Ernaldina Sousa Silva Rodrigues

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABAFACULDADE DE CINCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

A ORGANIZAO DO TEMPO PEDAGGICO NO TRABALHO DOCENTE: RELAES ENTRE O PRESCRITO E O REALIZADO

ERNALDINA SOUSA SILVA RODRIGUES

PIRACICABA, SP 2009

A ORGANIZAO DO TEMPO PEDAGGICO NO TRABALHO DOCENTE: RELAES ENTRE O PRESCRITO E O REALIZADO

ERNALDINA SOUSA SILVA RODRIGUESORIENTADORA: PROF DR MARIA NAZAR DA CRUZ

Dissertao apresentada Banca Examinadora do Programa de Ps-Graduao em Educao da UNIMEP como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Educao.

PIRACICABA, SP (2009)2

BANCA EXAMINADORA

Prof Dr Maria Nazar da Cruz (Orientadora) - UNIMEP Prof Dr Ana Lcia Horta Nogueira USP/Ribeiro Preto Prof Dr Roseli Pacheco Schnetzler - UNIMEP

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Dedico minha bela flor-menina, minha filha, Aline Souza Silva Rodrigues; ao meu companheiro de breve jornada conjugal, Rogrio Pereira Rodrigues, e ao meu pai, Manoel Pereira da Silva, que tiveram um tempo significativo neste mundo fsico e precisaram alar vo rumo ao ninho celestial. Hoje, esto sombra do favor de Deus.4

AGRADECIMENTOSAgradeo primeiramente a Deus, razo da minha existncia, por possibilitar a realizao deste trabalho em todas as dimenses do tempo. minha famlia, fiel e sempre presente, nos bons e razoveis momentos dessa trajetria: minha me, Roberta; minhas irms: Evanilde, Ernalinda e Elizabete; minha irmzinha de corao: Ldia Marques do Nascimento; meus irmos: Edmundo, Emanoel, Ernaldete e Pedro. s minhas cunhadas e cunhados, sobrinhos, primos, tios, tias. Famlia... se o suspiro profundo, todos esto por perto. Aos membros da F Bah de Pirapora, sempre presentes espiritualmente. Ao Professor Doutor Mrcio Antnio Silva, grande incentivador e, s vezes, guru, pelo acompanhamento dessa minha trajetria intelectual e por oportunizar o meu ingresso como professora universitria. minha amiga, Maria Aparecida Lemos de Oliveira, pela colaborao nos momentos de ausncia junto Diretoria do Trabalho. equipe da Diretoria do Trabalho pelo tempo de carinho e de aprendizagem. Aos amigos e s amigas da Secretaria Municipal do Trabalho e Ao Social pela torcida. s professoras Simone Duarte, Amlia Alves Barbosa e Vnia Aparecida Nunes Rocha Aguiar pela generosa contribuio e colaborao para com esta pesquisa. s escolas municipais, diretoras, professoras, secretria municipal de educao e demais funcionrias que me acolheram com carinho e ateno. Martinha, pela valiosa colaborao no incio da pesquisa. minha querida orientadora, Maria Nazar da Cruz, pela humildade diante do conhecimento que tem, pela orientao, serenidade e pacincia e pelo esprito de generosidade. Aos professores, mestrandos e doutorandos do Ncleo de Formao de Professores da UNIMEP pelas discusses e valiosas contribuies. s professoras Dr Ana Lcia Horta Nogueira e Dr Roseli Pacheco Schnetzler, componentes da banca, pelos apontamentos e indicaes de leitura, que contriburam sobremaneira para o enriquecimento deste estudo. s minha amigas: Lilhh, de Mogi-Guau/SP, Ktia, do Rio de Janeiro, e Cintia Milene Favaro, de Trs Crregos/SP, que se fizeram sempre presentes nesta trajetria.5

professora Edna Guiomar Lopes Guedes, por oportunizar a minha orientao em alguns pr-projetos de pesquisa. s minhas amigas Jandira e J pelos momentos vividos de intensa atividade intelectual em Pirapora e arredores. Ao my lovely, Zildo Poswar de Arajo, pelo carinho e amor e por compartilhar momentos de angstia, ansiedade e dilogo. s minhas queridas amigas e companheiras: Neide Maria Entreportes Silva, pela presena sempre constante e pelo seu esprito de colaborao incondicional, e Ilzerita de Assis Rodrigues, pelo profissionalismo, dedicao e carinho. Aos amigos e s amigas que direta ou indiretamente contriburam para a realizao deste trabalho. E, em especial, a Bahullh, meu maior inspirador.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES Brasil.

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RESUMO

Esta pesquisa discute a organizao do tempo pedaggico no trabalho docente. Fundamentase nos trabalhos de Yves Schwartz (2000), Christophe Dejours (2005), Souza-e-Silva (2004), Amigues (2004), Saujat (2004), Lousada (2004), entre outros, que indicam um caminho entre o trabalho prescrito e o trabalho realizado, no concebendo o trabalhador como um mero executor de atividades. Os estudos destes autores, quando transportados para o ambiente escolar, contribuem para que possamos entender a relao entre o prescrito e o realizado no trabalho docente, permitindo conceber que, no seu fazer dirio, na produo do seu trabalho e nas relaes com seus alunos, o professor ressignifica as prescries relativas organizao do tempo na escola. A metodologia orientou-se por uma abordagem qualitativa, conjugando observao em sala de aula e entrevista com uma professora da primeira srie do Ensino Fundamental. As anlises foram organizadas em dois grandes blocos temticos: 1) um dia de trabalho, levando em conta as atividades de rotina e a distribuio das atividades no tempo, e 2) tempos e ritmos na sala de aula, onde se retoma a anlise das atividades de rotina e se focalizam os tempos e ritmos de ensino e de aprendizagem. Os resultados da pesquisa permitiram ampliar a compreenso sobre o trabalho real do professor em sala de aula. Indicaram que nas prescries predomina uma concepo de tempo cronolgico, linear, uniforme e sucessivo. J no trabalho real, que tambm incorpora e lida com o tempo cronolgico das prescries, est implicada a simultaneidade de acontecimentos no tempo, com rupturas e descontinuidades, com repeties e com sobreposies de atividades da professora e de alunos. Espera-se que essa pesquisa contribua para dar visibilidade complexidade do fazer do professor em sala de aula, colaborando assim com processos de formao inicial e continuada de professores, bem como com processos de planejamento e gesto educacional.

Palavras-chave: Trabalho docente, tempo pedaggico, trabalho prescrito, trabalho realizado.

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ABSTRACT

This research discusses the organization of teaching time in teaching. It is based on the work of Yves Schwartz (2000), Christophe Dejours (2005), Souza-e-Silva (2004), Amigues (2004), Saujat (2004), Lousada (2004), among others, that indicate a path between the prescribed work and the work, not seeing the worker as a mere executor of activities. The authors of these studies, when carried to the school environment contribute to understanding the relationship between the prescribed and carried out in teaching, allowing design that in its everyday use in the production of their work and relationships with their students, the teacher reframes the requirements concerning the organization of time in school. The methodology was guided by a qualitative approach, combining observation in the classroom and interview with a teacher from first grade on. The analysis was organized into two main thematic blocks: 1) a "working day", taking into account the routine activities and distribution activities in time, and 2) "timing and the rhythm in the classroom," which incorporates analysis of routine activities and focus on the times and rhythms of teaching and learning. The research results will enhance the understanding of the actual work of teachers in the classroom. Indicated that the predominant design requirements of chronological time, linear, uniform and successive. In the actual work, which also incorporates and deals with the chronological time of the prescriptions is involved the simultaneous events in time, with breaks and discontinuities with repetition and overlapping activities of the teacher and students. It is hoped that this research will help give visibility to the complexity of the teacher in the classroom, thereby contributing to the processes of initial training and continuing education, as well as the planning and management of education.

Keywords: Teachers' work, teaching time, prescribed work, work.

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SUMRIOAPRESENTAO.........................................................................................................................11 CAPTULO 1 A ORDENAO DO TEMPO ESCOLAR...................................................... 14 CAPTULO 2 TRABALHO DOCENTE E A ORGANIZAO DO TEMPO PEDAGGICO................................................................................................ ...26 2.1 A organizao do tempo pedaggico na sala de aula ...............................................................33 CAPTULO 3 PERCURSO METODOLGICO.......................................................................41 3.1 O perfil das professoras e o tempo de experincia ...................................................................45 3.2 Ambiente da pesquisa de campo ..............................................................................................48 3.3 Os caminhos da pesquisa de campo .........................................................................................50 CAPTULO 4 PERSPECTIVAS DE ANLISES .....................................................................57 4.1 Um dia de trabalho ...................................................................................................................57 a) Atividades de rotina............................................................................................................60 b) Distribuio das atividades no tempo.................................................................................66 4.2 Tempos e ritmos de aprendizagem ...........................................................................................73 a) Organizao da sala............................................................................................................74 b) Escrever na lousa/quadro ...................................................................................................76 c) Controle da disciplina.........................................................................................................79 d) Seqncias de atividades....................................................................................................82 e) Recuperao .......................................................................................................................92 f) Acompanhamento individual de alunos e outros ................................................................98

CONSIDERAES FINAIS.......................................................................................................108 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................................111

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LISTA DE QUADROSQuadro 1 Um dia de trabalho da professora Viviane ........................................................... 57

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APRESENTAOInvestigar como o professor organiza o tempo pedaggico na sala de aula a questo central que me proponho neste estudo. Essa idia fundamenta-se nos trabalhos de Yves Schwartz (2000), Christophe Dejours (2005) e outros: Souza-e-Silva (2004), Amigues

(2004), Saujat (2004), Lousada (2004), que indicam um caminho entre o trabalho prescrito e o trabalho realizado, no concebendo o trabalhador como um mero executor de atividades. A partir dessa idia, compreende-se que, no trabalho real, o professor, em sala de aula, ressignifica os mtodos e as regras do trabalho e do tempo prescrito na escola. Assim, ao mesmo tempo em que o trabalho real do professor marcado pelas prescries, pelas normas da escola, ele implica o questionamento e a reordenao dessas normas. medida que aprende a reordenar as normas impostas pela escola, o docente rev o seu modo de atuao, a sua prtica educativa, criando novos significados para o seu trabalho, o trabalho real. no enfrentamento das situaes de trabalho que se d a organizao temporal das aes do professor. Esta organizao abrange o momento da situao e representa a reordenao da prescrio. A escola tem um modo de prescrever o tempo e essas prescries marcam o trabalho desse profissional. A inteno dessa investigao justifica-se por considerar a relevncia da discusso e a ateno recente dispensada por pesquisadores s formas de apropriao e ressignificao do trabalho docente na escola, como meio de compreender, um pouco mais, a ao docente e como contribuio para novas pesquisas e reflexes sobre o trabalho real do professor. Numa tentativa mais ousada, pretendo, ainda, tentar dar visibilidade a alguns pormenores da ao docente que acontecem em tempo real nas atividades de ensino. Entendo que precisamos nos ocupar em dar destaque ao trabalho que o professor faz em sala de aula, ou seja, ao mido, quilo que as normas no prescrevem e que no est escrito em documento oficial algum. Partindo do suposto que o professor organiza o tempo na sala de aula, no seu fazer dirio, na produo do seu trabalho e nas relaes com seus alunos, por meio de um processo contraditrio que implica o tempo prescrito pela escola, discutirei, aqui, como o professor organiza o tempo pedaggico de modo a tentar dar conta da tarefa de promover a aprendizagem dos alunos. Este estudo, ento, baseia-se numa reflexo terica e nos dados coletados em pesquisa de campo, tendo como procedimento de produo de dados a observao direta e intensiva, no participante, de uma professora em atividade na sala de aula e entrevistas semi-estruturadas.11

