186
LEGITIMAÇÃO E MEDIAÇÃO DA ARTE PROJEÇÕES NO CONTEMPORÂNEO PAULA SCAMPARINI FERREIRA Dissertação em Artes Visuais, apresentada à banca examinadora e ao Programa de Pós- Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Artes Visuais, sob orientaçãos do Prof. Dr. Carlos Alberto Murad. Rio de Janeiro 2006

escrita de auto-paisagem

Embed Size (px)

DESCRIPTION

tese defendida em 2014 que coloca a produção artística ao lado da produção de conhecimento e propoe atraves do dispositivo do pensar paisagem a possibilidade de uma construcao do que aqui se convenciona chamar auto-paisagem.

Citation preview

  • LEGITIMAO E MEDIAO DA ARTE PROJEES NO CONTEMPORNEO

    PAULA SCAMPARINI FERREIRA

    Dissertao em Artes Visuais, apresentada banca examinadora e ao Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Artes Visuais, sob orientaos do Prof. Dr. Carlos Alberto Murad.

    Rio de Janeiro

    2006

  • 2

    Dissertao de Mestrado:

    Legitimao e mediao da arte: projees no contemporneo.

    Autor: Paula Scamparini Ferreira.

    Orientador: Carlos Alberto Murad

    Aprovada por:

    ________________________________________________________________

    Professor Doutor Carlos Alberto Murad Orientador/Presidente da Banca Examinadora

    ________________________________________________________________

    Professora Doutora Maria de Ftima Morethy Couto

    ________________________________________________________________

    Professor Doutor Paulo Venncio Filho

    ________________________________________________________________

    Professora Doutora Sonia Leita - Suplente

    Examinada em: ______/______/_______

    Conceito:

  • 3

    SCAMPARINI FERREIRA, Paula.

    Legitimao e mediao da arte: projees no contemporneo. / Paula Scamparini Ferreira. Rio de Janeiro, 2006.

    Dissertao (Mestrado em Artes Visuais) Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, Faculdade de Belas Artes, 2006.

    Orientador: Carlos Alberto Murad.

    Salo Bahia.. 2. Arte contempornea.. 3.MAMBA. I. Murad, Carlos Alberto (Orient.). II.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ps Graduao em Artes Visuais. Faculdade de Belas Artes.. III. Legitimao e mediao da arte: projees no contemporneo.

  • 4

    Agradecimentos

    Ao meu orientador, Professor Doutor Carlos Alberto Murad, pelo voto de

    confiana ao me acolher numa transio desafiadora neste incio de ano, e por tanto

    agregar a esta pesquisa.

    Professora Doutora Maria Luisa Luz Tvora pela orientao durante grande

    parte do perodo desta pesquisa.

    Aos demais docentes da EBA-UFRJ que souberam apoiar este projeto.

    A meus entrevistados do Rio de Janeiro e de So Paulo, que se dispuseram,

    formal ou informalmente, a enriquecer esta pesquisa.

    equipe do MAM da Bahia pela simptica acolhida, assim como aos

    profissionais e artistas locais.

    CAPES pela bolsa oferecida.

    formao como pessoa oferecida pela Universidade Estadual de Campinas.

    Ao professor Doutor Paulo Mugayar Khl por primeiro me inserir no universo

    acadmico.

    minha famlia, pela presena e fora essenciais.

    Aos amigos novos e antigos que souberam acompanhar essa trajetria.

    Ao Glaucio pela pacincia por tanto tempo.

    Ao Rio de Janeiro, suas paisagens e personagens, pela acolhida desafiadora e

    enriquecedora.

  • 5

    Resumo da Dissertao apresentada na Faculdade de Belas Artes da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios para a obteno

    do grau de mestre em Artes Visuais

    A pesquisa se debrua na compreenso das configuraes atuais do meio

    artstico e de seus personagens por meio de uma abordagem histrica dedicada a

    momentos pontuais, que teriam indicado tais posies. Partiu-se de inseres

    conceituais histricas colocadas por Charles Baudelaire (1988) e Walter Benjamin

    (1985), do tratamento sociolgico conferido por Stuart Hall e Marcel Mauss, e de

    anlises do meio de arte mais recentes por Pierre Bourdieu (1987), Anne Cauquelin

    (2005), Thierry De Duve (2003), Arthur Danto (2006) e David Harvey (1992), entre

    outros. Foi traado um caminho inicial acerca de como as presentes configuraes do

    circuito artstico, compreendido atravs da anlise de discursos primrios (entrevistas)

    de profissionais do meio, sobretudo de mediao, dialogam com tais conceituaes j

    colocadas. A partir da, apresentaram-se movimentaes e adequaes de todo esse

    meio e de seus personagens inseridos nesse contexto.

    Detidos na observao do meio artstico brasileiro no perodo de 2004 a 2006, e

    concentrando-se no Salo da Bahia como exemplo que possibilitou contracenar

    momentos distintos na formao da Historia da Arte, buscou-se evidenciar como ocorre

    a legitimao da arte atravs de novos agentes desta, como os mediadores e as

    instituies, elementos essenciais ao funcionamento do circuito de arte contempornea

    brasileira emergente.

  • 6

    Abstract of Dissertation presented to Faculdade de Belas Artes of Universidade do

    Rio de Janeiro, as a partial fulfillment of the requirement for the degree of Master

    in Visual Arts

    This study searches for an understanding of how the current Brazilian artistic medium is

    configured nowadays with the aid of a historical approach applied to specific moments

    that may have built these configurations. We have started form historical conceptual

    insertions posed by Charles Baudelaire (1988) and Walter Benjamin (1985), from

    sociological account conferred by Stuart Hall and Marcel Mauss, and from more recent

    analysis of the artistic circuit made by Pierre Bourdieu (1987), Anne Cauquelin (2005),

    Thierry De Duve (2003), Arthur Danto (2006) and David Harvey (1992), among others.

    It was then opened an investigative path on how current configurations of the Brazilian

    artistic circuit itself understood through the analysis of interviews made with

    personalities of the area dialogue with already established concepts. There have been

    changes and adequacies of the entire artistic medium and its personalities to the context

    of which they are part.

    Committed to the observation of the Brazilian artistic medium and circuit during

    the past two years (2004-2006) and focusing on the Salo da Bahia as an example that

    permits the comparison between different moments of the development of a History of

    Arts, we tried to clarify how the legitimization of art works, and the role of its new

    agents, such as mediators and institutions, both essential to the Brazilian emergent

    contemporary art circuit.

  • 7

    NDICE

    1- INTRODUO.......................................................................................................... 9

    2- CONFIGURAO DO CIRCUITO DE ARTE CONTEMPORNEA 2.1- ESTATUTOS DA CONTEMPORANEIDADE......................................................16

    2.2- SOB A GIDE DO MERCADO............................................................................23

    2.3- LEGITIMAO PELA COMUNICAO............................................................31

    3- PERSONAGENS E PRODUTOS

    3.1- ARTE ISSO..........................................................................................................41

    3.2- A OBRA (E O ESPECTADOR)..............................................................................46

    3.3- ARTISTA E UNIVERSIDADE..............................................................................52

    3.4- MEDIAO AUTNOMA....................................................................................60

    3.4.1- Curadoria Emergente.........................................................................................71

    4- INSTITUIO SALO 4.1- O SALO COMO INSTITUIO.........................................................................77

    4.1.1- A experincia Bahiana........................................................................................81

    4.1.2- Sistematizao do Salo......................................................................................85

    4.2- REPRESENTATIVIDADE VIA MAMBA.............................................................89

    4.2.1- Especificidades Valorativas................................................................................91

    4.2.2- Insero Poltica e Circuito Local.........................................................................97

    5- CONVIVNCIA NO CAMPO AMPLIADO 5.1- LEGITIMAO E CONSAGRAO.................................................................102

    5.1.1- Limitaes..........................................................................................................111

    5.2- CIRCUITO AMPLIADO.......................................................................................122

  • 8

    5.3- NOVAS CONFIGURAES EM FORMAO.................................................131

    5.3.2- Salo Sem Lugar................................................................................................134

    5.4- CONVIVNCIA DE DECISES ARTSTICAS..................................................137

    5.4.1- Em Malhas Privadas.........................................................................................139

    5.4.2- Aes de Artistas...............................................................................................141

    5.4.3- Outros Mecanismos...........................................................................................146

    5.5 CRUZAMENTOS: RELAES CONTEMPORANEIZADAS............................149

    6- CONSIDERAES FINAIS.................................................................................153

    7- BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................157

    8- ANEXOS

    8.1- ANEXO I................................................................................................................163

    8.2- ANEXO II..............................................................................................................190

    8.3- ANEXO III.............................................................................................................191

    8.4- ANEXO IV.............................................................................................................194

    8.5- ANEXO V..............................................................................................................197

    8.6- ANEXO VI.............................................................................................................199

    8.7- ANEXO VII...........................................................................................................209

  • 9

    1. INTRODUO

    A presente discusso pretende se aproximar de uma possvel trajetria entre

    muitas - traada no universo da arte e observvel nos produtos que esta hoje nos

    oferece. Dedicada forma que estabelece a construo contnua do sistema de arte e

    suas conseqentes formas de legitimao, apresentam-se aqui questionamentos

    desprovidos de quaisquer possibilidades de resposta conclusiva, mas cuja reflexo se

    faz essencial no meio de arte brasileiro neste momento.

    Esta pretensa e parcial abordagem generalizante tem como vis motor no s os

    mecanismos de legitimao da arte, com nfase na mediao, como tambm a forma

    como tais mecanismos se configuram ao longo da histria da arte ou aps esta (DANTO

    2006). Ao intentar discutir aspectos da legitimao da arte, define-se aqui como eixo

    condutor a instituio salo de arte, em especial o Salo da Bahia. Este permite,

    atravs da anlise de seus mecanismos de atuao, a verificao de particularidades

    irms aplicadas em eventos do mesmo cunho1, compostas de partcipes do meio de arte

    no Brasil. Com alguma amplitude de olhar, nos possvel travar uma discusso

    abrangente sobre o circuito de arte brasileiro e seus personagens.

    A partir da tomada da contemporaneidade como realidade irrecorrvel, admite-se

    que pouco se pode acertar com o mnimo distanciamento que esta nos proporciona. No

    mbito das artes, sobretudo ao nos dedicarmos incipiente arte contempornea

    brasileira, pode-se dizer que quaisquer exatides se mostrariam, cedo ou tarde, falhas, j

    que a arte contempornea no dispe de um tempo de constituio ou formulao

    suficiente e tampouco estabilizada.

