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NA REGIÃO DA MATA ATLÂNTICA, A MAIS POPULOSA DO BRASIL, CENTENAS DE RIOS VÃO PERDENDO VIDA E, ASSIM, DESENHANDO UM FUTURO SECO PARA SEUS MORADORES. MAS AINDA HÁ TEMPO PARA REVERTER ESSA REALIDADE TEXTO NATÁLIA MARTINO Estão tirando a água das nossas matas A Represa Billings é uma das maiores fontes de água da capital paulista. Às suas margens, a intensa ocupação prejudica a qualidade da água CASSIO VASCONCELOS/SAMBAPHOTO MATA ATLÂNTICA >

Estão tirando a água das nossas matas

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NA REGIÃO DA MATA ATLÂNTICA, A MAIS POPULOSA DO BRASIL, CENTENAS DE RIOS VÃO PERDENDO VIDA E, ASSIM, DESENHANDO UM FUTURO SECO PARA SEUS MORADORES. MAS AINDA HÁ TEMPO PARA REVERTER ESSA REALIDADETEXTO NATÁLIA MARTINO

Estão tirando a água das nossas matasA Represa Billings é uma das maiores fontes de água da capital paulista. Às suas margens, a intensa ocupação prejudica a qualidade da água

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A caminhonete é velha, o que fica evidente nos trincos improvisados e na lataria desgastada. Mas seu tamanho e a placa de “resgate” que ele sustenta à frente dão credibilidade ao veículo. Com a força da

tração nas quatro rodas, avança por uma estrada de terra esburacada que corta a paisagem verde, salpicada aqui e ali por flores e frutos coloridos. O caminho mais parece um túnel no meio da Mata Atlântica e é difícil acreditar que ainda estamos dentro dos limites de São Paulo, com seus quase 12 milhões de habitantes.

No extremo sul da cidade, o caminho leva à Fazenda Nossa Senhora da Piedade. Dentro dessa propriedade particular, cuidadosamente preservada pelo delegado civil aposentado Eduardo de Mello, se encontram 42 nascentes d’água. No fim do percurso, os pequenos riachos caem na Represa de Guarapiranga, um dos principais mananciais de água da Região Metropolitana de São Paulo.

No caminho entre o centro da metrópole e sua fazenda de quase 300 hectares de Mata Atlântica preservada, Mello vai mostrando o quanto tudo mudou por ali nas cinco décadas em que tem frequentado a região. “Esse bairro aqui não existia”, diz ao passar pelo Nova Amé­rica. “Ali onde é o campo de futebol era parte da represa há 15 anos – as crianças corriam por aqui e se jogavam na água”, afirma, apontando para o gramado. Ao fundo, alguns quilômetros depois do campo improvisado, a represa mostra a sua cara.

Alheios a tudo isso, os moradores do bairro Nova América passam de um lado para o outro. Muitos perceberam o recuo da represa, como é o caso de Anália Rodrigues Silva, que chegou por ali há 17 anos e foi uma das primeiras morado­ras do bairro. O que ela não sabe é que a água da Guarapiranga, que lhe parece inesgotável, é pouca para abastecer a metrópole que não para de crescer. “Não vai faltar água em São Paulo. A represa diminuiu demais nesses anos, mas ainda tem muita água”, diz.

Bom seria se fosse assim. Mas não é. A es­cassez iminente de água já é um consenso, como explica o presidente e pesquisador do Instituto Internacional de Ecologia (IIE), José Galizia Tundisi, um dos maiores especialistas em recursos hídricos do país. “Estamos pesquisando o tamanho desse estresse hídrico e não a existência dele. Isso já está certo”, diz. E não se trata de um problema exclusivo da maior cidade brasileira, mas, sim, de todo o território nacional e, em especial, da zona costeira originalmente coberta pela Mata Atlânti­ca. Como resultado de vários processos históricos, esse bioma, que se estende do Rio Grande do Norte ao Rio Grande do Sul, abriga quase 70% da população do país. Dentro do que restou de Mata Atlântica vivem mais de 120 milhões de pessoas.