Sendo assim, o caminho desta pesquisa se fez com o objetivo de compreender a organizao do tempo pedaggico no trabalho de ensino de uma professora da 1 srie do ensino fundamental. Os demais objetivos consistem em verificar como o professor organiza o tempo no seu fazer dirio, na produo do seu trabalho e na relao com seus alunos, por meio de um processo contraditrio em que esto sempre presentes, e em confronto, momentos de tenso entre o prescrito e o realizado, entre vencer o contedo e promover a aprendizagem; analisar como o professor organiza o tempo na sala de aula, na realizao das atividades em meio a rupturas e continuidades; discutir a ressignificao do tempo no trabalho de ensino do professor em sala de aula na perspectiva do prescrito e do real; verificar que estratgias so utilizadas pelo professor para administrar a distncia entre o prescrito e o realizado. Diante disso, alguns questionamentos nortearam essa pesquisa, a saber: como o professor ressignifica o tempo dentro do seu trabalho em sala de aula? Como o professor lida com o tempo de aprendizagem de cada aluno e as exigncias prescritas pelo tempo escolar? Como ele organiza o seu trabalho na sala de aula, na execuo das atividades em meio a rupturas e continuidades? Que estratgias so utilizadas pelo professor para administrar a distncia entre o prescrito e o realizado na organizao temporal de sua atividade? Busquei respostas a essas questes no processo de trabalho pedaggico desenvolvido pelo professor no espao da escola, mais precisamente, no espao da sala de aula. Neste espao, os programas e projetos so implementados a partir da organizao pedaggica e disciplinar do tempo escolar. O tempo escolar ordena o ritmo docente e discente, a partir da racionalidade tcnica, objetiva e racional, historicamente construda. Mas, o tempo pedaggico real implica necessariamente os ritmos e processos de sujeitos concretos em relao, que no so facilmente submetidos a calendrios, jornadas e horrios. O tempo de ensino e o tempo de aprendizagem no coincidem, so descompassados e permeados por sucessivas rupturas. O modo como o aluno interpreta o contedo ensinado interfere no tempo pedaggico no trabalho docente. Ainda, a relao entre o tempo e o espao indica movimento, transformao e indissolvel, no podendo ser, portanto, desmembrada, separada, anulada. Pode-se conceber, assim, a sala de aula como uma unidade de tempo e espao, em que o movimento e a transformao so constantes, em que professores e alunos aprendem e se desenvolvem e em que as prticas escolares educativas e o trabalho do professor so construdos. A partir destas consideraes iniciais, apresentamos a estrutura deste trabalho, que se divide em quatro captulos:12

No captulo 1, apresento uma discusso de natureza mais terica para configurar o campo epistmico onde se d o debate sobre a categoria tempo. Este captulo se subdivide em duas partes, abordando a construo do tempo e a ordenao do tempo escolar. Meu objetivo nesse captulo apresentar e discutir um entendimento possvel sobre a construo da noo de tempo como objeto cultural e social e seus desdobramentos na vida do ser humano e na instituio escolar. A teorizao apresentada nesse captulo ser retomada ou desenvolvida nos captulos seguintes, tecendo a trama temporal que tentei construir com base no material coletado. Nessa trajetria, discutirei, alm das concepes acumuladas sobre o tempo ao longo dos sculos, a coexistncia do tempo quantitativo, mensurvel, e do tempo vivido por sujeitos concretos em relao. Discuto, ento, as idias de Elias, Whitrow e outros, para quem a noo de tempo uma conveno social resultante das experincias vividas pela humanidade, e evidenciada por coeres, mediadas pelos calendrios e relgios. No captulo 2, busco, a partir de uma concepo de trabalho prescrito e trabalho real, discutir o trabalho docente e seus desdobramentos na organizao do tempo pedaggico efetivado em sala de aula. Apresento, assim, um breve panorama sobre o trabalho docente luz de algumas pesquisas realizadas no campo educacional, buscando mostrar as tentativas para se evidenciar o trabalho real de ensino, concebido ao longo da histria como mera prescrio. Em seguida, fao uma relao do trabalho como ensino e as prescries que perpassam o fazer do professor. Nesse caminho, diferencio e conceituo os termos atividade e tarefa com o objetivo de compreender melhor o agir do professor considerando o prescrito e o realizado. Alm disso, trato da questo da organizao do tempo pedaggico na prtica docente, levando em conta as mltiplas dimenses do tempo presentes no cotidiano da escola e, mais precisamente, na sala de aula. Dedico o captulo 3 discusso metodolgica, sistematizando os pressupostos terico-metodolgicos, procedimentos e instrumentais de coleta e anlise de dados. Descrevo, ento, os caminhos da pesquisa, as caractersticas dos sujeitos e dos locais pesquisados e discorro sobre a minha trajetria nesta experincia. No captulo 4, apresento as anlises desta pesquisa, examinando um dia de trabalho de uma professora pesquisada, tecendo consideraes em meio aos indcios apresentados sobre as atividades de rotina e a distribuio dessas atividades no tempo, luz das regras e normas da escola. Considero, tambm, nesta seo o modo como o professor lida com o ritmo dos alunos e o modo como organiza as condies de aprendizagem. No ltimo captulo, apresento algumas consideraes finais sobre esta investigao.13

CAPTULO 1 A ORDENAO DO TEMPO ESCOLAR

Podemos dizer que a noo de tempo faz parte da vida do ser humano e remonta aos primrdios da humanidade. Isto significa que ele era, e ainda , um meio de regulao da vida social e uma forma do ser humano se orientar no mundo. Se considerarmos as comunidades mais antigas, veremos que usavam os movimentos do sol, da lua, das mars; as quatro estaes do ano, entre outros fenmenos da natureza como referncias temporais. Com o desdobramento dos processos sociais e histricos, essas referncias foram sendo substitudas pelos relgios e calendrios, smbolos reguladores mais precisos e objetivos da vida cotidiana na sociedade atual. Esses instrumentos de contagem e medio do tempo so aspectos essenciais para a nossa percepo temporal. De certa forma, o relgio impe ritmo ao cotidiano das pessoas e os calendrios contam os anos, ditando a cadncia de nossas vidas. Hoje, somos prisioneiros do tempo contado em segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, dcadas e milnios (WHITROW, 1993, p.31). Ou seja, ns, habitualmente, seguimos calendrios e agendas sem questionarmos o sentido do tempo, o est acontecendo no momento presente, no agora. Adotamos e manifestamos uma vivncia cronolgica do tempo de forma intuitiva, tendo o tempo como algo que flui lenta ou aceleradamente. Na maioria das vezes, costumamos desenvolver nossas atividades no pela necessidade, mas porque est na hora. Alis, o tempo sempre foi objeto de interesse de muitos pensadores e pesquisadores. Alguns filsofos gregos1 acreditavam que o tempo no existia por si prprio, sendo percebido pela disposio das esferas celestes no universo. Sculos depois, Santo Agostinho pensou o universo e o tempo como conceitos inseparveis. Ele acreditava que a atividade da mente era a base para a medio do tempo. No sculo XVII, Isaac Newton formulou sua teoria sobre o tempo. Para ele, o tempo era absoluto, universal e nico, um curso com existncia prpria, constitudo por uma seqncia contnua. No sculo XVIII, Kant formulou outro conceito importante sobre o tempo. Na sua viso, o tempo faz parte da natureza humana, tem um sentido interno, uma realidade subjetiva, inato, ou seja, anterior a qualquer experincia e conhecimento adquiridos por meio da aprendizagem.

Os gregos, Hesodo, Homero e Plato, usavam pelo menos trs palavras para designar tempo: Krnos (tempo medido), kairs (momento oportuno) e Ain (durao da vida). 14

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O socilogo alemo Norbert Elias no concebe o tempo como um dado a priori da razo, com existncia objetiva. Para ele, o conceito que temos de tempo fruto de um longo processo de aprendizagem registrado ao longo das geraes. Costumamos dizer que o tempo passa, conferindo, assim, movimento ao tempo. Mas, o tempo no tem existncia fsica, no passa. Na realidade, ns que passamos e envelhecemos, so as situaes que tm comeo, meio e fim. Conferimos vida prpria ao tempo como se ele fosse visvel. O carter de irreversibilidade est no prprio ser humano que envelhece, no no tempo. A ao do tempo se faz presente nas transformaes de nossas vidas ou nas vidas das sociedades em que vivemos (ELIAS, 1998). Elias concebe a noo de tempo como um longo processo histrico de aprendizagem, de acumulao de experincias feitas e refeitas incessantemente ao longo das geraes. Sendo assim, o conceito de tempo e a relao que os homens estabelecem com ele variam de acordo com o estgio de desenvolvimento em que se encontram os grupos humanos.Portanto, o que chamamos de tempo significa, antes de mais nada, um quadro de referncia do qual um grupo humano mais tarde, a humanidade inteira se serve para erigir, em meio a uma seqncia contnua de mudanas, limites reconhecidos pelo grupo, ou ento para comparar uma certa fase, num dado fluxo de acontecimentos, com fases pertencentes a outros fluxos, ou ainda para muitas outras coisas. (1998, p.60).

Nesse sentido, a experincia do tempo no universal, mas varia, ou seja, no necessariamente a mesma para todos os grupos sociais e no foi a mesma para os seres humanos em diferentes perodos do processo de civilizao. Elias argumenta que os processos especficos de tempo que a maioria das pessoas procura marcar com a ajuda de relgios e/ou calendrios, por exemplo, no so compartilhados por todos os grupos humanos. A experincia do tempo para o homem da idade mdia foi diferente daquela que vivida hoje pelas pessoas que habitam as cidades. Ento, preciso compreender o tempo como um processo historicamente situado e sujeito aos eventos da humanidade. Ainda, Elias argumenta que o fetichismo do tempo reforado na percepo humana porque sua padronizao social inscreve-se na conscincia individual, to mais slida e profundamente quanto mais a sociedade se torna complexa e diferenciada, levando todos a se perguntarem Que horas so? ou Que dia hoje? ( p.84).

