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PATRÍCIA ALMEIDA DE MORAIS ESTA ANTIGA E NOVA MULHER Brasília 2007 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília, como requisito para a obtenção de título de licenciado em Letras, Habilitação Português e Respectivas Literaturas. Orientadora: Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva

Esta antiga e nova mulher - ucb.br · direito, da moral e da religião. Pudemos concluir, assim, que a mulher, enquanto um sujeito de direito é marcada pela ambigüidade entre o

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PATRÍCIA ALMEIDA DE MORAIS

ESTA ANTIGA E NOVA MULHER

Brasília

2007

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Letras da Universidade Católica de Brasília, como requisito para a obtenção de título de licenciado em Letras, Habilitação Português e Respectivas Literaturas. Orientadora: Profa. Dra. Mariza Vieira da Silva

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

Dra. Mariza Vieira da Silva - Orientadora

______________________________________________

MSc. Fabíola Gomide Baquero

______________________________________________

Dr. Maurício Lemos Izolan

Dedico este trabalho aos meus pais, Sr. Francelino e

Sra. Geralda, que sempre estiveram ao meu lado em

todos os momentos.

4

Agradeço a Deus por ter me presenteado com saúde,

imprescindível para a realização deste Trabalho de

Conclusão de Curso; ao incentivo, paciência e

compreensão da minha família; a todos os

professores com os quais estudei – em especial a

minha primeira e inesquecível professora, Luzia, que

com muito cuidado e carinho me apresentou o

primeiro degrau desta escalada – e a Dra. Mariza

Vieira da Silva que se dedicou a produção deste

trabalho e me possibilitou realizar um grande sonho.

5

Para tal minha mãe me aqueceu e me chamava para

casa antes do breu e induzia a noite da infância a

ficar quieta e me dava fortes cereais na minha dieta

e às oito em ponto me fazia deitar e prendia meus

cabelos, sem me permitir engordar e vigiava meu

sentar, minha postura para eu me tornar uma

mulher madura e ouvir um assobio e perder a razão

e fazer caquinhos do meu coração.

Dorothy Parker

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Resumo

Este Trabalho de Conclusão de Curso teve como objetivo principal compreender como

vem se dando os processos de individualização sujeito-mulher como um sujeito de direito em

na sociedade brasileira. Tomamos como objeto de estudo o discurso sobre divórcio, enquanto

estrutura e acontecimento, o que nos levou às explicitar e analisar as condições de produção

da Lei que regulamentou o mesmo, e a partir daí, a construir o nosso corpus em torno do

discurso da mídia e analisá-lo, tomando como referência teórica outros conceitos da Análise

de Discurso e, assim, interligando o sujeito com a memória e com o inconsciente. Nesse

sentido, estruturamos o trabalho de forma que pudéssemos ir tendo uma compreensão de

como a mulher é significada e somente, então, percebemos como ela se significa. Os

resultados obtidos nos mostraram que a mulher buscou muito se igualar ao homem em termos

de direitos sociais, mas isso ainda não se concretizou, até porque essa não era talvez a maior

questão a ser superada. Porém, importantes avanços nesse processo foram dados,

principalmente em relação à independência econômica, ao seu modo de vida. Concluímos,

contudo, que não é na igualdade com o homem que esse sujeito – mulher de direito – deve

buscar sua realização, mas justamente na diferença.

Palavras-chave: Análise do Discurso; Sujeito mulher; Divórcio.

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Abstract

This final project had as its main goal comprehend how is going happening the

individualization process present on the woman as right subject in her relations to the subject

positions established historically. We having as study object the divorce, while structure and

happening, it sent us to production conditions from law that regulated its, and after this, others

theoretical reference according to the Discourse Analysis theory that they lead us interact the

memory and unconscious with subject. In this context, this project is structured in a way that

we could understand how the woman is signified and just, after, we comprehend how does

she signify herself. The founded results leaded to perceive the woman battle a long time to be

equal to the man but this has not realized yet, although were given important progress in this

process, principally in reference the life behavior, in the economic independence she gave a

big jump. However, we conclude it was not in the equality with men that this subject – right

woman – she must realize her, but it is in the difference.

Key-words: 1. Discourse Analysis; 2. Woman subject; 3. Divorce.

Sumário

Resumo ______________________________________________________________ 6

Abstract ______________________________________________________________ 7

Introdução ____________________________________________________________ 9

Capítulo 1. Mulher em foco _________________________________________ 11

Capítulo 2. Sobre a Análise de Discurso ___________________________________ 22

Capítulo 3. A opacidade do divórcio ________________________________ 31

Conclusão ___________________________________________________________ 53

Referências Bibliográficas ______________________________________________ 56

Referências Eletrônicas ________________________________________________ 59

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Introdução

O processo de produção de conhecimento referente a este Trabalho de Conclusão de

Curso – TCC, teve início, podemos dizer no semestre anterior, quando cursamos a disciplina

de Análise de Discurso, em que tivemos oportunidade de conhecer um outro modo de leitura e

interpretação de texto que provocou bastante curiosidade e interesse em desenvolver outros

trabalhos que permitissem um aprofundamento neste campo de conhecimento. Naquela época,

fizemos uma análise discursiva de um folheto sobre a paz no trânsito produzido por uma ONG

denominada Rodas da Paz.

Em 2007, começamos também a participar de um projeto de pesquisa denominado

“Educação e Ciência: representações e práticas”, que tem por objetivo “Produzir

conhecimento sobre o discurso da divulgação científica no entrecruzamento do discurso da

ciência e do discurso pedagógico, compreendidos no âmbito mais amplo da história das

ciências e da educação no Brasil como um modo de pensar o presente e de projetar o futuro,

tomando uma posição histórica para tratar o conhecimento científico”, e como referencial

teórico e metodológico a Análise de Discurso. Após algumas reuniões iniciais, decidimos que

faríamos o nosso TCC, relacionando os interesses do projeto e os nossos.

Esses interesses concentraram-se no discurso jurídico, observando como o

conhecimento sobre a mulher circula na sociedade brasileira. Começamos, então, um processo

de leitura sobre essa discursividade através da legislação sobre a mulher no Brasil e no

mundo, mais especificamente, sobre os direitos adquiridos pela mulher ao longo do tempo.

Algo, ainda, muito abrangente.

Em Análise de Discurso, o dispositivo analítico vai se construindo no processo de

desenvolvimento da pesquisa: um processo que vai da teoria para a prática de análise dos

primeiros materiais analisados, retornando à teoria que nos leva a seleção, às vezes, de novos

dados, face a uma questão norteadora. No caso, o que nos perguntávamos era: Como vem se

dando os processos de individualização da mulher como sujeito de direito na sociedade

brasileira?

O “Caderno Mais!” do jornal Folha de S. Paulo, de 24 de junho de 2007, com foco nos

30 anos da Lei que instituiu o divórcio no Brasil, nos deu um eixo norteador para o trabalho e

permitiu que construíssemos o nosso corpus em torno dos artigos que ali eram apresentados,

relacionando-os a outras discursividades. Pudemos assim, delinear nosso objetivo principal,

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qual seja, o de compreender como essa posição da mulher – um sujeito de direito – vinha

sendo produzida pela mídia.

Desta forma, estruturamos nosso TCC em três capítulos. No primeiro Capítulo,

fizemos um retrospecto histórico sobre a mulher na sociedade, a partir do século XIX,

envolvendo questões de educação, direitos e trabalho, e já utilizando o referencial teórico da

AD, o que nos permitiu ir compreendendo como foi sendo construída essa posição de sujeito-

mulher: a de um sujeito jurídico.

Em seguida, explicitamos o nosso referencial teórico e metodológico, a Análise de

Discurso, trabalhando principalmente as noções que serviram de categorias de descrição e

análise: aquelas relacionadas ao sujeito.

No Capítulo 3, procedemos à descrição e análise dos diferentes artigos do “Caderno

Mais!”, ou seja, do discurso da mídia, em relação com outras discursividades. Os resultados

obtidos evidenciaram que a mulher não conquistou plenamente a sua liberdade e ao se

expressar, discursivamente mostra, de modo sutil, ter conquistado o direito ao divórcio, mas

não a sua liberdade. Observamos uma posição-sujeito dividida entre/pelos discursos de

direito, da moral e da religião.

Pudemos concluir, assim, que a mulher, enquanto um sujeito de direito é marcada pela

ambigüidade entre o passado e o presente, ou seja, entre as lutas e as conquistas: um sujeito

que tem de conviver com os velhos estereótipos sociais e os novos (aqueles que passaram a

existir a partir do momento em que conseguiu conquistar direitos legalmente reconhecidos).

Os processos de individualização do sujeito-mulher parecem se dar nos limites, nas fronteiras

entre a semelhança e a diferença em relação ao homem.

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CAPÍTULO 1

Mulher em foco

Para atingir o objetivo deste trabalho, decidimos fazer uma viagem histórica, mais

precisamente ao século XIX, pelo Brasil, pois as questões referidas à mulher do século XX

serão mais bem contempladas, quando aludirmos a alguns eventos relevantes ocorridos

naquele século. Tendo em vista que as formações imaginárias1, presentes em todo e qualquer

discurso, implicam diretamente questões relativas ao sujeito, à história e ao inconsciente,

veremos parte dessa história para então, adentrarmos o eixo que atravessa o discurso atual da

mídia sobre a mulher e observamos como aí se constitui a posição de sujeito-mulher-de-

direito e seus efeitos.

As lutas pela emancipação feminina no século XIX, contribuíram para o início do

surgimento de uma legislação referente à mulher. Os resultados não ocorreram de uma vez,

foram muitos esforços para que, gradativamente, se mudasse o rumo da instância jurídica,

política e social referentes à mulher.

Por muito tempo a mulher foi impedida de participar ativamente da esfera pública. Ela

não esteve ausente na constituição da história brasileira, entretanto o seu papel tradicional de

esposa e mãe desfigurou a sua representatividade: suas atividades e percepções eram

condicionadas ao regramento social. O seu modo de criação – processos de subjetivação – era

marcado pela família, pela domesticação. A educação recebida vinculava-se às boas maneiras

de ser dona de casa, que basicamente se restringiam a ser boa mãe e ser boa esposa, algo

bastante ambíguo. Boa para quem? Boa para quê? Ao longo de sua formação, a jovem mulher

desenvolvia os chamados “dotes femininos” – aprender a cozinhar, bordar, costurar e tricotar.

Condicionada por essa formação, a mulher idealizava um matrimônio feliz, uma vida no lar,

como o possível. Fora disso restava-lhe quase sempre os lugares de beata e freira.

Quanto a seus papéis primordiais, a mulher soube exercê-los muito bem, conquanto

esses afazeres nunca adquiriram na sociedade grande importância. O valor do trabalho

artesanal, de educar uma criança, ainda hoje não são devidamente valorizados, visto que em

ser comparados a outros ofícios remunerados, são inferiorizados.

1 “As condições de produção implicam o que é material (a língua sujeita a equívoc e a historicidade), o que é institucional ( a formação social em sua ordem) e o mecanismo imaginário. Esse mecanismo produz imagens do sujeitos assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica”. (ORLANDI, 1999, p.40)

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Entretanto, não se pode considerar que metade da população não tenha contribuído

para o desenvolvimento de um país; o que não se fez foi justiça às mulheres que viveram em

décadas passadas. Segundo Hahner (1981) há poucos estudos sobre a mulher em épocas

anteriores e nos poucos que há, ela é comparada a grupos considerados minoritários, como os

escravos, os índios, uma verdadeira forma de discriminar metade da população.

Consta em seu livro, “A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850 – 1937”

(1981), que no início do século XIX se encontrava muitas mulheres de profissão costureira,

geralmente as casadas, outras em pequenos armazéns como atendentes, geralmente as mais

pobres e solteiras, algumas professoras – ninguém melhor para lidar com crianças. E algumas

da elite até administravam os negócios da família e exerciam influência sobre os homens que

ocupavam cargos de importância na esfera pública. E havia muitas costureiras porque um

homem jamais poderia tirar uma medida feminina, assim como a recíproca era verdadeira, ou

seja, uma mulher nunca poderia costurar para um homem. Contudo, algumas mulheres

desempenhavam uma profissão, isso é um fato.

As inovações culturais e tecnológicas afetaram tanto os homens quanto as mulheres. A

construção da estrada de ferro, a chegada do barco a vapor e do telégrafo estimularam o

crescimento das cidades. O sudeste do Brasil se desenvolveu com mais rapidez, com números

crescentes de trabalhadores assalariados, com o aumento da imigração européia, o

fortalecimento das lavouras de café. O Rio de Janeiro e São Paulo despontaram no cenário

nacional se beneficiando da produção cafeeira com a exportação do produto. O Rio de Janeiro

era a sede do poder econômico, político, intelectual e cultural. Este cenário serviu como

centro das primeiras manifestações feministas entre algumas mulheres cultas das classes

médias e superiores.

Para romper com as tradições sociais que desvalorizavam e impediam sua autonomia

foi que a mulher se organizou em movimentos emancipatórios, por meio do qual lutava por

idéias revolucionárias que demonstravam a sua insatisfação quanto ao conservadorismo em

relação à mulher.

O feminismo abrange todos os aspectos da emancipação das mulheres e inclui qualquer luta projetada para elevar seu status social, político ou econômico; diz respeito à maneira de se perceber da mulher e também a sua posição na sociedade. (HAHNER, 1981, p.30)

Vale destacar Nísia Floresta Brasileira Augusta, talvez a mais visível intelectual

ativista do período e uma das primeiras do País. Ainda bem jovem – como era o costume,

Nísia foi forçada a se casar; entretanto, logo se separou e foi morar em Olinda. Aos 24 anos

com duas crianças e a mãe idosa para sustentar, cursou o magistério. Fundou uma escola no

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Rio de Janeiro, traduziu a obra “Uma reivindicação pelos direitos da mulher” da feminista

inglesa Mary Wollstonecraft em 1832. Nísia batalhou por mais educação, por uma posição

social mais alta para as mulheres, bem como para o fim da escravidão.

Nessa época, a educação era prerrogativa da classe alta a que só os abastados

conseguiam ter acesso. De acordo com o censo de 1872:

O Brasil tinha uma população total de 10.112.061 habitantes. Mas apenas 1.012.097 homens livres, 550.981 mulheres livres, 958 escravos e 445 escravas sabiam ler e escrever.2 Em 1873, o império possuía apenas 5077 escolas primárias, públicas e particulares. Essas escolas tinham um total de 114.014 alunos e 46.246 alunas.3 Nas famílias mais ricas, as crianças muitas vezes não eram educadas nas escolas (freqüentemente mal dirigidas), senão em casa. (HAHNER, 1981, p.32)

Pelos números do censo relativo aos números dos matriculados em estabelecimento de

educação, observa-se a disparidade de ensino entre meninos e meninas. Para as meninas, os

livros recomendados para a leitura eram os de orações; também incorporaram em seu

aprendizado a arte de fazer bolos e doces, costurar e bordar, a tocar piano, a fim de que se

criasse um ambiente agradável nos encontros sociais. Essa educação era rápida, até mesmo

pelo currículo proposto, e em pouco tempo a menina rica estava “educada” e pronta para o seu

próximo passo: o casamento.

