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Epicuro e a Causa e Raiz de Todo o Bem

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Epicuro e a causa e raiz de todo o bem

Um dos fragmentos mais polémicos e escandalosos que nos chegaram de

Epicuro é, como se sabe, este: " O princípio e a raiz de todo o bem é o prazer do

estômago e as coisas sábias e requintadas acabam por se reportar a este prazer"(59).

Se o intuito de Epicuro era causar escândalo, sabe-se também que o conseguiu: a

antiguidade discutiu e, sobretudo, criticou asperamente o texto. E, todavia, abundam

mais as críticas que as interpretações do que está em causa nele, o que já não se passa

com o comentário moderno, que tem, pelo contrário, tentado justificar a proposição de

vários modos. Apesar de já muito mastigado, o texto merece, todavia, que se regresse a

ele.

Antes de se iniciar as considerações que se seguem, requer-se uma advertência

prévia. Algumas das teses fundamentais de Epicuro que se referem a este texto serão

aqui dadas por pressupostas – no todo ou em parte – por ser impossível discuti-las neste

âmbito. Assim, ficará totalmente por discutir a tese de Epicuro segundo a qual a única

desformalização do termo "bem" se encontra no fenómeno do prazer. Isto será dado por

pressuposto. Ficará também em suspenso, pelo menos em grande parte, que se entende

por "prazer", a não ser naqueles aspectos que digam respeito à interpretação do texto em

causa, aspectos que ainda são alguns e, aliás, essenciais. Mas não se entrará na

discussão, que é extraordinariamente vasta, da natureza e determinações do fenómeno.

A não ser que se introduza algum esclarecimento adicional, por "prazer" refere-se, de

modo muito vago e geral, aquele fenómeno com que todos temos algum contacto, por

mais confuso que possa ser a natureza disso com que temos contacto. O que se pretende

com as considerações que se seguem não é, portanto, determinar de que modo o bem é

somente prazer nem, em toda a sua extensão, que se entende por prazer. O propósito do

que se segue não é, aliás, muito audaz: pretende averiguar se a proposição de Epicuro

pode ter algum sentido e, se assim, for qual. Quer dizer: qual é o sentido literal da

expressão.

O primeiro aspecto a ter em conta para compreender o sentido, o próprio

conteúdo da proposição é o seu carácter provocatório. É óbvio que Epicuro pretende

escandalizar e provocar uma reacção no leitor. Trata-se de uma estratégia típica de

Epicuro, que cospe no belo quando não produz prazer e que admite dúvidas à hora de

saber se o sábio deve agir justamente. Importa, todavia, perceber a que é que

corresponde este gosto pela provocação. O que parece, de facto, estar em causa nele é,

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como sempre em Epicuro, uma estratégia terapêutica. O escândalo, a provocação, têm

um significado preciso, parece, e não se trata de uma simples brincadeira travessa. O

epicurismo é uma terapêutica e tanto a doutrina como a sua forma retórica se inscrevem

nessa terapêutica. Ora a retórica do escândalo parece estar constituída numa pretensão

muito precisa: purificar a visão para poder ver os fenómenos. Talvez a ideia fique logo

mais clara e patente citando outro fragmento da mesma obra – da Ética – em que

Epicuro diz o seguinte: " O que cria um deleite inultrapassável é o ter escapado a um

grande mal. E é esta a natureza do bem, se alguém a apreender correctamente –e se

fixar nela e não andar de um lado para o outro a balbuciar palavreado oco a respeito

do bem"(61). Não interessa agora a tese concreta sobre o prazer. O que interessa indicar

é que, de acordo com o texto, há algo que impede o nosso ponto de vista de dar conta da

verdadeira natureza do prazer, quer dizer, há um obstáculo ao contacto com o

fenómeno, e esse obstáculo está relacionado com "palavreado oco". Epicuro parece

querer dizer que a estrutura simbólica que o ponto de vista inequivocamente possui –

isto é, a linguagem – tem a capacidade de enredar o sujeito nela, numa espécie de teia,

de modo a confundi-lo, ao ponto de se encontrar, no fim, atolado em determinações que

não correspondem efectivamente a nada, que não têm correspondência com os

fenómenos, mas que nós tomamos como se realmente tivessem. É, como se sabe, uma

das teses de Epicuro que o nosso ponto de vista pode entreter-se com substitutos

simbólicos dos fenómenos, que não são nada, que são vazios e inanes, como repete com

insistência, mas que tratamos como se fossem os próprios fenómenos. Precisamente por

isso, Epicuro, na carta a Heródoto, recomenda que esteja atento à "noção primeira"(pag.

21) para desse modo evitar as "assunções falsas", o falar "em vão".

Este fenómeno é, por si só, suficientemente interessante para merecer uma

análise pormenorizada, mas sai totalmente fora do que se pretende aqui. Basta somente

indicar que o carácter escandaloso da afirmação de Epicuro está relacionado com o

fenómeno do nevoeiro provocado pela linguagem, pelo facto de as palavras servirem

frequentemente de biombo que não deixa ver as coisas, que distrai a atenção para fora

do que se passa. E não só isso. A linguagem, nesta sua forma de execução, produz

também o efeito de adormecimento do ponto de vista, que se pode manter

indefinidamente entretido com o que é puramente simbólico, sem haver contacto com o

que quer que seja, numa espécie de modorra intelectual em forma de verborreia. O

ponto de vista como que adormece a falar. É, parece, neste contexto que se devem

interpretar as intenções provocatórias dos textos de Epicuro. Tais intenções têm, como

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se disse, um propósito terapêutico que parece claro, que é o de dissipar o nevoeiro e pôr

o fenómeno à frente dos olhos, o propósito de, falando prosaicamente, fazer com que o

ponto de vista "se deixe de coisas" e atente nisso mesmo que está à sua frente. É

precisamente isso o que Epicuro diz quando se refere ao palavreado oco: se um sujeito

se deixar de conversas, ele verá que é como Epicuro diz e só não vê porque está

distraído com palavras ocas. É evidente que a tese de Epicuro é muito problemática,

porque parece pressupor uma certa capacidade de contacto com o puro fenómeno, não

contaminado pela linguagem, pela ideia, como se se pudesse ter um puro acesso aos

fenómenos. Não interessa aqui, todavia, discutir a viabilidade conceptual da tese, mas

somente identificar a própria tese, e, neste caso, da sua retórica. Epicuro pretende ser

provocatório porque o ponto de vista está confuso com as palavras e a melhor maneira

de o fazer sair dessa confusão não é, certamente, com mais palavras, porque isso só o

faz mergulhar mais no seu adormecimento.

