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PESQUISA EDUCACIONAL: UMA DISCUSSÃO EPISTEMOLÓGICA DAS POSIBILIDADES OFERECIDAS POR UMA RACIONALIDADE RETÓRICA.
Damião Bezerra Oliveira1
O texto é um estudo que procura refletir sobre o atual estatuto epistemológico da Pesquisa Educacional, a partir de uma experiência de discussão entre docentes e discentes no mestrado acadêmico em educação da UFPA. A interrogação básica que conduz o estudo é: Que tipo de racionalidade pode tornar viável atualmente as justificativas epistemológicas da pesquisa educacional? A reflexão encontrou apoio teórico-metodológico no pensamento de Thomas Kuhn (1978), na proposta feita por Perelman (1999a; 1999b) 2 de recuperação do vigor de uma “racionalidade retórica” já presente em Aristóteles (1974; 2000) e, por fim, em algumas idéias de Umberto Eco (1995; 2001a; 2001b) sobre a noção de “abertura” ou de “obra aberta”. Pressupõe-se, portanto, que as possíveis aproximações entre “retórica” e “epistemologia” podem auxiliar na compreensão da racionalidade que implícita ou explicitamente vem “fundamentando” os discursos das “ciências da educação” nos quais cada vez mais são menos freqüentes as distinções entre “contexto da descoberta” e “contexto da justificativa”. O principal procedimento metodológico consistiu na análise textual em conformidade com as indicações de Severino (2002) e Folscheid e Wunenburger (1999) no que diz respeito à explicação e comentário de textos, às técnicas de fichamento e à elaboração de dissertação. O texto estruturou-se como segue: nas considerações iniciais encontram-se a problemática e as fontes da reflexão, assim como o referencial teórico-metodológico da pesquisa. No segundo tópico empreende-se uma discussão em torno do estatuto epistemológico da pedagogia e da pesquisa educacional quando se enfatizará uma experiência de diálogo na Pós-graduação em educação na UFPA. O terceiro tópico destaca o aspecto mais restritamente metodológico desse mesmo problema. Nas considerações finais, efetua-se uma síntese da reflexão na qual se destacam os pontos essenciais de uma interrogação que continua aberta.
PALAVRAS-CHAVE: Epistemologia, pesquisa educacional; racionalidade retórica; contexto da descoberta; contexto da justificativa.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A disciplina Seminários Temáticos Avançados I constituiu-se num importante
momento de discussão a respeito de diversas dimensões da pesquisa educacional -
inclusive da epistemológica- e teve como fio condutor as preocupações dos discentes do
mestrado em educação, da turma de 2005 no que concerne à construção dos seus
projetos de pesquisa.
Alguns professores-pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA),
Universidade do Estado do Pará (UEPA) e Universidade da Amazônia (UNAMA) que
1 Professor de Filosofia da Educação na UFPA. 2 Chaïm Perelman (1912-1984), polonês de nascimento, notabilizou-se como filósofo em solo belga.
realizaram os seus cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado, em instituições do
Pará (UFPA), Minas Gerais (UFMG), São Paulo (USP, PUC, UNESP) e Rio Grande do
Norte (UFRN), narraram um pouco das histórias de “bastidores” do seu processo de
formação na e para a pesquisa.
Embora apenas um dos pesquisadores convidados não tenha realizado o que
institucionalmente poder-se-ia chamar de pesquisa educacional, verificou-se como
marca do conjunto das exposições, a pluralidade: temática, teórica e metodológica,
ainda que a totalidade das investigações possa ser enquadrada genericamente na rubrica
“ciências humanas”.
Duas das pesquisas apresentadas tomaram a questão racial negra como tema
central, ainda que exibam referenciais teórico-metodológicos diferenciados; uma versou
sobre narrativas infantis; a formação de professores, a escola e o financiamento do
ensino são as temáticas marcantes das demais pesquisas.