A primeira norma referente à educação de mulheres foi em 1827. Essa norma admitia

meninas somente nos estabelecimentos de ensino elementar, excluída a instituição de ensino

avançado. Mesmo depois dela, poucas escolas foram criadas. Não obstante, a experiência e o

salário das professoras, que ensinavam as meninas, eram menores que o dos professores, que

educavam os meninos: condições que afetavam o aprendizado. Além disso, as escolas eram

pouco freqüentadas. Dessa minoria crescente de mulheres instruídas surgiram as primeiras

batalhadoras pela emancipação feminina.

No final do século XIX essas poucas escolas profissionais urbanas disponíveis eram geralmente co-educacionais, e não só preparavam moças para o magistério como também lhes forneciam uma das poucas oportunidades disponíveis para continuarem sua educação. (HAHNER, 1981, p.34)

2 BRAZIL, Diretoria Geral de Estatística. Recenseamento da população do Império do Brazil a que se procedeu no dia 1º de agosto de 1872. 21 v. In 22. Rio de Janeiro, Typ. Leuzinger, 1873-76. XXI (Quadros Gerais), 1-2; 61(Cf. Hahner , 1981). 3 BARBOSA, Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. V. X, t. I, de Obras completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde. 1947, p.9-11. (Cf. Hahner (1981)

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Nesse século, aconteceu o nascimento de uma imprensa feminina: feita por mulher

para um público composto por mulheres. O primeiro jornal de que se tem notícia é de 1852,

lançado no Rio de Janeiro, dia 01 de janeiro – “O Jornal das Senhoras”, editado pela argentina

Joana Paula Manso de Noronha, a qual tendo se separado do marido, veio morar no Rio, onde

lecionou. No editorial de lançamento divulgou o seu intento de colaborar para a “emancipação

moral da mulher e para o melhoramento social”. O texto trazia a inovação de uma mulher

editar um jornal no Brasil, as dificuldades a serem enfrentadas; expressava a igualdade de

inteligência entre homem e mulher e pautava-se pelo século das luzes e pelo progresso

desencadeado pela expansão da cultura e do conhecimento, no qual o Brasil deveria se inserir.

As feministas também consideraram a imprensa um meio importante de difusão do saber, e insistiram em que as mulheres lessem jornais para conhecer seus direitos e obrigações. (HAHNER, 1981, p.51)

O jornal se propunha também a publicar textos anônimos de mulheres – que chamava

de colaboradoras – incentivando-as, dizendo: “não temaes dar expansão a vosso pensamento”.

Um esforço nobre em favor da inteligência feminina. A pesquisadora Hahner (1981) afirma

que durante os quatro anos de edição do jornal, poucas mulheres tiveram a mesma coragem da

editora Joana Paula em assinar seus artigos. Diferentemente, de alguns colaboradores homens:

esses assinavam o nome completo.

Com o decurso do tempo, novos jornais foram surgindo. O segundo, “O Belo Sexo”,

em 1862, no Rio, revela mudanças nos processos de individualização do sujeito4: as redatoras

já assinavam seus artigos e também faziam reuniões para debaterem novas idéias e diferentes

pontos de vista para as publicações.

Esses jornais deixaram de centrar os ataques aos homens e passaram também a apontar

a mulher como culpada, pela sua inércia, como tentativa de provocar mudança. Suas matérias

tinham como objetivo ampliar os horizontes femininos, divulgando ciência, notícias, moda,

saúde, peças literárias e publicações estrangeiras.

O aumento do número de mulheres alfabetizadas nas principais cidades possibilitou um público maior para este e outros jornais feministas, mas um público ainda restrito às mulheres de classe média e alta. (HAHNER, 1981, p.61 – grifo nosso)

O uso desses veículos de informação deu voz a mulher, que até então, na sociedade,

não podia se manifestar. Funcionou como uma tribuna em que diversas mulheres puderam se

pronunciar e protestar contra a visão do ser fragilizado que as enjaulava, contra o simbolismo

4 O indivíduo, uma vez interpelado pela ideologia em sujeito, irá adquirir a sua forma concreta, individualizada, nas relações com o Estado e as suas instituições. No caso desta pesquisa, na relação com a Mídia.

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da boneca e suas representações, contra ser o “amor” (o casamento) a única esperança para

sua existência – esse “amor” de arranjo e conveniência que jamais aconteceria entre senhor e

escrava.

O Jornal das Senhoras tentou persuadir os homens brasileiros dos meados do século XIX a elevar suas mulheres àquela posição que os escritores mais tarde afirmaram que elas de fato ocupavam. (HAHNER, 1981, p.36)

Esses jornais usavam o discurso religioso a seu favor, o mesmo em que se pautavam

os opositores para não aceitar a liberação feminina, conforme as citações que se seguem

extraídas do livro de Hahner, 1981.

Mas Deus deu à mulher uma alma e a fez igual ao homem e sua companheira. (p.70)

Quereis viver uma vida de prazer e de encantos? Educae a mulher e vereis a vossa casa transformada n’um verdadeiro éden. (p.101)

A mulher cheia de instrução e da religiosidade que lhe é sempre natural exerceria melhor suas sagradas funções de esposa e de mãe. (p.102)

Se comparada à autonomia e aos padrões de hoje, a linguagem desses jornais pode

parecer não radical ou não ousada. No entanto, para a época, foi um grande avanço, que

ajudou a desencadear um processo de mudanças, possibilitando as conquistas obtidas pela

mulher atual.

Nesse tempo, as mulheres tinham conseguido algumas vitórias. O código comercial de

1850 permitia as solteiras administrarem sua propriedade, as casadas a participarem do

comércio com a permissão do marido e as que possuíam algum negócio, podiam casar sem

que isso interferisse em seu comércio e obrigações comerciais.

Todavia, havia muito que conquistar, como no caso da educação, por exemplo, em que

o processo de acesso à instrução foi longo e demorado. Ainda em 1870, alguns jornais, dentre

eles “O Domingo”, protestavam contra a posição das instituições de ensino superior de

impedirem o ingresso de mulheres. Essa causa encontrou apoio em um grupo de estudantes da

classe média que fora estudar engenharia, “o curso de status que objetivava o progresso do

país”, nos Estados Unidos. Esse grupo mencionava o progresso avançado de lá, no qual a

mulher já alcançara alguns direitos. O apoio desse grupo importava muito não somente pelo

fato de ser formado por homens, mas principalmente por estar sintonizado com as novidades

estrangeiras de bastante influência em um país que há pouco deixara de ser Colônia. No

século XXI, as influências estrangeiras ainda são muito fortes (ainda hoje: uma memória

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discursiva funcionando). Os jornais feministas pressionavam com tom irônico o governo e a

sociedade.

O nosso império do Brasil faz timbre em ser submisso imitador da Europa e dos Estados Unidos em todos os progressos, porque não legisla a fim de que as mulheres em nossa terra possão ser graduadas nas sciencias mais indispensáveis aos uzos da vida? Será, que os governos se arreceie de alguma revolução resultante de sciencia feminina? (HAHNER, 1981, p.68)

Na escola secundária pública mais conhecida do país – Colégio Dom Pedro II no Rio

de Janeiro – as meninas tinham de ter uma mulher como acompanhante, para vigiá-las em um

ambiente masculino. Era dispendioso ter que contratar um serviço assim, tornando a educação

acessível a poucas mulheres.

Apesar de tudo, em 1874, Maria Augusta Generosa Estrella, com quatorze anos de

idade deixou o Rio de Janeiro para estudar medicina nos Estados Unidos, lugar onde as causas

da mulher já conseguira avanços, para se tornar a primeira mulher brasileira a obter colação

de grau em 1881. Anos mais tardes, apesar dos obstáculos encontrados para se estudar no

Brasil, em 1887, Rita Lobato Velho Lopes conseguiu se formar em medicina. Foi um

confronto muito grande, tido como petulância: uma mulher querer exercer uma profissão de

tanto prestígio, “já pensou ter ela que atender a uma chamada a domicílio – uma situação

imprópria para uma mulher honesta” (HAHNER, 1981, p.75). Difundiu-se, então, que

enfermeira até podia, mas médica, não. Por isso, ainda é comum o exercício da área de

enfermagem estar ligado ao feminino, e não ao masculino.

As mulheres da classe superior deveriam permanecer em suas próprias casas, supervisionando o trabalho das mulheres mais pobres, e não tentar entrar nas profissões seguidas pelos homens de sua própria classe. (HAHNER, 1981, p.71)

Na década de 1880, o jornal “O Sexo Feminino” protestou contra as dificuldades

encontradas pelas primeiras mulheres formadas em Direito de exercerem a profissão. Hahner

(1981) afirma que as “as mulheres que desempenhavam tarefas filantrópicas fora do lar eram

mais aceitas do que as que invadiam o domínio masculino dos assuntos públicos”. Foi neste

momento, que algumas feministas exigiram o direito ao voto, fato que “horrorizou muitos

brasileiros, homens e mulheres”.

O sufrágio não estava dentro do mundo feminino de sentimentos e do lar, mas marcou uma brecha precisa na esfera masculina ativa. Muitos temiam que, se o mais puro e mais nobre dos sexos descesse do pedestal e escapasse do isolamento do lar, ele poderia ser maculado ou corrompido e a sociedade arruinaria. Não apenas a idéia incômoda de mulheres eleitoras mas também o espectro de mulheres políticas excitava a imaginação masculina. (HAHNER, 1981, p.78)

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Essa reivindicação marcou uma inovação no movimento feminista, pois as primeiras

feministas – da época de Nísia Floresta – se opunham a participação da mulher no governo e

no exército. Podemos compreender esse processo de mudança, a partir do momento em que a

mulher rebela-se a certas normas, passando a viver novas experiências, desenvolvendo seu

senso crítico para outras questões. É depois de ter acesso ao nível superior, se envolver nas

causas abolicionistas, criar vários jornais feministas e adentrar no mercado de trabalho, que a

mulher começa a adquirir uma postura emancipada. Entretanto, devemos relatar que muitas

mulheres não concordavam com a “ousadia” feminina, o que evidencia que as relações não

são estanques e nem devem ser tratadas de forma simplista ou maniqueísta: mulheres

dominadas X homens dominadores. Nesse sentido, é importante o deslocamento que se faz de

indivíduo empírico para posição de sujeito, pois a mulher pode falar do lugar de significação

masculina.

Após a Proclamação da República, 15 de novembro de 1889, as feministas tinham

grandes expectativas em relação à conquista dos seus direitos, principalmente quanto o de

poder ocupar qualquer cargo e votar. O jornal, “O Sexo Feminino”, mudou o seu título para:

“O Quinze de Novembro do Sexo Feminino”, representando os anseios do público feminino.

Essa diferença pôde ser vista no discurso do jornal, que passou de “educar e libertar a mulher

de modo que ela possa servir sua família ou mesmo a sociedade” para “a auto-realização é

importante”.

No entanto, os debates envolvendo o direito ao voto foram mostrando que os

paradigmas são difíceis de serem rompidos e que a luta ainda estava longe do fim. Muitos

fatos interessantes marcaram esse processo, mas por motivo de tempo não podemos nos ater a

eles.

O Artigo 171 da Constituição da República do Brasil de 1889 apresentava o seguinte

texto: “...são eleitores todos os cidadãos maiores de 21 anos...” Esse texto dá direito ao voto a

todos os cidadãos com mais de vinte e um anos. Mas quem eram os cidadãos? Os legisladores

interpretaram “cidadão” como aquele pertencente ao sexo masculino, aliás, achavam ser a

política indecorosa para a mulher.

Avançando um pouco, em 1922, em plena efervescência cultural, quando os artistas se

“rebelaram” na Semana de Arte Moderna, Bertha Lutz aproveitando os movimentos de

agitação, os movimentos históricos da mesma e a criação do Partido Comunista Brasileiro,

fundou a Federação Brasileira para o Progresso Feminino que até então, atendia pelo nome de

Liga pela Emancipação Feminina e reivindicava um tratamento não opressor para com a

mulher em relação ao homem. Com a troca do nome, o movimento tomou abertamente

18

conotações políticas e os seus protestos passaram a ser, entre outros, pelo direito ao voto, pela

possibilidade do trabalho da mulher sem a condição de que o marido lhe desse autorização,

conseguindo apoio de vários senadores e jornalistas da época. A partir desse momento

começa a se tornar mais visível a crescente participação da mulher na sociedade.

Os objetivos da Federação eram:

• Promover a educação da mulher e elevar o nível de instrução feminina. • Proteger as mães e a infância. • Obter garantias legislativas e práticas para o trabalho feminino. • Auxiliar as boas iniciativas da mulher e orientá-la na escolha de uma profissão. • Estimular o espírito de sociabilidade e de cooperação entre as mulheres e interessá-las pelas questões sociais e de alcance público. • Assegurar à mulher os direitos políticos que a nossa Constituição lhe confere e prepará-la para o exercício inteligente desses direitos. • Estreitar os laços de amizade com os demais países americanos, a fim de garantir a manutenção perpétua da Paz e da Justiça no Hemisfério Ocidental. (HAHNER, 1981, p.107)

Hahner ainda nos fala dessas condições históricas que sustentaram o discurso sobre a

mulher nessa primeira metade do século XX, produzindo seus efeitos em termos de sentidos e

de subjetivação da mulher.

Em várias entrevistas para jornais, Bertha Lutz expandia-se sobre os objetivos do movimento. Estes iam desde interesses altamente generalizados, como a paz mundial, até assuntos específicos, como o pagamento igual para o trabalho igual e oportunidades educacionais iguais. Mas, para realizar esses objetivos, afirmava, as mulheres precisavam ter acesso ao processo político como cidadãs plenas e iguais; precisavam ter participação política direta e legítima. Bertha Lutz e outras sufragistas viam o voto “como meio de ação”, como um instrumento para superar as barreiras em direção a uma sociedade liberal mais completa. Serviria como o instrumento necessário para o progresso e não meramente como um fim em si mesmo. (HAHNER, 1981, p.103)

O direito ao voto foi conquistado pela mulher brasileira somente em 1932 e serviu

para elevar o nível de consciência da mulher em um mundo em transformação, mas não teve

um impacto tão profundo como os movimentos da época pensavam.