Há, ainda, um outro aspecto, também ele prévio à análise do próprio conteúdo

do texto, e também ele relacionado com a retórica da proposição. O texto de Epicuro

relaciona o bem, aquele mesmo bem de que falavam Platão e Aristóteles, com o prazer

do estômago. O bem, o momento que constitui a totalidade do sentido, aquilo que, em

última análise, se intenta sempre, tem a ver com o estômago, e tem a ver de tal modo

que é a víscera – porque é de facto da víscera que se trata, como se verá – que constitui

o seu sentido. O texto é tipicamente epicurista porque relaciona uma determinação

fortemente abstracta e ideal – o bem – com outra de estrutura radicalmente oposta, com

uma tripa, porque é mesmo um prosaísmo que Epicuro pretende proferir. Já se tentará

perceber como é que tal relação se pode constituir. Mas há, como se disse, um aspecto

prévio que vale a pena realçar, porque também ele é muito significativo. Ao relacionar o

bem, todo o bem, e provavelmente o próprio bem no seu todo, na totalidade da sua

determinação, com uma víscera, com a natureza evidentemente prosaica –

excessivamente prosaica, parece mesmo – do prazer do estômago; ao relacionar e pôr

em referência fundamental os bens do espírito, as coisas mais elevadas, com o pão, a

água e eventualmente um pouco de vinho, Epicuro está também a chamar a atenção para

uma determinação precisa dessa névoa das palavras, aquela que corresponde a uma

espécie de pretensão snob do ponto de vista, que é, no sentido próprio, de facto snob,

quer dizer, não só não corresponde a nada, é estruturalmente vazio, mas está, todavia,

cheio de pretensões, que são, por isso, meras pretensões. Não se trata, pois, somente de

dissipar uma neblina. Trata-se, ainda, de vincar que essa neblina é radicalmente pedante.

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Quer dizer, o texto diz, na sua forma retórica, que, vendo bem as coisas, o nosso ponto

de vista é essencialmente prosaico, mas que, porém, a sua mania das grandezas, o seu

tom de voz habitual, são, na verdade, afectados, e profundamente, quer dizer, são uma

produção de si por si, puramente imaginária e inane, um fazer de conta, mas com bom

aspecto. Se se atentasse para o que se passa mesmo, ver-se-ia, diz Epicuro, que essa

afectação não passa disso mesmo e que, em última análise, o que conta é o prazer do

estômago, o que serve para fazer cair os anéis do ponto de vista e fazê-lo descer à terra,

em vez de andar por aí a falar de coisas sublimes sem sentido. É também este aspecto

que está compreendido na retórica provocatória do texto, quer dizer, o texto é, pela sua

simples forma de expressão, fortemente anti-platónico e anti-aristotélico. Este ponto é

crucial e será necessário voltar a ele mais adiante.

Pode agora proceder-se a uma rápida análise da proposição. Aquilo que se trata

de averiguar é se a proposição admite sentido literal ou se, pelo contrário, se trata de

uma metáfora e, se assim for, de que tipo de metáfora.

Um aspecto evidente a ter em conta, e que merece apenas uma menção, é que o

texto de Epicuro afirma a existência de uma variedade de bens – de uma variedade de

prazeres, portanto –, alguns deles aparentemente muito afastados dos prazeres do

estômago e do corpo, como é o caso dos bens referidos explicitamente, que estão muito

longe das necessidades mais básicas. Não há só prazeres gastronómicos, como é óbvio.

E isso é tão óbvio que não requer mais comentário.

Uma primeira interpretação da proposição – que é a assumida por muito

comentadores – pensa a relação entre o estômago e os restantes prazeres ou bens como

uma relação de mero condicionamento. Neste sentido, o texto significaria que não é

possível usufruir de bem algum a não ser que as necessidades mais básicas e imediatas

estejam satisfeitas. É sabido que num estado de extrema – ou não tão extrema – fome ou

sede o desempenho das faculdades intelectuais fica, por assim dizer, dificultado e que,

pelo contrário, ele torna-se possível quando tais necessidades deixam de se fazer sentir.

Isto é evidentemente assim. Deste ponto de vista há quem afirme que o texto de Epicuro

diz somente, afinal, algo de óbvio. Bayley resume bem este tipo de interpretação desta

forma: "if the mind is to have ataraxia in order to pursue philosophy, the first condition

is aponia of the body, and for that the first need is aponia=hedoné of the stomach. It is a

fearless piece of logic wich was falsely interpreted as though Epicurus has made the

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pleasure of the stomach the first object of life"1. É certo que se trata de uma

interpretação bastante ousada, pois o que aqui se afirma é que o prazer do estômago é a

primeira condição para aquilo que se persegue, que é a filosofia. Deste ponto de vista, o

bem procurado seria a actividade filosófica, que seria o bem essencial, e o prazer do

estômago seria, então, interpretado sob duas condições: por um lado, seria apenas a

primeira condição de um conjunto de condições – as necessidades do corpo – em ordem

à sua eliminação. Assim sendo, tratar-se-ia de uma espécie de sinédoque, porque o

estômago valeria como uma parte que, de facto, estaria em vez do todo, o corpo em

geral e aquilo que lhe é necessário. Por outro lado, tratar-se-ia de uma condição muito

peculiar, porque totalmente negativa. Deixando de lado, por agora, o problema da

metonímia, interessa apenas estudar o segundo aspecto. A interpretação em causa

compreende as noções de causa e raiz reduzindo-as à de conditio sine qua non. Num

certo sentido, esta interpretação acaba por ser trivial, como se disse. Noutro, ela é

certamente problemática. Duns Escoto dizia, com graça, ainda que a outro respeito, que

não sabia como se deveria encaixar este novo tipo de causa – a conditio sine qua non –

no esquema das quatro causas de Aristóteles. E a perplexidade de Duns Escoto percebe-

se bem. Por um lado, parece que a conditio sine qua non é, de facto, uma espécie de

causa, pois a sua presença é requerida para que o fenómeno correspondente se possa

constituir. Se ela está ausente, o fenómeno é impossível, o que significa, na verdade,

que tal tipo de condição contribui, de alguma maneira, para a posição do fenómeno.

Neste sentido, esta condição corresponde àquilo que Leibniz chama requisito, isto é,

aquela determinação sem a qual um dado ente não pode ser. Tomada, porém, deste

modo, a noção de conditio sine qua non é excepcionalmente vaga e difícil de perceber,

na medida em que, por um lado, ela é certamente um requisito, mas, por outro, não

contribui positivamente para a constituição do fenómeno de que é requisito, para a

produção da formalidade que é própria do fenómeno. Este tipo de requisito tem,

portanto, de certo modo, razão de causa, pois tem de estar presente. Mas, posto assim,

trata-se de um requisito claramente insuficiente para ser uma causa pois, na verdade, ele

é indiferente ao fenómeno, àquilo que lhe é próprio, dado que, como se disse, a sua

contribuição não é positiva. Note-se que não se trata de uma mera insuficiência do

requisito, como se a ele tivessem de ser acrescentados ainda outros, o que não seria tão

problemático. Trata-se, sim, de indiferença, pois nada do fenómeno condicionado é

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anunciado pela condição. Um requisito desta natureza aproxima-se, ainda que com

algumas diferenças, da noção de ocasião, uma noção difícil de pensar no que diz

respeito à sua relação com o fenómeno de que é ocasião. Sem ocasião. não há

fenómeno, mas a ocasião não produz nem constitui o próprio fenómeno. Na verdade,

uma conditio sine qua non é ainda menos que uma ocasião, pois é possível pensar a

ocasião como ocasião disto ou daquilo, quer dizer, como de alguma maneira

anunciadora negativamente do fenómeno, enquanto a condição sine qua non é

totalmente muda. Ou seja, não é fácil de estabelecer a relação que este tipo de condição

tem com o que condiciona, ainda que se saiba, parece, que se trata de uma relação

estritamente negativa e, nesse sentido, não pode justificar nem ser responsável pelo

fenómeno correspondente.

