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Instituto de Relações Internacionais
ESPAÇOS DO NEOLIBERALISMO NO PORTO MARAVILHA
Aluna: Maria Carolina Coelho de Sousa Soares
Orientador: João Franklin Pontes Nogueira
Introdução
As mudanças ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, e especificamente no Porto
Maravilha, podem ser comparadas com aquelas ocorridas em outras cidades no mundo,
principalmente aquelas nominadas de Cidades Globais. As obras realizadas nesse espaço se
encontram em um cenário de transformações do urbano mundial, a partir de crises
econômicas. Nesse meio, ainda é aplicável o entendimento do neoliberalismo – porém com
restrições a serem mencionadas adiante. .
O presente relatório, assim, tem como objetivo descrever alguns dos conceitos e
entendimentos até agora levantados nesta fase da pesquisa. Desta forma, este trabalho se
apresenta incompleto, visto que diversos pontos importantes ainda não foram concretizados
em forma de conhecimento a ser relatado aqui. . Ou seja, deve-se levar em conta que a
pesquisa aqui apresentada teve inicio há pouco tempo, não sendo possível dar a ela uma
conclusão. Contudo, ao final, expõem-se pontos que serão desenvolvidos em sua continuação,
e alguns resultados parciais.
Apresenta-se aqui, como base à pesquisa mais específica sobre o Porto Maravilha,
como a literatura sobre cidades globais se apresenta na disciplina de Relações Internacionais.
Após, passa-se a entender a crítica ao relacionamento entre as renovações realizadas nesses
projetos de cidades globais e o ideário chamado por muitos de “neoliberal”. A partir dessa
introdução, passa-se à análise das mudanças realizadas na zona portuária do Rio de Janeiro no
contexto do Projeto Olímpico, para depois avaliar como ideias e conceitos se articulam nos
espaços concretos, observados pela autora. Por fim, ligado a este entendimento, apresentam-se
ideias que se somam à pesquisa, mas que ainda não foram abordadas a fundo, principalmente
ligadas a questões maiores de vivência no local por outros grupos sociais.
1. Cidades Globais
Com base nas leituras feitas até agora, esta seção do relatório tem a finalidade de
expor toda a base teórica que está por trás dos resultados parciais – a última seção – e dos
possíveis futuros dessa pesquisa. Ao situar o Rio de Janeiro dentro das mudanças que ocorrem
em outras cidades pelo mundo, encontra-se nessa literatura a definição de cidade global. Para
chegar a ela, porém, passamos pela definição do que é o urbano.
Pela literatura clássica da Era Urbana – e pelo senso comum –, o urbano seria o que
não é rural – entendimento que também foi adotado por instituições internacionais na
realização de relatórios, como a ONU. Porém, a partir de críticas como as de Neil Brenner e
Christian Schmid, podemos atentar que não é uma distinção tão fácil assim, sendo o urbano
apenas uma categoria teórica. Segundo os autores, o urbano não pode ser entendido como
algo fechado, mas dinâmico, sendo parte de um processo histórico de concentração e
extensão, não sendo algo homogêneo, mas que está em constante transformação. É com esse
cenário que Brenner e Schmid dizem que a urbanização passou a ser um fenômeno planetário,
ofuscando a dicotomia rural/urbano [4].
Tendo esse plano de fundo do urbano, as cidades globais, segundo Simon Curtis,
representariam um renascimento das cidades, a partir de mudanças na economia global e na
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ordem política global (as quais entraremos em maiores detalhes adiante) e seriam os motores
da globalização. Elas agiriam como pontos nodais de uma rede mundial de cidades (regiões
transnacionais), por onde fluxos globais – de capital, pessoas, materiais, bens, doença, ideias,
etc. - são dirigidos [2]. O nome teria sido dado, dessa forma, àquelas cidades que se destacam
e são diferenciadas das outras por seu relativo poder e importância na política global. Ao
mesmo tempo, as Cidades Globais seriam um modelo que capturaria algumas das qualidades
das transformações urbanas contemporâneas, a fim de serem usadas por outras cidades.
Historicamente, o fenômeno teria sido iniciado na década de 70 e mesmo com
morfologias distintas, as cidades globais tomariam o formato a partir do revigoramento do
centro de negócios. Algumas outras tendências poderiam ser identificadas, como a
gentrificação dos centros urbanos, que passam a crescer verticalmente e ter uma densidade
imensa nos locais de negócios; a polarização da riqueza, que leva a segregação e a
privatização, junto à produção de favelas e condomínios fechados; e o crescimento horizontal
da cidade em si, com a expansão dos sistemas de comunicação e transporte [1].
Soma-se a essa discrição de Curtis a literatura de Saskia Sassen, que expõe que as
cidades globais não são apenas um resultado da mudança de uma economia de manufaturados
para uma de serviços – a qual é nominada por alguns, como David Harvey, de mudança para o
“neoliberalismo”. Essas cidades teriam um componente particular em sua base econômica – o
qual estaria enraizado nas mudanças espaciais e técnicas – que lhes conferiria essa
importância.
Sassen formula sua tese a partir de três pontos. O primeiro seria a necessidade de
“novas formas de centralização para a gestão e regulação da rede global de produção e
financeira, a partir da dispersão de fábricas, escritórios e serviços” (tradução livre). Isso
levaria a uma concentração nas principais cidades. O segundo, baseado no primeiro, é que “as
mudanças na centralização implicam na mudança do local de controle e gerenciamento”
(tradução livre) – além de centro bancário e comercial, têm-se agora firmas de serviço e
outras instituições financeiras. Assim, as cidades globais seriam centros de finanças, serviços
e gerenciamento global – como são, por exemplo, Nova Iorque, Londres e Tóquio, segundo o
autor. O terceiro e último é ligado à geração de inovações, a qual “as cidades globais teriam
emergido como locais-chave para sua produção” (tradução livre) [13].
É a partir dessa definição de cidades globais, ou pelo menos do imaginário do que elas
seriam, que será exposto como esse assunto deve ser lido também a partir das teorias de
Relações Internacionais – ponto o qual é explicado por Curtis. Além, passaremos pela
literatura que tem um olhar crítico sobre essa constituição das cidades globais, ou melhor,
sobre as mudanças no urbano em si, como uma consequência do que é chamado de
neoliberalismo.
A) Cidades Globais e as Relações Internacionais
O objetivo desta seção é delinear como a literatura de Cidades Globais passou a ser
expressa – ou pelo menos citada – dentro da disciplina de Relações Internacionais. Serão
utilizados, assim, os artigos assinados por Simon Curtis, os quais têm como ponto central as
Cidades Globais e sua emergência na governança global e no sistema internacional. Segundo
o autor, a existência de cidades globais estaria impondo diversas questões à disciplina de
Relações Internacionais (RI), que se vincula a Estados-nação, e, portanto estariam em um
processo lento de se inserir nesse “desafio” [3].