Na década de 1970, ocorreu a chamada “segunda onda” do feminismo brasileiro,

influenciado pelo movimento hippie em busca da liberação sexual, principalmente nesse

aspecto. Não podemos deixar de mencionar a grande mola propulsora dessa liberação: a

invenção e comercialização da pílula anticoncepcional. Este período de 1970 a 1990

compreende importantes mudanças para a mulher em sentido bem amplo, essas

transformações possibilitaram uma sucessão de conquistas dos direitos renegados pela

ideologia dominante, resultante de uma estrutura escravocrata e de propriedade de terras que

marcou a formação da sociedade brasileira.

19

Em 1975, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou o respectivo ano como

“O Ano Internacional da Mulher” desencadeando debates a respeito da condição/situação da

mulher em diversos países, o que propiciou o fortalecimento do feminismo pelo mundo. Neste

mesmo ano foi fundado, em São Paulo, o Movimento Feminino pela Anistia e várias reuniões

foram promovidas no Rio de Janeiro e em São Paulo pela ONU. Como efeito desses

encontros foi fundado o Centro Mulher Brasileira, uma organização que lutava pelas causas

feministas. O desempenho foi tão bom, que surgiram os jornais feministas: “Brasil-Mulher”,

localizado em Londrina e São Paulo e o “Nós Mulheres”, em São Paulo. A questão feminina

passou a ser abordada pela mídia (jornais, revistas e programas de televisão) e, importante

ressaltar, com grande audiência5.

Os movimentos feministas falavam a favor de um novo modelo de comportamento

cultural, em prol da quebra do estereótipo social imposto à mulher. Discussões sobre o

relacionamento entre homem e mulher, sobre a violência contra a mulher, questões como a

igualdade entre os gêneros, o trabalho, a discriminação dentro do lar, o aborto passaram a

circular nas camadas médias da população.

Em 1975, havia um Projeto de nº 634 que tramitava no Congresso para alteração do

Código Civil de 1916. No entanto, no que se referia ao Direito de Família, na redação não

constava nada de novo: continuava a tratar o marido como chefe da família, a imposição do

sobrenome do marido à esposa, o pátrio poder permanecia com o pai.

No entanto, com as transformações sucedidas na sociedade e as necessidades daí

decorrentes, a mulher galgou novas posições, que se refletiram também na necessidade de leis

para dar conta das novas situações. Como a Lei do Divórcio, por exemplo, que será objeto de

nossa análise em um dos capítulos deste TCC.

Simone de Beauvoir começa o capítulo “A mulher Independente”, do seu famoso livro

“O Segundo Sexo”, dizendo que somente a partir do momento em que ela deixa de ser

dependente e seus afazeres extrapolam o lar, é que a mulher passa a adquirir o

reconhecimento por interferir diretamente no desenvolvimento do país. Neste momento, a

significância de igualdade ao homem é nutrida, na mesma proporção em que diminui o

sentimento de inferioridade, de submissão, e aumenta a sensação de liberdade, pela

capacidade de bastar a si mesma, de poder saciar suas necessidades e desejos. No mundo

capitalista, onde o poder está diretamente vinculado ao dinheiro, é a partir do trabalho, de ser

5 Pretendíamos incluir em nosso corpus a revista “Cláudia” que teve um papel fundamental na formação da mulher brasileira da segunda metade do século XX. O tempo, contudo, fez com que deixássemos a sua análise para pesquisas futuras.

20

capaz de ganhar o seu sustento que a mulher tem poder sobre si mesma. Os processos de

individualização se dão, portanto, em relação às condições materiais de existência.

De forma a dar uma maior complexidade a essa história da mulher na sociedade

brasileira e de compreender a relação entre os processos de subjetivação e as condições

materiais de existência, gostaríamos de trazer para reflexão matérias do jornal Correio

Braziliense, de 29 de julho de 2007. O jornal Correio Braziliense traz uma enquete intitulada

“Crise nas Escolas”, composta de quatro matérias, que nos chamou a atenção por se tratarem

da mulher.

Na história de emancipação da mulher brasileira que acabamos de traçar, mesmo que

brevemente, referimo-nos sempre à mulher de classes média e alta, mulheres escolarizadas.

No entanto, em um país desigual como o Brasil, essa história não poderia também deixar de

ser desigual. Daí trazermos, como contraponto, essas matérias.

A primeira traz a foto de Juliete Bispo com a seguinte frase, em letras vermelhas:

“Primeiro, cuidar da casa”. Conta que Juliete tem 18 anos e apenas a sexta série. Juliete diz

que se casou com 15 anos, afirma que “a idéia de largar os estudos veio pela necessidade de

manter tudo certinho para quando ele chegasse em casa. Cuidar de uma casa não é coisa

simples”.

A outra matéria do jornal, diz que Rita uma adolescente de 16 anos não conseguiu

concluir a oitava série, porque quando estava nas vésperas do oitavo mês de gravidez, sentia-

se cansada e não conseguia ir a escola devido à grande distância entre a sua casa, a parada de

ônibus e ao peso de sua barriga.

A terceira reportagem traz a foto de Fátima com o seguinte dizer, também em caixa

alta e vermelho, “Estudando Escondida”. Narra a história de uma mulher que morava na roça,

quando criança, e ao invés de estudar como seus irmãos tinha que ficar em casa para ajudar na

arrumação do lar. Hoje, Fátima tem 22 anos e quando o seu marido dorme – ele a proibiu de

estudar - ela vai para o computador, pois se matriculou em um curso a distância.

Por fim, a última matéria é uma entrevista com a diretora do Centro Feminista de

Estudos e Assessoria, Natália Mori, e tem por título “FEMINILIZAÇÃO DA POBREZA

NÃO OCORRE POR ACASO”, na qual Natália afirma que a mulher estuda cerca de um ano

a mais que o homem, no entanto, recebe menos ao exercer o mesmo trabalho, e que a gravidez

e a maternidade são enfrentadas por ela sozinha – o que a impede de prosseguir em seus

planos, e que os paradigmas patriarcais/machistas ainda estão presente na vida dela. É o caso

de Juliete, que teve que deixar os estudos para que a casa estivesse arrumada quando o marido

21

chegasse do emprego, e o de Fátima, que precisa estudar escondida. De acordo com Natália,

se o governo “apoiasse” com creches já melhorava muito.

Ora, ao acompanharmos um pouco da história da mulher no Brasil, não nos é difícil

compreender as barreiras que ela encontra para vencer: são desafios pessoais e sociais a se

enfrentar. Os sentidos presentes em sua memória ainda são muito fortes e retornam, mesmo

que deslocados, constantemente; e a mulher sofre uma repressão, que na maior parte das

vezes se apresenta de forma mascarada, se compararmos ao que já foi um dia. No entanto,

sentidos estabilizados se misturam aos “novos”, surgido nos movimentos de emancipação, e a

mulher se percebe profundamente dividida entre o tradicional e o inovador. Ela conquistou e

muito, porém, ainda falta bastante. Seja pela omissão que muitas fazem em relação a si

mesmas, seja pela lacuna aberta nas questões políticas, seja pela cicatriz social que ainda

insiste em doer, a tão sonhada igualdade de gênero ainda não chegou. A luta ainda não

acabou.

22

Capítulo 2

Sobre a Análise do Discurso

A Análise de Discurso (AD), referencial teórico e metodológico deste TCC, foi criada

por Michel Pêcheux, na França, na década de 60, quando o Estruturalismo se tornara uma

ciência piloto para vários campos disciplinares. Surgiu, pois, em um contexto histórico e

intelectual de progresso da Lingüística – “ciência positiva que descreve e explica a linguagem

verbal humana”. (ORLANDI, 2005, p.12), mas se formou não como um prolongamento da

Lingüística, e, sim, como uma vertente crítica para refletir sobre noções e procedimentos de

análise sobre a linguagem. Ou seja, a AD, visava abrir um leque no interior da Lingüística

com questões que abordassem a opacidade semântica, a não transparência da linguagem,

trabalhando a relação Lingüística e História, o conhecimento sobre a linguagem e o

conhecimento sobre as formações sociais.

Seu interesse desde o início era propor uma forma de leitura e interpretação de texto

que não perguntasse o que o texto quer dizer, mas “como” o texto diz tal coisa. Ela nasce para

fazer oposição a Análise de Conteúdo, que pressupõe ser a linguagem transparente,

instrumento de comunicação ou expressão do pensamento, logo passível de ser controlado

pelo sujeito falante, um sujeito que sabe o que diz e que acha ser a fonte e a origem do que

diz. Para a AD, há uma opacidade no que dizemos e ouvimos a ser atravessada com noções

teóricas. Uma língua já está estruturada de uma maneira determinada e já significa quando a

criança começa a falar/ouvir. Logo, para se tornar falante, o indivíduo deve se submeter à

linguagem, à língua. Para a AD, a língua, os sentidos e o sujeito se formam, se constituem na

história.

Quando nascemos os discursos já estão em processo e nós é que entramos nesse processo. Eles não se originam em nós. Isso não significa que não haja singularidade na maneira como a língua e a história nos afetam. Mas não somos o início delas. Elas se realizam em nós em sua materialidade. Essa é uma determinação necessária para que haja sentidos e sujeitos. (ORLANDI, 1999, p.34)

Não dá para fazer uma análise discursiva sem trazer para a reflexão a história, não

como contexto, mas como fazendo parte do objeto de estudo. Se nosso objeto de estudo é o

discurso sobre a mulher como sujeito de direito, que circula na mídia, significa pensar que os

sentidos que aí se constituem não nascem no texto que estaremos analisando, mas têm relação

com outros textos já escritos sobre o tema - a intertextualidade – e com outros discursos – a

23

interdiscursividade. Partimos, pois, do concreto, do material lingüístico, do texto – como

unidade de análise -, para chegarmos no discurso, que Pêcheux (1990), em sua primeira

proposta, definiu como “efeito de sentidos entre locutores”. É bom lembrar sempre dessa

palavra “efeito”, pois significa que o sentido não está em um lugar fixo.

A AD busca, então, compreender os processos discursivos, sendo a língua, em sua

estrutura e funcionamento (e acontecimento), a base material para se chegar nesses processos.

Ou seja, a língua é “a própria condição de possibilidade do discurso. A AD visa, através de

uma análise não subjetiva, explicar o funcionamento discursivo” (LAGAZZI, 1988, p.13).

Como a língua já existe antes do nascimento de cada indivíduo, ele não a domina

completamente. Assim, quando fala/escreve, diz mais coisas do que pensa estar dizendo, e

deixa pistas, vestígios para que o analista chegue ao discurso, que é um objeto teórico e não a

fala concreta de um indivíduo.

Considerando a linguagem como prática – isto é, como mediação necessária entre o homem e a sua realidade natural e/ou social – a Análise de Discurso vai articular o lingüístico ao sócio-histórico e ao ideológico, colocando a linguagem na relação com os modos de produção social: não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. Há, entre os diferentes modos de produção social, um modo específico que é o simbólico. Há pois práticas simbólicas significando (produzindo) o social. A materialidade do simbólico assim concebido é o discurso. (ORLANDI, 2005, p. 86)

Essa forma de análise oferece a possibilidade de “compreender a língua fazendo

sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e

da sua história” (ORLANDI, 1999, p.15). Assim, é importante salientar que a AD não

trabalha a língua como sistema único, mas como parte de um sistema maior: a sua expressão

no mundo. Isto nos levou a tomar como corpus a língua do jornal, o discurso da mídia sobre a

mulher tendo como foco o tema “divórcio”. O discurso da mídia, materializado no Caderno

Mais!, composto de dezoito matérias, entre artigos e entrevistas.

A AD, ao considerar que a exterioridade é constitutiva, parte do texto, da historicidade inscrita nele, para atingir o modo de sua relação com a exterioridade. Considera que, se a situação é constitutiva, ela está atestada no próprio texto, em sua materialidade (que é de natureza histórico-social). (ORLANDI, 1996, p. 12)

O discurso, em AD, não é uma mensagem entre um emissor e um recebedor como se

propõe na teoria da comunicação: um codifica e o outro decodifica, sendo a língua um código,

algo já pronto (pensemos em um código de trânsito). Pêcheux (1990),em sua proposta inicial,

parte do esquema da comunicação para propor uma nova teoria, fazendo os deslocamentos

necessários para tratar a linguagem como algo em movimento, na qual os sujeitos e sentidos

são atravessados pela língua e pela história.

24

Os sentidos não são propriedades privadas: nem do autor, nem do leitor. Tampouco derivam da intensão e consciência dos interlocutores. São efeitos da troca de linguagem. Que não nascem nem se extinguem no momento em que se fala. (ORLANDI, 1988, p.103)

Que deslocamentos foram esses?

Uma primeira questão que a AD trouxe foi a de que o que dizemos resulta de

condições de produção determinadas. Temos, pois, o produto diante de nós para ser analisado.

Temos, pois, de começar nos perguntando como aquilo se produziu. Quando? Onde? Para

quê? Quem são os interlocutores ali presentes? O discurso sobre os direitos da mulher

começam quando no Brasil, por exemplo? Que tipos de textos se construíram para tratar desse

tema? Quem os escreveu? Era escritos para serem lidos por quem? Essas e outras questões

devem, pois, serem feitas quando começamos uma análise discursiva. Nas condições de

produção, temos os interlocutores (que podem ser vários), a situação imediata (o aqui e o

agora) e o contexto histórico (ideológico) mais amplo. Teremos oportunidade de ver isso em

nossas análises, nos próximos Capítulos.

Dissemos que a história é fundamental para a AD, e quando falamos em história,

falamos em memória e em esquecimento. Assim, temos sempre que pensar que aquele texto,

aquele enunciado, frase, que iremos analisar tem uma história, em vários sentidos. Só

podemos dizer aquilo que já foi dito um dia. É uma cadeia contínua de significação, onde não

é possível detectar o começo absoluto nem o ponto final do discurso.

Quando falamos, colocamos em funcionamento uma memória discursiva, que

denominamos “interdiscurso”, algo que já foi dito e que retorna, o já dito: “o conjunto de

formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos” (ORLANDI, 1999, p. 33)

É nessa memória, que o sujeito não pode controlar, pois, ela funciona inconscientemente, que

os sentidos se constroem e os sujeitos se constituem. O sujeito não percebe que o que diz não

é inteiramente seu, ele tem a ilusão de que fala o que pensa, ou de que aquilo que pensa é algo

subjetivo.

É por meio do esquecimento que temos a impressão da verdade; as palavras já ditas, já

significadas estão guardadas na memória, porém esquecidas; e no momento do dizer

recuperamos tais palavras que nos vêm como se fossem anônimas e particulares ao mesmo

tempo. Temos, então, a ilusão de singularidade do discurso. E, além disso, é no esquecimento

que a ideologia se reflete – quando ao falarmos trazemos à tona o sócio-histórico

direcionando nosso discurso, que poderia ser outro se não fossem as marcas históricas.

