Upload
paulo-dias-nogueira
View
229
Download
3
Embed Size (px)
Citation preview
Estranha Estirpe De Audazes
de
Sante Uberto Barbieri
Do original argentino:
“Uma Extraña Estirpe de Audaces”
T r a d u ç ã o d e
LUIZ A. CARUSO
I M P R E N S A M E T O D I S T A Estrada do Vergueiro, 2500
São Bernardo - SP
NOTAS DESTA EDIÇÃO ON LINE:
1111 - Foram acrescentados ao texto do livro alguns sinônimos e notas para essa edição eletrônica, sempre entre parênteses e com a fonte na cor bordô.
2222 - O livro publicado em português tem muitos erros de composição e grafia. Conseguimos acertar quase tudo no texto do livro, menos as notas de rodapé, que por falta de acesso a um livro na edição original em espanhol, não tivemos como proceder as correções. De modo que na presente edição, elas estão como estão no livro em português.
1
DEDICATÓRIA
Em sinal de gratidão a meu mestre de História
Eclesiástica na “Southern Methodist U n i v e r s i t y ”
Dallas, Texas, U. S. A..,
DR. ROBERT W. GOODLOE
Que me revelou o mistério e encantamento
dessa “Estranha Estirpe de Audazes”
e
Flávia e Mary,
meus filhos, agora servindo ao Senhor na Bolívia,
para que recolham
as “Cintilações Inextinguíveis” dessa “Estirpe”
e sigam em pós de sua luz,
carinhosamente dedico estas páginas.
INDICE INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I - Os vanguardeiros - Parte I - Os antepassados de João e Carlos Wesley pela linha paterna.
- Bartolomeu Wesley - João Wesley, o avô - Samuel Wesley, o pai
CAPÍTULO II - Os vanguardeiros - Parte II - Os antepassados de João e Carlos Wesley pela linha materna
- João White - Samuel Annesley, o avô - Suzana Wesley, a mãe.
CAPÍTULO III - Um tição tirado ao fogo - João Wesley CAPÍTULO IV - O arauto melodioso - Carlos Wesley CAPÍTULO V - O filho de um taverneiro - Jorge Whitefield CAPÍTULO VI - Uma estrela da Graça - Selina Shirle, a Lady e Condessa de Huntingdon CAPÍTULO VII - O paladino da divina Misericórdia - João Guilherme de La Flechère CAPÍTULO VIII - Tinhas Asas de Águia - Tomás Coke CAPÍTULO IX - O profeta do Caminho Solitário - Francisco Asbury CAPÍTULO X - O bando dos “irregulares” - Parte 1
- Tomas Maxfield - João Nelson - Maria Bosanquet
CAPÍTULO XI - O bando dos “irregulares” - Parte 2
- Os primos Filipe Embury e Bparbara Heck - Robert Strawbrigde - Capitão Webb - Robert Williams - John King
CAPÍTULO XII - Cintilações inextinguíveis
3
INTRODUÇÃO
A história é o único elemento em nossa vida social que nos liga ao passado.
Cortaríamos de nós mesmos uma importante parte se omitíssemos a história. Podemos existir
sem história, mas não viver; porque viver é, de certo modo, reviver a história de nosso povo,
encarnando em nós as inquietudes que povoaram corações e vontades que não existem mais.
Na história se refugia a vida que já foi, para não morrer, para ressuscitar, para continuar
vivendo, para obrigar-nos a viver. Por isto mesmo dizia Miguel de Unamuno: "É visão do
passado o que nos empuxa à conquista do porvir; com madeira de recordações armamos as
esperanças". Quando o presente nos parece trivial e comum, falto de estímulo e inspiração,
faz falta mirar ao passado, que é a história, para que nos sintamos "empuxados à conquista do
porvir".
E sublinhamos "a conquista do porvir", porque a visão do passado não nos deve
envolver no próprio passado, e sim nos levar as mais altas empresas e as mais arriscadas
aventuras; para que o acervo do passado se enriqueça com os fatos do presente. O
conhecimento do passado não se constituirá em cadeia, e sim no elemento que nos
fecunde mente e coração, espírito e vontade, e nos conceda poder para criar obras
formosas, verdejantes e eternas.
Por isso, nas páginas seguintes nos submergiremos no mar da história, não para nos
afogarmos nele, como que atraídos ao fundo pela voz de sereia encantadora, mas para
revitalizar e refrescar nossas energias dormidas e sair pelas praias do mundo, tendo nos lábios
o canto que entusiasma e no coração a fé que tudo arrisca.
Desejamos que os leitores destes breves estudos históricos, que giram ao redor de
alguns cabos de guerra do metodismo, se sintam com vigor suficiente para seguir no caminho
que eles deixaram marcados com os sulcos profundos de sua devoção e fé.
CAPÍTULO PRIMEIRO
OS VANGUARDEIROS - 1
Os antepassados de João e Carlos Wesley pela linha paterna
"O testemunho interno, filho, o testemunho
interno; esta é a prova, a prova mais verdadeira do cristianismo".
Samuel Wesley
Ao ler o subtítulo dos dois primeiros capítulos, o leitor se perguntará que relação
tem os antepassados de João e Carlos Wesley com os adaís (mentores) do
metodismo que estudaremos no restante do livro. À primeira vista parece não existir
conexão alguma, pois eles viveram antes do movimento metodista, e certamente não
teriam podido vislumbrar o que sucederia a ponto de sugerir orientações. Mas, quando
passamos em revista a vida desses antepassados, descobrimos que muitas das
características que distinguiram os iniciadores do movimento metodista já se revelavam no
caráter e na ação daqueles.
Podemos dizer que o movimento metodista no começo do século XVIII,
embora historicamente nele tenha seu princípio, suas raízes vão, contudo, até ao século
XVII ou antes, à semelhança da Reforma Protestante que não teve sua origem no século XVI
com Lutero, mas também muito tempo antes. Em Lutero a Reforma teve seu apogeu e
culminância. Forças e homens, desde muitas gerações anteriores, vinham preparando o
terreno, abandonando-o com o sangue de seu sacrifício. Do mesmo modo, o que
chamamos metodismo alcança seu triunfo em João e Carlos Wesley e outros. Não que
o metodismo já existisse como força, e sim que tinha vida embrionária no seio de certos
acontecimentos históricos. Os homens não são fenômenos que aparecem repentinamente e
se manifestam sem causa e motivos. Às vezes, ou quase sempre, são o resultado de forças
4
que se foram armazenando por muito tempo e que num instante irrompem, abrindo as
comportas para impor-se de maneira decisiva e renovadora.
A história do metodismo começa, pois, com os antepassados dos Wesley. De
fato, um historiador dessa família assevera que há traços dela já no século X, antes que a
Inglaterra estivesse unida sob um soberano. Pelo estudo que faz dos membros dessa
família, chega à seguinte conclusão:
"Pelo que até aqui podemos saber desta distinta família, verificamos que
seus membros se sobressaíam por seus conhecimentos, piedade, estro (talento)
poético e musical. Devemos, além disso, acrescentar outras características
igualmente peculiares: lealdade e fidalguia. Volvendo atrás, apenas um passo, ao
traçar sua genealogia, encontramos em ambos, o pai e a mãe de Bartolomeu
Wesley (deste falaremos mais adiante), pessoas às quais se permitiu mesclar com
as mentes notáveis de sua idade, que tiveram a distinção de tomar parte ativa na
formação daquela época em seus aspectos moral, religioso e social." (1) 1)
Não nos será possível deter-nos com todos eles, mas nos remontaremos pela
linha paterna de João e Carlos Wesley a representante de três gerações anteriores: a
Bartolomeu Wesley (1595 ou 96-1680); a João Wesley, o avô (1636-1678); e a Samuel
Wesley, o pai (1662-1735). E pela linha materna: a João White (1590-1644), avô materno de
Susana; Samuel Annesley (1620-1696), pai de Susana; e Susana Wesley, a mãe
(1669-1742).
5
Bartolomeu Wesley
Bartolomeu Wesley, bisavô de João e Carlos Wesley, era filho de Sir Herbert
Westley ou Wesley, do condado de Devon, e de Elizabet Wellesley, de Dongan, Irlanda.
Na família houve três filhos: de dois deles nada se sabe; somente Bartolomeu chegou a
entrar na história. No seio de sua família recebeu esmerada educação religiosa. Julgando
pelas influências religiosas manifestas por Bartolomeu, pode-se dizer que o espírito do
puritanismo já se ia desenvolvendo dentro da Igreja Nacional e que havia feito marca na
mente de seus pais.
Recebeu sua educação na Universidade de Oxford, onde estudou medicina e
teologia. Dele pouco se sabe até o ano 1640, quando a história nos diz que se encontrava à
frente da igreja da pequena aldeia de Gatherston e, pouco mais tarde, da de
Charmouth. O salário anual que essas duas igrejas lhe pagavam consistia de 35 libras
esterlinas e 10 shillings. Pastoreou-as até 1662, antes do "Ato de Uniformidade", quando o
expulsaram como "intruso". Durante seu ministério, e especialmente depois, fez grande uso
de seus conhecimentos médicos com muito êxito. Nada sabemos acerca do lugar de sua
morte, mas estamos certos de que teve de abandonar Charmouth em 1665 devido ao "Ato
das Cinco Milhas". Este "ato" exigia que todo pároco destituído de seu cargo devia viver,
pelo menos, cinco milhas, distante do lugar onde havia exercido seu ministério. Por essa
época já havia caído o governo puritano de Cromwell, que dominara na Inglaterra por cerca
de três lustros (qüinqüênios). Ao restabelecer-se a monarquia, todos os párocos adeptos do
puritanismo, que era a expressão religiosa adotada pelo governo de Cromwell, tiveram de
abandonar suas paróquias que seriam ocupadas por pessoas dispostas a sujeitar-se à
realeza e à forma tradicional do anglicanismo.
Foi em conseqüência desse mesmo "Ato", como veremos mais adiante, que seu
filho João Wesley (o avô de Carlos e João Wesley) morreu, prematuramente, aos 42 anos de
idade, em 1678. Este fato se agravou na mente do velho pai, de tal maneira, que seus
últimos anos foram bem amargos, levando-o mais depressa ao sepulcro. Desde que foi
afastado do cargo em 1662 e se viu obrigado a abandonar sua antiga habitação, esteve
sujeito a vexames, perseguições e limitações promovidas pela Igreja Oficial, que se
estabelecera com a monarquia. Devemos recordar que pelo "Ato de Uniformidade", os
ministros deviam renunciar a suas idéias puritanas e aceitar o novo estado de coisas, ou
então abandonar seus postos eclesiásticos. Mais de dois mil ministros tiveram de deixar suas
igrejas. Começou, para eles, uma série de duras experiências que teceram um
6
romance de aventuras extraordinárias, mas de tremendas vivências em que se pôs à
prova sua fé, visto como, por questão de consciência, não quiseram adaptar-se à nova
situação. Esses ministros, e os fiéis que com eles partilhavam as mesmas idéias religiosas
tiveram de reunir-se onde podiam: quer em casas isoladas, ou em sótãos, ou em palheiros
(lugar onde se guarda palha, paiol), ou onde quer que lhes fosse dado. Muitas vezes, para
chegar a tais lugares, tinham de valer-se de caminhos secretos e também postar vigias.
Apesar de toda essa vigilância e cautela, mui freqüentemente aprisionavam grupos e
líderes. Bartolomeu, depois de destituído, pode ficar em Charmouth até 1665, exercendo a
medicina, pela estima que lhe tinham seus paroquianos. Isto testifica acerca da
limpeza de seu caráter, o que lhe permitiu permanecer ali sem temer acusações de
parte da gente a que servira durante 21 anos. Sem dúvida, o que mais caracterizou esse
homem foi a firmeza de suas convicções.
Fizemos referência ao "Ato das Cinco Milhas", e nessa época ele já era um homem
velho, sentia-se esgotado depois de uma longa vida consumida em trabalhos, guerras
civis e lutas religiosas. Se, ao restabelecer-se a monarquia, houvesse renunciado a
suas convicções religiosas e se submetesse com passiva obediência às exigências da igreja
oficializada, poderia viver até o dia de sua morte, no seio de seus amigos paroquianos, aos
quais tanto estimava. Entretanto, preferiu ir-se e sofrer o desprezo do mundo. Suas
convicções lhe eram mais sagradas que a própria vida e a tranqüilidade. Isto nos ensina
que as almas honestas nunca podem trocar sua liberdade de consciência pela liberdade
de seus corpos. Preferem tomar sobre si a cruz e morrer por seus ideais. São os que
caminham adiante e se detêm somente quando chegam ao final do caminho, sem haver
cessado em sua luta por manter bem alto o estandarte de suas mais íntimas convicções. Se
Bartolomeu Wesley não houvesse deixado outra coisa atrás de si, além desta estrela
luminosa, já se justificaria plenamente sua trajetória no mundo. Certamente foi digno de
haver sido o bisavô de João e Carlos Wesley.
João Wesley, o avô
Aquele que leva o mesmo nome do que mais tarde fora, com seu irmão Carlos, o
fundador do metodismo, era filho do precedente, e como vimos, chegou a viver somente
42 anos. Foi o pai de Samuel Wesley que, por sua vez, viria a ser o progenitor dos
fundadores do metodismo. Como Bartolomeu, foi educado na Universidade de Oxford,
sob a direção de homens escolhidos dentre os mais proeminentes guias religiosos dos
grupos independentes que alimentavam tendências puritanas. Terminou seus estudos
obtendo o grau de Mestre em Artes lá pelos fins do ano 1657 ou princípios de 1658.
Seu lar lhe foi sua primeira escola de religião, e ali herdou o espírito piedoso que lhe
assinalou toda a vida. Na escola mantinha a mesma linha de conduta que fosse norma no
lar. Desde a infância seus pais o dedicaram ao serviço divino. Quando voltou de Oxford,
uniu-se à congregação a que seu pai servia, mas não pode ajudá-lo no ministério porque não
fora ordenado. No povoado de Weymouth fez-se membro de um grupo chamado "A Igreja
Reunida", perante o qual teve primeiramente ocasião de expor suas próprias
convicções religiosas. Tinha paixão pelas almas. Deu testemunho do Evangelho não
apenas diante da "Igreja Reunida" de Weymouth, mas também falou das "Boas Novas"
aos marinheiros com que costumava encontrar-se ao longo da costa. E, na pequena
aldeia de Radipole, juntou muita gente ao seu redor, ensinando-a a adorar e servir a
Deus. Nessa época contava somente 22 anos de idade, mas já ardia nele aquela paixão
evangelizadora que se manifestaria tão surpreendentemente no coração de seus netos
João e Carlos. Como eles, foi grande pregador itinerante, sem ter jamais cargo pastoral
próprio e regular. E, além disso, foi o protótipo do pregador a que João Wesley teve de
apelar para fazer sua obra: o pregador leigo.