    1 Editais dos Sales da Bahia em ANEXO I.

  • 10

    O distanciamento facilitador do domnio no concedido, no estudo do ato da

    contemporaneidade, ainda que seja permitido por meio de comparao ou observao.

    A simultaneidade da produo artstica e da produo intelectual acerca desta exige a

    aplicao de uma mescla de observao e instinto extremamente cuidadosos ao lidar

    com um campo (o artstico) que permite idas, vindas e antecipaes, ainda que difusas.

    Cauquelin (2003) resume:

    em sua indeterminao essencial, a situao em que o termo ps-modernismo, leia-se aqui contemporaneidade - nos coloca tem de interessante o fato de deixar o historiador na obrigao de se voltar criticamente sua disciplina, ou seja, de se questionar a respeito no somente de seu mtodo histrico e crtico, como tambm sobre o objeto ao qual se dedica (a prpria arte), seus processos e o papel desempenhado pela histria na interpretao que se pode dar a isso tudo (CAUQUELIN, 2003:130).

    Um reconhecimento decidido sobre seus parmetros e pormenores no se faz

    possvel por se tratar duma arte em pleno processo de afirmao, embora seja elementar

    para profissionais envolvidos com sua reflexo distingui-la, ainda que quase

    intuitivamente, como contempornea. Desta forma, para abord-la preciso valer-se de

    critrios acordados, cuja imposio em se lidar com o presente imediato confere a esta

    pesquisa um carter processual que a faz tambm parte da contemporaneidade em que

    se insere.

    atravs de questionamentos deste teor que esta pesquisa procura explicitar um

    caminho percorrido pela a produo de arte que, envolvendo seus personagens e

    contextos, teria culminado na configurao de seu campo da maneira que hoje se

    apresenta. Desta forma, o meio de arte brasileiro interpretado nesta pesquisa a partir

    de olhos abrangentes, que partem de acontecimentos geradores de transformaes no

    mbito mundial histrico da arte.

  • 11

    Atravs de atuaes de personagens em determinados contextos sociais a

    produo de arte, a cada momento da histria, possibilita mudanas de definies que

    envolvem o circuito e meio artsticos como um todo e em suas determinaes mais

    essenciais. So transformaes essenciais que ocorrem num campo expandido, e

    figuram marcadamente a cada manifestao da arte, ainda que em pequeno mbito, em

    todos os lugares em que esta se apresenta. No Brasil das artes contemporneas e

    emergentes2 tais definies se apresentam a cada atitude, exposio, mostra ou

    discusso que contemplem a arte contempornea.

    justamente num evento como o salo de arte que se instala em plena

    contemporaneidade e se ala a um posto de destaque no apenas para a produo, mas

    para o circuito artstico emergente, que se encontra um exemplar intermedirio entre os

    diferentes e temporalmente distanciados sistemas de arte e conceitos de artstico.

    Ainda que lanando mo de um modelo ultrapassado de insero, estes eventos

    puderam demonstrar em seu mbito e atuao uma complexidade passvel de ser

    apontada como exemplar para a visualizao configuradora da realidade do meio

    brasileiro contemporneo de arte.

    Neste momento, importante advertir que o intuito desta dissertao no foi

    atingir todos os aspectos do meio e as discusses correntes de arte brasileira. Deixou-se

    margem alguns momentos passveis de serem interpretados como cruciais, mas que,

    no entendimento do todo desta pesquisa, no fariam sentido essencial.

    A partir dos sales de arte possvel estabelecer relaes imediatas entre as

    atividades contemporneas e as manutenes de critrios tradicionais no meio da arte.

    Inserido num grupo de eventos similares ou de menor ou igual abrangncia

    2 Trato como emergente a produo de arte em vias de insero no circuito de arte.

  • 12

    especialmente na poca estudada, foi determinado o Salo da Bahia como evento

    fornecedor de pretextos que nos proporcionaram uma leitura acerca do atual meio da

    arte brasileira.

    Tal escolha se pautou no fato desse meio, ainda que construdo sobre pilares que

    o afirmam ter carter ultrapassado, ter sabido lanar mo de poderosos agentes atuantes

    no campo das artes - o mercado e a comunicao e, assim, ter atingido xito como

    evento legitimador e difusor da arte e de artistas contemporneos, sobretudo

    emergentes. Os agentes atuaram no sentido de conferir ao evento valor e

    reconhecimento, nos moldes da contemporaneidade, tornando-o sedutor parceiro para a

    produo artstica. A partir do debate entre o antigo e o novo, o tradicional e o

    contemporneo, buscou-se perceber de que forma mais uma vez instala-se uma

    configurao que poder finalmente ser definida, ainda que em grau diludo, como

    contempornea.

    Compreendendo que os sales de arte atuam no rol da legitimao artstica, ao

    dedicar-nos a possveis critrios empregados nesta atividade essencial e determinante,

    deparamos-nos com o universo de poucas certezas que nos oferece a atualidade.

    Partindo do eixo Salo, optou-se pela aproximao a este universo atravs dos

    personagens que participam destes como jri e atuam s voltas com reflexes pares a

    aqui pretendida, pautando-se em sua compreenso e distanciamento esclarecedores,

    alm das posies de profissionais que atuam em variados graus de intermediao entre

    a produo e o consumo de arte.

    Atuando ao lado dos artistas, mas com a autonomia de profissionais da arte, os

    mediadores intermedirios entre produo e consumo mostraram-se fonte essencial

    de troca de informaes e impresses no caminho das reflexes pretendidas. Ao carter

  • 13

    empirista desta pesquisa foram, portanto, adicionadas informaes provenientes de

    diversas entrevistas realizadas com estes profissionais da mediao, sobretudo aqueles

    partcipes constantes do evento central a ser observado como exemplo3, que serviram

    como alavancas para as questes aqui pretendidas.

    Ressalta-se que muitos dos agentes no exclusivamente mediadores so tratados

    como tais nesta pesquisa e, portanto, podem figurar entre as fontes bsicas de

    informao recolhida. Por ter sido recolhida tambm informao atravs de contato com

    o circuito especfico ao evento centralizador das questes pretendidas, aponta-se neste

    momento novamente quo inesgotvel se torna o assunto, quando se percebe a completa

    impossibilidade de imparcialidade do olhar e do acesso a informaes que nos atingem

    cotidianamente.

    Dedicamos-nos anlise aprofundada, ou ao menos aproximada, do Salo da

    Bahia como exemplo representativo das questes a serem tratadas, buscando, a

    princpio, a presena de alguma homogeneidade explicativa deste universo, que

    apontasse sua potencialidade a tornar-se um mtodo. Tal processo se aproxima da

    necessidade que Marcel Mauss (1968) ensina ser inerente natureza humana, pois

    busca o domnio de coisas atravs da classificao esclarecedora dos sentidos. O Salo

    da Bahia torna-se um possvel provedor de material para a elaborao, ainda que ousada

    ou superficial por seu carter futuro, de predies aprovisionadas acerca no somente

    desta instituio, mas do circuito de arte como um todo.

    Esclarecemos que especificidades geradas ou direcionadas pelo inevitvel

    carter poltico que assume decises sobre o campo cultural, no foram abarcadas por se

    3 Foram entrevistados para esta pesquisa os seguintes membros de comisses julgadoras do Salo da

    Bahia: Heitor Reis, Fernando Cocchiarale, Marcus Lontra, Luis Camillo Osrio, Denise Mattar, Franklin Pedroso, Tadeu Chiarelli, Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos. Ver ANEXOS II e III.

  • 14

    tratar de um domnio no qual atuam forcas que nos fogem a apreenso e interesse, ainda

    que se admita que definam toda a trajetria do sistema brasileiro das artes.

    O circuito brasileiro de arte contempornea, seus personagens e agentes,

    gradativamente se definem e atuam, nos moldes ou na remodelagem de frmulas em

    algum momento estabelecidas pela arte mundial. Tal fato se distingue de qualquer outro

    j visto, pois tem como essncia a reunio de pilares transformadores, afirmados a partir

    de contextos de revoluo jamais vividos. Alm disso, tem a capacidade de apontar seu

    rumo ou direo. A partir de transformaes conceituais, a arte se manifesta em regime

    de liberdade e de variedade jamais vistos. Seus produtores e profissionais esto, assim,

    multiplicados e voltados afirmao de sua polivalncia, no sentido de propor a

    maneira como a arte deve ser tratada.

    As revolues sociais envolvem os efeitos da globalizao e da insero de

    tecnologias inovadoras que, unidas, alteram realidades e percepes, lidando com

    critrios de espao e tempo. So distanciamentos e proximidades, tempos acelerados,

    reais e ficcionais e finalmente realidades distintas que se cruzam, que, diante do

    indivduo, traam uma nova paleta de relaes humanas que ainda se constroem frente a

    tantas e to prximas novidades. Alguns conceitos de ps-modernidade so aplicados

    nesta pesquisa por trazerem consigo pontos elementares destes aglutinamentos que

    ocorrem no interior dos seres e relaes humanas e so exprimidas, sobretudo e a priori

    pela arte. Assim, alm dos autores j citados, fazem-se presentes contribuies de Stuart

    Hall (1997), David Harvey (1992), Thierry De Duve (2003) e Pierre Bordieu (1987),

    entre outros que, alm das entrevistas j mencionadas, nos serviram de apoio, alavanca e

    esclarecimento sobre o assunto pretendido, em grau expandido.

  • 15

    Na praticidade das relaes estabelecidas entre instncias do meio da arte, as

    posies assumidas atualmente pelos envolvidos com a produo, mediao e consumo

    de arte so, portanto, aqui abrangidas e discutidas em alguns de seus aspectos pontuais

    especficos contemporaneidade.

    Aspectos que definem caminhos j iniciados e que especulam resultados, ainda

    que sem pretender defini-los, presentes nas trocas de posicionamentos que possibilitam

    refletir sobre a j sabida fluidez do campo das artes, e sobre quais posies podem

    denotar escolhas ou caminhos possveis desta configurao. Neste nterim, situam-se os

    personagens, cada um por vez, na posio de mediadores, ainda que do prprio trabalho

    artstico.

    Sendo assim, julgamos, no decorrer da pesquisa, ser possvel alimentar

    discusses pertinentes acerca da configurao do circuito atual da arte brasileira que se

    legitima, para a elaborao dum possvel porvir. Procuramos, atravs de aspectos que

    parecem se afirmar na arte contempornea, poder prever de que forma poderamos

    estabelecer relaes de troca institucional ou no com esse tipo de arte.