Risco de apagão hídrico“A alta densidade populacional significa maio­

res demandas por água e sistemas de produção (captação e tratamento) mais complexos. Portan­to, os investimentos necessários para que não falte água para a população são mais robustos nessa área”, explica Sérgio Ayrimoraes, superintendente­adjunto de Planejamento de Recursos Hídricos da ANA (Agência Nacional de Águas). A instituição acaba de finalizar o Atlas de Abastecimento Urbano de Água, que traçou o panorama desse problema e mapeou as cidades que podem sofrer falta de água até 2015, caso não sejam feitos novos investimentos. Os números são surpreendentes: 55% dos municípios brasileiros correm risco de um “apagão hídrico”. Muitos deles na região da Mata Atlântica (veja mapas nas páginas 36 e 37).

A demanda por água em uma área tão populo­sa como essa é, frequentemente, superior à oferta. Enquanto a ONU recomenda que cada pessoa tenha, no mínimo, 1.500 m3 de água disponíveis por ano, o que significa pouco mais de 4 mil litros diários, a Região Metropolitana de São Paulo, sem as transposições, contaria com apenas 200 m3

Eduardo de Mello recebe dinheiro de uma fundação para manter sua propriedade intacta. Nela há 42 nascentes de água

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anuais, ou pouco mais de 500 litros diários. Para se ter uma ideia, escovar os dentes, tomar banho, lavar louças e molhar plantas já consomem, em média, 450 litros diários de água por habitante, segundo a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico de São Paulo). Ou seja, quase tudo que há disponível em São Paulo. E nessa conta não estão incluídos água para beber ou para irrigar as plantações que alimentam a população. O resulta­do é que, para suprir a carência, é preciso buscar água de outra bacia, que, no caso de São Paulo, é a dos rios Piracicaba, Capivari e Jaguari. A água é bombeada dessa bacia até atravessar a Serra da Cantareira e chegar às casas dos paulistanos.

A necessidade de realizar transposições não é privilégio da maior metrópole do país e se repete em outras cidades da região de Mata Atlântica, como o Rio de Janeiro, que conta com as águas do rio Paraíba do Sul, desviadas para o rio Guandu, para o abastecimento de sua população. O volume de água desviado desse rio varia entre 100 e 160 m3/segundo. Para se ter uma ideia, a polêmica proposta de transposição do rio São Francisco su­gere que seja desviado desse curso d’água cerca de 25 m3/s. As consequências desse tipo de obra de engenharia são inúmeras. O pesquisador Tundisi, do IIE, explica que, além de diminuir a oferta de água em uma região e, assim, reduzir suas possi­bilidades de crescimento, essa solução significa transporte de fauna e flora e, ocasionalmente, até de poluição, de um lugar para outro. A mistura

Exemplo que vem do OrienteEle já foi o esgoto de Seul, capital da Coreia do Sul, e símbolo de miséria graças às comunidades pobres que viviam às suas margens (foto à esquerda). Na década de 1970, foi coberto por uma enorme pista que dividiu a cidade de norte a sul e se tornou símbolo do desenvolvimento do país. Mais algumas décadas se passaram e o rio Cheonggyecheon se transformou, junto com a avenida que passava por cima dele, na imagem do modelo equivocado adotado no desenvolvimento da cidade. Sujeira sobre as águas e congestionamentos sobre a rua. O cenário começou a mudar em 2001, quando Lee Myung-bak, atual presidente da Coreia do Sul, foi eleito prefeito da cidade com a promessa de revitalizar o rio. Durante seu mandato, investiu em transporte público e, assim, cortou pela metade o número de automóveis na rua. Depois disso, destruiu a pista que cobria o rio e o revitalizou. Hoje, o rio tem peixes, aves e plantas. Foi transformado em área de lazer para os moradores da metrópole de quase 11 milhões de pessoas e em cartão-postal de Seul (foto à direita).

REPRODUÇÃO DBIMAGES/ALAMY/OTHERIMAGES BRASIL

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de organismos e de água de diferentes qualidades gera grandes alterações nos ecossistemas locais.

De Ipiabas, vilarejo localizado a apenas 15 qui­lômetros de Barra do Piraí, município no qual está localizada a represa cuja água do rio Paraíba do Sul começa a ser bombeada para o sistema de trans­posição carioca, o arquiteto Josemar Coimbra, que mora no local, constata outros problemas decor­rentes da obra. Segundo ele, a redução brusca da quantidade de água no rio faz com que os sedimen­tos se acumulem no leito, gerando assoreamento e erosão. Coimbra conta também que a sujeira decorrente da falta de tratamento do esgoto fica ainda mais evidente, já que a quantidade de água é pequena para diluir os dejetos recebidos pelo rio Paraíba do Sul, que, em tempos de seca, chega a perder 70% do seu volume para os canais desviados em direção ao rio Guandu. “Muitos cariocas nem sabem de onde vem sua água. Acham que vem da Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro). Mas não é: a água que abastece o Rio de Janeiro é do Paraíba do Sul e é aqui, em Ipiabas, que nós sentimos as consequências da concentração urbana lá”, diz.

