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POSSIBILIDADES JURÍDICAS DE COMBATE À ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA

Escravidao OIT

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  • POSSIBILIDADES JURDICAS DE COMBATE

    ESCRAVIDO CONTEMPORNEA

  • POSSIBILIDADES JURDICAS DE COMBATE

    ESCRAVIDO CONTEMPORNEA

    SECRETARIA INTERNACIONAL DO TRABALHO

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    Possibilidades Jurdicas de Combate Escravido Contempornea. Braslia: Organizao Internacional do Trabalho, 2007.

    136 p.ISBN 978-92-2-820614-2 ISBN 978-92-2-820615-9 (web pdf)

    1. Trabalho escravo. 2. Legislao. 3. Brasil

    13.01.2

    As designaes empregadas nas publicaes da OIT, segundo a praxe adotada pelas Naes Uni-das, e a apresentao de material nelas includas no signicam, da parte da Organizao Interna-cional do Trabalho, qualquer juzo com referncia situao legal de qualquer pas ou territrio citado ou de suas autoridades, ou delimitao de suas fronteiras.

    A responsabilidade por opinies contidas em artigos assinados, estudos e outras contribuies recai exclusivamente sobre seus autores, e sua publicao pela OIT no signica endosso s opi-nies nelas expressadas.

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    Impresso no Brasil PQAS

    Copyright Organizao Internacional do Trabalho 2007

    1 edio 2007

  • Contedo

    Apresentao

    O Ministrio do Trabalho e Emprego e os Subsdios para Defesa Judicial da Unio nas Aes Relativas ao Cadastro de Empregadores do Trabalho

    Escravo

    Trabalho Escravo e Lista Suja: um modo original de se remover uma mancha

    Atuao do Ministrio Pblico do Trabalho no Combate ao Trabalho Escravo crimes contra a organizao do trabalho e demais crimes conexos.

    A Escravido Ainda Resiste

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  • Apresentao

    Se tomarmos por base as aes at agora oferecidas perante o Poder Judicirio e que buscam a excluso do nome de seus autores do cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004, podemos afirmar que se dividem em dois grandes grupos: i) mandados de segurana; ii) aes anulatrias de ato administrativo. O objetivo perseguido , sis-tematicamente, o mesmo: a excluso do nome do autor ou impetrante do cadastro. Igualmente comuns so os reiterados pedidos de liminar, algumas vezes atendidos pelo Poder Judicirio sem a oitiva da parte contrria (Unio Federal).

    No caso do mandado de segurana, o impetrante quase sempre se fundamenta em dispositivos constitucionais e legais, que vo do princpio da legalidade presuno de inocncia, passando pela livre iniciativa, o devido processo legal e, em alguns casos (pasmem!), a funo social da propriedade. Nessa ao mandamental, discute-se ma-tria de carter eminentemente jurdico, no havendo praticamente nenhum espao para dilao probatria, razo pela qual tambm so comuns argumentos relaciona-dos ausncia de condenao penal na Justia comum, ilegalidade do cadastro, efetivao do pagamento das multas administrativas impostas, entre outros.

    Nas aes anulatrias de ato administrativo, bom esclarecer que o ato cuja anulao se pretende declarar no o da imposio das multas administrativas ao final dos processos que julgam os autos de infrao no Ministrio do Trabalho e Emprego, mas sim o ato subseqente da incluso do nome do infrator no cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004. Embora aqui, diferentemente do que sucede no mandado de segurana, haja amplo espao para dilao probatria, raras so as vezes em que os empregadores oferecem a indicao de como pretendem provar o que alegam.

    No seria exagero concluir que as aes citadas mandado de segurana e ao anulatria de ato administrativo so utilizadas quase que indiscriminadamente, ob-jetivando a mesma finalidade e, muitas vezes, manejadas de forma sucessiva pelas

  • partes. No bastasse, so muitas vezes ajuizadas diante tanto da Justia do Trabalho como tambm da Justia Federal, noutras se repetem em territrios diferentes. Li-tispendncia, coisa julgada e conflitos de competncia material e territorial j foram constatados em alguns casos. H um caso em que uma sentena penal proferida em processo que tramitava na Justia comum estadual ordenou a retirada do nome do infrator do cadastro, o que nos pareceu, claramente, um julgamento extra petita.

    H, nas aes e nos argumentos trazidos pelos empregadores includos no cadastro uma enorme cadeia de sofismas e inverdades. Muitos deles, lamentavelmente, logra-ram xito, em especial, nas primeiras aes e mandados de segurana ajuizados logo aps a edio do cadastro, quando foram deferidas tutelas que asseguraram a muitos dos empregadores que se locupletaram do trabalho escravo a excluso do cadastro. Contudo, pouco a pouco, o Poder Judicirio vai sinalizando na direo oposta e cons-truindo um juzo mais bem delineado sobre o tema. So cada vez mais freqentes os julgados nos quais se adota posio firme no sentido de reconhecer a legalidade e a constitucionalidade do cadastro. Posio inversa indicaria praticamente um sinal verde para que o trabalho escravo, a despeito do seu combate incidental, viesse a se tornar um problema acerca do qual as aes empreendidas pelo Estado e demais atores sociais no representassem mais que paliativos.

    Acreditamos que a Unio Federal, cujas defesas so feitas em regra pela Advocacia-Geral da Unio (AGU) e para as quais contribumos com subsdios fticos e jurdicos em todos os casos, tenha exercido papel preponderante ao apresentar, no apenas os relatrios produzidos pelo Grupo Especial de Fiscalizao Mvel GEFM, mas tambm algumas consideraes jurdicas. Tais consideraes, sem ter a pretenso de esgotar a discusso do cadastro, buscaram sempre auxiliar no sentido de permitir AGU e ao Poder Judicirio formar seu convencimento acerca no s da realidade concreta vivenciada pela Fiscalizao do Trabalho a cada operao do Grupo Mvel, mas tambm dos fundamentos jurdicos que militam em favor da adoo do cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004 como medida fundamental das polticas pblicas voltadas para a erradicao do trabalho escravo.

    A seguir, trataremos de forma sucinta, e sem descartar a crtica ou a reviso de juzos mais depurados, dos principais temas que tm sido aviados no bojo das aes ofere-cidas por empregadores cujos nomes foram inscritos no cadastro. Em alguns casos, arrolaremos jurisprudncia e, quando oportuno, emitiremos alguns comentrios so-bre os aspectos que entendemos preponderantes.

  • Com a publicao do livro Possibilidades Jurdicas de Combate ao Trabalho Escravo, a Organizao Internacional do Trabalho cumpre uma de suas misses, ao apoiar iniciativas nacionais centradas na promoo dos princpios e direitos fundamentais no trabalho no Brasil. A publicao desses artigos, escritos por especialistas e conhecedores do tema, foi demandada explicitamente OIT pela Comisso Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo (CONATRAE), importante instrumento de coordenao, que rene governo, organizaes de empregadores, trabalhadores e demais setores da sociedade civil e a responsvel pelo monitoramento da implementao do Plano Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, lanado pelo presidente da Repblica em 14 de maro de 2003.

    O relatrio do diretor geral da OIT Uma Aliana Global contra o Trabalho Forado, publicado em maio de 2005, reconheceu o Brasil como um dos exemplos mundiais no combate a essa grave violao dos direitos humanos e dos direitos fundamentais no traba-lho. De fato, o nmero recorde de libertao de trabalhadores submetidos ao trabalho em condies anlogas escravido em mais de dez anos mostra que o Brasil conseguiu avan-ar na mobilizao da conscincia nacional e nos mecanismos de represso a esse crime.

    No entanto, todos os que esto envolvidos na luta pela erradicao do trabalho escravo, que constitui uma das principais antteses da prpria noo de trabalho decente e, por isso mesmo, uma das prioridades da Agenda Nacional de Trabalho Decente, lanada em maio de 2006, sabem que tambm necessrio prosseguir na modernizao e aperfeioamento da legislao que pune os crimes relacionados ao trabalho escravo, assim como no reforo das polticas de preveno e reinsero.

    Com a publicao deste livro, a OIT orgulha-se de participar do esforo de continuar contribuindo para o combate ao trabalho escravo no Brasil.

    Las Abramodiretora do escritrio da OIT no Brasil

  • A implementao do Plano Nacional para a Erradicao do Trabalho Escravo, lanado em 2003 pelo excelentssimo senhor presidente Luiz Incio Lula da Silva, tem atingido importantes resultados. Entre eles destacamos a criao do Cadastro de Empregado-res pelo Ministrio do Trabalho e Emprego, a definio do Supremo Tribunal Federal pela competncia da Justia Federal para julgamento do crime previsto no art. 149 do Cdigo Penal e os crescentes resultados de resgate de trabalhadores da condio anloga de escravo.

    O evento realizado em parceria com a Organizao Internacional do Trabalho, em novembro de 2006, alm de contribuir para aprofundar a discusso dos aspectos penais e trabalhistas relacionados ao tema, teve o importante papel de aprofundar a discusso a respeito da atuao dos auditores fiscais do trabalho, procuradores do trabalho, procuradores da Repblica e policiais federais.

    A Organizao Internacional do Trabalho, parceira essencial na implementao dessa poltica pblica, edita, agora, os textos do seminrio para conhecimento dos parcei-ros no governamentais e demais instituies interessadas no tema.

    Sem dvida, o conjunto dos textos publicados se constituir em importante fer-ramenta para um melhor enfrentamento das situaes fticas, possibilitando uma atuao mais eficaz do conjunto das instituies na busca da erradicao do trabalho escravo. Ruth Beatriz V. Vilelasecretria de Inspeo do Trabalho

  • O Ministrio do Trabalhoe Emprego e os Subsdios

    para Defesa Judicialda Unio nas Aes Relativasao Cadastro de Empregadores

    do Trabalho Escravo

    Daniel de Matos Sampaio Chagasauditor-fiscal do trabalho lotado na Secretaria de Inspeo do Trabalho SIT. Ps-graduado em Ordem Jurdica e

    Ministrio Pblico pela Escola Superior do Ministrio Pblico do Distrito Federal e Territrios - ESMPDFT. Professor do Curso de Cincias Jurdicas do Instituto de Educao Superior de Braslia - IESB

  • 1. O Epteto Lista Suja

    Talvez o primeiro questionamento que nos caiba fazer, precedendo nossas demais consideraes, diga respeito justamente utilizao do epteto Lista Suja para de-signar o cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004 do Ministrio do Trabalho e Emprego (MTE), que agrupa os nomes de empregadores flagrados na explorao de trabalhadores em condies anlogas s da escravido e condenados administrati-vamente pelas infraes legislao do trabalho. Em verdade, o epteto Lista Suja representa, intencionalmente ou no, uma forma de estigmatizao. No entanto, o adjetivo sujo talvez represente um eufemismo para qualificar algumas das prticas que so constatadas pelo Grupo Especial de Fiscalizao Mvel (GEFM), pois os em-pregadores no se cansam de inovar nas formas de degradar os trabalhadores.

