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Estado e Políticas Públicas sob o “Novo Regime Fiscal”. Wander M. M. Ulhôa 1 Niemeyer Almeida Filho 2 Resumo: O propósito deste artigo é mostrar que o “Novo Regime Fiscal” brasileiro, aprovado através da Emenda Constitucional (EC) Nº: 95, reduzirá a ação do Estado, afetando as políticas públicas de natureza social e econômica. As perspectivas diante deste cenário são de deterioração dos serviços públicos, assim como enfraquecimento das instituições do aparelho estatal. Trata-se de reconhecer que a EC Nº: 95 instituirá um novo modus operandi do Estado brasileiro. Palavras-chave: Estado. Políticas Públicas. Novo Regime Fiscal. Área 5: Estados nacionais e políticas sociais: Economia Política do capitalismo contemporâneo 1 Doutor em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia. 2 Professor Titular do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia.

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Estado e Políticas Públicas sob o “Novo Regime Fiscal”.

Wander M. M. Ulhôa1

Niemeyer Almeida Filho2

Resumo: O propósito deste artigo é mostrar que o “Novo Regime Fiscal” brasileiro, aprovado

através da Emenda Constitucional (EC) Nº: 95, reduzirá a ação do Estado, afetando as políticas

públicas de natureza social e econômica. As perspectivas diante deste cenário são de deterioração

dos serviços públicos, assim como enfraquecimento das instituições do aparelho estatal. Trata-se de

reconhecer que a EC Nº: 95 instituirá um novo modus operandi do Estado brasileiro.

Palavras-chave: Estado. Políticas Públicas. Novo Regime Fiscal.

Área 5: Estados nacionais e políticas sociais: Economia Política do capitalismo contemporâneo

1 Doutor em Economia pelo Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia.

2 Professor Titular do Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia.

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1. INTRODUÇÃO

A Emenda Constitucional número 95 que instituiu o “Novo Regime Fiscal” no âmbito do

Orçamento Fiscal e da Seguridade Social estabeleceu limites para as despesas primárias que, no

caso do exercício de 2017, foram fixadas às despesas pagas em 2016, acrescidas de 7,2%, sendo que

nos períodos posteriores estará condicionada ao valor do limite referente ao exercício

imediatamente anterior, corrigido pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor

Amplo (IPCA). Em relação às vinculações observadas no texto da Constituição de 1988 (BRASIL,

1988), especialmente no que se refere aos gastos de saúde (em que a União deve aplicar no mínimo

15% da receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro)3 e da educação (a União

aplicará, anualmente, no mínimo 18% da receita resultante de impostos na manutenção e

desenvolvimento do ensino), os dispositivos constitucionais serão suspensos por 19 exercícios4.

As modificações arroladas na EC nº 95 suspenderam as vinculações das despesas de saúde,

educação e emendas parlamentares às receitas públicas. Sendo assim, o comportamento das

despesas de saúde e educação, que até o momento ocupavam a maior parte das despesas primárias

(sem considerar as despesas previdenciárias), passarão a ter regras idênticas às demais. Ou seja, as

despesas primárias associadas à saúde e à educação poderão ser fixadas no exercício subsequente,

após o exercício de 2018, até o limite da variação do IPCA (para o período de 12 meses encerrado

em junho do exercício anterior), de maneira que o Presidente da República e o Congresso Nacional

poderão arbitrar que determinadas despesas deverão ser corrigidas para além do IPCA, desde que

outras possam compensar (para menos, é claro) o aumento daquelas. Como resultado disso, nada

garante, ao menos do ponto de vista do “novo” ordenamento jurídico, que as despesas de saúde e

educação seguirão de perto os patamares de inflação.

Vale mencionar, ainda, que a EC n. 95 (BRASIL, 2016) estabeleceu exceções ao regramento

que limitou a expansão da despesa primária, o que não deixa de fazer sentido, pois, em grande

medida, são recursos transferidos aos estados (FPE) e municípios (FPM). Ainda no que tange às

exceções que não foram contempladas no escopo das limitações das despesas primárias, citam-se:

(a) créditos extraordinários a que se refere o art. 167, § 3º, da Constituição (BRASIL, 1988)

[despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade

pública]; (b) despesas com a realização de eleições pela justiça eleitoral; e (c) despesas com

aumento de capital de empresas estatais não dependentes.

3 O art. 2º da EC n. 86, de 17 de março de 2015 (BRASIL, 2015), fixou que os 15% da RCL da União deveriam custear as despesas

com ações e serviços públicos de saúde, mas apenas em 2020. O artigo foi revogado na EC n. 95 (BRASIL, 2016) e, já em 2017,

passam a valer os 15%. Entretanto, a partir de 2018, as despesas de saúde e educação seguiram os mesmos parâmetros das demais, ou

seja, a expansão da despesa fica limitada à variação do IPCA. 4 As regras fixadas no art. 108 da EC n. 95 passaram a viger no presente ano( 2018).

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Quando se observa essas ressalvas aos limites previstos à expansão da despesa primária,

pode-se inferir que as “válvulas de escape” praticamente não existem, de maneira que haverá a

necessidade de fixar prioridades (ex ante à execução orçamentária), dado que as despesas não

poderão ser ajustadas às receitas (superestimadas). Se por algum motivo os limites à expansão das

despesas primárias forem descumpridos, fixar-se-ão imediatamente no exercício posterior as

seguintes sanções: ajuste dos gastos aos servidores públicos, independente da motivação (vantagem,

bônus, adequação etc.), suspensão da criação de cargo ou função, alteração na estrutura de carreira,

admissão ou à contratação de pessoal, realização de concurso público (exceto por reposição) e

despesas obrigatórias.

Os dispositivos apresentados nos parágrafos acima explicitam as modificações que foram

introduzidas no âmbito orçamentário, assim como as implicações para as despesas vinculadas

(saúde e educação, especialmente). Da mesma forma, mostrou-se que transferências constitucionais

como FPM e FPE não foram arroladas no que diz respeito aos limites estabelecidos à expansão da

despesa primária. Em relação às sanções, evidenciou-se que as despesas de pessoal irão suportar,

em grande medida, o ônus dos possíveis ajustes. Na sequência, o Quadro 1 sintetiza a EC n. 95

(BRASIL, 2016).

Quadro 1. Síntese da EC n. 95

Objetivo Criar um teto de gasto para evitar que a despesa cresça mais do que a inflação.

Prazo 20 anos, sendo que, a partir do décimo ano, será possível fazer revisões.

Alcance Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social e para todos os órgãos e poderes da União.

Limites

Para 2017: despesa primária + restos a pagar corrigidos pelo índice de 7,2%, que é a

previsão da inflação para este ano.

A partir de 2018: correção pela inflação acumulada até junho do ano anterior

Saúde e

Educação

Haverá tratamento diferenciado. Em 2017, a saúde terá 15% da Receita Corrente

Líquida; e a educação, 18% da arrecadação de tributos. A partir de 2018, seguem a

correção da inflação prevista para os demais setores.