O que Curtis expõe, assim, é que a partir das mudanças ocorridas na esfera
internacional no século 21, realçadas pelos novos desafios transnacionais a serem enfrentados,
o olhar tradicional das teorias das Relações Internacionais mostrava-se ultrapassado para
respondê-los. É nesse cenário de entender a emergência de uma ordem global, que deve
responder a questões para além da soberania e não intervenção estatal, que emergem também
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as cidades globais. Assim, existiria uma importância para a disciplina, segundo Curtis, em
acomodar as cidades globais em seu repertório conceitual a fim de tomar a visão de toda a
transformação internacional contemporânea [3].
Realizando uma digressão do histórico da disciplina, Curtis mostra que uma parte
significativa de teóricos das RI vêem o sistema internacional como um sistema de Estados. O
estadocentrismo, dessa forma, seria o primeiro motivo pelos quais os teóricos de RI não viam
a importância das Cidades Globais. Curtis critica esse ponto, vista à importância história das
cidades, e como foram elas o ponto de criação do Estado. Além disso, seriam o local onde
ocorrem as principais mudanças ligadas ao cotidiano, sendo a máquina das economias
nacionais.
Cidades globais teriam sido empoderadas e transformadas pela construção da
economia de mercado em uma escala global [2]. Nesse sentido, o autor argumenta que a
Cidade Global deve ser vista principalmente como um fenômeno político. A essa
consideração, o autor inclui outras: a evolução dos Estados e da sociedade internacional no
século 20, e em partícular, a crise das formas de organização estadistas, a reestruturação
econômica pós-crise, a revolução tecnológica associada a microeletrônicos e digitalização e as
revoluções culturais do fim dos anos 60.
A contribuição de John Friedmann teria sido a chave para colocar as cidades de novo
na agenda da política econômica internacional, pois segundo esse autor, elas formam e são
formadas pela natureza da economia global, através de conexões no nível internacional e suas
funções. Isso levou a uma ideia de especialização urbana a qual cidades particulares fariam
parte como elementos intrínsecos da economia global. O desenvolvimento de uma cidade
seria relacional a outras cidades globais e também a sua própria história, recursos e
localização geográfica.
A toda essa contextualização é somada as questões da globalização e em como novas
redes digitais estão produzindo novas capacidades junto às cidades globais, como também é
dita na teoria da Sassen. Em conjunto a esse fenômeno há a iluminação da cidade como
espaço onde se encontram os atores e locais da construção da globalização: a elite
corporativista internacional, junto a migrantes e culturas de trabalho. A partir desse ponto de
vista de novas infraestruturas, Curtis mostra como a tecnologia mudou os fluxos e expandiu o
universo de cidades globais que compartilham de serviços globais, mesmo que aumentando a
desigualdade dentro desses mesmos centros. Esse é o caminho que traça para mostrar como a
lógica do neoliberalismo se reinfica nas cidades globais – com privatização e fim do espaço
público –, além da dependência delas em formas pós-industriais de atividade econômica.
Depois de delinear a importância das cidades globais nelas mesmas, Curtis transfere
essa ideia para o sistema internacional, vendo elas como unidades que interagem, sendo
organizadas por uma estrutura. Ou seja, uma mudança da ontologia, que é baseada naqueles
autores da disciplina de RI que “abrem a caixa preta”. Além disso, fala que o progresso
teórico também se encontra em uma configuração particular de territorialidade, uma mudança
que envolve também o princípio da soberania. Esse ponto, junto a contribuições de Latour e
Sassen, faz com que o autor conclua que a globalização não é sinal do declínio estatal, mas de
um complexo redimensionamento, reorganização e reterritorialização do Estado. Ou seja, as
formações de cidades globais com essa mudança no Estado seriam parte de “momentos
dialéticos entrelaçados de uma dinâmica singular da reconstrução do capitalismo global
(BRENNER – tradução livre)” [1].
Por fim, o autor compara as estruturas espaço-temporais do sistema internacional
moderno e uma nova série imanente de estruturas. Segundo Curtis, cidades globais provem
uma infraestrutura de simultaneidade e um suporte material para uma forma nova qualitativa
de um espaço social desmaterializado. É a partir desses pontos que Curtis atualiza o escopo
das cidades globais na governança global (e não só globalização), como “instrumento” dos
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Estados em uma nova ordem global. Ou seja, Curtis afirma que a emergência tanto das
cidades globais quanto da governança global são resultados da nova sociedade internacional
de Estados do fim do século 20. Essa nova sociedade, que passa por uma revolução
normativa, sendo relacionada com atores (como as cidades), passa a ter uma enorme
interdependência, a qual é ligada a resolução de problemas transnacionais/ação coletiva, a
partir de um ideal neoliberal. Essas, então, levam a novas práticas/formas de governança
global, ligadas localmente à cidade [1].
Essas novas formas de governança, segundo o autor, levariam a um sistema no qual a
autoridade politica e a governança são compartilhadas por uma variedade de atores, não sendo
uma anarquia nem uma hierarquia. A partir disso, portanto, o que estaria surgindo é uma nova
ordem global, que é descentralizada e híbrida, tendo a participação das cidades na influência
de resultados ligados à política, à economia e a segurança, inserindo-se na agenda
internacional, e tomando para si alguns papéis historicamente ligados ao Estado. Entretanto, a
cidade global não seria, segundo Curtis, um desafio para a agência estatal, pois essa impõe
limites. Seria, portanto, um produto das estratégias estatais e da mudança na estrutura da
sociedade internacional, mostrando-se como um sucesso do projeto neoliberal, sendo sua rede
representativa da infraestrutura material que sustenta essa sociedade de mercado global, sendo
um fenômeno contingente da produção de interdependência [1].
B) Cidades Globais e o Neoliberalismo
O objetivo dessa seção do relatório é entender como a literatura crítica relaciona as
mudanças urbanas nas cidades e o que é enunciado como neoliberalismo. Anteriormente, já
vimos a concepção de Curtis para o assunto, dizendo que essas mudanças globais na
economia e na ordem política, ligadas a um ideal neoliberal, foram a base para a emergência
das cidades globais. Aqui, veremos o que Brenner e Schmid sugerem, somada às colocações
de Neil Smith. Por último, relacionando-se com a literatura de Henri Lefevbre, veremos uma
colocação que se diverge em alguns termos dessa “doutrinação” neoliberal, enunciada por
Colin McFarlane.