    Curiosamente, no entanto, a utilizao do epteto Lista Suja parece projetar tam-bm um efeito reverso, qual seja, o de vitimizar os empregadores includos no refe-rido cadastro de modo a permitir que, no bojo das mais diversas aes judiciais com que tentam ver seus nomes excludos do cadastro, tentem sensibilizar o Poder Judici-rio para a obteno de decises favorveis, em especial as de carter liminar sem a oitiva da Unio Federal. Nesses casos, os empregadores quase sempre se apresentam como indivduos produtivos e altrustas que empreendem seus negcios com vistas ao crescimento do pas, gerando empregos e pagando impostos. Dentro desse con-texto, o fato de cometer irregularidades trabalhistas modo como usualmente se

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    referem s prticas que caracterizam o trabalho escravo parece-lhes algo normal e corriqueiro. Igualmente, julgam absurda a possibilidade de que sejam surpreendidos com a incluso de seus nomes num cadastro que os exponha ao pblico de forma negativa, bem como de que lhes seja imposta uma insuportvel restrio, qual seja, a do acesso a crditos e financiamentos bancrios.

    Desse modo, a utilizao da referida designao envolver sempre um ganho e um prejuzo imediatos. Em regra, temos optado, em vista do que argumentamos, pela uti-lizao da locuo cadastro de empregadores institudo pela Portaria n. 540/2004, o que nos parece adequado sob o ponto de vista tcnico-jurdico.

    2. Das Aes Ajuizadas pelos Empregadores

    Se tomarmos por base as aes at agora oferecidas perante o Poder Judicirio e que buscam a excluso do nome de seus autores do cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004, podemos afirmar que se dividem em dois grandes grupos: i) mandados de segurana; ii) aes anulatrias de ato administrativo. O objetivo perseguido , sis-tematicamente, o mesmo: a excluso do nome do autor ou impetrante do cadastro. Igualmente comuns so os reiterados pedidos de liminar, algumas vezes atendidos pelo Poder Judicirio sem a oitiva da parte contrria (Unio Federal).

    No caso do mandado de segurana, o impetrante quase sempre se fundamenta em dispositivos constitucionais e legais, que vo do princpio da legalidade presuno de inocncia, passando pela livre iniciativa, o devido processo legal e, em alguns casos (pasmem!), a funo social da propriedade. Nessa ao mandamental, discute-se ma-tria de carter eminentemente jurdico, no havendo praticamente nenhum espao para dilao probatria, razo pela qual tambm so comuns argumentos relaciona-dos ausncia de condenao penal na justia comum, ilegalidade do cadastro, efetivao do pagamento das multas administrativas impostas, entre outros.

    Nas aes anulatrias de ato administrativo, bom esclarecer que o ato cuja anulao se pretende declarar no o da imposio das multas administrativas ao final dos processos que julgam os autos de infrao no Ministrio do Trabalho e Emprego, mas sim o ato subseqente da incluso do nome do infrator no cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004. Embora aqui, diferentemente do que sucede no mandado de segurana, haja amplo espao para dilao probatria, raras so as vezes em que os empregadores oferecem a indicao de como pretendem provar o que alegam.

    No seria exagero concluir que as aes citadas, mandado de segurana e ao anula-tria de ato administrativo, so utilizadas quase que indiscriminadamente, objetivando

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    a mesma finalidade e, muitas vezes, manejadas de forma sucessiva pelas partes. No bastasse, so muitas vezes ajuizadas diante tanto da Justia do Trabalho como tam-bm da Justia Federal, noutras se repetem em territrios diferentes. Litispendncia, coisa julgada e conflitos de competncia material e territorial j foram constatados em alguns casos. H um caso em que uma sentena penal proferida em processo que tramitava na justia comum estadual ordenou a retirada do nome do infrator do ca-dastro, o que nos pareceu, claramente, um julgamento extra petita.

    H, nas aes e nos argumentos trazidos pelos empregadores includos no cadastro, uma enorme cadeia de sofismas e inverdades. Muitos deles, lamentavelmente, logra-ram xito, em especial nas primeiras aes e mandados de segurana ajuizados logo aps a edio do cadastro, quando foram deferidas tutelas que asseguraram a muitos dos empregadores que se locupletaram do trabalho escravo a excluso do cadastro. Contudo, pouco a pouco, o Poder Judicirio vai sinalizando na direo oposta e cons-truindo um juzo mais bem delineado sobre o tema. So cada vez mais freqentes os julgados nos quais se adota posio firme no sentido de reconhecer a legalidade e a constitucionalidade do cadastro. Posio inversa indicaria praticamente um sinal verde para que o trabalho escravo, a despeito do seu combate incidental, viesse a se tornar um problema acerca do qual as aes empreendidas pelo Estado e demais atores sociais no representassem mais que paliativos.

    Acreditamos que a Unio Federal, cujas defesas so feitas em regra pela Advocacia-Geral da Unio (AGU) e para as quais contribumos com subsdios fticos e jurdicos em todos os casos, tenha exercido papel preponderante ao apresentar, no apenas os relatrios produzidos pelo Grupo Especial de Fiscalizao Mvel (GEFM), mas tambm algumas consideraes jurdicas. Tais consideraes, sem ter a pretenso de esgotar a discusso do cadastro, buscaram sempre auxiliar no sentido de permitir AGU e ao Poder Judicirio formar seu convencimento acerca no s da realidade concreta vivenciada pela Fiscalizao do Trabalho a cada operao do Grupo Mvel, mas tambm dos fundamentos jurdicos que militam em favor da adoo do cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004 como medida fundamental das polticas pblicas voltadas para a erradicao do trabalho escravo.

    A seguir, trataremos de forma sucinta, e sem descartar a crtica ou a reviso de juzos mais depurados, dos principais temas que tm sido aviados no bojo das aes ofere-cidas por empregadores cujos nomes foram inscritos no cadastro. Em alguns casos, arrolaremos jurisprudncia e, quando oportuno, emitiremos alguns comentrios so-bre os aspectos que entendemos preponderantes.

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    2.1. Constitucionalidade e Legalidade da Portaria n. 540/2004

    praticamente invarivel a alegao de que a Portaria n. 540/2004 (originalmente Portaria n. 1.234/2003) padeceria de vcio de constitucionalidade e/ou de legalidade, uma vez que teria sido editado um ato administrativo sem amparo no ordenamento jurdico, dizer, sem lei que lhe desse respaldo.

    No que se refere constitucionalidade, acreditamos que no faltam argumentos para justificar a edio do ato. Primordialmente, reportamo-nos ao artigo 1, que enumera os fundamentos da Repblica Federativa do Brasil enquanto Estado Democrtico de Direito, a saber: a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (incisos II, III e IV). J entre os princpios gerais da atividade econmica, os quais deveriam nortear as condutas de qualquer empregador, encontramos a afirmao no prprio caput do artigo 170 de que a ordem econmica fundada na valorizao do trabalho humano e da livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos uma existncia digna, conforme os ditames da justia social e observados, entre outros princpios, a funo social da proprie-dade (inciso III). A seu turno, o artigo 186 da Constituio assevera que a funo social cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente e segundo critrios e graus de exigncia estabelecidos em lei, a alguns requisitos, dentre os quais a observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho e uma explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos trabalhadores (incisos III e IV).

    Exemplificativamente (pois a jurisprudncia j vultosa nesse sentido), o Tribunal Re-gional do Trabalho (TRT) da 10 Regio reconheceu a constitucionalidade da Portaria n. 540/2004 em julgado realizado em 15 de fevereiro de 2006 (processo: RO 00717-2005-006-10-00-8). Vejamos:

    PORTARIA 540/2004, DO MINISTRIO DO TRABALHO E EMPREGO. CONSTI-TUCIONALIDADE. A portaria em tela apenas cuida da criao do cadastro de empre-gadores autuados administrativamente pela utilizao de trabalhadores em condio anloga de escravo; bem como das condies de incluso e excluso de nomes nele. Nada versa sobre a imposio de penalidades ou restries aos que vierem a integrar este cadastro, razo pela qual no haveria mesmo que se exigir um processo admi-nistrativo ou judicial prvios como pr-condio para nomes sejam includos neste cadastro. Se restries administrativas decorrem deste cadastro, elas no deuem, de forma direta, do texto da referida portaria. Outrossim, os includos neste cadastro no esto cerceados em sua oportunidade de buscar rever tal deciso, seja pela via adminis-trativa (ante o direito de petio que pode ser exercido livremente por ele - CF, art. 5, XXXIV, a), seja pela via judicial (dada a inafastabilidade do controle jurisdicional - CF, art. XXXV). Outrossim, esta portaria, por somente organizar os registros e a documentao de dados obtidos na atividade j legalmente incumbida ao Ministrio do Trabalho e Emprego (a scalizao e represso administrativas das eventuais irre-gularidades havidas nas relaes de trabalho) acha suciente amparo no ordenamento

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    jurdico. Mesmo a ordem constitucional j outorgaria, em si, pleno amparo s medidas de regramento administrativo interno destinadas documentao de uma violao to grave nas relaes de trabalho, a saber, o estabelecimento da dignidade da pessoa humana e da valorizao social do trabalho como princpios fundamentais de toda o or-denamento jurdico (CF, art. 1, III e IV), aliados ao comando constitucional para que a propriedade observe sua funo social, funo esta que, em se cuidando da proprieda-de rural, est tambm vinculada, por expressa norma da Carta Federal, observncia do regramento relativo s relaes de trabalho e ao bem-estar do trabalhador (arts. 170, III e 186, III e IV). Recurso ordinrio da autora conhecido e desprovido.

    No mesmo sentido, ainda que com fundamento diverso, trazemos outro julgado, des-ta feita proferido pelo TRT da 8 Regio (processo: RO 00610-2005-112-8-00-0):

    CADASTRO NEGATIVO. TRABALHO ESCRAVO. LEGALIDADE. Ao aditar a Por-taria n. 540/04, criando o Cadastro Negativo dos Empregadores, o Ministrio do Tra-balho e Emprego nada mais fez do que, dentro de sua competncia, buscar dar cum-primento ao art. 5, 1, da CF/88, que impe a todos os poderes pblicos o dever de maximizar a eccia dos direitos fundamentais, objetivando dar efetividade ao princpio constitucional da dignidade da pessoa humana. Recurso provido.