Sanções Quem não respeitar o teto ficará impedido de, no ano seguinte, dar aumento salarial,

contratar pessoal e criar novas despesas.

Exceções Algumas despesas não vão se sujeitar ao teto, como as transferências constitucionais e

os gastos para realização de eleições.

Revisão O critério de correção poder ser revisto a partir do décimo ano de vigência da emenda

por meio de Projeto de Lei Complementar.

Fonte: Agência Senado (2016).

Do exposto acima pode-se inferir que as premissas do “Novo Regime Fiscal” aprofundarão

as regras fiscais já existentes, especialmente no que tange à busca compulsória do superávit

primário. Isto ocorrerá porque as despesas primárias estão limitadas à variação da inflação (IPCA)

do período imediatamente anterior e, por outro lado, o crescimento das receitas para além da

inflação sempre significará excedente fiscal para compor o superávit primário, garantindo

sustentabilidade intertemporal da dívida pública.

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Diante deste cenário, é bastante provável que as ações do Estado brasileiro, nos próximos

vinte anos, fiquem comprometidas, afetando as despesas relacionadas às políticas públicas de

natureza social e, igualmente, limitando os instrumentos de política econômica, além de influenciar

a dinâmica do processo de acumulação de capital.

Os argumentos arrolados acima precisam ser evidenciados. Eis, portanto o objetivo deste

artigo. Assim, além desta introdução e das considerações finais o trabalho está organizado em duas

seções. A primeira seção demonstra que o “Novo Regime Fiscal”, a despeito do caráter

“transitório”, não eliminou as regras fiscais estabelecidas, por exemplo, aquelas fixadas na Lei de

Responsabilidade Fiscal (LRF). A rigor, ampliam-se as regras fiscais já existentes, especialmente,

quando se fixa limites ao crescimento das despesas primárias, o que, por sua vez, garante geração

de excedentes fiscais (superávit primário), ao menos no médio e longo-prazo. A segunda seção

procura mostrar os efeitos deste arranjo, afirmando que haverá redução das ações do Estado

brasileiro, afetando a disponibilidade de fundos públicos para as políticas sociais e restringindo,

ainda mais, os instrumentos de política econômica, particularmente, as de natureza fiscal.

2. EC N. 95: O DESPERTAR DE UM “NOVO REGIME FISCAL”?

A Emenda Constitucional (EC) Nº: 95, que instituiu o “Novo Regime Fiscal” com o objetivo

declarado de “reestabelecer a confiança” dos agentes econômicos e garantir a “sustentabilidade da

dívida” por meio do controle dos gastos primários, restringirá a ação estatal de forma abrangente.

Isto porque as modificações fixadas no âmbito daquela emenda têm como propósito fazer valer

(compulsoriamente) as regras fiscais existentes, particularmente as exigências de cumprimento das

metas fiscais (superávit primário), que vinham sendo “contornadas” pelos gestores públicos ao

longo dos últimos anos.

Isso ocorria sem que o gestor público infringisse os dispositivos estabelecidos no âmbito das

regras fiscais, de modo que as condições do equilíbrio fiscal no exercício financeiro vigente (ou nos

seguintes) permanecessem dentro dos parâmetros fixados das regras fiscais. O argumento exposto

se refere ao possível excesso de discricionariedade que aparece, inclusive, no rol das justificativas

do “Novo Regime Fiscal” como medidas restritivas a serem tomadas imediatamente e no futuro:

[...] nossa intenção é que o Novo Regime Fiscal seja uma das várias ferramentas

utilizadas para uma gestão séria do orçamento. Para evitar que os limites sejam

contornados por meio do represamento de gastos e acúmulo de restos a pagar,

vamos adotar medidas gerenciais e legais adicionais, como uma política

prudente de empenho de despesas, limitações à inscrição de despesas em restos a

pagar e regras mais rigorosas para cancelamento automático de restos a pagar não

processados (aqueles para os quais não houve a efetiva prestação do serviço ou

entrega do bem) (BRASIL, 2016b, p. 7, grifos nossos).

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Os argumentos utilizados para justificar a EC n. 95 (BRASIL, 2016) – por exemplo,

“reverter, no horizonte de médio e longo prazo, o quadro de agudo desequilíbrio fiscal”, “usar meta

de resultados primários como âncora da política fiscal” e “risco não desprezível de perda de

controle sobre a dívida pública” – já estavam previstos no ordenamento fiscal, particularmente na

LRF (BRASIL, 2000). Não é por acaso que o art. 1º, § 1º da LRF dispõe que:

[...] a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente,

em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das

contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e

despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita,

geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas

consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de

receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar (BRASIL, 2000).

Da mesma forma, o art. 31, § 1º, I se refere à necessidade de gerar superávit primário para

reconduzir o endividamento aos limites fixados. Mas o problema é que, no caso do Governo

Federal, nunca se propuseram limites à dívida mobiliária, algo distinto em relação aos demais entes

federativos5. Dessa forma, a geração do superávit primário fazia sentido do ponto de vista do

ordenamento jurídico apenas para as unidades federadas que estavam acima dos limites fixados pela

Resolução n. 40/2001 (BRASIL, 2001), embora fosse praxe fixar algum superávit primário na

LDO, mesmo que o ente federativo não tivesse problemas com endividamento.

No caso da União, por sua vez, verificava-se ampla discricionariedade em fixar as metas

fiscais, pois não havia nenhum montante da dívida que devesse ser reconduzida aos limites

estabelecidos. Há certo “consenso” (acadêmico – visão mainstream – e na perspectiva dos

policy makers) de que a relação dívida/PIB superior a 60% implica em riscos de insolvência.

Assim, se houvesse a necessidade de reconduzir a dívida mobiliária quando, por exemplo,

ultrapassasse o limite fixado, é certo que as despesas primárias, ainda no exercício financeiro em

que se constatou o rompimento do limite ou nos exercícios subsequentes, seriam o instrumento por

excelência a cumprir aquele objetivo (reconduzir a dívida pública aos limites exigidos). Aliás, não

se pode desconsiderar a possibilidade de aumentar concomitantemente as receitas públicas para

suportar as despesas financeiras, embora ela estivesse mais associada aos exercícios seguintes.

Desse modo, acredita-se que as despesas primárias puderam permanecer em ascensão

concomitante à expansão da dívida pública, justamente por não haver nenhum dispositivo que

fixasse um limite máximo para o aumento da dívida. Ao contrário, as despesas primárias

cumpririam o papel que historicamente e legalmente (art. 9º, LRF) lhes cabem: serem usadas como

variável de ajuste, no sentido de gerar excedente fiscal necessário à estabilidade da relação

5 Os limites globais para o montante da dívida pública dos estados, do Distrito Federal e dos munícipios foram definidos pela

Resolução n. 40/2001 (BRASIL, 2001), do Senado Federal, em conformidade com o art. 30, I, da LRF (BRASIL, 2000) e o art. 52,

VI e IX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

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dívida/PIB (BRASIL, 2000). Não é por coincidência que o problema fiscal para o governo é visto

quase que exclusivamente pela dimensão dos elevados gastos primários:

[...] a raiz do problema fiscal do Governo Federal está no crescimento acelerado da

despesa pública primária. No período 2008-2015, essa despesa cresceu 51% acima

da inflação, enquanto a receita evoluiu apenas 14,5%. Torna-se, portanto,

necessário estabilizar o crescimento da despesa primária, como instrumento para

conter a expansão da dívida pública. Esse é o objetivo desta Proposta de Emenda à

Constituição (BRASIL, 2016b, p. 4).