Indiferentes a tudo, as cidades continuam crescendo e, com elas, a demanda por água. Novos reservatórios são construídos, novas transposições

planejadas. Em São Paulo, a necessidade de buscar outras fontes de água é uma situação tão iminente que a Sabesp já estuda soluções. “Há uma grande possibilidade de montarmos o Sistema Produtor São Lourenço, fazendo a transposição de um rio que fica próximo à cidade de Registro”, explica Hélio Castro, da Sabesp. Especula­se também outra transposição do rio Paraíba do Sul, agora para abastecer a capital paulista.

A mata e o ciclo hidrológicoPara evitar uma crise de falta de água nas

cidades é preciso conservar os mananciais. Nes­se sentido, a região da Mata Atlântica está mais uma vez entre as zonas problemáticas. O motivo é simples. Conservar mananciais está direta­mente relacionado à preservação florestal. E da Mata Atlântica não restam mais do que 27% da vegetação original, segundo as estatísticas mais otimistas – número que pode chegar a apenas 7% em alguns cálculos (veja quadro na pág. 37). Isso significa menor volume nos rios e pior qualidade da água que ainda corre nos leitos.

“A mata é parte fundamental do ciclo hidroló­gico”, explica José Galizia Tundisi. A evapotrans­piração das plantas fornece água para o ar, que retorna aos rios em forma de chuva em outro lugar.

O rio Pinheiros (acima, no começo do século 20) teve suas curvas naturais transformadas em reta, em nome do progresso

ACERVO FUNDAÇÃO ENERGIA E SANEAMENTO

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Além disso, representa obstáculos para o caminho da água e, assim, regula sua velocidade. “Sem ve­getação, a água escorre muito rapidamente e fica difícil manter o nível dos rios”, afirma. A relação entre vegetação e manutenção dos cursos d’água varia de acordo com o bioma e, no caso da Mata Atlântica, é de 10 mil m3 de água produzidos por hectare de floresta conservada, de acordo com Malu Ribeiro, da Rede das Águas.

É nesse sentido que a Fazenda Nossa Senhora da Piedade, que protege algumas das nascentes que ajudam a manter cheia a Represa de Guarapiranga, em São Paulo, é um alento para quem sabe que corre o risco de não ter água disponível muito em breve. Essa ilha de Mata Atlântica encravada na selva de pedra estava prestes a desaparecer, já que o proprietário, Eduardo de Mello, estava disposto a vender a fazenda por não conseguir mais arcar com seus custos. Os hectares de mata nativa foram salvos quando ele passou a receber dinheiro da Fun­dação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, por meio do Projeto Oásis, para continuar protegendo a floresta e as nascentes de água que correm no local.

A instituição fez o diagnóstico da propriedade e concluiu que 98,5% dela está preservada com Mata Atlântica original. Olhos leigos podem até não atingir esse grau de precisão, mas são capazes

de intuir a grandeza do local ao caminhar pela flo­resta que se esconde entre os portões da Fazenda Nossa Senhora da Piedade. Árvores grandiosas servem de suporte para bromélias, orquídeas e cipós. Entre elas, arbustos, gramíneas, cogumelos e troncos caídos dificultam a caminhada que só é possível em trilhas abertas com facão. Mesmo que a Mata Atlântica não seja rodeada por toda a aura mítica que envolve a Floresta Amazônica, quem a conhece não tem dúvidas de que seja tão grandiosa quanto a floresta que domina o norte do Brasil. “Existe uma área entre Ilhéus e Itacaré, por exemplo, onde encontramos 450 espécies de flora por hectare. A média da Amazônia é de 200 a 250 espécies por hectare”, conta Luiz Paulo Pinto, diretor do Programa de Mata Atlântica da Conservação Internacional (CI ­ Brasil).