    Tais percepes aglutinantes, ainda que desobrigadas de atingir quaisquer graus

    de homogeneidade, figuraro conseqentes provedoras de ferramentas para a atuao

    em prol desta produo. A inteno propor formas para dar apoio e vazo produo,

    que se mostra essencial e bastante profissionalizada no Brasil. Isso coloca, afinal, esta

    pesquisa como um propsito e um desafio perante uma antecipao de possveis

    atitudes legtimas e impulsionadoras dessa produo para a proximidade futura do

    desenvolvimento do meio da arte local.

  • 16

    2. CONFIGURAO DO CIRCUITO DE ARTE CONTEMPORNEA

    2.1 Estatutos da contemporaneidade

    A arte sempre reflete, filtrados pela subjetividade do artista, aspectos da

    conjuntura onde est inserida. Assim, as preocupaes e acontecimentos poltico-

    sociais, alm das questes exclusivas produo artstica, permeiam decises e figuram

    no conjunto da arte. No Brasil, o conjunto das obras selecionadas por um salo, assim

    como conjuntos apresentados em feiras, mostras coletivas e bienais de arte

    contempornea, formam mapas das possibilidades poticas da a produo artstica.

    Alm disso, a incidncia de troca entre esta produo e as mudanas contnuas no

    sistema das artes contextualiza as relaes estabelecidas em seu campo. O resultado

    desse processo apresenta-se nas posies em que a arte contempornea, seus

    personagens e instituies assumem.

    O conceito de arte contempornea aqui empregado passa a significar, portanto, a

    no totalidade do que se produz, mas aquilo que est sendo produzido dentro de uma

    certa estrutura de produo jamais antes vista em toda a historia da arte (DANTO

    2006:12), que poderia ser chamada tpica da contemporaneidade. Neste sentido, o

    mercado atua como grande indutor sobre a produo de arte, cuja continuidade depende

    de redes comunicacionais tecidas por seus profissionais. Danto (2006) identifica uma

    mudana histrica, j em 1980, nas condies da produo de artes visuais, ainda que,

    de um ponto de vista externo, os complexos institucionais do mundo da arte (...)

    parecessem relativamente estveis (DANTO, 2006:24). Uma nova descontinuidade no

  • 17

    mbito artstico seria definida, assim como ocorrera outrora ao emergirem os conceitos

    de arte e posteriormente de artista.

    Estaramos, portanto, num momento de transio da era da arte: a arte produzida

    durante a era da arte, e a arte produzida aps o trmino desta. Podemos pensar na arte

    contempornea como se estivssemos emergindo da era da arte para algo diferente,

    cuja forma e estrutura exatas ainda precisam ser compreendidas (DANTO 2006:4). Um

    complexo de prticas d lugar a um outro cujo formato fluido e no dispe do

    benefcio da narrativa legitimadora (DANTO 2006:6): a grande causadora de tal

    transformao. A produo atual trata, ento, de um estilo de usar estilos (DANTO

    2006:13), sem que restem perodos ou narrativas para tais estilos serem completados.

    Aplica-se a esse contexto o termo ps-modernidade, correntemente empregado e

    discutido por diversos autores4 desde a dcada de 1970. Caractersticas da ps-

    modernidade formariam um certo estilo que podemos aprender a reconhecer do mesmo

    modo como aprendemos a reconhecer exemplos do barroco ou do rococ (DANTO

    2006:14), embora no se oferea unidade estilstica nica que defina o ps-moderno.

    David Harvey (1992) apresenta a formao da nova identidade nomeada ps-

    modernidade, como um estado scio-cultural proveniente das mudanas promovidas

    pelas transformaes poltico-econmicas e provocadas pela dominncia capitalista, o

    que promove a reflexo sobre os aspectos de produo, consumo e reorganizao da

    produo cultural. O autor oferece um panorama das transformaes culturais nas

    sociedades ocidentais, voltando-se, sobretudo, s metrpoles e ao desenvolvimento

    destas e destacando as formas de produo como constantes e determinantes promotoras

    da ocorrncia de transformaes sociais e culturais.

    4 Como exemplos cito Hal Foster, Steven OConnor, Harold Rosenberg, Rosalind Krauss.

  • 18

    No ambiente das grandes cidades em formao, a Segunda Guerra Mundial

    causa o enfraquecimento dos posicionamentos polticos e o incio do sentimento de

    niilismo e incapacidade perante a grande estrutura capitalista dominante dos sistemas

    poltico, econmico e cultural. Fortalecido o individualismo, inicia-se a construo do

    modelo de sociedade ps-moderna.

    Segundo Harvey (1992), o prprio Modernismo ocorre a partir de uma reao s

    condies de produo (industrializao e urbanizao), circulao das informaes

    (transporte, comunicao, publicidade) e forma como se configurou o consumo de

    bens com estas modificaes aps a Primeira Guerra Mundial. O Modernismo no foi

    s um elemento gerador de transformaes, mas um conjunto de propostas

    vanguardistas, que tiveram como ponto de partida tcnico e conceitual as condies

    scio-tecnolgicas desenvolvidas na poca. Absorvendo as idias de vanguarda, o

    Modernismo props a reflexo e a ao sobre estas.

    O contexto cultural do Modernismo d lugar consolidao dos valores alados

    pela contracultura e pelos movimentos antimodernistas politizados do incio da dcada

    de 19705, o que causou o estabelecimento de uma esttica cultural, que institui uma

    identidade social especfica emergncia do Ps-modernismo.

    Segundo Hassan (1957, apud HARVEY, 1992), o momento ps-moderno

    mantm muito do carter moderno. Tal continuidade histrica anunciada

    conceitualmente pelas questes modernas transformadas em seus aspectos espaciais e

    temporais mutveis, conferidos pela dissoluo de um cenrio adquirido do contexto,

    que abrigou ou culminou nas seqenciais rupturas de vanguardas europias. As

    caractersticas atribudas ou classificadas como ps-modernas no seriam, ento,

    5 Entretanto, estes princpios suscitam os primeiros debates acerca do Ps-modernismo, somente na

    dcada de 1980, apesar de sua origem ter sido composta ainda antes, na dcada de 1960 pelas transformaes urbanas, que promoveram um carter metropolitano s cidades.

  • 19

    fundamentalmente inovadoras, mas frutos de uma transformao de elementos

    herdados, em vias de amoldar-se ao contexto em que se inserem.

    Harvey (1992:45) destaca que as relaes de tempo e espao so estabelecidas

    na produo cultural do perodo ps-moderno como uma associao no s s agitaes,

    nos quadros de produo e consumo e s transformaes identitrias dos indivduos,

    como tambm aos valores de deslocamento e de transmisso da informao

    estabelecidos a partir desse contexto. Aos poucos, a identidade pessoal e a artstica

    tornam-se, incapazes de se apresentar de forma unificada temporalmente em funo da

    sua concentrao nas complexas circunstncias que derivam do colapso das relaes

    significante-significado na passagem do Modernismo para o Ps-Modernismo6

    (HARVEY 1992:56).

    A sociedade ps-moderna e suas instituies tm como principal caracterstica a

    sua constante e veloz transformao e compresses de espao e tempo - coordenadas

    bsicas de todo o sistema de representao artstica, cada vez menos naturais ao ser

    humano. Com processos em acelerao, distncias minimizadas e aes, que causam

    impactos simultneos, em diferentes espaos, tais moldagens contnuas trabalhadas por

    Weirtheim (2001) provocam efeitos profundos sobre as formas pelas quais identidades

    so localizadas e representadas, tornando qualquer espcie de identidade provisria e

    perturbadora.

    O sujeito ps-moderno est composto por identidades simultneas e convive

    com uma paisagem social em colapso, uma vez que se encontra circundado por

    inquietas e constantes transformaes estruturais e institucionais. Segundo Stuart Hall

    6 Apesar de concordar com o carter fragmentrio do sujeito, Harvey (1992) repreende o posicionamento

    de filsofos notavelmente ps-modernos que dedicam total acolhimento s vozes da fragmentao. O autor acredita que, autenticando de imediato tais vozes, elas ficam impossibilitadas de atingir novos espectros de abrangncia, como o poltico ou o social. Isto as reduz a um aspecto ou jogo de linguagem especfico, acabando por intensificar ainda mais os guetos de poder.

  • 20

    (1997), este esfacelado contexto compromete o processo de identificao tradicional do

    sujeito com o meio, o que leva no formao de um eu coerente, formatando uma

    identidade j fracionada em sua raiz. A falta de coerncia do sujeito passa a dar vazo a

    outras mltiplas e interminveis fragilidades e incertezas, que comporo uma identidade

    em novos e complexos moldes, mutveis.

    O artista, como exemplo-alvo destas mudanas, desempenha ento sua funo de

    maneira diversa ao que se entende tradicionalmente como produo artstica. Esta

    ocorre por meio do olhar, do pensamento e da percepo, o que traa uma nova

    cartografia artstica que inclui a emergncia de um sujeito contemporneo que ir

    contribuir de maneira decisiva para uma posterior ressemantizao da arte e dos

    postulados filosficos (BOUSSO, 2005). As posies que ocupam os artistas, em

    relao s demais posies definidas no sistema da produo intelectual e artstica,

    tendem, segundo Harvey (1992), a se tornar um princpio unificador gerador de

    identidade do sistema cultural, e esclarecedores de transformaes estruturais do

    circuito, ainda que em processo de configurao na constituio da histria das artes.

    Percebe-se uma perda de equilbrio (ou de certezas), ainda que precrio, da

    sociedade como um todo, o que possibilita e incentiva novas formas de manifestaes

    de diversas ordens. Decorrentes da forma antinatural, que constitui a relao do sujeito

    com tempo e com espao contemporneos (inclusive ficcionais ou virtuais) se afirmam

    conceitos negativistas tambm na arte, que tornam corriqueiras as expresses no-tempo

    e no-lugares, alm dos muitos outros nos j discutidos. Podemos dizer que o meio de

    arte depara-se com um momento de incerteza, que desgua transitoriamente no meio da

    produo artstica contempornea.

  • 21

    Neste sentido, o momento Ps-moderno pode ser tratado como uma forma

    particular de crise do Modernismo, o que enfatiza a face fragmentria, efmera, e

    catica da formulao de Baudelaire (1988) sobre a dualidade humana e da arte, ao

    mesmo tempo em que exprime um denso ceticismo diante de toda determinao

    particular sobre como conceber, representar, ou exprimir o eterno e o imutvel.

