8
HANS GEDDA/CORBIS Este suplemento faz parte integrante do PÚBLICO e não pode ser vendido separadamente MANDELA “Está nas vossas mãos fazer do mundo um lugar melhor” “Eu prezo muito a minha liberdade mas prezo ainda mais a vossa” “Eu só sou um ser humano se tu fores um ser humano. Eu só sou um ser humano se for humano contigo”

Especial Mandela 06DEZ

Embed Size (px)

DESCRIPTION

ppppppppppppppp

Citation preview

HANS GEDDA/CORBISEste suplemento faz parte integrante do PBLICO e no pode ser vendido separadamenteMANDELAEst nas vossas mos fazer do mundo um lugar melhor Eu prezo muito a minha liberdade mas prezo ainda mais a vossaEu s sou um ser humano se tu fores um ser humano. Eu s sou um ser humano se for humano contigo MANDELA 1918-2013O nosso querido Nelson Mandela deixou-nosOnossoqueridoNelson Rol i hl ahl aMandel a, Presidente fundador da nossa nao democrtica, deixou-nos. Partiu paci-camente. Este um mo-mento de profunda tristeza. A nossa nao perdeu o seu melhor lho, anunciou o Presidente da frica do Sul, Jacob Zuma, na declarao te-levisiva em que comunicou ao pas e ao mundo a morte do heri e smbolo da paz, justia e reconci-liao nacional, aos 95 anos.Mandela, que h meses estava em estado crtico na sequncia de uma infeco pulmonar, morreu tranquilamentes20h50(hora local) na sua casa de Joanesbur-go, informou Zuma. Agora est a descansar em paz, prosseguiu o Presidente, sublinhando que pela sua humildade, a sua compaixo e a sua humanidade, Mandela ganhou o amor de todo o pas. E ns v-amos nele aquilo que procuramos em ns prprios.Sabamos que este dia estava a chegar, mas nada poder dimi-nuir o nosso doloroso e profundo sentimento de perda, completou Jacob Zuma, que disse que todas as bandeiras do pas tinham sido bai-xadas a meia-haste e assim per-manecero at ao funeral do lder histrico do Congresso Nacional Africano (ANC) e do movimento anti-apartheid, prmio Nobel da Paz em 1993 e o primeiro negro a presidir frica do Sul depois das primeiras eleies livres e demo-crticas.A frica do Sul perdeu um co-losso,oeptomedahumildade, igualdade, justia, paz e esperan-a para milhes de pessoas. A sua vida d-nos o exemplo e a coragem para prosseguir a luta pelo desen-volvimento e o progresso, para o m da fome e da pobreza, comen-tou o seu partido, numa primeira nota ocial.Inspirao mundialO exemplo, a sabedoria e a men-sagemdepazetolernciaque Mandela repetiu durante a vida foi evocada no s na sua terra natal, mas em todo o mundo. Eu fui um desses inmeros milhes que senti-ram a inspirao do seu exemplo, confessou o Presidente dos EUA, Barack Obama. Numa declarao na Casa Branca, Obama recordou que a sua primeira aco poltica, a primeira vez que me envolvi com um assunto ou um movimento po-ltico, foi participar num protesto contra o apartheid na frica do Sul. Estudei as suas palavras e os seus escritos. O dia em que foi libertado da priso foi uma revelao de que grandes coisas so possveis se nos deixarmos guiar pela esperana e no pelo medo. Como tanta gente por este mundo fora, no consigo imaginar a minha prpria vida sem o exemplo de Nelson Mandela.Perdemos um dos mais inuen-tes, mais corajosos e profundamen-te bons seres humanos com que di-vidimos o nosso tempo nesta Terra. Nelson Mandela j no nos perten-ce. Agora ele pertence s eras da Histria, declarou Obama. Atra-vs da sua enorme dignidade e da sua indomvel vontade de sacricar a sua prpria liberdade pela liber-dade dos outros, Madiba foi capaz de transformar a frica do Sul e de emocionar o resto do mundo. O seu percurso de prisioneiro a Presiden-te a melhor ilustrao da promes-sa de que os seres humanos e os pases podem sempre mudar para melhor, referiu Obama.Nelson Mandela alcanou, na sua vida, mais do que se pode es-perardequalquerpessoa.Hoje voltou para casa, concluiu o pri-meiro Presidente negro da Histria dos Estados Unidos, que prometeu continuar a fazer o possvel para aprender as grandes lies do l-der sul-africano: Tomar decises guiado pelo amor e no pelo dio; nunca subestimar a diferena que uma nica pessoa pode fazer; con-tinuar a sonhar com um futuro que seja digno do seu sacrifcio.Funeral por anunciarO primeiro-ministro britnico, Da-vid Cameron, anunciou que em sinal de respeito e homenagem a Nelson Mandela, as bandeiras da sede o-cial do Governo, em Downing Street, tambm voaro a meia-haste. Uma grande luz extinguiu-se deste mun-do. Mandela foi um heri do nosso tempo, escreveu Cameron na sua conta ocial do Twitter.Mandelamudouocursoda Histria do seu povo, do seu pas, do seu continente e do mundo, assinalou o presidente da Comis-so Europeia, Duro Barroso. O secretrio-geral da Organizao Sul-africanos saem rua para chorar a morte e celebrar a vida de Mandela, Madiba, Tata, o pai da nao. Sabamos que este dia estava a chegar, disse ZumaRita SizaO seu percurso de prisioneiro a Presidente a melhor ilustrao da promessa de que os seres humanos e os pases podem sempre mudar para melhor, disse Barack ObamaII |ESPECIAL |PBLICO, SEX 6 DEZ 2013Em Robben Island, uma das prises onde passou 27 anos da sua vida, Nelson Mandela esteve, nos primeiros tempos, em isolamento. Vivia numa cela exgua, onde no entrava a luz do dia. Do tecto, pendia por cima da sua cabea uma lmpada constantemente ligada. Nada lhe permitia distinguir o princpio do m do dia. Mais tarde, admitia que a conscincia do tempo a passar, longe dos seus, tinha sido uma das coisas a causar-lhe maior sofrimento na priso. terrvel, disse numa das muitas entrevistas que deu depois de libertado, referindo-se ao peso da inevitabilidade da morte, ainda mais palpvel na sua condio de condenado perpetuidade. Esse m de vida, ento distante, chegou ontem e foi anunciado pelo actual Presidente Jacob Zuma, que se referiu a Mandela como o maior lho da frica do Sul.Nelson Rolihlahla Mandela sofria de problemas respiratrios e vrias vezes foi internado. Tinha 95 anos. Estava, h longos meses, longe dos olhares do pblico, como quando esteve preso durante quase trs dcadas, mas era uma presena reconfortante, um smbolo, uma gura maior do que a vida, como disse dele um analista sul-africano. O arcebispo sul-africano Desmond Tutu previu ser este um momento traumtico para a frica do Sul, o da perda de Mandela, gura que descreveu como um ser humano fantstico, numa entrevista ao PBLICO em Lisboa no ano passado. Quando vai para a priso, uma pessoa No crepsculo da vida continuou como farol da Histria Educado para