Ora a interpretação do texto de Epicuro a que se fez referência faz do prazer do

estômago um requisito desta natureza. Neste sentido, ela é, como se disse, trivial. E, por

isso mesmo, não explica nada e faz da proposição uma frase de La Palisse: o texto

torna-se insignificante. Na verdade, se Epicuro estivesse apenas a dizer que é preciso

não estar a morrer à fome para ler a Fenomenologia do Espírito, passe o anacronismo,

não se vislumbra que motivo haveria para escândalo de qualquer filósofo. O filósofo

sabe que isso é certamente assim. E não se escandalizaria porque tal tipo de proposição

deixa em total indeterminação – em indiferença, como se disse – a relação que há

efectivamente entre a condição negativa e o fenómeno geral do bem

Tudo isto significa que não parece poder ser esta a interpretação correcta do

texto de Epicuro, porque os termos que ele utiliza são inequívocos. O prazer do

estômago é causa e raiz, é responsável e justifica todo o bem, dá razão de todo ele. O

que não implica que todo o bem seja necessariamente prazer do estômago, mas sim que

todo o bem se refere, em última análise, a ele, tem nele o seu fundamento e isso de um

modo positivo, quer dizer, o bem deixa de ser bem, por assim dizer, se abandona a

referência intrínseca a esse fundamento. Ou seja, tanto quanto parece, a proposição de

Epicuro pretende mesmo afirmar que o prazer do estômago é o momento essencial e

constitutivo do bem em geral e isso é assim porque ele tem, em última instância, o seu

fundamento próprio no bem do estômago. E esse fundamento não pode ser um requisito

meramente negativo, porque está construído sobre as determinações de causa e raiz,

princípio que justifica e princípio que origina, que não são obviamente determinações

negativas. Parece, pois, que se pode pôr de parte, sem grande risco, a interpretação

referida.

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Outra possibilidade seria, como se disse, pensar a proposição como uma

metonímia. Epicuro estaria a dizer que todos os bens são, em última análise, bens do

corpo ou referidos a bens do corpo em geral, e a referência ao estômago seria um modo

de tomar a parte pelo todo. Ora isto também parece não ser assim, ainda que para o

saber seria talvez necessário recorrer a outros textos para além deste. De qualquer

forma, parece claro que Epicuro não está a afirmar que todos os bens se refiram aos do

corpo, entendido de um modo geral e indeterminado, isto é, como se não houvesse

nenhuma hierarquia entre eles, como se eles possuíssem todos o mesmo estatuto, valor e

significado, simplesmente por serem todos do corpo. Não é assim, de facto, que Epicuro

pensa. Sabemos, por exemplo, que Epicuro não diz que certo tipo de prazeres corporais

supérfluos ou, na sua linguagem, não naturais, são fundamentais ou causa de todo o

bem, mesmo quando se trata de bens do estômago. Quer dizer, há bens e prazeres do

estômago que não são fundamentais. Mais ainda, sabemos também que Epicuro não diz

– pelo menos nos fragmentos de que dispomos – que o prazer sexual é causa e raiz de

todo o bem, e trata-se de uma forma evidente de prazer corporal. Ou seja, se há

sinédoque ela não corresponde à substituição de uma parte, que seria o estômago, por

um todo, que seria o corpo em geral. É certo que o lacónico texto comentado não

permitiria, por si só, excluir essa possibilidade, mas, como se disse, isso sabemo-lo por

outros textos. O estômago não está, assim, a ser considerado como um símbolo do

corpo, como um momento que de certo modo compendia um todo, com todas as suas

determinações com o mesmo valor e não hierarquizadas. Pelo contrário, tudo leva a crer

que Epicuro esteja mesmo a referir-se à própria víscera. É, aliás, isso mesmo que diz

Metrodoro: "Encheu-me de alegria e confiança o ter aprendido com Epicuro a

gratificar correctamente o estômago. E é no estômago, ó Timócrato, (...), que se situa o

bem". E foi também assim que Plutarco o entendeu, quando diz que, segundo os

epicuristas, o sujeito tem o centro no estômago2. Quer dizer, Epicuro parece estar a

desenhar uma hierarquia de valores fundamentais, uma hierarquia de referências, que

tem por núcleo essencial, por centro, como diz Plutarco, precisamente o estômago que

é, assim, no sentido literal, o princípio e origem de todo o bem. Ora isto poderia ser

interpretado como se Epicuro estivesse a dizer que, vendo bem as coisas, em última

análise o sujeito vive para comer, vive em ordem a satisfazer as suas necessidades

alimentares, como se Epicuro fosse, na verdade, um epicurista. Esta interpretação está

2 Non posse suaviter vivi secundum Epicurum

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obviamente errada e deixa escapar o que Epicuro quer dizer, pelo menos no modo como

vulgarmente poderia ser interpretada. Mas, todavia, trata-se de uma interpretação

certamente interessante porque toca o próprio nervo da tese de Epicuro: o sentido de

"viver para" ou de "viver em ordem a", quer dizer, a própria noção de sentido. É, afinal,

isso mesmo que está em causa na proposição e é isso que se deve expor, apesar de ser,

por motivos que se tentarão esclarecer, difícil de fazer.

Comece-se, então, pelo princípio, pela raiz e pelo centro – pelo prazer do

estômago. Porque o estômago? Tanto quanto parece, a resposta deve ser: porque o

estômago é o órgão ao qual a vida está relacionada de um modo particular, pela sua

sustentação mais imediata. É certo que a vida depende de muitas outras condições e

pode cessar, extinguir-se, devido a muitos factores para além da alimentação, tanto

activos como passivos. Mas a alimentação corresponde a uma actividade, a uma

actividade que está em nosso poder e que produz, ainda, um prazer facilmente

identificável. E estas condições são claras na alimentação e não são claras noutros tipos

de actividades corporais vitais. Assim, por exemplo, a vida depende da respiração, mas

a respiração é uma actividade, se assim se pode dizer, que se faz sem nós, por um lado,

e de que não se reconhece com clareza que prazer produz. O mesmo se passa com

outras funções vitais, que Epicuro poderia até desconhecer, mas que nós sabemos que

estão nessas mesmas condições. E há, por outro lado, prazeres do corpo que são fortes e

veementes, mas que não são vitais, isto é, prazeres que a vida pode dispensar e, todavia,

manter-se, não ser afectada, portanto, no seu acontecimento vital básico, como é o caso

dos prazeres do sexo. Privando-se dessa actividade, o sujeito priva-se evidentemente de

um prazer, mas não da vida. O prazer do estômago resume, assim, algumas

características essenciais, como se disse: corresponde a uma função absolutamente

necessária para a vida, está em nosso poder e produz prazer. Estas três condições não

ocorrem, parece, noutras funções, o que significa que a vida está relacionada e

dependente dos prazeres do estômago de um modo muito privilegiado. Assim sendo, a

alimentação é a actividade que, produzindo prazer, assegura a vida de um modo

imediato. Neste sentido, o prazer do estômago é, no sentido estrito do termo, o mais

básico de todos, o mais fundamental. Parece, pois, possível dizer que quando Epicuro se

refere aos prazeres do estômago, o faz propositada e intencionalmente, porque ele está

relacionado com a pura preservação da vida.