    Na prtica das relaes derivadas da modernidade Moacyr dos Anjos7 (2005)

    afirma que, na arte da ps-modernidade, o objetivo moderno de projeo e progresso

    rumo a algum lugar renegociado constantemente (ANJOS, 2005) e prope para esta a

    metfora do alvo mvel (...) mais como um processo de busca que ponto de chegada

    (ANJOS, 2005). Desta forma, no se deve esperar da arte atual uma recolocao de

    utopias, mas a ampliao da nfase no processo de busca voltado articulao e

    investigao, e associados a uma viso crtico-propositiva. Em escala mundial, pode-se

    dizer que o veloz processo de transmisso de informaes, a extenso das possibilidades

    e facilidade de deslocamento espacial tornam a arte brasileira um conceito to

    indefinido quanto arte alem ou arte americana. Panoramicamente, desde a dcada de

    90 (...) o inevitvel e irreversvel processo de globalizao vem desorganizando em alta

    velocidade as relaes internacionais (...) um mundo novo para o qual no estamos

    minimamente preparados (...) tudo em tempo real (BOUSSO, 2005).

    Com isso, gerada uma inevitvel crise de parmetros, na produo artstica

    que, pela ausncia de limites de criao que prope, resulta numa larga produo de

    arte, talvez em escala nunca vista, o que demonstra um aspecto de sua positividade. De

    acordo com Ronaldo Brito, o gesto de liberar implica uma situao de opresso, uma

    7 Diretor do MAMAM, em Recife, coordenador do projeto Visualidades Contemporneas do Instituto de

    Cultura da Fundao Joaquim Nabuco. Atua tambm como curador e autor de artigos sobre arte e mercado. Entrevista concedida, em maio de 2005, no Rio de Janeiro.

  • 22

    situao insustentvel, que seria respectiva vivida na ps-modernidade (BRITO,

    2002, apud BASBAUM, 2005:216).

    Para Stuart Hall (1993), tanto o liberalismo quanto o marxismo j apontavam

    que:

    o apego ao local e ao particular dariam gradualmente vez a valores e identidades mais universalistas, cosmopolitas ou internacionais (...) e o nacionalismo e a etnia eram formas arcaicas de apego... Ao local e ao particular, tradio e s razes, aos mitos nacionais e s comunidades imaginadas (HALL, 1993:43).

    Tal processo construiria, gradualmente, um domnio de identidades mais

    racionais e universalistas. A sobreposio do global ao local encaminha a um

    descentramento constante das relaes humano-sociais. Hall (1993) relata as crises de

    identidade pelas quais o homem passou8, e coloca o atual desequilbrio das identidades

    culturais como mais um destes momentos. Para o autor, a identidade somente torna-se

    uma questo quando est em crise, e o Salo de Arte, por constituir uma instituio que,

    por seus preceitos, seria estvel, incita a discusso ao apresentar crise em seus

    resultados e processos, em embate com a realidade tambm em crise.

    8 Segundo Hall (1993), as razes do descentramento conceitual do sujeito foram, cada uma a seu tempo: o

    questionamento s proposies-chave da filosofia moderna, o que levou ao desequilbrio o homem enquanto ser total e nico. A descoberta do inconsciente por Freud, que arrasou o cartesianismo; o questionamento de Saussure linguagem e a negao do domnio de seus significados pelo homem; a viso de Foucault acerca do poder disciplinar, que individualiza os seres a fim de exercer poder coletivo atravs das instituies; e o impacto do feminismo como crtica terica e movimento social. Assim, o sujeito do Iluminismo foi se dissolvendo em identidades abertas, contraditrias e inacabadas, o que certamente foi instaurado tambm pela arte.

  • 23

    2.2- Sob a gide do mercado

    Ao contrrio da idia de que existe um campo artstico, tradicional e

    ideologicamente posicionado, em oposio ao sistema econmico, poltico e religioso,

    legislam instncias que pretendem atuar na esfera cultural em nome de um poder ou

    autoridade no propriamente cultural. Dessa forma, sociedades, sistemas de produo e

    circuito artstico estaro sempre relacionados e em constante movimento. Ao tratar do

    sistema de produo e circulao de arte como o sistema de relaes objetivas entre

    diferentes instncias definidas pela funo que cumprem na diviso do trabalho de

    produo, de reproduo e de difuso de bens simblicos, Pierre Bourdieu (1974:71)

    afirma que o entendimento derivado destas relaes permite a compreenso do

    funcionamento do campo, suas transformaes, estrutura das obras que produz e de sua

    sucesso.

    A histria da vida intelectual e artstica das sociedades (...) revela-se atravs da histria das transformaes da funo do sistema de produo de bens simblicos e da prpria estrutura destes bens, transformaes correlatas constituio progressiva de um campo intelectual e artstico, ou seja, autonomizao progressiva do sistema de relao de produo, circulao e consumo de bens simblicos (Bordieu, 1974:99).

    Atuando desde os primrdios sob a tutela de instncias de legitimidades

    externas, a produo artstica, na ps-modernidade, desenvolve-se no sentido de,

    progressivamente, libertar-se de suas demandas ticas e estticas. Historicamente, o

    primeiro momento de autonomia no campo das artes ocorre quando a burguesia

    detectada como pblico consumidor em potencial para a produo de arte. Assim,

    possibilitam-se modificaes, na produo artstica, ou seja, a possibilidade para o

  • 24

    desenvolvimento de novas tcnicas ou linguagens. A quebra da dependncia de um

    consumidor especfico permite aos artistas uma autonomia formal, que apenas

    condio para a sua submisso s leis do mercado de bens simblicos. Define-se um

    primeiro passo em direo distribuio do poder, no mbito da arte, que, desde ento,

    obedece a presses dos ndices de vendas e define um novo princpio de legitimao da

    arte: a trama mltipla e complexa do mercado consumidor.

    Todas estas invenes do romantismo, desde a representao da cultura como realidade superior e irredutvel s necessidades vulgares da economia, at a ideologia da criao livre e desinteressada, fundada na espontaneidade de uma inspirao inata, aparecem como revides ameaa que os mecanismos implacveis e inumanos de um mercado regido por sua dinmica prpria fazem pesar sobre a produo artstica ao substituir as demandas de uma clientela selecionada pelos veredictos imprevisveis de um pblico annimo (Bourdieu, 1973:104).

    A ocorrncia de uma sucesso de autonomias no meio artstico transforma

    inevitavelmente seus estatutos e seus personagens, que se descaracterizam em relao

    tradio e exerce funes e posicionamentos em novos espaos. A desmistificao da

    atividade artstica acompanha tais transformaes sociais, que afetaram em particular o

    posicionamento do artista diante de sua produo e sua ideologia. Nesse sentido, o

    artista se desvencilha de um sistema seguro e levado a uma posio marginal, devendo

    submeter-se agora s flutuaes de mercado e atuar na dependncia de marchands e

    crticos. ento que o espao intermedirio entre produtor e consumidor povoa-se de

    uma grande quantidade de figuras do marchand ao galerista, passando pelos crticos,

    especuladores e colecionadores (CAUQUELIN 2005: 56).

    Aps o rompimento do moderno com o academismo e a centralizao de poder

    de legitimao dos sales promovidos pelas Academias, que fomentavam a imagem do

    artista como antagnico ao sistema comercial, o artista passa a se agrupar em grupos

  • 25

    independentes e descentralizados, passando a desenvolver outras funes, como o de

    agentes. Durante o Modernismo a visibilidade de um artista dependia de seu

    engajamento em uma vanguarda, o que, para Bourdieu (1987), eram grupos promovidos

    pelo sistema de consumo. Aos poucos, as escolas artsticas so substitudas por grupos

    de artistas, que trabalham de uma mesma maneira, apoiados por um crtico, e cujas

    obras um marchand vende. Com isso, formam-se grupos de vanguarda em nome dos

    quais o crtico desenvolve seu trabalho, mas cuja constituio promove uma

    modificao na configurao das redes de relao do circuito de arte, possibilitando,

    conseqentemente, um posicionamento mais crtico do artista e potencializando a

    ocorrncia de se ter como pblico o prprio grupo.

    A partir da criao e da multiplicao de instncias mediadoras, responsveis

    pela legitimao das obras, os sales, autnomos, adquirem poder de legitimidade e

    difuso do modelo de arte que criam. Bourdieu (2005) compreendeu o sistema erudito

    ainda destacado do mercado puro e simples quando desenvolve uma profunda distino

    entre indstria cultural da produo erudita a partir da afirmao. Ao contrrio do

    sistema da indstria cultural, que busca consumidores em massa, o campo da produo

    erudita busca criar ele mesmo suas condies de sobrevivncia, ou seja, produz

    inclusive suas normas de avaliao e validao de seus produtos (BOURDIEU, 2005).

    Ainda segundo o autor pode-se:

    medir o grau de autonomia de um campo de produo erudita com base no poder que dispe para definir as normas de sua produo, os critrios de avaliao de seus produtos e, portanto, retraduzir e reinterpretar todas as determinaes externas de acordo com seus princpios prprios de funcionamento (BOURDIEU 1973:106).

  • 26

    O campo da produo erudita passa a se destinar aos prprios produtores, numa

    ruptura contnua com as fraes no-intelectuais inclusive das classes economicamente

    dominantes9. Ocorre uma espcie de fechamento em si mesmo, cuja hostilidade gera um

    distanciamento libertador do consumidor desinteressado pela erudio e encontra, no

    mbito dos prprios produtores, um pblico envolvido, que se apresenta tambm crtico

    e cmplice. Voltada sobre si mesma, a arte se torna um saber erudito, e chegar ao

    pblico no especializado no parece ser a inteno principal, j que a reflexo de ponta

    que se pretende no acessvel a este. O pblico geral passa ento a diminuir

    proporcionalmente ao aumento do poder dos intermedirios, que atuam, a princpio,

    nesta mediao.

    A profissionalizao dos agentes corresponde a uma especializao, mas os

    papis no so individuais, pois, ainda que o profissional se intitule curador, este

    tambm, alm de conservar museus, julga obras em sales, escreve textos de

    apresentao ou tericos, apresenta e promove artistas. Tais modificaes de papel

    fazem parte das estratgias de busca de espao artstico. Assim, o profissional das artes

    transita entre as posies possveis no circuito de arte, cujas fronteiras tornam-se cada

    vez mais fluidas.