ser o conselheiro de um rei, nunca viveu como um aristocarata mas sim como um combatente pela liberdade que refundou um pasObiturioAna Dias Cordeirozangada, revoltada, que acredita na violncia como meio de conquistar a liberdade. Quando sai, emerge como uma pessoa extraordinariamente magnnima. O sofrimento por que passou ajudou-o a suavizar a sua posio, disse Tutu. E acrescentou: Ele acreditava convictamente que se lder pelas pessoas que so lideradas e no em benefcio prprio. Fomos incrivelmente abenoados por termos Madiba [Mandela] aos comandos, num momento histrico para o nosso pas. A morte de Mandela uma perda tremenda para o pas, armou Ray Hartley, director do jornal sul-africano The Times ao PBLICO. A frica do Sul perder aquele sentimento reconfortante de que existia este grande unicador, acrescentou, embora notando que os processos polticos no sero afectados pelo seu desaparecimento. Tambm em entrevista, Thierry Vircoulon, investigador associado do Institut Franais des Relations Internationales e co-autor de L Afrique du Sud de Jacob Zuma (LHarmattan) previu que, sem Mandela, a frica do Sul entraria num momento de recolhimento nacional. E realou, numa entrevista no ano passado sobre o momento que viveria o pas depois do desaparecimento de Nelson Mandela: A nova frica do Sul no vai desaparecer com ele, porque ele fez um excelente trabalho enquanto pai fundador dessa nova frica do Sul pas arco-ris criado para no excluir ningum entre os seus 50 milhes de habitantes.No primeiro discurso como homem livre, frente a uma multido na Cidade do Cabo, no dia da sua libertao da priso de Victor-Verster, a 11 de Fevereiro de 1990, Mandela declarou: Estou aqui no como um profeta mas como um humilde servo de vs, o povo. () Ponho, por isso, os restantes dias da minha vida nas vossas mos. Nesse discurso, falava aos sul-africanos. Por um mundo melhorAnos depois, nas celebraes para o seu 90 aniversrio em 2008, dirigia-se s pessoas do mundo inteiro: Est nas vossas mos fazer do mundo um lugar melhor. Como que em espelho desse seu apelo universal, o Presidente dos Estados Unidos Barack Obama escreveu no prefcio do livro das memrias ntimas de Mandela Conversations with Myself (2010): Atravs das escolhas que fez, Mandela deixou claro que no temos de aceitar o mundo como ele e que podemos contribuir para que o mundo seja aquilo que deveria ser. A sua histria evocada como inspirao para outros e os seus actos como exemplos a seguir. As suas palavras sobrevivero como lies de vida. Ele foi Presidente para desempenhar um papel exemplar na unicao e reconciliao do povo profundamente dividido da frica do Sul, disse De Klerk em declaraes feitas h trs anos a propsito do mesmo livro tambm lanado em Portugal, com o ttulo Nelson Mandela Arquivo ntimo (Editora Objectiva). Independentemente de qualquer possvel crtica, o homem que emerge de Conversations with Myself uma eminente gura, no s na histria da frica do Sul mas na histria do sculo XX, acrescentou Frederik W. de Klerk, ex-lder do Partido Nacional ltimo Presidente branco da frica do Sul (1989-1994), que partilhou o prmio Nobel da Paz 1993 com Mandela depois das negociaes para o m do apartheid. Nelson Mandela era desde 1998 casado com Graa Machel, ex-primeira dama de Moambique, que sobre ele tece os maiores elogios e, ao mesmo tempo, relativiza o seu estatuto de ltimo dos grandes heris, cujo legado no se compararia a nenhum outro. Todo o mundo diz que ele foi o melhor. Ele foi o que devia ser naquelas circunstncias especcas da frica do Sul, armou numa entrevista ao PBLICO em Lisboa em 2010. verdade que ele deu o melhor de si prprio. Mas existiro outros lderes, num momento histrico diferente, capazes de enfrentar desaos diferentes e com um estilo de liderana diferente. Porm, talvez como nenhum outro, Mandela, lder do Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em ingls) e primeiro Presidente negro da frica do Sul, foi elogiado e homenageado em vida, j depois de ser perseguido, no seu pas, como terrorista e classicado como tal pela Administrao dos Estados Unidos, no passado. O New York Times referiu-se-lhe como o estadista mais amado do mundo, em 2009, quando a ONU determinou, por consenso dos 192 pases membros, que o dia de aniversrio do ex-Presidente, 18 de Julho, seria o Dia Internacional Nelson Mandela. O jornal considerou que os seus valores como pai fundador continuariam a moldar a nao e o seu lugar vital na conscincia dos sul-africanos permaneceria intacto, durante muito tempo mesmo depois do seu desaparecimento. Pelo menos at ao m de 2010, Mandela continuava, todos os meses, a receber quatro mil das Naes Unidas, Ban Ki-moon, lembrou o lder sul-africano como um gigante da justia e um homem simples e inspirador. Ningum fez mais no nosso tempo para pro-mover os valores e as aspiraes das Naes Unidas. Nelson Man-dela mostrou-nos como possvel, no nosso mundo e em cada um de ns, acreditar, sonhar e trabalhar pela justia e pela humanidade, observou. Ele foi capaz de tocar as nossas vidas de uma maneira que era profundamente pessoal.Milhares de sul-africanos, emo-cionados mas j no chocados com a notcia, saram ontem imediata-mente para a rua para lamentar a morte de Mandela, e ao mesmo tempo celebrar a vida de Madiba, o nome tribal tradicional do seu cl pelo qual era afectuosamente conhecido e tratado bem como Tata, a palavra da lngua Xhosa que signica pai.Ainda no so conhecidos a data ou pormenores sobre as cerimnias fnebres, embora a imprensa sul-africana avance a hiptese de o fu-neral no ser nos prximos dias.ULLI MICHEL/REUTERSNelson Mandela e Winnie Mandela sada da priso em Fevereiro de 1990c PBLICO, SEX 6 DEZ 2013| ESPECIAL|IIImensagens do mundo inteiro. Algumas com uma homenagem e outras a desejarem-lhe uma reforma tranquila e feliz, informou a Fundao Nelson Mandela em Dezembro de 2010 que, numa declarao enviada a jornalistas de todo o mundo, recomendou que limitassem os pedidos de autgrafos, declaraes, entrevistas ou aparies pblicas, de forma a ajudar a tornar a reforma de Madiba [o seu nome de cl] um perodo de paz e tranquilidade. Em 2009, Graa Machel lamentava a perda do brilho no olhar do marido. Nos trs anos seguintes, o lder histrico continuou a aparecer em fotograas por ocasio do seu aniversrio, com um ar cada vez mais frgil. Uma das ltimas vezes que Mandela compareceu num evento pblico, ao lado da mulher, foi na cerimnia de encerramento