Foi em 1658 que chegou a ser pastor de Winterborn-Whitchurch, no condado de
Dorset, embora de maneira irregular. Essa paróquia podia recompensá-lo apenas com 30l
libras esterlinas anuais. De passagem, notaremos quão minguados era sempre o sustento
que os Wesley obtinham de seus trabalhos pastorais! Talvez nisso encontremos a razão
por que João Wesley adquiriu o hábito tão frugal de viver (que se contenta com pouco para
a sua alimentação), que lhe permitiu separar tanto de seus haveres para dedicá-los ao bem
do próximo. Foi como que necessidade inerente a todos os membros dessa família ter de
ajustar-se a receitas mui exíguas. Apesar disso, nunca pensaram estar destituídos da graça
de Deus Altíssimo.
Em 1661, João foi chamado à presença do Bispo Ironside para explicar por que
ministrava ao povo sem haver sido ordenado ministro. As respostas que deu durante o
interrogatório evidenciaram seu espírito equilibrado, iluminado e fiel. Tão concludentes
foram, que o bom Bispo lhe disse, ao despedi-lo: “Adeus, meu bom senhor Wesley". Ele
convencera seu superior de que seu direito de pregar lhe era dado por autoridade que
emanava das próprias Sagradas Escrituras.
Seus inimigos (os que a ele se opunham) sempre fizeram o possível para que caísse
em desgraça, e, um dia, pouco depois de sua conversação com o Bispo, assaltaram-no
ao sair da igreja e o levaram ao cárcere, acusando-o de não querer submeter-se ao uso da
liturgia da Igreja Oficial. Quando o soltaram, voltou a seus labores em
Winterborn-Whitchurch. Ali continuou ministrando ao povo até agosto de 1662, quando foi
decretado o já mencionado "Ato de Uniformidade". Como seu pai, determinou-se não se
submeter às novas ordenanças eclesiásticas e preferiu renunciar a renegar suas convicções
pessoais. Com pesar deixou a igreja e se foi a um lugar denominado Melcombe; durante
esse período de transição nasceu Samuel, que seria o pai de João e Carlos Wesley.
João v iu-se na cont ingência de suje i tar-se à a juda car idosa de um
amigo desconhecido, que na época possuía uma casa vaga num lugar chamado Preston,
perto de Weymouth. Ali continuou, dia após dia, pregando o Evangelho. Mais de uma vez,
por esse motivo, teve de ocultar-se ou ser preso. Não obstante, jamais renunciou a seu
grande empenho de salvar almas. Essas reiteradas t r ibulações levaram-no,
prematuramente, à morte. Nada, porém, foi suficientemente forte para fazê-lo renunciar à
sua alta vocação. Não se preocupava por faltar-lhe ordenação eclesiástica, e sim ia de um
lado para outro, ministrando sempre às almas necessitadas. Concluiu sua carreira num
lugar chamado Poole, continuando sempre como pregador local e servindo a um grupo
de pessoas às quais pregava dia após dia. Morreu como já mencionamos, antes de seu pai
Bartolomeu. Sua carreira foi curta, porém gloriosa. Jamais recebeu ordenação eclesiástica,
e, apesar disto, sempre se sentiu apoiado em seu trabalho pela aprovação divina. Isto era
suficiente para ele.
Tinha por costume levar um diário em que ia anotando suas ações. Gostava de
cultivar as línguas orientais. Era franco, leal, sincero e consagrado. Fez os maiores
sacrifícios no desempenho de sua missão. Dele se diz o seguinte:
"Em verdade, a história pessoal deste bom homem contém um epítome
(resumo) do metodismo que surgiria através da instrumentalidade de seus netos
João e Carlos. Seu estilo de pregação, conteúdo, maneira e êxito, tudo revela
uma semelhança surpreendente a deles e de seus colaboradores." (2)
Outro autor escreveu acerca do mesmo ponto, o seguinte:
"Embora o neto (João) tivesse mais êxito e se tornasse mais célebre, sem
dúvida, na história de João Wesley, o avô, podemos descobrir traços do ponto
de partida do espírito, ainda que não da forma, do metodismo." (3)
Samuel Wesley
Chegamos agora ao ponto onde nos cabe falar do neto de Bartolomeu Wesley.
Nasceu, como já vimos, em dezembro de 1662, durante um período turbulento. Não se
sabe exatamente onde nasceu. Morreu em Epworth, em abril de 1735, depois de longa
carreira dedicada ao trabalho da Igreja Anglicana. Filho e neto de não-conformistas
abandonou a tradição de seus antepassados e decidiu lançar sua sorte com a Igreja Oficial.
Quando chegou a esta decisão, estava estudando numa academia de Dissidentes. Contava
21 anos de idade nessa época. Deixou a academia e foi para Oxford a fim de matricular-se
no colégio "Exeter" na categoria de "estudante pobre". Isso aconteceu em agosto de 1683.
Ao abandonar os Dissidentes teve de custear seus próprios gastos. Iniciou a carreira
na Universidade com 45 shillings. Ali trabalhou como servente e ao mesmo tempo
ajudava seus condiscípulos no preparo das lições. Graduou-se Bacharel em Artes em
1688. Durante o tempo que ali esteve, e apesar do curso que deu à sua vida, não pode
deixar de revelar que nele ainda perdurava muito do que caracterizara seus
antepassados. Quando, anos mais tarde, seus filhos João e Carlos estavam tão
empenhados com o "Clube Santo", por eles organizado em Oxford, e tão metodicamente
assistiam os prisioneiros no "Castelo", ele lhes escreveu o seguinte:
"Segui adiante, em nome de Deus, pelo caminho reto em que vosso
Salvador vos tem dirigido e nas pisadas deixadas por vosso pai que vos
precedeu, pois quando era estudante em Oxford, também visitava o "Castelo", do
que me recordo com grande satisfação até ao dia de hoje." (4)
Verificamos, portanto, que o interesse pelos pobres e pessoas caídas em
desgraça era peculiaridade inerente ao temperamento dos Wesley.
Depois de formado, tomou conta de uma igreja, à qual serviu até que foi nomeado
capelão de bordo de um bote de guerra, mas não ficou muito tempo nesse posto. Passou a
servir por dois anos em um curato na cidade de Londres. Durante esse período casou-se
com Susana Annesley. Desse matrimônio nasceram dezenove filhos. Em 1691 foi
enviado à pequena paróquia de South Ormsby, onde ficou até princípios de 1697, quando foi
para o povoado de Epworth, no condado de Lincoln. Ali permaneceu até ao dia de sua morte,
em abril de 1735.
Sua vida incluiu o período da restauração do rei Carlos II que morreu em 1685, e do
governo de Jaime II que o sucedeu no reinado até 1688. Ambos se inclinaram para a Igreja
11
Católica, especialmente o último, que, ao favorecer esse culto, provocou grande discórdia
nacional. Esta atitude foi a causa por que a maior parte da nação se opôs a ele. Em 1688
estourou a revolução que obrigou Jaime II a refugiar-se na França. Guilherme III de Orange
e Maria, sua mulher, da casa real inglesa, foram declarados juntamente soberanos da
Inglaterra. Assumiram o posto em 1689 e governaram o país até 1714.
Coube a Samuel Wesley viver, portanto, durante uma época de grandes
convulsões políticas. Isto não foi tudo. Houve, também, notável mudança social na vida
da nação. Processava-se grande êxodo do campo para as cidades e vilas. O antigo
sistema feudal ia, pouco a pouco, perdendo seu poder, para dar lugar a uma crescente
vida comercial e industrial. Os filósofos Hobbes e Locke introduziram a filosofia
empírica na vida intelectual. O cientista Newton reduziu o mundo a uma máquina
harmônica e completamente sujeita as leis imutáveis. Despertou-se sede intensa por uma
vida pletórica (superabundante, exuberante) de riquezas e prazeres. Após o tratado de
paz de Utrecht, notou-se grande incremento no comércio e especulação.
Organizaram-se várias e notáveis companhias comerciais. Entre elas a Companhia dos
Mares do Sul (South Sea Co.), que se propunha explorar as riquezas da América espanhola,
considerada mina inesgotável.
Os reis Jorge I e Jorge II reinaram no período compreendido entre 1714-1760.
Além disso, desde 1689 se estabeleceu uma pendência com a França, que durou, com
ligeiras interrupções, cerca de cem anos. Guilherme III de Orange teve de lutar, ao
mesmo tempo, contra Irlanda e Escócia, para estabelecer-se no poder. Seu governo
trouxe consigo a corrupção política e religiosa da casa de Hanover, a cuja dinastia pertencia
Guilherme. Isto nos ajuda, por certo, a formar idéia geral da situação. Particularmente no
terreno religioso, as condições eram alarmantes, como o revela a citação que segue:
"Com a ascensão ao trono da casa de Hanover, a Igreja entrou num
período de vida anêmica e inativa: muitos estabelecimentos eclesiásticos
foram descuidados. Os serviços religiosos diários foram descontinuados, os
dias santificados já não eram levados em consideração; a Santa Comunhão
era observada ocasionalmente; pouco se cuidava dos pobres, e embora a Igreja
conservasse sua popularidade, o clero era preguiçoso e olhado com
desprezo. Ao submeter-se ao estabelecimento da coroa real, o clero
geralmente sacrificava suas convicções pelas conveniências, e por isso seu
caráter se envilecia (tornava-se vil, aviltado, desonrado). As promoções
12
dependiam exclusivamente da profissão que se fazia dos princípios
conservadores. A Igreja se considerava subordinada ao Estado. Sua
posição histórica e suas prerrogativas eram ignoradas. E era tratada pelos
políticos como se sua função principal fosse apoiar o governo." (5)
Sucintamente, este foi o mundo em que viveu Samuel Wesley. Nós nos
maravilhamos de que em tal ambiente pudesse desenvolver-se um homem de seu porte.
Isso explica porque o meio ambiente pode não ser o único fator na formação de uma
personalidade. Porque, acima de tudo, o que se aninha no coração é o que faz, em última
análise, que uma vida floresça em virtude e utilidade. E o que Samuel armazenou nele foi
uma profunda fé nos valores permanentes da religião cristã.
Uma olhadela a Epworth nos ajudará a admirar ainda mais a pessoa de Samuel
Wesley. Epworth não era lugar muito grande. Era tão-só uma vila que contava com um
mercado e dois mil habitantes. Não obstante, distinguia-se por ser o lugar mais importante do
Distrito, conhecido com o nome de Ilha Axholme, cujas dimensões eram de 16 quilômetros
de comprimento por 6 quilômetros de largura. Epworth era a mais importante das sete
paróquias estabelecidas naquela região, e foi dedicada a Santo André. A paisagem não
era muito poética. Os terrenos pantanosos que circundavam a região davam-lhe aspecto
desolador. O solo era baixo e sujeito às inundações prolongadas. E ainda mais, os
habitantes não eram mui corteses com as pessoas que não fossem do mesmo estofo
(nível, categoria) social que eles.
O Rev. W. H. Fitchett nos pinta vividamente o caráter hostil dessa gente:
“Cinqüenta anos antes (que Samuel Wesley fosse estabelecer-se ali)
essa rude casta havia mantido uma guerra civil mal dissimulada com o
engenheiro holandês Comélio Vermuyden, a quem Guilherme de Orange havia
contratado para dessecar (tornar seco) esse velho pantanal: rompiam-lhe os
diques, espancavam seus operários, queimavam-Ihe as colheitas. Igual atitude
conservaram com o próprio Samuel Wesley: acutilavam (golpeavam com
cutelo, agrediam com arma branca) suas vaquinhas e mutilavam as ovelhas;
rompiam os diques à noite para inundar-lhe o pequeno campo; perseguiam-no
amiúde por suas dívidas e trataram, não sem êxito, de queimar abertamente
a casa pastoral, para depois acusá-Io de que ele mesmo havia posto o fogo." (6)
Tal foi a comunidade a que serviu, durante trinta e nove anos, com paciência de
Jó. Perseguições, ódios, prisões não removeram de seu posto o pároco de Epworth.
Manteve sempre um temperamento decidido e valente. Uma vez e outra seus amigos
instaram com ele para que abandonasse esse lugar, mas ele não o fez. Em 1705
escreveu ao arcebispo de York, de sua prisão na fortaleza de Lincoln, o seguinte:
"A maioria de meus amigos me aconselha a abandonar Epworth, se é
que realmente me proponho sair daqui com vida. Confesso que não
compartilho essa idéia, porque imagino que posso ainda fazer algum bem ali;
sentir-me-ia covarde se desertasse do meu posto só porque o inimigo
concentra seus dardos inflamados contra mim. No momento chegaram a ferir- me,
mas creio que não poderão matar-me."(7)
Essas palavras "posso ainda fazer algum bem ali" expressam a confiança
maravilhosa de um homem sadio e de uma alma generosa. Oxalá muitos de nós tivesse o
mesmo espírito de resistência e esperança! Essa atitude merece respeito e admiração.
Evidentemente possuía a paciência de um santo. Mui poucas vezes se põem em
evidência os valores morais desse homem. Mas com freqüência se recordam com ironia sua
tediosa poesia e suas dívidas. Seria bom verificar se aqueles que acentuam sua inabilidade
financeira teriam podido fazer render melhor que ele seus minguados recebimentos,
diminuídos ainda mais pela hostilidade perversa de seus paroquianos! Talvez muitos
deles se entregassem ao desespero. Samuel fez o que esteve a seu alcance para
manter-se em dia, mas não lhe foi possível. Seu escasso salário e família numerosa não lho
permitiam. Extraordinário, sem dúvida, foi o fato que em meio a tantos tumultos e
necessidades, chegasse a escrever tanta poesia! Isso, certamente, o ajudou a viver.