Falamos sempre de algum lugar da história; temos, pois, nossas filiações de sentidos. Aí é que

vemos o ideológico, e não como algo oculto.

25

A memória é que possibilita este percurso entre os (con)textos, o ir e vir entre o já-dito

e o dizível. O interdiscurso disponibiliza dizeres e pelo assujeitamento do enunciador o faz

pensar que seu discurso é reflexo do seu pensamento.

A instância do enunciado é, pois, a do ‘repetível’, a que podemos chamar de interdiscurso: série de formações (verticalidade) que fazem parte de enunciações distintas e dispersas. (ORLANDI, 1988, p. 106)

Quando fazemos a análise, munidos de uma teoria, vamos descobrindo a presença da

exterioridade, da história, da memória, do esquecimento, da ideologia, marcando a

constituição do sujeito discursivo. É o que acontece na fala de uma mulher – Novaes- , em

uma das reportagens constante de nosso corpus, denominada “Machismo marcou discursos

pró”. Vemos ali uma mulher, empiricamente falando, reproduzindo o discurso dos homens

contrário ao divórcio, sendo que, à primeira vista, o que se deveria esperar dela seria um

discurso diferente, um discurso em apoio à causa das mulheres. Mas, estando Novaes

ocupando uma posição de sujeito marcada por determinada ideologia, não pronunciou

diferente.

Neste ponto, acho interessante trazer a noção de sujeito proposta pela AD, um

conceito muito difícil de trabalhar e que nos faz sempre cair em um imaginário de um falante

que tudo pode fazer com a linguagem e a língua.

O sujeito se submete à língua(gem) – mergulhado em sua experiência de mundo e determinado pela injunção a dar sentido, a significar(se) – em um gesto, um movimento sócio-historicamente situado em que se reflete sua interpelação pela ideologia. (ORLANDI, 2005, p.62)

Desde a sua primeira proposta, Pêcheux faz o deslocamento, ou seja, uma passagem

no modo de pensar os interlocutores em um processo de linguagem. Não se trata, como ele

diz, de um emissor e de recebedor empíricos, mas de posição de fala construídas ao longo da

história. Todo indivíduo quando fala do lugar de professor, por exemplo, significa e se

significa de determinada maneira. Quem está sempre querendo saber se o outro se alimentou

suficientemente, se tomou banho, se chegará tarde, a não ser quem fale do lugar de “mãe”,

mesmo que seja a conversa de uma esposa com o marido?

Na proposta de AD de 1969, Pêcheux irá dizer então que o emissor e o recebedor

“designam algo diferente da presença física de organismos humanos individuais. [...]

designam lugares determinados na estrutura de uma formação social...” Mas, esses lugares

não são traços objetivos, sociológicos da mãe, do patrão, da mulher. “Esses lugares estão

representados nos processos discursivos em que são colocados em jogo”. (1990, p. 82) E para

26

ir elaborando essa noção de sujeito, ele irá propor ainda a noção de “formações imaginárias”

relativas aos interlocutores e ao objeto de que se fala. Ele mostra que há um imaginário

funcionando quando falamos de cada posição: mulher e homem, mãe e filha, professor e

aluno etc.

Ele vai avançando nesse conceito e irá dizer depois que o indivíduo (empírico,

biológico) é interpelado pela ideologia em sujeito, ou seja, o indivíduo é chamado à vida pela

ideologia, pela significação, pelo simbólico da linguagem. Ser falante é a prova disso. E ser

falante é ser humano. Nesse sentido é que se fala em assujeitamento à língua e à história. Mas,

o sujeito vive em um momento histórico determinado e em uma sociedade determinada;

assim, ele ganhará na relação com o Estado e as suas instituições, como a mídia, uma forma

individualizada, se subjetivará, terá uma “personalidade”. A isso chamamos de processos de

individualização. No caso, deste TCC, queremos saber como o discurso da mídia

individualiza a mulher, como sujeito de direito, em relação a uma Lei, a Lei do Divórcio, 30

anos depois de ter sido promulgada.

Não existe um sujeito para cada situação, mas, assumimos posições diferentes de

acordo com as situações e pessoas com as quais falamos. O que sucede não é a perda de

identidade em cada ocorrência de ‘linguagem diferente’, o que há é um movimento dos

sentidos e das posições de sujeito no discurso e de identidade. Então, “o sujeito é o mesmo e é

diferente simultaneamente”. (ORLANDI, 1996, p.189) A relação do sujeito com a linguagem é

interativa, isso significa que há uma tensão entre ideologia (que nos constitui) e identidade

(que nos particulariza). Daí, “não se pode afirmar, nem um sujeito absolutamente dono de si,

nem um sujeito totalmente determinado pelo que lhe vem de fora”. (p.189)

O sujeito da linguagem não é um sujeito-em-si, mas tal como existe socialmente e, além disso, a apropriação da linguagem é um ato social, isto é, não é o indivíduo enquanto tal que se apropria da linguagem uma vez que há uma forma social dessa apropriação. (ORLANDI, 1996, p.188)

Indo nessa direção, podemos ainda trazer a noção de “autoria”. Como funcionaria essa

noção? A noção de autor é inicialmente proposta por Foucault em seu livro “A ordem do

discurso” (1996, p. 26), como “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem

de suas significações, como foco de sua coerência”. Mas, para Foucault, nas interações do

cotidiano, essa autoria não estaria presente. Orlandi e Guimarães, (1988), expande essa noção

para toda produção de linguagem. Dissemos que o sujeito não é a fonte de seu dizer, mas tem

a ilusão de que é. Onde então se realiza essa ilusão? Na autoria. Naquela hora que escrevemos

ou falamos algo pelo qual temos de nos responsabilizar, colocar nosso nome (como um TCC)

27

e responder juridicamente (nossa sociedade é uma sociedade de direito) pelo que dissemos.

Para a AD, a autoria é, pois, uma função do sujeito. No caso, das matérias de jornal, temos ali

uma função autor-jornalista, que irá produzir um texto com coerência, com começo, meio e

fim, com argumentos etc.

Ao construir o texto de um jeito, ao adquirir uma determinada forma em termos de

sintaxe, de morfologia, de fonologia, por exemplo, o autor irá criar condições para que seja

lido “também” de uma determinada maneira. A isso chamamos efeito-leitor. Há, pois uma

relação direta entre autor e efeito-leitor. Teremos oportunidade de ver isso funcionando na

análise de nosso corpus.

Da ótica discursiva não há um começo absoluto, assim como não há um fim total,

como já dissemos. É na função-autor que o sujeito se posiciona como sendo a origem de sua

fala iniciando e terminando seu texto. De um lado incompletude do sujeito e incompletude da

linguagem, do outro lado, autoria e acabamento do texto.

Entre o jogo e a regra, a necessidade e o acaso, no confronto do mundo e da linguagem, entre o sedimentado e o a se realizar, na experiência e na história, na relação tensa do simbólico com o real e o imaginário, o sujeito e o sentido se repetem e se deslocam. O equívoco, o non-sens, o irrealizado tem no processo polissêmico, na metáfora, o seu ponto de articulação. (ORLANDI, 1999, p.53)

Para tratar o sentido não contido em si, mas “referente a”, a AD entrelaça três noções

nos estudos da linguagem (a noção de leitura, de interpretação, da língua com história), à

teoria do sujeito do campo psicanalítico. Nas palavras de Lagazzi (1988, p.31) “a AD

possibilita que o conhecimento constitua-se além do ‘achar’ de cada pesquisador e fora de

qualquer modelo pré-concebido”.

Por isso, na teoria do discurso, a perspectiva da leitura incide sobre os processos de

significação, visando quebrar o sentido de evidência, de transparência, pois leitura é também

produção – não é somente quem escreve que produz sentido, o leitor é também autor. “A

‘naturalidade’ dos sentidos é, pois, ideologicamente construída. A transparência dos sentidos

que ‘brotam’ de um texto é aparente” (ORLANDI, 1988, p.102). E continua:

Para a leitura, afirma Courtine (1982) para o dizível, afirmaríamos que é nesse espaço do interdiscurso – correspondente ao que se chama ‘domínio do saber’ da formação discursiva – que se constituiria a exterioridade do “legível” para o sujeito-leitor, na formação dos ‘pré-construídos’ (o repetível) de que sua leitura se apropria. (p. 106)

Faz-se necessário um entendimento importante acerca da interpretação discursiva,

posto que para a AD não existe “a” interpretação única, verdadeira: existem gestos de

interpretação, considerados como ações no domínio simbólico, intervenções no real do

28

sentido. O ato de interpretar está amarrado ao sentido existente que, por sua vez, se constituiu,

como o sujeito em formações discursivas referidas às formações ideológicas (jurídica,

pedagógica, religiosa, moral, econômica...). Diante de qualquer objeto simbólico, o sujeito

não tem como não interpretar, não significar. Para a AD, o sentido não é conteúdo, não é

evidência. Em nosso TCC, pudemos observar que o discurso religioso que funciona na

história não é único, ou melhor, homogêneo, tampouco o machismo impõe-se apenas sobre a

mulher mas também sobre o homem.

Para tanto, o analista de discurso deve ultrapassar os limites da interpretação e

compreender como se constituem os processos de significação que estão no texto e fora dele.

Interpretar discursivamente é trabalhar o sentido sobre o sentido. A língua sobre os gestos de

interpretação. O objetivo é explicitar o funcionamento do texto.

A materialidade do discurso é a língua, contudo, a compreensão implicará a relação

discurso/texto, o entremeio onde se articulam os diferentes gestos de interpretação, que

mostram a incompletude do simbólico. Esses processos são diretamente ligados à questão

língua/história. O sujeito não é completo, assim como os sentidos não o são. O entrelaçar

sujeito/linguagem/história é aberto, incompleto, “um texto tem em suas margens muitos

outros textos” (ORLANDI, 1999, p.78).

A ideologia se materializa no texto – o sujeito passa do interdiscurso ao texto acabado

(a memória do dizer). Todo esse movimento se torna possível pela incompletude dos sentidos

e do sujeito. Essa incompletude nos possibilitou voltar no tempo não só quanto à sociedade da

época, mas quanto à materialidade das leis e a posição de sujeito – jurista, responsáveis por

elas. É por meio dessa incompletude que o sujeito se movimenta em diferentes lugares

(posições de fala) de acordo com o discurso em que se constitui. Como a mulher atual vive

essa dispersão, essa ambigüidade entre a antiga mulher e a nova mulher?

Porque é em referência à sociedade e a história que pode haver aí ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a possibilidade de interpretar. (ORLANDI, 2005, p.26)

Pêcheux (1990a) fala de um sujeito pragmático face às coisas do cotidiano, que não é

pressionado apenas pelo outro, pela exterioridade. Isso coloca em discussão essas relações

simplistas entre dominador X dominado, entre feminismo X machismo. As repressões, os

preconceitos, não são impostos só do exterior, só pelo outro.

O sujeito pragmático – isto é, cada um de nós os “simples particulares” face às diversas urgências de sua vida – tem por si mesmo uma imperiosa necessidade de homogeneidade lógica: isto se marca pela existência dessa multiplicidade de pequenos sistemas lógicos portáteis que vão da gestão cotidiana da existência (por exemplo, em nossa civilização, o

29

porta-notas, as chaves, a agenda, os papéis, etc) até as “grandes decisões” da vida social e afetiva (eu decido fazer isto e não aquilo, de responder a X e não a Y, etc...) passando por todo o contexto sócio-técnico dos “aparelhos domésticos” (isto é, a série dos objetos que adquirimos e que aprendemos a fazer funcionar, que jogamos e que perdemos, que quebramos, que consertamos e que substituímos)... (p. 33)

No funcionamento da língua, pensada discursivamente, existe uma dificuldade para

estabelecer limites entre o “mesmo” e o “diferente”. Para Orlandi (1999, p.36) “todo o

funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre processos parafrásticos e processos

polissêmicos”. Essa consideração remete ao fato da linguagem não ser definida por si mesma,

mas inserida na história, pois, cada palavra é integrada à rede de sentido e ao dizê-la, o sujeito

parafraseia o dito anteriormente. As diferentes formulações têm por base o mesmo dizer

solidificado. É dizer o dito de maneira diferente. Nas palavras de Foucault (1996, p.21) “O

novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. Ou nas palavras de

Pêcheux, conforme Orlandi (p.37), “todo discurso é discurso de um sujeito”. Nossas análises,

mostraram como as matérias que textualizam o discurso chegaram ao mesmo ponto de

ideologia e da discursividade religiosa, por haver nessas formulações uma base significante

pré-existente.

A polissemia, como a paráfrase, então, são requisitos para a existência do discurso,

uma vez que a multiplicidade dos sentidos é o que condiciona o dizer. Em nosso objeto de

estudo pudemos ver que termos como “amparo”, “família”, “sentimentalismo” são carregados

dessa tensão que move o dizer entre a paráfrase e a polissemia, entre sentidos já ditos e

sentidos novos querendo emergir.

Dessa forma, difere-se a criatividade de produção – considerando o processo de

significação. Já que, criatividade advém do não-sentido ao sentido, implica na cisão do

processo de produção da linguagem, pelo deslocamento de regras, afetando o sujeito e os

sentidos na sua relação com a história e com a língua. Produção – o que costumeiramente se

faz na língua - é “retorno ao sentido, o saber discursivo sendo reciclado, a variedade do

mesmo” (Orlandi, 1996, p.67).

Outra noção da AD que nos pareceu interessante neste TCC, foi a de antecipação. O

sujeito antecipa-se a seu interlocutor quanto ao sentido produzido por suas palavras. Desse

modo ele tenta regular o dizer. No nosso corpus, pudemos observar o funcionamento dessa

noção na matéria “Estatísticas” relacionado à formulação “Pirâmide da Solidão”.

E, finalmente, a relação de forças em que o dizer do sujeito adquire força pela posição

que este ocupa. A relação de forças se relaciona à ‘hierarquia social’, o que resulta, no que

poderíamos chamar de “posição/hierárquica discursiva” do falante. Quem está na posição

30

mais elevada tem “autoridade” para dizer o que dizer, ou seja, maior significação, maior valor

é atribuído às palavras por ele pronunciadas.

Descrevendo e compreendendo o funcionamento das relações de sentido e de força, e

também o mecanismo de antecipação, é que vimos ampliar as probabilidades de significação

desencadeadas pelas formações sociais na história. O desafio da AD consiste em atravessar o

imaginário – incrustado nas relações sociais, na ideologia -, explicitando o modo como as

significações estão se constituindo, ter melhor percepção do que está sendo dito.

