere i) Enfim haacute uma intervenccedilatildeo de Berti no Convegno Internazionale di filosofia

Esistenza e Identitagrave O evento foi realizado pela Universitagrave Cattolica del Sacro Cuore de Milatildeo em maio de 2014 A intervenccedilatildeo eacute intitulada Una possibile interpretazione della metafisica classica

httpswwwrosminiinstituteitla-rosminianaconvegniesistenza-e-identita1560948369274-c01298b3-999e

7) Haacute um debate acerca da atualidade do pensamento de Tomaacutes o qual foi realizado a partir da apresentaccedilatildeo do livro Tommaso drsquoAquinomdash un profilo storico-filosofico (Carocci 2012 Esta obra possui uma ediccedilatildeo brasileira pela Loyola e estaacute indicada na bibliografia) de Pasquale Porro que se encontra publicado num canal do Youtube O diaacutelogo foi promovido pelo Centro Culturale di Milano Participaram da mesa Costantino Esposito o mediador Pasquale Porro o autor Onorato Grassi e Luca Bianchi os arguidores ambos medievalistas e expertos em Tomaacutes de Aquino

httpswwwyoutubecomwatchv=-NoXLrVoLUsampt=2530s

344 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

8) Existem vaacuterias intervenccedilotildees de Enrico Berti registradas em vaacuterios canais do Youtube Elenco apenas algumas

a) Aristotele e la philia httpswwwyoutubecomwatchv=-u1CQpAMtVg

b) La giustizia nella filosofia antica httpswwwyoutubecomwatchv=vUfJuCMaSeEampt=18s

c) Logos e techne nella filosofia antica httpswwwyoutubecomwatchv=9rOBUFLzovcampt=6s

d) Podcast dia-logando (Enrico Bertimdash PlatoneAristoteleParmenide) httpswwwyoutubecomwatchv=KGBrdgcuS4camplist=PL4D5B514D3F616

19F

e) Heidegger e letica aristotelica httpswwwyoutubecomwatchv=seHJS2hjRFU

f) Encontro de Apresentaccedilatildeo da nova traduccedilatildeo da Metafiacutesica de Aristoacuteteles feita por Enrico Berti A ediccedilatildeo que conta tambeacutem com introduccedilatildeo e notas do tradutor eacute da editora Laterza A parte mais instigante do encontro eacute a fala do erudito Berti explica que procurou afastar-se das traduccedilotildees que pretendiam transformar a Metafiacutesica numa teologia racional Esta tendecircncia de fazer da Metafiacutesica uma espeacutecie de teologia racional segundo Berti remonta ao ceacutelebre comentaacuterio agrave Metafiacutesica de Alexandre de Afrodiacutesia Ora este comentaacuterio sempre segundo o estudioso influenciou as antigas traduccedilotildees da obra e mesmo as interpretaccedilotildees que ela recebeu durante seacuteculos

httpswwwyoutubecomwatchv=i7NNekWgE_k g) Apresentaccedilatildeo do livro ldquoVeritagrave e comparazione in Aristotelerdquo (Venezia

Istituto Veneto di Scienze 2014) de Matteo Cosci com prefaacutecio de Enrico Berti O volume na verdade eacute a tese de doutorado do autor defendida na Universitagrave degli Studi di Padova sob a supervisatildeo de Enrico Berti No link abaixo a parte mais interessante satildeo as consideraccedilotildees iniciais de Berti

httpswwwyoutubecomwatchv=nQYC8zAJljMampt=233s h) Num encontro intitulado ldquoMente e Neuroscienzerdquo haacute uma intervenccedilatildeo de

Berti a uacuteltima de uma seacuterie sobre o tema ldquoMente e anima due entitagraverdquo Nela dialogando com autores contemporacircneos ele tenta mostrar a atualidade do conceito de psykhḗ de Aristoacuteteles como forma do corpo como ldquoato primeiro de um corpo fiacutesico que tem a vida em potecircnciardquo Apenas penso

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que a questatildeo da imortalidade da alma ao contraacuterio do que diz Berti eacute uma questatildeo filosoacutefica

httpswwwyoutubecomwatchv=-BcUVrWQcEAampt=4441s i) Veritagrave come conformitagrave mdash Dialogo tra Filosofia e Scienza

httpswwwyoutubecomwatchv=nycGmKFQDxo j) Una Filosofia metafisica

httpswwwyoutubecomwatchv=QZrAa1NqMGgampt=115s k) Intervista a Enrico Berti (Penso que o termo thaỹma diz mais do que fala