do Mundial de Futebol em Joanesburgo em 11 de Julho em 2010. Eram imagens de televiso. Em 2011, eram divulgadas fotograas do ex-Presidente com Michelle Obama e, mais tarde, ao lado de Hillary Clinton, quando a ex-secretria de Estado dos Estados Unidos o foi visitar aldeia onde cresceu e onde estava a residir, Qunu, na provncia do Cabo Oriental. Nelas, Mandela sorria, com o mesmo sorriso digno e com que caminhou livre depois de passar os portes da priso de Victor-Verster, perto da Cidade do Cabo, a ltima onde esteve depois de Robben Island (at 1982) e Pollsmoor. As ltimas imagens do ex-Presidente, difundidas pela televiso sul-africana em Maio deste ano, indignaram por exporem a sua extrema fragilidade. Mostravam um Mandela ausente, incomodado e muito doeDescendente do rei thembu O desejo de Mandela, expresso na autobiograa Long Walk to Freedom (2005) publicada em Portugal pela editora Campo das Letras com o ttulo Longo Caminho para a Liberdade era ser sepultado junto dos seus antepassados em Qunu, no Transkei, provncia do Cabo Oriental.Foi aqui que nasceu, em 1918, e foi educado para ser, como o pai falecido, conselheiro do rei thembu, Jongintaba Dalindyebo. Era descendente de Ngubengcuka, que tinha antes sido o rei dos thembu, includos no mais vasto grupo lingustico dos xhosa. Mandela descreve o rei, que foi seu pai adoptivo e do qual teria sido conselheiro se no tivesse comeado uma nova vida em Joanesburgo, como um homem tolerante e esclarecido que tinha alcanado o objectivo de todos os grandes lderes: mantivera o seu povo unido. Ele recebera-o quando Mandela tinha nove anos depois da morte do pai que cara desapossado de tudo por desaar um representante da administrao britnica. Sem condies para o criar, a me entregou-o ao rei e Mandela cresceu a aprender a escutar os ancios. Madiba era nome do seu cl e era assim que frequentemente o chamavam, por respeito. Para muitos sul-africanos, tambm era Tata, que signica pai em xhosa, ou khulu que signica grandioso. Na clandestinidade, a partir de 1961, era David Motsamayi, disfarado de motorista, cozinheiro ou jardineiro. No foi conselheiro, nem rei, mas a sua educao de aristocrata, os estudos de advocacia, o carisma e dedicao luta anti-apartheid zeram dele gura de proa do ANC e principal cone da libertao da frica do Sul. No aceitou ser libertado da priso antes de ver garantidos a libertao dos outros presos polticos, o m do apartheid e o levantamento do estado de emergncia no pas. Eu prezo muito a minha liberdade mas prezo ainda mais a vossa, escreveu num discurso lido pela lha Zindzi, num comcio no Soweto, em 1985, dirigido aos africanos e membros do ANC, a partir da priso. O discurso era uma resposta a uma oferta do Presidente Botha para a libertao em condies que Mandela recusava. Ensinamentos umbuntuO ex-Presidente sul-africano e Nobel da Paz sabia escutar as pessoas, olh-las nos olhos e compreender as suas diferenas. Tinha certezas sucientes nas suas convices para as poder defender, mas tambm dvidas razoveis para estar aberto aos outros e saber ouvi-los, refere Ebrahim Rasool, embaixador da frica do Sul nos Estados Unidos, numa entrevista GlobalAtlanta no nal de 2010. Era humano, caloroso, rme, convincente e magnnimo, dizem os analistas ouvidos pelo PBLICO. E foi abenoado com uma capacidade extraordinria de perdoar. Vivia de acordo com os ensinamentos e a losoa de vida umbuntu que aprendera, ainda criana, dos ancios na terra onde cresceu, Qunu: Eu s sou um ser humano se tu fores um ser humano. Eu s sou um ser humano se for humano contigo. Soube entender o receio dos brancos da frica do Sul, tranquiliz-los, com a garantia de que seriam includos no novo pas que, pedra a pedra, ergueu. No confundiu as pessoas e o regime. Pelo contrrio: soube ver a diferena entre o Governo e a populao branca que em parte conquistou dando-lhe provas de que no seria discriminada. Deixou de lado os rancores, superou a mgoa do tempo na priso e da humilhao sofrida pelo povo. Deixou a liderana do ANC e a presidncia no m do primeiro mandato para deixar a via aberta a uma nova gerao de polticos. Tentou, com isso, lanar uma mensagem aos lderes que se perpetuam no poder e aproveitam a aura que a luta de libertao lhes conferiu no passado. A voz era suave mas as suas palavras ecoavam como s as palavras dos lderes universais e respeitados ecoam, tanto nas crticas que fez a dspotas africanos incapazes de deixar o poder como quando, por exemplo, se ops interveno dos Estados Unidos no Iraque em 2003, ou noutras circunstncias. Era um poltico fenomenal, continua Ray Hartley, director do sul-africano The Times. Para este jornalista que cobriu os cinco anos da Presidncia de Mandela, entre 1994 e 1999, no foi tanto o momento da Histria que fez de Mandela um heri, mas Mandela que soube fazer Histria. O papel dele em criar as circunstncias foi muito importante, porque tinha a fora de carcter e a personalidade para chegar aos dirigentes que estavam do outro lado na procura da paz. Foi um impulso natural para ele e no algo que se forou a fazer. Ele tem essa postura natural de estadista. E acrescenta: Ele tremendamente carismtico e de forma poderosa. Teria sido um bom poltico em qualquer era mas nesta foi especialmente bom. Foi ao mesmo tempo um bom lder de uma luta de libertao e um bom Presidente, diz Ray Hartley mesmo perante aspectos menos felizes do seu mandato, diz: Quando chegou a altura de montar instituies ecientes de Governo, foi um pouco mais fraco a. E o legado disso continua at hoje com a corrupo no Governo e os erros na administrao. Nesses cinco anos, muito mais podia ter sido feito, como criar as condies para uma administrao mais prossional e mais intransigente com as ms prticas de administrao e a burocracia. Seja como for, reala: O que a frica do Sul precisava era de algum capaz de unicar o pas, falar para todas as pessoas e ter o respeito de toda a nao. [Uma pessoa] que ao mesmo tempo fosse capaz de transformar um pas em necessidade urgente de mudana. Era a coisa mais importante a fazer e ele foi capaz de a fazer. Em 2004, com 86 anos, Mandela anunciou a sua retirada dos actos pblicos para alm da poltica que j tinha abandonado em 1999. Nessa altura, incumbiu a Fundao Nelson Mandela, o Nelson Mandela Childrens Fund e a Mandela Rhodes Foundation de continuarem, em seu nome, o trabalho humanitrio em que se envolvera depois de deixar a presidncia e que