Apesar de sua pobreza, empenhou-se em dar a seus filhos varões a melhor
educação que era possível obter na Inglaterra. Ele e sua esposa sacrificaram tudo a fim de
dotá-Ios convenientemente para a vida. Não se pode ler a carta que escreveu a seu filho
João, antes que este fosse ordenado, sem deixar de sentir grande admiração por esse
homem. Dizia-lhe, entre outras coisas:
"Lutarei durante por obter o dinheiro necessário para tua ordenação e o que for
necessário." (8)
Não somente providenciou dinheiro para os filhos que estavam na escola, mas
também, dia após dia, escrevia-Ihes cartas que eram de inapreciável mérito. As que
14
escreveram a seu filho Samuel (o mais velho dos varões), durante os anos 1706 a 1708 em
que este esteve na universidade, são de tal magnitude, que o lê-Ias ainda hoje nos comove.
Qualquer filho poderia sentir-se moral e espiritualmente elevado se seu pai lhas escrevesse.
Impregna-as um sensível espírito de piedade, amizade e sabedoria cristã. Não nos
admiremos, pois que seus filhos crescessem para ser tão sábios!
Um espírito heróico domina a fé de Samuel Wesley. Ante os desacertos mais
trágicos e provas mais terríveis de sua vida, sempre se manteve fiel a Deus. Jamais o
deixou de lado. Para ele, Deus era sempre o mesmo. Numa oração que nos deixou, dizia em
certo ponto:
"Estou cansado de minhas aflições, meu coração me falha, a luz de
meus olhos vai-se apagando,estou afundando-me em águas profundas e não
há quem possa ajudar-me. Mas ainda assim, espero em ti, meu Deus. Embora
todos me abandonem, o Senhor me susterá e nele encontrarei sempre a mais
verdadeira, a mais carinhosa, a mais compreensiva, infindável e poderosa
amizade. Deixem-me que nele eu alegre minha alma atribulada e descanse de
todas as minhas tristezas." (9)
Escrevendo ao Duque de Buckingham acerca do incêndio de sua casa pastoral
em 1709, depois de terminar de contar-lhe daquela noite trágica de incêndio, conclui:
“...tudo está perdido. Louvado seja Deus!" (10)
Esta última frase nos recorda a exclamação de Jó quando perdeu tudo o que de mais
querido possuíra na vida. Um pai, com tal fé e esse sereno espírito de submissão ao Senhor,
não podia senão influir de modo positivo na vida e pensamento de seus filhos. Esteve
sempre mui chegado a sua esposa. Não lhe deu toda a comodidade de que ela precisava,
mas lhe deu tudo o que esteve a seu alcance. Escrevendo a respeito dele, depois de
trinta anos de vida conjugal, Susana diz:
"Desde que tomei a meu esposo para o melhor ou para o pior, tenho
decidido permanecer sempre a seu lado. Onde ele viva, viverei eu; onde ele
morra, morrerei eu e ali serei sepultada. Queira Deus acabar comigo e fazer
mais ainda, se alguma outra coisa que não seja a própria morte nos chegue a
separar." (11)
Por sua vez, ele a tinha em grande estima. No semblante que deixou de sua
15
esposa, em seu poema ”A Vida de Cristo", encontramos estas duas linhas mui belas e
expressivas:
"Ela encheu de graça meu humilde teto e abençoou minha vida; em
sua bênção me foi muito mais que esposa." (12)
Samuel era homem erudito. Escreveu em latim seu último grande poema sobre
Jó. Amou muito a poesia. Foi uma das grandes paixões de sua vida. Ajudou-o em diversas
ocasiões a enfrentar as aperturas econômicas. Dominou bem o grego e o hebraico.
Gostava de estudar a Bíblia nas línguas originais. Conhecia também algo do idioma caldeu.
A João escreveu:
"Estou pensando, já faz algum tempo, em produzir uma edição em
formato oitavo da Bíblia Sagrada, em grego, hebraico, caldaico, no grego dos
Setenta e na Vulgata Latina, e já fiz alguns progressos nela." (13)
Nessa mesma carta pede a colaboração de João. Como vimos, Samuel foi fiel à
sua vocação pastoral. Por 39 anos batalhou com um povo quase selvagem. Mas
finalmente saiu vencedor. Em 1732 escreveu a seu filho Samuel esforçando-se por
induzi-lo a tomar seu posto. Uma das razões que lhe dava para que aceitasse sua
proposta, a que realmente põe em primeiro lugar, é esta:
"Minha primeira e maior razão para isso é que estou persuadido de que
servirás a Deus e a seu povo aqui melhor do que eu o fiz; embora, graças
sejam dadas a Deus!, depois de quase 40 anos de trabalho entre essa gente,
ela estará melhorando muito, havendo mais de cem presentes na última
celebração da Santa Ceia, quando geralmente não tenho tido mais de vinte." (14)
Uma vez e outra seus paroquianos tentaram destruir sua obra, mas nem por isso,
jamais se descoroçoou (desanimou). Prosseguiu seu caminho. Essa perseverança vamos
encontrá-Ia mais tarde aos adaís (líderes) metodistas, especialmente em seus filhos João e
Carlos. Estes, tampouco, recuaram quando se viram frente a frente com a oposição
mantida pelos clérigos da Igreja da Inglaterra. Coube-Ihes sofrer e esperar longo tempo,
mas finalmente os desprezados metodistas se impuseram à consciência pública,
contribuindo poderosamente para a própria vida nacional e melhorando sensivelmente
àqueles que os haviam perseguido e desprezado.
16
A religião de Samuel Wesley não era meramente formal. Ele acreditava que a pessoa
devia chegar a ter segurança interna da salvação. Sustentava que a alma devia manter
relação direta com seu Criador. Antes de morrer, ao ter certeza de seu fim próximo, disse a
João Wesley: “O testemunho interno, filho, o testemunho interno; esta é a prova, a prova
mais verdadeira do cristianismo.” (15)
E pouco antes de deixar este mundo exclamou:
"Pensai no céu, falai do céu; todo o tempo em que não estamos falando
do céu, está perdido." (16)
A religião era para Samuel a maior das realidades. Sempre foi seu mais alto refúgio
e seu mais acariciado interesse. Sem dúvida ele teve suas fraquezas. Nenhum homem é
perfeito. Tendo em conta, pois, a debilidade humana, seria melhor que avaliássemos o
homem pelo que haja produzido de bom e permanente. Está fora de dúvida que a
humanidade seria muito melhor se todos os pais fossem fiéis a seu Senhor e
dedicados a sua família como Samuel Wesley o foi, e se pudessem oferecer a Deus e à
sociedade o tipo de filhos que ele legou à Inglaterra e ao mundo.
NOTAS:
(1) Stevenson, G. J.: "Memorials of the 'Wesley Family", pág 4.
(2) Stevenson, G. J.: Op. Cit (3) Pelo autor de "Wesley e seus Amigos”
4) Citado por Stevenson, G. J., Op. Cit. págs. 130-131, de uma carta que Samuel Wesley escreveu a seu filho João
com data de 21 de setembro de 1730.
(5) “Wesley and His Century", pág. 33. Stevenson, G. J., Op: Cit. pág. 92.
(6) “Wesley and His Century", pág. 33.
(7) Stevenson, G. J., Op: Cit. 92
(8) Stevenson, G. J., Op. Cit. pág 121
(9) Citado de Stevenson, G. J., Op. Cit. Pág 95.
(10) Ver carta em Stevenson, G. J., Op. Cit. 107-109.
(11) Citado de Stevenson, G. J., Op. Cit, pág 61. (12)
Idem (She graces my humble roof, and blest my life, Blest me by a far greater name than wife). (13)
Idem, pág. 120.
(14) Stevenson, G.J., Op. Cit. pág. 136.
(15) Idem, pág. 136.
(16) Idem, pág. 149.
17
CAPÍTULO SEGUNDO
OS VANGUARDEIROS - 2
Os antepassados de João e Carlos Wesley pela linha paterna
“...minha preocupação mais entranhável é por tua
alma imortal e por tua felicidade espiritual..."
Susana Wesley
Não muitas mulheres cristãs da têmpera e caráter de Susana Wesley, mãe de João e
Carlos Wesley, enumeram a história da Igreja. Susana possuía muitas características
que lhe deram lugar de destaque entre suas congêneres, principalmente pelo renome e.
obra de seus filhos. Não possuímos muitas notícias a respeito de seus antepassados, salvo
algumas memórias acerca do seu pai Samuel Annesley e de seu av materno, João
White, com os quais nos deteremos brevemente.
18
João White
João White era gaulês. Estudou também em Oxford, no Colégio de Jesus. Mais
tarde formou-se em leis e estabeleceu escritório de advocacia, de onde se empenhou na
defesa de muitos puritanos. Em 1636 foi eleito membro da Câmara dos Representantes,
opondo-se à política do rei Carlos I. Era presidente do "Comitê de Religião" e nessa
qualidade teve de haver-se com os casos de quase cem clérigos, cujas vidas não
harmonizavam com a posição que ocupavam. Como resultado dessa tarefa, que lhe
proporcionou ocasião para estudar a vida íntima do clero de sua época, publicou um
volume intitulado: "Primeiro Século de um Sacerdócio Malicioso e Escandaloso". Também foi
membro da "Assembléia de Teólogos" de Westminster. Consumiu-o cedo o zelo excessivo
com que se dedicava a suas múltiplas tarefas, a tal ponto que morreu ao contar tão-somente
54 anos de idade. Morreu em janeiro de 1644.
Uma coisa, entre outras, se impõe à recordação: num discurso que pronunciou no
parlamento, em 1641, tratou de provar que os ofícios de bispo e presbítero são a mesma
coisa. Asseverou, ainda, que as distinções que se fazem entre vigários, diáconos e outros
clérigos são produto de inovações humanas, sem razão de ser. (1) Não nos espantará,
pois, que João Wesley, seu bisneto, quase um século mais tarde, advogasse pela
igualdade de ordens entre o ofício de bispo, e de presbítero, e que o levasse, ante a
negativa de seu bispo, a ordenar alguns de seus pregadores itinerantes, ainda quando as leis
canônicas da Igreja da Inglaterra não lhe permitissem fazê-lo, a fim de prestar melhor serviço
eclesiástico por meio da Igreja Metodista que se havia formado na América do Norte, sob
alegação da independência política desse país.
19
Samuel Annesley
Da família do pai de Susana não temos outras notícias senão as do próprio Samuel
Annesley. Sabemos que era de linhagem aristocrática, primo-irmão do conde de
Anglesley, e que nascera no ano de 1620 na localidade de Haseley, Warwickshire. Seu pai
faleceu quando ele tinha apenas quatro anos de idade. Sua mãe, mulher mui piedosa,
ensinou-lhe a ter em muita estima a pureza de vida religiosa. Diz um seu biógrafo:
"Desde a infância seu coração sentiu o chamado para pregar, e, a fim de
estar em condições de fazer tal coisa, começou a ler a Bíblia seriamente
quando tinha somente 5 ou 6 anos de idade. E tal era seu ardor que se propôs ler
vinte capítulos por dia, costume que manteve até ao fim da vida." (2)
Quando completou quinze anos foi para a Universidade de Oxford, matriculando-se
no "Colégio da Rainha" (Queen's College), onde se graduou Mestre em Artes. Aos 24
anos decidiu dedicar-se ao trabalho da Igreja. Foi num período difícil para a Inglaterra, na
época em que seu rei estava contra o parlamento. Depois de receber diploma de Doutor em
Leis (LL.D.), foi nomeado capelão de um barco de guerra, posto que não o agradou,
abandonando-o logo para assumir a responsabilidade da paróquia de Cliffe, no condado de
Kent, em cujo pastorado permaneceu por muitos anos. A princípio os paroquianos não o
queriam, mas lamentaram quando os deixou. Sua fidelidade lhe havia ganho o amor do
povo. Teve de deixar o lugar por causa de algumas coisas duras que ele disse contra a
execução de Carlos I e contra Cromwell e outros oficiais da "Commonwealth". Em 1652
assumiu o cargo da pequena paróquia de São João Evangelista, em Londres. Em 1657 foi
nomeado leitor para a tarde de domingo na catedral de São Paulo. Mais tarde Ricardo
Cromwell (filho de Oliver Cromwell) nomeou-o vigário de São Gil onde serviu até 1662,
quando foi sancionado o "Ato de Uniformidade".
Era puritano convicto e, como Bartolomeu e João Wesley (o avô), manteve sua
liberdade de consciência renunciando aos privilégios de uma paróquia da Igreja Oficial.
Durante dez anos pregou em particular e sob circunstâncias difíceis. E pelo que se
chamou mais tarde o "Ato de Indulgência", obteve permissão para pregar no salão de
cultos de "Little Saint Helen's". Serviu ali com fidelidade até que foi chamado à vida
superior.
Casou-se duas vezes. Sua primeira esposa foi sepultada em 1649 e o único filho de
ambos faleceu também, em 1653. A segunda vez, desposou a filha de João White, em
1652, provavelmente depois de sua ida para Londres. De sua segunda esposa teve vinte e
quatro filhos, entre os quais Susana, mãe de João e Carlos Wesley, foi a última a
chegar. Era ela mulher de dotes piedosos e muita prudência, desvelando-se muito pela
instrução religiosa de seus filhos.
A casa de Samuel se constituiu em refúgio de muitos dissidentes e local de
encontro dos párocos não-conformistas. Aos jovens estudantes da "Academia dos
Dissidentes" era agradável estar em sua casa. Entre eles encontramos Samuel Wesley (pai
de João e Carlos), e sem dúvida, foi naquela época que travou conhecimento com aquela
com quem se casaria alguns anos mais tarde. Consta que o Dr. Annesley era mui frugal
em sua maneira de viver. Diz o historiador da família:
"Bebia tão-somente água. Estudava num cômodo no desvão de sua
casa, com as janelas abertas e sem aquecimento no verão ou no inverno.
Tinha uma renda considerável das propriedades que herdara, além de seu
salário, todavia separava para fins benevolentes a décima parte de tudo quanto
recebia, prática que punha em exercício antes de usar o restante em outras
coisas." (3)
Como veremos mais adiante, encontraremos traços de algumas destas
características em seu neto João Wesley.
Susana Wesley
Susana Wesley ocupou o vigésimo quarto lugar entre os filhos que o Dr. Samuel
Annesley teve de seu segundo matrimônio. Nasceu ela em Londres, a 20 de janeiro de 1669.