Berti na sua resposta O seu livro In principio era la meravigliamdash Le grandi questioni della filosofia antica editado pela Laterza possui uma traduccedilatildeo brasileira pela Loyola No princiacutepio era a maravilhamdash As grandes questotildees da filosofia antiga)

httpswwwyoutubecomwatchv=I_Mj1orEsck l) Intervista a Enrico Berti (O livro de Berti Sumphilosopheinmdash La vita

nellAccademia di Platone lanccedilado pela Laterza natildeo possui ateacute o momento uma ediccedilatildeo brasileira)

httpswwwyoutubecomwatchv=g95dIipDXcU m) Enrico Berti mdashPolitica di Aristotele

httpswwwyoutubecomwatchv=0b6T-pHeu4oampt=320s n) Tradurre o tradire la Metafisica di Aristotele ndash Lectio Prof Berti

httpswwwyoutubecomwatchv=l7CdFtiPi-wampt=1356s o) La ragione allrsquoinfinito

httpswwwyoutubecomwatchv=Ls4BPxnI5jkampt=748s p) Hegel e o livro Lambda da Metafiacutesica

httpswwwyoutubecomwatchv=HVsMA7WdbJkampt=1315s q) Enrico Berti ndash Il linguaggio nel pensiero di Aristotele

httpswwwyoutubecomwatchv=Wb-rMYubITUampt=344s r) Haacute vaacuterias liccedilotildees de Berti registradas no canal Festival filosofia

a) Sobre a amizade como virtude poliacutetica na Eacutetica a Nicocircmaco

httpswwwyoutubecomwatchv=ivO5S-DqpYU

b) Ainda sobre a amizade na Eacutetica a Nicocircmaco

httpswwwyoutubecomwatchv=xqLHT5k6Me4ampt=1107s

c) Sobre o tempo na Fiacutesica de Aristoacuteteles

httpswwwyoutubecomwatchv=2EahUfK474Uampt=906s

d) Sobre a megalopsykhiacutea na Eacutetica a Nicocircmaco

346 | A eacutetica filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino

httpswwwyoutubecomwatchv=pfEiMEpTPQYampt=340s

e) Sobre a Poliacutetica de Aristoacuteteles Vejo com reserva o fato de Berti natildeo aceitar o termo comunidade para ajudar a entender o termo poacutelis Salva reverentia penso que desde que se esclareccedila o que se entende por comunidade esta palavra pode prestar bons serviccedilos

httpswwwyoutubecomwatchv=FL1o0yHEq58ampt=278s

f) Sobre a poiacuteēsis na Eacutetica a Nicocircmaco

httpswwwyoutubecomwatchv=fgZYPWkJop4ampt=956s

g) Sobre a verdade na Metafiacutesica de Aristoacuteteles

httpswwwyoutubecomwatchv=RhjX5OvPVeYampt=297s

h) Sobre o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo como fundamento da verdade

httpswwwyoutubecomwatchv=Wd_et-c0LOIampt=598s 9) Haacute finalmente uma conferecircncia particularmente ilustrativa de Enrico Berti

sobre o realismo de Aristoacuteteles Il realismo di Aristotele vecchio o nuovo A conferecircncia ocorreu durante o ciclo ldquoRealisms New and Oldrdquo promovido pelo filoacutesofo italiano Maurizio Ferraris que estaacute ligado agrave corrente denominada ldquoNuovo Realismordquo Berti fez a sua intervenccedilatildeo a partir de uma obra de Hilary Putnam traduzida para o italiano La filosofia nellrsquoetagrave della scienza Trad Luciana Ceri et al Bologna Il Mulino 2012 Neste livro o filoacutesofo americano dedica o capiacutetulo XII a Aristoacuteteles La mente di Aristotele e la mente contemporanea Na paacutegina 276 afirma Putnam ldquoPara Aristoacuteteles segundo a interpretaccedilatildeo que defendo na percepccedilatildeo e no pensamento a parte intelectiva da alma estaacute em contato direto com as propriedades das coisas pensadas Para usar a linguagem contemporacircnea os democritianos e os estoicos tinham uma teoria lsquorepresentacionalrsquo da percepccedilatildeo enquanto (segundo penso) os aristoteacutelicos eram lsquorealistas diretosrsquo Na concepccedilatildeo aristoteacutelica existem sem duacutevida algumas dificuldades Essas derivam do essencialismo implicado na noccedilatildeo aristoteacutelica de lsquoformarsquo e se agravam se sustentamos que a forma do objeto esteja na mente quando pensamos o objeto assim como quando o percebemos No caso do pensamento a forma da qual fala Aristoacuteteles parece ser aquilo que ele considera a lsquoessecircnciarsquo e encontro seacuterias