estava muito virado para a luta contra a sida. Na mesma ocasio, referiu a brincar: No me telefonem, eu telefono-vos, lembra, num artigo de Dezembro de 2010, o jornalista do The Sowetan Ido Lekota. Embora no lhe tenhamos telefonado, escreve o jornalista, a sua gura maior do que a vida continua a pairar sobre a nossa democracia e o panorama poltico da frica do Sul. A voz da razo Na vida como na luta, Mandela sempre se regeu pela dignidade. Era um verdadeiro lder, e todos o respeitavam como tal, lembram alguns dos seus camaradas de luta em excertos depoimentos, citados pela BBC. Era a voz da razo dentro do ANC, sublinha por sua vez o analista Thierry Vircoulon ao PBLICO. A sua inuncia imensa porque encarnou a aliana entre a razo e o rigor. Mesmo durante as mais fortes tenses da MANDELA 1918-2013AFPcIV |ESPECIAL |PBLICO, SEX 6 DEZ 2013luta contra o apartheid e, quando vozes dentro do ANC defendiam uma linha poltica intransigente, Mandela manteve um discurso apaziguador e conciliador. Sempre soube que os brancos e os negros no tinham outra escolha se no viverem juntos na frica do Sul, acrescenta este especialista francs de frica, autor de vrios livros sobre a frica do Sul, que teve um cargo na embaixada de Frana no pas, e conheceu Mandela. Ele transmitia uma impresso de grande fora interior e de grande bondade, recorda. A esse propsito, lembra um trao da sua personalidade: Para ele, at o exerccio da autoridade devia ser desempenhado com amabilidade. Era um Presidente gentleman. Tinha o hbito de dizer aos seus guarda-costas: Se tiverem de empurrar as pessoas, faam-no com um sorriso. Tambm o acadmico Guilherme Fonseca-Statter, investigador do Centro de Estudos Africanos do Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa (ISCTE) em Lisboa, recorda Mandela como um senhor com S grande. Ele estudara a fundo os seus direitos e impunha-se ao respeito de todos, incluindo os prprios guardas prisionais, sustenta o acadmico. Para poder partilhar com os companheiros a comida que recebia de uma amiga na priso, partilhava primeiro com os carcereiros, conta. Da mesma forma, para conquistar o reconhecimento dos direitos do seu povo, os africanos, reconheceu os direitos do prprio povo afrikander. Eleito em 1994, fez uma recepo e convidou todos os dignitrios afrikanders, muitos deles altos representantes do regime do apartheid, como Botha. E foi tomar ch com a viva de [Hendrik] Verwoerd que no pudera comparecer por viver longe de Pretria. No discriminou ningum, conta Guilherme Fonseca-Statter. Nem mesmo Verwoerd que tinha sido primeiro-ministro entre 1958 e 1966 quando o ANC foi banido, obrigando muitos dirigentes como Mandela a passar clandestinidade, e quando se realizou o Julgamento de Rivonia em que Mandela e outros dirigentes do ANC enfrentaram a pena de morte por alta traio priso, de negociar o m do apartheid com o Governo do Partido Nacionalista, e de ser eleito primeiro Presidente negro da frica do Sul, dedicou-se, depois da retirada da vida poltica, e atravs da Fundao com o seu nome, a uma nova causa o combate e a preveno da sida qual se sentia especialmente ligado. Em 2005, a morte do lho Makgatho, vtima de sida, leva Mandela a uma rara interveno pblica desde o m do mandato presidencial em 1999. Lana um apelo para que se ponha m ao tabu e se fale desta como de qualquer outra doena, porque s assim, diz, a sida deixar de ser fatal. J antes tinha perdido o outro lho, mais velho, Thembekile, num desastre de carro, em 1969, quando estava preso, e uma lha pequena ainda beb Makawize, ambos do primeiro casamento com Evelyn Mase, de quem se divorciou em 1957. Dos seis lhos que teve, acompanharam-no at ao m dos seus dias as trs lhas: Zindzi, Zenani e Makawize. E Graa Machel, viva do primeiro Presidente da Repblica de Moambique Samora Machel, com quem Mandela casou em 18 de Julho de 1998, dia do 80 aniversrio e que esteve diariamente a seu lado nos ltimos dias no hospital. Tambm Winnie Madizikela-Mandela, com quem foi casado quase 30 anos, esteve perto dele nestes ltimos tempos em que estava doente. Na autobiograa, Mandela conta que quando viu Winnie pela primeira vez soube que a ia amar. Durante os anos em que esteve preso, era ela a sua condente e, durante muito tempo, quem melhor o compreendia. A poltica, os mtodos utilizados e a viso do rumo que devia seguir a luta acabam por separ-los. O casal divorcia-se em 1996. A solido marcou o tempo passado na clandestinidade e, mais tarde, os quase 30 anos na priso, de onde escreve em 1 de Outubro de 1976 uma carta a Winnie em que se l: Tenho momentos de felicidade em que rio sozinho ao pensar nas oportunidades e nos momentos de prazer que tive na vida. durante toda a vida e algo presente nas suas memrias em Nelson Mandela Arquivo ntimo. Mas aceitou-o como ter aceitado a defesa que fez de o ANC recorrer s armas que via como nica resposta possvel a dar a um regime que oprimia o seu povo. Nunca irei lamentar a deciso que tomei em 1961, mas gostaria que um dia a minha conscincia estivesse tranquila, armou referindo-se deciso tomada em 1961 de passar clandestinidade e formar o MK (Umkhonto we Sizwe A lana da nao) fundado em 1961, que se tornou a ala militar do ANC de que foi primeiro comandante-chefe. Sementes para a paz Da mesma forma que ousou recorrer s armas, avanou mais tarde sozinho, sem o ANC, no primeiro gesto de negociar com o Governo. Escreve vrias missivas ao ministro da Justia, Kobie Coetsee, que s depois de algum tempo do frutos. Sem querer ser desleal para com o ANC que tinha como princpio no dialogar com o Governo enquanto o movimento no fosse legalizado e os presos polticos libertados Mandela transmite ao Governo o seu pensamento: as negociaes eram a nica sada para impedir que o pas mergulhasse numa espiral de violncia mtua que tornaria os objectivos da luta ainda mais difceis de alcanar. Quando apresenta aos companheiros da luta na priso a sua inteno de avanar, convence-os de que o importante no seria ver quem deu o primeiro passo para as conversaes mas o que delas viria a resultar no futuro. Firme e persuasivo, tambm ele quem convence o adversrio, o Governo, de que no perderia credibilidade perante o povo ao sentar-se mesa das negociaes com o ANC, mesmo sem este renunciar violncia. O povo compreender, desde que lhe seja explicado que essa era a nica soluo para a paz, diz Mandela. Essas conversaes viriam a resultar em 1990 na sua libertao e na dos outros presos polticos, no m do apartheid e na realizao das primeiras eleies livres na frica do Sul em 1994. Nos 23 anos que viveu depois de ser libertado, alm de concluir a misso, iniciada ainda na Mandela com o ento Presidente De Klerk em Fevereiro de 1990, dois dias antes da sua libertao Datas1918 Nasce em Mvezo1942 Comea os contactos com o ANC e completa a Licenciatura em Direito1944 Casa-se com Evelyn Mase, com quem ter 4 filhos e de quem se divorcia em 1956. 