    Mas, em que pese a clareza das disposies constitucionais retro mencionadas, h sempre aqueles que postergam a eficcia das normas constitucionais apontando, en-tre outros argumentos, a necessidade de que uma lei ordinria venha a intermediar as aes que pretendam aplic-las. Ainda que discordemos pois entendemos que, afora a existncia de leso ou risco de leso a direito, no h que se limitar a eficcia de dispositivos constitucionais , acreditamos ser possvel extrair fundamento de validade para a Portaria n. 540/2004 a partir de alguns dispositivos das convenes das quais o Brasil signatrio e que, consoante entendimento majoritrio da jurispru-dncia, vigem entre ns com fora de lei ordinria.

    Dentro desse contexto, no qual o Brasil vinculou-se a compromissos internacionais no sentido de erradicar o trabalho escravo, podemos destacar, sem prejuzo de outros instrumentos, as Convenes da OIT n. 29 (Decreto n. 41.721/1957) e n. 105 (Decreto n. 58.822/1966), a Conveno sobre Escravatura de 1926 (Decreto n. 58.563/1966) e a Conveno Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica Decreto n. 678/1992); todas plenamente compatveis com a Carta Constitucional de 1988 e contendo dispositivos que prevem a adoo imediata de medidas de qualquer natureza (legislativas ou no) necessrias para a erradicao do trabalho escravo.

    Vejamos, inicialmente, o que nos informa o Pacto de San Jos da Costa Rica em seus artigos 2 e 6 (item 1):

    Art. 2 - Dever de adotar disposies de direito interno.

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    Se o exerccio dos direitos e liberdades mencionados no art.1 ainda no estiver garan-tido por disposies legislativas ou de outra natureza, os Estados-Partes comprome-tem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposies desta Conveno, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessrias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.

    Art. 6

    1. Ningum pode ser submetido escravido ou servido, e tanto estas como o tr-co de escravos e o trco de mulheres so proibidos em todas as formas. (grifamos)

    Note-se que o Pacto de San Jose tanto prev a adoo de medidas de outra natureza no direito interno que no a mera edio de leis para efetivao dos direitos e liberdades tuteladas, como tambm esboa um conceito elstico abrangendo todas as formas de escravido ou servido, o que tambm se revela oportuno na medida em que mitiga eventuais imbrglios conceituais.

    Sob tal perspectiva, relevante assinalar que a Conveno n. 105 da OIT determina-va a adoo de medidas eficazes de combate ao trabalho escravo, sem que se tenha limitado o seu espectro, ou seja, a obrigao de adotar medidas no se circunscreve mera edio de leis ou regulamentos. Ao revs, parece-nos a melhor interpretao aquela em que o Estado poder, respeitados os direitos e garantias fundamentais, bem como as limitaes formais e materiais do ato administrativo, editar atos e re-alizar aes executivas especficas que sejam preconizadas como eficazes para o en-frentamento do problema (o que se revela um fundamento de validade tanto para o destacamento de fiscalizao conhecido como Grupo Especial de Fiscalizao Mvel como tambm para o cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004). A seguir, repro-duzimos o artigo 2 da citada conveno:

    Art. 2 - Qualquer Membro da Organizao Internacional do Trabalho que ratique a presente conveno se compromete a adotar medidas ecazes, no sentido da abolio imediata e completa do trabalho forado ou obrigatrio, tal como descrito no art. 1 da presente conveno.

    Tambm imprescindvel mencionar o que dispe a Conveno Suplementar de 1956 sobre a Abolio da Escravatura, do Trfico de Escravos e das Instituies e Prticas Anlogas Escravatura, cujo artigo 1 nos parece tambm bastante esclare-cedor acerca da caracterizao do trabalho escravo, em especial as alneas a e b:

    Art. 1 - Cada um dos Estados-Partes presente Conveno tomar todas as medi-das, legislativas e de outra natureza, que sejam viveis e necessrias, para obter pro-gressivamente e logo que possvel a abolio completa ou o abandono das instituies e prticas seguintes, onde quer ainda subsistam, enquadrem-se ou no na denio de escravido que gura no artigo primeiro da Conveno sobre a escravido assinada em

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    Genebra, em 25 de setembro de 1926:

    a) a servido por dvidas, isto , o estado ou a condio resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dvida, seus servios pessoais ou os de algum sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses servios no for eqitativamente avaliado no ato da liquidao da dvida ou se a durao desses servios no for limitada nem sua natureza denida;

    B) a servido, isto , a condio de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo cos-tume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remunerao ou gratuitamente, determinados servios, sem poder mudar sua condio; (grifamos)

    Em 29 de agosto de 2006, em juzo de admissibilidade que negou seguimento a um recurso de Revista interposto por empregador insurgente contra deciso que mante-ve seu nome no cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004, o TRT da 8 Regio foi claro tanto com relao constitucionalidade do cadastro como tambm sua vincu-lao aos compromissos internacionais dos quais o Brasil Estado-Parte (processo: RO - 00610-2005-112-8-00-0). Vejamos:

    Por m, o recorrente se insurge com a determinao exarada no r. acrdo de s. 806-817, de reinclu-lo no Cadastro de Empregadores do Trabalho Escravo, regulado pela Portaria n. 540/04, do Ministrio do Trabalho e Emprego, por consider-la viola-dora de seus direitos e contrria s normas jurdicas em vigor, alm de causar srios e irremediveis transtornos a sua pessoa e a seus familiares.

    Aduz, em sntese, que: 1) todas as irregularidades apuradas nas scalizaes e regis-tradas nos autos de infrao j foram regularizadas pelo recorrente junto Delegacia Regional do Trabalho - DRT e Justia do Trabalho; 2) ao recorrente no foi garantido o direito ao devido processo legal, j que foi julgado e condenado sumariamente pelo Ministrio do Trabalho e Emprego, sem direito a qualquer defesa; 3) quando das lavra-turas dos diversos autos de infrao no existia qualquer hiptese de criao do cadas-tro em comento, nem tipicao criminal do chamado trabalho escravo, pelo que estes no podem retroagir para atingir o recorrente; 4) a Portaria n. 540/04, determina que aps 2 (dois) anos da inscrio do nome do infrator no referido cadastro o mesmo dever ser excludo, o que no foi observado pela r. deciso recorrida, pois mesmo j tendo passado o referido perodo, o e. Regional mandou reinclu-lo no cadastro; 5) no existe previso legal para a criao da Portaria n. 540/04, pelo que reconhecer sua validade e conseqncias afronta o princpio da legalidade; e 6) o recorrente no foi considerado culpado em nenhum crime. Entende ter direito lquido e certo excluso de seu nome do cadastro restritivo, em carter denitivo. Alega ofensa aos artigos 5, incisos II, XXXIX, LIV, LV e LVII, da Constituio da Repblica, e 1 do CPB, bem como a existncia de conito de teses acerca da matria, o que pretende demonstrar com os arestos transcritos s s. 890-894 e 906-907 dos autos.

    Assim decidiu a e. Turma Julgadora, verbis:

    Antes de proceder anlise da Portaria que o autor inquina de violadora dos prin-

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    cpios constitucionais da legalidade e da publicidade, h que se ressaltar que a CF/88 representou um marco na redemocratizao do Brasil, a ponto de ter, em seu pre-mbulo, destacado que objetivava instituir um Estado Democrtico de Direito, noo indissociavelmente relacionada realizao dos direitos fundamentais, destacando-se, dentre eles, o da cidadania e o da dignidade da pessoa humana.

    Cabe salientar, tambm, que, pela Emenda Constitucional n. 45/04, passou a constar do 3 do artigo 5 da CF/88 que os tratados e convenes internacionais sobre direi-tos humanos, especicamente, in casuas Convenes 29 e 105 da OIT e o Pacto de San Jose da Costa Rica (Conveno Americana sobre Direitos Humanos, de 1992), aprova-dos pelo Congresso, so equivalentes s emendas constitucionais, ressaltando-se que todos eles vedam a escravido e a servido em todas as suas formas.

    Ora, cedio que reduzir algum condio anloga de escravo fere os direitos fundamentais acima referidos, de tal sorte que o Poder Pblico, em suas diferentes esferas, tem o dever de adotar todas as medidas necessrias para coibir tal prtica.

    O Judicirio o faz atravs do julgamento dos processos que so ajuizados pelas partes. O Legislativo, pela criao de diplomas legais. J o Executivo deve agir no exerccio de seu poder de polcia, scalizando, adotando medidas administrativas e editando atos administrativos, como as portarias.

    No caso concreto, ao editar a Portaria n. 540/04, o Ministrio do Trabalho e Em-prego nada mais fez do que, dentro de sua competncia, buscar dar cumprimento Constituio Federal, precisamente ao disposto no 1 do art. 5, que impe a todos os poderes pblicos o dever de maximizar a eccia dos direitos fundamentais, ob-jetivando dar efetividade ao princpio constitucional da dignidade da pessoa humana. - s. 811-812.

    O apelo no merece prosperar. Ao contrrio do que alega a recorrente, a r. deciso impugnada no ofende o princpio da legalidade, pois se arrima em princpios expressos inscritos na Lei Maior. A edio da Portaria n. 540/04 respalda-se, como bem observou a e. Turma julgadora, nos princpios da cidadania e da dignidade da pessoa humana, inscritos no art. 1, incisos II e III, da Carta Magna.

    O direito ao devido processo legal, ao contraditrio e ampla defesa restaram inclu-mes, na medida em que a incluso do recorrente na chamada lista suja dos emprega-dores s ocorreu aps regular processo administrativo, nos exatos termos da Portaria supracitada.

    Outrossim, no h se falar em ofensa ao princpio da irretroatividade da lei penal, eis que a controvrsia passa ao largo da hiptese de condenao penal.

    Ademais, como se v, a interpretao dada aos dispositivos constitucionais se mostra razovel, o que obsta a admisso do apelo nos termos da Smula n. 221, item II, do c. TST.

    Por m, observo que os arestos trazidos colao no se prestam ao confronto de teses, eis que oriundos de rgos no elencados no art. 896, alnea a, da CLT.

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    2.2. Natureza Declaratria e Informativa do Cadastro, Requisitos de In-cluso e Ausncia de Efeitos Punitivos

    Um dos argumentos mais comumente aduzidos pelos empregadores que ingressam na Justia o de que a incluso de seus nomes no cadastro representaria uma penali-dade e, como tal, haveria de estar prevista em lei. Entendemos no lhes assiste razo, pois a racionalidade da instituio do cadastro selecionar, em virtude da gravidade e da intensidade, as infraes flagradas pela fiscalizao e reuni-las num cadastro especfico para fins de informar a outros rgos e entidades comprometidos com a erradicao do trabalho escravo, cuja atuao pode ser favorecida ou potencializada pelo acesso informao. Trata-se no de uma prerrogativa do Estado, mas de um autntico dever, haja vista que a informao sobre casos em que houve flagrante de escravido e posterior condenao administrativa nos processos administrativos oriundos da lavratura de autos de infrao no uma informao que possa ou deva ser apropriada pelo Ministrio do Trabalho e Emprego.