Recebeu educação fora do comum para uma mulher de sua época. Além da língua materna,
estudou grego, latim e francês. De uma carta que seu esposo escrevera a seu filho Samuel
em 1707, infere-se que ela não tinha conhecimento mui esmerado de latim. O pai, ao
insinuar a seu filho que lhe escreva acerca de seus pensamentos mais íntimos, diz-lhe:
"...eu te prometo segredo, que mesmo tua mãe de nada saberá, a
menos que tu queiras que ela saiba, por isso seria conveniente que me
escrevesses em latim." (4)
Provavelmente ela o havia esquecido por não usá-lo, pois o Dr. Fitchett diz que o
conhecia em sua adolescência.(5)
Adornava-a uma inteligência brilhante e mente vivaz. Desde a infância manifestou
interesse incomum pela teologia. Depois de ponderar os motivos que haviam suscitado as
controvérsias entre os Dissidentes e a Igreja da Inglaterra, decidiu lançar sua sorte com esta.
Contava, então, 13 anos de idade. Casou-se com Samuel Wesley na primavera de 1689 e
trouxe ao mundo dezenove filhos no espaço de 21 anos. Sobreviveu sete anos além de seu
esposo. No entanto, quando faleceu, alcançou a mesma idade que ele tinha ao morrer,
isto é, 72 anos.
Nessa ocasião estava em Londres vivendo com seu filho João Wesley na
chamada Fundição (local de cultos que João Wesley adaptara de uma velha fundição de
canhões).
Certamente Susana foi uma das mais instruídas e inteligentes mulheres de sua
época. O Dr. Fitchett assevera que "ela era, provavelmente, a mulher mais capaz de toda a
Inglaterra em sua época".(6) Contudo, a grande glória de Susana não a encontramos em seus
conhecimentos intelectuais, e sim em seu poder de penetração e em sua
sensibilidade espiritual. Temos de admirá-la, também, por sua consagração aos
interesses e misteres do lar, pelo cuidado extremo que dedicou aos filhos, pela
intensidade de sua fé e a paciente integridade com que soube enfrentar as diversas e
contínuas provas de sua vida. Diz o Dr. Fitchett que lhe faltava veia humorística.
Possivelmente isso fosse verdade, mas devemos recordar,.nos de que era responsável
por uma família numerosa, e que muitas vezes tinha de engenhar para alimentá-la, de
modo particular quando o esposo estava no cárcere por causa das dívidas contraídas.
Estava sujeita a sofrer os desmandos do povo hostil, que, geralmente
demonstrava pouca ou nenhuma simpatia com sua família, e serenamente assistiu à
reiterada prova e humilhação de ver o esposo ir para o cárcere. Demais, sua saúde era
pobre, o que fez seu marido informar seu arcebispo: "Minha esposa está enferma a metade
do tempo". (7) Nestas circunstâncias era realmente difícil conservar veia humorística!
Foi esposa exemplar e mãe modelo. Como esposa sempre esteve pronta para
seguir o marido e secundá-lo em todas as ocasiões e provas. Por ele esteve disposta a
submeter-se aos maiores sacrifícios e a defendê-lo de qualquer ataque que alguém
ousasse fazer-lhe. Em todo sentido foi grande ajudadora, tanto em sua vida como em sua
obra. Como mãe, extremou-se em dispensar aos filhos o melhor e mais nobre do que é capaz
de oferecer a religião cristã. Talvez tenha sido mui severa e rígida em seus métodos
educativos. Todavia, o importante é que adotou um método e, acima de tudo, um método
digno dirigido para um fim elevado. Acostumava os filhos a ter horas marcadas para cada
dever, e ela foi a única professora que cada um deles teve na aldeia de Epworth. Seu
filho Samuel foi o único a quem providenciaram professor particular durante a infância.
Para Susana, o supremo no lar era a religião. Preocupava-se com extremo zelo
pela educação religiosa dos filhos. Esta foi a razão por que os filhos varões chegaram a ser
personagens tão distintos e úteis para o mundo todo. Separava, além das devoções
familiares, uma hora semanal para cada um deles. No ano 1712 escreveu a seu esposo:
"Resolvi começar com meus próprios filhos e, portanto, me propus
observar o seguinte método: Tomo, da porção de tempo que posso
economizar cada noite, o necessário para discorrer com cada um deles,
separadamente, acerca do que seja sua principal necessidade. Segunda-feira
conversava com Molly, terça-feira com Hetty, quarta-feira com Mary, quinta-feira
com Jacky, sexta-feira com Patty, sábado com Carlos e domingo com Elimia e
Sukey juntas." (8)
Como vimos, a noite dedicada a João era a quinta-feira. Podemos imaginar a
influência que isso teria sobre sua jovem vida. Foi nesse mesmo ano quando escreveu
essa carta, que começou a ter reuniões em sua casa enquanto o esposo estava ausente
durante vários meses. Surpreendentemente a freqüência foi crescendo cada vez mais em
22
número. Às vezes mais de duzentas pessoas vieram ouvir suas exortações e a leitura de
sermões. Duas vezes, por instigação do ajudante de seu esposo, ela recebeu do marido
sugestão para que desistisse de dirigir tais reuniões, por achar que era conduta
inconveniente para uma mulher. Não obstante, ela continuou adiante com esse costume. E
respondendo à segunda carta, que sobre o assunto lhe escrevera o esposo, disse-lhe:
"Se tu, sem dúvida, pensas que é conveniente dissolver esta assembléia,
não me digas que desejas que eu o faça, porque isso não seria suficiente para
satisfazer a minha consciência. Se assim for, envia-me tua ordem positiva, em
termos tão completos e terminantes que me absolvam de toda culpa e castigo por
haver descuidado esta oportunidade de fazer o bem, no dia em que tu e eu
apareçamos diante do grande e terrível tribunal de Nosso Senhor Jesus
Cristo." (9)
Diante dessa ordem inequívoca, Samuel Wesley nada mais disse, nem mencionou o
assunto em cartas posteriores. Ela, portanto, continuou com as reuniões, o que
conquistou para a Igreja a simpatia e o interesse do povo que por tantos anos antes se
havia conservado alheio aos interesses religiosos. Desta maneira, trouxe ela grandes
benefícios à obra do esposo, maiores do que este conseguira durante muitos anos de seu
ministério ali. João e Carlos estavam em casa nesse período. Certamente que tais
reuniões deviam ter deixado funda impressão em suas mentes infantis. Sua mãe estava
iniciando-os numa prática que eles adotariam mais tarde em todo seu ministério: a de
dirigir reuniões de caráter devocional e evangelizador fora da Igreja.
A educação religiosa que ela principiara em casa com cada um dos filhos não se
interrompia quando eles saíam do lar por seus estudos ou outras razões. Continuava seu
ministério maternal através de cartas. A leitura das cartas que ela escrevia a seus filhos e a
seu esposo nos seria de grande benefício, pelo profundo espírito de piedade que exala de
todas elas. Através das palavras que traduziam seus pensamentos, vislumbramos a alma
de uma mãe zelosa ajoelhada diante do Senhor, rogando por bênçãos
permanentes a favor dos filhos. Exemplo do espírito que a incitava a escrever essas cartas
encontramo-lo no seguinte fragmento de uma que escrevera a sua filha Susana:
"Tu sabes mui bem como te amo. Amo teu corpo e rogo ferventemente a
Deus Todo-poderoso que to mantenha com saúde, que te conceda todas as
23
coisas necessárias a teu bem-estar e sustento neste mundo. Entretanto, minha
preocupação mais entranhável é por tua alma imortal e por tua felicidade
espiritual. Não posso expressar melhor meu interesse nesse sentido, senão
esforçando-me por insti lar-te, a todo instante, aqueles princípios de
conhecimento e verdade que são absolutamente necessários para que te
empenhes em levar aqui uma vida virtuosa, que é o único que pode
infalivelmente assegurar tua felicidade eterna." (10)
Ainda que muitas vezes estivesse impossibil itada de mover-se por suas
freqüentes enfermidades, não se escusava de cumprir com sua obrigação de mãe cristã, e
empenhava-se, então, em escrever longas cartas a seu Samuel, ou a João, ou a
Susana, ou a Carlos. Mesmo depois que eles se casaram e eram portadores de graus
acadêmicos, continuou seu ministério paciente e epistolar, exortando-os a viver sempre
junto ao Senhor, e a servi-lo. De sua parte, freqüentem ente os filhos a consultavam
quando se lhes apresentava algum assunto importante para resolver. Mais de uma vez
ajudou a João no desenvolver de seu movimento religioso. Especialmente útil foi seu
conselho quando, nas Sociedades Metodistas, se iniciou a pregação leiga. Sua palavra,
discreta e serena, mui amiúde evitou que seu filho João, levado pelo impulso do
momento, tomasse resoluções precipitadas.
Vale a pena notar que atrás de cada grande homem da História, quase
invariavelmente se descobre o grande, piedoso e amoroso coração de uma mãe
consagrada.
Sua fé em Deus e em Cristo era maravilhosa. Nada, nem ninguém podia separar seu
coração da companhia de Deus. Foi mulher que sofreu muito, mas tanto ela quanto seu
esposo jamais olvidaram que Deus era sua fortaleza e salvação. Cria firmemente na eficácia
da oração intercessória. Orava com seus filhos quando viviam a seu lado, e por eles
quando se achavam ausentes, dedicando sempre muito tempo a suas devoções. Era muito
organizada, meticulosa e severa em muitos de seus métodos. A esse respeito escreveu
certa ocasião:
"Quando era jovem e dedicava demasiado tempo a diversões infantis,
resolvi não gastar em passatempos nem um só dia, mais do que eu pudesse
dedicar a minhas devoções pessoais."
Alguém que a conheceu muito intimamente escreveu :
"A graça manifestava-se em todos os seus passos, o zelo se refletia em
seus filhos e cada gesto seu expressava divindade e amor."
Em seus empreendimentos era pertinaz e perseverante. Basta um incidente para
ilustrar essa característica. Um dia o esposo havia estado observando-a enquanto ela instruía
a um de seus filhos. Num dado momento interrompeu-a para dizer-lhe:
"Admira-me a tua paciência. Disseste aquele menino vinte vezes a
mesma coisa." A isso ela respondeu: "Se eu me houvesse contentado em
dizê-la somente dezenove vezes teria perdido tudo. Pudeste verificar que foi
somente a vigésima que coroou meu trabalho." (11)
É muito possível que sua religião pudesse parecer, às vezes, demasiado
mecânica e formal. Entretanto, impregnava-a uma fé e esperança portadoras de muitas
bênçãos morais e espirituais. Sem dúvida que é melhor ter um método, a não ter nenhum e
esquecer-se dos ditames de uma vida religiosa. Por certo que o mundo é mais rico no que
se refere aos valores morais e espirituais, pela vida que levou essa mulher piedosa e heróica,
cujas virtudes se manifestara;m e desenvolveram tão meritoriamente no seio de sua casa e
família. Um dos estudiosos da história do metodismo fez sobre seu caráter este elogioso
comentário:
"Tenho-me familiarizado com muitas mulheres piedosas e tenho lido
sobre a vida de outras, mas de uma mulher como essa, completa e perfeita,
nunca tenho ouvido falar, tampouco tenho lido que existisse e jamais tenho
entrado em contacto com uma de .tal magnitude. Apenas Salomão descreveu no
final de seus Provérbios a uma tal como esta, e adotando suas palavras, posso
dizer: "Muitas mulheres procedem virtuosamente, mm Susana Wesley a todas
sobrepuja'." (12)
Ela, em verdade, foi uma dessas almas que mui raras vezes passam entre nós, e
cujas vidas exalam a íntima graça divina: amando, servindo e sofrendo em nobre silêncio.
Bem-aventurada seja sua memória!
25
NOTAS:
(1) Stevenson, Q. J., Op. Cit., pág. 158.
(2) Mc Tyeire, H. N.: "History of Methodism”, pág. 20
(3) Pelo autor de "Wesley and his Friends", pág. 20.
(4) Stevenson, G. J., Op. Cit. Pág. 104. (5) Idem, pág 15.
(6) Stevenson, G. J., Op. Cit., pág. 16.
(7) Fitchett, W. H., Op. Cit., pág. 18.
8) Citado de uma carta que ela escreveu a 6 de fevereiro de 1712, Stevenson, G. J., Op. Cit. pág. 195
(9) Stevenson, G. J., Op. Cit., pág. 197, citado de uma carta que ela escrevera em 25 de fevereiro de 1712.
(10) De uma carta escrita de Epworth, a 13 de janeiro de 1709 ou 1710, citada por Stevenson, G. J., Op. Cit. 281.
(11) Wiseman, F. Luke, "Charles Wesley", pág. 19.
(12) Clarke, Adam Dr., citado por Stevenson, G. J., Op. Cit., pág. 230.
CAPÍTULO TERCEIRO
UM TIÇÃO
TIRADO AO FOGO
“O Mundo é minha paróquia”
João Wesley
Entre os grandes evangelistas e reformadores da Igreja Cristã está João Wesley,
filho de Susana e Samuel Wesley, dos quais já falamos em páginas anteriores, e
certamente figura entre os mais destacados. Sua figura singular atrai, todavia, a lealdade de
muitos milhões ao redor da Terra, como alguém que soube interpretar a Cristo e
apresentá-lo às multidões com a graça perdoadora e redentora que aparece no
Evangelho.
Como a maioria dos grandes reformadores e evangelistas da História, ele não estava
interessado no estabelecimento de um novo corpo eclesiástico que levasse seu nome, e
sim numa renovação da vida da Igreja e na formação de uma consciência aberta aos influxos
da graça divina. Que seu movimento se concretizasse mais tarde em uma nova denominação
foi conseqüência de fatores que ele não pôde controlar. É importante recordar, em conexão,
que João Wesley, como seu irmão Carlos, jamais abandonou as fileiras da Igreja Anglicana
a cujo ministério se consagrara. Demonstra isto que diverso era seu propósito ao iniciar o
movimento que outros, e não ele, batizaram-no com o nome de Metodista.
Nasceu João Wesley no já descrito povoado de Epworth, a 17 de junho de 1703. Sob
26
a vigilância e tutela de sua mãe iniciou-se primeiramente nas lides do intelecto. No dia em
que completou cinco anos, como soia (costumava) acontecer com todo filho de Susana, teve
de aprender de cor todo o alfabeto. E o primeiro livro de leitura que teve na vida foi a Bíblia.