O aspecto central não se refere necessariamente ao fato de as despesas primárias estarem

elevadas, mas que não há espaço suficiente no Orçamento Fiscal da União para “conter a expansão

da dívida pública”. Enquanto as receitas foram suficientes para sancionar a expansão das despesas

primárias e cumprir as metas fiscais, pouco ou nada se argumentava a respeito dos desequilíbrios

fiscais. Por isso, insiste-se no fato de que a qualidade das contas públicas no Brasil tem apenas uma

única métrica: o superávit primário. Nesse contexto se insere a EC n. 95 (BRASIL, 2016), que vê o

controle da despesa primária como única alternativa ao equilíbrio fiscal.

Assim, negligenciam-se as dimensões relacionadas às receitas públicas que poderiam ser

importantes instrumentos para recompor o caixa do Tesouro Nacional. É o caso, por exemplo, das

absurdas desonerações fiscais (vulgarmente também chamadas de “bolsa-empresário”) que

avançaram nos últimos dez anos sem nenhuma racionalidade econômica ou social, cuja estimativa

para o exercício financeiro é R$ 284,8 bilhões, o que equivale a 4,19% do PIB. Se for considerada a

perda no que tange à arrecadação global do Governo Federal, chega-se a 21,32%.

A rigor, nada disso tem relevância no âmbito da EC n. 95 (BRASIL, 2016), uma vez que o

problema se origina na execução orçamentária da despesa primária, e não menos importante é o fato

de que as despesas primárias são predominantemente fixas, restringindo as possibilidades de ajustes

fiscais por meio de cortes daquelas despesas, com vistas a gerar algum excedente fiscal. O caminho,

portanto, é reduzir os “interstícios” que ampliavam a discricionariedade, no sentido de manejar os

instrumentos fiscais (aumentos das despesas de pessoal, renúncias fiscais, endividamento, restos a

pagar etc.).

Visto assim, pode-se inferir que o Regime Fiscal Brasileiro se tornou incompatível com a

ampliação das ações do Estado, especialmente aquelas que garantem a expansão dos gastos

assistenciais. Houve significativa expansão dos gastos sociais desde 2003, acompanhada por

expansão ainda maior das receitas, pelo menos até 2010. Se as receitas permanecessem em

ascensão, sancionando os aumentos das despesas primárias, estas poderiam se expandir o quanto

fosse necessário, desde que os credores do Estado se sentissem suficientemente seguros com os

excedentes fiscais gerados através do superávit. Na verdade, a natureza do Regime Fiscal Brasileiro

é garantir excedente fiscal para manter a sustentabilidade intertemporal da dívida pública.

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Isto, inclusive, pode ser corroborado pela leitura da Exposição de Motivos da PEC 241,

encaminhada ao Congresso Nacional quando a “equipe econômica” (quadros técnicos do Ministério

da Fazenda e do Planejamento) argumentava a respeito da necessidade de se buscar e de se manter o

equilíbrio das contas públicas como condição imprescindível para aumentar a “previsibilidade

macroeconômica” e “fortalecer a confiança dos agentes”. Tudo isto abrirá espaço para modificar os

parâmetros que determinam a formação das taxas de juros da economia brasileira, afinal, os

elevados prêmios de riscos exigidos pelo mercado são causados pelos desequilíbrios fiscais. A

conclusão é demasiadamente óbvia: se os desequilíbrios fiscais deixarem de existir não há porque

exigir prêmios elevados, pois, haverá “redução estrutural das taxas de juros”. Para que não ocorram

dúvidas quanto às benesses que a EC n. 95 (BRASIL, 2016) poderá trazer para a política monetária,

vale citar as expectativas dos gestores da política econômica:

Certamente a contenção do crescimento do gasto primário, em uma perspectiva de

médio prazo, abrirá espaço para a redução das taxas de juros, seja porque a política

monetária não precisará ser tão restritiva, seja porque cairá o risco de insolvência

do setor público. Juros menores terão impacto sobre o déficit nominal

(representado pela soma do déficit primário com as despesas financeiras) e sobre a

trajetória da dívida bruta (BRASIL, 2016b, p. 8).

Nota-se, portanto, que EC 95 mantém e aprofunda a lógica financeira que é intrínseca ao

Regime Fiscal Brasileiro, uma vez que o objetivo da política fiscal é manter o equilíbrio das contas

públicas com vistas a garantir que as metas e os objetivos da política monetária sejam alcançados

com o menor ônus possível. É por isso que a política fiscal se constitui como “âncora” da

estabilidade monetária. Sua função precípua é a geração de excedente fiscal no montante exigido

pela lógica monetária, independente dos meios usados para manter a confiança dos agentes

econômicos de que o Estado é capaz de financiar os serviços da dívida pública sem emissão de

moeda, preservando assim a estabilidade monetária. Neste caso, o problema não é a dívida pública

em si, mas a capacidade do Estado em financiá-la, até porque se o excedente fiscal crescer em

magnitude compatível com as despesas financeiras não há porque se falar em desequilíbrio fiscal.

Daí pode-se inferir que todo o espectro que envolve a condução da política econômica ganha

contornos que em nada se relacionam com as carências sociais ou com as necessidades de aumentar

os níveis de investimento para ampliar o emprego e a renda. O argumento parte de bases ortodoxas,

pois supõe que o equilíbrio fiscal é per si o meio para alcançar a estabilidade, utilizando-se como

premissa o mercado autorregulado. A única exigência social ao Estado é que ele cumpra suas

funções precípuas sem afetar a lógica privada. É assim, portanto, que os malefícios gerados pelo

desequilíbrio fiscal afetam as expectativas dos agentes econômicos que, por sua vez, reduzem os

investimentos. Os argumentos arrolados acima foram quesitos, dentre vários outros, para justificar a

EC 95. Vejamos, então, o que diz o texto:

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Note-se que, entre as consequências desse desarranjo fiscal, destacam-se os elevados

prêmios de risco, a perda de confiança dos agentes econômicos e as altas taxas de juros,

que, por sua vez, deprimem os investimentos e comprometeram a capacidade de

crescimento e geração de empregos da economia. Dessa forma, ações para dar

sustentabilidade às despesas públicas não são um fim em si mesmas, mas o único

caminho para a recuperação da confiança, que se traduzirá na volta do crescimento

(BRASIL, 2016b, p. 4, grifo nosso).