    E nem poderia ser diferente, afinal, seria contraproducente que o Governo Federal viesse a, por intermdio da ao do Ministrio do Trabalho e Emprego, reprimir o trabalho escravo ao mesmo tempo em que outro rgo ou ente, por desconhecer a ao do primeiro, viesse a estimul-lo ou mesmo a ignor-lo. Da eventual desarticu-lao de polticas pblicas que geralmente se aproveitam os particulares que desen-volvem suas atividades ao arrepio dos valores que protegem a dignidade humana.

    Tambm o fato de que o cadastro pblico no nos parece atentar contra nenhum direito dos empregadores, haja vista que no h norma de sigilo que os guarnea nesse caso. E nem poderia haver, considerando que, afora o momento inicial quando a ao planejada e h o deslocamento da equipe do Grupo Especial de Fiscalizao Mvel (GEFM) at o local da denncia (hiptese em que h sigilo apenas para efeito de assegurar maiores chances de eficcia da ao fiscal), os demais procedimentos no correm ou tramitam sob qualquer proteo de sigilo. Alis, uma vez encerrado o processo administrativo, no qual a parte autuada pode exercitar o contraditrio e a ampla defesa, do interesse da sociedade conhecer os fatos apurados e sobre os quais pesa deciso administrativa final no mais sujeita a recurso.

    A incluso do nome do infrator no cadastro feita desde que atendidos sucessiva-mente dois requisitos essenciais: i) flagrante constatado pela fiscalizao no que se refere sujeio de trabalhadores submetidos a condies anlogas s de escravo; ii) e que, no curso dessa ao, sejam lavrados autos de infrao que, submetidos ao crivo do contraditrio e da ampla defesa em regular processo administrativo, venham a resultar em deciso final que aplique penalidade de multa ao empregador.

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    Desse modo, sustentamos que o cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004, na medida em que se reporta a eventos passados, ou seja, processos administrativos com deciso final em que foram condenados os infratores includos, possui natureza meramente declaratria e atende a uma finalidade especfica que a de informar ter-ceiros e a sociedade sobre ocorrncias de enorme gravidade j devidamente apuradas em processo administrativo finalizado. Mais que isso, a Portaria no constitui um novo status jurdico para os que nela constam e nem cria qualquer sano.

    A Justia Federal, em que pese as divergncias sobre sua competncia para aprecia-o da matria, j proferiu entendimento que segue a referida linha de raciocnio. Vejamos:

    Quanto legalidade da lista em si, comporta observar que, luz da Portaria institui-dora, evidencia-se o seu carter puramente administrativo e informativo direcionado aos rgos que integram a Administrao Federal, em face do que, primeira vista, no se colhe o carter punitivo ao qual se refere o postulante, de modo a ofender as regras constantes do inciso LIV e seguintes do art. 5 da Constituio Federal (deciso de 5 de julho de 2005, Justia Federal de 1 Instncia Seo Judiciria do Par Subseo Marab processo n. 2005.39.01.001038-9)

    No obstante, tambm a Justia do Trabalho, em julgado do TRT da 10 Regio pu-blicado em 15 de setembro de 2006, j se manifestou na mesma direo, conforme julgado, cuja ementa se transcreve a seguir:

    CADASTRO DE EMPREGADORES QUE UTILIZAM MO-DE-OBRA EM CONDI-ES ANLOGAS S DE ESCRAVO (LISTA SUJA). CONSTITUCIONALIDADE DA PORTARIA.

    INCLUSO DO NOME DO IMPETRANTE. VALIDADE DO ATO. MANDADO DE SEGURANA. DENEGAO.

    A edio da Portaria n. 540/2004, do MTE, empresta reverncia aos fundamentos do Estado Democrtico de Direito, com destaque para a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (CF, art. 1, inciso III e IV). Amolda-se a iniciativa ministerial, tambm, ao axioma constitucional que persegue a valorizao do trabalho humano e a funo social da propriedade, encartado no artigo 170, da Carta Poltica, erigindo-se em instrumento ecaz e indispensvel para que o Estado brasi-leiro atenda ao compromisso internacional de combater a chaga do trabalho escravo em nosso territrio. O ato de incluso do nome do empregador na lista em cogitao no encerra ato punitivo, tendo o cadastro natureza meramente informativa, no se evidenciando, pois, ilegalidade no ato praticado pela autoridade pblica. Segurana que se denega. Provimento que se concede ao recurso ordinrio. (processo: RO - 00443-2005-007-10-00-3).

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    O TRT da 10 Regio manteve assim a mesma linha do julgado publicado em 24 de fevereiro de 2006, cuja ementa transcrevemos parcialmente:

    PORTARIA 540/2004, DO MINISTRIO DO TRABALHO E EMPREGO. CONSTI-TUCIONALIDADE. A portaria em tela apenas cuida da criao do cadastro de empre-gadores autuados administrativamente pela utilizao de trabalhadores em condio anloga de escravo; bem como das condies de incluso e excluso de nomes nele. Nada versa sobre a imposio de penalidades ou restries aos que vierem a integrar este cadastro, razo pela qual no haveria mesmo que se exigir um processo admi-nistrativo ou judicial prvios como pr-condio para nomes sejam includos neste cadastro (processo: RO 00717-2005-006-10-00-8).

    Constatamos assim que a portaria em questo cuida, alm do encaminhamento das informaes, da instituio do cadastro e das condies para incluso, monitoramen-to e excluso dos empregadores, no havendo qualquer repercusso que importe em sano ou prejuzo aos empregadores. Alegar que a simples publicidade j represen-taria em si um prejuzo nos parece incuo, haja vista que a informao por si s j era pblica e considerando tambm que, sob a perspectiva do interesse pblico, seria insustentvel que o Estado no a divulgasse.

    2.3. Restrio ao Crdito.

    Em que pese j termos mencionado a questo relativa ausncia de efeitos punitivos, merece ateno especial aquela relacionada restrio ao crdito, argumento que, no raro, invocado pelos empregadores em aes judiciais para respaldar o pericu-lum in mora (perigo da demora), requisito essencial para a obteno de provimentos liminares de natureza satisfativa. Alegam os empregadores, fundamentalmente, que a incluso de seus nomes no cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004 ser-lhes-ia prejudicial por impedir o acesso a financiamentos e benefcios bancrios conforme previso de outro instrumento, a saber, a Portaria n. 1.150/2003, do Ministrio da Integrao Nacional (MIN). Da ausncia de recursos oriundos desses financiamentos e benefcios resultaria a inviabilizao do empreendimento econmico.

    Dentro desse quadro, extremamente corriqueiro no bojo das aes referidas, temos defendido sistematicamente que, mesmo nos casos em que o juiz resolva conceder a tutela liminar sob o argumento de que haveria prejuzo ou risco para o empreen-dimento econmico, a tutela invocada (retirada do nome do infrator do cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004) no se revelaria a mais adequada. Bastaria que o Judicirio dirigisse uma ordem ao Ministrio da Integrao Nacional (MIN) para que cumprisse uma obrigao de no-fazer, isto , para que desconsiderasse as informa-

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    es encaminhadas em funo da Portaria n. 540/2004 do MTE e no recomendasse aos agentes financeiros que se abstivessem de conceder os financiamentos e bene-fcios aos infratores cujos nomes estivessem includos no cadastro. Indo mais alm, poderamos vislumbrar tutela ainda mais especfica, qual seja, a de se determinar di-retamente s instituies financeiras que desconsiderassem a recomendao do MIN enquanto perdurassem os efeitos da tutela liminar.

    Perceba-se, assim, que o prejuzo alegado pelos empregadores para efeito de carac-terizar o periculum in mora, relativo restrio ao crdito bancrio, no decorre da incluso do nome do infrator no cadastro, e tambm no decorre necessariamente da recomendao expedida pelo Ministrio da Integrao Nacional (MIN), mas sim de um ato privativo praticado pelas prprias instituies financeiras, que possuem autonomia para a anlise dos riscos econmicos e sociais de seus negcios. Nesse sentido, as informaes de que algum foi flagrado pela Inspeo do Trabalho come-tendo infraes que caracterizam o trabalho escravo e de que foi posteriormente condenado em regular processo administrativo so elementos importantes para a instituio financeira analisar e decidir se concede ou no os crditos solicitados.

    Isso sem considerar ainda a manifesta possibilidade de que o empregador seja conde-nado numa ao civil por dano coletivo movida pelo Ministrio Pblico do Trabalho (MPT), na qual o valor de uma eventual condenao pode afetar sensivelmente a capacidade do empregador de quitar a dvida com a instituio financeira.

    Acreditamos que no existe direito lquido e certo ao crdito bancrio a quem quer que seja, isto , no se pode constranger uma instituio a emprestar ou no dinheiro a uma dada pessoa fsica ou jurdica, mormente quando desatenda ostensiva e com-provadamente a parmetros estipulados no ordenamento jurdico. Ora, na medida em que os empregadores no podem se voltar contra o ato autnomo e privado da instituio financeira, voltam-se contra a Portaria n. 540/2004 na tentativa estril de impedir que a informao a seu respeito seja includa dentre os elementos de con-vico para que o agente financeiro decida se concede ou no o crdito ou benefcio pleiteado.

    Tanto assim que se nos valermos de uma leitura rigorosa da cadeia de atos que po-deriam dar ensejo restrio de crdito, concluiramos sem dificuldade que:

    I) A Portaria n. 540/2004 do Ministrio do Trabalho e Emprego determina a incluso do nome do infrator no cadastro para fins de informar outros rgos e entidades sobre a condenao final em processo administrativo de uma pessoa fsica ou jurdica que cometeu infraes relacionadas explorao do trabalho escravo;

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    II) Logo, a natureza do ato meramente declaratria na medida em que se reporta a eventos pretritos cuja certificao foi devidamente apurada em processo adminis-trativo crivado pelo contraditrio e pela ampla defesa, e no mais sujeito a qualquer tipo de recurso nesta seara;

    III) A informao constante no cadastro remetida a oito rgos e entidades de modo a permitir a melhor articulao das polticas pblicas, bem como o desenvolvi-mento das respectivas competncias autnomas;

    IV) Em nenhum momento, a Portaria n. 540/2004 sanciona qualquer empregador, to-somente mantm, por dois anos, o repasse a outros rgos e entidades da infor-mao de que aquele foi flagrado e condenado nas prticas j descritas;

    V) O Ministrio da Integrao Nacional (MIN) apenas um dos oito destinatrios desta comunicao (art. 3, III, da Portaria n. 540/2004);

    VI) No por fora da Portaria n. 540/2004 do MTE que as instituies financeiras so informadas sobre os infratores includos neste cadastro, mas sim por ato execu-tado pelo MIN, regulado por outro ato, qual seja, a Portaria n. 1.150/2003 daquele Ministrio. Ausente, portanto, o nexo de causalidade direto e especfico entre a incluso do nome do infrator no cadastro do MTE e a negativa de crdito ou finan-ciamento bancrio. Nesse contexto, acaso admitssemos excluir o nome do infrator do cadastro, estaramos dando aos empregadores mais do que necessrio para a tutela de seus interesses, pois os efeitos da deciso seriam ampliados, impedindo que todos os demais rgos e entidades listados na Portaria n. 540/2004 tomassem conhecimento do ocorrido.