31

CAPÍTULO 3

A opacidade do divórcio

A linguagem é o que serve de mediação entre o homem e a sua realidade social. É

através da linguagem que ele pode significar o mundo e se significar pelo simbólico na

história. E o discurso é parte do funcionamento geral da sociedade, é efeito de sentidos entre

locutores. Quando falamos em locutores não nos referimos ao indivíduo empírico social, mas

a projeção deste na fala que lhe faz ocupar uma posição de sujeito – do discurso –, que não é

fixa e se desloca por diferentes discursividades. Daí dizermos também que “o texto é

atravessado por várias posições do sujeito”. (ORLANDI, 1988, p. 53)

Todo discurso se apresenta como resultante de determinadas condições de produção e

que são pressupostas para seu funcionamento, conforme já dissemos anteriormente. Em um

texto podem ser identificados vários discursos em funcionamento em uma sociedade dada.

Esses discursos, dificilmente, serão encontrados sozinhos, mas articulados formando uma

rede. Neste TCC, tomamos como objeto de estudo o discurso da mídia sobre a mulher e seus

direitos, expresso na materialidade de um jornal, sabendo, contudo, que outros discursos

estarão a ele associados. Queremos, assim, compreender como vêm se dando os processos de

individualização do sujeito-mulher como um sujeito-de-direito no e pelo discurso da mídia.

O discurso da mídia é a linguagem predominante nos meios de comunicação social. Os

meios de comunicação são símbolos de poder, e em um mundo globalizado, se tornaram

essenciais. Segundo Guimarães (2001, p. 13), “a matéria jornalística é basicamente a narrativa

de acontecimentos contemporâneos à sua enunciação. Ou seja, a matéria jornalística é

basicamente a notícia”. E o autor prossegue:

Antes de tudo a notícia jornalística é a enunciação de um acontecimento (fato) contemporâneo a sua enunciação. É preciso, pois, pensar a relação entre a enunciação (enquanto acontecimento de linguagem) e os acontecimentos que ela enuncia. Aqui cabe perguntar: o que é acontecimento para o jornal? A primeira coisa que precisamos evitar é a definição do acontecimento como fato empírico ocorrido que, por si, demanda ser noticiado, enunciado no jornal, na revista. Isto porque não é difícil ver como há coisas em grande quantidade que ocorrem e que não são noticiadas, ou o são com destaques absolutamente diferentes.

O ano de dois mil e sete é marcado por um acontecimento importante para a história

do casamento no Brasil: trinta anos de promulgação da Lei que legalizou o divórcio. Trata-se

da Lei de nº. 6515 de 26 de dezembro do ano de 1977. Uma data importante para a história

dos cônjuges, ou pelo menos para aqueles que não pretendem continuar juntos. Para Pêcheux

32

(1997) o acontecimento é um fato novo que em seu contexto de atualidade convoca o espaço

de memória e reorganiza novos fatos. Guimarães (2001, p. 14), indo nessa mesma direção,

nos lembra que “o acontecimento para o jornal, aquilo que é enunciável como notícia, não se

dá por si, como evidência, mas é constituído pela própria prática do discurso jornalístico.

Enunciar na mídia inclui uma memória da mídia pela mídia”.

Para termos uma compreensão desse acontecido, que trata diretamente da nossa

questão norteadora relativa à mulher como sujeito de direito, e de seus efeitos de sentidos,

tomamos como corpus o ”Caderno Mais!”, que é parte integrante de um dos mais importantes

jornais de circulação nacional, denominado Folha de São Paulo.

Porque é em referência à sociedade e a história que pode haver aí ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a possibilidade de interpretar. (ORLANDI, 2005, p.26)

Esse Caderno, na edição de 24 de junho de 2007, trouxe reportagens especiais sobre o

divórcio. As reportagens trazem um panorama do antes e do depois da criação da Lei, que

aprovou a dissolução do casamento, através, principalmente, de entrevistas com aqueles que

usufruíram da referida Lei, sem deixar de ouvir aqueles que foram afetados indiretamente por

ela – os filhos. O título do Caderno é “30 anos de divórcio no Brasil”. No interior do

Caderno, as matérias aparecem estruturadas de forma determinada.6 Temos, inicialmente, uma

matéria ocupando duas páginas, intitulada “O CÚMULO DA SEPARAÇÃO. Aí estão

contidas as seguintes reportagens: “O divórcio me fez sentir inteira”, “Filhas do 1º divórcio

divergem,” “Emoções podem ser incompatíveis”. Em seguida, temos outras matérias assim

denominadas:

• Três décadas de divórcio no Brasil; • Mulher sofre mais na hora de recasar; • Diziam que ele iria destruir a família; • Leis contra o amor; • Machismo marcou discursos pró; • Sarney votou a favor, • Itamar e Tancredo contra; • Cronologia do divórcio; • Século 19 debateu ‘mal casados’; • Para os filhos, ‘casa’ substituiu ‘lar’ ; • TV apresentou uma nova heroína; • Ruptura sem culpa; • Unidos para todo o sempre;

6 Tentamos reproduzir os títulos das matérias de forma diferenciada como no jornal, observando que os termos em negritos aparecem no jornal na cor vermelha e os demais, na cor azul.

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• Hábitos entranhados”.

Os autores em sua maioria pertencem ao próprio jornal. Têm-se, entretanto, matérias

assinadas por Peter Burke (historiador inglês) e Danuza Leão, cronista afamada.

Ressalta-se que por motivo de tempo, fizemos alguns recortes no corpus para

descrição e análise, o que significa que nem todos os artigos serão tratados neste trabalho.

Esses recortes foram sendo feitos considerando a rede semântica que se ia construindo pela

materialidade da linguagem nos títulos, nas chamadas das matérias e nos textos.

Diante das discursividades que o divórcio nos remeteu, utilizamos o livro “Discurso:

estrutura ou acontecimento” de Pêcheux (1990), para analisar o divórcio como um

acontecimento. Neste livro ele analisa uma frase enunciada por ocasião da eleição de François

Miterrand, em 1981, que foi exaustivamente repetida pela mídia francesa: “On a gagné”, ou

seja, “Ganhamos”, como resultado, diz ele, de “uma super-copa de futebol político ou de um

jogo de repercussão mundial...” (p. 19). Ele nos chama a atenção para o fato deste

acontecimento remeter a “um conteúdo sócio-político ao mesmo tempo perfeitamente

transparente (o veredito das cifras, as evidências das tabelas) e profundamente opaco”. (pp.19-

20)

Na materialidade do nosso discurso, também observamos a presença de gráficos sobre

censos e pesquisas no Registro Civil do Instituto Brasileiro Geografia e Estatística constantes

na matéria “Mulher sofre mais na hora de recasar” e no fim da primeira e segunda página

com o título: “Três décadas de divórcio no Brasil”, que apesar de transparente em sua

materialidade – números comprobatórios – se tornam ao mesmo tempo profundamente

densos, porque marcam um confronto discursivo, uma vez que em uma separação entre

pessoas, as coisas não se resolvem com números e tabelas, e as formulações já vieram se

produzindo antes e depois da referida Lei, como iremos vendo nas análises que se seguem.

Conforme Orlandi (2005, p.131) a linguagem possui uma “margem opaca onde o dizer não

está estabelecido em sua positividade e nem por isso deixa de existir, de fazer sentir seus

efeitos”.

O confronto discursivo sobre o divórcio começa com formulações que vão circular na

sociedade brasileira a partir principalmente de 1951, vinte e seis anos antes da aprovação da

Lei 6515/77, quando o deputado, na época, Nelson Carneiro, apresentou uma proposta que

visava ao fim consensual do matrimônio.

Isso é importante porque em AD observar as condições de produção do discurso vai

nos possibilitar uma bagagem para compreendermos as matérias do Caderno com relação ao

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acontecimento e à posição da mulher como sujeito de direito. As condições de produção têm

dois leques de abrangência: uma em sentido específico, a outra, geral. O contexto específico

refere-se ao contexto/situação, ao aqui-agora da enunciação. O contexto amplo diz respeito ao

contexto sócio-histórico, ideológico, que acompanhamos um pouco no Capítulo anterior.

Como afirma Orlandi (1988, p.17) “a linguagem é um fenômeno complexo que tem sua

especificidade num modo de funcionamento que se dimensiona no tempo e no espaço das

práticas do homem”.

Os sentidos não nascem ab nihilo. São criados. São construídos em confrontos de relações que são sócio-historicamente fundadas e permeadas pelas relações de poder com seus jogos imaginários. Tudo isso tendo. Os sentidos, em suma, são produzidos. (ORLANDI, 1988, p. 103)

A Lei 6515/77 prescreve a homens e mulheres o direito de cessar a parceria conjugal e

põe termo aos seus efeitos civil e religioso. No entanto, nos ateremos em especial às

implicações dessa Lei com relação à mulher.

A proposta ganhou força entre alguns na política e na sociedade, que passaram a

participar do movimento, culminando, assim, em uma expressão de “busca pelo direito” dos

envolvidos. Na matéria “Machismo marcou discursos pró” é interessante como algo

anteriormente proibido – não aceito e até recriminado socialmente – passa a condição de

direito. De inapropriado a direito não adquirido, pois quem defendia a aprovação do divórcio

dizia ser um direito que o Estado ainda não reconhecera, enquanto que os antidivorcistas não

viam direito algum, e sim, uma imoralidade. A linguagem foi o meio em que se configurou o

embate das discussões filosóficas e ideológicas, em que foram expressas as indagações e as

refutações dos dois lados da sociedade - os que apoiavam e os que discordavam. Um

confronto entre formações discursivas: a religiosa e a jurídica, via efeito metafórico7, como

veremos no texto que se segue.

A deputada Lygia Lessa Bastos, que votou a favor do divórcio, foi questionada num debate: ‘Eu a vi na missa. Como a Sra., católica, defende o divórcio?’ Ela respondeu em nome do direito de reconstruir famílias. (Folha de São Paulo, 2007, Mais! p.8)

Consta na reportagem “Diziam que ele iria destruir a família”, que o deputado

Nelson Carneiro e o monsenhor Arruda Câmara travaram um grande embate que se tornou

notícia. As formulações contra Carneiro podem dar a dimensão das forças sociais envolvidas

7 Segundo Pêcheux (1990, p. 96), “chamaremos efeito metafórico o fenômeno semântico produzido por uma substituição contextual para lembrar que esse “deslizamento de sentido” entre x e y [ser católica e defender direitos] é constitutivo do sentido designado por x e y.....”

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na luta por tornar desagregável o casamento. A matéria cita algumas como: “coveiro da

família”, “profeta das ruínas” e “diabo destruindo a família”. A discursividade funcionando aí

é a religiosa, em que foram usados elementos bíblicos para expressar uma mudança, entendida

como um “mal” causado à estrutura social existente, à família. Através dessas formulações,

podemos perceber que parte do moralismo ideológico está fundamentado no discurso

religioso: o divórcio seria algo do Mal, ou seja, que Deus não aprovaria. Temos aí o que

Pêcheux (1990, p. 77) irá chamar de relações de forças como parte das condições de produção

dos sentidos e das posições de sujeito. Para tanto, ela dá um exemplo do discurso de um

deputado X na Câmara. E diz:

... um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que participa do governo ou a um partido da oposição: é porta-voz de tal ou tal grupo que representa tal ou tal interesse, ou então está “isolado” etc. Ele está, pois, bem ou mal, situado no interior das relações de forças existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado: o que diz, o que anuncia, promete ou denuncia não tem o mesmo estatuto conforme o lugar que ele ocupa.

Os ataques que sofreu Carneiro foram muitos. Sua viúva, Carmem Carneiro contou ao

repórter Leonardo Wen que uma das entrevistas que Carneiro dera aos jornalistas defendendo

o divórcio, fora publicado em um dos jornais com uma caricatura que tinha dois chifres e com

a legenda: “é um diabo destruindo a família”. A filha de Carneiro disse ao jornalista que seu

pai sempre lutou a favor da família e o projeto de que ele mais se orgulhava era o que versava

sobre os filhos adulterinos de 1949, norma que garantia aos filhos fora do casamento o direito

à herança (discurso econômico) e ao reconhecimento da paternidade. Isso nos leva a um outro

aspecto, a opacidade da palavra “família”, pois formar uma família significa também, dentre

outras coisas, formar laços pecuniários. Fato que podemos atribuir ao Capitalismo, em que

todas as relações visam ao econômico.

Curioso como trinta anos depois, este mesmo veículo de comunicação dedica oito

páginas de uma edição especial para tratar do assunto de forma a retratar com detalhes o

acontecimento, ouvindo os beneficiados pela lei e a família de Carneiro. Que mudanças

teriam havido para agora esse fato ter se tornado uma notícia de destaque visando produzir um

efeito positivo?

Antes da criação da referida Lei, foi aprovada uma Emenda, a de n.º 9 de 23 de junho

de 1977, que reformou o Código Civil vigente, abolindo a indissolubilidade do casamento e

abrindo caminho para que no mesmo ano fosse criada a Lei 6515. A Emenda nasceu

fundamentada sobre argumentos machistas, mesmo que parecessem estarem defendendo as

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mulheres. Os favoráveis ao divórcio diziam que este protegia a mulher porque resgatava-lhe o

estatuto de esposa e mãe e devolvia aos filhos a dignidade de não serem recriminados como

ilegais e de não serem aceitos em escolas religiosas.

A matéria informa ainda que ao ser proposta uma votação secreta para decidir sobre o

projeto, Carneiro pensou que havia conseguido a aprovação da Emenda, entretanto o

monsenhor e também deputado Arruda Câmara muito ativo politicamente conseguiu

arregimentar uma parcela significativa para se opor ao projeto, que perdera por 116 votos

contra e 89 a favor. Relações de força funcionando novamente, significando diferentemente o

mesmo fato.

O jogo político somente teve fim

depois que o deputado Câmara faleceu

em 1970, por ser ele o principal

opositor. Carneiro viu, então, uma

oportunidade de enraizar seus

pensamentos, e fez isso conquistando a

participação da população nas

discussões. Quando, em plena ditadura

militar, o presidente Ernesto Geisel, que

era luterano, se posicionou a favor do

projeto, a Lei foi aprovada. O momento

não era propício, mas o presidente era

favorável. Nas palavras de Carneiro:

“outro presidente não teria sancionado

naquele momento a lei”. Podemos observar, aí, a não homogeneidade dos discursos, no caso,

do discurso religioso, pois se antes tínhamos um representante da Igreja Católica agora,

tínhamos um, da Igreja Prebisteriana.

De acordo com Orlandi (1999), o analista do discurso deve refletir não apenas na

produção dos efeitos, no sentido do reflexo, mas contemplar todos os ângulos do dizer. É bom

ressaltar que Geisel também era cristão e tinha aparentemente o mesmo referencial teórico

sagrado, porém interpretação distinta.