O tempo uma conveno social. A sua forma de determinao resultante de um processo de evoluo que se deu ao longo de sculos numa ligao recproca com o aumento15

de necessidades sociais especficas de coordenar e sincronizar o desenrolar das atividades humanas entre si, e destas com o desenrolar dos processos fsicos externos aos homens. Assim, a noo de tempo evidenciada pelas coeres temporais externas exercidas pela sociedade sobre as pessoas, sob a forma de calendrios e relgios. As coeres decorrem das estruturas e relaes sociais e dos processos naturais, como o envelhecimento, e suscitam o desenvolvimento de uma autodisciplina que regula a relao do indivduo com o meio social. Elas exercem uma presso relativamente discreta, comedida, uniforme e desprovida de violncia, mas que nem por isso se faz menos onipresente, e qual impossvel escapar (ELIAS, 1998, p. 22). Whitrow (1993) refora que essas coeres nos tornam pessoas obsessivas pelos calendrios, relgios e agendas, considerados instrumentos de medio que se tornam ditadores da nossa cadncia de vida. Sentimos o tempo de modo to arraigado em nossa conscincia que no o percebemos como uma construo social e cultural. Sempre temos a impresso de que o tempo passa. Mas, na realidade, o sentimento de passagem (ELIAS, 1998) refere-se ao curso de nossa prpria vida e, provavelmente, s transformaes da natureza e da sociedade. Esse sentimento est vinculado ao nvel de desenvolvimento das estruturas sociais das quais fazemos parte. As estruturas ou instituies sociais vivem o tempo linear, ou seja, o tempo dos relgios, das horas, fragmentadas em minutos e segundos. Sendo assim, vivem o tempo medido, calculado. Ns tambm vivemos esse tempo medido, pois dormimos, levantamos, nos vestimos, estudamos, trabalhamos e nos divertimos, de certo modo, determinados pelo tempo contado pelo relgio. Se Elias concebe o tempo como uma conveno resultante do processo vivido pela humanidade ao longo dos sculos, Henri Brgson refora o tempo como uma conveno criada pelas cincias positivistas e enfatiza o tempo real da durao, do instante, do vivido. Por durao, Brgson considera o prprio processo contnuo de mudana (WHITROW, 1993, p. 192). Isto , o tempo passa continuamente modificando tudo e constitui a prpria essncia do real, pois se caracteriza como o instante vivido. Com efeito, o tempo real a durao vivida no fluxo dos acontecimentos. Sendo assim, Henri Brgson como Santo Agostinho, nega a existncia de um tempo objetivo, quantitativo, que pode ser medido. Ele concebe o tempo como durao do momento vivido ou da experincia vivenciada. Mas, notamos que os dispositivos de medio do tempo esto cada vez mais precisos, rigorosos e uniformes na sociedade em que vivemos. Esses dispositivos regulam a vida, as relaes e as atividades sociais e individuais de tal modo que o tempo percebido como algo16

que temos, que passa ou corre e que est em constante movimento. A regulao temporal est presente na vida das pessoas e das instituies e coexistem com o tempo, enquanto durao, indicado por Brgson. Podemos dizer que o tempo real o prprio acontecer das mudanas no cotidiano. o tempo vivido e experienciado no momento oportuno, na hora h. Em grego esse tempo definido como kairs e indica a dimenso vivencial do tempo, ou seja, o tempo de visibilidade da ao em constante ajuste com o tempo dos relgios e dos calendrios, tido como chrnos. O primeiro diz respeito aos valores e qualidade no uso do tempo subjetivo, enquanto, o segundo, denota o tempo objetivo, mensurvel, quantitativo, que perpassa horrios, calendrios e cronogramas que inventamos para adapt-los nossa existncia na sociedade capitalista. Ainda, nesse desvelamento sobre o tempo, observamos(...) uma crescente dualidade da noo temporal o tempo fsico e o tempo social. Nesta diviso conceitual, o tempo fsico pode ser indicado como aquele que se inicia sob o domnio de Chrnos e determina o ritmo e a contagem do tempo que guia o mundo em dias, horas, minutos etc. e o tempo social o Kairs, que pode ser indicado como o tempo vivido pelos homens, nem sempre coincidente com o tempo cronolgico. (FERREIRA; ARCO-VERDE, 2001, p. 7).

Essas diferentes concepes de tempo, como processo vivido e experienciado no tempo social e, por outro lado, como tempo fsico determinado por meio dos relgios e calendrios - so importantes para a nossa discusso, pois nesse contexto que tentaremos compreender a coexistncia do tempo prescrito e do tempo real no trabalho de ensino. Da mesma forma que o tempo uma instituio social construda historicamente, o tempo escolar um tempo social vinculado regulao da vida na escola. Segundo Ferreira e Arco-Verde (p. 8), o tempo escolar institucional, organizativo e fato cultural. Como tal, resulta de uma construo histrica. O tempo escolar, tal como ocorre hoje nas escolas, ou seja, com a distribuio de contedos, matrias e atividades durante o ano letivo e o estabelecimento de horrios, fruto de mudanas das concepes de educao escolar e das reformas educacionais. Embora os tempos escolares tenham sido definidos pelo currculo nacional nico e pela legislao, as discusses em torno dessa dimenso importante no trabalho educativo ganharam relevncia no fim do sculo XX e continuam em relevncia no incio do sculo XXI. Essas discusses trazem elementos para a reflexo sobre a seqncia temporal que orienta a organizao do trabalho escolar, as diferentes formas pelas quais passou e tem passado, bem como suas mltiplas temporalidades, seus usos e significados.17

No Brasil, como em vrios pases da Europa, a estruturao do tempo escolar teve influncia das escolas jesutas, por meio do Ratio Studiorum,2 na organizao temporal dos estudos e da escola. Assim, a organizao do tempo escolar caminha junto com a institucionalizao da escola pblica e ganha a legitimao de ritmos e tempos sob o controle do Estado. Souza afirma queA atuao legal do Estado sobre a prescrio do tempo cresce no decorrer do sculo XVIII neste continente, e intensifica-se no sculo XIX, acompanhando o processo de secularizao da escola elementar e a configurao dos sistemas estatais de ensino. A normatizao do tempo pelo Estado significou, em toda parte, colocar em ao um dispositivo de racionalizao do ensino e de controle sobre a infncia e os professores. (1999, p. 129).

Nesse processo, o tempo escolar marcado pela prescrio do Estado com normas de ensino e pelo controle sobre as atividades dos alunos e dos professores. A prescrio pressupe a ordenao da burocracia escolar por meio da organizao pedaggica e disciplinar do tempo na escola. A prescrio do tempo por meio de calendrios, rotinas, programas e projetos na escola tem como foco as prticas escolares, atividade principal da organizao do ensino. Sendo assim,A legislao foi um dos instrumentos amplamente utilizados pela burguesia liberal para reformar os sistemas de ensino e adequar a escola aos interesses dos grupos hegemnicos no poder e s necessidades da nova ordem social. Em que pesem as diferenas entre tempo formal e os usos e prticas do tempo real nas escolas, preciso reconhecer que a lei tambm uma forma discursiva e uma forma de interveno social. (SOUZA, 1999, p. 129-130).

A obrigao escolar foi uma das primeiras prescries do Estado em relao ao tempo escolar estabelecida na Constituio em 1824, que fixou a freqncia escolar obrigatria para crianas em idade de 7 aos 12 anos. A lei buscou incorporar na escola concepes sobre organizao espacial, temporal, administrativa e didtico-pedaggica, de modo a orientar a implantao de uma escola homognea, padronizada e uniforme. A ordenao do tempo escolar pautou-se na aspirao de uniformizao e controle, regulamentou-se a freqncia, a durao do curso primrio, o calendrio, a jornada e a distribuio das atividades e do programa (SOUZA, 1999). nesse processo de ordenao do tempo escolar, marcado pela prescrio de normas e pelo controle da prtica escolar pelo Estado, que o calendrio escolar institudo. Assim,Regulamento, normas, regras de estudo. Exposio longamente elaborada dos mtodos e das regras em uso em todos os estabelecimentos de ensino da Companhia de Jesus. 182

Souza afirma que o calendrio escolar, estabelecido em 1892, permaneceu estvel durante as primeiras dcadas do sculo XX e, de certa forma, at os dias atuais. Seguiu uma cronologia civil, religiosa e cvica, obedecendo aos dias de comemoraes nacionais determinados pelo Estado. As datas cvicas eram comemoradas no mesmo dia. As festas escolares visavam atrair a populao escola pblica e, tambm, visavam insero do tempo escolar no tempo social e a perpetuao da memria nacional. Desta feita, estabelecem-se, assim, os parmetros e os limites temporais de funcionamento da escola, incorporando o tempo social na organizao das atividades educativas, harmonizando-a com este e acrescentando a ele o tempo prprio da escola. Teixeira (1999) em seu artigo sobre cadncias escolares e ritmos docentes afirma que, aps analisar os calendrios de algumas escolas, observou que elesespecificam vrios perodos e temporalidades, delimitando conjuntos de tempos/atividades, tais como: as jornadas de trabalho e dias de descanso (feriados, recessos, frias); as subunidades de temporalizao como bimestres, quinzenas, semanas e dias letivos; os perodos festivos e comemorativos (dia das mes, do ndio etc); as datas pedaggicas especiais, como os dias de planejamento, as semanas de avaliao, os perodos de recuperao; os perodos no letivos, como os de seleo e de matrcula; as datas das reunies e assemblias escolares; a programao extra escolar, como as excurses; os dias de convenincia, as feiras de cultura, as competies esportivas etc. (p. 98).

Nessa direo, o calendrio evidencia o carter de organizao, continuidade, uniformidade e linearidade do tempo vivido na escola. Ademais, preciso considerar queO ano, como nos lembra Le Goff (1994) a unidade fundamental do calendrio tempo social submetido aos ritmos do Universo. O ano escolar institui um tempo de trabalho permanente, que cessa apenas quando autorizado. Ele tambm possui uma dimenso cclica, associada racionalizao dos programas, isto , concepo de srie, aprovao/reprovao.O incio do ano letivo corresponde, assim, aos meses de janeiro e fevereiro, e compreende, para as crianas, o principiar de uma nova srie ou a repetio da anterior. O ano se encerra com os exames finais, atestado de concluso da srie, e corresponde aos meses de novembro e dezembro. (SOUZA, 1999, p.133).