A já mencionada contestação de Brenner e Schmid pelo movimento urbano segue a
linha de Curtis, sobre as crises ocorridas e a intensificação da integração econômica global.
Assim, eles lêem as mudanças ocorridas no urbano a partir da década de 80 dentro de um
cenário de crise dos modelos de desenvolvimento territorial do desenvolvimento nacional, de
colapso do Estado socialista e da subsequente intensificação da integração da economia
global.
Segundo os autores, é a partir desse plano de fundo que ocorreu uma desestabilização
dentro dos Estudos Urbanos, o qual se manteria até hoje [5]. Porém, isso poderia ser visto não
necessariamente como uma crise intelectual, mas como um renascimento criativo.
Anteriormente, os pesquisadores dos Estudos Urbanos davam “a cidade” como dada,
estudavam e nomeavam as novas formas urbanas, como megalópoles e megacidades, e
processos como o de conurbação. A virada ocorrida atualmente seria não só epistêmica, mas
incertezas de fundamento sobre os próprios objetos e focos da teoria e pesquisa urbana dentro
do capitalismo contemporâneo.
A partir desta perspectiva, Brenner e Schmid questionam a epistemologia do urbano
através de entender quais categorias, métodos e cartografia deveriam a vida urbana ser
entendida. Antes de entrarem nos estudos críticos, os autores enunciam a metanarrativa
contemporânea mais influente: a noção de uma “era urbana”. Tal é influenciada pelos
discursos de demógrafos ligados à ONU, de pessoas públicas e de acadêmicos, os quais
reproduzem que “mais da metade da população mundial agora mora dentro das cidades”
[4]. O que os autores observam é que essa noção leva a certa homogeneização dos padrões e
caminhos da urbanização que emergiram com a economia mundial.
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Nesse âmbito, novas abordagens da tese da Era Urbana surgiram, as quais debatem o
triunfalismo urbano sobre o rural; o uso de tecnologia, tanto em planejamento quanto na
infraestrutura da cidade, as definindo como cidades inteligentes; o uso de pensamento verde,
ligado à sustentabilidade urbana; e debates sobre megacidades, particularmente do Sul global,
a partir de um boom de industrialização e proliferação do urbano. De acordo com Brenner e
Schmid, as várias vertentes desta metanarrativa agora estão sendo usadas como molduras
discursivas para legitimar uma ampla gama de propostas neoliberalizantes para transformar
ambientes urbanos já existentes [5].
O que Brenner e Schmid acreditam é que “The simple message that the city has assumed unprecedented
planetary importance has thus come to serve as an all purpose,
largely depoliticized ideological rubric around which, in diverse
contexts, aggressively market-oriented and/or authoritarian
contemporary projects and prescriptions of urban transformation are
being narrated, justified and naturalized”. [5]
As mesmas estariam no discurso da esfera pública, do planejamento, do design, e das arenas
acadêmicas, servindo para reafirmar a viabilidade de todas as epistemologias urbanas citadas
anteriormente. Os autores chamam essa prática de contexto do contexto, como se fosse uma
literatura que justificasse o sistema mundial capitalista e seu impulso para a acumulação de
capital sem fim, por estratégias neo-imperiais, e por diversas formas de desenvolvimento
espacial e capital desiguais [5].
Essas visões mudariam a partir de abordagens reflexivistas, como as pós-coloniais.
Porém, a argumentação dos autores vai além, por entender que os pensadores anteriores
continuam reinficando a noção de cidade [5]. Brenner e Schmid acreditam que se necessita
averiguar certa urbanização prolongada, a qual evita a separação binária entre urbano e rural.
Assim, eles verificam alguns pontos a fim de iluminar a variedade de processos de
urbanização que ocorrem e remodelam o mundo, pretendendo gerar uma estrutura
epistemológica geral para analisar essa situação do mundo, a partir de uma noção reflexiva,
que não dá tudo como dado. Essa estrutura se divide em sete teses enunciadas pelos autores.
Algumas delas serão mais eficientes para a discussão desse relatório, porém evidenciaremos
cada uma, a fim de construir o sentido os quais os autores dão a esse seu entendimento.
A primeira tese é de que o urbano é um conceito essencialmente contestado e tem sido
sujeito a uma reinvenção frequente em relação aos desafios engendrados pela pesquisa,
prática e luta. Ou seja, o urbano e a urbanização seriam uma forma analítica, mas não algo
construído empiricamente. A segunda, ligada à primeira, é de que o urbano é um processo,
não uma forma universal, um tipo de assentamento ou uma unidade delimitada. Esse ponto é
explicado pelo seu sequente: a urbanização envolveria três momentos mutuamente
constitutivos: “urbanização concentrada, urbanização prolongada e urbanização diferencial
(tradução livre) [5]”.
A definição analítica dada à urbanização prolongada é a de que o urbano não se
localiza apenas na cidade, mas também se constitui naquilo que é fornecido à cidade.
Principalmente com o uso de tecnologia, o que antes era visto como o de fora, segundo
Brenner e Schmid, deve ser visto como um terreno integrante do processo de urbanização. As
urbanizações concentradas e prolongadas estariam interligadas ao processo de urbanização
diferencial, na qual as configurações socioespaciais herdadas são continuamente destruídas
criativamente em relação à dinâmica de desenvolvimento e tendências de crises mais amplas
do capitalismo moderno.
A quarta tese estabelece que o tecido da urbanização é multidimensional, ao se basear
nas dimensões de conceitualização do espaço de Lefebvre, e assim dita três outras dimensões
da urbanização: práticas espaciais, regulação territorial e a vida cotidiana. Para esse relatório,
é necessário depreender melhor o que seria esse último. Seja dentro de centros populacionais
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densos ou em locais mais dispersos incorporados no tecido urbano mais amplo, o espaço
urbano é definido pelas pessoas que usam, apropriam-se e transformam-na através de suas
rotinas e práticas diárias, que frequentemente envolvem lutas quanto à própria forma e
conteúdo do próprio urbano, sendo essência da experiência social. Esta seria uma ampla
conceituação da urbanização, a qual envolve uma ampla constelação de transformações
associadas à industrialização capitalista, à circulação do capital e à gestão do desenvolvimento
territorial em várias escalas espaciais [5].
Porém, o que os autores dizem é que a urbanização se distingue da industrialização
capitalista, mesmo ligada a ela. Ela seria a materialização do processo, incorporando-a em
configurações concretas, temporariamente estabilizadas a partir da vida socioeconômica, da
organização socioambiental e do gerenciamento regulatório. A urbanização é precisamente o
meio e a expressão dessa colisão/transformação, e cada configuração da vida urbana é
fortemente moldada pelas diversas forças sociais, políticas e institucionais que a medeiam.