Só que a Mata Atlântica estava no caminho do desenvolvimento do país e, hoje, só restam dela ilhas que lutam para sobreviver entre as aglomera­

A OFERTA DE ÁGUA NA MATA ATLÂNTICA PASSA OBRIGATORIAMENTE PELA PROTEÇÃO DOS MANANCIAIS E DAS MATAS CILIARES

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O recurso não está distribuído de acordo com a concentração populacional. Enquanto 80% da água do país corre pela Amazônia, na qual vive apenas 5% da população, a região da Mata Atlântica, que abriga 70% dos cidadãos brasileiros, já sofre com a escassez hídrica diante da alta demanda. Algumas cidades já buscam água longe para abastecer sua população e muitas podem precisar fazer isso em breve.

Demanda e disponibilidade de água

ESPÍRITO SANTO MINAS GERAIS RIO DE JANEIRO SÃO PAULO

Projeção para 2015

POPULAÇÃO URBANA COM ABASTECIMENTO SATISFATÓRIO EM 2015

POPULAÇÃO URBANA COM NECESSIDADE DE INVESTIMENTO EM 20150

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15

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Fonte: Atlas de Abastecimento Urbano de Água, 2011

R$ 366 milhões

R$ 10 milhões

R$ 134 milhões R$ 22 milhões

R$ 11,5 milhõesR$ 9 milhões

R$ 6 milhões

R$ 7 milhõesR$ 6 milhões

R$ 7 milhõesR$ 50 milhões

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R$ 31 milhõesR$ 826 milhões

R$ 31 milhões

Investimento necessário até 2015

Fonte: Atlas de Abastecimento Urbano de Água, 2011

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O que resta da Mata AtlânticaAs estatísticas mais pessimistas dizem que os remanescentes de Mata Atlântica não passam de 7% da sua cobertura original, enquanto outros números indicam um vestígio de 27%. A diferença está na metodologia adotada para o mapeamento. A SOS Mata Atlântica, por exemplo, só considera preservadas as áreas maiores de 100 hectares. “Acreditamos que esse seja o tamanho mínimo para garantir a preservação da biodiversidade do bioma, apesar de sabermos que cada árvore que sobrevive, mesmo que em meio urbano, é muito importante”, explica Márcia Hirota, diretora de Gestão do Conhecimento da SOS Mata Atlântica. Para a conservação de mananciais, porém, uma pequena área de preservação ao redor de uma nascente ou ao longo de um curso d’água pode fazer toda a diferença. Mas esse quadro pode estar mudando. O Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica, produzido pela SOS Mata Atlântica, revelou que mais de 20 mil hectares da floresta desapareceram entre os anos 2008 e 2010. O número já é bem menor do que os índices de desmatamento encontrados nos primeiros anos do mapeamento, na década de 1990, mas ainda é preocupante.

Cachoeira em área preservada da Serra da Bocaina

Fonte: SOS Mata Atlântica

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ções urbanas. Nas cidades, muitos desconhecem seu esplendor, mas está cada vez mais difícil ignorar sua importância. Se a riqueza da biodiversidade local não interessa, os serviços ambientais presta­dos pela mata se tornam cada vez mais relevantes. E é isso que viabiliza a existência de projetos como o Oásis e de muitos outros com o mesmo perfil.

A mata no caminho do progresso A ideia básica é fazer o pagamento pelos ser­viços ambientais (veja quadro na página seguinte). “É uma forma de garantir que o proprietário se sinta finalmente valorizado por ter preservado a floresta. A região da Guarapiranga é um lugar que sofre grandes pressões e quem não cedeu a elas e não loteou sua área, merece ser premiado”, explica Malu Nunes, diretora­executiva da Fun­dação Boticário.

Além das iniciativas privadas, órgãos governa­mentais já trabalham com esse mesmo conceito. O governo do Espírito Santo foi o primeiro no Brasil a dar um passo nesse sentido. Com o projeto Produ­torES de Água, o Instituto Estadual do Meio Am­biente (Iema), do Espírito Santo, já distribui entre produtores rurais, que ajudam na preservação de mananciais, parte da renda dos royalties de petróleo e gás e da compensação financeira do setor hidroe­létrico. Quando começam a receber o pagamento

dos serviços ambientais, esses produtores passam a ter metas de preservação e recuperação de áreas. “Lembrando que muitas vezes recuperar uma área significa apenas deixá­la intocada para que a mata se regenere sozinha”, explica Robson Monteiro dos Santos, gerente de Recursos Hídricos do Iema. Ele explica que o projeto reconhece as áreas que há muito tempo já prestam serviços ambientais e induz a formação de novas.