Todavia, o que até agora se disse permitiria ainda a interpretação minimalista da

causalidade atrás referida, aquela que se pôs de parte porque não fazia justiça aos

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termos empregados por Epicuro. Quer dizer, por si só, considerado isoladamente, o

carácter fundamental do prazer do estômago não fez dele – tendo em conta apenas o que

até agora se disse sobre isso – a origem e a raiz de todo o bem, de todo o prazer. Os

outros prazeres e bens poderiam muito facilmente ser pensados como acrescentados,

como estando para além dele. Ou seja, o que se tem ainda de averiguar é a razão pela

qual este prazer básico é, justamente na medida em que é básico, fundamental, no

sentido próprio do termo, isto é, não algo que está por baixo e que permite, depois, o

que se lhe acrescenta, mas aquilo que torna possível e justifica essencialmente toda e

qualquer posição dada, nela própria, algo que põe a sua essência. De facto, o

fundamento não é algo que se pressupõe, mas sim algo cuja presença é requerida para a

constituição essencial de qualquer coisa. Assim, se o prazer do estômago é fundamental

ele terá de, de algum modo, estar presente em cada um dos prazeres, quer dizer, em

linguagem epicurista, em cada um dos bens, e estar presente a constituir o seu ser bom e

prazenteiro. Se é certo que há uma variedade de bens, e nem todos são do corpo, de

algum modo não pode haver novos bens para além dos do estômago, não porque não

haja outros bens, mas sim porque este é causa e raiz de todos. Ou seja, é necessário

admitir, por um lado, uma variedade e, por outro, uma presença constante e fundadora

de um aparentemente determinado prazer ou bem. Acresce ainda que o prazer do

estômago deve ser fundamento enquanto prazer básico, pois de outra forma sê-lo-ia por

acidente ou em virtude de alguma propriedade não essencial. É precisamente na medida

em que é do estômago que ele funda, e só nessa medida ele poderá ser pensado como

centro que aglutina e justifica todo o bem.

É, aliás, exactamente neste sentido que Plutarco compreende (e critica

duramente) a tese de Epicuro, quando diz que, segundo os epicuristas, o homem é como

um polvo com o seu centro no estômago que "estende como os polvos os seus tentáculos

até aos comestíveis". É certo que Plutarco está a interpretar a tese de Epicuro ao seu

modo, como se Epicuro estivesse a dizer que só interessa o que é comestível, no sentido

como o homem vulgar o entende, o que é, como se verá, um erro. E é um erro porque

Plutarco está a utilizar para compreender o texto de Epicuro as categorias que esse

mesmo texto pretende precisamente expulsar. Mas o enquadramento geral é, todavia,

aquele que Plutarco descreve, o do polvo: o sujeito, diz, de facto, Epicuro, tem um

centro e é em ordem a esse centro que tudo o mais faz sentido, é em ordem a ele que

todos os desejos devem ser medidos e esse centro é não só um pólo que irradia sentido,

se é que se pode falar assim, mas, como correctamente diz Plutarco, num sentido que

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não é o de Plutarco e que espera ainda por esclarecimento, um centro que puxa para si

tudo o mais e puxa para si tudo o mais unicamente na medida em que convém à

natureza desse centro. Tal centro determina, pois, a natureza do bem e, nesse sentido, a

metáfora do polvo é exacta, independentemente do modo como o homem vulgar a

interpreta, pois o prazer do estômago está presente, a causar, todos os prazeres, a

condicioná-los positivamente, como um requisito que é, não apenas necessário, mas,

pelo que parece, suficiente.

Esta estranha tese arrasta um problema que pode ser interpretado de dois modos,

pelo menos. O primeiro é o da tradição e corresponde a saber como é possível que o

prazer do estômago seja o fundamento de todo o bem. Este modo de compreender o

problema pressupõe a existência de diversos tipos de bens, que o prazer do estômago é

um deles, e pergunta-se, depois, como é que este bem particular se relaciona com todos

os outros bens particulares, considerados na sua totalidade. Quer dizer, este modo

clássico de perceber o problema pergunta: como é que, por exemplo, os prazeres e os

bens da filosofia, da arte e da amizade, estão no estômago, são causados pelo estômago.

O problema fica difícil de resolver, como parece evidente, a não ser ao modo da tese

minimalista já referida e posta de parte. Mas não é este o único modo de pensar o

assunto. Na verdade, o problema pode ser também formulado de outra forma, a saber:

que pode querer dizer, no que diz respeito à essência do bem, que o prazer mais básico

em ordem à conservação e preservação da vida é a causa e raiz de tudo o que é bom?

Dito que outro modo: que está Epicuro a dizer acerca da natureza do bem, da sua

essência? Ou seja, é possível que Epicuro não pretenda proceder a uma identificação de

uma causa da bondade das coisas, considerando isso no modo mais comum, isto é, ao

modo do isolamento de um momento particular, de um fenómeno, que seria

especialmente relevante. É certo que Epicuro também está a fazer isso, porque o prazer

do estômago é um fenómeno que está a ser isolado. Mas, do seu ponto de vista,

proceder a essa identificação é identificar, de um modo geral, o fenómeno do bem no

seu todo, quer dizer, como já se adiantou, proceder a uma desformalização adequada do

termo bem. O prazer do estômago é a causa e raiz do bem – e se isso significa dizer

qualquer coisa acerca da relação de um bem com outros bens particulares, significa,

muito mais propriamente, um esclarecimento acerca da essência do Bem enquanto tal. É

esse prazer que faz algo ser bom, que o constitui nessa determinação, que faz que haja

bem na existência, para além das palavras que confundem e enevoam tudo, e isso é de

tal assim que fora dessa relação o bem não é bem, não é, para dizer a verdade, nada, ou,

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melhor, é, justamente, um mal. E o que a proposição estabelece não é somente a

desformalização da noção de bem no fenómeno do prazer, o que não seria novidade.