A quinta tese é que a urbanização teria se tornada planetária a partir das crises
mundiais e do estabelecimento da neoliberalização da governança da economia global,
nacional e local. Tais configurações encorajaram um plano de fundo para o aumento do
investimento especulativo urbano, ligado inclusive ao processo “rural”, aumentando o uso de
tecnologia e acumulação de capital [5]. Desta forma, de acordo com Brenner e Schmid, as
aglomerações urbanas não poderiam mais ser entendidas simplesmente como concentrações
nodais organizadas e orientadas para um único núcleo urbano - o que se liga a expressões
analíticas do que é a Cidade Global. Em vez disso, elas devem ser reconceitualizadas como
campos de força densos de interação quase contínua entre os vários processos associados à
urbanização concentrada, prolongada e diferencial.
A penúltima tese dita que a urbanização se desenvolve através de padrões variados e
caminhos de desenvolvimento espacial desigual. Mesmo que a forma planetária de
urbanização não seja homogênea, uniforme e única - que constituísse um tipo ideal de cidade
-, sob o capitalismo, a urbanização sempre é articulada em formações socioespaciais
contextualmente incorporadas, difundindo espacialmente um desenvolvimento desigual
através de padrões e caminhos específicos. Desta forma, segundo os autores, os processos
abstratos e universalizadores da industrialização capitalista seriam materializados em
configurações urbanas historicamente e geograficamente específicas, que por sua vez são
implacavelmente transformadas através da interação de estratégias de acumulação, projetos
regulatórios e lutas sociopolíticas em várias escalas espaciais [5]. A última tese, a qual conclui
esse projeto epistêmico, é de que o urbano é um projeto coletivo em que os potenciais gerados
através da urbanização são apropriados e contestados, levando em conta as formas de
apropriação e modelagem do urbano.
A essa crítica de Brenner e Schmid, cabe-se certa interferência da posição de Smith,
que trabalha o fenômeno da gentrificação. O termo seria usado para caracterizar a “extensiva
reabilitação de bairros depreciados da classe trabalhadora, que estão espalhados pelas
cidades do mundo capitalista avançado” (tradução livre) [14]. O que Smith dirá é que há
uma necessidade de crescimento econômico permanente, e que quando este não ocorre, o
sistema está em crise. As crises econômicas, dessa forma, não seriam um fator exógeno nem
acidental, mas um produto histórico que põe em prática, em um pequeno período de tempo,
um número de tendências que já estavam sendo desenvolvidas na economia.
Smith liga essa situação de crise ao desenvolvimento desigual (essa definição vem do
entendimento de que o desenvolvimento societário não ocorre em todos os lugares à mesma
velocidade ou na mesma direção), visto que para sair da crise deve-se voltar à acumulação.
Ele foca, assim, na produção do espaço através do investimento de capital, assumindo não
uma tabula rasa do espaço urbano, mas uma superfície de aluguel do solo, que é o produto dos
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investimentos anteriores de capital no ambiente construído. É a diferença entre o aluguel do
solo que nortearia a relação desigual entre os subúrbios e o centro da cidade.
O que Smith conclui é a existência do que se pode chamar de “’gangorra de
localização‟: o capital salta de um lugar para outro, e de novo, criando e destruindo suas
próprias oportunidades para desenvolvimento” (tradução livre) [14]. Ou seja, cria o
desenvolvimento do centro, depois cria o subúrbio, para depois voltar ao centro que já foi
desvalorizado. A desvalorização constante do capital, a partir das crises, cria possibilidades
em longo prazo para uma nova fase de valorização, e isso é exatamente o que aconteceu no
centro da cidade. Smith utiliza-se da seguinte sequência em seus termos: desenvolvimento
sucessivo; subdesenvolvimento; e redesenho de determinadas áreas. O declínio econômico
dos bairros da cidade interna se mostra, portanto, como um resultado "racional" previsível dos
mercados da terra e da habitação da empresa gratuita. A crise econômica, segundo o autor,
exige e oferece a oportunidade para uma reestruturação fundamental da economia. Juntamente
com esta reestruturação econômica vem a reestruturação do espaço social e econômico. A
gentrificação e o redesenho do interior da cidade representariam uma continuação linear das
forças e relações que levaram à suburbanização.
As literaturas acima destacam uma visão que entende o neoliberalismo como uma
forma não somente disseminada através do sistema econômico, mas como uma base para
qualquer tipo de uso, como na nova urbanização das cidades. O problema que se constrói com
essa visão é de que haveria certa homogeneização de um modelo urbano a ser utilizado por
toda e qualquer renovação urbana acontecida pelo mundo. A crítica a esse entendimento é
detalhada pelo autor McFarlane, o qual discute as novas formas de aprendizado urbano,
através de fóruns mundiais, como a Organização Mundial de Cidades e Governos Locais
Unidos (CGLU). O ponto mais geral do autor é de que o experimento de conhecimento
urbano translocal – e conjuntamente seu sucesso – depende de um comprometimento com o
que chama de tradução, ao invés de um conhecimento através de similaridade entre cidades
[10].
Essas trocas de informações ocorreriam através de organizações e comunidades
epistêmicas, as quais, pelo sentido de sua semântica, gerariam conhecimento sobre o urbano.
O que essas experiências possibilitariam, segundo McFarlane, seria o aprendizado não por
conta das diferenças – como diriam os autores pós-coloniais -, mas pelas diferenças.
McFarlane adiciona a este pensamento outra literatura: como a ideologia tem um papel crucial
em estruturar as bases de ideias políticas e nas formas de como ocorre o aprendizado. O autor
utiliza-se de ideias de Richard Rose, voz proeminente do debate sobre transferência de
políticas, para dizer que “a escolha das mesmas ocorre como um processo racional, vendo
quais são as melhores opções, a partir da seleção de um objetivo, do exame de escolhas
políticas disponíveis e implementação da política” (tradução livre) [10]. Nos últimos anos,
no entanto, surgiu um novo corpo de trabalho examinando criticamente as viagens cada vez
maiores da política urbana. Tal abordagem vislumbra a forma como externalidades
incorporadas, ou seja, como uma mistura de espaço-tempo é montada em uma maneira
particular de ver um problema e solução urbanas. Assim, as mudanças ocorridas no
entendimento de como ocorre a mobilidade de políticas mostram-se como um esforço ainda
maior para conceber a cidade como um produto relacional, entendendo criticamente as formas
de poder operando na constituição e instituição de novas formas de aprendizado translocal.