1957 Casa-se com Winnie Mandela com quem ter duas filhas e de quem se divorcia em 19961961 Entra na clandestinidade, adopta o nome de David Motsamayi.1962 Deixa o pas para receber treino militar e recolher apoios para o ANC. Regressa e preso por incitamento e por sair ilegalmente do pas1964 acusado de sabotagem e condenado a priso perptua no Julgamento de Rivonia juntamente com sete outros destacados activistas. Entra na cadeia de Robben Island Em sua defesa, Mandela, no duplo papel de acusado e advogado, pronuncia o clebre discurso Speech from the dock. 1985 Rejeita a oferta do Presidente PW Botha de o libertar se ele renunciar violncia. S vir a aceitar a libertao se todos os outros presos polticos tambm o forem e se o ANC deixar de ser banido.1990 libertado da priso de Victor Verster perto de Paarl e pronuncia um discurso histrico1993 Recebe o Nobel da Paz com Frederik De Klerk1994 Vota pela primeira vez na vida e eleito primeiro Presidente negro da frica do Sul1998 Casa-se com a moambicana Graa Machel1999 Abandona a vida poltica e a liderana do ANC no fim do mandato como Presidente2008 Discursa no Hyde Park, em Londres, palco das comemoraes do seu 90. aniversrio2010 Aparece naquela que se pensava ser a ltima vez na cerimnia de encerramento do Mundial de Futebol 2013 Morreu ontem aos 95 anos, na sua casa em Joanesburgocontra o Estado, acabando por ser condenados a priso perptua. Morrer por um ideal Enquanto advogado, assumiu a sua prpria defesa nesse histrico julgamento. Usou a tribuna em nome da causa da liberdade, dizendo que lutava contra a dominao branca da mesma forma que lutaria contra a dominao negra e que acalentava o ideal de uma sociedade democrtica e livre em que todas as pessoas pudessem viver juntas. um ideal para cuja concretizao espero viver, disse. Mas se for necessrio, um ideal pelo qual estou disposto a morrer. Enfrentava ento, no Julgamento de Rivonia em 1964, a pena capital por alta traio contra o Estado e convencera-se de que seria condenado morte. Chegara a citar Shakespeare a esse propsito: Aceite a morte; e a morte e a vida sero assim mais doces. Foi condenado a priso perptua. E o seu nome, que muitos sul-africanos associavam a um perigoso terrorista, cou ligado ao nmero de prisioneiro 466 64. A luta era a sua vida, admite na autobiograa, onde confessa tambm a genuna felicidade que sentira nos raros momentos dedicados aos lhos quando ainda estava em liberdade ou quando teve nos braos a neta recm-nascida, da sua lha Zindzi, numa visita de ambas priso de Robben Island. J em liberdade, numa entrevista revista Time em Fevereiro de 1990, disse acreditar no valor da dedicao quase exclusiva luta: Sim, valeu a pena. Ser preso por causa das nossas convices e estar preparado para sofrer por aquilo em que se acredita vale a pena. uma conquista para um homem cumprir o seu dever na terra independentemente das consequncias, considerou. Nunca escondeu porm a angstia e o dilema de colocar o bem do povo frente do bem da famlia. Na mesma entrevista, questionado sobre se sentia mgoa por ter estado preso 27 anos, respondeu: Sim e no. O difcil equilbrio, nunca alcanado, entre a dedicao famlia, por um lado, e causa da libertao, por outro, perseguiu-o PBLICO, SEX 6 DEZ 2013| ESPECIAL|VMANDELA 1918-2013Quandoestavanapriso, Mandela percebeu que se tivesse frio no ia adiantar escreverumacartaao director a queixar-se; a nica pessoa que lhe poderia trazer um cobertor seria o responsvel pela seco da cela onde estava. Por isso, precisava de dialogar com os carcereiros.A histria foi contada pelo prprio Mandela ao jornalista sul-africano Allister Sparks, ex-director do Rand Daily Mail, e mais tarde correspon-dente dos jornais The Washington Post e The Observer. Mandela comeou a conhecer os carcereiros e soube que eram muito mal pagos, no tinham estudos, tendiam a ter diculdades e como era advogado ajudou-os, deu-lhes conselhos de borla, conta-nos a partir da frica do Sul o autor de vrios livros, como The Mind of South Africa (1991) ou Beyond the Miracle: In-side the New South Africa (2006). Ga-nhou a conana deles, conseguiu saber por que que tinham tanto me-do dos negros sul-africanos e porque eram to violentos. Percebeu que eles tinham medo: medo do nmero de negros, de que a maioria negra to-masse conta do poder e de que eles, brancos, fossem os primeiros a per-der o emprego e a sofrer e conhe-c-los era conhecer tambm muitos outros brancos sul-africanos.Sparks foi nomeado em 1995 por Nelson Mandela para o conselho da South African Broadcasting Corpora-tion, tornou-se o director de informa-o da estao em 1997, e conviveu com ele de perto. Usa a histria do cobertor para chegar ao osso do que pensa ter sido o legado de um homem que teve um papel decisivo no m de uma segregao racial de 46 anos (de 1948 a 1994 ocialmente, com as primeiras eleies multiraciais). A sua contribuio para a negociao de acordos foi esta capacidade de perceber a psicologia daqueles con-tra quem se estava a insurgir e depois encontrar um meio de anular o factor que estava a bloquear o acordo o medo. E repete: A sua importncia no movimento pelos direitos civis isto, tem que se entender a psicologia do inimigo, das pessoas que esto a oprimir-nos e perceber: porque es-to a oprimir-nos? Porque tendem a tornar-se violentos?A estratgia do cobertor, cha-memos-lhe assim, serviu-lhe ento depoisnostemposdeliberdade. Desenvolvendoacapacidadede se colocar no lugar dos outros e de empatizar com eles, fez gestos sim-ples, segundo Sparks, cheios de simbolismo. Nisso tornou-se muito habilidoso. Por exemplo, decidiu ir tomar ch com Betsie Schoombie, a viva de um dos homens por detrs da ideologia do apartheid, Hendrik Verwoerd, primeiro-ministro entre 1958 e 1966. Visitou-a, e tornou o facto pblico, sublinhado que no temia perdo-los em nome do suces-so da paz, mesmo depois dos 27 anos passados na priso, de onde no saiu Joana Gorjo HenriquesComo