Não é isso, de facto, o que está a ser dito. O que o texto diz é que o bem, na sua

estrutura fundamental, radical, reside no prazer básico da vida, o que é muito mais e

muito mais grave do que dizer que reside no prazer, o que é claramente ambíguo, se não

equívoco, porque isso pode querer dizer muitas coisas diferentes e inconciliáveis: tanto

Aristóteles como os cirenaicos poderiam, de certo modo, dizer isso. É também por esse

motivo que o estômago não pode ser visto como uma metáfora do corpo no seu todo,

porque se assim fosse a proposição de Epicuro perderia aquilo que de mais fundamental

e relevante afirma: que o bem está relacionado, está posto por e é efeito de um prazer

relacionado com a pura manutenção da vida. Este parece ser, pois, o ponto central do

texto. Não é possível fazer, aqui, nem sequer o levantamento de todas as teses que estão

compreendidas neste modo de perceber a proposição, muito menos analisá-las e muito

menos ainda discuti-las, como mereceriam, dado que são excepcionalmente

problemáticas. Faz-se, por isso, apenas um brevíssimo resumo de algumas dessas teses,

apenas de algumas.

O bem é, seja lá o que for, algo que se persegue, parece, aquilo em virtude do

qual algo se faz ou algo que se faz em virtude de qualquer coisa. Por este motivo,

Aristóteles diz que o bem tem razão de fim. Ora, como se sabe, nós fazemos coisas em

função de fins ou de representação de fins. Isso significa agir com ou por um propósito,

quer dizer, agir com sentido. Assim sendo, o fim tem evidentemente razão de princípio,

porque é em função dele que nós agimos, é ele que nos põe em movimento. O fim, o

bem, considerado como isso que se persegue, domina, portanto, não só o estrito âmbito

prático, mas todo o âmbito em que a existência humana se encontra mobilizada,

constituída "em ordem a", quer dizer, todo o âmbito do desejo, e isso é exactamente o

mesmo que dizer que o bem domina todo o âmbito disto a que chamamos vida. Por esta

razão o bem pode ser pensado como o primeiro na hierarquia do sentido, o momento

fulcral da vida, isso que a justifica, aquilo que, como dizia, por exemplo, Aristóteles,

torna a vida desejável, faz com que a vida seja apetecível. É neste enquadramento – o do

bem como fim, como constituinte de sentido, como o que faz da vida algo desejável –

que a tese de Epicuro deve ser pensada. Ora Epicuro introduz neste esquema algumas

alterações e novidades que pretende radicais. E para perceber o que ele pretende pode

ser útil, se se perdoar outra vez um anacronismo, utilizar um texto de Kierkegaard que

coloca o problema no sítio exacto. O texto diz: "qual é, em absoluto, o sentido desta

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vida? Dividam-se os homens em duas grandes classes: então pode dizer-se que uma

trabalha para viver e que a outra não tem essa necessidade. Todavia, trabalhar para viver

não pode certamente ser o sentido da vida, visto que é, de facto, uma contradição que

isto, o constante conseguir criar as condições, seja a resposta à pergunta pelo sentido

daquilo que deve ser condicionado por seu intermédio. A vida dos restantes também não

tem, em geral, qualquer sentido para além do consumir as condições. Se se disser que o

sentido da vida é morrer, então também isso parece ser de novo uma contradição". A

tese que subjaz ao texto é mais ou menos clara e é, não só clássica, como aquela que

configura o ponto de vista natural, o modo como inevitavelmente pensamos: o sentido é

aquilo em vista do qual, em ordem a, ou é, mesmo, a própria estrutura de haver um "em

vista do qual", um "em ordem a". Haverá, certamente, muitas outras determinações

essenciais para a noção de sentido, mas esta parece ser uma delas: o fito, o propósito. E

isso é de tal forma assim que pensamos algo como absurdo quando o pensamos como

absolutamente gratuito, como aquilo que está de tal forma isolado que não suporta a

pergunta "em ordem a quê?". Ser radicalmente gratuito e possuir fundamento ou sentido

são, por isso, contrários. Por isso pode dizer-se que nós agimos em ordem ou em função

de um bem e por isso pode dizer-se – aqui sem discutir – que não se pode intentar um

mal enquanto mal, a não ser que se introduza uma diferença no interior do termo bem. O

texto de Epicuro aqui em causa não diz, insiste-se, que isso em vista do qual fazemos

tudo o que fazemos é o prazer. Independentemente da natureza problemática desta

afirmação, ela deixaria incólume a própria estrutura conceptual do acontecimento do

sentido e limitar-se-ia somente a desformalizá-la. O sentido seria o prazer e isso

responderia aparentemente à pergunta do pseudónimo de Kierkegaard. O que Epicuro,

todavia, diz é que isso em virtude do qual tudo se faz é o prazer do estômago ou, pelo

menos, faz referência constitutiva a ele. Ora o prazer do estômago foi identificado como

o prazer que corresponde à mais básica actividade humana, aquela que se limita a

produzirprazer por preservar o acontecimento vital imediato. O que significa que

Epicuro está dizer – ou, pelo menos, parece – que isso em virtude do qual tudo se faz é a

manutenção da vida e o prazer que está mais imediatamente relacionado com isso. Ora o

que é interessante é que o texto de Kierkegaard diga que isso não faz sentido, ou

melhor, que deixa por responder a questão do sentido, que ela permanece como questão.

De facto, dizer que o sentido da vida é a manutenção da vida é precisamente a negação

do que chamamos sentido, isto é, do em vista do qual ou do em ordem a. De facto, não

faz sentido que a nossa vida esteja constituída em ordem a manter-se enquanto tal,

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somente em ordem a isso, porque ela mantém-se em ordem a qualquer coisa, se é que a

vida tem algum propósito e é desejável. De outra forma será um despropósito que não é

nem deixa de ser desejável: é um facto bruto. Nem a vida dos animais, parece, está

constituída meramente em ordem a manter-se, porque o seu fito é o da preservação da

espécie, de tal forma que o sentido, se é que se pode falar assim, do indivíduo

transcende a sua própria vida, não é a sua simples preservação, mas sim a da espécie, do

todo de que faz parte. E por isso, no caso dos animais, não é só a alimentação que é

básica, mas também a reprodução. Ora Epicuro insiste que no caso do homem o

fundamental é a alimentação, o prazer do estômago. E isto cria, pelo que se vê,

problemas de compreensão. O problema é, em resumo, este: não parece poder dizer-se

que a causa do bem está associada à conservação da vida, porque isso deixa por

responder à pergunta pelo "em vista de", pergunta que tem por objecto precisamente o

bem. O bem é aquilo que a pergunta persegue. Tal como somos imediatamente levados

a entendê-lo, o texto de Epicuro acabaria por dizer que a causa do bem é tal que não se

percebe que bem, em absoluto, pode haver com uma causa dessas: há uma causa do

bem, mas não há bem nenhum. Poderia, é certo, ser o prazer, mas já se viu que isso não

é o que Epicuro está a dizer, pois trata-se do prazer enquanto que está relacionado com a

mera manutenção da vida, no seu ser imediato. Ora não se pode, na verdade, afirmar

que se persegue e intenta a bruta condição de perseguir e intentar, que é o imediato. Dito

de outro modo: não se pode pôr no início aquilo que é perseguido como fim, não se

pode pôr como condicionado aquilo que é a sua condição, não se pode pôr como meta a

alcançar a linha de partida. Ora é exactamente isso que Epicuro faz. Ou seja, se a causa

de todo o bem – de todo – é o prazer ligado à manutenção da vida (à própria e imediata

manutenção dela), qual é, perguntar-se-á o bem da vida, o seu propósito, quer dizer,

afinal para que é que a mantemos? Não se percebe. A proposição de Epicuro parece,

assim, como que entupir as perguntas: com que propósito? Para quê? Com que fim? E

parece fazer isso porque qualquer bem – isto é, qual fito que se persiga, seja ele qual for,

mesmo o mais elevado – é-o por referência constitutiva e fundamental à condição básica

da própria perseguição, não como condição negativa, parece necessário repeti-lo, mas

estruturalmente positiva: essa condição produz o bem de tudo o que eventualmente se

possa perseguir.