Logo, é possível se pensar que a perspectiva da equipe econômica em relação aos

investimentos públicos seja pouco relevante para o crescimento econômico. Tanto é assim que as

despesas de capital (investimentos) possuem as mesmas regras que as demais despesas primárias,

estabelecidas no âmbito da EC 95. Deste modo, pode-se inferir que o caráter discricionário dos

investimentos associado à rigidez das demais despesas primárias fará com que a necessidade de

ajustes, durante a execução orçamentária da despesa, seja suportada, em grande medida, pelo

contingenciamento dos investimentos. Assim, o investimento público enquanto instrumento

ordinário perde relevância no sentido de mitigar as flutuações do investimento privado6.

A condução da política fiscal sob a égide do “Novo Regime Fiscal” perde definitivamente a

capacidade de influenciar o sistema econômico e social, especialmente do ponto de vista do gasto,

pois, de um lado, praticamente bloqueia a possibilidade do gasto público em mitigar as flutuações

da demanda agregada via investimento público (que, diga-se de passagem, são intrínsecas ao

sistema capitalista) e, de outro, limita o escopo das políticas públicas no sentido de prover os

serviços públicos de recursos (humanos e materiais) com vistas a arrefecer as carências sociais,

assim como perde força os instrumentos de política fiscal usado para atenuar a arbitrária e desigual

distribuição de renda e riqueza. É provável que neste contexto ocorram profundas mudanças no

modus operandi do Estado Brasileiro. Isto é o que doravante vamos procurar demonstrar.

3. EC Nº: 95 E O MODUS OPERANDI DO ESTADO BRASILEIRO.

As regras estabelecidas no âmbito do “Novo Regime Fiscal” simplesmente padronizam o

modus operandi do Estado Brasileiro para os próximos vinte anos, impedindo que os instrumentos

de natureza fiscal, particularmente o gasto público, possam ser mobilizados para objetivos distintos,

eventualmente relacionados aos ciclos econômicos. É o caso, por exemplo, das políticas fiscais

expansionistas nos momentos de descenso da atividade econômica, ou mesmo, por orientações

estratégicas estabelecidas em função de algum projeto político (Programa de Governo). Assim, o

arcabouço institucional do Regime Fiscal Brasileiro que preservava alguma discricionariedade ao

gestor público é brutalmente restringido, deixando pouco ou nenhum espaço às escolhas políticas.

6 Nessa perspectiva, Keynes (1996, p. 117) destaca “[...] que as modificações eventuais da política fiscal tenham, pelo menos nas

expectativas, maior influência que a própria taxa de juros”. Igualmente afirma que a política fiscal pode influenciar na distribuição de

renda, com efeitos positivos na propensão a consumir. Diante do exposto, pode-se concluir que “[...] a propensão a consumir e o

nível do novo investimento é que determinam, conjuntamente, o nível de emprego, e é este que, certamente, determina o nível de

salários reais – não o inverso” (Ibidem, p. 64).

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Mas, para além dos quesitos arrolados no parágrafo acima é evidente que acontecimentos

imprevisíveis poderão gerar gastos públicos que sejam superiores aos limites fixados no orçamento

da União. Isto ocorre, a rigor, em diversos segmentos. A agricultura poderá exigir gastos que

excedem àqueles fixados pela correção do IPCA, uma vez que as vicissitudes climáticas (excesso de

secas ou chuvas, pragas, etc.) poderão exigir outros valores para mitigar os impactos econômicos e

sociais, os quais não estarão provisionados no orçamento fiscal, afinal, não poderão ser previstos e,

mesmo se pudessem, não faria diferença alguma, pois a regra fiscal é rígida. É bem verdade que em

situações excepcionais (caso de guerra, comoção interna ou calamidade pública) que exijam a

abertura de crédito extraordinário não haverá inclusão destes gastos na base de cálculo e nos limites

estabelecidos (ART. 102, § 6º, II)7.

O sentido da argumentação é que a vinculação das despesas primárias ao comportamento do

IPCA é insuficiente para atender as demandas do conjunto da sociedade, pois, de um lado, os

serviços públicos atualmente prestados a população são escassos para atender as necessidades, que

se relacionam aos quesitos mínimos para a manutenção da vida humana. De outro lado, o próprio

processo de acumulação de capital exige a expansão das atividades do Estado em setores de

infraestrutura física (rodovias, aeroportos, ferrovias, etc.), financiamento de pesquisas, aparato

militar e tantas outras atividades que são exclusivas do próprio Estado (arrecadação tributária,

regramento das normas sanitárias e trânsito, atividades de fiscalização, etc.), as quais exigem o

crescimento das bases fiscais pari passu às complexidades do sistema econômico e social. Isso

explica, dentre outros aspectos, o avanço histórico das despesas públicas, não somente no Brasil,

mas nas economias capitalistas de forma geral. O período recente é bastante emblemático, entre

1998 e 2015, as despesas totais do Estado brasileiro aumentaram em 771,4%, enquanto o IPCA

acumulado em igual período foi de 213,3%. Visto assim pode até parecer que os déficits públicos

foram crescentes, o que não é verdade, pois, as receitas totais cresceram em patamares semelhantes

às despesas, ou seja, 684,7%.

Enfim, considerar o IPCA como métrica às ações do Estado brasileiro é algo absurdo, ainda

mais se levarmos em conta que o prazo para esta excrecência é de vinte anos. Os efeitos desta regra

fiscal, em médio e longo-prazo, irão reduzir fortemente as ações do Estado, bastando imaginar os

efeitos sociais no período recente se as despesas públicas tivessem seguido as variações do IPCA.

Não há dúvida que a oferta de serviços públicos seria menor ou que os investimentos em

infraestrutura física ficariam aquém do necessário.

Para se ter ideia, se as regras fixadas pela EC n. 95 (BRASIL, 2016) tivessem sido

estabelecidas em 2002, o cenário social seria muito distinto do atual (que já não é dos melhores). A

7 A título de exemplo, em 2015, os créditos extraordinários no âmbito do orçamento da União somaram R$ 9,468 bilhões.

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Tabela 1 mostra que as despesas de educação e saúde, entre 2002 e 2015, seriam reduzidas em R$

389,2 bilhões e R$ 306,3 bilhões, respectivamente.

Tabela 1. Despesas realizadas e pela regra da PEC n. 241(55)/2016 –

educação e saúde de 2002 a 2015 – valores reais de dez./2015

Ano

Educação Saúde

Despesas

Realizadas

(R$ bi)

Regra PEC

n.

241(55)/16

Diferença

Educação

(R$ bi)

Despesas

Realizadas

(R$ bi)

Regra PEC

n.