    VII) Logo, os efeitos pleiteados pelos empregadores poderiam ser obtidos, no com a excluso do seu nome do cadastro, mas com ordem judicial dirigida ao MIN para que no informe seus nomes s instituies financeiras, conforme prescreve a Portaria n. 1.150/2003;

    VIII) Todavia, mesmo neste caso, a providncia judicial no nos parece cabvel na medida em que o MIN apenas recomenda aos agentes financeiros que se abstenham de conceder financiamentos e outros benefcios s pessoas includas no cadastro do MTE;

    IX) No se pode transformar uma recomendao numa ordem, isto , para efeito de defender os supostos direitos que alegam possuir os empregadores, no poderamos afirmar que as instituies financeiras foram obrigadas pelo MIN a no lhes conceder financiamentos e outros benefcios;

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    X) Ao revs, o ato final que restringe ou no o acesso ao crdito um ato privativo e autnomo da instituio financeira, a quem cabe a anlise dos riscos de seus neg-cios;

    XI) Os empregadores, na medida em que no podem discutir a autonomia do ato dos agentes financeiros que eventualmente venham a negar-lhes o crdito, buscam evitar que a informao chegue ao conhecimento destes e direcionam seus esforos tentan-do estabelecer uma possvel natureza punitiva para o cadastro do MTE;

    XII) Como dito, se uma eventual antecipao de tutela ou provimento liminar em mandado de segurana retirar o nome de um empregador do cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004, todos os rgos e entidades referidos no art. 3 da Portaria 540/2004 deixaro de ter acesso informao sobre a situao de flagrncia e poste-rior condenao administrativa que recaiu sobre o empregador;

    XII) A eventual excluso tambm acentuaria o risco para os prprios agentes finan-ceiros, os quais, alijados da informao, perderiam um elemento importante para for-mar sua convico sobre os riscos econmicos e sociais de sua atividade e poderiam, em vista disso, conceder recursos sob a superviso do MIN para financiar a atividade dos infratores.

    2.4. Da Desnecessidade de Condenao Penal

    A alegao de que a incluso do nome do empregador no cadastro deveria ser ne-cessariamente precedida de condenao na esfera criminal outro dos argumentos mais corriqueiros presentes nas peties iniciais das aes retro mencionadas. Quase sempre sustentam o argumento com base na presuno de inocncia prescrita na Constituio Federal e na inexistncia de dispositivos legais que tratem do trabalho escravo no pas, que no o do artigo 149 do Cdigo Penal. Nesses casos, h uma mistura de confuso e desconhecimento. Confuso no que se refere independncia das instncias administrativa e penal e desconhecimento em relao aos instrumentos internacionais j citados, que referendam o compromisso do Brasil em erradicar o trabalho escravo.

    Ressalvadas algumas situaes especficas, as instncias administrativa e penal so independentes entre si. Vale dizer, perfeitamente possvel que uma mesma conduta seja reprimida na seara penal sob a forma de um tipo incriminador e tambm o seja no mbito administrativo por fora de convenes internacionais (com fora de lei ordinria) das quais o Brasil signatrio. No h, em princpio, vinculao expressa entre as decises de uma e de outra.

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    Se fizermos uma reflexo, ainda que fugaz, sobre o tema, certo que surgiro mesmo algumas indagaes de ordem conceitual sobre o que significa trabalho escravo na seara administrativa e penal. Se recordarmos que o conceito do art. 149 do Cdigo Penal foi reformulado apenas por fora da Lei 10.803, de 11 de dezembro de 2003, constataremos que o Direito Penal era, at certo ponto, refm de um conceito aber-to (reduzir algum a condies anlogas a de escravo), presente na redao ante-rior do mesmo dispositivo legal. O preenchimento desse conceito era extremamente controverso e, de certo modo, no fornecia aos juzes criminais elementos objetivos que caracterizassem o que significaria essa reduo condio anloga de escravo. Como produto desse quadro, at a edio da Lei n. 10.803/2003, possvel afirmar que o tipo penal encontrava-se de certa forma inoperante na esfera penal, pois sua estruturao ainda era firmada muitas vezes sobre o senso comum rendido histori-cismo, onde o trabalho escravo era ignorado nos seus formatos contemporneos e apresentava-se quase como letra morta no Cdigo, pois o tipo incriminador estaria adstrito a condutas residuais aps a abolio da escravatura.

    fato que, no plano administrativo, desde que o Governo Brasileiro reconheceu a existncia de trabalho escravo no pas (1995), o conceito foi trabalhado e buscou evo-luir na expresso dos valores relacionados liberdade e dignidade humana. A carac-terizao do trabalho escravo em seus formatos contemporneos foi especialmente relevante no sentido de nortear o planejamento e a execuo das aes empreen-didas pelo Ministrio do Trabalho e Emprego, bem como pelos demais parceiros na erradicao do trabalho escravo. Dentro desse contexto, no seria exagero muito pelo contrrio constatar que o tipo penal remodelado pela Lei n. 10.803/2003 em muito se deixou influenciar justamente pelos elementos que j integravam a noo de trabalho escravo na seara administrativa.

    Contudo, em que pese o fato de o tipo incriminador ter sido construdo com base nas caractersticas identificadas e afirmadas pela ao administrativa, fato que deve-mos ser cautelosos ao afirmar que haveria uma coincidncia plena entre ambos. Em primeiro lugar, devemos assinalar que a norma penal, em face do carter residual do Direito Penal, bem como do fato de envolver retaliao contra a pessoa do indivduo, comporta em regra interpretaes restritivas. Alm disso, vlido recordar que o Direito Penal e o Direito Administrativo e os respectivos processos, em que pese a existncia de pontos de aproximao, so regidos por princpios, normas e presunes bastante diversos entre si. guisa de exemplo, basta confrontarmos a presuno de inocncia que sobressai no mbito penal com a presuno de acerta-mento do ato administrativo que ocorre nessa seara. Perceba-se que essas presun-es ensejam discrepncias com relao ao nus do tempo e s conseqncias da derivadas para o particular.

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    Acreditamos ento que, em face da independncia das instncias e das demais consi-deraes aqui realizadas, no se pode exigir como requisito para a incluso do nome de um empregador no cadastro administrativo a sua prvia condenao criminal.

    Nesse sentido, parece projetar-se tambm a jurisprudncia do TRT da 10 Regio em julgado publicado em 13 de outubro de 2006. Vejamos:

    PORTARIA N 540/2004 DO MINISTRIO DO TRABALHO E EMPREGO.

    CADASTRO DE EMPREGADORES QUE TENHAM MANTIDO TRABALHADORES EM CONDIES ANLOGAS S DE ESCRAVO. A Portaria n 540/2004 foi editada tendo em vista o disposto nos incisos III e IV do art. 186 da CF/88, segundo os quais a funo social da propriedade rural cumprida quando atendidos os seguintes requisi-tos, entre outros: a observncia das disposies que regulam as relaes de trabalho e a explorao que favorea o bem-estar dos proprietrios e dos trabalhadores. O ato administrativo que incluiu o nome do autor no cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condies anlogas s de escravo goza de presuno de legitimidade e de veracidade, inserindo-se em esfera distinta da penal que, por sua vez, visa a detectar o cometimento de delito e a imputar pena privativa ou restritiva de liberdade, ou prestao de servios comunidade. Vale dizer, o poder de polcia judiciria (direito penal) incide sobre a pessoa do administrado, enquanto o poder de polcia administrativa incide sobre seus bens, direitos ou atividades, sendo, portanto, independentes. A conseqncia da incluso do nome do autor no cadastro de que trata a Portaria n 540/2004 no objetivou qualquer conseqncia em relao sua pessoa, mas apenas limitou o exerccio de direito individual em benefcio do interesse pblico, porquanto constatada, pela equipe mvel do Ministrio do Trabalho, a manuteno de 20 (vinte) trabalhadores laborando em condies anlogas de escravo. Da porque a insero do nome do autor no referido cadastro, sem a existncia de precedente ao penal condenatria no implica malferimento aos princpios do devido processo legal, do contraditrio e da presuno de inocncia (processo: RO 01522-2005-811-10-00-6).

    3. Concluses

    No se pretendeu aqui esgotar o feixe de matrias que podem ser aviadas em sede de aes que visem excluso do nome de um empregador do cadastro institudo pela Portaria n. 540/2004. Buscamos tratar to-somente daquelas que, a nosso juzo, so as de maior reincidncia nas peties iniciais, bem como nas fundamentaes do Poder Judicirio que eventualmente deferem medidas liminares e decises em favor dos postulantes citados.

    A restrio ao crdito no decorre direta e especificamente do cadastro, conforme tentamos demonstrar em nossa exposio sobre o tema. Contudo, tambm neces-srio defend-la, uma vez que no nos parece possvel haver contradio maior do

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    que a do Estado que reprime e condena o trabalho escravo ao mesmo tempo em que se v obrigado, por fora de algumas decises judiciais, a observar inerte os infratores serem incensados com o livre acesso a financiamentos e benefcios bancrios conce-didos a partir de recursos sob a sua superviso.

    Nesse sentido, os empregadores flagrados pela fiscalizao explorando o trabalho escravo e posteriormente condenados na instncia administrativa devem ter, res-salvada a comprovao de fato novo que realmente os exima de responsabilidade, seus nomes mantidos no cadastro de empregadores institudo pela Portaria n. 540 do Ministrio do Trabalho e Emprego. Trata-se, antes de tudo, de um instrumento de polticas pblicas essencial para que a propalada erradicao do trabalho escravo possa deixar o campo textual das intenes e projetar-se no plano da realidade.

  • Trabalho escravo e Lista Suja:um modo original de se remover

    uma mancha

    Mrcio Tlio Vianaprofessor das Faculdades de Direito da UFMG e da PUC-Minas

  • 1. Introduo

    Conta Eduardo Couture1 que, certa vez, depois de esperar algum tempo por um sbio, em seu laboratrio, ouviu dele as seguintes palavras:

    Sabereis perdoar-me. Quando se comea a olhar pelo microscpio, somente aps duas ou trs horas se comea a ver alguma coisa.