Cresceu numa atmosfera impregnada de piedade e disciplina. Sua mãe, como nos
lembramos, era muito rigorosa em seu método educativo, e bem depressa João teve de
aprender a chorar em silêncio quando era castigado sob o conceito bíblico, segundo o qual,
quando a mão paterna ou materna castiga, fá-Io para saúde de quem recebe a correção. O
amor de seus pais era, portanto, temperado com essa rigidez disciplinar, que fazia parte da
herança deixada a sua família por seus antepassados. A vida, mais do que gozo, era
disciplina que devia conduzir o indivíduo aos caminhos celestiais e salvá-lo das
tentações "do mundo, da carne e do diabo". Diz o seguinte um comentarista da vida familiar
dos Wesley:
"Não se julgava, então, que merecesse o nome de educação o que não
estivesse baseado no cristianismo e santificado pela Palavra de Deus e pela
oração. A religião familiar, no lar dos Wesley, formava parte essencial de sua
disciplina. E era caso de consciência instruir as crianças e dependentes sobre a
natureza de seus deveres sociais, morais e espirituais. Também tinham por prática
separar dias especiais para a oração, para a humilhação em épocas de
calamidades, e para a ação de graças ao ser recipientes de benefícios
especiais. " (1)
Já vimos como Susana escreveu a seu esposo em 1712 que ela tomara a
resolução de separar uma hora por semana para estar a sós com cada um dos filhos.
João tinha essa entrevista com sua mãe à noite de quinta-feira. Contava nessa época
apenas 9 anos. Entretanto essa foi uma das vivências que mais impressionaram o
menino, e sua recordação duraria toda a vida. Mais tarde, quando ele se encontrava longe do
lar e em meio de lutas de seu apostolado evangelizante, escreveu a sua mãe rogando-lhe
que ainda separasse para ele aquela hora, de maneira que ela pudesse acompanháIo com
seus rogos e orações, ou escrever-lhe sobre coisas de ordem espiritual.
Acostumou-se, desde cedo, a separar cada hora do dia para algo em particular. Buscava,
desse modo, aproveitar ao máximo seu tempo, para não desperdiçá-lo por falta de
disciplina ou em frivolidades.
Por duas vezes a casa pastoral foi incendiada pelo populacho da paróquia durante a
27
infância de João Wesley. Uma vez queimou-se apenas em parte, e outra (em 1709)
totalmente, ficando destruídos os móveis, livros e manuscritos do pai. Na segunda
ocasião a mãe estava enferma, e com dificuldade pode escapar, não sem chamuscar as
mãos e o rosto. João achava-se dormindo no segundo piso. Quando perceberam isto, o pai
tentou resgatá-lo, mas era impossível: o fogo já havia tomado conta da escada que levava ao
andar superior. Então convidou os que haviam acudido ao local a ajoelhar-se e pedir a Deus
que recebesse em seu seio a alma do filho. Nesse momento se ouviu o choro do menino
que assomava (apareceu) desesperado pela janela de seu quarto. Ato contínuo um homem
subiu sobre os ombros de outro com tempo suficiente para alcançá-lo e descê-lo, livrando-o
do perigo. Feito isto, o teto caiu em chamas para dentro da casa. E à luz das chamas que
devoravam os restos da mansão, ajoelharam-se o grupo da casa pastoral e os vizinhos, a
convite do pai: "Vinde, vizinhos, ajoelhemo-nos e agradeçamos a Deus que me deu meus
oito filhos. Que se vá a casa! Sou suficientemente rico!" (2) E Wesley recordaria mais
de uma vez, ao longo da vida, este terrível incidente. Num de seus retratos mandou
gravar como emblema uma casa em chamas e a legenda: "Um tição tirado ao fogo!"
Aos 11 anos, isto é, em 1714, teve de deixar o lar e ir para Londres, onde
freqüentou como aluno interno até 1719 a escola Charterhouse. Naqueles dias a vida de um
interno era mui severa, e os meninos eram tratados com disciplina rígida, quase como se
estivessem num mosteiro. A situação se agravava ainda mais quando o aluno procedia de lar
pobre. Muitas vezes devia sofrer vexames da parte daqueles que se sentiam
superiores por sua posição social ou haveres de seus pais. João era por índole um tanto
tímido, e durante esses anos freqüentemente teve de suportar a fome, porque seus
colegas - coisa que era permitida nos internatos daquela época - tiravam-lhe a comida do
prato. Como era de constituição franzina, e por conselho paterno, cedo de manhã corria certo
número de vezes ao redor do edifício principal da escola, para fortalecer as pernas e os
pulmões. Hoje em dia consideraríamos tal disciplina inadequada, e trataríamos de ver que
um menino, em tais condições, tomasse mais alimento e vitaminas! Porém essas eram
outras épocas e os meninos não eram tratados como tais, e sim como adultos em miniaturas.
Tinham de aprender na rudeza da vida a fazer-se fortes e homens.
Por certo que foram anos de prova esses passados na Charterhouse. Ainda mais,
durante os mesmos fortaleceu-se-Ihe o ânimo e ele se preparou para aquela disciplina
que lhe seria necessária mais tarde, quando teve de fazer frente a tanta oposição e
perseguição. E periodicamente, como que para alentá-lo, chegavam as cartas de seus
pais, exortando-o a permanecer fiel a sua tradição religiosa no meio de tantos meninos que
não haviam tido, nem remotamente, a mesma influência cristã. O certo é que João Wesley
não guardou em sua memória recordações mui gratas daqueles anos. Olhava para eles
sem nostalgia, com sentimento de alívio; que sorte que haviam ficado para trás na história de
sua vida!
Em 1720 entrou para a Universidade de Oxford, assim como o haviam feito seus
antepassados, permanecendo ali, com pequenos intervalos, até 1735. Nos átrios
universitários não encontrou muito incentivo para aprofundar a vida religiosa. Nunca chegou a
perverter-se pelos costumes livres, quando não licenciosos e profanos, de seus colegas.
A religião era para ele, mais do que gozo interior, a observância de regras estritas.
Durante os anos que esteve ali se inclinou, primeiro para o formalismo e, depois, para uma
disciplina férrea. Essa religião deixava nele, com freqüentes assomos (indícios,
suspeitas) de crise, um sabor de descontentamento. Buscava cumprir os requisitos
legais, entretanto sua alma parecia ter fome de algo que não conseguia obter, e que ele não
sabia exatamente o que era. Como conseqüência se excedia em atos de caridade e
misericórdia, especialmente entre os pobres, os encarcerados e os enfermos. O motivo era
sempre mais do que, por um sentimento de solidariedade, buscar aplacar a "ira de Deus"
através desses atos e aparecer justificado ante os olhos divinos. Essa luta entre uma religião
formal e uma vivência pessoal interna da presença de Deus, perduraria muitos anos depois
de concluir seu curso de Bacharel em Artes. Durante aqueles anos sua peregrinação
espiritual sofreu muitos altibaixos (altos e baixos), apesar de haver-se ordenado
diácono em 1725 e presbítero em 1728.
Entre as influências que o ajudaram em sua formação religiosa destacam-se três
autores: Thomas Kempis, Jeremias Taylor e William Law, além de seu contacto com os
morávios (cristãos de origem na Morávia, Alemanha, cujo grande líder foi o Conde de
Zinzendorf) e de uma experiência missionária na colônia da Geórgia, região que hoje em dia
faz parte da América do Norte. Esses escritores, de caráter profundamente religioso e às
vezes especulativo, habituaram-no a pensar agudamente nos problemas da vida e da
morte, relacionados com a revelação cristã. Os morávios o levaram a busca de uma
religião que fosse expressão da fé pessoal em Cristo. E sua experiência missionária lhe
ensinou que, antes de poder evangelizar outros, o evangelista deve ter uma convicção
pessoal, profunda e íntima. Mui significativa é a confissão que escreve em seu Diário, em
fevereiro de 1738, ao voltar de sua aventura missionária na América, vendo novamente as
costas da Inglaterra: "Fui à América para converter os índios, mas, oh! quem me
converterá a mim?"
29
Somente depois de muito buscar nos escaninhos de sua consciência, de praticar
longamente com seus amigos morávios, de participar em reuniões de oração e exortação
com eles, chega à plenitude de sua experiência religiosa. Foi nessa inolvidável
(inesquecível) noite de 24 de maio de 1738, enquanto se realizava uma humilde reunião num
salãozinho de uma ruela de Londres, chamada AIdersgate, dirigida, presumivelmente, por
um leigo, cujo nome se desconhece, quando mediava (lia) a leitura do prefácio de Lutero à
epístola de São Paulo aos Romanos, que sentiu o amor de Deus "derramar-se em seu
coração".
É bem conhecida a descrição que ele mesmo faz dessa experiência. Narra-a em seu
Diário:
“Cerca das nove menos um quarto (20:45h), enquanto ouvia a
descrição que Lutero fazia sobre a mudança que Deus opera no coração
através da fé em Cristo, senti que meu coração ardia de maneira estranha.
Senti que em verdade eu confiava em Cristo, em Cristo somente para a salvação
e que uma certeza me foi dada de que ele havia tirado meus pecados, em
verdade os meus, e que me havia salvo da lei do pecado e da morte. Comecei a
orar com todo meu poder por aqueles que de alguma maneira especial me
haviam perseguido e insultado. Então testifiquei diante de todos os presentes
do que pela primeira vez sentia em meu coração." (3)
Desde esse momento sentiu-se novo homem e saiu dali "jubiloso" para ir em busca de
seu irmão Carlos, que na época estava enfermo, para informá-lo acerca de seu achado em
Cristo. Sentia-se com novos brios e indescritível entusiasmo. Mais tarde, interpretando
sua própria vivência religiosa através dos anos, diria que antes de Aldersgate sua relação
para com Deus havia sido a de um escravo para com seu senhor, e depois dessa época, a
de um filho para com seu pai. Foi a transferência de uma religião do temor para uma
religião de amor, de uma relação legal para uma relação de fé.
Não temos espaço suficiente para seguir toda sua trajetória espiritual desde 1724,
quando terminou o curso de Bacharel em Artes, até 1738, quando teve sua gloriosa
experiência. Já fizemos referência as suas ordenações. Mencionaremos ainda que em
1726, apenas um ano depois de sua primeira ordenação, foi nomeado tutor ("Fellow") na
Universidade de Oxford, no Colégio de "Lincoln", função que interrompeu entre 1727-
1729 para ser ajudante de seu pai na paróquia de Epworth. Samuel alimentava
esperanças de que o filho o sucedesse após sua morte. Mas João voltou a Oxford em 1729,
insistindo com seu pai em que não se ajeitava mais viver longe dos átrios universitários.
Tinha ali muito mais tempo e oportunidade para satisfazer a sede de saber que
sempre o incitava a novos conhecimentos e estudos. Uma simples olhadela em seu
programa (atividades, agenda) intelectual daqueles dias nos claramente porque a vida em
Epworth não teve atração suficiente para retê-lo.
"Dava lições de grego e era monitor das classes; primeiro foi instrutor de
lógica e mais tarde de filosofia. Demais, em seu plano semanal de estudos
pessoais incluiu o hebraico, árabe, grego, latim, lógica, ética, metafísica, filosofia
natural, oratória, poesia e teologia." (4)
João Wesley permanece em seu posto de tutor e instrutor até o mês de outubro de
1735, quando se retira com seu irmão Carlos e outros dois companheiros
universitários para ir à Geórgia. Já fizemos referência a essa sua aventura missionária e
sua volta à Inglaterra que culminou com a experiência religiosa em Aldersgate.
Desde 1738 até 9 de março de 1791, dia de seu falecimento, não recuaria em sua
imortal obra evangelizadora, tarefa que levou a cabo em todo o Reino Unido da
Grã-Bretanha. Contar essa dramática história, cheia de emotivas e estranhas peripécias e
extraordinárias realizações no campo religioso, tomar-nos-ia muito espaço. Os que
desejam penetrar mais fundo na vida deste homem têm à sua disposição grande
variedade de livros e outros materiais. Temos espaço apenas para notar algumas das
muitas características desse longo ministério. Antes, porém, daremos outra nota
biográfica que pode ser de interesse para completar o quadro de confronto.
João Wesley, sempre tão sagaz e clarividente em seus contactos e conhecimentos da
natureza humana, foi muito infeliz na busca de uma companheira que o secundasse
(ajudasse, auxiliasse) em sua obra e lhe desse um lar onde refazer suas forças ao calor do
afeto familiar. Não teve êxito algum em várias tentativas que fizera, tanto na Inglaterra
como na América, e que terminaram por uma razão ou outra em desgostos e desilusões.
Finalmente, casou-se em 1752 com uma viúva, mãe de dois filhos, que havia sido esposa de
um comerciante de nome Vizelle ou Vazeille, mulher de certa inteligência, que
aparentava ter dotes suficientes para dar-lhe o lar de que necessitava. Mas logo
31
percebeu que essa não era mulher para seu temperamento e tarefas. Ele não era homem
que pudesse estar inerte em casa. Dois meses após o enlace (casamento) estava
novamente entregue de cheio (totalmente) à vida itinerante.
Ela o acompanhou por algum tempo, mas acostumada como estava a outro teor (ritmo)
de vida, não pode, naturalmente, dar-se a esse constante peregrinar. O Dr. Stevens a
descreve assim:
"Infensa (contrária, adversa) a viajar, desgostou-se igualmente com as
ausências habituais do esposo. Por fim seu desgosto tomou a forma de ciúmes
monomaníacos (seus ciúmes e desconfianças eram idéia fixa, obsessivos).
Durante quase vinte anos o perseguiu com suas suspeitas infundadas e
suas importunações intoleráveis. Ante essas provações destacou-se
admiravelmente a grandeza genuína do caráter de Wesley, posto que sua carreira
pública jamais cambaleou nem perdeu um jota (nada) de sua energia ou
êxito durante sua prolongada desgraça doméstica. Uma vez e outra ela o
abandonava, mas voltava em face das reiteradas insistências dele. Ela
abria, interpolava e expunha, então, perante seus inimigos (os que se
opunham a Wesley) a correspondência dele, e, algumas vezes, viajava até
cem milhas para ver, de uma janela, quem o acompanhava em sua carruagem.
Finalmente, tomando consigo porções de seu Diário e outros papéis, que
nunca devolveu, deixou-o em 1771 com a promessa de que jamais vol tar ia. A
alusão que a es te fato e le faz em seu Diár io é caracteristicamente
lacônica. Não sabia, diz a causa imediata de sua determinação, e
acrescenta: "Non eam reliqui, non dimissi, non revocabo" ("Não a abandonei, não
a despedi, não a reclamarei de volta"). Viveu cerca de dez anos depois de
deixá-lo. Sua lápide sepulcral rememora suas virtudes como mãe e amiga, mas
não como esposa." ( 5)
Sabemos que tão logo depois de Aldersgate, João Wesley teve de fazer frente ao
antagonismo das autoridades eclesiásticas de sua própria Igreja, as quais achavam que
sua pregação, apesar de ser nitidamente bíblica e sincera, era de tipo revolucionário e
contrária aos cânones e ordenanças do eclesiasticismo oficial dominante. Viveu uma vida
peregrina de itinerante. Até onde lhe permitiram suas energias, viajou "a tempo e fora de
tempo", primeiro a cavalo e depois em carruagens. Calculou-se que andou cerca de
250.000 milhas, coisa assim de uns 400.000 quilômetros, e que pregou 42.400 sermões.