Um dos primeiros contemplados pelo projeto foi Aloisio Sgulmaro. Há dois anos recebendo di­nheiro pela área que preserva, cerca de 60% da sua propriedade de 64 hectares, próxima à cidade de Vitória (ES), ele está feliz com a nova renda. “Com o dinheiro que recebo, invisto em agrotóxicos e tecnologias para a área de cultivo e minha produção já aumentou em cerca de 10%”, diz o produtor, que preserva as nascentes da propriedade e a mata ciliar dos rios Benevente e Piritinga, que atravessam sua terra. O primeiro é uma das principais fontes de água para a cidade de Guarapari.

Juntos, os projetos Oásis e ProdutorES de Água ajudam na conservação de mais de 2,5 mil hectares de Mata Atlântica e, assim, garantem água na torneira de milhões de pessoas.

A percepção de que sem floresta não tem água é mais antiga do que se pode imaginar. É provável que o primeiro projeto de preservação da Mata Atlântica tenha sido o da Floresta da Tijuca, um dos cartões­postais do Rio de Janeiro, mas que nem sempre foi assim. No Brasil Colônia, a mata virgem deu lugar a fazendas de cana­de­açúcar, em um primeiro momento, e de café, posterior­mente. Mas o fim da floresta que cobria os morros da cidade foi seguido pelo desaparecimento de muitos córregos e riachos da região, responsáveis pelo abastecimento urbano naquela época. Por esse motivo, dom Pedro 20 ordenou, em 1861, o reflorestamento da área. Anos depois, ainda no século 19, o trabalho inspirou a desapropriação de fazendas de café e a recuperação florestal da Serra da Cantareira, em São Paulo. Foi o que garantiu que mais de 3 milhões de moradores da maior metrópole brasileira tivessem água hoje.

Herói solitárioA delimitação de áreas de preservação, como

aconteceu na Tijuca e na Cantareira, é outra boa forma de preservar os recursos naturais. Um bom exemplo é o Parque Ecológico do Eldorado, criado há sete anos em uma das áreas mais in­dustrializadas e urbanizadas da Região Metropo­

Seu Nonô, protetor das nascentes, retirou 61 caminhões de lixo de um afluente do ribeirão Arrudas, que cruza Belo Horizonte

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Serviços ambientaisAs nascentes que garantem água pura para consumo humano, as árvores que fazem fotossíntese e oferecem o oxigênio, os organismos decompositores que transformam matéria orgânica em nutrientes para a agricultura, os animais que cedem hormônios e venenos para a produção de remédios. Todos esses são exemplos de serviços prestados pelos ambientes naturais preservados para a humanidade. À medida que esses serviços vão sendo cada vez mais reconhecidos, as lutas ambientalistas ganham sentido prático e palpável para aqueles que, por muito tempo, permaneceram alheios às discussões. Assim, o pagamento por serviços ambientais é um recurso cada vez mais presente nas propostas de soluções para os problemas de degradação ambiental. O proprietário rural que, em vez de desmatar e explorar algum plantio, conserva sua área deve receber algum dinheiro por isso, porque a área preservada por ele garante bem-estar para outras pessoas. O dinheiro para esse pagamento muitas vezes vem de empresas que poluem e causam danos ambientais, como mineradoras e petrolíferas. O problema é que, apesar das várias tentativas, ainda não se chegou a uma fórmula para calcular o bem que cada hectare preservado dos vários biomas mundiais pode representar.

litana de Belo Horizonte, o bairro Eldorado, em Contagem. Sua delimitação foi resultado de uma grande mobilização popular em favor da área, na qual seria construído um conjunto habitacional. As três nascentes que passaram a ser protegidas pelo parque desembocam no ribeirão Arrudas, que atravessa toda a cidade de Belo Horizonte e é, hoje, símbolo de sujeira e descaso. Mas é com os olhos e a voz carregados de esperança que Cecília de Andrade Silva, presidente da ONG Conviverde, que nasceu a partir dessa mobilização popular, diz que ainda quer ver o Arrudas limpo. “As nascentes já estão protegidas, agora é só tirar o esgoto”, diz, simplificando a questão.