Tomar-se-á como objeto de reflexão no presente estudo, as características
epistemológicas desse conjunto de pesquisas, a partir de anotações feitas durante as
exposições dos professores, bem como dos resumos fornecidos das teses e dissertações.
O problema central que orienta o estudo se expressa na interrogação: Que tipo de
racionalidade pode tornar viável atualmente as justificativas epistemológicas da pesquisa
educacional?
Adotou-se como principal referencial teórico na interpretação dos “dados”, duas
obras de Perelman (1999a; 1999 b), em que o autor defende a recuperação de uma
racionalidade dialética enquanto alternativa nos campo das ciências humanas à
racionalidade dura das ciências empírico-formais.
De acordo com o autor acima, há a necessidade de rever a racionalidade
dialética ou retórica para além das visões historicamente solidificadas que a reduziu a
um simples “expediente” pelo qual se consegue a adesão de um “auditório” em
determinada direção.
Para Perelman (1999b) nem todo rigor precisa tomar para referencial de
julgamento, os critérios da lógica formal ou do silogismo. Concorda, portanto, com a
clássica formulação aristotélica - embora esta ainda estivesse referenciada na Lógica -
de que não se pode exigir o mesmo tipo de rigor em todas as espécies de conhecimento,
preferindo defender a tese de que a rigor possui graus.
Portanto, a impossibilidade de se postular, nas ciências não formais -
especialmente no campo das humanidades - um discurso livre de polissemia e
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estruturado segundo regras unívocas e axiomatizadas, não pode levar à conclusão de
que seria inútil qualquer tentativa de convencimento e persuasão por meios racionais.
Argumenta-se a favor de uma “retórica” que seja um meio legítimo de discussão,
na medida em que não apele apenas ao assentimento da vontade, esclarecida ou não,
mas que tome enquanto inseparáveis “razão” e “vontade”, o “fato” e o “valor” no ato de
ajuizamento.
Acrescente-se que a razão “retórica” ou “dialética” contenta-se em atingir
“auditórios” restritos, não universais, de modo que os consensos sobre temas,
problemas, valores e arcabouço teórico-metodológico se circunscrevem a grupos
heterogêneos internamente e em polêmicas ainda mais acirradas entre si (PERALMAN,
1999a; 1999b; KUHN, 1978).
Esse auditório restrito sabe da necessidade de conviver com outros auditórios
que compartilham outros valores, bem como dos conflitos internos em função da
precariedade de todos os consensos em qualquer momento do processo de construção do
conhecimento em áreas como a educação.
A proposta de uma “racionalidade dialógica”, “dialética” ou “retórica”, autoriza
algumas aproximações entre a linguagem das ciências humanas e a da literatura,
inclusive no que se refere às suas “práxis” discursivas. Tendo em vista isso, estabelecer-
se-á conexão entre a racionalidade defendida por Perelman e a idéia de “abertura do
discurso” de Umberto Eco (1995, 2001, 2001a), a fim de pensar o estatuto
epistemológico da pesquisa educacional enquanto campo de sentido constantemente
aberto à crítica.
2 ESTATUTO EPISTEMOLÓGICO DA PESQUISA EDUCACIONAL
Do ponto de vista disciplinar, as pesquisas apresentadas no Seminário
mobilizaram referenciais teóricos dos “campos” sociológicos, antropológicos,
psicológicos, históricos, lingüísticos e filosóficos, sem que se verifique nessa
apropriação, distinções de domínios, mas antes há uma tendência a integrá-los todos na
constituição de um discurso pedagógico, educacional.
Apesar disso, sabe-se que sobre a questão do estatuto epistemológico do
discurso pedagógico e do campo educacional, há abundante literatura publicada. O que
não significa ser este um problema superado, mas antes essa abundância indica a
importância da interrogação e a amplitude da sua abertura como desafio ao pensamento
(LIBÂNEO, 2001; 2002a; 2002b; MUNIZ, 1990).
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Entretanto, os pesquisadores presentes nos debates dos Seminários não se
detiveram claramente na reflexão desse problema de fundamentação. Dedicaram maior
atenção na narração das suas vivências de pesquisa, ao âmbito do que se poderia
tipificar como contexto descoberta.