    Diante do numeroso e variado corpo de artistas e consumidores, criam-se

    cdigos relacionais, que transformam diretamente as normas definidoras do acesso

    profisso e da participao no meio, como determinaes e imperativos tcnicos. Isto ,

    forma-se uma nova distino, ou perfil, para ou artista e seu pblico. A partir de ento, o

    9 A partir do ndice de diferenciao proposto por Bourdieu (2005) para a observao do grau de

    autonomia do meio, seria possvel afirmar que a obra de arte ou o artista que atingem o grande pblico, que no merecedor de aceitao ou atribuio de valor pelo meio erudito, pois se estes atuam a partir de valores diversos. Uma produo de arte no seria passvel de aceitao pelos dois grupos simultaneamente, j que a interveno do grande pblico chega a ameaar a pretenso do campo ao monoplio da consagrao cultural (BOURDIEU, 2005:107)

  • 27

    circuito artstico passa a emprestar do mercado alguns mtodos ligados

    comercializao da obra de arte. No mbito da arte, as relaes passam a girar em torno

    de um novo interesse central externo, comercial e no mais erudito, contando com a

    atuao dos detentores dos instrumentos de difuso, que indicam ser, a priori, no

    centralizadores, mas agentes inevitveis duma Histria da Arte Contempornea em

    formao.

    O processo de autonomizao do meio artstico sempre gerador de um

    processo de profissionalizao que vem acompanhado pelo firmamento de regras e de

    deveres de cada personagem inserido neste campo, e que compe um ponto de partida

    para que os envolvidos fiquem propensos a liberar sua produo de quaisquer vnculos

    de dependncia, o que na arte contempornea. A posio que cada agente ocupa e

    representa no campo da produo erudita distingue as relaes sociais entre artista,

    mediadores (crticos, curadores, galeristas), colecionador e pblico. Este processo

    define as relaes entre seus personagens e a definio da funo do artista e de sua

    obra.

    A produo de textos tericos passou por diversas etapas at atingir o grau de

    autonomia da atualidade. O discurso terico afirma-se, cada vez mais, como

    possibilitador do confronto de juzos divergentes, desde o momento em que os

    princpios estilsticos tornaram-se objeto central de produo e legitimao, tanto nas

    vanguardas artsticas europias - com movimentos e manifestos declarados quanto no

    Brasil modernista. Assim, ao tentar decifrar a arte produzida em determinado momento,

    o crtico se coloca a servio do artista e contribui para afastar pblico e no

    produtores (BOURDIEU 2005:122), ou seja, vem primeiramente favorecer o artista a

    tornar mais clara a essncia de sua obra para si e para seus pares, e passa glria de

  • 28

    interpretao da obra numa direo a desvelar ao artista novas formas de perceber sua

    prpria arte.

    por via da inacessibilidade da arte que agem as instncias de mediao,

    reproduo e consagrao, assegurando a produo de receptores para esta mesma arte.

    Museus e instituies de ensino tambm se inserem, nesta esfera de mediao, e

    conseqente legitimao, pois so formadoras de pblico e de produtores.

    A distncia que a arte estabelece com o pblico em geral verificvel por

    constituir um campo que pretende encerrar em si mesmo seus valores e demandas, e que

    progride por meio de rupturas cumulativas com os modos de expresso anteriores,

    impossibilitando continuamente a recepo fora de seu campo. E a arte contempornea,

    apesar de deslocar-se ao espao pblico, ainda no tem a capacidade de tornar-se

    inteligvel a este, e os artistas, dedicados a pesquisas cada vez mais complicadas

    parecem pretender continuar agindo em seu campo e para o pblico interno a este.

    Quando o campo se fecha em regras prprias, a nica forma de agir dentro deste

    concorrer ao alcance destas regras, o que empobrece em primeira instncia a obra

    (BOURDIEU, 2005:115).

    H, ento, o embate entre a arte verdadeira e aquela que circula por razes de

    insero do produtor e, por esse motivo, talvez esta venha se dedicando a infindveis

    explicaes e sistematizaes, atravs de uma espcie de retorno teoria (no somente

    na arte de pesquisa do prprio campo, mas muitas vezes academia como respaldo para

    a produo em arte). Distinguem-se produes voltadas no propriamente para a arte,

  • 29

    mas para o meio, o que suscita o questionamento sobre para quem afinal deve ser a arte

    voltada, j que o pblico em massa est, ou parece estar, longe de constituir seu alvo10.

    Os mediadores da arte sofrem e modificam seus posicionamentos e funes de

    acordo com as transformaes sociais impostas e ocupam uma posio, que se

    transforma continuamente quanto insero e poderio. A prtica de mediao pode ser

    considerada uma prtica ainda em vias de consagrao. Significa que, apesar de

    inseridos e bastante atuantes no campo da arte, esses profissionais ainda no tm

    posio bem determinada no meio artstico. No uma situao solitria a dos

    mediadores, pois se pode dizer que nenhum dos personagens envolvidos no campo das

    artes, atualmente, possa colocar-se em uma posio determinada e determinante sequer

    em relao a suas ideologias. No entanto, este profissional, por ter sofrido recentes

    modificaes e constantes adequaes de papel no meio, est ainda desestruturado.

    Diversamente de uma prtica legtima, uma prtica em vias de consagrao coloca

    incessantemente aos que a ela se entregam a questo de sua prpria legitimidade

    (BOURDIEU, 1974:177). E talvez seja esta legitimidade colocada prova que conduz

    estes personagens a emitirem juzos muitas vezes divergentes, mas quase sempre

    apaziguadores, alm da adoo de signos exteriores filosficos, graas a Kosuth

    (1975), cientficos e assim por diante a fim de alcanar determinada crena

    estabilizadora.

    No interior do sistema, da forma como se constituiu e vem se constituindo

    historicamente, as instncias que agem como entidades consagradoras ou legitimadoras

    cumprem uma funo homologa da Igreja, pois funda e delimita sistematicamente a

    10 Podemos aplicar os adjetivos que Pierre Bourdieu (2005) utiliza ao fazer referncia produo

    artstica. So estes: puro, abstrato e esotrico, uma vez que essa produo exige do receptor no s uma disposio que esteja adequada aos seus princpios de produo, como tambm enfoques especficos produo.

  • 30

    doutrina a ser seguida, estabelece o que tem ou no valor sagrado e inculca f nos

    leigos (BOURDIEU, 1974:120). As referidas instncias geram, alm da concorrncia

    pela legitimao da produo, a concorrncia pelo poder de conced-la. Estas entidades

    fsicas, jurdicas, privadas ou pblicas atuam em funo de legitimadoras atravs de

    seleo e transmisso (circulao) destes bens culturais.

    As relaes que os agentes de produo, de reproduo e de difuso estabelecem

    entre si ou com instituies so mediadas pela estrutura do sistema das relaes entre as

    instncias, com pretenses de exercer uma autoridade propriamente cultural. Segundo

    Bourdieu (1973), parece irrefrevel a atual circulao de informao, que possibilita

    formas de legitimao e de consagrao estranha ao conhecido primado, o que, outrora,

    constitua uma espcie de barreira s demandas externas ao crculo erudito da arte, e

    assegurara, na deteno e imposio de princpios de legitimidade propriamente

    culturais, certa autonomia a este campo.

    Vivemos, portanto num momento em que as formas de legitimao, no

    necessariamente culturais, fundem-se com as instncias supostamente culturais. Por no

    haver um limite ou interdio para a circulao publicitria da arte, e pelo prprio meio

    no possuir mecanismos exatos para medir o grau de legitimidade de trabalhos ou

    multiplicveis pesquisas artsticas, no se distingue quais produes integrantes ou

    no do circuito comercial ou meio erudito - so possivelmente consagrveis.

    De acordo com Bourdieu (2005), no h maneira de localizar, neste campo, sua

    verdade inteira, pois no h - e essa afirmao aplica-se ao meio da arte hoje, incerto e

    em transio - tomada de posio cultural que no seja passvel de uma dupla leitura na

    medida em que se encontra situada ao mesmo tempo no campo propriamente cultural

  • 31

    (...) e em um campo que se pode chamar poltico (BOURDIEU, 2005:169). Nas

    palavras do autor:

    uma anlise interna de um sistema de relaes simblicas s consegue reunir fundamentos slidos se estiver subordinada a uma analise sociolgica da estrutura do sistema de relaes sociais de produo, circulao, e consumo simblico onde tais relaes so engendradas e onde se definem as funes sociais que elas cumprem objetivamente em um dado momento do tempo (BOURDIEU 1974:175).

    Hoje, muitas tomadas de posio no campo das artes se mostram, sobretudo,

    polticas, e que muito da responsabilidade sobre aquilo que se afirmar verdadeiramente

    como arte contempornea abandonado a cargo do distanciamento que a Historia

    exige para ser contada.

    2.3 - Legitimao pela comunicao

    Pode-se entender o artista e o campo da arte como integrantes dum sistema de

    comunicao, que foram capazes de transformar a produo artstica, sua legitimao e

    sua fruio junto ao pbico. Neste sentido, possvel apontar uma nova mudana de

    paradigmas da arte, ocorrida, na passagem da Era Moderna para a Era Contempornea,

    a partir do segundo ps-guerra (BOUSSO, 2005:5), quando foram alteradas as formas

    de recepo e de produo de imagens causadas pelo consumo de massa e os valores

    por este veiculados provocaram uma mudana irreversvel da percepo do sujeito. No

    incio dos anos 1980 (...) com a determinao das redes informticas como parcelas

    constituintes da vida cotidiana (...) finalmente o sistema da representao migra para o

    sistema das imagens (BOUSSO, 2005:6). Formata-se assim uma nova realidade no

  • 32

    mundo das artes visuais, o que inclui a virtualidade como palpvel e institui a

    artificialidade do olhar. Com isso, pode-se dizer que o desenvolvimento das linguagens

    artificiais (formas virtuais de comunicao e produo de informao) e seu uso

    generalizado construram novas referncias que alteraram a viso de realidade.

    fato que as artes no somente absorvem as transformaes decorrentes da

    configurao, que a reprodutibilidade e circulao ilimitada de informao definem,

    como tambm passam a trabalhar com estas questes. A tecnologia que possibilitou tal

    passagem ou transformao, segundo Cauquelin (2005), se encarrega constantemente do

    andamento de dois princpios essenciais no desenvolvimento da sociedade: o progresso

    e a identidade.

    As transformaes decorrentes da soberania da comunicao - atuantes atravs

    do princpio da repetio e da redundncia instauradas pela rede de informaes -

    instauram e promovem a prevalncia da prpria rede sobre o contedo (as obras).