Se em Contagem o parque garante a prote­ção de três nascentes do ribeirão Arrudas, mais abaixo, já em Belo Horizonte, Ernesto Soares da Conceição, ou seu Nonô, faz também sua parte. Em um trabalho que começou há 20 anos com a limpeza do pequeno córrego Joões, afluente do rio que atravessa a capital mineira, ele garante a pureza da água que corre pelo terreno no qual passou sua infância. Com tubos de PVC, desviou o esgoto que antes caia no rio e, com grades de metal, barra o lixo que a chuva traz das encostas íngremes que marcam a paisagem da cidade. Fo­ram 61 caminhões de lixo tirados de um trecho de menos de 100 metros de extensão do córrego. Isso sem contar as enormes quantidades de plástico enviadas para reciclagem.

A maior parte dos domicílios brasileiros é atendida com rede de distribuição de água. O mesmo não se confirma com relação à rede coletora de esgoto, inexistente na maioria das residências. Veja essa situação no gráfico:

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REGIÃO NORDESTE

REGIÃO SUDESTE

REGIÃO SUL

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Distribuição de água e coleta de esgoto (em % de domicílios)

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Fonte: COPPE/UFRJ, 2010DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA COLETA DE ESGOTO

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O ribeirão Arrudas (acima, no início do século 20) era visto como entrave ao desenvolvimento de Belo Horizonte. A saída foi construir grandes avenidas por cima dele (ao lado). Mas, quando chove muito, ele se torna uma bomba d’água

Como um herói solitário, seu Nonô faz sua par­te e se entristece ao ver que o trabalho não encontra tantos seguidores. “As pessoas não sabem limpar córregos, só sabem sujar”, diz, enquanto observa o curso d’água seguir seu caminho e receber mais sujeira depois do trecho do qual ele cuida. “Não posso limpar tudo, mas garanto que daqui lixo ne­nhum vai passar para sujar o Arrudas”, completa. Em sua simplicidade, o trabalho de seu Nonô já garantiu a volta da mata ciliar, que se regenerou nesses 20 anos, e dos pequenos animais que en­contram ali um refúgio. “Quando comecei a fazer a limpeza não esperava que a reação da natureza seria tão bonita. Começaram a nascer árvores, os pássaros passaram a vir para beber água, macacos passeiam por aqui direto. A natureza realmente é insuperável”, conta.

A vegetação, principalmente aquela que acompanha o leito do rio, a chamada mata ci­liar, evita o arrasto de resíduos e de agrotóxicos, funcionando como uma barreira física. Garante, assim, água mais limpa. “Desmatamento produz poluição e aumento de custos de tratamento de água”, diz Tundisi. É por isso que há tanta gente contrária ao novo Código Florestal, em votação no Congresso Nacional. A proposta permitiria, entre outras coisas, que os proprietários de terras, que já

ocuparam ilegalmente topos de morros, margens de rios, restingas e manguezais, sejam desobriga­dos de recuperar esses locais e que os parâmetros para a proteção das Áreas de Preservação Perma­nente sejam definidos pelos estados. Pelo atual Código Florestal, os proprietários rurais precisam manter intactas essas áreas, representadas por matas ciliares, áreas de nascentes e encostas de morros em todo o território nacional.

Problemas básicos de saneamentoLonge das regiões em que ainda é possível

encontrar floresta para preservar, os limites ur­banos também requerem investimentos. Muitos rios atravessam cidades, como o das Velhas, que corta o pequeno município mineiro de Santo Hipólito, onde mora Geraldo Nonato dos Reis. Quando criança, ele costumava nadar no rio das Velhas, que é um dos maiores afluentes do São Francisco. Hoje, cinco décadas depois, isso não é mais possível. “O rio agora é verde e, às vezes, cheira mal”, lamenta­se Reis.