Na narrativa do processo de construção da tese ou dissertação os professores
foram unânimes no reconhecimento da abertura crítica das suas pesquisas, dos limites
das indicações, recomendações e prescrições da literatura que trata de metodologias,
procedimentos e técnicas de pesquisa.
Destacaram a indispensabilidade do esforço criativo do pesquisador em
correlação com a necessidade de certas tomadas de decisão no que diz respeito aos
passos a serem dedos em todos os momentos da pesquisa: constituição do projeto,
execução da pesquisa até a elaboração final do relatório.
Os pesquisadores foram peremptórios no reconhecimento da necessidade de se
considerar os limites de toda e qualquer literatura que “fala” de pesquisa. Deram a
entender ser “no jogo da pesquisa” que as soluções específicas sobre o melhor caminho
a seguir vão ganhando consistência concreta, para além de um sentido ainda muito
“abstrato” dos estudos que descrevem o processo de pesquisa, prescrevem caminhos e
apontam determinados procedimentos.
Isso não consiste em desprezo pelas teorizações ou reflexões epistemológicas,
pois, em maior ou menor grau - nas apresentações dos pesquisadores e principalmente
nos seus resumos – encontram-se preocupações dessa natureza. Deseja-se aqui relevar
antes, um aspecto inegável da pesquisa: ela só adquire realmente sentido como “práxis”,
ao se estabelecer a conexão entre reflexão epistemológica e o fazer pesquisa e vice-
versa, preservando-se a “abertura3” da interpretação dos resultados.
Pôde-se constatar que a minimização da importância da rigidez metodológica
segundo os critérios tradicionais de investigação, é uma das marcas da pesquisa
educacional atual. A sua lógica de “validação” não quer ser a “comprovação” ou
“demonstração”, mas antes “argumentação” (PERELMAN, 1999a; 1999b).
A idéia básica de uma “lógica” da “argumentação” não é apenas a de que uma
determinada teoria apresentada enquanto a melhor solução de um problema não é uma
verdade definitiva e nem exclui outras possíveis respostas. Mas, também, o 3 “Abertura” é um conceito que reconhece a impossibilidade de estruturação completa do sentido, dos significados de uma construção simbólica: um enunciado, uma teoria ou um texto; em função da polissemia do código, no caso, das metodologias de construção e reconstrução dos campos de sentido. Após “concluída" a pesquisa, a abertura manter-se-ia nas diversas possibilidades de leitura ou de interpretação dos enunciados.
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reconhecimento da impossibilidade de constranger os interlocutores à aceitação por uma
evidência irrefutável, de modo que resta o apelo argumentado para que o outro
compartilhe uma verdade possível.
O conhecimento pedagógico produzido pela pesquisa educacional segue tal
orientação. Tem renunciado a uma racionalidade “dura” cuja pretensão sempre foi a
univocidade da linguagem e o consenso universal, embora possa correr o risco de
algumas vezes se entregar aos prazeres fáceis dos irracionalismos contemporâneos
(OLIVA, 2005).
Nos discursos dos pesquisadores presentes no Seminário foi possível observar a
recusa de um tipo canônico e racionalidade, mas não a toda e qualquer justificativa
racional. Procura-se eliminar as fronteiras entre “pessoalidade” e “impessoalidade”,
sujeito e objeto, razão e vontade, assumindo-se, pois, implícita ou explicitamente, a
origem da enunciação, os engajamentos, desejos e sonhos que mobilizaram os projetos
de pesquisa como projeção da vida.
Os pesquisadores falaram das angústias, medos e dúvidas que os acompanharam
em todo o curso de realização do projeto como elementos essenciais na compreensão da
verdade da pesquisa. Não se discute, portanto, que o “contexto da descoberta” venha
comportando sempre, em qualquer que seja a área, esse conjunto de componentes
existenciais. O que merece destaque é o fato de essa dimensão, cada vez mais, ser
incorporada enquanto constituinte legítimo do processo de pesquisa educacional,
inclusive como parte do “contexto da justificativa”, ganhando, destaque, portanto, nos
processos discursivos de convencimento teórico e prático.