Podemos dizer, ento, que a ordenao do tempo escolar pauta-se por uma racionalizao dos processos educativos, visando a organizao do sistema escolar em consonncia com a idade das pessoas e melhor aproveitamento do tempo. Nesse contexto de ordenao, o ensino simultneo, a produo escolar, a reunio de vrias salas de aula em um mesmo edifcio-escola serviram de base para a constituio da escola primria moderna. Esta nova organizao pedaggica compreendia o estabelecimento da classificao uniforme dos alunos, a ordenao de um plano de estudos, isto , programas,19

contendo a diviso do conhecimento a ser ensinados nas diversas sries do ensino primrio, a distribuio das lies e dos exerccios e o emprego do tempo (SOUZA, 1999.). A ordenao minuciosa do emprego do tempo revela o sentido estrutural que ele adquire na racionalizao curricular. Ordenar os contedos por srie, lies e aulas consistia em uma tarefa rdua. Na distribuio do tempo nas escolas, os horrios surgiram como objetos catalisadores de uma determinada estrutura temporal, pondo em funcionamento um dispositivo que visava assegurar a marcha da classe, evitar interrupes desnecessrias, manter o tempo todo ocupado, impedir a disperso e a desordem. Respeitar o tempo fazia parte da disciplina escolar. Ainda, na viso de Souza, as escolas funcionavam tendo como parmetro o incio e o trmino do ano letivo, o tempo de trabalho e de descanso, as frias, os recessos e as interrupes. O tempo escolar prprio da escola ritmado pelas cadncias das atividades como incio das aulas, concluso da srie, exames finais, horrios de aulas, recreio e festas de encerramento do ano letivo. Sendo assim, o tempo constitui-se um dos elementos fundamentais da escola e da escolaridade. Como categoria, tempo escolar uma construo histrica e cultural marcada pela ordenao de ritmos do mundo moderno industrializado, com a sua forma de organizao de acordo com o movimento social de racionalizao do tempo, modelo de produtividade da sociedade urbana industrializada. Nesse modelo, a organizao escolar tem como objetivo racionalizar e padronizar o trabalho educativo, delimitando e controlando o tempo escolar. Junto aos relgios e s campainhas, os horrios de aulas, ento, so ordenados em funo das disciplinas escolares e de sua seqncia ao longo dos dias, das semanas, das quinzenas, dos meses e anos, visando facilitar o controle do trabalho docente. Nessa perspectiva, a organizao do tempo escolar no Brasil teve sua origem no final do sculo XIX com a escola organizada em graus de ensino, classificao de alunos e vrias salas de aula. Esse novo modelo de ensino representado pelo grupo escolar significou uma das mais importantes inovaes educacionais na poca.Os grupos escolares, concebidos e construdos como verdadeiros templos do saber... encarnavam, simultaneamente, todo um conjunto de saberes, de projetos polticoseducativos, e punham em circulao o modelo definitivo da educao do sculo XIX: o das escolas seriadas. (FARIA FILHO; VIDAL, 2000, p. 25).

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O grupo escolar representava o ideal e o projeto republicano de universalizao da educao escolar e da reforma social, reforando a crena no poder da escolarizao para moralizar, civilizar e consolidar a ordem na sociedade. O primeiro grupo escolar no Brasil foi construdo em So Paulo, em 1893. A classificao homognea de alunos e alunas, o edifcio escolar com vrias salas de aula e vrios professores, a racionalizao e a padronizao do processo pedaggico constavam dentre as vrias inovaes introduzidas pelo grupo escolar (SOUZA, 1998). Essas mudanas foram sendo consolidadas ao longo das dcadas e tiveram um grande impacto no campo da educao escolar, principalmente, porque contrastavam com o tipo de ensino executado nas escolas isoladas, lugar onde acontecia a instruo pblica. As escolas isoladas localizavam-se nas igrejas, sacristias, em prdios comerciais ou mesmo nas casas dos mestres. O ensinamento consistia na observao s lies memorizadas e aos exerccios executados. O tempo de aprendizagem era regulado pelo ritmo e progresso de cada aluno individualmente. O contedo de ensino e a organizao do trabalho educativo eram definidos pelo mestre. Sendo assim, a escola se adaptava vida das pessoas e era organizada de acordo com a convenincia dos mestres, dos professores, levando em conta os costumes locais. Enquanto a escola isolada ou a escola de improviso constitua-se do ensino individual e uma s classe, os grupos escolares consistiam na utilizao dos mtodos de ensino individual, mtuo e simultneo. No mtodo individual, um professor ensinava cada aluno individualmente em uma classe formada por vrios alunos. J, no mtodo mtuo, um nico professor poderia dar aula para at 1.000 alunos, tendo o apoio de alunos-monitores, espao e materiais adequados. Por sua vez, no mtodo simultneo, que consistia na utilizao do mtodo misto, as classes de alunos, divididas segundo um mesmo nvel de conhecimentos e idade, eram entregues a uma professora que propunha tarefas coletivas, para as quais cada um, e todos os alunos, deveriam executar uma mesma atividade a um s tempo. (FARIA FILHO; VIDAL, 2000.) Segundo SOUZA (1998, 2000), o conceito de organizao escolar que ir incorporar o sentido de racionalizao e de modernizao do ensino na escola graduada. Esse conceito envolvia os aspectos de classificao uniforme dos alunos, segundo a sua idade e, principalmente, o seu nvel de conhecimento; uma definio dos conhecimentos a serem ministrados ao longo da escolaridade elementar e sua distribuio entre os diversos cursos da escola primria, uma organizao do tempo marcado pela diviso diria das lies e dos exerccios. Essa maneira de classificar os alunos considerada a essncia da escola graduada. Com ela se consolidam as noes de srie e classe.21

Assim, a noo de classe ganhou forma com a prtica de simultaneidade de ensino associada classificao homognea dos alunos. Essa noo diz respeito a um conjunto de alunos que recebe simultaneamente instruo sobre uma mesma matria sob orientao de um mesmo professor. Essa nova orientao pedaggica consolidou-se nos edifcios escolares com vrias salas de aula e est presente nas escolas de hoje. O movimento de renovao educacional do sculo XIX buscava uma redefinio dos mtodos pedaggicos e dos programas de ensino configurados na escola primria. Naquele momento, as discusses pedaggicas sobre o mtodo intuitivo e o ensino concntrico constituam-se como importantes inovaes pedaggicas. O mtodo intuitivo, conhecido tambm como Lies de coisas3, valorizava o ensino pelas coisas e pelos fatos, tinha como fundamento a idia da aquisio do conhecimento por meio dos sentidos e da observao. Esse mtodo contrapunha o mtodo tradicional da escola isolada, que dava nfase aos exerccios de memorizao e repetio e abstrao dos contedos de ensino. Os empiricistas, propositores do mtodo intuitivo, propunham um ensino que considerasse o desenvolvimento natural da criana. O ensino concntrico compreendia a forma de organizao dos conhecimentos escolares e fundamentava-se na idia de que a aprendizagem resultava do acmulo de conhecimento. Esse ensino propunha a organizao dos programas de modo a abranger todas as matrias simultaneamente numa mesma srie e em sries consecutivas, aprofundando-se e aumentando sua intensidade progressivamente. Nesse sentido, o ensino seriado tem como base a centralidade da classe como unidade de organizao e modo de organizao dos conhecimentos escolares pautados na simultaneidade. O ano letivo considerado tempo escolar modelar, bem como o semestre e o bimestre. ... Os alunos so ajustados a mdulos temporais rgidos, independente das necessidades individuais de cada um e independente das exigncias singulares de cada escola e de cada currculo (YUS, 2004, p.8). Essas noes, alm de fundamentarem o trabalho pedaggico e as atividades dos alunos, refletem a seqncia de contedos a serem ensinados em uma srie, durante um ano letivo, distribudos numa seqncia por semestre. Ainda, refletem a temporalidade linear, a distribuio das sries, a padronizao do ensino e a expectativa de que todos os alunos aprendam a mesma coisa no mesmo perodo de tempo. Essa a lgica do sistema seriado de ensino que perpassa uma estrutura hierrquica rgida entre as diversas etapas do aprendizado, numa seqncia organizada anualmente.

Objetivava [...] ensinar as crianas, antes de tudo, a observar as coisas, depois as nomear, enfim, s comparar (BUISSON, 1897, p. 11). (BUISSSON, apud SCHELBAUER, 2006, p.11-12,).22

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A escola daquela poca, bem como a de hoje, estava e est totalmente voltada para as imposies do mundo capitalista, urbano e industrial, com sua organizao centrada na padronizao e universalizao dos processos educativos. A lgica da escolarizao estruturava-se na criao de hbitos de pontualidade e de disciplina e organizava-se pelo modelo temporal da indstria, do mundo produtivo. Ao longo das dcadas, a forma de estruturao da escola sofreu inmeras reformas e crticas, devido aos ndices de evaso e repetncia por ela produzidos. Com a divulgao das teorias da reproduo nos anos 60 e 70, as denncias sobre o seu carter excludente e seletivo ganharam visibilidade, enfatizando a forma de organizao linear e reprodutiva do sistema escolar. Uma nova funo social para a escola, incorporando a idia de direito educao, faz parte da luta dos movimentos sociais pela democracia do Brasil, no final da dcada de 70. O direito educao perpassa a aprendizagem, a construo de conhecimento e a formao. Sendo assim, as discusses sobre a forma de organizao escolar ampliaram-se, provocando a necessidade de reflexo sobre outra forma de organizao escolar. Nessa direo, no Brasil, segundo Elma Siqueira de S Barreto, desde a dcada de 60, h inteno de implantar os ciclos escolares, mas alguns de seus pressupostos remontam a dcada de 20. Os Estados deSo Paulo, Minas Gerais e Paran, a comear do primeiro, so estados que, a partir de 1980, encampam a idia de dar nova tica para a organizao escolar, abandonando a reprovao e a seriao, e propondo ciclos de aprendizagem. As justificativas para uma mudana de organizao temporal defendem que se o educando tivesse maior tempo para alfabetizar-se, no seria reprovado ou no se evadiria da escola. (FERREIRA; ARCO-VERDE, 2001, p. 12-13).

Os ciclos so organizados em blocos que variam de dois a cinco anos de durao e compreendem perodos de escolarizao que ultrapassam as sries anuais. Contrapem a organizao escolar em graus e buscam, alm da universalizao das oportunidades de acesso, o provimento de condies de permanncia do aluno na escola (BARRETO, 1999). Para Neidson Rodrigues, a organizao da educao escolar nos ciclos bsico, intermedirio e avanado,no deve ser entendida como simples ajuntamento das antigas sries escolares em espaos de tempo mais longos. O que se procura algo diferente: organizar o tempo e o espao da escola fundamental no mesmo ritmo e nos ciclos do desenvolvimento humano: infncia, pr-adolescncia e adolescncia. (MINAS GERAIS, s/d.).

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Assim, a idia de ciclo se traduz numa organizao escolar baseada numa temporalidade que leva em conta o processo de construo do conhecimento e os estgios de formao e desenvolvimento linear do aluno, com etapas definidas, numa viso predominantemente biolgica. A idia que parece estar a subjacente a de que o processo de aprendizado segue o de desenvolvimento, dependendo dele de modo universal.No entanto, estudos recentes tm apontado para as deficincias na implantao dos ciclos nas ltimas dcadas, como: o descaso e descompromisso poltico, a alta rotatividade e desmotivao dos professores, as insuficientes intervenes pedaggicas na escola, os registros de baixa qualidade do ensino, ou ainda as resistncias da prpria cultura escolar. A complexidade da mudana do tempo serial para ciclo recai sobre uma cultura temporal consolidada por uma outra lgica, lgica esta incorporada na cultura escolar h mais de um sculo e que compreende o ensino seriado como a nica organizao possvel. Escolas, tcnicos educacionais, professores, pais e os prprios alunos convivem com estas contradies das lgicas temporais. (FERREIRA; ARCO-VERDE, 2001, p.13).