Se hoje trinta anos depois o número de deputadas na Câmara Federal é de 42 contra

513 deputados, avalie naquele tempo – a participação feminina no debate era mínima, e as

poucas participantes mantinham o mesmo discurso (machista) dos homens: um discurso que

era perpassado pelos sentidos de que a mulher, se aprovado o divórcio, passaria de mão em

37

mão. Uma discursividade da moral, que se estabilizou no dicionário, um instrumento

lingüístico e histórico que produz e legitima os sentidos em uma sociedade letrada.

A psicóloga Rosely Sayão, articulista do jornal “Folha” contou a repórter Laura

Capriglione que sofreu preconceito por parte de seus amigos por ser separada (desquitada).

Seus amigos, professores universitários e pesquisadores como ela também era, só a aceitavam

para sair na turma se todos os casados estivessem com suas companheiras porque a tinham,

em seu próprio dizer, como “concorrente correndo solta”.

Nos entremeios da linguagem, o dizer: o estatuto de esposa e mãe, supracitado,

adquire multiplicidade (ou não?) de sentidos devido a não-transparência

língua/história/sujeito. A mulher com os seus únicos dois papéis, um atribuído pelo

referencial (dominador) da sociedade durante grande parte da história, o outro característico

do natural (biológico). Ambos fortemente evocados contra o íntimo revolucionário feminino.

Sempre que a mulher buscou os seus direitos, a resposta da sociedade e do Estado foi a

mesma; mas ser apenas mãe e esposa, para algumas, nunca lhes bastou.

A citação do verbete “mulher” do Novo Dicionário da Língua Portuguesa de 1975, de

Aurélio B. de H. Ferreira, pode nos confirmar essa posição, evidenciar certos efeitos de

sentido.

Mulher. [Do latim muliere] S. f. 1. Pessoa do sexo feminino, após a puberdade. [Aum.: mulherão, mulheraça, mulherona.] 2. Esposa (1). Mulher à-toa. Bras. Pop. V. meretriz: “Papai fica na igreja vigiando: se entra mulher à-toa, corre com ela.” (Geraldo França de Lima, Branca Bela, p.63.) Mulher da comédia. Bras., SP. Pop. V. meretriz. Mulher da rótula. Bras., RJ. Pop. V. meretriz. Mulher da rua. Bras. V. meretriz. Mulher da vida. Bras. V. meretriz. Mulher da zona. Bras. V. meretriz. Mulher de César. Mulher de reputação inatacável. Mulher de má nota. V. meretriz. Mulher de ponta de rua. Mulher do fado. Bras., SP. Pop. V. meretriz. Mulher do fandango. Bras., SP. Pop. V. meretriz. Mulher do mundo. Bras. Pop. V. meretriz. Mulher do pala aberto. Bras., SP. Pop. V. meretriz. Mulher do piolho. Bras. Fam. Mulher muito teimosa. [Us., em geral, comparativamente: Ó velhinha teimosa! é pior que a mulher do piolho.] Mulher errada. V. meretriz. Mulher fatal. Mulher particularmente sensual e sedutora, que provoca ou é capaz de provocar tragédias: “Cadê Maria Rosa, / Tipo acabado de mulher fatal / Dois olhos muito grandes, uma boca e um nariz.” (Da marcha Cadê Maria Rosa?, de Nássara e J. Rui.) Mulher perdida. V. meretriz: “Custava-lhe acreditar que o filho a houvesse enganado, abusando do seu estado para meter em casa uma mulher perdida.” (Coelho Neto, Turbilhão, p. 314.) Mulher pública. V. meretriz. Mulher vadia. Bras. V. meretriz. (FERREIRA, 1975, p. 952)

Não resta dúvida de que à mulher se associam apenas três representações, ou seja, três

expectativas sociais. Conforme o Dicionário do Aurélio (1975), possibilidade número um:

após a puberdade, ela tem condição para que possa reproduzir, a segunda: ser casada, e a

terceira: ser meretriz, e para esta o vocabulário é extenso, com negrito e até exemplos, mas

não é por merecer algum destaque, pelo contrário é a forma repudiosa de rejeitar tal posição.

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Não esqueçamos que no dicionário há também uma posição de sujeito funcionando: a de autor

de dicionário, que também se constituiu historicamente.

O sujeito da linguagem não é um sujeito-em-si, mas tal como existe socialmente e, além disso, a apropriação da linguagem é um ato social, isto é, não é o indivíduo enquanto tal que se apropria da linguagem uma vez que há uma forma social dessa apropriação. (ORLANDI, 1996, p.83)

Esse verbete, escrito dessa forma, irá produzir um efeito-leitor determinado naquele

que lê. Sendo mulher vai ter que se colocar em que lugar? Ser esposa não tem que

necessariamente ser mãe, mas ser mãe sem ser esposa vai dar na terceira possibilidade; só

resta àquela que não quiser se exposta – ser negritada – ser esposa. Uma posição de sujeito

desde sempre dividida.

Considerando que uma memória discursiva está sempre presente no dizer, observamos

que essas questões morais estão ainda entranhadas no dito, o que não é de se estranhar em um

país em que as bases morais foram implantadas pela via religiosa ocidental do catolicismo,

que considerava a esposa como inferior ao marido. Uma visão, diga-se de passagem,

convenientemente mal interpretada pela Igreja de certa época. Digo mal interpretada (ou

interpretada ideologicamente), porque em seu texto sagrado: a Bíblia, não encontramos bases

para tal interpretação. O que não impede de vermos esses sentidos se reproduzindo mesmo

que de forma deslocada. A parlamentar Necy Novaes criticou um projeto que abordava a

igualdade na relação homem/mulher com os seguintes dizeres: “Nunca soube de esposa ou

mãe brasileira que deseje ser superior ao seu marido, ser independente; pelo contrário, ela

procura no marido verdadeiro amigo, porque fora dele não existe amparo.” (grifo nosso)

O sujeito se submete à língua(gem) – mergulhado em sua experiência de mundo e determinado pela injunção a dar sentido, a significar(se) – em um gesto, um movimento sócio-historicamente situado em que se reflete sua interpelação pela ideologia”. (ORLANDI, 2005, p.103)

Com relação à igualdade entre homem e mulher, a parlamentar respondeu com a

resposta que seria de outra pergunta – “a mulher não deseja ser superior e nem independente”.

A reflexão sobre os termos ‘igualdade’, ‘superior’, e ‘independente’ abre perspectivas para

compreender “o fato de que o dizer é aberto” (ORLANDI, 1996, p.11) destarte, a quem quer

que pertença tal discurso (uma posição de sujeito histórica) é possível compreender que há um

impedimento de superação. Pela memória discursiva elucidamos que tais palavras são umas

traves para que o sujeito em posição inferior não chegue a superar o que está em nível mais

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alto, posto que primeiro é preciso alcançar, para então igualar e somente depois, ultrapassar.

Se a igualdade for evitada jamais haverá superação.

É por meio da relação de sentidos a qual atesta a inexistência de um discurso fechado,

separado de outros, que podemos ir compreendendo os efeitos de sentido, mas também os

efeitos sujeito; já que um dizer leva a outro, que leva a outro... É uma cadeia contínua de

significação, onde não é possível detectar o começo absoluto nem o ponto final do discurso.

O termo “amparo” identificado na fala de Novaes é um legitimar do trançar entre

inconsciente, história e língua. Em nossa sociedade, o imaginário construído para o homem

está vinculado à coragem. Existe um ditado que proíbe o homem até de chorar – homem não

chora – porque chorar pode ser sinônimo de fraqueza, de manha; sobre o homem recai, na

verdade, um peso do chamado machismo tão excessivo que todas as palavras que pressupõe

sentimentos quando se referem a ele, não soam bem. Quando Necy Novaes expõe sua fala de

que no marido está “o amparo”, na verdade, não é o seu ponto de vista de uma mulher, e sim,

a voz de formação discursiva (ideológica) que associa “força” como sinônimo de

masculinidade e “sentimentalismo”, como de feminilidade. “Sentimentalismo” é atravessado

também pelo sentido de fraqueza, delicadeza, impressionável: adjetivos que são usados,

geralmente, para referirem-se à mulher e que exprimem uma subordinação do “ser” mulher,

conquanto o que é fraco, não é forte, ou ainda, quem se impressiona facilmente é vulnerável e

precisa de proteção.

Não é simplesmente a mulher que sofre com essa representação e tem sua posição

social enfraquecida; sobre o homem também recai outros sentidos que o faz sofrer do mesmo

jeito. Ou seja, não podemos tratar de forma simplista a questão dos gêneros em termos de

oprimido e opressor, ou de dominado e de dominador. As relações humanas, sociais, são

ambíguas e complexas e merecem reflexões mais aprofundadas.

[...]há um saber discursivo, uma memória que não se aprende, filiações de sentidos a que, enquanto seres simbólicos, estamos sujeitos e sobre as quais não temos controle, em termos de ‘transmissão’ de sentidos. (ORLANDI, 2005, p.89)

A incompletude da língua aflora um dizer não dito, mas que deixa ser percebido pelo

entrecruzar de linguagem e memória. Podemos arriscar uma interpretação. A não-

equivalência feminina é uma estratégia contra a superação masculina que foi disseminada na

sociedade para que a mulher se sentisse com menos valor que o homem e convencida de seus

únicos dois papéis a serem acatados passivamente. Pois, o que não é igual é diferente/ o que

não é superior é inferior, e conseqüentemente dependente. Estamos, pois, longe de uma

posição de sujeito de direito para a mulher em nossa sociedade.

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O sujeito da linguagem não é um sujeito-em-si, mas tal como existe socialmente e, além disso, a apropriação da linguagem é um ato social, isto é, não é o indivíduo enquanto tal que se apropria da linguagem uma vez que há uma forma social dessa apropriação. (ORLANDI, 1996, p.83)

Prossigamos em nossa análise. A reportagem “Século 19 debateu ‘mal casados’”

demonstra que um choque cultural também forçou a posição da sociedade brasileira com

relação ao divórcio. No final dos séculos XIX e XX, o Brasil recebeu uma grande leva de

imigrantes europeus que vinham de países onde o divórcio já era permitido; esses sujeitos,

constituídos em outras discursividades, em outro contexto histórico, contribuíram para

provocar um choque ideológico entre as culturas brasileira e européia. Eram chamados pelos

brasileiros de ‘mal-casados’. Esse choque também contribuiu para a necessidade de se debater

a possibilidade do “re-casamento”, que culminou no acontecimento divórcio.

* * *

Como o Caderno Mais! traça um panorama dos trinta anos do divórcio no Brasil com

foco na Lei que o instituiu, achamos importante fazer um giro pela história da legislação a

esse respeito a fim de conhecer melhor as condições de produção, do “antes” e “depois” do

acontecimento, a para refletirmos sobre a densidade discursiva do acontecido, estabelecendo

um paralelo entre as matérias da edição e uma pesquisa pertinente ao assunto.

Lagazzi-Rodrigues (2002, p. 30) diz que “quando pensamos a relação entre direito e

sociedade, é fundamental nos perguntarmos, tomando mais uma vez a palavra de Streck, ‘para

que e para quem o Direito tem servido’”. Além disso, ela chama a nossa atenção para

compreender o imaginário jurídico em que

... as normas parecem lógicas e necessárias para organizar as relações que na verdade já estão organizadas e ‘em outro lugar’.. Ao se realizar, o direito não diz portanto que dever ser, ele diz já ‘o que é’. Aí joga a fetichização: eu atribuo à norma jurídica uma qualidade que parece intrínseca (a obrigatoriedade, o fato de ser imperativa), enquanto essa qualidade pertence não à norma, mas o tipo de relação social do qual essa norma, é a expressão.

A partir da matéria “Cronologia do divórcio”, fomos buscar sobre as leis relacionadas

ao Código Civil de 1916, que foi o Código modificado pela Emenda de n.º 9, já citada.

Portanto, segue-se uma breve retomada das leis pré-divórcio.

O Código Civil (CC) que regula o Direito de Família no período de criação da Lei

6515/1977 é o Código de 1916. As diretrizes pertencentes ao Direito de Família foram

organizadas por Clóvis Beviláqua. O intelctual Beviláqua foi jurista, filósofo, historiador e

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literato e propôs que não houvesse diferença juridicamente na representação entre os gêneros.

Entretanto, suas idéias foram suprimidas pelos conservadores. O CC de 1916 não inovou, e

confirmou a “superioridade masculina” na instituição familiar. Desconsiderou a família não

constituída dentro da lei , reafirmou a distinção entre marido e mulher e desamparou os filhos

naturais. Estava, pois, situada no contexto da época.

O movimento feminista, respaldado pelas mudanças econômicas e pela urbanização

intensa, obteve importantes mudanças legislativas a seu favor, nas décadas de 60 e 70. As

principais foram:

• A Lei 4121 de 1962 que dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada, conhecida

como “O Estatuto da Mulher Casada”. Essa Lei não criou normas, mas reformulou

alguns artigos do CC e do Código do Processo Civil.Em 1967 foi promulgada a

Constituição Brasileira e trazia em seu Artigo de nº 167, a seguinte redação:

Art. 167. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos”.

§ 1º - O casamento é indissolúvel.

Assim, perpetuava a dissociação “reconhecida” do casal e a ilegalidade da relação

familiar que não fosse pelo matrimônio.

• Em 1968, foi sancionada a Lei de n.º 5478 que criou o direito à assistência alimentar

para a mulher e seu filho. Foi um direito muito importante conquistado para a mulher

desquitada, que, naturalmente, era quem ficava com o filho, já que na época, somente

por motivo muito extremo é que a guarda não seria da mulher. Até então, a mulher

abandonada, como era conhecida a desquitada, ficava a mercê da família, pois não era

uma época em que a mulher encontrasse um campo social favorável para o trabalho.

Parágrafo único. Se se tratar de alimentos provisórios pedidos pelo cônjuge, casado pelo regime da comunhão universal de bens, o juiz determinará igualmente que seja entregue ao credor, mensalmente, parte da renda líquida dos bens comuns, administrados pelo devedor.

• Decretada a Lei 6015 em dezembro de 1975 que dispôs sobre os registros públicos,

encontramos em seu Inciso oitavo do Artigo 71:

Art. 71. Do matrimônio, logo depois de celebrado, será lavrado assento, assinado pelo presidente do ato, os cônjuges, as testemunhas e o oficial, sendo exarados:

8º) o nome, que passa a ter a mulher, em virtude do casamento;

42

• A Emenda nº. 9 emendava a CF de 1967 e, conseqüentemente, alterava o CC de 1916

com o texto:

Art. 1º. O § 1º do artigo 175 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação:

§ 1º - O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos".