241(55)/16

Diferença

Saúde

(R$ bi)

2002 30,8 30,8 0,0 59,3 59,3 0,0

2003 30,1 31,4 -1,4 57,4 60,5 -3,1

2004 28,4 31,8 -3,4 64,4 61,1 3,3

2005 29,8 32,2 -2,4 67,2 62,0 5,2

2006 35,1 33,0 2,1 72,4 63,5 8,9

2007 41,5 32,5 9,0 77,9 62,5 15,4

2008 45,3 32,0 13,4 80,4 61,5 18,9

2009 56,3 32,4 23,9 89,2 62,3 26,9

2010 70,0 31,8 38,2 89,3 61,1 28,2

2011 78,9 31,5 47,4 97,5 60,5 37,0

2012 92,3 31,6 60,7 101,6 60,7 40,9

2013 98,4 31,4 67,0 102 60,5 41,5

2014 10,1 31,2 74,0 105,3 59,9 45,4

2015 90,3 29,6 60,7 94,6 57,0 37,6

Total 832,3 443,1 389,2 1158,6 852,4 306,2

Fonte: DIEESE (2016, p. 10).

Ademais, é preciso reconhecer que a dinâmica de crescimento seria algo distinta da que

efetivamente aconteceu, afinal o circulo virtuoso do crescimento econômico brasileiro no período

recente passou necessariamente pelas ações do Estado, ainda que nem todas tenham sido bem

sucedidas. Numa palavra, não é apenas o Estado que seria menor, mas a própria acumulação de

capital seria afetada em toda sua extensão.

Não se pode argumentar também que a expansão das despesas ganhou “vida própria”, no

sentido que se desvinculou do comportamento das receitas públicas e, portanto, desencadeou uma

trajetória explosiva do déficit público. Isto, a rigor, é uma tese falaciosa, podendo ser rechaçada por

diversas dimensões. A primeira é que o déficit primário é pontual e se relaciona, em grande medida,

ao baixo nível de atividade econômica e as excessivas desonerações fiscais concedidas nos últimos

dez anos, podendo ser revertido, por exemplo, por meio da redução das desonerações fiscais e com

a retomada do crescimento econômico, cujo ímpeto dependerá inclusive dos possíveis estímulos da

política econômica.

Da mesma forma, não se pode excluir a possibilidade de aumentar a carga tributária, até

porque o problema não é de volume, mas de distribuição desigual (regressividade tributária) do

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ônus que historicamente é suportado pelo “andar de baixo”. Há, portanto, espaços que podem ser

explorados pelo fisco que em nada afetam as condições de competitividade do setor produtivo e

muito menos o consumo de massas, como acontece no caso das rendas geradas nos mercados

financeiros.

O segundo aspecto é que o déficit público é visto quase sempre pelo lado primário que, a

rigor, representa apenas uma pequena fração dos desequilíbrios fiscais, mesmo que seja tratado pelo

Governo Federal como se fosse o mais relevante e, desse modo, induzindo à crença de que o

problema fiscal é função dos excessos de gastos do setor público, sem perceber que há necessidade

de considerar os gastos financeiros. Na verdade, quando se analisa o déficit no sentido mais amplo,

ou seja, na perspectiva do resultado nominal que é o que de fato interessa, pois capta a dinâmica de

todas as despesas (primárias e financeiras), percebe-se que o problema do déficit se relaciona, em

grande medida, às políticas monetárias e cambiais que, por sua vez, são conduzidas pela lógica do

sistema de metas de inflação e os elevados níveis de reservas internacionais. Tanto num caso quanto

em outro a taxa de juro – SELIC – têm impacto devastador nas contas públicas, seja porque é o

principal indexador dos títulos da dívida pública, seja porque é um dos indexadores nos contratos de

swap cambais.

A Tabela 2 contribui para destacar que o maior problema do déficit público são os gastos

com juros que, em 2015, foi responsável por mais de 80% do déficit. Dos R$ 613,03 bilhões do

déficit nominal, R$ 501,78 refere-se aos juros nominais, sendo o restante R$ 111,24 bilhões déficit

primário. De acordo com o Banco Central (2015), o expressivo aumento na apropriação dos juros

nominais foi causado pelas elevações da SELIC, variação do IPCA e operações de swap cambial.

Tabela 2: Necessidades de Financiamento do Setor Público

Discriminação 2013 2014 2015

Bilhões (R$) PIB (%) Bilhões (R$) PIB (%) Bilhões (R$) PIB (%)

Nominal 157,55 3,0 343,91 6,0 613,03 10,8

Governo Central* 110,55 2,1 271,54 4,8 513,89 9,0

Primário -91,3 -1,7 32,53 0,6 111,24 2,0

Governo Central* -75,29 -1,4 20,47 0,4 116,65 2,1

Juros Nominais 248,85 4,7 311,38 5,5 501,78 8,8

Governo Central* 185,84 3,5 251,07 4,4 397,24 7,0

Fonte: Banco Central. Relatório Anual (2015, pág. 61)

* Governo Federal, Banco Central e INSS.

Ora, se o déficit é gerado em maior parte pela apropriação de juros nominais (política

monetária e câmbio) porque, então, a EC 95 preocupa-se apenas com o déficit primário? O

raciocínio é simples, mas de pouca aderência à realidade: o déficit primário afeta o estado de

confiança dos agentes econômicos porque compromete a sustentabilidade intertemporal da dívida

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pública, donde se exige maiores taxas de juros para continuar a financiar o Estado brasileiro. Nesta

perspectiva, a origem dos problemas são os desequilíbrios fiscais, de maneira que a apropriação de

juros nominais é apenas a consequência do desarranjo das contas públicas. É por isso, senão, que a

EC 95 pretende conter o crescimento das despesas primárias.

Negligencia, nesta visão, que o esforço fiscal pode ser inócuo porque o comportamento da

taxa juro assim como do câmbio podem ser afetados por fatores que em nada se relacionam à

economia brasileira, imprimindo assim uma trajetória ascendente do endividamento público. Tanto

é verdade que existe a possibilidade de no fim dos vinte próximos anos (prazo fixado pela EC 95)

todo o esforço fiscal tenha sido anulado em razão do comportamento daquelas variáveis (juros e

câmbio), bastando que eventos aleatórios (não previsíveis), como é o caso, inclusive, das diversas

crises internacionais, modifiquem abruptamente a trajetória das curvas de juros e câmbio na

economia brasileira. É surpreendente, que a despeito da experiência histórica, a maioria dos

analistas suponha que a EC 95 seja condição necessária e suficiente para estabilizar a relação

Dívida/PIB.

Não menos importante, é o fato de que a EC 95 só será factível se ex ante ocorrer os ajustes

necessários nas despesas primárias que estão indexadas por índices cujo comportamento é distinto

do IPCA, é o caso, por exemplo, dos benefícios sociais e previdenciários vinculados ao salário

mínimo (SM), ou ainda, por outros parâmetros de ordem jurídica (regras previdenciárias e seguro

desemprego, por exemplo). Se não bastasse o cenário já mencionado, o volume daquelas despesas é

expressivo. Em 2015, as despesas com a função previdência e assistência somaram R$ 582,7

bilhões, o que representa 60,2% dos gastos em todas as funções (exceto encargos especiais). O

resultado esperado desta equação é que em médio prazo estas despesas terão crescimento, mantidas

as regras atuais, além dos limites do IPCA, de maneira que as demais despesas primárias

necessariamente teriam comportamento aquém do IPCA como forma de compensar o

desbalanceamento das despesas previdenciárias e assistenciais.