a estratgia do cobertor fez de Mandela uma inspirao para o mundoOs 27 anos passados na priso em nome de uma causa, o m do apartheid, reservam-lhe uma admirao e lugar nicos na Histria. Histria de como a estratgia do cobertor o fez dialogar com o inimigo e tornar-se uma inspirao para o mundocom rancor ou amargura em 1990. Outro exemplo da estratgia do co-bertor: Chamou todos os generais da minoria branca e disse-lhes: Eu nunca poderei derrubar-vos, mas vocs nunca nos conseguiro matar a todos. melhor entendermo-nos: eu mantenho-vos nos vossos postos mas preciso ter generais negros tambm.Mandela, o primeiro presidente negro da frica do Sul, o homem dos gestos. No apenas o jornalista sul-africano quem nos fala deles. Ao contrrio do que aconteceu em ou-tros casos, quando chegou ao poder em 1994 no props uma poltica de expulso da minoria branca, lembra o italiano Livio Sansone, do depar-tamento de Antropologia e Centro de Estudos Afro-Orientais da Uni-versidade Federal da Bahia, a viver no Brasil h dcadas. E, mais uma vez, soube utilizar a poltica da cor de forma inteligente, acrescenta-nos numa conversa por Skype a partir da Europa. Outro momento decisivo: quando quis manter um servio de segurana composto por brancos. O que foi simblico: um presidente negro andar com um monte de po-lcias brancos Ele era genial nesse aspecto. Manteve os seguranas bran-cos para mostrar que no tirava os brancos dos cargos deles.Na memria de Slvio Humberto, economista, professor e fundador do Instituto Steve Biko (nome de um ac-tivista sul-africano da luta contra o apartheid), cou tambm a perseve-rana de um lder que demonstrou ao mundo que era possvel equilibrar a arte de fazer poltica com as agru-ras do racismo. Uma das primei-ras coisas com que o racismo acaba com a humanidade e ca difcil res-tabelecer o dilogo com algum que no te considera humano. Mandela conseguiu equilibrar as duas coisas, fazer a transio na frica do Sul e saber o momento exacto de sair e de no se perpetuar no poder. O tam-bm vereador da cidade de Salvador repete-nos a imagem dos gestos: Ele deu uma lio de fazer poltica com o seu exemplo, com o seu gesto. o gesto de quem tem a mo aber-ta, e est disposto a estender a mo ao outro em prole da frica do Sul. E no menos importante: s saiu da priso quando pde lutar de igual para igual, com dignidade.Por isso, como diz Sparks, a fri-ca do Sul adora-o. um tesouro nacional, adorado por todas as raas no pas.A luta armadaMas Mandela passou por diversas fa-ses na sua vida, nem todas to conci-liatrias quanto a imagem que cou do Nobel da Paz dos ltimos anos. Quando era novo, formou a ala mi-litar do ANC (Spear of the Nation, abreviado MK). No iria conseguir vencer uma luta por meios paccos, defendia. Gandhi tinha lanado a sua carreira poltica na frica do Sul, e a sua postura era a de resistncia passi-va. Mandela, na fase inicial, decidiu que enquanto se est a enfrentar um VI |ESPECIAL |PBLICO, SEX 6 DEZ 2013THEMBA HADEBE/AFPMandela celebra os seus 90 anos com os netos em 2008um homem ntegro, apesar de per-tencer ao Partido Nacional, e isso deu-lhe poder. Teve a viso para olhar alm do imediato, e de dar um passo em direco ao outro lado. No tenho a certeza de que qualquer ou-tro lder tenha sido capaz de dar esse passo e de tomar os riscos que ele tomou para convencer toda a gente. uma qualidade fantstica.Outras qualidades, como lder: ser muito rme, diz Makhanya. Mas a coisa mais importante: a sua humil-dade. Isso vem do facto de Mandela no se colocar no lugar de quem d ordens, mas de fazer a outra pessoa sentir que era to importante quanto ele: Podia relacionar-se com presi-dentes da mesma forma que se rela-cionava com as pessoas da rua. De-pois de ter sado da priso e faz-lo determinado a unir o pas, Mandela no teve apenas uma liderana for-te. Teve disponibilidade para perdo-ar, para deixar o passado para trs, e disse ainda aos sul-africanos que no deviam temer a democracia, acrescenta.O milagre da sobrevivnciaEsta capacidade invulgar de comu-nicao e de empatia tornou-o um smbolo, no apenas para negros mas para todos. Acima de tudo, diz Makhanya, Mandela lutou pela igual-dade e pelos direitos humanos. Da que este jornalista arme: Mandela no nos pertence, pertence ao mun-do, o nosso Mandela mas tambm o Mandela do mundo.Mandela do mundo, e seria in-uenciado tambm por outros acti-vistas do mundo. O historiador ame-ricano Clayborne Carson, escolhido pela famlia de Martin Luther King para editar e publicar os seus escri-tos, reconhece nele as inuncias do activista norte-americano no qual se especializou. A partir da Califrnia, Carson fala-nos da inspirao do boi-cote de Montgomery em 1955, Rosa Parks recusou dar o seu lugar a um branco no autocarro (como era a re-gra) e desencadeou o movimento dos direitos civis liderado por King, o que levou ao m da segregao racial nos EUA. Na altura havia semelhanas entre as lutas nos Estados Unidos e na frica do Sul, lembra o tambm fundador do Instituto Martin Luther King na Universidade de Stanford, on-de ensina. Alis, quando foi aos EUA Mandela quis conhecer Rosa Parks. Sei que cou muito comovido, por-que a via como uma pessoa crucial na luta dos afro-americanos.Nosanos1980alutacontrao apartheidfoiapoiadapelosafro-americanos, que zeram protestos porta da embaixada sul-africana em Washington D.C. e presso para que Ronald Reagan, ento presidente, adoptasse medidas contra a frica do Sul, recorda. E, curiosamente, o maior protesto em Stanford no foi nos anos 1960 mas nos 1980 contra o apartheid, diz. Os americanos viam Mandela como lder, mas ele estava na priso. Conheceram-no melhor depois quando saiu.Nos EUA Mandela visto como al-gum que fez uma extenso interna-cional dos princpios de Martin Lu-ther King e esses princpios so o de um longo e paciente sofrimen-to, completa Henry Gates, famoso especialista em estudos afro-ameri-canos, professor na Universidade de Harvard. Quem sabe denir carisma, questiona retoricamente ao telefone de Cambridge, EUA, quando lhe fa-lamos das suas caractersticas como lder. A diferena entre King e Man-dela que nunca ningum sonhou que King iria emergir como Presiden-te dos EUA e isto diferente. Aqui nos EUA a aco poltica era mais um movimento moral, baseado em objec-o de conscincia e na tentativa de converter as cabeas e os coraes dos cidados; no caso de Mandela foi um golpe, a tentativa de suplantar um partido por outro, e por isso