Assim, por mais diversos que sejam os referenciais teórico-metodológicos que
sustentam as pesquisas discutidas, observa-se uma unidade no que se recusa
relativamente à concepção de ciência e que vem ao encontro da proposta de Perelman:
tudo o que se tem chamado genericamente de epistemologia positivista, por vezes
cartesiana. A existência mesma de seminários e discussões como as travadas na
disciplina, pressupõe uma aposta na argumentação e no diálogo.
O fundamental aqui é o reconhecimento da imperfeição, abertura, incompletude
e incerteza que todo enunciado referente ao campo humano comporta, mas não como
um defeito que um processo histórico corrigirá em um ponto final, porém enquanto
características permanentes e intrínsecas do pensamento nesse domínio.
Merece enfatizar, também, nas pesquisas educacionais, a clara tendência de se
pensar as teorias como meio de intervenção na realidade sociocultural e educativa. Sob
5
esse aspecto, a proposta de uma razão argumentativa é pertinente à medida que ela liga
o discurso à ação enquanto ocorrências do espaço público e intersubjetivo.
Assim, ao invés do ideal epistemológico da impessoalidade, a pesquisa
educacional busca a “intersubjetividade” fundada na mediação discursiva e dialógica,
pois essa racionalidade “política” ganha proeminência quando não é possível
demonstrar peremptoriamente a verdade de um conhecimento. Trata-se, portanto, de
assumir um modelo de racionalidade política ou mesmo jurídica, na educação, em
contraposição ao ideal matemático, algorítmico consagrado pela tradição moderna.
Essa idéia de uma racionalidade retórica coaduna-se com a lógica do que se
chama de ciências não paradigmáticas, na quais há grande abertura crítica e amplas
possibilidades de interpretação de modo que a atividade dialógica só estabelece
consensos frágeis intra e inter grupos de pesquisadores.
Contudo, se a ausência de paradigma já não é entendida como uma imperfeição
(imaturidade) cuja baliza positiva seria o consenso paradigmático de ciências como a
Física. A racionalidade retórica assume plenamente a positividade de ser um tipo de
conhecimento constantemente crítico, polêmico e aberto.
Os “objetos” de conhecimento da pesquisa educacional são múltiplos e não
podem ser deduzidos de qualquer sistema que organizaria os resultados da totalidade da
pesquisa, num “estado da arte” completo. Múltiplos e instáveis, esses objetos escapam
aos esquemas lógicos e não se circunscrevem aos “campos” disciplinares consagrados
por variados mecanismos institucionais4.
Por ser assim, o pesquisador educacional não pode pretender excluir do campo
de discussão, nenhuma teoria ou tese incompatível com aquela que pessoalmente ou
academicamente defende. Necessário faz-se a abertura crítica e autocrítica ao diálogo
enquanto um momento no qual tanto é possível convencer quanto ser convencido.
Diante do exposto, pode-se pensar que a pesquisa educacional coaduna-se com a
racionalidade dialética, num sentido que Perelman tentou recuperar em Aristóteles
(1974; 2000). Para o filósofo grego a dialética significava um método de argumentação
que se ampara em premissas apenas prováveis e não em princípios evidentes, de modo
que a conclusão não se constitui em demonstração que constrange universalmente, mas
antes num apelo ao assentimento da vontade de um homem situado.
4 Não se despreza o fato de tais mecanismos institucionais, também múltiplos, estabelecerem critérios de legitimação ou não das pesquisas realizadas. Contudo, deseja-se destacar as limitações dessas instâncias no domínio da produção de conhecimento educacional, especialmente na era da cibercultura quando é cada vez mais difícil às autoridades determinar quem pode “dizer” o que a quem.