• E, posteriormente, a Lei 6515 de 1977, promulgada para regulamentar o direito criado

pela Emenda de n.º 9. Com algumas alterações importantes, dentre elas, fim à

imposição do sobrenome do esposo à esposa.

A historiadora Cláudia Regina Nichnig em pesquisa realizada, estudou o direito das

mulheres entre os anos de 1970 e 1990, a partir do jornal “O Mulherio”. Atraiu-nos o seu

estudo – “Os movimentos feministas e as mudanças no Direito de Família - porque as edições

estudadas nos permitem compreender, em parte, esse breve histórico da legislação que

fizemos, bem como as dificuldades, as resistências às leis que produziam essa posição de

sujeito de direito para a mulher brasileira.

O jornal “O Mulherio”, que teve seu primeiro periódico em circulação no ano de 1981,

apresentou em sua terceira e quinta edições reportagens de ocorrências de homicídios

praticados por maridos que aclamavam “legítima defesa da honra” como álibi por não

aceitarem a separação conjugal. O jornal noticiou casos como o de Lindomar Castilho, que

matou Eliane Gramont, e o de Doca Street, que matou Ângela Diniz. Esses episódios, entre

outros, foram utilizados como fonte para uma campanha nacional que combatia a violência

contra a mulher.

Na edição dez, que tratou das propostas de alteração do Código Civil e circulou em

novembro e dezembro de 1982, “O Mulherio” denunciou que cinco anos se passara desde a

Lei do divórcio e os cartórios de paz ainda obrigavam a nubente a adotar o sobrenome de

família do marido.

Segundo Weber (citado em Orlandi, 1983), a ação social guia-se por usos, costumes,

convenções e pelo direito. O uso e o costume são distintos da convenção e do direito. Esses

representam uma ordem legítima, aquelas, uma regularidade. A ordem legítima acarreta o

regulamento, os modelos obrigatórios de conduta, o sentimento de dever. O uso e o costume

têm força coercitiva pela característica de regularidade. As regularidades são construídas e

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não têm garantias exteriores formalizadas explicitamente. Sua garantia é simbólica.

Entretanto, a recusa de adesão às regularidades resulta em incômodo e inconveniências.

Essa garantia simbólica é expressa através da moral, implica naquilo que o grupo

aceita (senso comum) e considera como ‘bons costumes’. Vejamos algumas noções sobre a

moral, que nos ajudarão em nossa reflexão e análise.

Moral é...tanto um conjunto de valores e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos [...]quanto o comportamento real dos indivíduos em relação às regras e valores que lhes são propostos[...]. (Foucault, 1996, p.39)

A moralidade se coloca como mais uma forma de conter o desejo do sujeito. A comunidade necessita zelar pelos bons costumes, mantendo os indivíduos enquadrados nos padrões morais escolhidos como seguros. (Lagazzi, 1988, p.46)

Por que o divórcio foi tão aclamado pelo movimento feminista?

O CC de 1916 aprisionava a mulher, não lhe permitia atos públicos, ela nem sequer

podia aceitar sua própria herança, em tudo precisava da autorização do marido. O pátrio poder

pertencia ao pai que o transmitia ao marido; este tomava todas as decisões no casamento por

si só. Com o Estatuto da Mulher Casada, a mulher conseguiu modificar o texto do CC, que

passou a “Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a

colaboração da mulher, no interêsse comum do casal e dos filhos”, entretanto, não conseguiu

tirar o domínio de si da mão do homem. Na verdade, apenas minimizou um pouco a

desigualdade, que permaneceu. Vemos, pois, que as mudanças avançam muito mais

lentamente do que gostaríamos.

Com tudo isso, a mulher vivia uma relação submissa e servil, pois ao optar pela

separação ou desquite continuava a ser significada por um discurso de discriminação e

rejeições. E o pior: não podia mais se casar, ou seja, tinha que conviver sozinha com a

discriminação, com os filhos para sustentar e sem poder trabalhar. Voltava à dependência da

família (pais). Se fosse viver junto com outro homem, era o mesmo que concubinato, e teria

quase como certa a perda da guarda dos filhos.

Então, a única saída era lutar pelo direito a liberdade através do Estado e de seu poder

coercitivo mediante as leis. Conforme Lagazzi (2001) “A instância jurídica é uma ordem de

sentidos que constitui a memória do dizer de nossa sociedade”. Constituída pela relação entre

direitos e deveres, a cidadania se exercita pela reivindicação, pela reclamação, pelo protesto,

pela denúncia. É na discursividade que se incita o poder jurídico. O poder jurídico está

diretamente vinculado a concepção de Estado, que se forma sob a visão capitalista, ou seja, o

Estado é o Estado-capitalista, que se alicerça na relação de interesses entre proprietários e

44

não-proprietários, o que resulta em direitos e deveres. Foi o que fizeram os movimentos

feministas, buscaram assegurar no Estado o direito a romper os enlaces matrimoniais, visando

incorporá-los no social por meio do poder, da força do Estado.

O divórcio fez o casamento finito, todavia para quem não se divorciava, o chefe da

família continuava sendo o homem. Nichnig afirma que as advogadas Florisa Verucci e Silvia

Pimentel apresentaram uma proposta ao “Projeto do Novo Código Civil”, que em 1980

chamou-se Novo Estatuto Civil da Mulher. Essa proposta possuía inovações em relação à

igualdade de gêneros, propondo identidade, chefia da família e sobre os filhos para a mulher.

Silvia Pimentel falou ao jornal “O Mulherio” que não se podia falar em democracia enquanto

a mulher fosse discriminada dentro de sua própria casa. Representantes feministas de vários

estados foram pessoalmente entregar a proposta ao Presidente do Congresso Nacional, Dr.

Jarbas Passarinho, juntamente com um abaixo-assinado.

Tal proposta contribuiu para a mudança na Constituição Federal vigente e para o atual

CC, que possibilita que o transcorrer do processo de divórcio seja feito em cartório,

eliminando o alongamento na Justiça. Promulgada em 1988, a Constituição trouxe o direito a

igualdade com o seguinte texto:

Art. 5. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I- homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

* * *

Voltemos à analise de nosso corpus, mais especificamente para duas matérias: “TV

apresentou uma nova heroína” e “Para os filhos, ‘casa’ substituiu ‘lar’ ”, que tratam da

contribuição da televisão e do rádio, respectivamente.

Na novela “Verão Vermelho”, transmitida em 1970, o casal (Dina Sfat e Jardel Filho)

vivia uma relação infeliz e terminara a trama desquitado. O desquite era legalizado no país,

porém, não era visto como boa escolha. Essa novela de autoria de Dias Gomes é um marco

por ter inaugurado no horário nobre (22h), o tratamento do temaEm “Escalada” de Lauro

César Muniz, produzida em 1975, os atores Tarcísio Meira e Renée de Vielmond encenaram

um romance socialmente não aceito: infelizes em seu casamento, tiveram uma relação

extraconjugal, fazendo com que se acirrasse uma discussão sobre a necessidade do divórcio.

A decisão continuava, ainda, pautada pela moral.

45

A série “Malu Mulher”, exibida de 24 de maio de 1979 a 22 de dezembro de 1980,

trouxe pela primeira vez a mulher separada como heroína: aquela que adota a separação para

recuperar sua identidade e reconstruir a sua vida independente. A teledramaturgia também

inovou porque a personagem, Malu, rompe o casamento em busca de autonomia. Dessa forma

o foco do personagem foi a valorização de si mesma como pessoa. Anteriormente as

personagens que se separaram o fizeram tendo um motivo “aceito” pela cultura, em que de

alguma forma poderiam ter absolvição: um marido vilão, ou se apaixonara por outro homem e

para não ser infiel, optara pela separação O discurso de “Malu Mulher” encorajava o

feminismo, representando um novo comportamento pessoal, profissional e sexual para a

mulher. A trama também tocou em pontos sensíveis de forma mais ousada como o

machismo, a violência doméstica e o prazer feminino.

No dia 10 de maio de 1968, o rádio transmitiu a cerimônia de casamento do cantor

Roberto Carlos com Cleonice Rossi, que era desquitada, em Santa Cruz de la Sierra. Roberto

Carlos estava no auge do sucesso e como a televisão do Brasil ainda não fazia transmissão por

satélite, o rádio fez a cobertura do evento. Na cerimônia, um ato de patriotismo, ao invés da

marcha nupcial, os jornalistas presentes cantaram o Hino Nacional brasileiro.

Esse evento sucedeu-se na Bolívia por não ser reconhecido no Brasil o casamento

natural. O desquite funcionava da seguinte forma o casal se separava judicialmente, porém, o

vínculo era mantido, o que significava não poder casar-se de novo legalmente. A união de

desquitados (conhecida por família natural) gerava filhos sem direitos (filhos naturais),

distintos dos filhos legítimos.

Roberto Carlos, um personagem público – um símbolo – ao aderir a tal

comportamento, causou um grande impacto na sociedade, já que no Brasil a desquitada era

vista como “a mulher fracassada, aquela que não tinha dado certo, ou a que tinha aprontado

alguma”. Ou seja, o desquite apesar de legal perante o Estado, não era legalizado socialmente.

Durante os debates de 1977 sobre o divórcio, o deputado Epitácio Cafeteira (hoje senador

pelo partido PTB do estado do Maranhão) disse a seguinte frase: “A desquitada é uma mulher

cantável”. Este entendimento pode ser percebido através do verbete citado de Aurélio, pois se

ela não era casada, a próxima representação que lhe sobrava era a de prostituta, a de “mulher

pública”. Ora se a mulher é pública, ela não é de ninguém, se não é de ninguém, pode ser

cantada.

Observamos que apesar dos avanços, a posição sujeito mulher separada/divorciada,

ainda mantinha os sentidos existentes. Para ter seus direitos respeitados devia ser uma

“heroína”. Ou, então, ser aceita por um astro que assumia a posição de defendê-la como um

46

“ato de patriotismo”. Como pensar em direitos em uma sociedade que, historicamente, não foi

estruturada pelo direito igual para todos?

* * *

E trinta anos depois da Lei 6515, como estão os relacionamentos? As reportagens “O

CÚMULO DA SEPARAÇÃO” e Leis contra o amor” nos permitem vislumbrar um pouco a

respeito e, como um discurso leva a outro, nos possibilitam compreender essas relações.

O dizer tem relação com o não dizer. Contudo, não é qualquer não dito, é somente aquele que é relevante para aquela situação significativa. No dito está associado o pressuposto (não dito mas presente). Ao longo do dizer, há toda uma margem de não ditos que também significam. O não dito liga-se ao sentido do dito, formando uma relação complementar em que um depende do outro para ser entendido. Há também a relação do silêncio constitutivo em que uma palavra apaga outras palavras “para dizer é preciso não dizer: se digo “mulher” não digo (homem). (ORLANDI, 1996, p.56)

A matéria, “O CÚMULO DA SEPARAÇÃO”, trata dos números do último censo do

IBGE com relação ao estado civil dos brasileiros e é a primeira reportagem do Caderno

Especial. Consta que o número de pedidos de divórcio aumentou. O primeiro registro do

IBGE com relação ao divórcio foi em 1984 em que se enumerou 1 divórcio a cada 10

casamentos; no último censo, em 2005, tínhamos 1 divórcio para 3 casamentos, porém, com

uma curiosidade, na maior parte dos casamentos atuais, um dos cônjuges está pelo menos na

segunda tentativa de relação matrimonial. Esse dado mostra que apesar de tudo, quem se

divorciou ainda dá crédito ao casamento formalizado.

Contudo, a tendência futura, parece, é a diminuição do divórcio devido ao aumento do

casamento não formal. Danuza Leão em “Leis contra o amor” afirma que o costume social

mudou com relação aos jovens, pois estes se “juntam” ou, popularmente, “amigam”; e se não

dão certo, separam e se juntam de novo, de novo. De forma que se resolvem casar

formalmente é porque já vivem “juntos” há muito tempo. Segundo ela, a Lei 6515/77 não foi

boa, “eu diria que não foi nada [boa], que não resolveu nada, pois os costumes foram

mudando e a vida se encarregou de fazer suas próprias leis.” Ela fala também sobre a união

estável que é a norma social vigente entre os que se “juntam” depois de algum tempo de

convivência. Se houver separação é possível pedir a divisão dos bens adquiridos – discurso

econômico - depois da sociedade conjugal, bastando, apenas, apresentar testemunhas em

juízo.

47

Para os que escolhem ou necessitam do divórcio na atualidade, o processo, apesar de

facilitado, não é simples. É um período de desencontros que traz sofrimento aos cônjuges e

aos filhos. O psicólogo Martinez, no artigo “O papel da Paternidade e a Padrectomia Pós-

divórcio” constata conseqüências do rompimento em relação ao pai e também admite

implicações para a mãe. Segundo ele, são as “representações simbólicas” ou o papel

estereotipado historicamente do homem e da mulher que tornam o momento delicado. No

passado, a memória impedia a implantação do divórcio, hoje, ela dificulta o processo de

separação afetiva.

Gostaríamos de analisar um último recorte para avançarmos na compreensão dos

efeitos produzidos pelo discurso da mídia “sobre” a mulher divorciada nos processos de

individualização da mulher como um sujeito de direito, observando o funcionamento do

discurso “da” mulher divorciada. Para tanto, escolhemos os títulos de duas matérias que se

referem especificamente à mulher. A primeira é o título de uma entrevista – já anteriormente

mencionada neste capítulo – e a segunda, o título de uma reportagem. Objetivamos desvendar

na opacidade dessas formulações, a memória discursiva social “para” e “da” mulher. Os

títulos são:

� O divórcio me fez sentir inteira; � Mulher sofre mais na hora de recasar.

A materialidade do discurso é a língua, contudo, a compreensão dessa discursividade

implicará explicitar a relação discurso/texto, o entremeio onde se articulam os diferentes

gestos de interpretação, que atestam a incompletude do simbólico. Esses processos são

diretamente ligados à questão língua/história.

A primeira frase – “O divórcio me fez sentir inteira” – marca o início da primeira

entrevista do Caderno Especial e traz a foto de Arethuza Silva de 68 anos, a primeira mulher a

se divorciar no Brasil. Seu divórcio é datado em 28 de junho de 1977. Essa frase não foi

criada pelo redator, ele a extraiu da entrevista de Arethuza.

Iniciamos pela estrutura da frase, que conforme Orlandi (1999) é a porta de entrada

para o analista .