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dificuldades na ideia de que podemos pensar somente coisas das quais conhecemos a lsquoessecircnciarsquo Mas Gisela Striker me sugeriu que no caso da percepccedilatildeo eacute improvaacutevel que Aristoacuteteles tenha em mente uma noccedilatildeo tatildeo rigorosa de forma Eacute plausiacutevel que a forma recebida na percepccedilatildeo seja simplesmente a forma sensiacutevel mdash a cor a forma a consistecircncia o som ou qualquer outra coisa Se interpretamos Aristoacuteteles deste modo ele parece dizer simplesmente que na percepccedilatildeo estamos conscientes das propriedades sensiacuteveis das coisas externas mdash da sua forma da sua cor e assim por dianterdquo (A traduccedilatildeo livre eacute nossa) Berti natildeo soacute concorda com Putnam como vai aleacutem

httpswwwyoutubecomwatchv=by8x28LAkm4ampt=4069s 10) Minhas monografias de conclusatildeo de licenciatura e de especializaccedilatildeo em

Filosofia pela UFMT foram em Tomaacutes de Aquino Ambas estatildeo publicadas pela Editora Fi e se encontram gratuitamente disponiacuteveis em PDF

httpswwweditorafiorg2526savio 11) Mantenho faz quase dez anos um site chamado Filosofante Nele trabalho

de forma introdutoacuteria questotildees concernentes ao pensamento do Aquinate httpwwwfilosofanteorgfilosofante