    Hoje, ao estudarmos as novas formas de trabalho escravo2, a mesma observao nos aproveita.

    A um primeiro olhar, trata-se apenas de uma anomalia ou paradoxo de um mundo que j no conhece limites para a cincia e a tcnica. Algo assim como o tumor que se instala num corpo sadio e, por isso, exige apenas as mos de um bom cirurgio.

    Se, porm, nos detivermos num exame mais calmo, veremos que os prprios avanos do que se habituou a chamar de progresso tm se valido, com freqncia, de elemen-tos de seu contrrio fundindo passado e presente, riqueza e misria.

    Assim, mais do que simples anomalia, o fenmeno do trabalho escravo aponta para todo um corpo doente; parte integrante de um novo modelo e, por isso, cobra respostas rpidas e variadas, pragmticas e criativas, globais e o mais possvel contundentes.

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    Tambm por isso, no exige apenas iniciativas oficiais, mas o esforo de todas as pes-soas disponveis, includos aqui os prprios trabalhadores que de vtimas podem se fazer agentes de sua prpria libertao.

    Mais do que tudo isso, porm, reclama o conhecimento da realidade subjacente; e a apropriao das prprias armas de dominao como instrumentos de resistncia.

    dentro desse amplo contexto que se inserem as portarias de n. 504, do Ministrio do Trabalho e Emprego, e 1.150, do Ministrio da Integrao Nacional.

    A primeira criou o cadastro de pessoas fsicas e jurdicas que exploram o trabalho em condies anlogas de escravo. A segunda recomenda aos rgos financeiros que no lhes concedam regalias. Uma e outra inspiraram o PL 207/2006, j aprovado na Comisso de Assuntos Sociais do Senado Federal.

    So regras simples, quase telegrficas. No obstante, exatamente porque se utilizam de elementos da prpria globalizao, mostram um potencial de efetividade superior ao das prprias normas penais; e abrem espao para aes de mltiplos atores.

    No entanto, exatamente por serem efetivas, transitam em campo minado. Num tem-po em que cresce a distncia entre o direito posto e o (no) direito imposto, tm sido alvo de vrias crticas e sucessivas aes judiciais.

    Assim, a luta que se trava no campo dos fatos se reproduz no mundo das idias; e no s ali, mas s vezes aqui, contamina-se pela lgica do poder, que tambm a l-gica da cooptao, da influncia, da constrio ou do medo. Na verdade, tambm os seus opositores se utilizam de valores muito enfatizados em nossa poca e, por isso, tambm poderosos.

    Naturalmente, se olharmos para o futuro, possvel prever, com boa margem de certeza, que a repulsa formal escravido ser cada vez mais enftica e geral. Mas isso no garante o consenso em relao aos meios especficos de combat-la.

    Do mesmo modo, no difcil antecipar que com a evoluo da humanidade o trabalho escravo terminar banido por completo. Mas isso no significa que a vitria esteja prxima, nem indica qual ser o seu preo.

    Na verdade, os resultados dessa equao que poltica, sem deixar de ser jurdica no dependem apenas do que se passa nos gabinetes. Eles flutuam ao sabor de inmeras variveis, mas sobretudo em razo das escolhas concretas e dirias que fizermos.

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    2. Breves notas sobre a escravido em geral

    Embora quase to antiga quanto o homem, a escravido nem sempre teve significa-dos, formas e objetivos iguais.

    Entre as tribos mais primitivas, podia ser apenas um momento de espera, antes que os vencedores devorassem os vencidos apropriando-se de sua fora e coragem. Assim, o escravo tinha um valor de uso, mas no de troca; e a prpria morte lhe assegurava a vida, incorporando em outro corpo o seu esprito guerreiro.

    Era assim, por exemplo, entre os nossos ndios, na descrio de Buarque de Holanda3:

    Os escravos moram tambm com seus senhores, dentro da mesma cabana, como filhos da mesma famlia. Comem bem e so bem tratados. Do-lhes por mulheres suas filhas e irms, as quais os tratam como maridos. Isso tudo at que lhes agrade mat-los para com-los.

    Esses escravos transitrios tinham liberdade de movimentos; mas apesar disso no fugiam, pois a fuga significava desonra4, tal como a morte os libertava. Ser bravo dian-te da morte como no poema I-Juca-Pirama, de Gonalves Dias era tambm, de certo modo, valorizar-se enquanto escravo.

    Mais tarde, o escravo j no o prprio alimento, mas o homem que o produz. o brao adicional do pater, trabalhando ao seu lado na ceifa dos campos ou na coleta das uvas. E isso o torna quase um membro da famlia, cultuando o mesmo deus e dele recebendo igual proteo.

    Na Grcia antiga, a escravido podia ser apenas o modo de libertar o cidado do trabalho necessrio, para que ele cuidasse da polis e se dedicasse filosofia e s artes5. Mas, j ento, ter escravos era tambm ter status: poder exibi-los na rua ou presentear os amigos6.

    Mas pouco a pouco, mesmo na Grcia, a escravido foi se tornando especialmente um modo de enriquecer as elites, aumentar os exrcitos ou garantir servios pbli-cos. O nmero de escravos passou a ser uma das medidas do poder de um imprio.

    Em todo esse longo tempo, as marcas da escravido no eram a cor da pele, a forma dos olhos ou o lugar de origem pois o que fazia o homem se tornar propriedade do outro era sobretudo a guerra ou a dvida. Da a sua mobilidade: o cidado de hoje podia se tornar escravo amanh, e vice-versa7. At Alexandre Magno remou nas gals antes de conquistar o seu imprio.

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    Talvez por isso, entre os gregos e romanos, os escravos se vestiam como os homens livres, embora essa prtica tambm servisse para impedi-los de perceber o seu gran-de nmero8. Mas a mobilidade era tambm viabilizada pela alforria, dada ou comprada e, s vezes, financiada pelos prprios escravos, reunidos em associaes9.

    Dizer que eles eram simples mercadoria pode se revelar um exagero em dois sen-tidos diferentes, pois se muitos como os escravos das minas viviam pior que os bois ou as cabras, outros eram msicos, pintores, poetas, filsofos, preceptores, mdicos, policiais, administradores, comerciantes, banqueiros e at proprietrios de escravos10.

    Uns costumavam ser emprestados ou terceirizados de forma gratuita ou onero-sa. Outros se alugavam livremente, repassando o dinheiro ao seu proprietrio. Era comum receberem de seus senhores ou de terceiros ddivas em dinheiro ou em utilidades11.

    Por outro lado, dizer que os escravos no tinham direitos pode ser ou no um exa-gero, na medida em que entre muitos povos, e em vrias pocas, eles podiam at ser mortos por capricho ou mesmo devorados; mas at o velhssimo Cdigo de Hamu-rabi j os protegia de algum modo, ao dispor, por exemplo, que:

    175 Se um escravo do palcio ou um escravo de um musknum tomou como esposa a filha de um awilum e ela lhe gerou filhos: o senhor do escravo no poder reivindi-car para a escravido os filhos da filha do awilum12.

    Alm disso, na Roma antiga, os escravos tinham acesso aos tribunais, embora por meio dos senhores; e, quando as conquistas foram minguando, vrios imperadores lhes garantiram sucessivos direitos, como os de no serem mortos ou torturados. Adriano chegou a fundar uma religio para honrar o escravo que lhe salvara a vida13.

    E havia tambm os que como os servos no eram escravos, nem homens livres, e se multiplicaram sobretudo na Idade Mdia. Presos terra, tambm a prendiam, usando-a no s (e nem tanto) para o senhor, mas para si. Em geral, viviam vida mi-servel, mas eram protegidos no s pelos laos primrios de solidariedade que os uniam, como pelas mos do prprio nobre feudal obrigado, pela tradio, a socor-r-los nas grandes fomes14.

    Quanto aos ndios e negros, a histria no foi muito diferente. Milhares de anos antes das primeiras caravelas, eles j conheciam e praticavam a escravido que era causa e tambm efeito das guerras, e se inseria na mesma prtica, j descrita, de devorar os vencidos para roubar-lhes a fora15 e assim se mostrarem fortes tribo.

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    Quando, pela primeira vez, suas ncoras se agarraram nas costas da frica, as cara-velas buscaram escravos para as famlias europias. Por volta do sculo XVII, as lojas londrinas j exibiam em suas vitrines argolas, correntes e cadeados, e at mesmo abridores de boca para os negros que se recusavam a comer.

    Quando Colombo aportou na Amrica, surpreendeu-se com a meiguice dos ndios; e escreveu ao seu rei que eles mostravam uma tal inocncia e generosidade, que mal se pode acreditar. Mas isso no o impediu de concluir:

    Daqui, em nome da Santssima Trindade, podemos enviar todos os escravos que possam ser vendidos. Quatrocentos, no mnimo, rendero vinte mil escudos16.

    Ao contrrio dos escravos antigos, os ndios tinham a pele cor de cobre, os olhos como amndoas e os cabelos lisos e pretos marcas que se tornaram estigmas de sua m sorte. E como o seu trabalho j se inseria na lgica de acumulao capitalista, no ser exagero supor que viviam mais sofrimentos que nos tempos de Aristteles.

    Tambm ao contrrio dos escravos antigos, os africanos tinham um estigma no corpo a cor negra; e, assim como os ndios, nada valiam como homens, embora valessem muito como objetos de uso e de troca. Por isso, se de um lado sofriam o peso da chiba-ta, de outro eram alimentados com dieta rica em carboidratos, ferro e protenas17.

    Tal como acontecera com os escravos antigos, a escravido dos ndios no incio e a dos negros em seguida buscava se legitimar com argumentos tericos. Um deles era o de que s assim seria possvel conduzi-los salvao. E entre esses con-dutores estavam os capites do mato, criados por uma lei de 1676 para dar caa aos renitentes18.

    No incio, compensava mais comprar um negro j pronto do que cri-lo desde o bero, como se fazia com potros, frangos e bezerros. Mais tarde, com as restries ao trfico, passou a valer a pena reproduzi-los; e as senzalas se tornaram tambm incubadoras.

    difcil saber se foi a escravido que produziu o trfico, ou vice-versa to entrelaa-dos eram os interesses. E essa mesma interao transformando a causa em efeito existia entre produtos e produtores. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a cachaa: a partir do sculo XVII, os traficantes comearam a troc-la por negros, que em seguida eram usados para a fabricao de novos tonis19.

    Como sucede em todos os tempos, submisso e resistncia conviviam lado a lado. No caso dos negros, o mar afogava as esperanas de uma volta ptria, mas a floresta

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    cobria as escapadas para os interiores da nova terra. No caso dos ndios, o que houve foi sobretudo um vasto morticnio, mas salpicado, aqui ou ali, por algumas revanches histricas20.