O aprendizado, dessa forma, pode envolver “um monitoramento rigoroso e repetido,
ou pode envolver incentivo através de recompensas, ou pode ser inspirado por solidariedades
translocais na formação da vontade comum” (tradução livre) [10]. Esses diferentes modos de
poder funcionam lado a lado, desenvolvem e ampliam os relatos mais comuns do poder sobre
a distância, enfatizando a transformação múltipla e muitas vezes simultânea do poder através
do espaço, o que mostra a utilidade para uma topologia relacional de conjuntos de
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aprendizagem translocal urbano, ou seja, como eles são traduzidos, coordenados e habitados.
Neste contexto, a ideologia não só molda a natureza da aprendizagem das políticas urbanas,
mas tudo o que faz o aprendizado, com a exceção de que as evidências locais devem ser
localizadas e manipuladas através da tradução para sustentar uma posição pré-existente [10].
Essa base mais teórica do autor é colocada em uma prática maior entendendo como as
constituições de aprendizados do urbano ocorrem através da ideologia neoliberal – que seria,
segundo McFarlane, a ideologia atual. Ele começa sua observação através dos métodos
lançados pelo Banco Mundial, o qual teria como missão “levar” o neoliberalismo através de
uma “transferência direta de conhecimento, com a promoção agressiva de uma ideologia
neoliberal de „urbanização lean‟ nas cidades: redução nas despesas do estado; compromisso
com a privatização em infraestrutura e serviços; e desmantelamento da habitação do setor
público” (tradução livre)[10].
McFarlane entende, nesse cenário, a proposta dita por Smith, ao pontuar que essas
estratégias ideológicas precisam ser entendidas em relação ao papel das cidades capitalistas
como locais de destruição criativa. Aproxima-se também de Brenner e Schmid ao falar sobre
tipos de cidades desenhadas pela ideologia neoliberal, utilizando, porém, de uma definição de
“debate sedutor” advindo do desenvolvimento urbano: cidades designadas como "cidades do
conhecimento" "cidades criativas" ou "cidades inteligentes". Se esses discursos receberam
uma atenção surpreendente dos formuladores de políticas urbanas, é em grande parte porque o
foco e a acomodação dentro dos discursos existentes de empreendedorismo urbano,
gentrificação e privatização são ideologicamente adequados aos tempos [10].
Esta lógica neoliberal - uma ideologia do mercado competitivo de privatização,
descoletivização, redução do Estado de bem-estar e empreendedorismo público-privado
urbano - é informada por uma consultoria global em expansão e por imaginários urbanos de
elite disseminados, se manifestando em formas urbanas segregadas e exclusivas. Se a lógica
neoliberal geralmente domina os fóruns contemporâneos de aprendizagem urbana em
contextos de planejamento e políticas, segundo McFarlane, ela não circula como uma força
dominante única, abrangente, mas sim funciona como um conjunto contingente de lógicas de
tradução que reposicionam a problemática urbana de redesenvolvimento como forma de
aprendizagem ativa [10].
Portanto, o autor concebe o neoliberalismo não como projeto generalizado que se
localiza, mas como uma coleção de lógicas e processos situados e soltos que têm uma
influência generalizada e às vezes profunda, mas não predeterminada, sobre a política de
aprendizagem urbana. Ademais, a ideologia dos políticos não necessariamente seria o ponto
central, segundo o autor. Um dos elementos centrais na construção do aprendizado urbano não
são a tradução e coordenação, mas a forma de viver. E nesse meio, o autor coloca os próprios
decisores políticos como aqueles que habitam suas próprias políticas. Ou seja, a mobilização
de políticas ocorre também pela análise de suas práticas, de seus atores, de suas atmosferas e
representações. Assim, mesmo que a ideologia seja crucial no aprendizado urbano, ela não
pode ser algo que não vá de encontro com a situação urbana da cidade.
Creio ser necessário adicionar a essa discussão de McFarlane o que outro autor, o qual
o primeiro se baseia, diz sobre o direito à cidade. Os primórdios desse pensamento se
encontram em Henri Lefebvre, que aborda sobre o relacionamento social dos cidadãos com a
cidade. Assim, a criação de uma nova cidade passa pela criação de uma nova vida na cidade.
Arquitetos, planejadores, sociólogos, economistas, filósofos e políticos não poderiam criar, do
nada, novas formas e relações. Somente a vida social em sua capacidade global possuiria tais
poderes. Os anteriormente mencionados poderiam individualmente ou em times limpar o
caminho para mudanças, propondo e preparando formas – inclusive, formas utópicas [9].
O urbano, mesmo que extremamente definido, nunca seria inteiramente presente nas
reflexões, segundo Lefebvre. Mais do que qualquer outro objeto, ele possuiria uma qualidade
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muito complexa de totalidade em ato e em potencial de pesquisa nunca exaustivo. Ter o
urbano como uma verdade dada é operar com uma ideologia mitificada. Por outro lado, o
conhecimento pode construir e propor modelos, sendo cada objeto um modelo de realidade
urbana.
O autor questiona também o uso da palavra estratégia, a qual significaria a hierarquia
de variáveis a serem consideradas para se utilizar de forma tática e com uso de poder para
aplica-las. Segundo Lefebvre, somente grupos, classes sociais e frações de classes, capazes de
iniciativas revolucionárias, poderiam pegar para si e realizar a fruição de soluções dos
problemas urbanos. É a partir dessas forças sociais e políticas que a cidade renovada se
tornará a obra (“oeuvre”) [9]. A cidade, assim, depende da presença e ação da classe
trabalhadora, a única que poderia colocar um fim a segregação. Somente essa classe, como
classe, pode contribuir decisivamente para a reconstrução da centralidade destruída por uma
estratégia de segregação. Diante desse cenário, o direito à cidade é caracterizado por Lefebvre
“como um choro e uma demanda” (tradução livre) [9]. Mesmo que esse pedido pareça
nostálgico, o direito à cidade não poderia ser concebido como um simples direito de visita ou
como retorno às cidades tradicionais. Ele só poderia ser formulado como um transformado e
renovado direito à vida urbana. Nesse âmbito, sabendo de sua base marxista, o autor dita que
apenas a classe trabalhadora poderia se tornar o agente, a operadora social ou o suporte dessa
realização do urbano.