Isto ocorre, dentre outros motivos, porque as condições demográficas da população

brasileira (baixa taxa de natalidade e aumento da expectativa de vida) levarão inexoravelmente ao

envelhecimento da população, exigindo o incremento das despesas previdenciárias, se mantidas as

regras atuais de concessão de aposentadorias e pensões, para além das demais despesas primárias.

Assim, destacamos, novamente, que o resultado óbvio é que a tendência das despesas

previdenciárias seja de crescer para além do IPCA, visto que as demais despesas primárias deverão

ter crescimento inferior à variação da inflação, compensando assim as variações nas despesas

previdenciárias induzidas pelos dispositivos constitucionais.

Neste sentido, é importante mencionar que parte expressiva das despesas previdenciárias e

assistenciais tem regras de correção baseada no SM, que, por sua vez, é determinado em acordo

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com a Lei Nº 13.152, de 29 de Julho de 2015, que dispõe sobre a política de valorização do salário-

mínimo e dos benefícios pagos pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS) para o período de

2016 a 2019. De acordo com aquela Lei, as correções do SM corresponderão à variação do Índice

Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) acrescidos à taxa de crescimento real do Produto Interno

Bruto (PIB). Daí emerge a primeira contradição, pois, as regras de reajuste do SM são

incompatíveis com os parâmetros fixados no “Novo Regime Fiscal”, especialmente, se

considerarmos que as despesas previdenciárias e assistenciais são as maiores no conjunto da

despesa primária. Isto apenas corrobora o entendimento de que o crescimento das despesas

previdenciárias e assistenciais deverão se efetivar pari passu à redução das demais despesas

primárias.

É bem verdade, entretanto, que o comportamento do PIB no interregno 2014 a 2017 não

implicará em ganhos reais do SM, de maneira que se poderia esperar que os resultados das contas

da previdência social, ao menos nesse quesito, estariam em convergência com os parâmetros

fixados na EC 958. Mas, o que efetivamente desejamos chamar atenção é para o fato de que

qualquer proposta de valorização do SM é incompatível com a EC 95, sendo provável que os

parâmetros de correção do SM a partir de 2020, no máximo, garantirão a reposição das perdas

inflacionárias, jamais ganhos reais.

Por dedução, é possível esperar a desvinculação dos benefícios assistenciais9 do SM, o que

implica em modificar novamente a Constituição Federal, precisamente o ART. 203, inciso V, que

estabelece “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência

e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida

por sua família”. Inclusive, o argumento de modificar os “critérios de concessão” e “manutenção”

aparece explicitamente no PLOA 2017 (Anexo V: Riscos Fiscais), eis o que se lê: “projeções

conservadoras mostram que o envelhecimento e a longevidade deverão, sozinhos, elevar os gastos

com o BPC para R$ 63,2 bilhões em 2020, o que sugere a necessidade de se revisar os critérios de

concessão e de manutenção do benefício”.

Na verdade, os quesitos que expomos nos parágrafos anteriores serão necessariamente

arrolados no âmbito da reforma da previdência, cujo objetivo é simplesmente viabilizar a EC 95

enquanto perspectiva de longo prazo, afinal não se pode conceber que a maior despesa primária

(previdência e assistência) aumente sistematicamente para além dos parâmetros fixados no “Novo

Regime Fiscal”. Neste cenário, a pressão para reduzir as demais despesas primárias seria de tal

ordem que poderia inviabilizar inclusive a prestação de diversos serviços públicos, simplesmente

8 De acordo, com Boletim Focus (04/11/16) a perspectiva de crescimento em 2016 é de -3,31% e, em 2017, 1,20%, e considerando

que o PIB de 2014 foi de 0,1% e 2015 de -3,8%, dada as regras atuais do SM, não haverá ganhos reais até 2018, o que é compatível

com as regras da EC 95. A partir daí, as regras serão cada vez mais divergentes, se o PIB permanecer em ascensão. 9 O benefício assistencial de maior amplitude é o BPC (Benefício de Prestação Continuada) que, em 2015, atendeu 4,5 milhões de

idosos (com mais de 65 anos) e pessoas com deficiências, sendo o gasto R$ 39,6 bilhões.

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pela necessidade de direcionar parcelas cada vez maiores para as despesas previdenciárias e

assistenciais. Daí emerge o forte ímpeto do Governo Federal em convencer a sociedade da

necessidade de aprovar a reforma da previdência.

Mas, os problemas que a EC 95 vai gerar no âmbito da execução orçamentário-financeiro

não se restringem apenas às despesas previdenciárias, embora reconheçamos que é a mais

importante. Isto ocorre porque as mudanças na estrutura demográfica deverão pressionar os serviços

relacionados à saúde, particularmente, no que diz respeito às doenças crônicas (Alzheimer, diabetes,

hipertensão, etc.) que são comuns na população idosa, exigindo aporte de recursos públicos

superiores à variação da inflação. Aliás, isto pode ocorrer simplesmente por motivos inesperados,

como nos casos em que as doenças endêmicas (dengue e febre amarela, por exemplo) exigiram

maiores gastos da União. Na verdade, nada impede que os gastos em saúde ocorram em patamares

superiores à variação da inflação, desde que as demais despesas primárias reduzam em magnitude

igual ou superior às despesas de saúde, mantendo assim as exigências fixadas no ART. 102.

Visto assim, pode-se sugerir que as despesas previdenciárias (induzidas pelos dispositivos

constitucionais) e saúde (induzidas pela estrutura demográfica) terão prevalência em relação às

demais despesas primárias, donde se pode inferir que os demais gastos (pessoal, investimentos em

infraestrutura básica, cultura, pesquisa científica, educação, etc.) deverão suportar os ajustes sem

precedentes para fazer valer as regras fixadas no “Novo Regime Fiscal”. Pode-se até admitir que

ganhos de produtividade e melhor uso dos recursos públicos possam atenuar por algum tempo as

restrições orçamentárias e dar fôlego à manutenção dos serviços públicos, mas é improvável que

aqueles ganhos sejam compatíveis com as crescentes demandas sociais, dado que o prazo de

vigência da EC 95 é de vinte anos.