    Ao perder as suas razes, os negros se tornaram mais vulnerveis que os ndios s ma-zelas da civilizao21; mas o destino comum no pas estranho os fez produzir uma nova e rica cultura, com traos africanos e europeus como nos mostram o candombl, a capoeira, o samba e a feijoada.

    J os ndios que no conseguiram fugir ou morrer viveram a dualidade da proteo que esmaga: os jesutas quebraram as correntes de seus punhos, mas ao preo de envolver uma cruz em seus pescoos. Na troca dos deuses, perderam-se as lnguas, os cantos, as danas, as crenas e os valores.

    Mesmo antes da abolio, como nota Eliane Pedroso22, comearam a chegar as pri-meiras levas de suos e alemes para as fazendas paulistas. No incio, o Governo pa-gava as passagens; depois, o custo da imigrao passou para os ombros dos prprios imigrantes. Escravos da dvida e sufocados pelo poder dos coronis, viviam eles no limite do possvel.

    Na verdade, o que aconteceu com os imigrantes aconteceria logo depois com os ne-gros. Libertos da escravido, libertaram os seus senhores do peso de sustent-los23; e, embora j tornados sujeitos, continuaram objetos de direito, trocando por farinha e feijo as fadigas dirias de seus corpos.

    Mas curioso observar, de todo modo, como foi que, no incio, alguns ex-escravos reagiram: vendo no trabalho o smbolo de sua prpria indignidade, tentaram neg-lo para afirmar a liberdade recm-conquistada24 preferindo viver perambulando, sem eira bem beira, como lumpen.

    Um sculo depois, as cenas de escravido por dvida se repetiram em vrias fases de nossa histria, como na II Guerra Mundial, quando os nordestinos se transformaram em soldados da borracha na Amaznia, ou, mais recentemente, quando a poltica econmica da ditadura militar inaugurou as polticas de apoio indiscriminado ao agro-negcio25.

    3. Breves notas sobre os anos gloriosos

    At algumas dcadas atrs, a face ocidental do mundo especialmente o bloco mais rico vivia o que Hobsbawm chamou de anos gloriosos do capitalismo26. De um lado, fbricas verticais, linhas de montagem e trabalho parcelado garantiam a produ-

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    o em massa. De outro, sindicatos grandes, polticas keynesianas e direitos crescen-tes permitiam um consumo tambm massivo.

    Um boom de novos produtos de carros a geladeiras, de rdios a enceradeiras - in-teragia com o que se passou a chamar de consumismo: um novo costume, quase uma ideologia, que vinha no s potencializar o gosto pelas compras, mas introduzir nos produtos a capacidade de dar status, compensar frustraes, provocar emoes e indicar poder27.

    Era o tempo no s do pleno emprego, mas do emprego pleno, representado por toda uma vida no interior de uma s empresa, ao longo dos dias, e ao longo de cada dia, seguindo as vrias etapas da profisso de aprendiz a auxiliar, da para oficial, depois chefe de turma.

    Esse modelo comea a dar sinais de exausto j nos anos 60. A crise apresenta primeiro a sua face poltica, envolvendo grupos de operrios, estudantes, homossexuais, mulheres e at grupos armados. A face econmica se acentua poucos depois, com as altas do pe-trleo e a quebra na espiral de lucros que vinha marcando o sistema desde a II Grande Guerra. Por fim, a face militar, simbolizada sobretudo pela derrota dos EUA no Vietn.28

    Dez anos depois, surge a grande contra-ofensiva, representada seja pela eleio de governos conservadores como os de Reagan, Thatcher e Kohl , seja pela que-bra do acordo de Breton Woods, seja pela massacrante vitria norte-americana na Guerra do Golfo, seja pelo esmagamento de movimentos revolucionrios como o das Brigadas Vermelhas, seja, enfim, no plano da micro-economia, pela introduo da chamada reestruturao produtiva29.

    4. Breves notas sobre os novos tempos

    A nova empresa se organiza em rede, o que no sinaliza, necessariamente, uma rela-o de simples coordenao. Ao contrrio: com freqncia, esse corpo de mltiplos braos tem um corao que impulsiona o trfico de prestaes e um crebro que produz e repassa as suas vontades. Assim, o que horizontal na aparncia pode con-tinuar vertical na essncia.

    Ao externalizar as mesmas atividades que antes concentrava, a fbrica ps-fordista pode no limite nada fabricar, pelo menos diretamente. Nesse sentido, talvez no seja exagero dizer que a terceirizao provoca a terciarizao: o industrial se faz ge-rente, migrando se no em termos formais, pelo menos em termos reais para o setor de servios30.

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    A par de acentuar a especializao que pode, eventualmente, at melhorar a qualidade do produto essa terceirizao externa31 permite grande empresa no apenas redu-zir os custos, in genere, nem somente se especializar no foco de suas atividades, mas so-bretudo explorar em nveis desumanos a fora-trabalho, valendo-se de suas parceiras.

    que, medida que se avana em direo s malhas mais finas da rede, as empresas se tornam cada vez menos visveis tanto ao sindicato quanto fiscalizao e at para a mdia. Assim, o que a corporation no pode fazer, exatamente por ter visibilidade, as pequenas fazem por ela; e a prpria concorrncia, que a primeira dissemina, impul-siona as ltimas a baixar sempre mais as condies que oferecem aos empregados.

    Desse modo, e ao contrrio do que se costuma pensar, bem provvel que a coe-xistncia de empresas toyotistas e tayloristas, to comum nos nossos tempos, no traduza uma fase de transio entre dois paradigmas mas j revele, por si s, um novo padro de acumulao capitalista, marcado exatamente pela composio e in-tegrao de modelos.

    nesse quadro que se insere o trabalho escravo. Seja no campo, seja na cidade, ele quase sempre se integra, direta ou indiretamente, s formas mais novas do capitalis-mo e ao mesmo tempo aos modos mais antigos de explorao do trabalho humano. Assim , por exemplo, que h casos de resgate em fazendas com pistas de pouso para avies de mdio porte e sedes suntuosas, mas que alojavam os trabalhadores temporrios nos currais ou em barracas de plstico, sem paredes, escondidas na mata32.

    curioso notar como essa juno de passado e presente, campo e cidade, enxada e internet, discursos e prticas invertidas lembra misturas tambm presentes na pintu-ra, na msica ou na paisagem urbana, que colam elementos dspares e convivem com estilos diversos.

    Na verdade, segundo os estudiosos33, essa exatamente uma das caractersticas mais fortes do mundo ps-moderno, que j no tenta codificar e uniformizar as diferentes realidades, mas permite e at deseja o heterogneo, o catico e o variado.

    Naturalmente, esse novo modo de ser tambm produzido por ns e, ao mesmo tempo nos produz; e talvez nos ajude a explicar no s esse ecletismo de prticas empresariais, como tambm, em sentido diametralmente oposto, a nossa crescente sensibilidade para os direitos das minorias e o respeito diversidade.

    Mas h outros importantes ingredientes desse novo mundo como, por exemplo, a tendncia de se valorizar mais a superfcie que a profundidade, a aparncia em vez da

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    essncia, a fantasia sobre a realidade34. E tudo isso parece influir de algum modo nos movimentos de um mercado cada vez mais premido pela concorrncia.

    Nesse sentido, interessante notar como a evoluo da cincia e da tcnica permitiu um certo nivelamento entre os produtos, muitos dos quais j alcanaram ou esto perto de alcanar um nvel de perfeio quase absoluta.

    Assim , por exemplo, que os relgios no mais atrasam, os novos CDs nunca chiam, os automveis j no freqentam as retficas e at os pneus raramente furam. Na verdade, a vida curta desses e de outros produtos tem muito menos a ver com a du-rabilidade material deles com as pequenas novidades que a fbrica vai introduzindo, a todo instante, em cada novo modelo, envelhecendo assim os antecessores.

    Desse modo, tanto um selo verde aposto sobre uma moblia de madeira35 como a notcia de que a marcenaria do vizinho usou mos infantis podem se tornar um trao importante de distino entre produtos que sem isso se mostrariam virtualmente iguais. Desse modo, eles passam a compor as estratgias de concorrncia36.

    O fenmeno da chamada responsabilidade social da empresa se insere nesse con-texto. Apesar de suas reconhecidas limitaes37, o que garante a ela uma eficcia crescente sobretudo o valor que a imagem da marca e do produto vai adquirindo para o consumidor.

    que tambm ele, consumidor, est cada vez mais preocupado com a sua prpria imagem no s fsica como imaterial. Alm de freqentar academias, quer parecer politicamente correto, no s aos outros como a si mesmo; e, num mundo cada vez mais desigual, compensa dessa forma o sentimento de culpa que o invade38.

    Mas os tempos ps-modernos so tambm tempos de perda de identidade e de rom-pimento de laos sociais. E at mesmo essas carncias podem ser supridas magica-mente pelo produto que compramos, cuja marca tambm nos marca e nos (re)une a pessoas iguais a ns39.

    E assim que vo se disseminando novas estratgias entre os consumidores. Cada vez mais, especialmente nos pases centrais europeus, surgem grupos formais e in-formais que se comprometem a comprar ou a vender produtos fabricados em pases mais pobres e com respeito aos direitos humanos.

    claro que no so apenas aquelas as causas que nos levam ao consumo consciente e ao boicote direto ou indireto que o acompanha. As razes psicolgicas podem estar, e geralmente esto, conectadas com as nossas histrias de vida e com as nossas utopias.

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    De igual modo, a prtica da responsabilidade social no se reduz, necessariamente, a meras jogadas de marketing. Tal como aconteceu h duzentos anos com Owen e tantos outros, possvel, e at provvel, que haja empresrios realmente sensveis s novas questes sociais.

    Seja como for, o importante que os impulsos se casam, as prticas se aproximam e em-bora isso nem sempre acontea o interesse pessoal e as carncias psicolgicas de uns po-dem interagir positivamente com as crenas, os sonhos e os projetos polticos de outros.

    Assim, o mesmo modelo que induz o trabalho escravo acaba fornecendo instrumen-tos para o seu combate. A imagem da empresa, boa ou m, contamina o produto que ela fabrica e por extenso o prprio cidado que o consome.

    Essa realidade to mais intensa quando mais geis, penetrantes e vidos vo se tornando os meios de comunicao de massa. Se os satlites j so capazes de iden-tificar at o capacete de um soldado e se, na tribo dos pataxs em plena Amaznia, os ndios assistem a novelas, porque quase no h limites para o que a mdia pode saber e a quem pode atingir.