    Conseqentemente, isso causa a re-significao da sociedade por alcanar os domnios

    artstico e social em seu contedo, alm de sua estrutura de funcionamento.

    O antigo sistema de vanguarda se torna contemporneo pela diversificao e

    procura novas denominaes, que estaro em novos artistas e atitudes na produo da

    arte. Tal movimento de renovao tem como deflagratria a presena de artistas cada

    vez mais jovens no circuito, consagrados precocemente pelo sistema excessivo de

    reproduo de marcas destinadas ao mercado.

    Cauquelin (2005) detecta que diferentemente das vanguardas da arte moderna,

    que se organizavam contra o mercado oficial pra preservar a autonomia da arte, no caso

    da arte contempornea pretende-se uma absoro da autonomia pela comunicao

    (CAUQUELIN, 2005:79), de forma que a exposio, no as obras, carregue a

  • 33

    significao isso arte. Para Danto (2006), na contemporaneidade ps-histrica, a

    prpria obra suscita a pergunta: por que sou uma obra de arte? Pergunta que pode ser

    aplicada s obras atualmente legitimadas pelo circuito, mercado e rede. A pretenso

    condio de arte torna-se inclusive limitadora: essa condio impossibilita a definio

    de obras de arte com base em certas propriedades visuais que elas possam ter

    (DANTO, 2006:19).

    Desta forma organizado, o artista que entra no mercado das artes precisa aceitar

    as regras impostas para prosperar no mercado. Isto requer um individualizar-se

    permanente que resulta numa certa redundncia da obra, reproduzida e exibida

    incansavelmente, como algo necessrio para a fixao do artista numa memria coletiva

    (de um grupo) numa situao em que estes esto tomados pelo excesso de informao

    dirio. H para a produo contempornea a necessidade de que a obra circule pelo

    campo ampliado, e que se torne reconhecvel como uma marca, atuando neste sentido

    mediadores e agentes das redes.

    Um agente emblemtico que participou diretamente da construo de artistas

    reconhecidos foi Leo Castelli. Cauquelin (2005), o aponta como um dos pilares, alm de

    Duchamp e Warhol, da organizao do meio de arte contemporneo: manter-se

    informado , por um lado, ver os artistas, mas tambm se documentar e documentar

    todo comprador eventual: os catlogos, os press-kits so largamente distribudos aos

    jornalistas (...) os catlogos se tornam cada vez mais luxuosos (Warhol, 1968, apud

    CAUQUELIN, 2005:59).

    Uma caracterstica essencial, mas perigosa do poder da rede o fato de ela

    deslocar o poder de valorao para a rede, de forma que uma instituio, ainda que

    localizada e centralizada, s adquira poder, na medida em que seja capaz de estar

  • 34

    presente dentro da rede. Pode-se dizer que a contemporaneidade constitui uma espcie

    de realidade em segundo grau, uma simulao sendo construda, onde os valores

    (palpveis ou atribuveis) tornam-se extremamente rarefeitos e consequentemente muito

    frgeis. A noo de sujeito ou unidade comunicante apaga-se, em favor de um sistema

    de informaes sobre o qual dominam as regras de circularidade, cujo principio a

    reversibilidade de informaes.

    Passam ento a dominar as tomadas de deciso de relaes pessoais, que

    asseguram proximidade e referncia. Isto , as tomadas de deciso oferecem uma

    espcie de segurana que as relaes, constitudas a partir do colossal meio de troca de

    informaes ilimitado, no pode oferecer.

    O sistema de tornar visveis as obras, pertence ao prprio principio da

    comunicao que, segundo Cauquelin (2005) significa:

    tudo dizer tudo tornar pblico. Pois a palavra de ordem da comunicao a transparncia; no se omitem furtivamente as informaes, nenhum produtor consegue trabalhar s escondidas. A informao no manipulada, como ainda se acredita, pois a manipulao tpica do antigo sistema, aquele em que o produtor (artista) era diferente do intermedirio (crtico, marchand, galerista), o qual era distinto do consumidor (o diletante, o pblico). Aqui tudo se passa a cu aberto, no h segredo, somente a velocidade da transmisso pode desempenhar um papel discriminador entre os grandes produtores e seus seguidores. (Cauquelin 2005:75)

    possvel comparar este sistema ao que rege a publicidade, ou seja, a

    espetacularizao da amostragem, com o maior e mais qualitativo alcance possvel, que

    possa atrair pblico e consumidores atravs duma poltica quantitativa do produto.

    Concepo primeiramente apontada por Andy Warhol, autodenominado business-artist

    que, colocando o objeto corriqueiro ordinrio em posio de obra de arte, afirmou o

  • 35

    mercado como instituio dotada de valor, apesar de, primeira vista, deixar parecer

    que seria o museu a instituio a promover valor s obras.

    Pode-se dizer que Warhol pertena arte contempornea, alm da histria da

    arte pop dos anos de 1960, pela forma como articula a arte no circuito e, em particular,

    na sociedade e nos negcios. Partindo de Duchamp e do Dadasmo, Warhol introduziu a

    imagem serial na arte e a utilizao dos meios eletrnicos de impresso e reproduo.

    Imagens contaminadas pela cultura de massas que, para Cauquelin (2005), nada mais

    eram que um prenncio de afirmao do advento das redes. O artista, atravs da

    reproduo banalizante, mas tambm espetacularizante, de rostos e produtos de

    consumo, numa repetio incessante de tais imagens at a saturao, ocupou

    inteiramente o circuito e perpassou os limites da arte, construindo uma poderosa rede de

    autopromoo atravs da circulao de seu nome-marca. O nome Warhol tornou-se uma

    obra, e, talvez, a ltima ao do artista poderia ter sido a venda de seu nome para um

    colecionador qualquer.

    A partir de ento, Cauquelin (2005) coloca que obra e artistas passam a ser

    tratados pelas redes de comunicao simultaneamente como elemento constitutivo (sem

    eles a rede no tem razo de ser), mas tambm como um produto da rede (sem a rede

    nem a obra nem o artista tem existncia visvel). estabelecido um princpio de

    circularidade bastante promscuo, pois, atravs de publicaes sobre a visibilidade dos

    artistas, cria-se uma cadeia muito prxima da publicidade, em que os destinatrios so

    tambm os gestores da rede. Ou seja, o sistema da arte contempornea organiza-se de

    forma que os produtores profissionais da circulao das obras (...) e os artistas-objetos

    pretextos dessa transmisso (CAUQUELIN 2005:78) a destinem a si mesmos, e a

    consumam aps hav-la fabricado, como numa regurgitao.

  • 36

    Segundo Cauquelin (2005) Warhol teria sido tambm o promotor de um esboo

    de um desnudamento da rede formada pelos profissionais da arte (CAUQUELIN,

    2005: 87), pois atuou como um porta-voz satrico da sociedade de consumo, cuja obra

    se situa no sistema mercantil e simultaneamente exibe-o crtica e notoriamente. A este

    respeito, a autora afirma: a definio da arte como negcio e do artista como homem

    de negcios (...) portadora de uma desmistificao fundamental na qual residem

    justamente os encantos da arte contempornea, orientada segundo os princpios da

    comunicao (CAUQUELIN, 2005: 93).

    Estaramos num momento em que a liberdade deflagratria do sistema reflete

    sobre este, mas no o acusa, trabalhando com as possibilidades que este oferece e

    demonstrando a capacidade de adequao e reflexo do artista para com sua realidade,

    liberto de quaisquer fardos tradicionalistas. A exigncia de pureza artstica de insero,

    na tradio em seus valores, atua na recusa do comrcio de arte e da posio do artista

    como homem de negcios11 desapareceram ao final das vanguardas e seu aspecto

    anticomercial e, segundo Cauquelin (2005), cederam lugar aos artistas absolutamente

    determinados a se tornar ricos e clebres e a fazer uso, para isso, de todos os trunfos

    mundanos. Se um deles no alcana, como Warhol, seu objetivo determinado, talvez

    por no possuir o domnio do processo. (CAUQUELIN 2005:117). Pode-se afirmar

    que a arte contempornea tem sua imagem inserida numa realidade de segundo grau,

    que substitui o real e objetivo por uma vivncia de projees, possibilidades e meios

    possibilitadores. A obra deixa de ser o principal na arte.

    11 Refiro-me polmica declarao de Warhol: comecei minha carreira como artista comercial e quero

    termina-la como business-artist (...) Eu queria ser um homem de negcios da arte ou um artista-homem de negcios (...) Ganhar dinheiro uma arte, trabalhar uma arte e fazer bons negcios a melhor das Artes Warhol, Andy in The Philosophy of Andy Warhol: (From A to B and Back Again) (Paperback) Harcourt , 1977)

  • 37

    Os inmeros desdobramentos da arte nesse perodo trouxeram importantes

    contribuies para a transformao do sistema de representao em sistema de imagens,

    que invadiram, desde os anos de 1960, a vida cotidiana da sociedade. Os artistas da pop

    art tinham como referncia a linguagem da publicidade que, depois de introduzida no

    meio das artes, nunca mais deixou de ser dominante. A arte assume a influncia da

    publicidade e de suas imagens da mdia - efmeras e instantneas tomadas como

    mercadorias e que visam produo de signos finalmente mercantis -, que se colocam

    como agentes dominantes na constituio da visualidade contempornea.

    A construo destas imagens ocorre a partir do sistema dominado pela

    circulao de capital, e sugere a organizao de uma indstria de produo especfica a

    estas, que tem como agentes de poder os chamados criadores diretos ou produtores

    culturais. promovida uma espcie de criao ressemantizada mercadologicamente das

    formas estticas em circulao dedicadas s massas (ou ao cliente), o que causa em

    efeito ampliado no contexto da vida cultural: a redefinio da visualidade que se cria

    cotidianamente nas grandes cidades.

    Por sua vez, a atuao do produtor cultural ps-moderno, que utiliza meios de

    comunicao como ferramentas estratgicas na divulgao de suas idias artsticas,

    influi diretamente no delineamento do perfil do artista contemporneo.

    A partir de seu primeiro momento de autonomia, quando houve a constituio da

    burguesia transforma o estatuto da obra aos poucos em produto, o meio da arte vem

    elegendo, ainda que mudanas e autonomias tenham ocorrido, um novo mandatrio para

    suas aes, o que vem a ser o mercado. Isto representa um retorno s tutelas, que jamais

    abandonaram a razo econmico-social, interesses base de instncias de poder

    financeiro e comercial. Hoje, aliada ao mercado atuante sobre todas as formas de

  • 38

    produo de bens e de elevao de poder, a rede de comunicao cumpre o papel de dar

    visibilidade (poder social) atravs da concesso ou no da circulao da mercadoria, ou

    seja, do produto-obra ou do personagem-artista veiculado. Pode-se dizer que a rede de

    informaes seja o prprio circuito12 a servio do mercado: universos sutilmente

    distintos, porm dificilmente dissociveis.