Não se pode perder de vista que quando nos referimos às demandas sociais não se trata

apenas daquelas relacionadas aos serviços oferecidos pelo Poder Executivo, mas também ao Poder

Judiciário que deverá subordinar-se aos limites fixados no ART. 102, § 1º, I, cujas repercussões no

médio-prazo irão inevitavelmente afetar o funcionamento da justiça. Na verdade, a Procuradoria

Geral da República, por meio da Secretaria de Relações Institucionais, publicou uma Nota Técnica

afirmando exatamente o que acabamos de expor. Eis as ponderações:

A EC 95 institui o “Novo Regime Fiscal” pelos próximos vinte anos, prazo longo o

suficiente para limitar, prejudicar, enfraquecer o desempenho do Poder Judiciário e

demais instituições do Sistema de Justiça (Funções Essenciais à Justiça, como o Ministério

Público e as Defensorias Públicas) – e nesse alcance, diminuir a atuação estatal no

combate às demandas de que necessita a sociedade, entre as quais: o combate à corrupção;

o combate ao crime; a atuação na tutela coletiva, a defesa do interesse público. A

limitação, o prejuízo, o enfraquecimento do desempenho do Poder Judiciário e demais

instituições do Sistema de Justiça (Funções Essenciais à Justiça, como o Ministério Público

e as Defensorias Públicas) é visível nesse sentido consiste a afronta a sua autonomia. A

título de destaque, considerando o teor da EC 95, o Sistema de Justiça suportará, pelos

próximos vinte anos, importante diminuição, pois estará impedido de: ampliar sua

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estrutura; promover despesas com investimentos destinados às atividades de combate à

corrupção; nomear novos membros e servidores (em virtude do comprometimento de

projetos de lei de criação de cargos); promover os reajustes das despesas com pessoal e

encargos sociais dos agentes públicos, estabelecidos em lei ou projeto de lei acordados com

o Poder Executivo (em especial para os exercícios de 2016 a 2019); efetuar despesas com

inativos e pensionistas, entre outros aspectos (NOTA TÉCNICA PGR/SRI Nº 82/2016,

grifos no original).

No caso do Judiciário, os problemas causados pelo no “Novo Regime Fiscal” poderão ter

efeitos logo em curto-prazo, pois em a Lei Nº 13.317, de 20 de Julho de 2016, garantiu aumento nas

remunerações dos servidores daquele Poder que estão além dos limites fixados na EC 95. Em 2017,

por exemplo, os aumentos autorizados são de 13% (ART. 2º, IV e V), lembrando que a previsão

para correção do orçamento fiscal de 2017 foi de 7,2%. Por sua vez, em 2018 e 2019, os aumentos

nas remunerações são de 17% e 12% (ART. 2º, VI, VII e VIII), respectivamente, o IPCA esperado

para igual período é de 4,5%. Mas, o aumento dos gastos não para por aí, pois, no ART. 3º da

mesma Lei estabeleceu que a Gratificação Judiciária (GAJ) que atualmente é de 97% alcançará em

01º de Janeiro de 2016 140%.

Observa-se, portanto, que os indexadores que servirão para a correção das remunerações

estão distantes do IPCA. Não se pode esquecer que no caso do Poder Judiciário a maior parte das

despesas é de pessoal, tendo pouca ou nenhuma margem para compensar aquele desbalanceamento.

Na verdade, é quase impossível compatibilizar os aumentos previstos na Lei Nº 13.317 com as

regras fixadas na EC 95 (ART. 102, § 1º, I e II). Tanto é verdade que o ART. 102, § 7º a § 9º já se

estabeleceu a possibilidade, nos três primeiros exercícios financeiros da vigência do Novo Regime

Fiscal, o Poder Executivo poderá compensar com redução equivalente na sua despesa primária, o

excesso de despesas primárias do Poder Judiciário, desde que não exceda a 0,25% (vinte e cinco

centésimos por cento) do limite do Poder Executivo, considerando as estimativas preliminares deve

ser algo em torno de R$ 3,29 bilhões.

O propósito até aqui foi demonstrar que a EC 95 deveria ser o fim e, nunca o início, de um

amplo ciclo de discussões e ajustes no sentido de adequar os gastos públicos às disponibilidades

financeiras que, necessariamente, não deveriam ocorrer de imediato, permitindo assim algum lapso

temporal para estabilizar o ciclo econômico com o objetivo de recuperar as receitas públicas. Da

mesma forma, haveria mais tempo para adequar os indexadores previstos em alguns programas no

âmbito do orçamento público federal (previdência e assistência social, conforme exposto acima) às

regras estabelecidas no “Novo Regime Fiscal”. Aliás, argumentamos mostrando diversos exemplos

(Poder Judiciário e Saúde) que as divergências entre as regras próprias estabelecidas no âmbito do

orçamento federal e o IPCA previsto na EC 95 não são tão raras como se imagina.

Todavia, os dispositivos da EC 95 apenas pontualmente abordaram estas questões, sendo

deslocadas para as discussões que deverão ocorrer, de acordo com o Governo Federal, no âmbito da

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“reforma da previdência”. Na verdade, a intenção do Governo é percorrer os caminhos de menor

resistência e ciente de que com a aprovação da EC 95 não haverá alternativa senão aprovar

mudanças não só na previdência social, mas também em despesas que têm regras de correção

opostas às determinadas pelo “Novo Regime Fiscal”. Adicionalmente, o Governo Federal sabedor

que a “reforma da previdência” poderia se alongar demasiadamente dado seu caráter impopular,

optou por enviar primeiramente ao Congresso Nacional a EC 95, a despeito das dificuldades de

viabilizá-la em médio-prazo (após três ou quatro anos), se permanecendo as regras divergentes de

correção no orçamento federal. A solução do governo para esse problema é pragmática:

[...] a despesa primária do Governo Federal tem componentes que, além de representarem

parcela elevada da despesa total, têm seu crescimento regido por regras próprias, e que não

poderão crescer automaticamente pela variação da inflação do exercício anterior. Este é o

caso típico da Previdência Social. Por isso, a PEC está sendo proposta em conjunto com

uma reforma na Previdência, já em discussão, e que será enviada ao Congresso Nacional

ainda em 2016. Além dessa reforma, diversas medidas de perícia e análise cadastral estão

sendo postas em prática para avaliar o estoque de benefícios hoje pagos pela Previdência,

tais como o auxílio doença, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a aposentadoria

por invalidez e o seguro desemprego na modalidade seguro defeso. A revisão desses

benefícios e racionalização de seus critérios de concessão proporcionarão economias de

dezenas de bilhões de reais, ajudando a conter o gasto, enquanto os efeitos da reforma

previdenciária não vigoraram plenamente. Diversos outros programas públicos precisarão

passar por reavaliação ao longo dos próximos anos, sendo objeto de reformas que serão

suficientes para manter a despesa dentro do limite fixado pela PEC (MINISTÉRIO DA

FAZENDA, 2016, p. 13)

Não é difícil constatar, então, que o sucesso do “Novo Regime Fiscal” depende de um amplo

rol de mudanças, especialmente aquelas de natureza Constitucional. De qualquer forma, as

premissas estabelecidas nos diversos dispositivos da EC 95 supõe que as regras que guiaram o gasto

público federal são convergentes, o que, a rigor, não é verdade, exceto se no futuro todas aquelas

mudanças previstas pelo Governo Federal forem efetivadas. Negligencia-se, desta maneira, os

desbalanceamentos dos indexadores definidos por legislações pretéritas e as demandas da sociedade

por serviços públicos, mantendo-os em ascensão superior às regras de correção fixadas na EC 95.