2. O Rio de Janeiro
Essa parte do Relatório tem como objetivo entender os discursos por trás do projeto
mais atual da cidade do Rio de Janeiro, a partir do texto de Eduarda de La Roche e Petras
Shelton-Zumpano e da apresentação do Prefeito Eduardo Paes, em TED realizado em abril de
2012. Ambos se relacionam com os temas vistos nas seções anteriores, podendo ser usadas de
exemplo para alguns dos imaginários dos autores: a estratégia de desenvolvimento
sustentável, a ideia de “cidade inteligente” e o entendimento de que os TEDTalks formam
certa comunidade epistêmica.
A primeira literatura tem o propósito de descrever o conceito de desenvolvimento
sustentável e seu modelo associado à revitalização urbana, à luz do plano estratégico de
desenvolvimento do governo da cidade do Rio de Janeiro. A preposição final de La Roche e
Shelton-Zumpano é de que “alcançar objetivos de desenvolvimento sustentável é facilitado
substancialmente por parcerias multissetoriais, com mecanismos de participação cidadã”
(tradução livre) [8].
O texto narra um histórico do Rio de Janeiro frente a essas discussões de
desenvolvimento, com foco na Conferência Rio+20. Um dos pilares para atingir os objetivos
expressados em tal evento seria a boa governança, não só através da administração pública,
mas por parcerias entre governo, sociedade civil e setor privado. Com este cenário, o texto
exemplifica as mudanças ocorridas, mostrando o impacto dos megaeventos, mas
principalmente de fatores externos. Nesse âmbito, destacam-se o uso de comunidades
epistêmicas como forma de entrar em contato com outros especialistas, o que ajudou a
mobilizar recursos e trocar informações, metodologias e tecnologias rapidamente.
Por exemplo, se demonstra como a cidade do Rio utilizou-se de componentes de boa
governança do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (UN-Habitat)
em seu plano estratégico de 2013-2016. A cidade, para realizar esse plano, levou 40% de seu
orçamento a ser custeado por concessões, parcerias público-privadas (PPP), transferências
intergovernamentais e empréstimos [8]. O texto também cita algumas ações tomadas pelo
prefeito Eduardo Paes para melhor as condições fiscais, a fim de atrair investimento. Uma
dessas foi o recebimento de mais de um bilhão de dólares do Banco Mundial.
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Outro ponto que surge da troca de informações é a maior participação dos cidadãos,
exemplificada no texto pela criação do centro de contato telefônico central dos serviços da
cidade e o site on-line 1746. Além desse, pode ser citado à criação do canal Rio Resiliência,
sendo uma iniciativa apoiada por uma rede de 100 Cidades Resilientes, da Fundação
Rockefeller, organismo internacional sem fins lucrativos.
Ao mesmo tempo em que busca informação, a cidade gera informação, participando
de mecanismos de cooperação internacionais, e possuindo organismos próprios de pesquisa e
monitoramento, como o Instituto Pereira Passos (IPP-Rio). O que se destaca, nesse âmbito,
foi a internacionalização das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Baseando-se na boa
governança, segundo o texto, a UPPs foram implementadas em 2008 como um projeto de
pacificação, através de polícia de proximidade, com apoio financeiro do governo municipal e
do setor privado. Com o objetivo de ajudar o governo estadual a consolidar o policiamento de
pacificação, o governo municipal do Rio de Janeiro, representado pelo IPP-Rio, estabeleceu
um projeto internacional de cooperação técnica com a ONU-Habitat. O projeto UPP Social foi
pilotado em 2010, lançado formalmente em 2011 e renomeado Rio+Social em 2014.
Nesse cenário, os autores expõe também uma conexão entre a política de pacificação e
os preços das casas no Rio de Janeiro. Há benefícios claros para muitos proprietários, visto a
valorização dos imóveis em torno de favelas pacificadas, como foi o caso da UPP do Santa
Marta, em Botafogo. Porém, alerta La Roche et al, os administradores públicos também
devem considerar o impacto da pacificação sobre gentrificação e sobre o poder de compra dos
inquilinos.
O TEDTalk do Prefeito também segue o mesmo desenho do texto, mostrando,
somente por ser uma apresentação para outros analistas, como ocorre a difusão de ideias sobre
cidades. Eduardo Paes foca no que ele chama de caminhos originais, através de mandamentos
básicos, que fazem as cidades serem bons lugares para viver. Em um cenário de “cidades
inteligentes”, o prefeito, que diz que pessoas no mesmo cargo que ele tem uma posição
política de mudar a vida das pessoas, conjuga quatro preceitos que devem existir em todas as
cidades do futuro a fim de administrá-las [15].
O primeiro deles é que “A cidade do futuro tem que ser ambientalmente amigável”
[15]. Deve-se pensar verde, abrindo espaços para as pessoas usarem. O segundo tem como
base a questão de mover as pessoas em uma cidade, através de formas originais, sendo rápido
e barato. Dando o exemplo da cidade de Curitiba, o prefeito enuncia que “A cidade do futuro
tem que lidar com a mobilidade e integração” [15]. Ao nortear a situação das favelas, o
prefeito diz que elas não são sempre um problema, e algumas vezes são a solução. Para lidar
com elas e com o contraste entre ricos e pobres, Paes diz que se deve abrir espaços nas
favelas, “urbanizar” as favelas, através da expansão de serviços básicos de alta qualidade para
dentro delas. O terceiro mandamento, assim, é que “A cidade do futuro tem que ser
socialmente integrada” [15]. Por último, através de uma demonstração em tempo real dos
trabalhos do Centro de Operações do Rio (criado com ajuda da IBM), o prefeito dita que “A
cidade do futuro tem que usar tecnologia para ser presente” [15]. Ao final, Paes conclui
ainda que, além desses meios que podem ser usados para administração, a cidade do futuro é
uma cidade que cuida de seus cidadãos, sem deixar ninguém de fora.
O que se quis sinalizar nessa parte do texto é que não há, necessariamente, uma
imposição de um discurso neoliberal, mas uma localização dessas trocas de informações na
cidade do Rio. Por outro lado, as ideias de cidades inteligentes e de sustentabilidade urbana se
mostram presentes, o que seria uma crítica feita por Brenner e Schmid. Somado a isso, os
mesmos autores criticariam o uso indiscriminado feito pelo prefeito Eduardo Paes, ao utilizar
a palavra “urbanizar” para se dirigir a mudanças ocorridas nas favelas do Rio de Janeiro.
Nesse meio, o pensamento de gentrificação de Smith também deve ser iluminado, a fim de
entender os processos realizados em espaços suburbanizados. Por último, é necessário ler o
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que Paes diz sobre a posição política dos prefeitos, tendo como base o que McFahrene dita, ao
visitar Lefebvre. Os políticos – e outros modeladores de projetos de renovação das cidades –
são, claramente, os que criam essas obras. Porém, a cidade não é construída por eles. O direito
à cidade – à vida urbana – não pode deixar de ser observada através da contribuição e
apropriação da população sobre o território.