Em 2010, a SOS Mata Atlântica analisou 43 corpos d’água da região compreendida pelo bioma e nenhum deles foi considerado ótimo ou bom. “Foi uma surpresa desagradável. Mesmo em cidades pequenas, onde acreditávamos que

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encontraríamos boa água, constatamos que a qualidade desse recurso está ruim. Isso é reflexo do baixo índice de saneamento básico no Brasil”, conta Malu Ribeiro, da Rede das Águas. Sérgio Ayrimoraes, da ANA, explica que, na década de 1970, foram feitos muitos investimentos para garantir a oferta de água. É dessa época a maior parte das transposições de rios que alimentam as torneiras das metrópoles brasileiras. Por outro lado, poucos esforços foram empreendidos para melhorar os sistemas de coleta e tratamento de esgoto (veja gráfico na pág. 39). “O problema do abastecimento urbano hoje é fruto da escassez de água frente à demanda e da poluição. Essas são questões associadas, mas, historicamente, a tratamos como problemas diferentes”, afirma.

Em locais onde a grande concentração po­pulacional multiplica a demanda por água, essa mesma concentração diminui a oferta de água de qualidade. Os esgotos urbanos são hoje os maiores responsáveis pela poluição dos rios. Um dos exemplos mais clássicos é o rio Tietê, em São Paulo, um dos cursos d’água mais poluídos da metrópole. Desde 1992, a Sabesp tenta reverter essa situação com o Projeto Tietê.

Da sua criação até o ano 1998, o projeto resul­tou na construção de três estações de tratamento

de água, que se somaram às duas já existentes, e de tubulações para coleta e transporte de dejetos. Nesse período, o índice de coleta de esgotos na Região Metropolitana de São Paulo passou de 70% para 80% e o de tratamento saltou de 24% para 62%. Hoje, 70% do esgoto é tratado antes de ser lançado no Tietê, mas ainda há muito o que melhorar até que o rio seja revitalizado.

Belo Horizonte é outro exemplo. Apenas 2% do esgoto da metrópole de mais de 2,5 milhões de pessoas era tratado até 2001. Essa realidade começou a mudar principalmente a partir do Pro­jeto Manuelzão, que nasceu no fim da década de 1990 com o objetivo de revitalizar o rio das Velhas. De 2001 a 2010, foram construídas duas grandes estações de tratamento de esgoto, que agora tra­tam 80% do esgoto da cidade e melhoram, pelo menos parcialmente, a água que chega a Santo Hipólito, cidade mais à vazante do rio, na mesma bacia hidrográfica.

DE 43 CORPOS D'ÁGUA DA MATA ATLÂNTICA, NENHUM DELES SE ENCONTRA TOTALMENTE LIMPO

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O idealizador do projeto, Apolo Heringer, explica que não adianta ter água na torneira, se ela não for limpa o suficiente. Médico, professor da Escola de Medicina, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ele começou a pensar em um projeto de revitalização de rios motivado pelas doenças que a água impura pode causar. “Eu coordeno o programa de internato rural da UFMG, no qual os alunos vão trabalhar em postos de saúde do interior. Em alguns casos, preciso orientá­los a levar, de Belo Horizonte, galões de água porque sei que na cidade para aonde estão indo não existe água pura”, lamenta. Isso gera o que a coordenadora da Rede das Águas Malu Ribeiro chama de exclusão hídrica. “Convido todos os políticos a beberem a água que sai das nossas torneiras. Eles compram água mineral. Só que os mais pobres não têm essa opção”, explica.

Sendo assim, o projeto Manuelzão passou a fo­car seus esforços em transformar o rio das Velhas em um curso d’água mais limpo. Em 2003, depois de uma expedição realizada para conhecer melhor as comunidades que viviam ao longo do rio, foi lançada a Meta 2010: navegar, nadar e pescar no rio das Velhas. Sete anos depois, em agosto de 2010, Heringer nadou no rio, acompanhado do ex­governador de Minas Gerais Aécio Neves, do atual governador, Antônio Anastasia, e do prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda.

Peixes só em 2014Só que o nado não foi, como planejado, nas

proximidades dos afluentes Arrudas e Onça, que atravessam a capital mineira e são o epicentro do problema de poluição no rio das Velhas. O fato de isso ter acontecido, a 250 quilômetros da capital, deixou claro que muito ainda precisa ser feito. “Po­demos dizer que houve uma melhora em torno de 60%, o que já é muito bom se considerarmos que a tendência dos rios brasileiros é piorar. Os peixes vol­taram a um trecho de cerca de 350 km do rio. Mas não alcançamos o 100%, por isso colocamos outra meta, a de fazer isso em 2014”, explica Heringer.