    Instala-se gravemente um problema de ordem de escala, que torna monstruoso o

    poder do mercado, e se alia ao poder de circulao de imagens. Por sua vez, tais

    imagens interferem no s na resultante da produo artstica, como tambm no prprio

    imaginrio, ou na formao visual de uma gerao. Como conseqncia de um sistema

    regido pelo mercado, os produtores so consagrados de forma irregular, ou seja, a

    consagrao perpetrada por instncias desigualmente legtimas (pblico estranho ao

    corpo de produtores) que instituem relaes objetivas entre produtores e instncias

    capazes de exercer as etapas de consagrao seja pela legitimao simblica ou pelo

    princpio de cooptao. Atualmente, dividida entre instituies diferentes, as funes de

    reproduo e legitimao da arte, tornam-se adaptveis s regras do sistema, que busca

    cooptar iniciativas, muitas vezes com sucesso.

    Sendo assim, ao fazer referncia realidade contempornea Cauquelin (2005),

    afirma que as instituies - museus e centros culturais - teriam por funo designar para

    o pblico o que arte contempornea, ou seja, agrupar informaes e atuar como

    legitimadoras conscientes. Para tanto, os conservadores e diretores de instituies tm a

    vantagem de promover obras sem precisar lidar, a princpio, com meandros do mercado.

    Desta forma, no mais caberia crtica de arte figura influente desde o modernismo -

    assegurar a articulao entre obra e pblico, j que se v acompanhada nesta funo por

    12 Trato o circuito de arte como o pequeno universo no qual esto inseridos artistas, mediadores e

    consumidores de arte, e dentro do qual circulam reflexes, decises e as prprias obras como produto.

  • 39

    uma profuso de profissionais da arte, alm daqueles a servio da comunicao e da

    publicidade, o que se torna apenas uma pea entre outras no mecanismo de apresentao

    de obras e artistas.

    A universidade, por sua vez, retomada funo primordial de instituio

    formadora, assume-se como instituio de legitimao. No Brasil, isto se d atravs dos

    cursos de ps-graduao que promovem, alm da reflexo, a produo artstica dentro

    da universidade e a apresentao de obras e artistas ao mercado. Segundo Lontra

    (2005)13, o que hoje salva a arte contempornea, ou o que d a ela seu passaporte de

    existncia (...) a capacidade de engendrar idias (...) de provocar situaes, de

    reorganizar, reclassificar e compreender o mundo (LONTRA, 2005). Neste mbito,

    discusses acadmicas tericas se mostram bastante enriquecedoras, produo de arte,

    o que ser discutido adiante

    Para Cauquelin (2005), o sistema da arte se apresenta em um chamado estado

    contemporneo, que se caracteriza por ser produto de uma alterao de estrutura de tal

    ordem que no se podem mais julgar nem as obras nem a produo de acordo com o

    antigo sistema (CAUQUELIN, 2005:27). Sobre os conceitos fundamentalmente

    tradicionais da arte, afirma:

    essa constelao de opinies feita de elementos heterclitos, herdada em parte das teorias do sculo XVIII (Kant, Hegel e o Romantismo) em parte do sculo XX (a crtica social e a arte para todos), esta solidamente enraizada e forma uma tela, uma mscara atravs da qual tentamos apreender em vo a contemporaneidade (CAUQUELIN, 2005: 28).

    13 Crtico de arte e curador, esteve frente da Escola Parque Laje no RJ, foi jri do SNAP, implantou o

    MAM de Braslia, foi curador do MAM-Rio e implantou e curou o MAMAM. Entrevista concedida em dezembro de 2005 no Rio de Janeiro.

  • 40

    E completa: avaliar a arte segundo critrios em atividade h somente duas

    dcadas no compreender mais nada do que esta acontecendo (CAUQUELIN,

    1992:41).

  • 41

    3. PERSONAGENS E PRODUTOS

    3.1 - Arte isso

    histrico o fato da produo artstica se direcionar ao salo. Isto ocasionou

    momentos cruciais para o desenvolvimento das artes ocorressem no mbito destes

    eventos. Para Thierry De Duve (2000) o museu, os sales do sculo 19 e o Palais de

    Beux Arts em Bruxelas so [foram] somente templos de poder artstico... (DE DUVE,

    2000:42) e, iniciativa de Manet ao submeter Cristo Morto ao Salo de Paris, em

    1864, atesta que este j percebia que um dia os museus se transformariam naquilo que

    os sales eram: um espao aberto a todos, absorvido pela indstria de lazer, um

    divertimento especializado em espiritualidade (DE DUVE, 2000:42).

    Pode-se confirmar tal expectativa ao observar a atual insero das Bienais e

    grandes mostras, como a Documenta de Kassel, substitutas reais dos sales num terceiro

    momento de mercado do espetculo. Porm, os sales, no formato tradicional,

    judicativo e no espetacular contraditoriamente fazem ainda parte do universo da arte no

    Brasil.

    De Duve (2000:19) relata como o ltimo Salo da Academie des Beaux-Arts, em

    1880, j representava o fiasco total da instituio salo14. Com o salo extinto, criou-

    se a Sociedade dos Artistas Franceses, que demonstrava o descontentamento dos artistas

    perante a arbitrariedade de uma nica instituio autorizada a delegar patentes de

    14 Neste, o jri foi desafiado pela maior parte dos artistas envolvidos e, deparando-se com a grita,

    absolveu-se de suas responsabilidades e aceitou cerca de 7.289 inscritos. O diretor em gesto completa tal ao alocando os piores artistas nos melhores lugares, e ridiculariza novamente o jri como instituio de poder legitimador. O efeito desta crtica descontrolada e do descontentamento pblico, alm de uma perda de quase 120 mil dlares, fez com que, em 1881, Jules Ferri decidisse que o governo francs no mais estaria envolvido com os Sales.

  • 42

    legitimidade aos que aspirassem ao ttulo de artista profissional. Cria-se tambm neste

    momento o Salo dos Independentes. Motes contra o poderio manipulado pelos sales e

    seus representantes possibilitaram importantes passos na Histria da Arte. Tais

    iniciativas trazem consigo inevitveis reorganizaes e recolocaes de funes dos

    personagens atuantes no campo das artes.

    A impossibilidade de recusa diante do urinol Fonte de Marcel Duchamp sob o

    nome de Richard Mutt, fez com que se apresentasse ao pblico, em Nova Iorque, em

    1912, um objeto de arte que viria a transformar o conceito de arte representacional

    para arte presentativa. De Duve (2000) atribui a estratgia de Duchamp, ao submeter

    sua obra ao Salo dos Independentes, antecipada percepo pelo artista de uma

    espcie de academizao tambm destes sales15, seja na cooptao de tal iniciativa

    pelo sistema, ou em sua sistematizao.

    Duchamp instaura uma nova atitude frente arte a partir da maneira com que

    posiciona seu trabalho em relao ao regime da arte da poca, j que sua produo e

    ao culminam no apagamento da obra como entidade e no realce de seu contedo, de

    forma que este se baste afirmao de legitimidade do objeto apresentado como arte.

    Colocando as problemticas qualquer coisa pode ser arte, qualquer um pode ser

    artista e, devolvendo a arte a todos, Duchamp retira conceitualmente - por apresentar

    tal novidade impassvel no momento de manipulao ou catalogao - qualquer valor do

    monoplio dos jris de seleo, e desde ento a todos cabe a afirmativa: isto arte ou

    isto no arte16.

    Segundo Venncio Filho (1986), instaura-se, a partir da, a suspeita na arte, que

    prospera na contemporaneidade, ainda que com alguns ajustes, dos quais trataremos

    15 Duchamp havia sido rejeitado, no salo dos Independentes, em Paris, em 1912, com seu quarto cubista.

    16 O que, segundo De Duve (2003), Mallarm j havia, em 1874, percebido, quando escreve em defesa de

    Manet no momento em que o Salo rejeitou duas de suas telas.

  • 43

    adiante. O autor coloca o ready-made em posio de limite da arte, mais tarde

    exaustivamente explorado pelos artistas contemporneos: alm do ready-made ou tudo

    se transforma em arte ou a arte desaparece (FILHO, 1986:71).

    A questo do que vem ou no a ser arte constante na contemporaneidade,

    frente a uma produo que se apresenta de infinitas maneiras e que permite o

    julgamento do pblico. Desta forma, a arte requer uma mediao que a apresente mais

    inteligivelmente. De Duve (2000) aponta Alfred Stieglitz como o primeiro grande

    presenter, quando publica Fonte, de Duchamp, numa edio de The Blind Man. De

    outra maneira, talvez a obra no causasse tamanha gravidade na arte e em sua histria17.

    A representao do objeto de arte legitimou-se em primeira instncia e consagrou-o

    levando-o posteridade.

    A partir da muitas vezes o artista assumiu a posio de presenter e, neste

    sentido, como cone-exemplo de posicionamento do artista contemporneo, De Duve

    elege Marcel Broodtraers, que atestou que seu sucesso como artista dependeria de seu

    sucesso comercial. Broodthaers define a forma como a arte passa nomeadamente a

    estratgia, recheada de insinceridade.

    Desde que o sucesso de Duchamp mostrou que qualquer coisa e tudo poderia ser arte desde que fosse reconhecido como tal por uma instituio artstica, que fique proclamado que os artistas que venham depois de Duchamp agora no precisam ser mestres de arte alguma que no a da estratgia, habilitando-os a penetrar a referida instituio. (Broodthaers, DATA, apud, DE DUVE, 2000:30).

    Desta maneira, a cooptao do artista pelo mundo da arte passa a participar do

    processo de produo artstica, e a dialogar com este, que opta irrevogavelmente pela

    17 Duchamp j sabia da necessidade de um presenter para qualquer destes presentational devices ou

    obras-, j que a autoridade urgia pelo carter sui generis mesmo para um trabalho auto-suficiente. Stieglitz tinha autoridade perante o circuito de arte - como galerista e fotgrafo - para avaliar, ou dar o aval obra como tal.

  • 44

    concesso ao mundo institucionalizado que dita de forma cnica e impensada que

    arte aquilo que est no museu.