resisti-ram to violentamente.Mandela nunca desistiu nem capi-tulou, diz o tambm autor de vrios programas de televiso. Sobreviveu aos anos na priso e depois apareceu como se fosse ontem!, lembra entu-siasmado. Todos celebrmos este homem que era um super-homem.Gates guarda um poster original da primeira campanha poltica de Mandela, para o qual olha todos os dias quando acorda. Quando ele foi libertado da priso, levou as lhas a assistir ao momento pela TV. Na histria ocidental dos negros nada mais importante do que a sua sobre-vivncia e a eleio como presidente porque um triunfo to grande de uma oposio negra ao poder domi-nante, diz. No por acaso que o professor fala em sobrevivncia, como se tivesse sido um milagre. Nos EUA todos os grandes lderes do mo-vimento dos direitos civis foram mor-tos: J.F. Kennedy, Malcolm X, o pr-prio Dr. King, como os americanos lhe chamam. Mandela sobreviveu e dirigiu um pas, um milagre entre os negros.Optimismo e cor da riquezaNo como milagre que o socilo-go ric Fassin, professor na cole Normale Suprieure de Paris e es-pecialista em temas raciais, dene o legado de Mandela. Mas quase. A lio a tirar do papel de Mandela como activista pelos direitos civis resume-se numa palavra: Optimis-mo. Optimismo porque transmite a esperana, a quem est do lado do perdedor durante anos, de que pode um dia ganhar, diz-nos entre as aulas em Paris: Aquilo que parecia ser algo que ia continuar para sem-pre o apartheid acabou. Mande-la foi libertado e depois tornou-se presidente. A ideia de que, quando se est a perder, o impensvel pode tornar-se vivel aplicvel a todo o tipo de movimentos sociais e todas as situaes. Pensemos no que se passa em Israel.Na frica do Sul, ao mesmo tempo que se lutava pelo m do apartheid, outro movimento favorecia o sepa-ratismo negro, lembra Clayborne Carson. O que Mandela conseguiu foi no fazer do m do apartheid uma luta de negros contra brancos mas de brancos e negros a ultrapas-sarem as injustias juntos, algo que lhe garante ainda admirao nica. Mandela e o ANC eram consistentes a defender uma frica do Sul mul-tirracial. Carson no tem dvidas de que Mandela ser lembrado, ao lado de King e de Ghandi, como um dos trs grandes nomes da liberdade humana e dos direitos humanos do sculo XX.A est, ento, uma segunda razo para ric Fassin usar a palavra op-timismo: a luta pelo m do apar-theid foi uma batalha racial, mas as expectativas eram de que iria haver uma batalha de sangue, s que isso no aconteceu. Moral da histria: Nem todas as revolues preci-sam de se transformar em sangue ou numa ditadura. O exemplo que Mandela deu foi que o impensvel acontece e que a nao arco-ris at certo ponto funcionou. No signica que o racismo desapareceu, no sou naf, mas signica que frica do Sul pode ultrapassar isto.O pas aps o apartheidSe a admirao pelo Mandela dos tempos da luta na priso contra o apartheid quase geral, j a sua pos-tura enquanto presidente da frica do Sul e o seu lado conciliatrio menos consensual.O grande exemplo, brutal, de algum tenaz, que falava muito na construo e apontava para o futuro do Mandela da fase inicial cou aqum das expectativas na fa-se posterior para o portugus Nuno Santos, socilogo, conhecido como rapper Chullage e frente de duas associaes activistas, a Plataforma Gueto e a Khapaz. Envolvido com outros movimentos internacionais pela igualdade racial, e leitor de blogues de autores sul-africanos que andam na casa dos 30 anos, Nuno Santos fala de uma frica do Sul onde formalmente a segregao racial acabou, mas onde na prtica continuam a existir desigualdades entrebrancosenegros.Hhoje uma burguesia negra sul-africana, mas o acesso aos empregos, por exemplo, continua a ser altamente racializado, as condies de vida melhoraram num par de cidades e no resto do pas ainda h muitos que precisam de andar horas para buscar gua potvel e trabalham em condies obscenas, exem-plica.O sul-africano Mondli Makhanya contextualiza: os problemas raciais na frica do Sul agora so muito di-ferentes de h 20 anos. O que Man-dela conseguiu durante os cinco anos em que esteve na presidncia (1994-1999) foi algo extraordin-rio: Mudou as condies de vida de muita gente, havia pessoas que no tinham electricidade, novas ca-sas foram construdas para quem vivia em bairros de lata, muitos pas-saram a ter gua potvel. Mas: H muita coisa a fazer. No h separa-o racial nas escolas, nos bares, nos autocarros, as pessoas relacionam-se umas com as outras, ultrapassou-se a barreira da cor, e isso deve-se, considera, ao que Mandela fez du-rante o seu mandato: a reconcilia-o, reconstruo da nao. A nvel econmico conrma as informaes que Nuno Santos vai recebendo da sua rede: A maior parte do dinhei-ro est em mos brancas, a classe mdia predominante branca e os No haver um segundo Mandela porque ele produto de um tempo. Foi o sonho colectivo de muitos porque o resto do mundo tambm estava empenhado em abolir o apartheidregime que usa armas no se podem usar meios paccos, sublinha Spa-rks. Mais tarde mudou a sua pers-pectiva, embora nunca abandonasse a estratgia militar. Enquanto esta-va na priso percebeu que o brao armado que fundou podia ser um factor importante num acordo de negociao.Por outro lado, o no abdicar da lu-ta armada foi um risco, porque pode-ria eventualmente desencadear uma guerra civil, lembra-nos em conver-sa telefnica o jornalista sul-africano Mondli Makhanya, antigo director do The Sunday Times sul-africano.Durante as negociaes com o en-to presidente Frederik Willem de Klerk, com quem chegou ao m do apartheid, Mandela disse que ele era PBLICO, SEX 6 DEZ 2013| ESPECIAL|VIIpobres so negros. A maioria ainda v a cor da riqueza como branca, e a cor da pobreza como negra. Isso afecta as relaes, porque as pesso-as pensam: Para que serve a liber-dade, se no h liberdade econmi-ca? Para ele, o grande desao de agora passar da reconciliao para um equilbrio econmico.O heri do meioO lsofo alemo Hans Magnus En-zensberger descreveu Mandela co-mo o heri do meio e assim que Livio Sansone o gosta de ver. Porque tanto ele como Frederik De Klerk ti-veram a coragem de fazer um acor-do contra a maioria da vontade do povo. Havia na frica do Sul quem quisesse um ajuste de contas racial, e ambos zeram com que isso no acontecesse. um smbolo impor-tante. Depois Mandela teve ainda a coragem de se auto-exilar sair da poltica e dizer: Fiz a minha luta, agora deixo espao para os ou-tros. H poucos