32
Naturalmente que estes não seriam todos diferentes; talvez seria melhor dizer que pregou
42.400 vezes, visto como confessou que só pregava bem um sermão depois de havê-lo
pregado umas trinta vezes. Possuía gênio organizador extraordinário que brotava de sua
maneira de ser metódico, pois jamais deixou de observar o hábito de dividir todas as
horas do dia entre suas diversas atividades, de tal maneira que sempre sobrasse algum
tempo para meditação, oração e estudo. Aos 82 anos ainda escrevia em seu Diário:
"Nunca me canso de escrever, de pregar e de viajar". Como ministro da Igreja Anglicana
jamais teve uma paróquia regular (uma igreja local onde exercesse seu pastorado) e,
apesar disso, não lhe cassaram as ordens. Mas quando lhe fecharam as portas da
Igreja, declarou: "O mundo é minha paróquia". Proclamava assim não apenas sua
independência das autoridades eclesiásticas mas também a amplitude de suas vistas.
Apesar de seu corpo estar sujeito a graves enfermidades, e mais de uma vez estar às
portas da morte, era de uma resistência admirável. Quase até ao fim de sua longa vida
esteve ativo, movendo-se de um lado para outro a fim de atender às múltiplas
necessidades de seu ministério. Nunca pensava em si mesmo, nem na possibilidade de
poupar energias. As necessidades humanas, fossem elas físicas, morais ou espirituais, não
lhe permitiam pensar em si mesmo. Toda a vida era uma oferenda a Deus, que se consumia
apaixonadamente no serviço a seus semelhantes. Comovedora é a anotação que registra em
seu Diário, quando já contava 81 anos:
"Terça-feira, 4 de janeiro de 1785. Durante esta estação usualmente
distribuímos carvão e pão entre os pobres da "sociedade" (grupo metodista). Mas
considerei que nas atuais circunstâncias necessitavam tanto de roupa como de
alimento. De modo que neste, assim como nos quatro dias seguintes, caminhei
pela cidade e solicitei duzentas libras esterlinas para vestir aos mais
necessitados. Sem dúvida foi trabalho duro, visto como a maioria das ruas
estavam cheias de neve em gelo, na qual mui amiúde me afundava até o
tornozelo, de maneira que meus pés andavam metidos na neve quase desde a
manhã até ao anoitecer. Passei muito bem até ao entardecer de sábado, mas
então tive de por-me na cama com violenta gripe, que agravava de hora em
hora, até que tive necessidade de que o Dr. Whitehead viesse ver-me às seis
horas da manhã. Sua primeira dose de medicamento me aliviou bastante e três ou
quatro mais completaram a cura. Se ele chegar a viver alguns anos, não duvido
que venha a ser um dos médicos mais eminentes da Europa."
33
Geralmente se levantava às 4h da manhã, e apesar de dizer que ele "nunca tinha
tempo para estar apressado", estava sempre em movimento e ocupado. Como o fizeram um
de seus avós, sua mãe, seu irmão Carlos e muitos outros de sua época, manteve um
diário, que hoje está reunido em muitos volumes, e cuja leitura ainda causa admiração de
quantos o lêem. Era, também, grande escritor de cartas, que foram recolhidas e formam
uma coleção considerável, estando também impressas. Além disso, era escritor incansável, e
tratou de muitos assuntos. Suas obras principais, porém, foram diversos comentários sobre
os textos bíblicos, especialmente do Novo Testamento, e as coleções de sermões para
pregadores itinerantes. Talvez nenhuma outra pessoa, por si mesma e por sua própria conta,
haja publicado tantos folhetos e livros como ele. Não só os distribuía pessoalmente, mas
também exortava a seus pregadores a que levassem sempre em suas maletas material
impresso para propagar a mensagem cristã. Entre os manuais que publicou tratou de uma
variedade de assuntos como teologia, poesia, música, história, moral, metafísica,
filosofia, política, etc. Procurava por em linguagem popular as obras mais clássicas. Seu
interesse na literatura não era pela literatura em si mesma, e sim para ilustrar (ensinar, dar
cultura) o povo de suas “sociedades”.
Certamente, se ele se houvesse dedicado à carreira militar teria chegado a ser um
grande estrategista, visto como na organização do movimento metodista demonstrou
possuir acabado caráter de organizador. Por isso que sua obra perdurou, não porque
somente era capaz de atrair para si as multidões a fim de ouvir suas mensagens, mas
também porque sabia agrupá-las em sociedades, classes e bands (pequenos grupos), de tal
maneira que mantinha constante supervisão sobre os aderentes e promovia desta maneira, o
aprofundamento de seu caráter cristão e a divulgação das doutrinas bíblicas.
Quando descobriu que os ministros da Igreja Anglicana não estavam dispostos a
acompanhá-lo em sua empresa (empreendimento) renovadora do espírito humano e dos
costumes sociais, lançou mão de pregadores leigos, não ordenados, aos quais mantinha em
constante movimento e dos quais exigia disciplina tão férrea quanto a sua, procurando
suplementar-Ihes a falta de conhecimentos teológicos pelas leituras abundantes e estudos de
caráter pessoal.
Não compreendia que houvesse pregadores capazes de cumprir com suas
obrigações de proclamar a mensagem cristã, sem estudo constante e diário de seis horas,
pelo menos. Isto se devia, em parte, porque ele mesmo se dedicava constantemente à
34
leitura, não só em horas de sossego ou tranqüilidade, mas também quando viajava a
cavalo.
Por certo não podemos dizer que João Wesley fosse um grande teólogo, como
Calvino ou Lutero. Foi, antes de tudo, um evangelista, um homem que deu lugar
proeminente à Bíblia, e de modo particular ao Novo Testamento. As "Notas" que escreveu
sobre o Novo Testamento vieram a ser uma espécie de compêndio normativo obrigatório para
qualquer pregador metodista. Em sua exposição bíblica não seguia nenhuma escola em
particular. Era Cristo que, em realidade, dominava seu pensamento e interpretação, e seu
espírito era a medida para julgar o valor de determinadas personagens ou idéias. Sua ênfase
estava centralizada em Cristo e na salvação que cada ser humano pode receber somente
pela fé nele. Apesar de o homem não se salvar pelas obras, estas são
imprescindíveis para revelar o caráter dessa fé. A salvação não é oferecida apenas a uns
quantos eleitos: a salvação está ao alcance de todo ser humano que atenda ao convite divino.
Deus em Cristo chama a todos os homens, e são estes os que decidem acerca de seu
destino, quer ao aceitar ou recusar a graça divina.
Assim, crendo que a salvação é universal (franca e possível para todos),
empenhou-se em proclamar e em que se proclamasse, com caráter de urgência, o
Evangelho "a tempo e fora de tempo ", em qualquer lugar e a toda gente, visto como "Deus
não faz acepção de pessoas", mas recebe a todo aquele que confessa seu pecado e aceita
seu perdão e sua graça. O Espírito Santo está ao alcance de qualquer pessoa que se
exponha a sua influência, e deve ser o poder dominante na vida do cristão, de tal maneira que
chegue a exclamar, por sua presença em sua vida: "Aba, Pai ", isto é, que sinta intimamente
que Deus é o Pai celestial que o ama, perdoa e salva, e que está sempre perto de quem o
busca. Ademais, o Espírito Santo conduz pelo caminho da santificação e perfeição a toda
pessoa que busque sua direção. Não obstante, João Wesley nunca afirmou que ele
mesmo houvesse alcançado tal grau de perfeição, capaz de eximi-lo de toda vigilância e
disciplina pessoal, embora cresse firmemente que a vontade de Deus é poderosa para
converter um pecador em um santo completo (uma pessoa com a vida santificada). Como
vemos, nada há de realmente novo na "teologia" de João Wesley, senão um destaque de
elementos que deveriam estar sempre à flor da consciência cristã. Um dos bispos da Igreja
Metodista ao considerar a natureza do Metodismo, escreveu:
"Não foi uma nova doutrina, mas uma nova vida que os primeiros
metodistas buscaram para si e para os outros. Conseguir que fosse real, no
35
coração e na conduta dos homens, o verdadeiro ideal do cristianismo, e manter a
experiência pessoal do mesmo e estendê-la a outros - esse era seu
propósito. A controvérsia deles não era com a Igreja ou as autoridades estatais,
mas com o pecado e Satanás. Seu único objetivo era o de salvar almas." (6)
Em conexão com isto, cabe consignar aqui a própria opinião de Wesley: "Creio que o
Deus misericordioso leva mais em consideração a vida e a maneira de ser dos homens que
suas idéias. Creio que aceita mais a bondade do coração que a glória do mundo".
Esta declaração de Wesley revela, ainda, que ele era mui tolerante, quanto a idéias
teológicas. Embora seja importante o que alguém pensa, é mais importante ainda o que esse
alguém é. Dizia também: "Dez mil opiniões podem separar-nos, mas se o teu coração
é como o meu, aperta-me a mão, porque somos irmãos".
Talvez não seja próprio que nesta época façamos as coisas da mesma maneira
como esse grande homem as levava a cabo, nem seja recomendável usar as mesmas figuras
de pensamento ao apresentar o Evangelho. Não obstante, o movimento metodista nos legou
características que são de valor permanente, e que jamais poderemos ignorar ou desprezar,
porque, em realidade, não emanam da mente ou vontade de João Wesley, mas da mente
e vontade de Cristo, que nos ordenou que fôssemos por todo o mundo pregando o Evangelho
a toda criatura.
Anualmente nossos irmãos metodistas da Inglaterra elegem um presidente de
sua Conferência Anual. Ao assumir o cargo, o novo presidente recebe das mãos do
anterior um pequeno livro surrado, como símbolo de autoridade: é o Novo Testamento que
João Wesley usava em suas pregações ao ar livre, quando as multidões que não cabiam nos
templos vinham a ele para ouvir a Palavra de Deus. Simbolicamente também recebemos de
suas mãos esse Livro Santo para que passemos, com a mesma paixão e urgência, seu
conteúdo às almas afligidas e aos corações extraviados.
Não podemos viver de uma tradição por muito heróica que seja. Em nós mesmos
temos de ouvir a urgência inquietante do "Ai de mim se não pregar o Evangelho!”
NOTAS: (1) Beal, William Rev., citado por Stevenson, G. J., Op. Cit., pág. 16.
(2) Etevens, A., "History of Methodism", VoI. I, págs. 59 e 60.
(3) “A New History of Methodism", editado por Townsend, W. J. e outros, VoI. I, pág. 200.
36
(4) “A New History of Methodism", VoI. I, pág. 178.
(5) Op. Cit., VoI. I, págs. 370-371.
(6) Mc Tyeire, H. N., “History of Methodism”, pág. 13.
41
CAPÍTULO QUARTO
O ARAUTO MELODIOSO
" Tudo em ti encontro, ó Cristo, e de nada mais preciso ".
Carlos Wesley
O décimo oitavo filho, o último varão de Samuel e Susana Wesley, foi Carlos, que
nasceu, segundo se presume, no dia 18 de dezembro de 1707 (alguns historiadores dão o
ano de 1708). Seu prematuro nascimento ocorreu algumas semanas antes do tempo, e ao
nascer parecia mais morto que vivo, já que não chorava nem abria os olhos.
Conservaram-no em algodões até a época em que devia nascer, e completado o tempo
normal, dizem que abriu os olhos e chorou. Como seu irmão João, do qual era mais novo
cinco anos, nasceu na casa pastoral de Epworth e foi submetido à mesma disciplina
familiar. Era de disposição mais jovial que seu irmão e dotado de estro (talento) poético.
João Gambold, seu companheiro do "Clube Santo", que chegou a ser bispo
morávio, dentre outras considerações que fizera a respeito de Carlos, deixou do seu
temperamento este retrato:
"Para pontilhar o caráter de Carlos, basta dizer que era homem feito
para a amizade. Por sua jovialidade e viveza (vivacidade) era capaz de suavizar
o coração de seus amigos, e, por seu hábito franco e independente, não deixava
lugar a incompreensões.“ (1)
37
42
Em 1716 foi para a escola de Westminster. Seu irmão mais velho, Samuel, que vivia
em Londres e já tinha vida independente, pagava-lhe os estudos e o pai provia-lhe a roupa.
Mas evidenciou tal inteligência que lhe foi outorgado o prêmio "Aluno do Rei" (King's
Scholar). Segundo o historiador da escola de Westminster, essa distinção "conferia
para sempre, ao que a recebia, tal sentimento de orgulho que nenhum rapaz de outra escola
jamais experimentava. Haver sido Aluno do Rei não é mui pequena honra". (2) De aí em diante
suas despesas foram pagas pela fundação escolar (1721).
Nesse período apresentou-se a Carlos a oportunidade de ser herdeiro de um rico
parente de nome Garrett Wesley. Este possuía muitas propriedades na Irlanda e queria
adotar um rapaz de sua parentela que levasse o nome de Carlos. Escreveu, pois, à
família pastoral de Epworth perguntando se não contava em seu seio com alguém de tal
nome. Informado de que havia e se encontrava em Londres, enviou dinheiro para
mantê-Io estudando por alguns anos. Mais tarde foi vê-Io na escola e fez-Ihe pessoalmente o
oferecimento. Os pais não quiseram tomar a decisão, deixando que o rapaz mesmo
resolvesse, e ele declinou da oferta! O Sr. Garrett adotou, então, a um outro jovem de nome
Ricardo Colley, que mudou seu nome pelo de seu benfeitor. Viria a ser o avô do Duque
de Wellington, o vencedor de Napoleão, em Waterloo. Carlos abriu mão de uma fortuna e de
um título.
Em 1726 terminou os estudos secundários e entrou para a Universidade de Oxford,
onde foi eleito para freqüentar o colégio Christ Church, com uma bolsa de estudos de cem
libras esterlinas anuais. Assim como se distinguira anteriormente em seus estudos,
continuou sobressaindo-se na Universidade, a tal ponto que, como seu irmão, pouco
depois de graduar-se também foi nomeado tutor de seu colégio. Seguindo o exemplo de
seu irmão João, esforçou-se por levar vida metódica e séria. Foi ele que, em 1729, com
alguns outros companheiros da mesma tendência, fundou o que se chamou "Clube Santo".