Sendo assim, a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional Lei N 9.394/96 (art. 23), dispe o seguinte sobre a organizao do tempo escolar:A educao bsica poder organizar-se em sries anuais, perodos semestrais, ciclos, alternncia regular de perodos de estudos, grupos no seriados, com base na idade, na competncia e em outros critrios, ou por forma diversa de organizao, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar.

A LDB flexvel com relao educao bsica quando usa o verbo poder sobre o verbo dever, dando margem de deciso aos municpios e aos estados no campo pedaggico de organizao da educao bsica nas escolas, que passa a abranger a Educao Infantil (0 a 6 anos), o Ensino Fundamental (seis a quatorze anos) e o Ensino Mdio. Essa flexibilidade de organizao se faz seguir de uma obrigatoriedade na durao do ano letivo que, de acordo com a lei, ter 800 horas efetivas de aulas, em 200 dias letivos no tempo escolar. Com efeito, podemos dizer que durante os sculos XIX e XX houve uma ateno especial recebida pelo tempo no processo de ordenao escolar. Entendemos que os motivos dessa ateno esto baseados no processo de trabalho desenvolvido pelo modo de produo capitalista, marcado pelo controle do tempo no espao da escola e, mais precisamente, no trabalho docente. Em outros termos, o controle do tempo no trabalho docente evidenciado, por exemplo, pelos movimentos de entrada e sada deste profissional no espao da escola, pela durao da aula, pelos recortes das aulas em 40 ou 50 minutos, pelo tempo dedicado ao trabalho coletivo, dentre outros.

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Esse tempo determinado e controlado vem sendo evidenciado no processo de constituio da escola no Brasil e tem seu desenvolvimento fundamentado no taylorismo que visa aumentar a produtividade, economizando tempo, suprimindo gastos desnecessrios e comportamentos suprfluos no interior do processo produtivo (ARANHA, 1989, p. 7). O taylorismo, sistematizado por Frederick Taylor no sculo 20, estabeleceu, conforme Aranha (2000), os parmetros da racionalizao da produo. Mas, o taylorismo somente foi implantado em 1911 por Henri Ford, quando este instalou sua primeira linha de montagem na indstria de carros, com o objetivo, segundo Aranha (2000, p. 161), de estabelecer a velocidade e o ritmo do trabalho, diminuir o tempo de produo, mediante o uso do cronmetro. Esse sistema visava organizao do tempo de trabalho na fbrica, mas atingiu outras instituies, principalmente a escola, que sofreu sua influncia no perodo da ditadura militar, mais especificamente nas dcadas de 60 e 70 no Brasil. Aqui, preocupa-nos a organizao do tempo no trabalho docente no contexto da temporalidade econmica e da temporalidade ergolgica propostas por Rosa (2000, p.55) com fundamentao nos trabalhos de Yves Schwartz. Para ela, a temporalidade econmica est baseada na quantificao.Ou seja, o trabalho tido como objeto racionalizvel e, como tal, ele considerado como trabalho simples, podendo ser definido, circunscrito, decomposto, calculvel, regulvel e submetido ao tempo homogneo, o do relgio, expresso desta temporalidade.

Mas, quando o trabalhador pratica a outra dimenso da norma: a da temporalidade ergolgica (...) realizando julgamentos, interpretaes, microescolhas, microdecises, isto , recriando e/ou retrabalhando o trabalho prescrito, tendo a norma como mdia ( p. 55), h um embate entre essas duas temporalidades. Enfim, podemos dizer, que na temporalidade econmica, portanto, prevalece a linearidade e a homogeneidade do tempo do relgio diretamente relacionada com a organizao dos tempos de trabalho no espao da escola, inclusive no desenvolvimento do trabalho do professor na sala de aula. Esse tempo medido perpassa o processo de constituio e organizao dos tempos escolares ao longo dos anos e implica uma reflexo sobre a lgica temporal que orienta a organizao do trabalho docente e como o professor lida com a prescrio do tempo na sala de aula.

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CAPTULO 2 TRABALHO PEDAGGICO DOCENTE E A ORGANIZAO DO TEMPO

O trabalho constitui-se uma dimenso importante para o ser humano na sociedade moderna, caracterizada pela racionalidade capitalista de produo. Nesse contexto, as pessoas estruturam o tempo tendo como referncia uma rotina diria de trabalho. A partir dessa idia, precisamos compreender o movimento e a realizao do trabalho, para entender o modo de fazer do trabalhador. Dejours (2005, p. 42-43) concebe o trabalho humano como umaatividade til coordenada. Com essa definio o trabalho a atividade coordenada desenvolvida por homens e mulheres para enfrentar aquilo que, em uma tarefa utilitria, no pode ser obtido pela execuo estrita da organizao prescritiva.

Essa caracterizao do trabalho contribui para entender a relao entra as prescries do trabalho e o fazer do trabalhador. Significa dizer que o fazer do trabalhador no se restringe a executar rigorosamente as prescries nas situaes de trabalho. Yves Schwartz (2000), filsofo francs, corrobora com essa definio, mostrando, com pesquisas, que o trabalhador no se reduz a mero repetidor e executor de determinadas prescries para realizar suas tarefas na empresa, independente da natureza da tarefa. Ele no acredita que o trabalho executado seja a reproduo precisa do que foi planejado e que o trabalhador seja massa de moldar, um mero executante. Na realidade, o trabalho nunca s uma execuo ou mera prescrio. Nesta perspectiva, o fazer do trabalhador no algo rotineiro, repetitivo, destitudo de uma especificidade humana e de uma dimenso subjetiva. Os estudos de Dejours (2005), Schwartz (2000) e outros: Souza-e-Silva (2004), Amigues (2004), Saujat (2004), Lousada (2004), indicam que h um caminho entre o trabalho prescrito e o trabalho real. Necessrio se faz, ento, conceituarmos e distinguirmos trabalho prescrito e trabalho real. O conceito de trabalho prescrito e trabalho real foi cunhado h algum tempo nos campos da psicologia do trabalho, da ergonomia e da ergologia e tem sido utilizado para compreender a ao do trabalhador nas anlises das situaes de trabalho (LOUSADA, 2004,

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p. 274-275). Mas, desde a dcada de 70, segundo Cunha (2006, p. 4-5), que a ergonomia nos convidaa observar o trabalho nos meios profissionais ligando condies materiais e organizacionais a partir do ponto de vista da atividade real de trabalho. O trabalho atividade reguladora individual e coletiva que faz funcionar o sistema em seus acontecimentos aleatrios de todas as ordens, atravs das antecipaes e gestes simultneas de mltiplos horizontes temporais que se apresentam numa situao de trabalho.

Nesse sentido, podemos dizer que o trabalho prescrito tudo aquilo que definido antecipadamente pela organizao e fornecido ao trabalhador para que o mesmo defina, organize, realize e regule seu trabalho (p. 5). Isto , o trabalho prescrito pode ser compreendido como sendo a tarefa dada, prescrita pela instituio. Em contraposio, o trabalho real no pode ser antecipado ecompreende, alm da prpria atividade realizada, tambm todas as atividades no realizadas, suspensas, contrariadas ou que algum impedimento no deixou que a realizassem. Na verdade, a atividade realizada seria apenas uma das atividades possveis, em meio a tantas outras que com ela concorreriam no momento da ao. Essas outras atividades que no foram realizadas e que tambm fazem parte do trabalho real tm grande importncia para a compreenso do trabalho prescrito e do trabalho realizado e devem ser levadas em conta na anlise das situaes de trabalho. (LOUSADA, 2004, p. 275-276).

Dejours (2005, p. 41), em O fator humano, desenvolve os conceitos de real e realidade. O primeiro refere-se resistncia e vai alm do prescrito; e o segundo, remete ao prescrito renovado, reajustado.O real deve ento ser conceitualmente distinguido da realidade. A realidade o carter daquilo que no constitui somente em conceito, mas em estado de coisas. A dificuldade lxica vem de o adjetivo correspondente realidade ser tambm: real. O que aqui designamos por real no o carter real de um estado de coisas sua realidade mas o real como substantivo. O real tem uma realidade, mas se caracteriza por sua resistncia descrio. O real a parte da realidade que resiste simbolizao.

Assim, Dejours assinala que o real aquilo que em uma tarefa no pode ser obtido pela execuo rigorosa do prescrito e que resiste ao que foi prescrito pelo domnio tcnico e pelo conhecimento cientfico. A prescrio no suficiente para responder realidade do trabalho. O trabalho real, diferente da prescrio, para se constituir, solicita do trabalhador, no cotidiano de trabalho, o uso de sua criatividade, inveno, imaginao e inovao. Em outros termos, o real no decorre do conhecimento, mas daquilo que est alm do domnio da validade do conhecimento e do savoir-faire atuais. Ele se apreende, inicialmente, sob a forma de27

experincia vivida. Portanto, o real ocasionado pela ao sobre o mundo e se constitui em um convite a prosseguir no trabalho de investigao e de descoberta. Por outro lado, a realidade parte do real, cunhada por Dejours como sendo a realidade da atividade, tambm visada pela expresso atividade real ou trabalho real. Dessa maneira, o enfrentamento da tarefa, tida como uma prescrio, parte, segundo Dejours (2005, p. 43), da inovao, do engajamento, da mobilizao da inteligncia humana, da inteligncia prtica, que coloca em xeque um conhecimento, sinalizando a possibilidade de avano. Nesse sentido, Dejours colabora na definio de trabalho realizado como sendo a renormalizao, o reajustamento dos mtodos e regras do trabalho prescrito. O trabalho normalizado e legislado pela racionalidade da produo capitalista ganha outro enfoque com essas discusses. Ultrapassa o carter meramente repetidor e legitima-se como fator de realizao humana, estruturado, assim como o tempo, por um processo histrico de aprendizagem. interessante analisar a relao entre trabalho prescrito e trabalho real, fazendo inicialmente uma leitura sobre esse enfoque no trabalho docente, mediante as pesquisas realizadas na rea educacional. Tais pesquisas, de acordo com Saujat (2004), tm historicamente se pautado em alguns paradigmas. O primeiro, o paradigma processo-produto tem como foco os modos de agir do professor e os indicadores de eficcia, mostrando a aprendizagem como objeto de estudo e os alunos como receptores de conhecimento. Ento, essa abordagem enfoca o efeito que o ensino causa no desempenho dos alunos, considerando a aula realizada, a aplicao de um plano de ensino e a aplicao de um contedo. O segundo trata do pensamento dos professores, tendo como objeto de estudo a cognio desses profissionais no julgamento, no processo de decises sobre suas aes, nas suas histrias de experincias pessoais e na reflexo sobre sua prtica de ensino. Nesse sentido, esses estudos inspiraram outras pesquisas que consideram o professor alm da eficcia, da racionalidade, da cognio, da singularidade e reflexo. Destaca-se nessas outras pesquisas a abordagem ergonmica da qual emerge o objeto de pesquisa que tem como foco o trabalho do professor. Na concepo de SAUJAT (2004, p. 14-15), o terceiro paradigma, que trata da abordagem ecolgica dos processos interativos, considera as relaes entre o professor e o processo das situaes vividas.28

Doyle (1986b) props uma descrio ecolgica da aula, segundo a qual a complexidade da tarefa do professor se relaciona com os acontecimentos que a ocorrem e que apresentam as seguintes caractersticas: eles so mltiplos e simultneos, marcados por imediatismo e rapidez, comportam imprevisibilidade e so visveis, isto , pblicos; desenvolvem-se numa trama temporal, remetendo a uma historicidade referente tanto s regras de funcionamento e de gesto do grupo com os contedos ensinados.