como ele, conclui Sansone.Herana e legado de Mandela co-mo lder activista pelos direitos civis? A crena de que possvel ter uma sociedade em que a diversidade no considerada como problema mas como valor, um valor que tem que ser exercitado diariamente porque o racismo tem muitas armadilhas e sabemos que, s vezes, mudam-se as leis mas no a cabea, diz Slvio Humberto. o que ele defendeu: se voc educado para odiar tambm pode ser educado para amar.Resultado de um momento ca-trtico,conedeumsofrimento colectivo de centenas de anos, ele era nico, diz Sansone. No haver um segundo Mandela, considera, porque ele produto de um tempo. Foi, como lhe chama, o sonho co-lectivo de muitos, porque o resto do mundo tambm estava empe-nhado em abolir o apartheid, algo muito injusto e anti-histrico. Uma personagem charmosa, sedutora, meiga, Mandela ainda um pouco um santo. No tem dvidas: No vejo no horizonte um lder to char-moso quanto Mandela.No fundo, a estratgia do cober-tor pode ter sido ecaz, mas teve menos de estratgia no sentido cni-co do termo, e mais de autenticida-de. Allister Sparks lembra a singu-laridade do sucesso de Mandela em direco aos opositores: Projectava uma personalidade muito humana e calorosa at para os inimigos. Ele fazia-o de forma muito honesta. Es-ses gestos nunca pareciam falsos.MANDELA 1918-2013O QUE ELES DIZEMSabamos que este dia estava a chegar. O nosso povo perdeu um paiJacob ZumaPresidente da frica do Sul Mandela deixa um extraordinrio legado de universalidade que perdurar por geraesAnbal Cavaco SilvaPresidente da Repblica Ele alcanou mais do que se pode esperar de qualquer homem. No consigo imaginar a minha vida sem o exemplo de MandelaBarack ObamaPresidente dos EUAMuitos no mundo inteiro foram influenciados pela sua luta altrusta pela dignidade, igualdade e liberdade humanaBan Ki-moonSecretrio-geral da ONUMandela mudou o curso da histria para a sua populao, para o seu pas, para o seu continente, para o mundoDuro BarrosoPresidente da Comisso EuropeiaUm resistente excepcional, um lutador magnfico. A incarnao da nao sul-africanaFranois HollandePresidente de FranaNo enterraremos nas nossas vidas um homem mais incrvel e marcante do que Nelson Mandela. O verbo intencionalmente no plural. Mandela no da frica do Sul, do mundo. No sculo XX, ningum como ele simbolizou o homem bom.Mandela no foi um poltico, foi um homem de Estado. No foi calculista, foi visionrio. No foi rancoroso, foi magnnimo. No foi mesquinho, foi altrusta. No foi arrogante, foi humilde.H dois mil anos, Ccero, ele prprio um homem bom, identicou as qualidades de um lder: integridade, elegncia, inteligncia poltica, coragem, moderao e generosidade. Hoje desvalorizamos alguns destes atributos. Basta pensarmos como a moderao muitas vezes vista como uma caracterstica dos fracos. Ou elegncia, tida como supercial. J agora, o mestre Ccero destacava ainda mais dois requisitos: saber fazer a paz com honra e acreditar que o compromisso fundamental para conseguir resolver as coisas.Graa Machel disse do marido, com quem casou em 1998, que h uma percepo um pouco romntica de Nelson Mandela, todo o mundo diz que ele foi o melhor. verdade, exageros humanos. um mito, endeusado por todos, nico a ver decretado um dia internacional com o seu nome pelas Naes Unidas.Mas Mandela tem essa fora: emociona como homem, mas tambm emociona como pensador poltico e emociona como homem de aco. E num mesmo homem, isso raro como raro o oxignio fora da Terra.Mandela o homem dos gestos inesquecveis. Dos gestos simblicos que o tempo apagar da memria, como quando, j Presidente, convidou para um ch Betsie Schoombie, viva de Hendrik Verwoerd, primeiro-ministro entre 1958 e 1966 e idelogo do apartheid, ou de quando decidiu manter como segurana pessoal da presidncia os polcias brancos que herdara de Frederik de Klerk.Mas acima de tudo o homem de um gesto estrutural que os livros de Histria vo contar por muitos sculos: dialogou com o inimigo e conseguiu com isso mudar o regime de um pas. Nos anos 1980, o apartheid era o mais injusto e aparentemente insolvel sistema poltico do mundo. Mandela descreveu-o como o maior crime da era moderna a seguir ao Holocausto. Travou a escalada de violncia e evitou a guerra civil, fez a transio na frica do Sul e, ao mesmo tempo, no se perpetuou no poder, mostrando a todos, dentro e fora do pas, a importncia de saber sair no momento certo.Mandela uniu o seu saber inato de que a paz tem de ser feita com honra a um saber que aprendeu na priso: conseguir que o crebro domine o sangue. Nas suas palavras: A emoo dizia-nos: A minoria branca o nosso inimigo, nunca devemos falar com eles. Mas a cabea dizia-nos: Se no falares com eles, o pas vai explodir em chamas. Tivemos de reconciliar esse conito. Falarmos com o inimigo foi o resultado desse domnio da mente sobre a emoo. Mandela no fez a ponte com o inimigo sozinho. O rio tem duas margens. Do outro lado estavam Neil Barnard, chefe dos servios secretos, e o Presidente Botha. Os trs deram o passo histrico que mudou o pas e deixou uma O melhor de todos nsEditoriallio de reconciliao ao mundo. Barnard e Botha souberam ler a realidade e perceber que sem um acordo poltico o pas iria devorar-se a si prprio. Mandela soube dizer que sim ao primeiro convite de dilogo secreto. Barnard soube dar dignidade ao prisioneiro com quem secretamente falava. Mandela soube exigir falar directamente com Botha. O velho crocodilo, smbolo mundial do racismo, soube receber Mandela com respeito e at graciosidade. Mandela falou em Afrikaans no primeiro encontro. O objectivo das nossas vidas, sempre disse Mandela, sermos melhores do que o melhor de ns mesmos. Bill Clinton, o mais africano dos Presidentes americanos e cujos mandatos na Casa Branca coincidiram com os de Mandela no Tuynhuys, resumiu o que era estar com Mandela: Se ele conseguiu fazer tudo isto, enfrentar tudo isto e mesmo assim ter um sorriso na cara e uma cano no corao, quem sou eu para me queixar?Mandela deixa um pas com futuro. Mas tambm um pas criticado por estar a viver um triste declnio, com a economia a perder flego, a corrupo a aumentar, a desigualdade social gritante. Deixa um desao s novas geraes. Transformar a reconciliao em prosperidade. Ningum sabe se vo conseguir. Sabemos apenas que, como hoje citamos Ccero, em 4013 citaremos Nelson Mandela.AFPMandela a caminho do seu julgamento em 1956VIII |ESPECIAL |PBLICO, SEX 6 DEZ 2013