  • Agradecimentos
  • Lista de transliteraccedilotildees0F gregas1F
    • TRANSLITERACcedilAtildeO DOS DITONGOS
    • Transliteraccedilatildeo dos espiacuteritos brandos e aacutesperos
      • Sumaacuterio
      • Prefaacutecio
      • Apreciaccedilatildeo
      • Apresentaccedilatildeo
        • O legado tomista eacute pois imenso e se me perguntarem qual de suas obras eacute a mais importante direi que eacute a Suma Teoloacutegica E direi mais eacute a obra filosoacutefico teoloacutegica mais importante produzida pela Idade Meacutedia Isso natildeo desqualifica outras obras del
        • Voltemos agrave Suma Teoloacutegica A maior obra de Tomaacutes de Aquino e a mais importante obra do pensamento medieval natildeo surgiu de um grande projeto Frei Tomaacutes estava lecionando no Studium generale que a Ordem Dominicana acabava de criar em Roma Nada que se
        • Uma breve exposiccedilatildeo para principiantes acabou recebendo o nome de summa (resumo apanhado) uma summa que provocaria admiraccedilatildeo e respeito atraveacutes dos seacuteculos Em cerca de seis anos de 1268 a 1273 - apesar de muitos trabalhos entre os quais aleacutem de
        • A obra foi dividida em trecircs partes A primeira delas trata de Deus em si da Trindade e da criaccedilatildeo E quem natildeo recorre a ela quando deseja encontrar provas sobre a existecircncia de Deus (questatildeo 3) ou quando se pergunta sobre o que vem a ser esta criatu
        • A segunda parte eacute a mais longa ocupando cerca de 35 do total da obra Eacute dedicada toda ela agrave Moral enquanto regresso do homem para Deus Eacute a parte onde mais o autor apela para a Filosofia e para redigi-la eacute evidente que leu antes e comentou a Eacuteti
        • Concordo com os muitos que dizem ser a segunda parte da Suma Teoloacutegica o mais importante tratado de Eacutetica escrito ateacute hoje A Eacutetica Filosoacutefica em Tomaacutes de Aquino que o leitor encontraraacute a seguir confirma o que estou dizendo
        • Luis Alberto De Boni
          • Introduccedilatildeo
          • Capiacutetulo I
          • Filosofia e Eacutetica
            • 11 Do mito agrave filosofia o ldquothaỸmardquo como princiacutepio do filosofar
            • 12 Filosofia e ldquoalḖtheiardquo a filosofia como ldquofiliacuteardquo agrave ldquosofiacuteardquo
            • 13 A filosofia como ldquotheōriacuteardquo o nascimento da ldquoepistḖmērdquo pelo proceder do ldquodiaacutelogosrdquo
            • 14 Tomaacutes de Aquino e a ldquoFilosofiacuteardquo do ldquodiaacutelogosrdquo agrave ldquodisputatiordquo
              • Capiacutetulo II
              • A eacutetica enquanto ciecircncia em Aristoacuteteles
                • 21 Contextualizaccedilatildeo Histoacuterica da Eacutetica
                • 22 Preacircmbulos antropoloacutegicos e a Definiccedilatildeo de eacutetica
                • 23 TEacuteLOS E EYDAIMONIacuteA
                • 24 Eacutergon AretḖ e Kakiacutea
                • 25 PROAIacuteRESIS E BOYacuteLEYSIS
                • 26 Virtudes dianoeacuteticas e eacuteticas o conceito de justo meio quanto agraves virtudes eacuteticas
                • 27 O papel da amizade na eacutetica
                • 28 Contornos acerca do conceito de EYDAIMONIacuteA
                • 29 A RACIONALIDADE PROacutePRIA DA CIEcircNCIA EacuteTICA
                • 291 Froacutenēsis e epistḗmē
                • 292 A epistḗmē ēthikḗ enquanto epistḗmē politikḗ
                  • Capiacutetulo III
                  • A recepccedilatildeo da eacutetica aristoteacutelica na
                  • teologia moral de Tomaacutes
                    • 31 Contextualizaccedilatildeo criacutetica Tomaacutes como auCtor
                    • 32 O conceito de natureza em Tomaacutes
                    • 33 A concepccedilatildeo TOMASIANA DA EacuteTICA
                    • 34 O papel da razatildeo da Linguagem e da Lei na eacutetica TOMASIANA
                    • 341 Eacutetica das virtudes e lei natural
                    • 342 Eacutetica e direito
                    • 35 Civitas e beatitudo ou felicitas em Tomaacutes
                    • 36 DO livre-arbiacutetrio distintivo do ato humano Agrave pessoa
                    • 361 A pessoa
                    • 362 O bem uacutetil honesto e deleitaacutevel
                    • 37 A amizade
                    • 38 A racionalidade proacutepria DA eacutetica
                    • 381 Prudecircncia e filosofia praacutetica
                    • 382 Os eacutendoxa em Tomaacutes de Aquino
                      • Tomando por base estes pressupostos podemos considerar como funciona a razatildeo na eacutetica tomasiana
                        • 383 A racionalidade proacutepria da eacutetica tomasiana
                          • Capiacutetulo IV
                          • O conceito de Teologia em Tomaacutes de Aquino
                            • 41 O conceito de Teologia como ciecircncia em Tomaacutes
                            • 42 O ldquoobjetordquo da Teologia
                            • 43 O papel da filosofia na Teologia tomasiana
                            • 44 A face humana da Teologia TOMASIANA
                            • 45 Os ldquopreacutestimosrdquo da filosofia agrave Teologia
                            • 46 O MODO DE PROCEDER de Tomaacutes
                              • Capiacutetulo V
                              • Toacutepicos da Eacutetica Filosoacutefica de Tomaacutes de Aquino
                                • 51 O que eacute o homem
                                • 52 A eacutetica INTEGRADA de Tomaacutes
                                • 53 As paixotildees da alma
                                • 54 A estrutura do ato humano
                                • 55 As virtudes
                                • 551 A bondade e a maliacutecia do ato humano
                                • 552 A definiccedilatildeo de virtude como habitus e meio-termo da razatildeo
                                • 553 A conexatildeo das virtudes
                                • 554 As virtudes cardeais
                                  • Conclusatildeo
                                  • Referecircncias
                                    • A) Fontes PRIMAacuteRIAS
                                    • B) FONTES SECUNDAacuteRIAS
                                      • Para saber mais
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