Os que lhe aderiram eram poucos. Reuniam-se duas vezes por semana ao
entardecer, para dedicar o período das 6h às 9h à oração, ao estudo do Novo Testamento e
aos autores clássicos. Passavam em revista seu trabalho e faziam planos para os dias
seguintes. Também jejuavam duas vezes por semana, tratando ao mesmo tempo de fazer
um exame introspectivo, e participavam da Santa Ceia semanalmente. E com muita
diligência empregavam-se em atos de caridade e de visitas aos presos.
38
43
Porque esse grupo se regia por um horário estrito e viviam uma vida ordenada,
suportava a zombaria dos colegas que pouco se consagravam aos estudos e à piedade.
Seus componentes eram apodados (apelidados pejorativamente) de “metodistas”,
nome que mais tarde se daria igualmente aos que vieram a formar parte das "Sociedades
Unidas" fundadas por João Wesley. Este, nessa época, como já vimos, encontrava-se em
Epworth ajudando o pai nas lides ministeriais. Quando voltou encontrou o "Clube Santo" em
pleno funcionamento, e como coisa, natural aderiu a ele. Por ser o mais velho e o mais
responsável, foi-lhe confiada a direção do grupo.
Nesse mesmo ano (1729) Carlos adotou o costume de manter um diário, hábito que
teve por quase cinqüenta anos.
Apesar de haver concluído os estudos e de haver sido ordenado clérigo da Igreja
Anglicana, permaneceu na Universidade em sua função de tutor até 14 de outubro de 1735
quando, com seu irmão João, foi para a Geórgia, na América do Norte. Sua atribuição era
servir de secretário do General Oglethorpe, governador da então Colônia. Sua estada,
porém, durou menos de um ano, porque em agosto de 1736 embarcou de retorno à terra
natal onde chegou em dezembro. Suas experiências em terras americanas não foram
muito mais felizes do que as de seu irmão. Passou muito tempo enfermo, e as intrigas
que se armaram ali contra ele chegaram a tal ponto que quiseram assassiná-lo. Depois de
um período tumultuoso, durante o qual se indispôs com o general, decidiu deixar a Geórgia e
reassumir o ministério em sua terra natal.
Voltou à Universidade de Oxford onde continuou com os labores de instrutor e com a
visitação aos presos na prisão comumente conhecida pelo nome de "Castelo". Devido a seu
estado físico não começou a pregar até metade do ano 1737, e, quando o fez, sua pregação
revelava-se como algo mui formal e lhe faltava aquele fogo que pudesse proporcionar-lhe a
satisfação íntima que anelava. Nesse mesmo ano entrou em contato com os morávios
(cristãos originários da Moravia, Alemanha) e teve conversações freqüentes com o Conde de
Zinzendorf, líder do movimento, e que nessa ocasião se encontrava em Londres fazendo
provisões a favor dos imigrantes morávios estabelecidos, ou por estabelecer-se, na
colônia de Geórgia. Entre os que se aprestavam (dispuseram) para ir à Geórgia estava o
pastor Pedro Böhler, que procurou Carlos na Universidade para que este lhe ensinasse
inglês. Foi durante essas aulas que Carlos Wesley adquiriu mais cabal conhecimento da
vida religiosa dos morávios e se instruiu mais a fundo sobre a natureza da oração e da fé.
39
44
Em fevereiro de 1738 Carlos caiu muito enfermo. Uma noite, sendo já bem tarde e
estando ele muito mal, visitou-o Pedro Böhler. Carlos pediu-lhe que orasse a seu favor.
Depois da oração, disse-lhe: "Tu não morrerás". Três dias depois disto melhorou e
parecia voltar novamente à plenitude da vida. Os médicos lhe recomendaram que
mantivesse sua posição em Oxford e não tratasse, como pensava, de voltar à Geórgia.
No mês de maio o encontramos vivendo em casa de João Bray, a quem descreve como
"um pobre mecânico ignorante, que não conhece outra coisa senão a Cristo, e que por
conhecê-lo sabe discernir todas as coisas". Foi viver com ele para aproveitar sua simples
companhia espiritual e descobrir o segredo de uma vida religiosa tão cheia de íntimo gozo
e isenta de apreensões. Ainda estava muito fraco quando foi viver na casa de João Bray. Tão
debilitado estava que tiveram de levá-lo numa cadeira. Freqüentemente convidava Bray
para orar com ele e por ele. Foi nesse período que um de seus amigos, o Holland,
o familiarizou com o comentário que Lutero fez sobre a carta de São Paulo aos Gálatas.
Sua leitura lhe fez muito bem e Carlos chegou a compreender claramente o que era viver pela
fé. E o que mais o impressionou foi a referência à passagem: "... que me amou e a si mesmo
se entregou por mim". Na noite desse mesmo mês, que era Pentecoste, chegou
finalmente à convicção íntima de que possuía a verdadeira fé em Cristo, antecipando-se três
dias à experiência que seu irmão teria na rua Aldersgate e da qual já fizemos
referência. Sentiu-se renovado não só no espírito mas também no corpo. Para comemorar
tão transcendental acontecimento, na terça-feira seguinte escreveu o que é considerado o
primeiro hino metodista. Sua primeira linha diz assim:
"Where shall my wondering soul begin?"
(Onde minha alma errante encontrará refúgio?)
Nesse hino expressa sua inaptidão para celebrar em seus justos termos o
extraordinário acontecimento de sua recuperação física e espiritual, e compara-se a um
"tição tirado ao fogo eterno". Confia, porém, em que lhe será dado como proclamar a
bondade de Deus que o arrancara das garras do inferno para convertê-lo num de seus
filhos, ou por haver recebido a certeza de que seus pecados haviam sido perdoados,
fazendo-o gozar, assim, o céu por antecipação. Pergunta se seria justo e apropriado
ocultar esse sinal do favor divino em seu coração, sem partilhar com outros o privilégio da
salvação. Responde que não; ainda que o diabo e suas hostes arremetessem contra ele,
teria de proclamar igualmente que Jesus sempre é o mesmo amigo dos pecadores. E
40
45
termina fazendo um apelo comovente, chamando os pecadores de qualquer natureza a
que venham receber o abraço daquele que está com seus braços estendidos
esperando-os.
Ao que parece, este foi o hino que cantaram na noite de 24 para celebrar a notável
experiência religiosa de seu irmão João, quando este voltou jubiloso depois da reunião de
Aldersgate em companhia de outros que com ele haviam estado juntos, para comemorar o
acontecido. Um ano mais tarde, ao comemorar o primeiro aniversário de sua
experiência, Carlos escreveria aquele outro hino tão querido dos cristãos evangélicos do
mundo inteiro, e que começa assim:
"Oh for a thousand tongues to sing"
(Quem me dera ter mil vozes para celebrar).
Ele que desejava, como diz o original, possuir "mil línguas" para cantar a glória de
seu Senhor. E através de sua longa carreira chegou a escrever algo em torno de seis mil e
seiscentos hinos, numa média de três por semana. Talvez esses hinos, mais que a própria
pregação, penetraram na consciência e vida daqueles que foram alcançados pelo
movimento metodista. O maravilhoso está em que induziram um povo triste e
desanimado a cantar, e muitas vezes a emoção era tão profunda que chegava a arrancar
lágrimas dos que cantavam! Lutero disse em certa ocasião sobre o emprego religioso da boa
música: "O diabo pode agüentar qualquer coisa, exceto a boa música, e esta o faz rugir".
Por certo o diabo teve de rugir freqüentes vezes ante o efeito benéfico das canções de Carlos!
Com freqüência a urgência da inspiração era tal que, ao chegar a algum local, descia do
cavalo correndo e gritando: "Dai-me papel, papel e tinta". Outras vezes, sobre a própria cela
de sua cavalgadura, escrevia no papel o sentir tumultuário (agitado) de seu coração
inflamado.
Em 1739 publicou seu primeiro hinário com o título "Hymns and Sacred Poems"
(Hinos e Poemas Sacros). No mesmo ano se fizeram três edições desse hinário.
Escreveu sobre uma variedade ilimitada de temas que incluem toda a escala da vida
religiosa. Diz um comentarista:
"A variedade dos assuntos que ocupavam sua mente é tão extensa que pode incluir
quase todo acontecimento ou circunstância concebível na vida." (3)
41
46
João de La Flechère (ver capítulo sétimo) escrevendo sobre a coleção de hinos que
Carlos e João Wesley publicaram e seu valor para a vida religiosa dessa época, disse as
seguintes palavras: "Uma das maiores bênçãos com que Deus agraciou os metodistas,
depois da Bíblia, são suas coleções de hinos".
La Flechère tinha razão. Apesar de a maioria dos hinos de Carlos caírem no olvido
(esquecimento), pois só serviram ao momento e à época que os inspiraram, já que não
tinham valor literário ou devocional permanente, uns tantos ficaram formando parte da
hinologia cristã universal. O que estas páginas escreve (ou seja, o autor desse livro), certa
vez se encontrava em Londres num entardecer de domingo. Perto do hotel havia uma
igreja Batista, e ali resolveu assistir ao culto, por não aventurar-se a ir mais longe.
Quando entrou no templo, faltando uns minutos para começar o serviço religioso, tomou
de um hinário e leu a introdução. Dizia o compilador (o organizador do hinário) que aqueles
hinos haviam sido escolhidos com o propósito de que estivessem enquadrados dentro da
tradição Batista. Quando o pastor se levantou e anunciou o primeiro hino congregacional,
este era da pena (de autoria) de Carlos Wesley!
Tão logo Carlos melhorou de saúde, voltou com renovadas forças para a vida pública
pregando sem cessar, onde quer que a ocasião se lhe apresentasse, embora não o tenha
feito ao ar livre até junho de 1739, época em que começou a pregar aos mineiros da região de
Moorfields. Um de seus temas favoritos baseava-se nas palavras de Cristo: "Vinde a mim
todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei". Desde 1739 até 1771 o
centro principal de suas atividades foi a cidade de Bristol e mais tarde seria Londres.
Como seu irmão João, esteve sempre ocupado em viagens, indo de povoado em povoado.
Especialmente durante os primeiros anos do movimento, sua vida esteve sujeita a
constantes ameaças e tumultos promovidos pelo populacho instigado pelos clérigos
regulares. Entre os anos 1741-1743 de maneira especial esteve em sério perigo muitas
vezes. É pena que não possamos acompanhá-lo nessas aventuras, que reeditam em muitas
instâncias cenas comovedoras dos primeiros tempos do cristianismo. No entanto, para
dar uma idéia de sua têmpera (temperamento, inteireza de caráter), serenidade e valentia,
citaremos o que ele mesmo escreveu em seu Diário acerca dos ataques que o populacho
dirigiu contra uma capela no interior da Inglaterra, onde ele se encontrava dirigindo um culto.
Diz o Diário:
42
47
"...eles resolveram demolir a casa de oração e começaram a obra
enquanto estávamos orando e louvando a Deus. Foi uma ocasião gloriosa para
nós. Cada palavra de exortação penetrou fundo. Cada oração encontrou eco e
muitos acharam o espírito de glória descansando sobre eles."
A turbamulta (grande multidão, turbilhão) continuou durante grande parte da noite
em seu intento de derrubar as paredes e penetrar a casa. Ele e a congregação se
conservaram onde estavam, pois não teria sido prudente retirar-se do local. Não
conseguiram os atacantes seu intento; apesar disso, pela manhã se verificou que
parte do edifício estava destruído. O evangelista comenta em seu Diário:
"E seus gritos, de quando em quando, me despertaram durante a
noite, mas creio que eu dormi mais que os outros".
Dominado por seu espírito de aventura e irresistível senso de responsabilidade pela
salvação do próximo, às 5h da manhã animou-se a sair da casa para pregar ao ar livre
nessa mesma cidade. Fê-lo durante todo o dia sob constantes ameaças. À noite, ao
regressar a seu quarto, encontrou-o desmantelado (destruído). Não obstante, passou
ali a noite exposto ao frio e ao perigo.
Dessa fibra indômita eram não somente ele e seu irmão João, mas todos aqueles
que nesses dias os acompanhavam na gloriosa aventura de pregar o Evangelho a toda
criatura. Apesar de não ser pregador itinerante do tipo de seu irmão João, sem dúvida não lhe
ficou na traseira, pelo menos até 8 de abril de 1749, época de seu casamento, quando limitou
suas saídas. Então se dedicou mais à obra literária, especialmente a poética. Seu irmão
João, muito a contragosto, consentiu no casamento de Carlos, pois temia que isso viria, como
de fato veio, diminuir a atividade de seu ministério itinerante.
Carlos Wesley casou-se com a senhorita Sara Gwynne. Em virtude disso, João lhe
dava uma anuidade de cem libras esterlinas, provenientes da venda de livros que publicava.
Carlos e Sara formaram um lar modelo, pois eram admiravelmente congeniais (tinham
gênios que combinavam, feitos um para o outro). Quando se casaram tinha ela a reputação
de ser mulher mui formosa, mas alguns anos depois foi acometida de varíola, que a
desfigurou completamente.
43
48
No dia de seu casamento Carlos se levantou às quatro horas da manhã e com seu
irmão João e outros familiares, passou quatro horas em oração, cantando salmos e hinos
antes da cerimônia. João abençoou as bodas. Em conexão com isto desejamos sublinhar
que, apesar das diferenças de temperamento e de nem sempre coincidir nos pormenores das
resoluções e nas atitudes que tomavam, especialmente com relação à Igreja Oficial (Carlos
neste ponto era mais conservador que João), raramente encontramos dois irmãos
estimando-se e querendo-se tão estreitamente como eles, colaborando com tanta eficácia e
por tantos anos na mesma obra. Carlos morreu no dia 29 de março de 1788, quando tinha
pouco mais de 80 anos e foi sepultado no dia 5 de abril no cemitério da Igreja de Marylebone.
Sua esposa sobreviveu a ele longo tempo. Terminou ela sua carreira terrenal aos 92
anos, falecendo em 1822. De seus filhos (tiveram oito e apenas três cresceram)
somente dois, Carlos e Samuel, herdariam seu temperamento artístico. Costumavam dar
concertos no "living" de sua casa e a esses concertos compareciam muitos dos mais
notáveis músicos de Londres. João Wesley assistia ocasionalmente a essas tertúlias
(reuniões familiares) musicais, embora não harmonizassem com seu temperamento.