O que parece estar a ocorrer é que Epicuro não está somente a indicar uma

condição; não está somente a indicar uma causa particular do bem. Está, muito

propositadamente, a subverter o sentido do termo bem e, com isso, propositadamente, a

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subverter o sentido do que chamamos sentido. Que a causa e raiz de todo o bem seja o

prazer do estômago parece, afinal, querer dizer que a pergunta "qual é o bem que se

persegue na vida?" deve ser bloqueada e impedida, e deve-o ser a fim de preservar o

próprio bem, não a fim de o eliminar. Este aspecto deve ser tido em conta: Epicuro está

a tentar manter algum sentido para o termo bem, mas esse sentido tentado subverte

totalmente o tradicional, o de fito ou propósito. Não se trata, assim, de ir para além do

bem e do mal, se é que isso possui alguma inteligibilidade, mas sim de inverter ou

subverter o sentido do bem e do mal. Na verdade, Epicuro afirma que o bem não é algo

que tenha razão de fim, mas algo que, pelo contrário, está no início, início para o qual,

por razões óbvias não há fim, o que significa que também não há, estritamente falando,

início: o chamado início é o todo da vida. A vida não tem propósito nem deixa de o ter,

não tem nem início nem fim: é. Tudo o mais são palavras, conversa, confusão.

Há aqui uma pluralidade de teses implicadas e de problemas difíceis que, como

já se disse, não é possível analisar. Faz-se novamente um mero elenco. A primeira tese é

a seguinte: todo o bem é, em última análise e fundamentalmente, o bem de se encontrar

vivo: este parece ser o sentido mais literal da proposição que tem vindo a ser

comentada. Ela pode ainda, neste contexto, ser interpretada de dois modos: o primeiro

diz que estar vivo, o puro facto de estar vivo, é bom, isto é, é um bem que dá prazer por

si só, passe a redundância, porque a vida é, ela própria, uma certa actividade. Esta tese,

muito provavelmente, faz referência a textos aristotélicos, ainda que a relação entre

Epicuro e os textos de Aristóteles esteja envolvida em alguma indeterminação. No

Protréptico pode ler-se: "não vivem com prazer todos aqueles a que acontece

comprazerem-se enquanto estão vivos mas sim aqueles para os quais o próprio estar

vivo é um prazer e se comprazem com o prazer que vem da própria vida" (B89). Na

Ética a Nicómaco a tese é expressa e clara: "Poder-se-ia pensar que todos desejam o

prazer, visto que todos aspiram a viver e a vida é uma certa actividade (....) Pois o

prazer torna perfeito os actos e assim também o viver que desejam; é, portanto, com

boa razão que perseguem o prazer, pois, para cada um, ele torna perfeito o viver, que

merece ser escolhido" (1175a10). Dito desta forma a tese pode ser vista como

relativamente pacífica, apesar de nem sempre o parecer, quer dizer apesar de ou passar

habitualmente desapercebida – o homem vulgar, provavelmente, não está sempre atento

ao prazer que o facto de estar vivo lhe proporciona, apesar de estar sempre a usufruir

dele – ou de parecer mesmo que não é assim, que está errada, por razões que se

indicarão a seguir. Há, porém, um aspecto que parece ser claro para Epicuro e que aqui

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não se discute: se estar vivo não for bom, nada do que ocorrer na vida o poderá ser,

porque tudo o que ocorre na vida é da vida.

A tese perde alguma trivialidade quando lida a partir da proposição que se

comenta. Ela passa, então, a significar isto: todo e qualquer tipo de bem é, em última

análise, uma mera variação do único prazer e bem essencial que é o de sentir-se vivo.

Esta tese, como é óbvio, já não é trivial, mas parece ser um dos sentidos mais fortes da

proposição de Epicuro: há um prazer básico que é o prazer básico da vida, e tudo o mais

são variações que não acrescentam nada a esse prazer, que não se lhe acrescentam de

modo nenhum. O que parece pressupor uma tese geral sobre o prazer, talvez a tese mais

geral de Epicuro, a saber: ter prazer é, de facto e enquanto tal, sentir-se vivo e não há

mais prazer para além deste, não há nem pode haver maior prazer que a excepcional

volúpia de se sentir vivo, e isso é assim porque um homem não se pode sentir mais vivo

do que quando se sente vivo, isto é, sempre. Isto e só isto é e pode ser o bem, porque

não há mais nada para além disto. Poderá haver variação da sensação da vida, mas não

aumento ou acrescento. Este parece ser o sentido de uma discutidíssima e

aparentemente absurda tese de Epicuro segundo a qual o máximo de prazer é a mera

ausência da dor e que, por isso, não há mais prazer para além deste, de tal modo que o

prazer não pode aumentar, mas somente variar. Esta tese compreende muitas outras,

mas Epicuro parece querer dizer que um sujeito que tem a vida assegurada tem tudo o

que pode vir a ter, quer dizer, tem absolutamente tudo o que lhe é necessário para ser

feliz como um deus e não pode mesmo ser mais feliz do que já o é, a não ser que

confunda tudo com palavras. Em última instância, todo o bem, todo o valor e todo o

sentido está no acontecimento bruto e imediato da vida.

Há, evidentemente, objecções fáceis a esta tese. A mais imediata é que a vida, o

ser imediato da vida, é compatível com a negatividade, com a dor. E a dor pode tornar a

vida indesejável. Também para isso Epicuro tem resposta – aparentemente talvez um

pouco débil –, mas que não é necessário analisar agora, também porque não anula a tese

fundamental. A tese fundamental é que o prazer é a vida. Isso não anula a possibilidade

de algum desprazer, anula só a possibilidade de um desprazer fundamental, por assim

dizer. Há um desprazer não fundamental, que é a dor. Não há um desprazer

fundamental, porque isso seria a não vida e isso não é nada, nem prazer nem desprazer.