Podemos considerar, ento, que, segundo essa abordagem, o trabalho real do professor comea a aparecer nas pesquisas que contribuem para o entendimento do seu fazer. Nesta perspectiva, a descrio ecolgica da aula passa por um conjunto de situaes ligadas entre si. A tarefa relaciona-se com o que acontece em sala de aula. Os acontecimentos abrangem vrios aspectos que no so simples nem nicos, mas que ocorrem ao mesmo tempo. A imprevisibilidade do acontecimento exige uma atuao imediata, num espao de tempo prescrito pelas regras e gerenciado pelo professor em confronto com a situao. Essa abordagem rompe com a viso de ensino como execuo do programado pela hierarquia educacional e possibilita uma nova leitura do trabalho docente. Outras pesquisas, no entanto, passaram a estudar a ecologia das situaes levando em conta as dimenses interativa e contextual das situaes de ensino e de aprendizagem. Percebemos, ento, uma virada nos estudos sobre o professor que passam a conhecer e considerar as suas prticas na relao com os contextos em que se realizam, o que anteriormente no era levado em considerao. Nessa perspectiva, Altet (1991) (apud SAUJAT, 2004, p.15-16) prope descrever as dimenses do processo ensino-aprendizagem dentro do paradigma processos interativos contextualizados. Nesse outro paradigma, o ensino definido como um processo interativo interpessoal, finalizado pela aprendizagem dos alunos.Esse processo requer uma cultura profissional que se baseia em seis critrios (ALTET, 1994): (a) uma base de conhecimentos ligados ao agir profissional; (b) uma prtica adaptada em situao complexa; (c) uma capacidade de dar conta de suas prprias competncias e atos; (d) uma autonomia e uma responsabilidade pessoal no exerccio de suas competncias e atos; (e) uma adeso a normas coletivas constitutivas da identidade profissional; (f) um pertencimento a um grupo que desenvolve estratgias de promoo e de valorizao.

Esses estudos sobre o ensino ganham impulso por considerar o modo como o professor tenta resolver, de forma mais ou menos singular, os problemas que encontra em sala de aula (SAUJAT, 2004, p.16).

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fato, portanto, que as pesquisas educacionais introduzem, aos poucos, uma nova viso sobre o trabalho docente, passando a descrever e a analisar tambm o fazer do professor em contexto nas situaes reais de trabalho. No se trata mais de uma viso fragmentada desse trabalho, no sentido de eficincia, ou seja, da produo do efeito desejado a partir da transmisso da maior quantidade possvel de conhecimentos, segundo as prescries. Nesse contexto, num dos mais interessantes livros sobre o ensino como trabalho, Ana Raquel Machado (2004) rene vrios pesquisadores, do Grupo LAEL4 e de outros grupos internacionais, na busca de construir uma abordagem interdisciplinar das diferentes questes atinentes ao trabalho educacional. Ou seja, esses pesquisadores tentam trazer contribuies para o entendimento do agir do professor, a partir de uma abordagem discursiva que trata o trabalho educacional na coexistncia do prescrito e do real. Essa abordagem representa um esforo no sentido de superao da viso do trabalho como mera prescrio, pela concepo de trabalho como lugar de problema no savoir-faire atual. O trabalho do professor interage com o fluxo dos acontecimentos na sala de aula e na escola e passa a ser analisado por um conjunto de atividades nem sempre visveis ao pblico. Historicamente, os programas de ensino, isto , o que prescrito em documentos normativos elaborados por rgos reguladores do sistema de educao, so referncias para o trabalho que o professor desenvolve na sala de aula. Baseado numa trama temporal, no incio do ano letivo, ao assumir uma turma de alunos, o professor recebe o contedo programtico para organizar o cronograma que pretende seguir durante o ano, visando cumprir o programa. Mesmo sem conhecer a turma, o professor antecipa o planejamento, o trabalho a ser desenvolvido, preparando cada uma de suas aulas, decidindo sobre o mtodo a ser utilizado para desenvolver cada contedo e escolhendo o material didtico que vai empregar como suporte, para realizar o seu trabalho de ensino. Mesmo recebendo informaes sobre as caractersticas e desenvolvimento dos alunos, impossvel adiantar o desenrolar antes do incio concreto do trabalho do ano letivo. Ademais, o tempo empregado pelo professor para planejar suas aulas vai alm do espao de trabalho. Em sala de aula, o professor aborda cada um dos contedos planejados, prepara as avaliaes da turma a cada etapa realizada, agenda uma data, aplica e corrige as avaliaes. Aqui, na situao concreta, no acontecendo da prtica pedaggica, o professor trabalha com os contedos prescritos, mas, ao mesmo tempo, redimensiona-os no confronto com a situao e com o momento em que atua.

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Lingstica Aplicada e Estudos da Linguagem 30

Ao abordar a questo do ensino como trabalho, percebemos que a prtica docente plural e no se reduz aplicao de mtodos. Ao mesmo tempo em que busca cumprir as prescries de uma tarefa, o professor refaz a tarefa para atingir os objetivos propostos. Ento, o trabalho do professor definido como aquilo que ele desenvolve para buscar dar conta da aprendizagem dos alunos. Assim,Durante a realizao [desta] tarefa: no s seus atos exteriorizados, mas tambm as inferncias, as hipteses que faz, as decises que toma, o modo como controla seu tempo e, alm disso, o controle de seu estado pessoal sua fadiga, seu estresse, assim como o prazer sentido na interao com os alunos nessa situao de aula etc. ... (ROGALSKI, 2000, apud SAUJAT, 2004, p.26).

Amigues (2004, p.40), ao discutir o trabalho do professor enfatiza que no domnio do trabalho, a tarefa no definida pelo prprio sujeito; as condies e o objetivo de sua ao so prescritos pelos planejadores, pela hierarquia. H geralmente uma distncia sistemtica entre o trabalho tal como ele prescrito e o trabalho efetivamente realizado pelo trabalhador. As prescries desencadeiam e constituem a organizao do trabalho docente e dos alunos, levando em conta os programas de ensino, a seqncia (preparao, aplicao e avaliao da aula) das atividades realizadas, as normas da escola, os calendrios e as ferramentas pedaggicas. Ao tratar das prescries, Faita (2004) afirma que o meio, tido como o grupo de trabalho, as ferramentas, e formas de pensar e de fazer e as regras produzidas pelo prprio grupo, impe normas diferentes, obrigando-o a se definir novamente a partir de seus prprios valores. Ou seja, esses produtores do meio procuram solucionar os impasses e os problemas gerados no confronto entre o professor e o prprio meio de trabalho, possibilitando uma reelaborao dos valores, uma recriao e multiplicao das prprias normas. Explica que esse descentramento nos leva a pensarno professor que se encontra diante de coeres institucionais, com prescries explcitas ou no ditas, com polticas dos estabelecimentos de ensino e que , ao mesmo tempo, obrigado a resolver os problemas do cotidiano, em que abundam as escolhas a serem feitas para concluir as tarefas a realizar. (p. 61-62).

Sob a tica dos estudos que tomam o ensino como o trabalho, a anlise da atividade do professor constitui-se como uma categoria para a compreenso do agir educacional, por meio do enfoque trabalho prescrito e trabalho real.

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Com base nesses estudos, Ren Amigues (2004, p.39) diferencia tarefa de atividade. Para ele a tarefa refere-se ao que deve ser feito e pode ser objetivamente descrita em termos de condies e de objetivo, de meios (materiais, tcnicos...) utilizados pelo sujeito. Ainda, ressalta que a tarefa no definida pelo professor, mas prescrita pelas pessoas e hierarquia que planejam a ao educacional. Pontuamos, aqui, que essa tarefa relaciona-se ao uso que os outros fazem do professor na realizao da atividade. Ou seja, a tarefa escolar requer e diz respeito ao uso de si pelos outros no sentido de reproduzir e repetir os mtodos, regras e as tcnicas que lhes correspondem, contidas e explicitadas nessas normas (ROSA, 2000, p. 52). Com relao atividade, Amigues (2004) destaca que esta corresponde ao que o sujeito faz mentalmente para realizar a tarefa (p. 39). Enfoca a atividade como socialmente situada e constantemente mediada por objetos que constituem um sistema (p. 42). Assim,A anlise da atividade centrada no que faz o trabalhador, suas aes, seu funcionamento, suas intenes, seus valores e competncias, seus saberes, os sentidos que o mesmo atribui ao seu trabalho e as tarefas que lhe so atribudas para realizar. Nesse sentido, a anlise da atividade compreende uma anlise da tarefa (atribuda por outrem ou formulada por ele mesmo), mas mais do que isso, pois deve incluir o modus operandi do trabalhador face s situaes de trabalho, tambm, em toda sua complexidade uma vez que contendo relaes sociais, relaes de trabalho, condies de trabalho produzidas historicamente. (CUNHA, 2006 p. 6).

Segundo Souza-e-Silva (2004, p. 88), falar de tarefa e atividade significa fazer referncia ao taylorismo, que formalizou a diviso do trabalho entre quem o concebe e quem o realiza. Alm disso, ressaltamos, tambm, a organizao do tempo de produo, tal como pensada por Taylor, que regula a durao da atividade. Essa abordagem mecanicista que trata o trabalhador como uma massa mole, pronta para ser moldada como se acreditava no taylorismo e, atualmente, com o toyotismo, e que reduz a atividade a uma mera execuo, rejeitada pelos pesquisadores que estudam o ensino como trabalho5. Na viso desses pesquisadores, a atividade constitui-se uma resposta s prescries e se engendra no acontecendo do fazer pedaggico, ressignificando, refazendo ou renormalizando a tarefa. Assim, (...) se a distncia entre o prescrito e o real no trabalho inevitvel, neste hiato se inscrevem as renormalizaes (CUNHA, 2007, p. 2).