    De Duve (2003) refere-se a uma concepo da arte e seu meio como ps-

    duchampianos, e lembra que a inscrio Isso no um charuto (Ceci nest pas une

    pipe), de Ren Magritte, em 1928, j declarara a obra de arte nomeadamente uma

    representao que no faz parte do real e sustenta a discusso de arte como idia,

    reduzindo a representao apresentao e sancionando ao objeto o ttulo Isso

    Arte18.

    Da combinao do mundo da arte ps-duchampiano (DE DUVE, 2000:36) e

    da anti-autoridade proposta por Magritte, afirmou-se para a maioria das faces avant-

    gardistas de 1970 o significado que o trabalho de arte no mais teria relao com

    emoo esttica ou qualidade, mas com reflexo. De Duve (2000) entende tais

    modificaes sociais e no afetivas em relao aos trabalhos artsticos, de forma que da

    assero este quadro bom passa-se afirmao ou negao: isto (no) arte.

    Quem sentencia oficialmente tal sano o presenter, o mediador das artes, que se

    mune de autoridade institucional para tanto.

    Nada verdadeiramente fundamental mudou entre os Sales na poca de Manet e os sales contemporneos que emergiram nos tempos dos popstars, das Documentas, de Veneza e das outras Bienais, e das feiras de arte (...) com exceo de que (...) aps Duchamp, a frase Isso arte tomou uma fora to intimidadora que tornou-se virtualmente indelvel19 (De DUVE, 2000:33).

    18 Broodthaers trabalhou com inscries do tipo Isso no uma obra de arte.

    19 Nothing truly fundamental has changed between the Salon in the days of Manet and the contemporary

    salons which emerged in the popstar years, the Documentas, the Venice and others Biennales, and the art fairs here, there and everywhere this whole spectacular absorption of art into the leisure industry and the marketing of spirituality. Nothings changed except that along came Duchamp, and that after Duchamp, the sentence This is art took on such intimidating force that its become virtually indelible. Traduo da autora.

  • 45

    Ronaldo Brito considera razovel para a arte hoje a questo Arte isto?, ao

    invs do lugar-comum Isto arte? (BRITO, 1992, apud BASBAUM, 2001:207). Esta

    proposta expande ainda mais horizontes conceituais ao re-posicionar na atualidade a

    arte frente a olhos e mentes, que j secretamente lanam a questo, j h algum tempo

    se posicionam com olhos, braos e ouvidos atentos a re-alocar tambm os conceitos e

    certezas calcificados pela arte moderna.

    Para De Duve (2000), Broodthaers fora o nico de sua gerao de artistas que

    entendeu o sentido, trgico para o verdadeiro artista, de arte como estratgia. O autor

    define o fazer artstico como algo que se tornara uma espcie de jogo de guerra, jogado

    exclusivamente entre os artistas, donos de galerias e curadores de arte contempornea,

    com o pblico margem (DE DUVE, 2000:34). Desta reao emerge, no meio das

    artes dos anos de 1960, a figura que se mantm na contemporaneidade: um pouco

    organizador, um pouco artista, vezes dono de galeria e comerciante, sempre um

    promotor de novas tendncias.

    O domnio das decises, quanto ao estatuto do objeto de arte e do artista, ento

    compartilhado entre curadores de exposies, diretores de museus e artistas. Todos estes

    na condio de presenters e toda a distribuio de papis dentro dos domnios da arte

    precisou ser reconsiderada, o que passa inevitavelmente pelos papis das instituies,

    mercado e mdia (ento museu, galeria e salo). Com o abandono dos movimentos de

    vanguarda e do romantismo da figura do artista, produtores, intermedirios, e

    consumidores no necessariamente se distinguem, podendo-se desempenhar papis

    simultneos. Os curadores passam a assumir o lugar dos jris de salo do sculo 19,

    diretores de museus agem maneira de Duchamp como artista, e o artista atua como o

    leigo outrora colocado no jri por Duchamp (De Duve, 2000).

  • 46

    3.2 - A obra (e o espectador)

    A crise da arte, instalada desde que a arte moderna veio questionando e

    desconstruindo os conceitos tradicionais da arte, resultou em processos de

    transformao que a desfiguraram ininterruptamente, negando seus preceitos

    tradicionais, durante um longo perodo, desde o final do sculo XIX, fechado com a

    produo de Duchamp. A partir do momento em que o valor da obra deserta o objeto

    pra estar no lugar e no tempo apresentando a ps-modernidade arte e antecipando

    questes da arte contempornea -, os aspectos da arte apresentam alteraes profundas

    em seu carter. A ampla alterao do carter da arte institudo pelo uso de novos

    meios, que oferecem novos aparatos e ferramentais, constitui-se sobretudo em fontes

    de desafios para os artistas, que vm refletir acerca de seus significados e

    especificidades. Algumas possibilidades cruciais so colocadas para a arte a partir

    destes, como a de descobrir-se numa obra nveis diferentes de significado que se

    adequem ao espectador.

    A relao de proposio atravs da obra inaugurada por Duchamp com os ready-

    mades, coloca a arte e seus valores em questo, propondo ao observador algo que est

    alm daquele objeto, do que ele representa, trabalhando com o que ele pode significar.

    A potncia de existncia, caracterstica-germe20 da contemporaneidade, se revela nas

    obras que propem ao observador uma reflexo. So nada mais que uma potncia a ser

    completada pelo que observa, de maneiras mltiplas, mas que atestam sua existncia e

    relevncia pelo lugar que ocupam.

    20 Acredito que o estatuto de potncia, mais que o virtual, esteja se sobrepondo vivncia ou realidade

    na sociedade contempornea.

  • 47

    Na contemporaneidade, aps mais de um sculo de buscas avant-gardes, resta a

    dvida como antdoto para a falta de f (DE DUVE, 2000:74), que chama questo

    certezas artsticas relacionadas a estilo, tecnologia, conveno, e ao direito da arte

    existncia aps ter resistido em luta pela sobrevivncia da tradio por meio de sua

    destruio (DE DUVE, 2000: 26). Porm, aps ter-se negado seus preceitos, resta a

    certeza de que se pode fazer arte de qualquer coisa, e assim se instaura a suspeita: a

    dvida tem to eficientemente se resguardado frente perda da f que tornou-se uma

    nova crena. (DE DUVE, 2000:49) Pode-se afirmar que tal crena na dvida tenha se

    tornado inevitvel uma vez que quando vemos a obra dita arte contempornea,

    estamos vendo na verdadeira arte contempornea em seu conjunto. Ela mesma se

    apresenta em seu processo de produo (CAUQUELIN, 2005: 72).

    O objeto artstico contemporneo resulta de uma pesquisa especializada para

    interrogar a prpria natureza da arte, e a obra de arte aquilo que reconhecido como

    manifestao de um saber, para o observador um desafio imprevisvel com regras sendo

    inventadas a todo o momento, e deixando deriva quaisquer possibilidades de se

    estabelecer definies certas.

    Como todo trabalho cultural, a obra de arte requer um mnimo de compromisso

    com uma determinada forma ou sistema de saber e torna baldia a anlise debruada na

    incerteza de uma definio de arte, j que a arte contempornea prope mais problemas

    do que solues. Recusando a contemplao passiva, esta provoca e causa a relao de

    desconfiana e tenso de que fala De Duve (2000), o que leva produtores e profissionais

    a uma busca racional pela explicao deste cincia em outras cincias.

    No entanto, Danto (2000) afirma que, recentemente, comeou-se a sentir que os

    ltimos 25 anos de enorme produtividade experimental, sem direo narrativa no campo

  • 48

    das artes visuais, estabilizaram-se como norma, a partir do momento em que o

    invlucro [da filosofia na arte iniciada por Kosuth] fora rompido (DANTO 2000:18).

    A criao, liberta de peso histrico, filsofico, de maneira esttica ou finalidade, passa a

    ser a marca da arte contempornea (...) no existe essa coisa de estilo contemporneo

    (DANTO 2000:16). Isso possvel porque a arte contempornea manifesta uma

    conscincia de uma histria da arte, mas no a leva adiante (HANS BELTING, 1994,

    apud DANTO, 2000:6), mas utiliza a arte do passado como ferramenta e o museu como

    espao, possveis a quaisquer usos que o artista queira dar.

    A reproduo e a circulao das obras de arte j contextualizadas causam

    inevitveis transformaes no carter da obra e em sua valorao. O prenncio de

    Benjamin (1985) a respeito da perda de aspectos tradicionalmente inerentes obra de

    arte21, tambm antecipa a recente substituio do termo obra de arte nos meios de

    discusso artstica. Refere-se a um objeto que, com o avanar dos anos e a mudana de

    referenciais, abandona e substitui valores. Assim, modificam-se tambm os termos

    aplicados produo artstica, de forma que, na contemporaneidade, no h significados

    fechados que possam ser codificados pela designao de um nome e, portanto, a fixao

    de conceitos passa a ser uma impossibilidade.

    A reprodutibilidade e a circulao, em grande escala, atuam diretamente na

    superao dos valores aurticos da obra de arte. A valorao do objeto de arte no mais

    conta com a unicidade da obra, e o termo obra de arte, desfeita esta aura, que rodeou

    os objetos artsticos por sculos, acaba por cair em desuso e ser substitudo por

    trabalho artstico22.

    21 Aura, unicidade, valor absoluto, critrios estticos, autonomia, criatividade, genialidade, valor eterno e

    o secreto. 22

    Tambm influenciaram esta mudana de configurao, no meio artstico, que ocorreram e ocorrem, como a profissionalizao do artista e do meio (mediadores).

  • 49

    Chega-se a questionar terica, crtica, ou praticamente, atravs da produo de

    obras ou trabalhos artsticos - se existiria hoje o chamado fazer artstico. Segundo

    Tadeu Chiarelli (2005)23, o artista contemporneo (...) no parte de pressupostos, ele

    vai e exerce sua ao no mundo (...) e o espectador, o curador e o crtico tambm so

    indivduos que esto dentro desse mesmo universo. O que vai existir a tentativa de

    uma ponte entre esses vrios agentes (CHIARELLI, 2005). Tal colocao explicita

    como o processo na contemporaneidade torna-se parte integrante da obra, negando

    qualquer valor de obra pronta e compartilhando o processo numa extenso deste

    mediao e recepo da arte.

    No que tange legitimao, o valor de exposio afasta, em todos os aspectos, o

    valor de culto da obra. A exposio passa a ser a marca moderna de autenticidade das

    obras