Esta não é, portanto, uma objecção central. A objecção mais importante parece ser

outra, a saber: um sujeito pode perfeitamente sentir-se vivo, ter a vida assegurada, ter

resolvidos os problemas de estômago e gozar do seu prazer, não sofrer de especiais

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danos corporais e, todavia, ser infeliz, quer dizer, sentir-se privado de bens. O que

significa que há outros bens que não estão fundamentados no ser imediato da vida. As

pessoas que se suicidam não o fazem, normalmente, porque têm fome: suicidam-se por

outros bens que não os básicos. Isto é, aliás, comum, é até o mais comum para o homem

vulgar, que Epicuro tanto despreza, e percebe-se porquê. De facto, o homem vulgar

pode perceber que, em última análise, todo o bem se refere ao sentir-se vivo, mas é

certo também que o homem vulgar insiste casmurramente em estar preso a

determinações que excedem o facto bruto do sentir-se vivo imediato. Mais ainda: não só

está preso a determinações que excedem o acontecimento básico da vida como essas

determinações excessivas são as que constituem para ele o acontecimento básico da

vida. Quer dizer, para o homem vulgar, o que é básico na vida pode ser aquilo que não é

básico, no sentido de Epicuro, de tal forma que a ausência daqueles bens não básicos, na

linguagem de Epicuro, podem fazer que a vida perca toda a sua desejabilidade. Dito de

outra forma: para o homem vulgar, é o não básico que faz que o básico tenha algum

sentido e valor. Dito paradoxalmente: para o comum dos mortais, o básico é o não

básico, e sentir-se vivo não é comer ou beber, mas essencialmente outras coisas que

estão muito para além disso. Se falta o que excede o necessário, o necessário não tem

significado nenhum; só o tem pelo que o excede, precisamente. Quer dizer, parece que

para o homem vulgar estar vivo não é bastante, ou seja, a vida surge-lhe preenchida por

requisitos ainda por cumprir, exigências, petições, que vão muito para além daquilo que

o estômago requer, exige e pede, e sem aquelas coisas toda a vida pode frustrar-se

completamente. Este ponto é central no pensamento e na terapêutica de Epicuro, e está,

também ele, uma vez mais, preenchido de determinações a que apenas se pode aludir. A

tese de Epicuro – a centralidade do prazer do estômago – significa que todo o bem se

refere e tem essa origem determinada. Pode dizer-se, então, do seu ponto de vista, que

qualquer determinação que não esteja radicada na manutenção desse prazer, isto é, no

prazer relativo à manutenção da vida, não é, apesar de todas as aparências em contrário,

um bem; é, aliás, um mal. E é um mal precisamente porque excede o prazer imediato do

sentir-se vivo, o acontecimento básico da vida. Quer dizer, o ponto de vista de Epicuro,

que parece extraordinariamente boçal, está, pelo contrário, nos antípodas do ponto de

vista do homem comum, que come e bebe com prazer, e tanto quanto se opõe, por

exemplo, ao de Platão ou Aristóteles. Trata-se de uma questão crucial para Epicuro,

porque se joga nela a possibilidade de uma vida com sentido.

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A tese de Epicuro depende de um diagnóstico geral do estilo da existência

humana, que em traços necessariamente muito gerais é o seguinte: a existência humana,

no seu desenvolvimento normal e comum, vulgar, está afectada por um conjunto de

determinações que estão em permanente transgressão relativamente ao seu ser natural,

que toma por bens e por vezes por bens essenciais. Dito de outro modo, o estilo da vida

do homem vulgar está para além, muito para além, dos seus recursos naturais. O

fenómeno mais comum é evidentemente o do desejo, o da extraordinária variedade de

desejos, que a humanidade apresenta. É óbvio que a esmagadora maioria dos desejos

dos homens está para lá do desejo da pura preservação da vida, de uma existência de

subsistência, por assim dizer. Mas o que importa principalmente vincar, a este respeito,

é que todo esse conjunto de determinações excessivas relativamente aos recursos

naturais possui uma estrutura geral comum, que é o facto de todas elas dependerem e

pertencerem ao âmbito da possibilidade e não ao da realidade. O objecto do desejo é um

bem possível e um bem possível que está provavelmente sempre para além da pura vida.

Nalguns casos, numa imensa quantidade deles, trata-se até de um desejo que é de

natureza puramente simbólica, isto é, não real nem efectiva – riqueza, honra, poder,

reconhecimento, erudição; noutros, de bens que estão igualmente muito para lá da vida,

mesmo que sejam reais – todos os bens supérfluos, que são quase todos –, o que

significa que estes bens não são perseguidos por serem reais (porque, se assim fosse, o

supérfluo seria reconhecido como tal e, portanto abandonado), mas em virtude de

determinações que estão, também elas, para além do real, quer dizer, a vida depende

habitualmente de determinações irreais. Ora aquilo que Epicuro, com toda a tradição,

reconhece – e correctamente – é que um ponto de vista que está constituído num certo

âmbito de naturalidade e realidade, como é o nosso, se, além disso, se encontra afectado

por possibilidades que excedem essa naturalidade, e precisamente enquanto que

excedem e porque excedem, um ponto de vista desta natureza é estruturalmente

problemático, está, por assim dizer, errado. Está estruturalmente errado e nem pode

deixar de o estar, enquanto se mantiver nesse estado, porque as determinações de

possibilidade são essencialmente de possibilidade. O que é possível é perseguido

enquanto é essencialmente um possível, ou seja, a possibilidade não é um âmbito

transitório ou episódico do ponto de vista comum, mas, pelo contrário, um traço que o

configura e define essencialmente. E isso significa também que o possível não pode ser

realizado, porque quando o for perderá a sua possibilidade, o que significa que

necessariamente a possibilidade voltará a renascer para produzir uma perpétua irritação

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no ponto de vista: estar determinado e perseguir uma possibilidade é exactamente o

mesmo que friccionar raivosamente uma chaga. Quer dizer, a impossibilidade da

realização da possibilidade deriva totalmente do ser não natural da possibilidade, pois as

possibilidades possuem validade, determinam o ponto de vista, precisamente porque

não são naturais. O que significa que as possibilidades, ao não terem radicação na

natureza, ao estarem para lá dela, têm origem no nada – elas, num sentido muito

preciso, não são. Ou seja, o sujeito persegue o não ser, o que não é. Isso é, aliás, óbvio:

é precisamente porque não são que as possibilidades são possibilidades que se

perseguem, pois são perseguidas para serem executadas, para passarem a ser reais. E

Epicuro é muito claro quando indica que se trata, de facto, de um processo de irritação,

pois o possível está sempre posto enquanto tal, renasce sempre, recompõe-se sempre.

Não é possível, uma vez mais, analisar com cuidado este diagnóstico de Epicuro.