(AMIGUES, 2004; BRONCKART; MACHADO, 2004; MAZZILLO, 2004; RNICA, 2004; FAITA, 2004; FILLIETTAZ, 2004; GIGER, 2004; LOUSADA, 2004; SAUJAT, 2004; SOUZA-E-SILVA, 2004; TARDELLI, 2004). 32

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2.1 A organizao do tempo pedaggico na sala de aulaO trabalho do professor sob o ponto de vista das prescries definido e organizado por outras pessoas e obedece a uma hierarquia em nvel nacional, estadual e municipal. Ou seja, concebido pela Lei de Diretrizes e Bases da Educao, pelos Programas Curriculares Nacionais, as diretrizes estaduais e, tambm, as diretrizes municipais da rea de educao. Partindo da base legal de atuao do Estado na prescrio de leis e diretrizes para organizao do trabalho escolar, consideramos, tambm, a prescrio das leis na ordenao do tempo escolar. Essa ordenao, conforme j mencionamos, traduzida pela durao das sries ou ciclos de ensino, pela jornada de trabalho dirio, semanal e anual, pela distribuio das disciplinas do programa de ensino por sries ou ciclos, dentre outras. A organizao do trabalho do professor na escola se realiza, portanto, em conformidade com essa ordenao do tempo na escola, que tem como finalidade padronizar e controlar o tempo escolar, a cadncia das atividades, o ritmo dos professores e dos alunos, constituindo-se como fator fundamental para a compreenso do processo de trabalho docente. No espao escolar podemos notar a relevncia do emprego do tempo nos toques da sirene anunciando ou lembrando os horrios de entrada, do recreio e de sada. Tambm, esse mesmo tempo notado nas atividades da instituio contidas no calendrio escolar que determina, segundo Teixeira (1999), os perodos festivos e comemorativos, as avaliaes, os planejamentos, as reunies, as frias, as provas, dentre outras. Especificamente, na sala de aula, essa relevncia se d no controle da durao da aula, na realizao fragmentada dos contedos pedaggicos, no controle e no acompanhamento do ritmo e das atividades do aluno e etc. Esses tempos esto relacionados entre si e diretamente ligados prtica do professor. Esse emprego do tempo, segundo Cunha e Costa (2008, p. 3), nos ritmos e padres regidos pelo tempo dos relgios expressa nossas prticas e experincias, frutos de uma caracterizao coletiva de uma sociedade. Assim, a experincia no tempo interage com as prticas escolares paralelamente ao desenvolvimento da natureza, em todos os seus ciclos, demonstrando a multiplicidade da noo de tempo, dialeticamente diversificada e singular, histrica e socialmente construda. Nesse entendimento, o tempo escolar pode ser dividido em administrativo e pedaggico. O tempo escolar administrativo visa precisamente ao controle das atividades de professores e alunos, por meio dos calendrios, jornadas e horrios. O pedaggico diz respeito

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ao trabalho de ensino do professor em sala de aula, de certa forma sustentado pelo tempo administrativo. Contudo, tratarei neste estudo do tempo que cunhei de pedaggico, porque acredito que esse tempo constitui-se em fator de essencial importncia para nos ajudar a compreender a organizao das atividades docente em sala de aula. Esse tempo empregado pelos professores no trabalho de ensino na sala de aula tendo como referncia os contedos a serem apresentados e desenvolvidos no dia, na semana, no bimestre, no semestre e no ano letivo. Ainda, tendo como base a srie ou ciclo e a faixa etria do aluno e o programa de ensino da escola, do municpio, do estado e a base curricular nacional. O tempo pedaggico como organizador do trabalho docente na escola passa despercebido sem uma reflexo sobre sua constituio histrica e cultural, bem como a sua lgica de realizao em face s prescries dos legisladores do sistema educacional. Esse tempo deve ser organizado, por exemplo, de acordo com os horrios estabelecidos pela escola, isto , os horrios de entrada, de recreio e de sada e os saberes acumulados no processo de ensino. Se o professor conhece os seus alunos, esse fator pode facilitar ainda mais esta organizao que inclui no seu bojo momentos de continuidades e descontinuidades de atividades que fazem parte da cultura escolar nas instituies de ensino fundamental. Os momentos de continuidade podem ser traduzidos aqui como a apresentao e o desenvolvimento das atividades que envolvem os contedos das disciplinas ensinadas. Por sua vez, os momentos de descontinuidades so expressos nas paradas para reclamar a ateno dos alunos sobre a indisciplina ou conversas, nas paradas para apontar lpis ou mesmo na parada para o recreio. Sendo assim, a organizao do tempo perpassa certa rotina diria de atividades no trabalho de ensino. Podemos considerar essa rotina como parte de uma prescrio diria que compe a cultura da instituio escolar, visando nortear parte do trabalho realizado pelo professor. Como tambm, somado a essa, a rotina diria prescrita pelo prprio professor para organizar as atividades no espao da sala de aula. Essas duas prescries rotineiras constituem o trabalho docente e so realizadas de forma regular e repetitivas. Tentando elucidar a questo da rotina, usamos o termo rotinizao no trabalho docente, empregado por Tardif & Raymond, que no acreditam que essa rotinizao seja uma forma de estruturar os atos atravs de uma maneira de agir estvel, uniforme, repetitiva, isto , apenas controladora dos acontecimentos em sala de aula, masEnquanto fenmeno de base que fundamenta a vida social, a rotinizao significa que os atores agem atravs do tempo, fazendo de suas prprias atividades recursos para reproduzir (e s vezes modificar) essas mesmas atividades. No nosso caso, ela 34

demonstra a forte dimenso sociotemporal do ensino, na medida em que as rotinas tornam-se parte integrante da atividade profissional, constituindo, desse modo, maneiras de ser do professor, seu estilo, sua personalidade profissional. Porm, a menos que o ator se torne um autmato, a rotinizao de uma atividade, isto , sua estabilizao e sua regulao, que possibilitam a sua diviso e sua reproduo no tempo, repousa em um controle da ao por parte do professor, controle esse baseado na aprendizagem e na aquisio temporal das competncias prticas. Ora, a fora e a estabilidade desse controle no podem depender de decises voluntrias, de escolhas, de projetos, mas sim da interiorizao das regras implcitas de ao adquiridas com e na experincia. (TARDIF; RAYMOND, 2000, p. 233-234).

Com base nesse argumento, podemos dizer que a rotinizao est inserida na organizao do tempo pedaggico no trabalho docente e se constri no processo de apropriao dos modos de saber fazer de sua experincia e na evoluo de sua prtica profissional. Portanto, a rotina produto de uma construo histrica e cultural, produzida e reproduzida pela escola e pelo professor como processo de aprendizagem e de organizao das atividades de ensino. Podemos visualizar a rotina, ento, como sendo parte integrante e enraizada do trabalho, ressignificada todos os dias no espao da sala de aula. A forma de organizar a rotina de trabalho pode facilitar e controlar o uso do tempo pedaggico na sala de aula, conforme a freqncia de planejamento estabelecido no tempo coletivo pedaggico6. Para tanto, h necessidade de se considerar a condio da classe, se homognea ou heterognea, os ritmos e as possibilidades de aprendizagens dos alunos. Nessa perspectiva, a organizao do trabalho no se restringe a essas modalidades, mas se inscreve, tambm, no nvel de evoluo da classe, no conhecimento que os alunos adquiriram e na natureza da atividade, para que o professor faa os ajustamentos necessrios no seu plano de aula. Desse modo, a forma de organizao vai sendo aperfeioada sucessivamente no tempo, permitindo a apropriao do trabalho pelo professor e o enfrentamento dos imprevistos que acontecem na sala de aula. A organizao situa-se, ento, no antes, no durante e no depois da atividade. O planejamento da aula est intrinsecamente ligado ao desenvolvimento e recepo das atividades pelos alunos e podem contemplar atividades que contribuam com a organizao do tempo pedaggico. Um planejamento bem feito pode otimizar o tempo que o professor dedica s atividades.6

Pode facilitar o estabelecimento de uma rotina semanal e diria que defina

Geralmente, o espao de planejamento coletivo pedaggico caracteriza-se como encontros para discusso, acompanhamento e avaliao da proposta pedaggica da escola e do desempenho escolar do aluno; discusso e realizao da formao continuada dos professores; reflexo do currculo e melhoria da prtica docente; planejamento das atividades pedaggicas; dentre outras. Esse espao de planejamento recebe diferentes denominaes que variam conforme as diretrizes de ensino dos estados e dos municpios. No geral, recebem a denominao de HTPC: Hora de Trabalho Pedaggico Coletivo; Planejamento Coletivo, Reunies Pedaggicas. 35

previamente as reas a serem trabalhadas, a freqncia com que so trabalhadas (diariamente, com que durao), a melhor forma de tratar didaticamente os contedos (em forma de projetos, atividades seqenciadas, atividades permanentes), os tipos de atividades a serem propostas e a respectiva freqncia. O professor pode estabelecer uma ordem de durao (mais curta, mais longa) das atividades a serem realizadas de acordo com a carga horria diria pr-definida. Na sala de aula, ele produz, em conjunto com seus alunos, o tempo e o trabalho real de ensino, por meio da implementao das atividades e da dinmica da turma. Essa produo no segue uma ordem, nem uma freqncia. No tem durao. Ela se transforma em experincia e ajuda o professor a organizar o tempo no seu trabalho dirio, a lidar com a fragmentao da atividade, as rupturas e as continuidades em meio a tenses e conflitos. Trata-se, portanto, de uma possibilidade de organizao do tempo pedaggico no trabalho em sala de aula, visando tambm regulao da atividade do professor e dos alunos, inscrita em uma organizao prescritiva. Compreende-se que as prescries no servem apenas como desencadeadoras da ao do professor, sendo tambm constitutivas de sua atividade (AMIGUES, 2004, p.42). Nesse sentido, as prescries fazem parte da trama temporal em que se situa o trabalho docente em sala de aula. O uso que o professor faz do tempo prescrito, por exemplo, nas 4h15 de atividade diria, promove o cruzamento entre o prescrito e o realizado. Este cruzamento reordena a atividade no ato de sua realizao, com ou sem ruptura temporal, porque faz parte de uma transformao inevitvel, aparentemente despercebida, que mobiliza tanto o uso que o professor faz de si, como o uso que este faz do tempo prescrito. Dessa maneira, identificamos o tempo pedaggico no trabalho docente com o uso de si. Isso significa que o professor organiza o tempo pedaggico tendo como parmetro o programa de ensino, o tempo fsico da escola e a durao da aula para desempenhar a sua funo, mas, na situao de trabalho, ele faz uma leitura do seu campo de atuao e renormaliza o trabalho prescrito, problematizando o uso de si em confronto com os atos realizados. Na organizao do tempo pedaggico, precisamos considerar que a prtica pedaggica fragmentada por meio das atividades da escola e, tambm, que no h coincidncia entre o tempo de ensino e o tempo de aprendizagem, sendo que ensinar no fazer aprender imediata e instantaneamente (SOUZA-E-SILVA, 2004, p. 93).