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De modo breve, o “provável” caracteriza-se menos pelo número de aderências
ou pelo grau de convicção dos que aderem e mais pela a ausência da possibilidade de se
efetuar uma “demonstração” rigorosa que partiria de “premissas” evidentes para
conclusões igualmente evidentes.
A “racionalidade dialética” sustenta-se no saber comum compartilhado nas
relações cotidianas; nasce da convivência, de um sentir “comungado” por todos ou por
grupos mais restritos que estabelecem “consensos” em torno de determinados “objetos”
de interesse circunscrito.
À argumentação dialética é associada uma teoria dos “lugares” em que se
destacam dois, em contraposição, qualidade e quantidade. O último desses “topos”
erige-se como base dos processos de convencimento em que o número de anuências é o
fator fundamental do convencimento, constituindo um “senso comum”. Já a qualidade
contesta as opiniões aceitas comumente, os amplos consensos em nome de outros tipos
de garantia. Ressalta-se, aqui, o valor da singularidade do fenômeno quase sempre não
apreendido pelos raciocínios que se amparam na soma de casos.
A revelação da “qualidade”, como é entendida pela dialética, só pode ocorrer na
concreticidade, para além das abstrações que tomam a diversidade de “eventos”
enquanto unidades permutáveis, repetições típicas que se confirmariam pelo número de
re-aparecimentos da mesmidade.
A pesquisa educacional, na atualidade, parece erigir-se em função de um lugar
“qualitativo” num sentido bem próximo do que foi esboçado acima. Renuncia as
tentativas de encontrar regularidades “demonstráveis” ou a mera descrição das opiniões
dominantes e socialmente aceitas. Mesmo valorizando o cotidiano, a fala do senso
comum, dedica-se a surpreender um sentido singular que não é imediatamente dado,
percebido e justificado.
A singularidade qualitativa, no entanto, refere-se à existência do fenômeno, mas
não às idiossincrasias expressivas do enunciador. É imprescindível a possibilidade de
publicização do que se apresenta enquanto unicidade, pois no plano da argumentação e
do convencimento só pode fazer sentido o comunicável, o que é passível de ser
compartilhado numa discussão qualquer.
Acrescente-se ao já dito que a pesquisa educacional visa mais que o simples
convencimento: pretende-se produtora de um conhecimento válido cujo objetivo
transcende o mero acordo de indivíduos com vistas à ação. Essa investigação trabalha
com “dados”, metodologicamente selecionados em função de um problema e de
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objetivos escolhidos, dentro de um referencial teórico-metodológico que funciona
enquanto pressuposto articulador dos diversos elementos estruturais que compõem a
pesquisa.
3 ALGUMAS REFLEXÕES METODOLÓGICAS
Supõe-se a existência de relações simétricas entre os pressupostos
epistemológicos e as orientações metodológicas de uma investigação, mesmo se
admitindo que o tipo de conexão não seja do tipo dedutivo e que se deva fazer dentro de
uma linha de estrita coerência lógica.
De modo habitual, as pesquisas expressam explicitamente os argumentos
metodológicos e procedimentais a propósito de justificativa, deixando apenas implícitos
os elementos epistemológicos que são adotados e aceitos na ancoragem da investigação.
No material analisado e nas exposições feitas na disciplina Seminário, foi
possível detectar o que acima se diz. Isso ocorre, provavelmente, em função, dentre
outras razões, da impossibilidade prática de se discutir todos os pontos cognoscentes
abertos em uma pesquisa em qualquer que seja a área. Por outro lado, pela necessidade
de se adotar certos pressupostos que são, inevitavelmente, questionáveis por alguma
outra perspectiva epistemológica.
Por tais razões operacionais, as pesquisas precisam silenciar os contra-
argumentos possíveis, e adotar com algum “dogmatismo” prático indispensável, um
conjunto de componentes metodológicos que visam prioritariamente tornar a pesquisa
exeqüível e justificável para um determinado auditório.