    Ainda que boa parte do mundo permanea excludo das necessidades mais bsicas, a internet permite a um universo crescente de pessoas trocar saberes e vivncias, ver e ouvir grandes mestres e visitar as maiores bibliotecas. No foi por acaso que, em 2006, em Belo Horizonte, a Prefeitura disponibilizou computadores para que o povo fizesse propostas ao oramento participativo.

    Mas o nosso tempo, tambm, um tempo em que os direitos humanos no s pela evoluo das idias, mas at pela involuo das prticas alcanam os seus patamares mais altos, em termos de importncia40. Hegemnicos e ao mesmo tempo heterogneos, eles se estendem, ou devem se estender, por todos os lugares e sobre todas as relaes.

    A prpria globalizao nos mostra que os direitos do trabalho, a proteo da at-mosfera e a defesa dos nossos rios e matas j no dizem respeito apenas s polticas internas de um ou de outro pas. O que acontece aqui, repercute ali, e tal como os direitos individuais interagem com os sociais e os polticos uma cidadania negada ou uma rvore cortada pode vir a interessar a todas as pessoas do mundo.

    Nesse sentido, Flvia Piovesan observa que a globalizao propicia e estimula a abertura da Constituio para a normatizao externa41. Os indivduos deixam de ser considerados apenas cidados em seus prprios Estados, para se tornarem sujeitos de Direito Internacional42, passveis de serem protegidos por meio de denncias formuladas por entidades ou grupos diversos de quaisquer outros pases.

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    Por fim, vivemos um tempo em que os vazios deixados pelo Estado-Nao cada vez mais fragilizado so reocupados no s de forma autoritria pelo grande capital, mas de modo democrtico pela sociedade civil, que aos trancos e barrancos vai mul-tiplicando as suas associaes de bairros, as pequenas cooperativas de produo e as estratgias coletivas de sobrevivncia.

    Tudo isso nos faz crer que, com o passar dos anos, a prtica do consumo solidrio tende a se tornar hegemnica; e, ento, quando sairmos para comprar um novo t-nis, a presena ou a ausncia de trabalho digno ser um componente to importante quanto as bolhas de ar que iro proteger os nossos ps.

    5. Breves notas a propsito da escravido contempornea

    5.1. Sobre o conceito e o alcance da lista

    Como vimos no item 2, embora a escravido, de um modo geral, tenha sido marcada pela dor, pela pobreza e pela indignidade, havia escravos de todo tipo, sem nenhum ou com alguns direitos, com poucas ou muitas qualificaes, quase nus ou luxuosa-mente vestidos, com ou sem uma perspectiva de vida.

    Essa diversidade de situaes talvez possa ser explicada, entre outros motivos, pela origem do escravo e pelo fim perseguido por seu dominador. Assim era, por exemplo, que as guerras produziam um escravo mvel, ao passo que as dvidas o imobilizavam naquela condio; analogamente, se usado apenas para criar tempo livre, sua vida era provavelmente melhor do que quando explorado para gerar riquezas.

    Nem por isso, ao longo do tempo, deixaram eles de ser includos na mesma catego-ria, fossem operrios ou poetas, mineiros ou filsofos, gladiadores ou armadores, fa-mintos ou proprietrios de outros escravos. O que importa dizer que o conceito de escravido sempre foi amplo, ligando-se sobretudo falta de liberdade. Mas mesmo a falta de liberdade, como tambm j vimos, tinha os seus graus e matizes.

    Como qualificar, ento, o fenmeno de hoje? Alguns o chamam de escravido branca; outros, de nova escravido; outros, ainda, usam aspas na palavra escravido. A Conveno n. 29 da OIT fala em trabalho forado ou obrigatrio, para em seguida defini-lo como:

    (...) todo trabalho ou servio exigido de um indivduo sob ameaa de qualquer pena-lidade e para o qual ele no se ofereceu de espontnea vontade.

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    A Conveno o. 105 repete essa terminologia, ensaiando uma espcie de classificao:

    a) como medida de coero, ou de educao poltica ou como sano dirigida a pes-soas que tenham ou exprimam certas opinies polticas, ou manifestem sua oposio ideolgica ordem poltica, social ou econmica estabelecida;b) como mtodo de mobilizao e de utilizao da mo-de-obra para fins de desen-volvimento econmico;c) como medida de disciplina de trabalho;d) como punio por participao em greves;e) como medida de discriminao racial, social, nacional ou religiosa.

    A mesma conveno tambm emprega expresses como escravido por dvidas e servido. Outros documentos falam em servido por dvidas ou em trabalho anlogo ao de escravo.

    A ltima expresso a utilizada pelo art. 149 do Cdigo Penal. No entanto, importan-te notar que o tipo penal amplo, abrangendo no s situaes de falta de liberdade em sentido estrito, como o trabalho em jornada exaustiva e em condies degradantes.

    Ora, a Portaria n. 540 repete a expresso da lei penal, o que nos leva a concluir que todas aquelas hipteses degradantes esto abrangidas por ela. E natural que seja as-sim: para quem vive como vivem tantos em condies piores que a de um animal, a liberdade no mais do que um mito.

    Fixar os limites da degradao, para o fim de inserir nomes na lista suja, um pro-blema a ser resolvido caso a caso embora se possa ensaiar alguns critrios, como faremos a seguir. Um auditor-fiscal nos sugeriu como parmetro as normas de higiene e segurana do trabalho43; mas o fato que um salrio de fome ou um trabalho exte-nuante pode causar mais estragos que a ausncia de um par de botas.

    verdade, por outro lado, que tambm um operrio de fbrica pode receber um sal-rio que no lhe permita viver dignamente ainda que se trate do mnimo legal. Basta que tenha alguns filhos e no disponha de outra fonte de renda. Esse mesmo operrio pode tambm estar vivendo numa barraca de plstico e bebendo gua poluda, tal como os que trabalham nos sertes do Par.

    Talvez por isso, segundo relatos recentes, candidatos lista suja esto deslocando as barracas de seus empregados para fora das fazendas ou para longe das carvoarias. Mas ser que isso mudaria substancialmente a situao? E se entendermos que no: teramos ento de incluir na lista todos os patres de empregados que levam vida miservel?

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    claro que a prpria constitucionalidade do salrio-mnimo pode ser questionada44. Mas, se quisermos manter os ps no cho e resguardar a efetividade das portarias, talvez seja melhor entendermos a expresso condies degradantes sob um enfo-que um pouco mais restrito o que no significa reduzi-la aos casos tpicos de escra-vido. Em princpio, seriam cinco as hipteses possveis.

    1.A primeira categoria de condies degradantes se relaciona com prprio o trabalho escravo stricto sensu. Pressupe, portanto, a falta explcita de liberdade. Mesmo nesse caso, porm, a idia de constrio deve ser relativizada. No preciso que haja um fiscal armado ou outra ameaa de violncia. Como veremos melhor adiante, a simples existncia de uma dvida crescente e impagvel pode ser suficiente para tolher a liber-dade. A submisso do trabalhador lgica do fiscal no o torna menos fiscalizado.

    2.A segunda categoria se liga com o trabalho. Nesse contexto, entram no s a pr-pria jornada exaustiva de que nos fala o CP seja ela extensa ou intensa como o po-der diretivo exacerbado, o assdio moral e situaes anlogas. Note-se que, embora tambm o operrio de fbrica possa sofrer essas mesmas violaes, as circunstncias que cercam o trabalho escravo como a falta de opes, o clima opressivo e o grau de ignorncia dos trabalhadores as tornam mais graves ainda. 3.A terceira categoria se relaciona com o salrio. Se ele no for pelo menos o mni-mo, ou se sofrer descontos no previstos na lei, a insero do nome do empregador na lista se justifica. 4.A quarta categoria se liga sade do trabalhador que vive no acampamento da empresa seja ele dentro ou fora da fazenda. Como exemplos de condies degra-dantes teramos a gua insalubre, a barraca de plstico, a falta de colches ou lenis, a comida estragada ou insuficiente.

    5.Mas mesmo quando o trabalhador deslocado para uma periferia qualquer, e de l transportado todos os dias para o local de trabalho, parece-nos que a soluo no dever ser diferente. Basta que a empresa repita os caminhos da escravido, desenraizando o trabalhador e no lhe dando outra opo seno a de viver daquela maneira. Esta seria a quinta categoria de condies degradantes.

    Voltando terminologia, nesse texto falaremos sempre de trabalho escravo, no s porque at a escravido clssica, como vimos, teve mltiplas faces, como tambm porque, como observa Camilla Pereira Zeidler, trata-se de uma expresso menos dbia e de melhor compreenso45.

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    Organizao Internacionaldo Trabalho

    5.2. Sobre os sofrimentos do trabalhador

    Os percursos mais freqentes da escravido j so bem conhecidos46: primeiro, a cidade pequena, a falta de trabalho, as barrigas vazias; depois, o gato que chega, as promessas de dinheiro, a sensao de aventura; ento, a me que implora, o pai que abenoa, o orgulho de se aventurar no mundo; depois o caminho, o nibus ou o trem, a cachaa alegrando a viagem, a noite escondendo os caminhos, a dvida subin-do a cada prato de comida; por fim, a fazenda, o fiscal, a arma e s vezes a fuga, a volta e o recomeo.

    Com freqncia, a lgica do dominador se introjeta no dominado47, que passa a se achar realmente um devedor e quando foge uma espcie de ladro. Tambm por isso, as fugas no so freqentes; em geral, acontecem em situaes-limite, quando o medo de morrer vence o medo de ser morto, ou as penas do corpo fazem esquecer as inquietaes morais, ou ainda mais comumente quando a sensao do engano desobriga a dvida48.

    Em fazendas de Paragominas-PA, do portugus conhecido como Velho Matos, a pol-cia encontrou, segundo uma reportagem:

    (...) os materiais utilizados para tortura, como ferros, aoites e correntes de ao, que tambm serviam para amarrar os pees noite para no fugirem. Os trabalhadores eram torturados quando desobedeciam as ordens do patro e mortos quando ten-tavam fugir por pistoleiros auxiliados por ces treinados. Foi confirmada at mesmo a existncia de um cemitrio clandestino, onde foi encontrada, numa vala, a parte inferior de um corpo49.

    J o castigo do tronco, que teria sido usado numa fazenda do Bradesco, consiste num:

    (...) tronco oco de angelim dentro do qual se colocam restos de comida, atraindo for-migas e outros insetos, juntamente com a pessoa a ser punida. O cara passa trs dias l amarrado50.

    Outro castigo aplicado aos que tentavam fugir de outra fazenda da regio era o vo da morte:

    (...) o trabalhador era espancado, muitas vezes com uma corda encharcada dgua, e a seguir jogavam-lhe gua fria. Depois faziam-no equilibrar-se e