Os argumentos ora expostos são per se suficientes para evidenciar que a elaboração da

proposta orçamentária nos próximos exercícios desencadeara fortes conflitos entre os diversos

segmentos sociais e econômicos, afinal as despesas primárias serão definidas em junho do exercício

anterior, não sendo possível ajustá-las, como se fazia no passado, através de receitas “fictícias”. Se

é que há algum benefício neste contexto é que o orçamento aprovado pelo Congresso Nacional

estará próximo daquele executado pelo Poder Executivo, havendo, portanto, hierarquia de

prioridades.

Visto assim, pode-se esperar que as políticas públicas gradativamente vão perdendo espaço

no âmbito do sistema econômico e, da mesma forma, a capacidade do Estado de intervir na

dinâmica capitalista ficará restrita, senão bloqueada, pois a EC 95 esvazia as possibilidades de

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manejar os instrumentos fiscais com vistas a modificar as expectativas dos agentes econômicos no

sentido de incrementar os investimentos privados para ampliar os níveis de emprego e renda e, por

consequente, o crescimento econômico. Neste sentido, é necessário rechaçar com veemência a ideia

de que a EC 95 seja condição suficiente para modificar as expectativas dos agentes econômicos.

Isto, a rigor, é uma ideia absolutamente falsa e inadequada à dinâmica capitalista, pois para o

empresário a redução da dívida pública em nada afeta suas decisões investimentos, a qual depende

fundamentalmente dos lucros esperados.

É bem verdade que poderíamos sugerir que a EC 95, de forma indireta, via redução da

dívida pública, reduza os juros da economia brasileira com efeitos virtuosos sobre o investimento

privado. Isto ocorreria porque esta “reduzirá o risco-país e, assim, abrirá espaço para redução

estrutural das taxas de juros”. A rigor, há dois equívocos nessa hipótese: primeiro, as taxas de juros

no Brasil não se movem apenas pela dinâmica da dívida pública, mas especialmente pelas

necessidades de convergir a taxa de inflação à meta fixada pela política monetária, de modo que

choques de oferta podem obrigar o Banco Central a aumentar as taxas de juros à revelia das demais

variáveis macroeconômicas que, diga-se de passagem, é algo comum na economia brasileira. O

segundo aspecto é que a formação das taxas de juros no Brasil, dentre outros aspectos, depende das

condições de liquidez do mercado internacional.

A única e possível expectativa que a EC 95 modificará é aquela dos credores da dívida

pública, afinal quase todo aumento da receita real, durante vinte anos, será alocado

compulsoriamente para fins de pagamento de juros e amortizações da dívida. Isto equivale a dizer

que o estoque de riqueza gerado ao longo do tempo será, ao menos em parte, apropriado pelo

Estado brasileiro e terá como destino exclusivo alimentar a riqueza financeira, a qual se concentra

nas mãos de uma pequena parcela da população. De modo contrário, os enormes contingentes

populacionais que dependem dos serviços públicos terão que se contentar com a “reprodução

simples”, ou seja, a disponibilidade dos serviços públicos será exatamente igual do período anterior,

podendo também ser inferior desde que ocorra perda de dotação orçamentária em favor de outros

serviços. Entretanto, visto no conjunto os serviços públicos nunca poderão ser superiores ao período

anterior, pois tal possibilidade é contrária aos dispositivos da EC 95.

Se houvesse uma sociedade em que os serviços públicos fossem estruturados e as demandas

sociais estivessem satisfeitas com a disponibilidade daqueles serviços, assim como não houvesse

grande problemas na distribuição da renda e da riqueza, possivelmente os impactos desencadeados

pela EC 95 não seriam tão agudos. Mas, o contexto da sociedade brasileira é diametralmente oposto

ao cenário descrito acima e, se considerarmos, ainda, que os mecanismos de mercado serão

insuficientes para atender as demandas sociais, não por causa da escassez de recursos, mas pelo

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baixo de nível de renda da população brasileira, pode-se esperar, então, que as classes dependentes

da assistência do Estado serão as mais atingidas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O propósito deste artigo foi demonstrar que a EC 95 pouco ou nada se relaciona com as

desigualdades sociais, pois trata todas as despesas públicas de forma horizontal, como se a escassez

de recursos públicos tivesse que ser suportada de forma simétrica por todos os cidadãos,

negligenciando que numa sociedade historicamente desigual a vida de parcela considerável da

população depende das transferências de renda do Estado. Da mesma forma, não distingue despesas

correntes e de capital (investimento) como se os efeitos macroeconômicos fossem exatamente os

mesmos nas duas modalidades. Nesta visão, não temos dúvida em afirmar que o diagnóstico da EC

95 é fundamentalista e ortodoxo, pois vê a despesa pública (qualquer que seja ela) como a origem

de todos os males, o pecado original. É, por isso que deverá ser controlada à semelhança do remédio

que cura o doente, mas que também o mata.

Não há argumentação plausível que dê conta de explicar o fato de um país com enormes

desigualdades sociais e com uma infraestrutura física deficiente não alocar, ao menos em parte, a

riqueza gerada no processo produtivo para mitigar as deformidades sociais e econômicas. Isto é

contrário à noção de desenvolvimento econômico e de justiça social, pois, de um lado, bloqueia a

capacidade do Estado de promover e estimular a acumulação de capital e, de outro, enfraquece as

políticas públicas que no período recente tiveram papel imprescindível na redução das

desigualdades. O fato é que se há alguma solução para os desequilíbrios fiscais no âmbito da EC 95

ela favorecerá aqueles que vivem de renda (conhecidos como “rentistas”), credores da dívida

pública.

Além disso, não se pode perder de vista, conforme destacamos, que a natureza da dívida

pública brasileira é quase que exclusivamente financeira, tendo fraca relação com os déficits

primários. Afinal de contas, a dívida pública no Brasil apenas excepcionalmente foi usada para

financiar as políticas públicas e o investimento, mas, por outro lado, acomodou sem restrições os

excessos da política monetária e cambial. Portanto, cabe perguntar: se a dívida pública tem

natureza eminentemente financeira que sentido faz, então, destinar nos próximos vinte anos todo o

aumento da receita pública em favor dos credores da dívida pública? Que sentido faz, do ponto de

vista da dinâmica capitalista, que as frações de classe que detêm maior parte do estoque de riqueza

se beneficiem (exclusivamente) do crescimento econômico? Será que a estabilidade monetária deve

se sobrepor à estabilidade social?

As perspectivas diante deste cenário são de deterioração dos serviços públicos, assim como

enfraquecimento das instituições do aparelho estatal (justiça, segurança pública, pesquisa e ensino

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superior, etc.), o que, no limite, poderá caminhar para uma crise de legitimidade do próprio Estado.

Isto poderá acelerar se o baixo dinamismo da atividade econômica afetar a geração de renda e

emprego, o que será potencializado pelas restrições dos gastos públicos imposto pelo EC 95. Trata-

se de reconhecer, portanto, que a EC 95 construirá não apenas um novo modus operandi do Estado

brasileiro, mas também um novo padrão de desenvolvimento econômico e social que

definitivamente se afastará de uma sociedade mais justa e igualitária.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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