Tomando-se os resumos dos trabalhos disponibilizados pelos pesquisadores
convidados e os considerando – metodologicamente - como uma síntese do que se
considera mais essencial a ser dito de uma pesquisa poder-se-ia efetuar algumas
interessantes reflexões quando ao grau de abertura dessas pesquisas.
Não se constata a presença dos mesmos componentes estruturais nos resumos
que se organizam, pois, de modos variados. Os mais completos trazem além do título da
tese ou dissertação, o problema central, a tese defendida, os objetivos, o referencial
teórico, abordagem metodológica e os resultados a que se chegou com a pesquisa.
Contudo, a ausência de um dos elementos essenciais no resumo da pesquisa, não
significa que ele não possa ser encontrado no trabalho completo ou mesmo que tenha
ficado de fora do campo das preocupações do pesquisador. Nas exposições e durante as
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discussões dos Seminários, esses pesquisadores puderam refletir sobre o processo
metodológico da sua investigação, o que tornou possível a emergência de problemas
antes subjacentes e não explorados claramente no processo investigatório formal.
As falas anotadas como os resumos revelaram que o campo metodológico dessas
pesquisas educacionais é marcado por ampla polissemia terminológica, havendo, por
isso, limitado consenso relativamente à compreensão das definições dos procedimentos
e das suas justificativas.
Duas pesquisas se qualificaram de “empíricas”, mas não deixaram claro qual o
sentido que atribuíam a esse termo. Ora, a ligação de “empírico” com “empirismo” é
imediata. Sabe-se que o empirismo é uma conhecida e polêmica tendência cognoscente
cujas posições, hoje, dificilmente são defendidas sem maiores esclarecimentos
conceituais. Diante disso, é uma atitude no mínimo temerária a de se qualificar uma
pesquisa com tal adjetivação, em virtude de ser grande a probabilidade de suscitar
incompreensões.
O que os pesquisadores compreendem como sendo uma pesquisa empírica e que
conseqüências metodológicas daí adviriam? O material analisado mostra que uma das
pesquisas assim identificada trabalha com documentos e na outra a “prática” dos
sujeitos é assumida enquanto fonte de informação. Pode-se indagar o que seria uma
pesquisa empírica em que a “observação” ou não desempenharia qualquer função ou
apareceria de modo secundarizado?
Imprecisão semelhante aparece com relação ao tratamento e apreensão dos
dados. Um dos dois trabalhos acima, além de se intitular como “empírico”, assume-se
enquanto “qualitativo”. Ao se examinar o resumo, no entanto, detecta-se que o
problema, os objetivos e por via de conseqüência, os dados da investigação,
apresentam-se na forma de estatística, números, índices, valor per capita de gasto-
aluno, percentual de variação. As conclusões do trabalho também se expressam nessa
mesma linguagem, sem excluir, contudo, apreciações políticas e axiológicas desses
números.
Colocando entre parênteses as grandes controvérsias em torno da distinção
qualidade/quantidade na pesquisa, seria uma alternativa tão simples a de escolher
denominar como “qualitativa” tal tipo de tese?
Por serem comuns as controvérsias metodológicas desse tipo, alguns
pesquisadores têm adotado, pelo que deixaram transparecer nos seus discursos, certas
estratégias de escritura que se amparam no silenciamento no que concerne às
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abordagens, tendo em vista as dificuldades de definição e abertura crítica e
interpretativa que comportam intra e inter grupos.
Desse modo, não se pode atribuir à metodologia uma potencialidade de cunho
“demonstrativo”, porquanto ela mesma é parte da racionalidade retórica. Daí porque os
resumos, também, exibem o caráter discursivo, argumentativo e dialógico das pesquisas.
Neles figuram frequentemente, termos como: discussão, diálogo, compreensão,
argumento, argumentação, práticas discursivas, narrativas, percepção dos sujeitos.
Na descrição dos procedimentos metodológicos, os pesquisadores deixaram
transparecer que os processos de discussão e argumentação não aparecem somente na
fase de interpretação dos dados, mas no momento de coleta dos dados, de modo especial
nas entrevistas5 que se configuram em momentos privilegiados de práticas discursivas
dialógicas.