O trecho do rio em que os ilustres visitantes nadaram fica bem próximo à cidade de Santo Hipólito, na qual vive Geraldo dos Reis. Mas o morador ainda não se reaproximou do rio. “No dia em que eles nadaram, a água estava limpa, mas agora não está mais. Quando o rio sobe, ainda desce muito entulho de Belo Horizonte. Ninguém aqui da cidade arrisca entrar na água, apesar de já ter melhorado muito depois do Projeto Ma­

nuelzão.” Mais próximo de onde o idealizador do Projeto Manuelzão pretende nadar em 2014, no local em que o ribeirão Arrudas encontra o rio das Velhas, o tamanho do desafio é evidente.

Ali, na divisa entre Belo Horizonte e Sabará, cidade da região metropolitana, foi construída, em 2001, a Estação de Tratamento de Esgoto Arrudas, a maior da capital. Mas, um pouco de­pois dela, no bairro General Carneiro, as casas de classe média continuam convivendo com a água pútrida. A cor negra é o que menos incomoda, diante do odor quase insuportável nos dias de sol quente e do lixo que boia na superfície. “É claro que, com a estação, isso aqui melhorou muito, mas não dá para negar que o Arrudas continua muito sujo”, lamenta o funcionário público José Roberto Fernandes, morador da região.

Água como canhãoPara ele, o maior problema que o rio leva a

General Carneiro não é o mau cheiro e, sim, as enchentes. “Desde que foram feitas as grandes obras de canalização em Belo Horizonte, há uns 20 anos, a água do Arrudas chega aqui em dias de chuva como se fosse um canhão”, explica José Roberto. A constatação que ele fez, na prática,

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HORIZONTE GEOGRÁFICO42

Page 13: Estão tirando a água das nossas matas

é facilmente explicada. Revestidos por materiais impermeáveis, os leitos dos rios canalizados deixam de favorecer a infiltração da água, que não chega mais aos lençóis freáticos. A quantidade de água retida na superfície é, assim, maior, o que favore­ce enchentes. “Quando a cidade inunda, culpam as chuvas e o aquecimento global, mas ninguém discute os modelos de urbanização”, diz Rogério Sepúlveda, presidente do Comitê da Bacia Hidro­gráfica do Rio das Velhas. Isso sem contar que, com seus leitos substituídos por concreto e suas rotas sinuosas transformadas em caminhos retos, os rios correm sem obstáculos e, portanto, com mais velocidade. Assim, deixam de inundar um trecho, mas ficam mais destruidores em outras regiões.

Essa forma de organização do espaço urbano, que canaliza rios e descarta neles o esgoto, é tão comum nas cidades brasileiras que parece não haver outra saída. Mas esse modelo de urbani­zação já está sendo revisto em muitos países. Na Baviera, Alemanha, por exemplo, há um grande investimento para renaturalizar os rios. São pro­movidos pequenos desníveis e inseridas pedras e galhos nos cursos d’água para imitar os rios naturais, o que implica, entre outros coisas, na redução da velocidade da água. “Enquanto isso,

em Belo Horizonte, fala­se na canalização de outros trechos do Arrudas, como se tampar o rio fosse a grande solução para a cidade”, lamenta­se Apolo Heringer, do Projeto Manuelzão. “O pior é que os municípios menores copiam os grandes, replicando exemplos equivocados”, diz. Esse modelo inclui o despejo de água suja nos rios. É inevitável que se recolha água de algum lugar para abastecer as cidades e, em outro momento, a descarte. Não há como escapar disso. “O que precisamos é pensar em como devolveremos essa água”, explica Sepúlveda.

Cada vez mais é essencial entender que são os cursos dos rios que ligam a floresta e a cidade. E que é só com a preservação da primeira que se pode garantir a continuidade da segunda. Orgulhoso por poder dar a sua contribuição para isso, Eduardo de Mello, dono da Fazenda Nossa Senhora da Piedade, caminha por suas terras. “Adoro ficar aqui quieto, escutando o silêncio. Os galhos que caem, as folhas que balançam, os pássaros que cantam”, diz. É pre­ciso garantir que muitos homens como ele possam seguir escutando o silêncio da Mata Atlântica para que outros, que nunca pisaram na terra molhada que dá vida a palmitais e orquídeas, continuem recebendo água em suas torneiras.

A manutenção da mata ciliar, presente aqui no rio Paraíba do Sul, é essencial para garantir a quantidade e a qualidade da água que chega às cidades