O Porto Maravilha
Nessa seção chega-se a figura espacial principal da pesquisa: o Porto Maravilha.
Novamente se utilizará o artigo de La Roche et al, mas também o livro de Álvaro Ferreira, “A
cidade no século XXI”, que norteia algumas mudanças vistas nas pesquisas de campo, as
quais foram realizadas pela autora do Relatório, e serão explorados concomitantemente.
Deve-se citar, a fim de delimitar a pesquisa, que o corte espacial da mesma leva em conta a
extensão do Porto, desde a Praça XV, passando pela Praça Mauá e seus entornos (como, por
exemplo, o Morro da Conceição), caminhando os trilhos do Veículo Leve sobre Trilhos
(VLT) até o AquaRio.
No artigo de La Roche et al., se coloca que a regeneração do distrito portuário é um
dos investimentos mais importantes da administração do prefeito Paes. O projeto de
regeneração do Porto Maravilha foi implementado através de uma parceria público-privada
composta pelo consórcio de empresas Porto Novo e a Companhia de Desenvolvimento
Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (Cdurp), criada em 2009. Com um custo
estimado de R $ 7,6 Bilhões, o projeto foi financiado em grande parte através da venda de
Certificados de Potencial de Construção Adicional (Cepacs), 3% dos quais serão destinados à
preservação de patrimônio e projetos de desenvolvimento social local [8].
O texto também expõe que projetos de regeneração à beira-mar são afetados por uma
tensão inerente entre dois objetivos: aumento da competitividade e aumento da qualidade de
vida dos habitantes afetados. A área de impacto do Porto Maravilha inclui a favela pacificada
Morro da Providência – a qual ainda não objeto de estudo de campo desse relatório -, um
território com 4.889 pessoas, com grande significado histórico como a primeira comunidade
de favelas no Brasil. Esta comunidade pacificada foi atendida desde 2010 pela UPP Social e
Rio + Social, que busca reduzir a tensão entre esses dois objetivos.
Segundo o artigo, existiram críticas sobre a regeneração do Porto Maravilha, por a
mesma promover gentrificação e exclusão social devido à especulação de propriedade
privada. A solução dada por La Roche et al são alianças multi-setorias equipadas com
ferramentas de planejamento participativo que envolvem cidadãos e sociedade civil, que
fortaleceriam o bem-estar e a inclusão, além de aumentar a legitimidade da representação
democrática, especialmente através do uso de tecnologias da informação e os sistemas de
apoio. Esse plano estaria em conjunto do setor público, setor privado e da academia [8].
Essa visão acaba por esconder certas realidades, principalmente da manutenção da
UPP, e de como foram feitas as concessões no Porto, sem discutir questões como desvio de
dinheiro. Mesmo que haja certa utopia necessária na solução dos autores, o que vemos
atualmente não é um planejamento, mas uma participação da sociedade na construção do que
é o Porto, e em sua apropriação pelos cidadãos.
É isso que vemos, por exemplo, no Morro da Conceição. Os cabos da rede elétrica
passaram a ser subterrâneos; o saneamento passou a ser feito com lixeiras subterrâneas; foi
realizado o asfalto de algumas ruas; bares e brechós foram abertos; e o ponto principal, a
Pedra do Sal, passou a ser um espaço mais turístico, ligando os conceitos de certa urbanização
ligada ao capital e a apropriação pela população local, e pela cidade em si.
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A Pedra do Sal– e outras entradas do Morro da Conceição - se conecta a Rua Sacadura
Cabral, local onde, agora, se encontra uma imensa quantidade de espaços para eventos
noturnos, além de ser local do prédio da Cdurp. Na mesma rua, encontram-se “pé sujos” e
restaurantes, como o Angu do Gomes. A mesma foi revitalizada, com novas placas e nova
iluminação.
O final da Rua – ou pelo menos onde acaba a área dos casarões utilizados para festas –
faz esquina com a Rua Barão de Tefé, na qual se encontra o Cais do Valongo, antigos
casarões e armazéns, hoje utilizados para eventos, além de dois prédios novos, já na esquina
da Avenida Venezuela. Seguindo por essa avenida, no sentido contrário dos carros, chega-se
ao Aquário do Rio, ou AquaRio. Antes, porém, se passa por antigos casarões e pelo Moinho
Fluminense, além da rua aberta ao final do novo túnel (Túnel Prefeito Marcello Alencar), o
qual se inicia na Praça XV.
No espaço em torno do AquaRio se encontram algumas “apropriações” as quais se
replicam por outras partes do Porto, como brinquedos para crianças (esses colocados pela
própria prefeitura), ambulantes e food trucks. Outros objetos visíveis desse ponto até a Praça
XV são os jardins, os bancos, a nova iluminação, os grafites tanto nos armazéns quanto nos
prédios antigos, o VLT e, claro, a grande quantidade de pessoas andando. Não se pode deixar
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de pontuar as obras realizadas nos armazéns, agora utilizados também para eventos –
casamentos, festivais, formaturas -, como o Armazém da Utopia.
Andando pela Rua Rodrigues Alves – a rua do porto, na qual agora só passa o VLT –
pode-se ver todas as mudanças acima, e poucas câmeras de segurança, porém uma grande
quantidade de agentes da Operação Centro Presente, utilizando bicicletas para realizar um
patrulhamento ostensivo em toda a área central, mas principalmente na zona portuária.
Passando pelas estações do VLT e por todos os armazéns, chega-se a Praça Mauá, com o
Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu do Amanhã. Nominada também de Boulevard
Olímpico, a área possui alguns bancos próximos ao MAR e uma área mais aberta entre esse
espaço e o Museu do Amanhã, além do monumento de Visconde de Mauá.
Passando pela Praça, chega-se ao caminho revitalizado, que passa pela área militar,
denominado atualmente de Orla Prefeito Luiz Paulo Conde, o qual liga a Praça Mauá à Praça
XV. Nesse caminho, após contornar a área do Comando do 1º Distrito Naval, encontram-se
mais bancos, locais com brinquedos para crianças, a Pira Olímpica, e atrás a Igreja da
Candelária. Ao chegar à Praça XV em si, pode-se encontrar além da estação das Barcas, a
nova estação do VLT, além de uma praça revitalizada, usada não só pelos passageiros, mas
por skatistas, possuindo também um ponto central da Operação Centro Presente.