Nas metodologias adotadas, há uma tendência a se tomar como um valor
positivo, em consonância com uma racionalidade “retórica”, as figuras de linguagem, a
exploração da metáfora e de outros recursos “poéticos” enquanto meios de expressão de
determinadas especificidades dos fenômenos estudados que, de outro modo, não seriam
revelados.
Nisso mostra-se a suspeita metodológica cultivada em relação aos modelos
cartesianos e positivistas que, em nome da clareza, distinção e rigor das pesquisas,
defendiam que essas adotassem uma linguagem unívoca, livre das figurações
potencializadoras de múltiplas interpretações, portanto, de processos argumentativos e
não demonstrativos.
As pesquisas aqui estudadas acolhem as riquezas expressivas e os riscos da
plurissemia das linguagens naturais. Não se lança mão, como recurso metodológico, de
elaborações estritamente formais, de codificações artificiais ou de modelos
reducionistas que simplificariam a descrição e interpretação do fenômeno.
O uso de uma linguagem natural6 ocorre, nas pesquisas estudadas, de dois modos
principais. Um que segue estritamente as regras prescritas pelo código, em certos casos
acolhe-se a formatação já dada em discursos institucionais existentes, constituindo-se
numa linguagem na qual o sentido dos enunciados atende facilmente as expectativas dos
leitores habituados ao campo. Um segundo grupo procura potencializar as
possibilidades expressivas da língua, criando enunciados que, por não atenderem
5 As entrevistas se constituem em diálogo a dois ou, em alguns casos, em discussão de grupo quando se opta por entrevista coletiva. 6 As considerações sobre o uso da linguagem inspiram-se em Eco (2001).
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prontamente as expectativas do leitor, possuem maior valor informativo, portanto,
revelam maior potencialidade de ineditismo da pesquisa.
Contudo, é do conhecimento de todos que a pesquisa institucional possui os seus
mecanismos de “redundância”, os seus “lugares-comuns” que limitam indubitavelmente
a “liberdade” de criação dos indivíduos mais inventivos na elaboração da sua pesquisa.
Sendo assim permanecem fora das possibilidades da prática de pesquisa as grandes
transgressões individuais verificáveis no âmbito do fazer artístico.
Por isso, a metodologia da pesquisa educacional, mesmo tendendo a valorizar a
abertura e a transgressão, parece precisar limitar a magnitude do “estranhamento” que
certos enunciados demasiadamente distantes das expectativas comuns causariam no
público ou mesmo numa banca examinadora de um relatório de pesquisa.
De qualquer modo, o reconhecimento da precariedade de todas as pretensões de
estabelecer regras rígidas, de unificar os procedimentos metodológicos, de prescrever
critérios de justificação e validação, não significa a total abertura para individualmente
cada um “inventar” o seu método.
Entretanto, o desprestígio dos métodos consagrados segundo critérios formais,
tende a conduzir a uma reação “contra o método” e a favor do que Oliva (2005),
inspirado em Feyerabend denomina de “anarquismo epistemológico” e que se poderia
aqui rebatizar, de modo mais restrito de “anarquismo metodológico”.
Talvez as expressões acima apontem para aquilo que se discutiu com os
pesquisadores no seminário: de que inexistem caminhos previamente determinados;
passos tecnicamente assimiláveis e executáveis na consecução do processo de
investigação que dispensassem toda decisão e criação pessoal, em algum grau, ainda
que limitado.
4 CONSIDRRAÇÕES FINAIS
Perelman (1999), Perelman e Olbrechts-Tyteca (1999) e Eco (2001) mostram a
diminuição da área de abrangência possível de um discurso apodítico, demonstrável de
modo coercitivo. Com isso recuperam o sentido da razão “dialética”, mas
principalmente da “retórica”, de acordo com a formulação aristotélica.