Justamente na análise do que chamamos materialidade lingüística: o como se diz, o quem diz, em que circunstâncias etc. Isto é, naquilo que se mostra em sua sintaxe e enquanto processo de enunciação (em que o sujeito se marca no que diz), fornecendo-nos pistas para compreendermos o modo como o discurso que pesquisamos se textualiza. (ORLANDI, 1999, p.61)

48

Em “O divórcio me fez sentir inteira” tem-se “o divórcio” como o sujeito agente da

oração, “fazer” como verbo de ação transitivo, “inteira”, um adjetivo que sintaticamente é o

predicativo do objeto, e “me” o pronome que funciona como objeto paciente da ação.

Arethuza diz “se sentir inteira” depois do fim da relação. Será que é por que o

matrimônio é um contrato? E em um contrato, os pactuários dependem da contraprestação do

outro, ou seja, são partes? Através do jogo da memória e da língua, veremos que a frase da

primeira divorciada evoca no tempo, o sentido de que a mulher no cumprimento do papel

social “casamento”, é o de ser completada. Há uma falta que, no caso de Arethuza, não foi

preenchida pelo marido, mas, sim, pelo divórcio. Ser completada pode ser entendido como ser

paciente, alguém que espera ou depende de outro para se tornar inteira.

A frase poderia ser construída de outra forma, por exemplo: “Eu me sinto inteira

depois do divórcio”. Mas não foi. Arethuza, nessa posição de sujeito, refere a si como o

objeto da frase. Mesmo depois do divórcio, ela ainda se posiciona como paciente. Mais um

aspecto relativo à memória social da mulher – o de estar sempre à espera do homem para

completá-la, a submeter-se e não tomar iniciativas. Temos aí o que Pêcheux chama de

“esquecimento número dois”, que é da ordem da enunciação8.

... ao falarmos, o fazemos de uma maneira e não de outra,e, ao longo de nosso dizer, formam-se famílias parafrásticas que indicam que o dizer sempre podia ser outro. [...] Este “esquecimento” produz em nós a impressão da realidade do pensamento. Essa impressão, que é denominada ilusão referencial, nos faz acreditar que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não outras, que só pode ser assim. (ORLANDI, 1999, p. 35)

Sabemos que o divórcio foi pauta do movimento feminista que clamava por liberdade.

Na frase, a posição do “me” pode nos remeter a uma falsa liberdade, no sentido de que ao

posicionar o “me” como objeto, ele também complementa o verbo, ou seja, apesar de “me”

ser paciente, ele também exerce função de completar. Depois de divorciada, a sensação de

liberdade: uma certa ilusão de poder completar também, em outras palavras poder se

equiparar aquele que “socialmente” exerce o papel de completar (o homem).

Vamos ao segundo enunciado selecionado para análise

8 O esquecimento número um é da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela ideologia, fazendo nos crer que somos a origem e fonte do que dizemos, quando, na realidade, retomamos sentidos já existentes. (ORLANDI, 1999, p. 35)

49

Para formular o título: “Mulher sofre mais na hora de recasar”, o jornalista baseou-se

nas esta*tísticas do IBGE, fundamentadas em pesquisa feita com a população.

Analisando essa estrutura, a partir de sua materialidade lingüístico-discursiva,

podemos destacar: o substantivo comum “mulher” como um sujeito genérico na estrutura, o

verbo de ação “sofrer”, os advérbios de intensidade e de tempo “mais” e “hora”,

respectivamente, e o segundo verbo de “casar” acrescido do morfema “re”, indicativo de

repetição.

O verbo intransitivo “sofrer” não dá espaço para um complemento, um depender “de

algo”; ele carrega em si toda a sentença a qual o sujeito (mulher) está submetido. À oração

temporal “na hora de recasar” que limita, especifica o momento, é adicionada do termo

“mais” que esconde-mostra a memória social sobre a mulher, assunto já tratado aqui.

Essa consideração remete ao fato de dizermos em AD que a língua tem uma

autonomia relativa, pois afetada pela história. Assim, cada palavra está integrada a redes de

sentido e ao dizê-la, o sujeito parafraseia o dito anteriormente. As diferentes formulações têm

por base o mesmo dizer solidificado. É dizer o dito de maneira diferente. Nas palavras de

Foucault (1996, p.26) “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”.

Ou nas palavras de Pêcheux (1990, p.156) “Todo discurso é discurso de um sujeito”.

Ora, o fato de haver comprovações científicas (Estatísticas) é um mais um fato para

atestarmos a presença da memória discursiva na sociedade. Podemos pensar no efeito de

sentido produzido pelas Estatísticas – representante do discurso científico – provocado pela

posição do sujeito no processo discursivo. Nas posições imaginárias de Pêcheux, apresentadas

em sua primeira proposta de AD em 1969, ele mostra como se dá o jogo e o movimento dos

sentidos nos processos de interlocução. O interlocutor “A”, a partir de sua posição, se

pergunta: quem eu sou para lhe falar assim? Ao mesmo tempo em que visualiza a imagem do

lugar de “B”, e questiona: quem é ele para que eu lhe fale assim? Simultaneamente o mesmo

está acontecendo com o sujeito “B”, que olhando para A, pergunta a si: quem sou eu para que

ele me fale assim? E olhando para a imagem de A, pergunta: quem é ele para que me fale

assim? Isso caracteriza o deslocamento de indivíduo para sujeito, como posição de fala. No

caso das Estatísticas, o sujeito “A” (Ciência) tem um status social superior ao sujeito “B”, que

se reflete no discurso do qual participa, tornando-o superior e impositivo, de forma a excluir a

fala do sujeito “B” (o indivíduo) Não se questiona os dados científicos, ele produz efeitos de

comprovações, de autenticidade, de legitimidade aos fatos que se tornaram notícia.

A demógrafa Elza Berquó intitulou o evento produzido por meio das pesquisas feitas

com a população de “Pirâmide da Solidão”. O efeito dessa palavra causa medo. Uma pessoa

50

que não vive só há algum tempo, e que por motivos adversos resolve se divorciar, dificilmente

essa pessoa pretende viver sozinha. O que geralmente ocorre é ficar um tempo só até

encontrar uma outra pessoa. A mulher que está acompanhada, mas pretendendo se separar –

ao ler essa formulação aliada a comprovações científicas – tem uma grande possibilidade de

mudar de idéia, pois esta frase tem um impacto repressivo.

As questões que implicam esses dados são demográficas (os homens vivem menos,

por serem mais vítimas de mortes violentas que as mulheres) e comportamentais (atitudes pré-

estabelecidas ideologicamente).

Reproduzimos, a seguir, os gráficos da matéria para visualização do evento.

Segundo os números:

� A idade favorável para a mulher se

casar é até os 30 anos, pois, dos 20

aos 30 anos – 31,7% das mulheres

são casadas contra 21,3% dos

homens. Neste período 1,4 milhão

de homens estão não-casados

(solteiros, viúvos, divorciados).

� Dos 30 aos 40 anos de idade, 54%

dos homens são casados contra

55,7 % das mulheres, havendo um

leve favorecimento aos homens,

pois o excedente de mulheres não-

casadas aos homens em igual

estado civil é de 99 mil.

� Dos 40 aos 49 anos, foi constatado

que, na maioria dos matrimônios

pelo menos um dos cônjuges está

se recasando. Para cada um

recasamento: 77 homens livres

contra 100 mulheres, há 882 mil

mulheres não-casadas a mais.

51

� E os números só pioram. Dos 50 aos 59 anos de idade, para um possível matrimônio,

existem 61 homens livres para um grupo de 100 mulheres. Um milhão de mulheres

não-casadas excedentes em relação aos homens.

� A partir dos 70 anos, a relação é 38 homens para 100 mulheres.

Estes últimos dados têm explicação cultural. Depois do divórcio é a mãe que

supostamente “deve” ficar com os filhos, o que dificulta o estabelecimento de uma nova

relação. Um homem costuma não acolher o filho de outro homem e a mulher fica dividida

entre os filhos e a reconstrução conjugal.

O sistema capitalista de exploração do corpo feminino como mercadoria causa

também a possibilidade da não realização afetiva da mulher. A visão de que a mulher tem que

estar sempre linda e de que seu corpo é um objeto a escraviza culturalmente de tal forma, que

a partir dos 30 anos, a mulher é considerada em idade avançada para o casamento (a famosa

“tia”). Não é o fator biológico, de uma gravidez em risco, por exemplo, pois a medicina está

avançadíssima e muitas mulheres têm provado que a idade não é empecilho para a capacidade

reprodutiva.

Outro aspecto detectado no gráfico: mulheres com nível de estudo maior – superior,

mestrado, etc. – tendem a ficar sozinhas, pois a sociedade aceita melhor um homem mais

velho, com mais dinheiro, com um nível de estudo maior ter um relacionamento com uma

jovem, ocupando aquele velho papel “moldado” de protetor, de “amparo”, como disse

Novaes. Entretanto, o contrário é rejeitado. Ou seja, o fato da mulher poder estudar, trabalhar,

ser independente para reconstruir sua vida ainda e amparar um homem é discriminado

socialmente. A conquista da igualdade de gênero, prevista na CF de 88, não é exatamente

“igual”.

52

Em destaque, o redator escreve, como se fosse a chamada da reportagem “Mulheres

tomam mais a iniciativa de pedir o divórcio, mas têm duas vezes menos chances que os

homens de contrair outra união legal”. No percurso do texto, a informação de que 73% das

separações não-consensuais são de iniciativa da mulher. Ela pede a separação, mas depois está

fadada a solidão porque suas chances serão menores de contrair novo matrimônio.

Analisando a forma como essa matéria dispõe o seu título “Mulher sofre mais na hora

de recasar”, destacando em vermelho as palavras “sofre mais”, juntamente com as estatísticas,

parece um aviso à leitora. Pois, basta, apenas ser mulher para sofrer mais na hora de recasar.

Não é por acaso que esta matéria compõe uma página inteira do jornal –fato que não sucede

com nenhuma outra matéria – é um alerta do sujeito-jornalista, que é uma posição de uma

sociedade, expressando o discurso da mesma.

Fazendo um paralelo entre o primeiro e o segundo título em termos de funcionamento

sintático temos.

“O divórcio me fez sentir inteira” “Mulher sofre mais na hora de recasar”

o termo sintático referente à o termo sintático referente à

mulher tem a classificação “mulher” tem a classificação

de objeto (me) de sujeito

a mulher na posição frasal de objeto a mulher na posição frasal de sujeito

é completa é vítima

Conforme Orlandi (2005) “é a própria estrutura de um texto que faz o leitor”. Temos

aí o efeito leitor. Mas, a produção de sentidos é aferida pelo equívoco. Contudo, a memória

atua por imagens do dizer, formulações prontas. O funcionamento se dá através da inserção

do discurso em filiações de sentido pela memória, e o sentido, que as representa – sujeito a

mobilizações – está sempre pronto a se deslocar. Daí, as diferentes versões, ou seja, o efeito

dos deslocamentos de sentido.

O discurso “da” mulher, enquanto sujeito de direito é fragmentado, dividido entre a

moral e o religioso e as suas reivindicações. Quando Arethuza se sente livre, completa,

independente, constrói uma formulação de si posicionada como objeto, sem destaque, como

alguém que deve ser completada por algo/alguém, já que o complemento verbal depende do

53

verbo para completar e que este nem sempre depende daquele para ser completado. Arethuza

carrega ainda em sua fala sentidos de um discurso dito machista da qual a mulher quis se

libertar em seus movimentos emancipatórios. Contudo, como já vimos, o homem também

carrega sobre si a mesma visão e se submete a mesma carga ideológica.

54

Conclusão

Estudar a posição sujeito mulher, como sujeito de direito na sociedade brasileira, a

partir das matérias de um jornal tomadas como um acontecimento discursivo foi um intrigante

desafio. Primeiro, achamos que era muito pouco material para um TCC e que não seria

suficiente para encorpar um trabalho como este. Mas, depois, vimos, realmente, que

linguagem não é transparente, que a língua está em constante movimento e que um discurso

leva a outro, e a outro, enfim. Buscar na história as condições de produção das discursividades

foi muito bom e nos fez aprender o que, com certeza, em outras circunstâncias não teríamos

aprendido. Saber um pouco mais sobre o caminho histórico percorrido pela mulher, sendo eu

mulher, foi gratificante e, ao mesmo tempo, me encorajou mais a buscar os meus ideais, visto

que as dificuldades a serem enfrentadas são bem menores, que aquelas enfrentadas por

minhas ancestrais, o que também me deixou feliz por não ter vivido em tais épocas.

Fazer o TCC em Análise do Discurso foi o maior desafio encontrado por mim em

minha formação acadêmica. É um campo de conhecimento científico que me atraiu durante o

curso, e eu quis me aventurar, mesmo sendo um campo novo pra mim, e que por ser muito

vasto, infelizmente, não tive tempo para adentrá-lo como gostaria. Porém, como se sabe um

objeto de estudo é inesgotável e que “não há discurso fechado em si mesmo, mas um processo

discursivo do qual se pode recortar e analisar estados diferentes” (ORLANDI, 2005, p.62). No

entanto, o pouco que aprendi já me faz perceber muitas coisas de uma outra forma, de ângulo

de um analista de discurso em formação capaz de ir além da evidência.

Ao observar a mulher atual, vi funcionando nessa posição de sujeito uma dualidade

entre a antiga e a nova mulher. Poderia dizer que observei uma posição de sujeito marcada

pela ambigüidade, pela divisão, pela dualidade. Diante das expressivas conquistas em termos

de independência social, a mulher tem a oportunidade de deixar para trás um passado difícil,

mas muitas vezes isso não ocorre. Para toda regra há exceções; o passado não deve ter sido

complexo para todas, mas para sua grande maioria o foi. Talvez, a maior luta da mulher atual

seja vencer a si mesma, visto que como sujeito não conseguiu romper ainda “aqueles” velhos

paradigmas, dos quais as feministas de primeira hora julgavam terem sidos construídos “só”

pelos homens. Muitas são as mulheres que “optam”, consciente ou inconscientemente, por

viverem as velhas representações sociais.

Quanto à mídia, apesar de ter sido, historicamente, o meio de denúncia das mulheres

desde o século XIX, a forma de expressão da qual elas precisavam para buscar uma posição

55

diferente, o respectivo jornal analisado não me pareceu favorável a mulher, ou melhor, não

cria condições para esse deslocamento na posição sujeito mulher: do discurso da moral para o

discurso do direito. Isso porque os títulos, as chamadas, a forma visual adotada parecem

alertar a mulher a não tomar uma decisão em favor do divórcio, a pensar se vale a pena viver

sozinha, pois este será o seu destino. Pude começar a compreender porque é tão difícil para a

mulher vencer a sua ambigüidade, pois, o discurso da memória está bem forte e presente nas

formulações que lhes dizem respeito. Digo começar, pois mais do que respostas, achei, neste

TCC, perguntas sobre algo que, às vezes, parece tão simples: ser uma mulher com direitos e

deveres.

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