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Resultados Parciais e Pontos para o Futuro
A escrita desse Relatório teve como objetivo apresentar, primeiramente, as teorias que
são atualmente lidas pela crítica dos Estudos Urbanos – aquelas ligadas às transformações
realizadas no urbano, com a emergência de Cidades Globais -, e como essas podem ser
integradas à disciplina das Relações Internacionais. Em muito dos casos é assumida a
influência de uma ideologia neoliberal – mas que como vimos pode ser lida de certa forma
coercitiva ou sedutora, podendo passar por uma tradução antes de ser aplicada.
Depois, apresentamos o plano de fundo do nosso estudo – as mudanças ocorridas na
cidade do Rio de Janeiro – e o nosso objeto empírico – o Porto Maravilha, sem muito salientar
ou debruçar-se nas teorias anteriormente descritas. O motivo de tal era tentar ler as
modificações de uma forma mais “tabula rasa”, porém entendendo que isso não ocorreria,
visto que toda percepção do trabalho de campo é baseado em um passado da pesquisadora,
seja com as leituras, ideologias e formas as quais ela se entende nesse espaço. Desta maneira,
o que esta seção pretende fazer é mesclar a literatura ao objeto empírico. Porém, deve-se
lembrar de que esse resultado é apenas parcial, advindo de leituras e vivências ainda parciais.
A primeira grande conclusão a qual se pode ter é que o Rio de Janeiro não é uma
cidade global, a partir da definição dada. A cidade não é um centro econômico/financeiro,
como é a cidade de São Paulo, por exemplo. Por outro lado, o que se mostra é que os
discursos feitos pelo prefeito Eduardo Paes e aqueles que embasaram as obras realizadas vão
de encontro com as ideias de constituição de Cidades Globais. Esse ponto se justifica pela
“vontade” da cidade em torna-se um ponto nodal, seja de informações, turismo, cultura, seja
como local onde se aplicam soluções urbanísticas que servem de exemplo para outras cidades.
Ilustra esse momento a presidência do prefeito carioca no organismo C40, mostrando a
ambição da cidade em torna-se local de produção verde. Lendo esse momento a partir do
pensamento de Brenner e Schmid, se concluiria que o Rio faria parte das metanarrativas das
teorias urbanas, seguindo um modelo neoliberal que se perpetua pelas mudanças e crises
econômicas, criando privatizações e exclusões. Essa conclusão, além de ser muito rápida,
poderia entrar em um equívoco, não sendo o objetivo desse relatório.
Dois pontos, portanto, dão uma alternativa a essa visão. O primeiro advém da crítica
de McFarlane, que diserta sobre ideologia, comunidades epistêmicas e tradução. Certamente o
Rio participa de comunidades de troca de informação, exemplificado pelo próprio TEDTalk.
É visto, de igual forma, a participação de executivos nas obras do Porto Maravilha, com
concessões do governo de terrenos anteriormente públicos, que se interessam pela
acumulação e geração de capital. O ponto de divergência aqui é que isso não é um processo
neoliberal puro, que veio de um projeto neoliberalizante mundial coercitivo, que obriga as
obras nas cidades a fim de gerar maior fluxo. Entende-se, como McFarlane, que existe um
conhecimento neoliberal que é disseminado mundialmente, porém que não é enraizado, e sim
traduzido em cada local. Desta forma, não necessariamente foi um encantamento pelo
neoliberalismo, mas pelo o que “ele” produz urbanisticamente, ou seja, os estilos urbanos os
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quais, segundo autores como Brenner e Schmid, foram orientados por ele. Assim, haveria
certa sedução de tentar imitar os projetos internacionais como foram consolidados
materialmente, mas não necessariamente a base deles. Isso nos leva a questionar o quão o
projeto do Porto é realmente baseado em um neoliberalismo “limpo”, ou se seria baseado
apenas em um estilo de cidade a ser traduzido às práticas locais.
O outro ponto que se coloca - e que se inclui nos pontos do futuro - é o espaço do
Porto e vida cotidiana – ou melhor, o direito à cidade. Não se pode entender o Porto
historicamente sem entender as formas pelas quais ele foi e é apropriado. Isso pode ser
exemplificado, por exemplo, com a história do Cais do Valongo: o que ele era, o que ele é, e o
que ele pode ser. Isso passa por formas além de econômicas e políticas, mas também sociais.
Esse relatório, mesmo expondo o ponto anterior, entende que houve um processo de
gentrificação, baseando-se na definição de Neil Smith, no Porto Maravilha, a partir de
remoções, da criação da UPP no Morro da Providência e da valorização dos imóveis de um
ambiente que se mostrava deslocado da mudança urbana anterior. Baseando-se nisso, devem-
se entender todas as formas pelas quais as pessoas que circulam pelos bairros que circundam o
Porto Maravilha o utilizam: turistas que pagam valores exorbitantes para entrar em museus (a
entrada do aquário é de 80 reais, preço cheio), jovens de classe média que vão às festas da
Sacadura Cabral e nos Armazéns, adultos que participam de rodas de samba na Pedra do Sal,
etc. Além desses, deve-se entender principalmente como os moradores do Morro da
Conceição e da Providência convivem nesse espaço, além dos trabalhadores de todos esses
estabelecimentos, e até mesmo os passageiros do VLT e das Barcas.
Porém, visualizar essa forma de apropriação não é algo fácil, porém se mostra um
ponto que deve ser mantido para o futuro da pesquisa, visto que somente a visão da
pesquisadora é ínfima no meio de tantas outras. Uma das soluções observadas são
movimentos realizados por moradores, os quais podem ilustrar a utilização do espaço do
Porto. Um desses movimentos é o “Rolé Dos Favelados”, que tem como objetivo mostrar
espacialmente e através dos discursos de moradores o que aquele espaço e as mudanças nele
ocorridas representam. Outra forma de entender é através de entrevistas com os próprios
idealizadores dos projetos, e dos administradores da Cdurp, dos museus e do aquário, tarefa
que também se mantém para a futuridade. Por último, o trabalho em campo mostra resultados,
porém também realça a necessidade de ser realizado em quantidades, a fim de tentar entender
as formas pelas quais todas essas pessoas citadas e outras mais utilizam o espaço do Porto
Maravilha.
O futuro dessa pesquisa se coloca, então, em entender melhor essa apropriação, e
entender melhor a repercussão das obras para os moradores locais, para a população carioca, e
para os visitantes em geral. Buscar-se-á entender, assim, se existiu uma tentativa de barreira
sobre algumas populações, e se há, atualmente, uma tentativa de pular essas barreiras como
forma de apropriação do espaço pelos moradores.
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Instituto de Relações Internacionais
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