Tal forma de racionalidade coloca-se como alternativa ao irracionalismo, ou
mais restritamente, no campo da pesquisa, aos anarquismos: seja o epistemológico ou o
metodológico. Acredita-se, pois, nos meios persuasivos da razão, sem descartar a
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estreita relação entre assentimento racional de consenso emotivo, ou dito de outra
maneira, “lógica” e “emoção” complementam-se.
Ainda que o conjunto das pesquisas analisadas aqui não cite tais autores, foi
possível de maneira plausível, identificar traços de uma racionalidade retórica tanto no
que os pesquisadores aceitavam explícita ou implicitamente quanto no que recusavam
nos modelos canônicos de investigação, especialmente no âmbito da metodologia e dos
procedimentos de pesquisa.
Essa racionalidade procura aproximar “gêneros” de escritura anteriormente
separados e hierarquizados: ciência e literatura. Estabelece “rasuras” nas fronteiras
canônicas entre formas e procedimentos de construção discursiva, onde se valoriza as
variadas possibilidades de interpretação do fenômeno investigado tomado como signo,
campo de sentido.
Ao invés de um discurso cuja arquitetura deriva e é garantida por regras formais
rigorosas, unívocas, a pesquisa educacional parece antes tender ao que Umberto Eco
(2001a) denomina de “discurso aberto” que, embora não possa a ele atribuir qualquer
significado, não estabelece princípios garantidores de clareza e distinção, de fechamento
do sentido.
Dentro dessa “lógica” de investigação, a produção de um novo conhecimento
não seria apenas o trazer à tona uma informação inédita e unívoca que uma vez dada a
conhecer esgotaria a sua novidade. Antes, tratar-se-ia de um discurso eivado de
possibilidades interpretativas, alimentado de uma plurissemia intrínseca a forma de
elaboração da pesquisa, mesmo se tendo que admitir que certas leituras sejam plausíveis
e outras não.
Se tudo isso puder ser legitimamente afirmado, então se teria que concluir da
impossibilidade de se falar de “modelos” ou “matrizes disciplinares” como orientadoras
rígidas dos diversos momentos do processo de investigação dos fenômenos
educacionais, em função do seu não fechamento epistemológico, de modo que as
pesquisas anteriores e suas metodologias não se apresentam enquanto “casos
exemplares”.
A ausência de uma “exemplaridade” rígida da literatura metodológica ou teórica
pôde ser entrevista nos resumos examinados, assim como nas exposições dos
pesquisadores. Cada trabalho procurou exibir a sua singularidade, os seus contornos
diferenciais e próprios. A apropriação do material existente fez-se, em geral, com ampla
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liberdade interpretativa, com o mínimo de enquadramento nos “lugares-comuns”
expressivos à disposição.
Os novos pesquisadores que se iniciam podem interpretar de modos diversos os
símbolos que circularam nos Seminários. Uma possibilidade de leitura é a de que há a
necessidade de “inventar” formas de elaborar uma pesquisa, sendo a literatura existente
sobre o assunto, uma inspiração dotada de enorme abertura para dispensar do
pesquisador a necessidade de optar escolher caminhos ou mesmo de desbravar o
terreno.
4 REFERÊNCIAS
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__________. Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
ECO, Umberto. A estrutura ausente: introdução à pesquisa semiológica. São Paulo: Perspectivas, 2001a. __________. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 1995.
__________. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectivas, 2001b.
FOLSCHEID, Dominique; WUNENBURGER, Jean-Jacques. Metodologia filosófica. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
KUHN, Thomas S. A Estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1978.
LIBÂNEO, José Carlos. Produção de saberes na escola: suspeitas e apostas. In: CANDAU, Vera Maria (org.) Didática, currículo e saberes escolares. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
_________. Democratização da escola pública: A Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos. 18ª. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
_________. Pedagogia e pedagogos, Para quê? 5ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2002a.
MUNIZ, Antônio Rezende. Concepção fenomenológica da educação. São Paulo: Cortez, 1990.
OLIVA, Alberto. Anarquismo e conhecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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