Importa, somente vincar a conclusão: a determinação da possibilidade é a causadora de

toda a movimentação do homem vulgar. E isso implica que essa movimentação não

cessa, por um lado, e, muito pior, não pode mesmo cessar porque não pode ser

resolvida. Há um equívoco fundamental na existência humana, que é a perseguição da

possibilidade. Esse equívoco não é um mero erro intelectual: é, pelo contrário, o

causador de todo o mal não natural da vida, aquilo pelo qual os homens sofrem, se

angustiam, se frustram, etc. E isso não pode ser senão assim, porque se um sujeito põe o

significado da sua vida no que não é enquanto que não é, no possível, não pode

encontrar nunca mais significado algum para ela, a não ser por acaso, episodicamente, a

prazo e sempre à mercê da possibilidade a surgir. Pensar que se pode ser feliz com base

na possibilidade é, para Epicuro, típico da estupidez do homem vulgar. Neste sentido, o

ponto de vista do homem vulgar, quer dizer, o ponto de vista do homem afectado pela

possibilidade, é radicalmente inviável, o que significa que as determinações que

produzem essa inviabilidade são o mal, e um mal muito pior que a dor. A possibilidade

produz uma total distorção na vida humana e produz porque, em última análise, ela

brota do não ser, do nada, do vazio e do inane. Volta aqui a encontrar-se o que já se

descobrira na retórica de Epicuro: o mal está na afectação do ponto de vista, no facto de

se alimentar do que não é. O mal é, pois, no sentido estrito do termo, o não ser, isto é, a

possibilidade. Quer dizer, o que a humanidade toma por bens são bens possíveis,

objectos a perseguir. Ora isso não só não são bens como são, de facto, o contrário,

porque criam toda a confusão da vida humana, as suas tristezas. O que os homens

tomam por bem é essencialmente o mal. E, pelo contrário, o que os homens tomam

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como insignificante e a validar por tais pretensos bens é a única coisa que é de facto

boa: a vida. E a terapêutica da retórica é, por isso, a mesma da da filosofia: fazer o

ponto de vista descer à terra: deixar o que excede e transgride e retornar ao imediato,

que é o que é.

Daqui podem extrair-se, muito toscamente, algumas conclusões. A primeira é

aquela a que já se aludiu: o que nós chamamos sentido, a possibilidade, é um mal,

porque corresponde a um para lá da natureza. É certo que Epicuro parece, assim, estar a

reduzir a existência humana à existência meramente animal, porque o que é próprio do

homem é justamente o que está para lá da natureza imediata. É essa, uma vez mais, a

interpretação de Plutarco: do ponto de vista d Epicuro, diz, o homem "toma como

escopo (te/loj) da sabedoria aquilo que, pareceria, os brutos têm imediatamente". De

facto, o animal não começa nem acaba – o animal é um ente completo, um todo

realizado, ou seja, um animal é, no sentido próprio do termo, uma natureza. E, deste

ponto de vista, a tese de Epicuro é claramente a de que os homens deviam ser como os

animais. Como os animais e, aliás, como o resto da totalidade dos entes, que são entes

normais, porque são entes que são, como é próprio de um ente. Um ente é completo, e

isso é ser um ente real, passe a redundância. Ao homem calhou-lhe o não ser, o vazio, a

possibilidade. Por isso, o ponto de vista de Epicuro pretende apenas dizer – como, aliás,

toda a gente – que aquilo que se trata na vida é de ser, de se constituir como um ente. O

que é específico dele, ainda que não tão específico (tem, por exemplo, isso em comum

com os cépticos, ainda que numa forma muito diferente), é a tese de que não é possível

ser por realização da possibilidade, e que isso é assim em virtude da própria estrutura da

possibilidade. Ou seja, a única maneira de o nosso ponto de vista alcançar aquilo para

que tende é exactamente deixar de tender para isso, porque tende para o pote na base do

arco-íris. A possibilidade é a origem do mal – cria a angústia, como se sabe. A

vantagem da possibilidade é que, não sendo, pode, segundo Epicuro, ser abandonada,

ser eliminada. Segundo Epicuro, não é mesmo possível resolver o problema de outro

modo, pela própria estrutura dos elementos que produzem o ponto de vista humano, que

é o de um contacto anómalo e anti-natural entre uma determinação real e uma irreal. A

única possibilidade seria a de uma afirmação da determinação natural, porque não se vê

outro modo de se relacionar sensatamente com o irreal, a não ser eliminando-o o que,

como se disse, Epicuro julga possível porque o irreal já não é. O único bem é o da

própria vida, tudo o mais é nada, e é por isso que o fundamental, a causa e a origem é o

prazer do estômago: só isso nos permitirá passar a ser, isto é, ser feliz.

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Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant diz a dado passo que seria

muito estranho que a razão nos fosse dada para alcançar aquilo que os animais

conseguem com tanta facilidade por instinto. E acrescenta que, se assim fosse, a razão

não seria prova de superioridade, mas sim do contrário, de fragilidade e de indigência.

Kant dá ainda a entender que não só seria sinal de indigência, mas, por assim dizer, um

dom de uma natureza madrasta, porque a razão é um procedimento muito incerto para

alcançar aquilo que é o seu propósito, e seria por isso, nesse caso, bem melhor não ter

de a ter. Ora esta é exactamente a tese de Epicuro: a razão é absolutamente necessária

para poder alcançar o que deveríamos ter se fossemos seres naturais normais, isto é,

seres não racionais. Mas como não o somos, temos de conseguir por artifício o que

todos os entes têm por natureza. O que significa que todo o significado da razão é

instrumental e nenhum substancial: o significado substancial já se sabe qual é – o do

estômago. Alguma razão haveria, afinal, para o escândalo da antiguidade.

Acresce ainda uma particularidade: o mal é criado pelo próprio instrumento que

o cura, ou vice-versa. De facto, a razão é o instrumento do possível, que é um produto

dela. Por isso, é a razão que confunde, que perturba, que inventa o simbólico, que fala e

adormece. O homem é um ser desgraçado devido à razão: seria feliz se fosse simples e

inocente como um animal. Pode, todavia, usar a razão para curar o próprio mal que ela

produz – não tem, aliás, outro remédio se quer atingir a inocência, porque, no nosso

caso, a inocência só se adquire à custa de uma terapêutica violenta e agressiva. Nisto,

como se disse, a estratégia de Epicuro assemelha-se à dos cépticos, com a diferença que

o céptico abandona a razão e assim alcança o que pretende, e Epicuro utiliza-a para

determinar o bem do estômago, o sítio exacto e o modo como se pode ser feliz, aquele

bem que a razão confunde e baralha, inventando bens não naturais e sobredeterminando

simbolicamente os próprios bens naturais.

É claro que tudo isto pressupõe algumas assumpções fundamentais, fortemente

problemáticas, a que se aludiu apenas de passagem. Aquando da análise da retórica,

disse-se que ela pressupõe a possibilidade de um ponto de vista com acesso ao

fenómeno puro. A eliminação da possibilidade pressupõe que o ponto de vista humano

pode ser realmente expurgado dessa determinação, como se ela fosse totalmente

adventícia e estranha, isto é, como se o que é real em nós pudesse ser algo, subsistir,

sem ser intrinsecamente em ordem à possibilidade. E ambas as teses são

extraordinariamente problemáticas se é que podem, sequer, ser expressas. Mas não cabe

aqui discuti-las.