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Admitindo como adequada a afirmao de Souza-e-Silva, podemos, ento, questionar: como o professor lida com o tempo de ensino e de aprendizagem na realizao de seu trabalho de ensino? Teixeira (1999) trata desta questo explicitando que cabe aos professores equilibrarem e costurarem esses tempos aos tempos escolares, porque cada turma representa no apenas um conjunto de alunos com ritmos variados, mas tambm variam as cadncias das vrias turmas (p. 94). Mas, como fazer esse equilbrio? Como costurar esses tempos? Como lidar com os diferentes ritmos da aprendizagem do aluno e o tempo de ensino? Ainda, Teixeira explica, partindo do ponto de vista da sociologia, essas diferenas rtmicas dos alunos, como sendo uma prescrio da sociedade por meio das duraes esperadas socialmente que se fazem ou no nas interaes sociais da escola. Assim, somos levados a esperar de nossa parte e dos outros, certas cadncias nos comportamentos e a realizao de certas coisas em determinados perodos de tempo (p. 95). Essas duraes referem-se tanto ao desempenho do professor como do aluno nas etapas do tempo de escola. Por outro lado, uma pesquisa realizada por Garcia no contempla as duraes esperadas socialmente, mas constata que a organizao do tempo na sala de aula privilegia a aprendizagem dos alunos em detrimento de certa durao do tempo. Referindo-se ao trabalho de uma professora pesquisada, Garcia diz:Laura de fato organiza seu tempo para ensinar, mas sua organizao se submete, de certa forma, s necessidades de seus alunos. Ela gasta o tempo maior em sala de aula para fazer o que cabe escola fazer, ou seja, ensinar. E, para ela, a forma mais eficiente de fazer isso atend-los o maior tempo possvel, um a um. O que se pode concluir que, neste caso particular, o ritmo do tempo se subordina ao e interao de Laura com seus alunos. (1999, p. 123).

Desses estudos, podemos dizer, ento, que a distribuio das aes no tempo, dentro da organizao do trabalho, mobiliza um uso do professor em confronto com o ritmo dos alunos. Diante disso, h necessidade de um equilbrio e de uma costura entre as tarefas prescritas coletivamente aos alunos e aquilo que estes mobilizam para dar conta delas em prol da aprendizagem. Portanto, sabemos que o objetivo da escola realizar a aprendizagem dos alunos dentro das dimenses temporais prprias de cada ambiente escolar. Para a ergonomia da atividade, segundo Souza-e-Silva (2004, p. 93), o professor realiza em situao de ensino um plano de ao adaptvel s circunstncias e tambm um ato de concepo em situao que prepara a ao seguinte. Sendo assim, a realizao da tarefa consiste em atingir objetivos, mas implica saber como o professor faz para organizar um meio de trabalho que mobiliza um grupo/classe de modo a realizar coletivamente uma37

tarefa. A autora considera que a distribuio das aes do tempo na sala de aula manifestase por meio de uma varivel de comandos com o objetivo de realizar a tarefa. Ou seja, essa distribuio constitui-se de vrias marcaes temporais em jogo, tais como: iniciar, terminar, interromper, mudar, dar seqncia e relacionar a realizao da tarefa s demais atividades; considerando as quatro ou cinco horas de durao de um turno de aula. Ento, como o professor organiza o tempo pedaggico na sala de aula, na realizao das atividades em meio a rupturas e continuidades? no acontecendo da prtica pedaggica, no trabalho real, que tentamos buscar respostas a essa questo, acreditando que a forma como o professor organiza esse tempo na sala de aula pode nos ajudar a compreender o seu trabalho. O trabalho docente engloba, como vimos anteriormente, a estrutura educacional, as condies de trabalho, mtodos, opes didticas, prtica pedaggica e a organizao do tempo em suas mltiplas dimenses, ou seja, tempo escolar, tempo administrativo, disciplinar, tempo de aprendizagem, dentre outros. Para tentar entender melhor como o estudo da organizao do tempo pelo professor pode nos ajudar a dar visibilidade ao trabalho docente, recorremos a Penin (1994), que em seus estudos sobre a aula nos mostra duas grandes divises do tempo em relao ao tipo de atividades desenvolvidas pelos professores, sendo uma relacionada s atividades de rotina e a outra relacionada s atividades especficas do ensino programado para o dia:Entre as atividades de rotina esto: colocao do cabealho na lousa pela professora e sua cpia no caderno pelos alunos (nome da escola, data, nome da professora, srie, dia da semana e a caracterstica do tempo naquela dia, variando entre: sol, nublado, chuva); chamada dos alunos (...); orientao da professora indicando qual caderno ou outro material a ser retirado da mala ou o momento de guardar todos os pertences pessoais esperando o sinal (...) Pedido dos alunos para usar o banheiro ou tomar gua no ptio (...). Organizao da aula para organizar o espao (quando havia cadeiras vazias) e acomodar os alunos. As atividades de ensino propriamente ditas podem ser, grosso modo, divididas em: de introduo, de desenvolvimento e prtica e de avaliao, seja para atividades de lngua, seja para as de matemtica, as de estudos sociais ou de cincias e programas de sade. (p. 128-130).

Ento, a organizao do tempo pedaggico pressupe a distribuio dos contedos fixados no plano de curso, visando controlar a durao das atividades e promover a aprendizagem, uma temporalidade racional. Por exemplo, para conseguir atingir os objetivos de ensino e de aprendizagem, o professor pode implementar modalidades de organizao por meio de projetos, atividades permanentes, seqncias de atividades e atividades independentes (LERNER, 1996, p.10-11). No seu conjunto, as modalidades de organizao38

de atividades sugeridas por Lerner podem estabelecer uma rotina de trabalho pedaggico na sala de aula. Essa rotina pode revelar aspectos dos modos como o professor usa e distribui o tempo na sala de aula. Este exemplo ilustra que a organizao de atividades de ensino inscreve-se em uma organizao com prescries que o professor e seu meio definem previamente para trabalhar as disciplinas, a freqncia a serem trabalhadas, a melhor forma de tratar os contedos, os tipos de atividades a serem desenvolvidas durante o dia, a semana ou a quinzena (dependendo do planejamento pedaggico coletivo) e a respectiva freqncia. As atividades de ensino podem ser caracterizadas como sendo os contedos curriculares trabalhados no tempo dedicado em cada aula, requerendo do professor domnio do contedo a ser ensinado, estimulao dos alunos para a aprendizagem, preparao das condies materiais para essa aprendizagem, seja, exposio oral, escrita, uso de recursos didticos, etc. O conjunto dessas atividades pode nos ajudar a fazer uma leitura do emprego do tempo pedaggico no trabalho de ensino do professor, totalmente circunscrito no tempo prescrito da escola. Esses tempos so vivenciados pelos professores e seus alunos no fazer das atividades de rotina e das atividades de ensino, requerendo, principalmente deles, em um dia de trabalho, de forma bem peculiar, o fazer do ensino para promover a aprendizagem dos alunos. Nesse tempo, o professor precisa dar conta de cerca de, aproximadamente, 25 a 30 alunos de uma s vez. Esse dar conta pressupe dar conta da aprendizagem, da indisciplina, das solicitaes individuais e coletivas dos alunos, do ensino dos contedos, das interferncias, das solicitaes dos eventos promovidos pela escola e outras instituies, dentre outras. Apesar do seu aspecto macro, as divises do tempo indicadas por Penin e as modalidades de organizao das atividades sugeridas por Lerner, nos ajudam a refletir sobre a organizao do tempo pedaggico no trabalho docente, extremamente complexa, que passa, necessariamente, pela caracterizao desse trabalho frente s prescries de toda a estrutura da educao escolar. Mas essas divises se completam e auxiliam o professor na organizao, na realizao e no controle do tempo na sua prtica educativa. Essas divises desdobram-se em outras dimenses do tempo reveladas no cotidiano da sala de aula e dizem respeito, por exemplo, ao tempo que deve ser investido numa disciplina especfica, gesto do tempo dos alunos em relao aprendizagem, referente aos ritmos para realizao das atividades em sala de aula e aos ritmos do prprio aprender os contedos ensinados e organizao das condies objetivas e subjetivas que podem auxiliar o professor39

na sua atividade de ensino, para dar conta do tempo curricular prescrito pelas normas gerais do sistema de ensino. A organizao pedaggica do tempo na sala de aula requer do professor o desenvolvimento de planejamento, coordenao, controle, envolvendo a manipulao do espao fsico, de recursos didticos pedaggicos, de coeres verbais e disciplinares visando a realizao do seu trabalho. Esses esforos convergem no sentido de atingir a aprendizagem do aluno, tendo para isso que desenvolver atividades dentro e fora da escola. O espao fora de sala de aula pode ser realizado com a presena do professor, para explorao dos contedos curriculares ou sem a presena dele, como por exemplo, a realizao das lies de casa. Esse conjunto de atividades pode demonstrar, de certa forma, a complexidade presente na organizao do tempo pedaggico, em constante conflito e coexistncia com o tempo da escola e o tempo curricular.

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CAPTULO 3 PERCURSO METODOLGICO

(...) o real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a gente no meio da travessia... (Joo Guimares Rosa)

Os caminhos da pesquisa se fazem no caminhar do pesquisador. no caminhando que se aprende a caminhar; tanto, que nessa travessia, no acontecendo, que realizei minha trajetria de investigao, permeada de incertezas, de dados e de realizaes. Riobaldo, personagem em Grande Serto Veredas, de Joo Guimares Rosa (1986, p, 52), diz: os caminhos no serto no acabam, pois o serto do tamanho do mundo (...) serto onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Comparo os caminhos do serto, de Riobaldo, aos caminhos da pesquisa, para explicar a vastido da travessia numa investigao cientfica e a importncia do olhar do pesquisador nesse processo, buscando captar indcios como possibilidade de leitura de uma determinada realidade. Nessa travessia, percorri os sertes de alguns municpios, da educao municipal, os sertes das escolas, dos interiores de algumas salas de aula, tentando compreender a organizao do tempo pedaggico no trabalho real do professor. Nesses sertes, o pensamento foi tomando forma e se revelando no trajeto. Alguns se apresentavam para mim de forma consciente, outros persistiam encobertos, fragmentados e confusos. Na realidade, esta travessia teve incio com uma reflexo sobre a qualidade que o trabalho tem supostamente produzido na vida das pessoas. Essa linha de pensamento me fez querer conhecer melhor a relao existente entre trabalho, educao e sade e, principalmente, a sade daqueles que se propem rdua tarefa de ensinar crianas do ensino fundamental. Sade entendida, segundo a Organizao Mundial de Sade, como um estado de completo bem-estar fsi