Uma das características mais salientes da longa carreira ministerial de Carlos Wesley
foi a de exercer incessantemente seu ministério entre os prisioneiros, aos quais dedicava
terna consideração. Recordemo-nos de que, naquela época, especialmente os
desprotegidos da sorte (pobres e miseráveis), e às vezes por motivos que hoje possam
nos parecer triviais, eram condenados a muitos anos de prisão e em cárceres que mais
pareciam círculos infernais. Número impressionante deles eram condenados a morrer na
forca. Era muito comum justiçar ao mesmo tempo alguns deles a fim de fazer disso um
espetáculo público para escarmento (lição, exemplo) dos demais. A referência que o
historiador Stevens faz de seu ministério particular aos prisioneiros é a que segue:
"Até o último ano de vida manteve seu hábito metodista de ministrar aos
condenados das prisões, tal como o fizera primeiramente em Oxford, visitando-os
em suas celas e apresentando seus casos às congregações para que se orasse
publicamente. A última de suas publicações poéticas, publicada somente três
anos antes de sua morte, tinha por título: "Orações para Malfeitores
Condenados". (4)
44
49
E em nota que antepôs ao manuscrito, escreveu:
"Estas orações foram respondidas na terça-feira, 28 de abril de 1785, na
pessoa de dezenove malfeitores, e todos eles morreram penitentes. Não a
mim, ó Senhor, não a mim (a glória)!" (5)
A enfermidade que o levou à morte foi longa e penosa, mas conservou sempre sua
il imitada confiança em Cristo. Manteve a mente em estado de completa paz e
tranqüilidade. A sua esposa, a quem sempre quis entranhadamente, ditou de seu leito a
última expressão poética, que diz em tradução livre:
"Quem redimirá um desprezível pecador já velho e presa de fraqueza externa?
Jesus, tu és minha única esperança, fortaleza de minha frágil carne e coração. Oh!
Pudesse eu mirar teu rosto sorridente e, assim, sumir-me na eternidade!" (6)
Até aos últ imos momentos de vida e diante da f ragil idade humana, sua
preocupação foi a de anunciar a Cristo e de apontá-lo qual única e eterna esperança de
salvação. Nem em seu ministério, nem em sua produção poética teve outra paixão mais
profunda que essa. Como Paulo, o apóstolo, Carlos Wesley podia dizer: "Para mim o viver é
Cristo, e o morrer é lucro".
NOTAS:
(1) Citado por McTyeire, H. N., Op. Cit., pág. 57.
(2) Mr. Forshall, citado por Wiseman, F.L., Op. Cit, pág. 24.
(3) Citado por Stevenson, G.J., Op. Cit, pág. 395.
(4) Stevens, A., Vol II, Op. Cit, pág. 275.
(5) Idem.
(6) Idem, pág. 276.
50
CAPÍTULO QUINTO
O FILHO DE UM
TABERNEIRO
"Oh! Quem me dera um poder igual à minha
vontade! Desejar ia voar de um pólo a out ro
anunciando o Evangelho sempiterno do Filho de
Deus!".
Jorge Whitefield
É difícil medir as projeções de bem moral e espiritual resultantes das reuniões que os
Wesley e alguns poucos de seus colegas tiveram no chamado "Clube Santo", cuja existência
se prolongou por cerca de oito anos (1728-1735). Certamente, porém, o resultado mais
51
positivo e permanente, além do que esse círculo piedoso trouxe à vida dos fundadores do
Metodismo, foi a incomparável influência que exerceu na vida e obra de um estudante
pobre, que em 1732 penetrou com temor e tremor os umbrais da Universidade de
Oxford, matriculando-se no colégio de Pembroke. Seu nome era Jorge Whitefield. Nasceu a
16 de dezembro de 1714, na localidade de Gloucester, Inglaterra, na taberna "Bell".
Por certo que esse não foi ambiente mui propício para a formação de seu caráter
juvenil, visto como uma taberna, naqueles dias, era ainda muito pior do que as
encontradas nos bairros baixos das grandes cidades modernas. Se, como diziam João e
Carlos Wesley, eles eram "tições tirados ao fogo", certamente Jorge, mais que esses dois
irmãos, foi tição tirado ao inferno. Sem dúvida, mesmo cercado por uma atmosfera
completamente insalubre, manifestava-se em sua alma estranha inquietude pelas coisas
superiores do espírito, e em seu Diário que mais tarde escrevera, conta-nos que amiúde se
exorbitava em exercícios espirituais, embora caísse, dia após dia, sob a influência de seu
meio ambiente. De seu Diário podemos recolher alguns vislumbres de sua vida, antes de
iniciar-se como estudante universitário. Entre seus dados autobiográficos encontramos os
seguintes:
"Meu pai e minha mãe mantinham a taberna chamada "Bel". Meu pai
morreu quando eu tinha dois anos de idade. Minha mãe ainda vive e por muitas
vezes me contou o quanto sofreu durante catorze meses de enfermidade, depois
que me trouxe ao mundo. Costumava dizer, desde quando eu era pequenino, que
ela esperava alguma consolação de minha parte, mais do que de qualquer outro
de seus filhos. Isto, sob as circunstâncias de haver eu nascido numa taberna,
tem-me sido útil muitas vezes para esforçar-me por vir ao encontro das
esperanças de minha mãe, seguindo assim o exemplo de meu Salvador, que
nasceu numa estrebaria junto a uma estalagem." (1)
Evidentemente transpira algo de exagero este depois de haver alcançado grau de
vida muito superior à que estava acostumado, ao ver-se de posse de um título
universitário e ao ser agora recipiente privilegiado de ordens eclesiásticas. Dos dias de
sua infância e juventude não conservava mui grata memória:
"Seria muito longo mencionar os pecados e ofensas de meus dias mais
juvenis. São mais numerosos que os cabelos de minha cabeça." (2)
52
Evidentemente transpira algo de exagero este juízo de si mesmo. Sem dúvida está
afinado com o conceito do homem que apresenta dentro do quadro total formado por seu
pensamento teológico. Ao lado dessa descrição pessimista de seus dias juvenis,
encontramos esta obra que se refere a ele quando tinha 16 anos de idade, citada pelo Dr.
Stevens:
"Começou ele jejuando duas vezes por semana durante trinta e seis horas
seguidas. Orava muitas vezes por dia, recebia a Comunhão (Ceia do Senhor) a
cada dez dias e jejuava quase até à inanição durante os quarenta dias da
Quaresma. Enquanto durava esse período se havia proposto, como questão de
consciência, nunca ir menos de três vezes ao dia ao serviço público de adoração,
além de obrigar-se diariamente a ter sete vezes devoções particulares." (3)
E assim, entre altibaixos (altos e baixos) em sua conduta e em suas lutas agônicas
por sobreviver ao ambiente adverso, chegou quase aos 18 anos. Finalmente, ajudado por
pessoas que descobriram nele grandes possibilidades, entrou para a Universidade.
Já havia tido, antes disso, alguns estudos tanto com um professor particular como na
escola de Santa Maria de Crypt. Esses estudos foram muito irregulares, pois os
interrompeu várias vezes por uma causa ou outra, principalmente porque se via obrigado a
ajudar a mãe nos misteres (necessidades) da estalagem. Esta experiência lhe serviu na
Universidade, pois ali, para poder manter-se e obter sua educação, teve de trabalhar
como criado. Durante o tempo que pisou os átrios universitários viveu mui modestamente,
castigando o corpo à moda monástica (como um monge no convento), deixando de comer
frutas e outras coisas, escolhendo a pior qualidade de alimento, embora, se houvesse
esejado, pudera obter, segundo disse, uma variedade separada de manjares. Vestia-se
pobremente, mais do que necessário, interpretando literalmente a expressão bíblica que
diz: "O Reino de Deus não é comida nem bebida". Segundo ele, essas renúncias
conduziam a uma vida espiritual mais profunda e intensa. Sem dúvida, esse tratamento
ascético de seu físico (para cuidar da alma entendia que precisava desprezar e até
maltratar o corpo) fê-Io sofrer ao longo da vida. E morreu prematuramente, consumido pelos
trabalhos que seu corpo mal podia agüentar.
Antes de ir para a Universidade já tinha conhecimento da existência do "Clube
Santo", visto como sua fama ultrapassava os âmbitos dos claustros (recintos
53
fechados, limites) universitários. Geralmente se considerava a maneira de viver dos que
compunham esse círculo, como se fossem uns extravagantes e fanáticos. Whitefield passou
mais de um ano antes de ter contacto com o grupo, por sentir-se indigno, devido à sua
condição de servente (criado, empregado doméstico) de aproximar-se de pessoas que
julgava tão distintas (importantes). Devemos recordar-nos de que por aquela época
(1734) Carlos e João já eram bastante adultos e possuidores de seus graus e ordens,
enquanto que Jorge era apenas um estudante no princípio de sua carreira. Ademais, pesava
sobre ele o fato de haver nascido num ambiente detestável e viciado. Seus parentes não
ostentavam nenhuma posição social respeitável. Com certa "inveja santa" Whitefield os
contemplava de longe, quando os via passar para ir participar dos serviços divinos (orações e
culto) na igreja de Santa Maria.
O primeiro contacto com o grupo foi através de Carlos Wesley, que sentiu por ele
especial atração. Decerto se devia ao fato de serem ambos congeniais (terem gênios
semelhantes), sendo um ardente poeta e outro orador fogoso (ardoroso). Os dois eram mui
fervorosos de espírito e exaltados em sua maneira de ser, sentir e expressar. Através da
amizade que travou com Carlos, que o tomou fraternalmente sob sua custódia espiritual,
transpôs os umbrais do "Clube Santo", fez-se membro dele, vindo, portanto, a participar de
seus métodos de estudo e de comportamento.
Dizia que esses companheiros, que eram os que "sua alma anelava", iam
robustecendo-o (fortalecendo-o) diariamente no conhecimento e no temor de Deus e lhe
ensinavam a suportar toda privação como bom soldado de Jesus Cristo". (4)
Embora lhe fosse difícil, a princípio, submeter-se a essa disciplina, logo se afez a ela.
E com os demais, viu-se a empregar uma hora por dia, pelo menos, visitando os enfermos
e encarcerados, bem como lendo páginas devocionais e das Escrituras às famílias
pobres da vizinhança. Apesar dessa associação e disciplina rígidas, das boas obras que
praticava diariamente, ainda perdurava em sua alma um sentido de frustração, uma
atormentadora incerteza de que estaria realmente salvo da "ira divina", pois que, apesar de
tudo a que se submetia com tão exímia diligência, parecia-lhe existir um abismo
intransponível entre sua fragilidade humana e a glória divina.
Finalmente, aos 20 anos de idade, teve uma experiência religiosa que foi decisiva
para o restante de seus dias. Essa maneira de viver lhe daria a segurança que buscara tão
54
afanosamente (laboriosamente, dedicadamente), e seria o ponto de partida de todo o
seu ministério. Ele mesmo conta essa experiência em suas memórias:
"Certo dia, atormentando-me uma sede fora do comum e sentindo uma
viscosidade desagradável em minha boca, fiz todo o possível para alcançar alívio,
mas foi tudo em vão. Veio-me, pois, a sugestão de que quando Jesus Cristo
exclamou "tenho sede", seus sofrimentos estavam próximos do fim. Sem poder
impedi-lo, caí de joelhos junto à cama, gritando; "Tenho sede! Tenho Sede!”
Pouco depois disso achei e senti em mim mesmo que havia sido libertado do
peso que tão grandemente me oprimia. O espírito de pesar me foi tirado e soube o
que era verdadeiramente regozijar-me em Deus, meu Salvador, e por algum
tempo não pude deixar de cantar salmos onde quer que estivesse. Assim
terminaram, pois, os dias de meu pesar. Nesse ínterim, o Espírito de Deus tomou
posse de minha alma."
Isto aconteceu sete semanas depois da Páscoa de 1735. Como aconteceria três
anos mais tarde com os Wesley, Whitefield não pode conter a alegria de seu achado,
e teve de proclamar a graça divina a todos os que estavam sob a maldição do pecado e por
presa do desespero. No princípio da primavera desse mesmo ano de sua conversão,
Whitefield voltou ao lugar de seu nascimento, Gloucester, aonde o médico o enviara na
esperança de que afrouxasse sua "exagerada disciplina religiosa". Foi nesse período de
descanso forçado que encontrou sua paz com Deus.
Logo a fama de suas pregações alcançou as multidões e estas vieram
atropeladamente para ouvi-lo. Essa popularidade, apesar da humildade que o caracterizara
até então, convencera-o de que realmente devia ser um escolhido de Deus, instrumento de
que o Senhor lançara mão para fazer coisas maravilhosas. Essa foi a tremenda tentação de
sua vida, e traços de exaltada opinião de si mesmo aparecem nos escritos que enfeixam
suas memórias. Essa exagerada auto-estima carreou-lhe tremendas críticas
especialmente de parte dos que não podiam suscitar a mesma popularidade. Parecia
a alguns que ele agia abusivamente com a impressionável imaginação do povo
comum. Mas inegavelmente ele o fazia movido por um irresistível sentido de vocação e
por seu entranhável amor a Cristo, a quem dava o crédito de havê-lo trasladado dos
tormentos terreais e eternos, a uma vida de santidade na terra e de glória no Céu. As palavras
fluíam em torrentes de sua boca, a gente chorava extasiada e comovida, ficando às vezes
55
como fulminada sob o empuxo de sua eloqüência. Seus contemporâneos afirmam que
jamais houve outro que impressionasse mais com sua mágica palavra do que Jorge
Whitefield. O povo vinha de consideráveis distâncias para ouvi-lo e nunca se saciava com o
que ouvia, apesar de ele pregar sermões longos.
Não era costume da Igreja Anglicana ordenar ministro muito jovem; geralmente
não o fazia antes dos 23 anos de idade. Não obstante, o bispo de Gloucester, Martin
Benson, um dia mandou chamar Whitefield, que estava apenas com 21 anos, e lhe disse que
se estivesse disposto a receber ordenação, ele não teria objeções em fazê-lo. Parece que
nesse assunto interveio Lady Selwyn, mulher da nobreza, que o escutara e ficara
profundamente impressionada com sua prédica. Esta foi a declaração do bom bispo:
"Embora eu tivesse afirmado que jamais ordenaria alguém menor de 23 anos
de idade creio, sem dúvida, que é meu dever ordenar-te quando quiseres vir para
receber as sacras ordens." (6)
E para selar sua boa vontade, deu-lhe de presente cinco guinéus. O jovem ficou
atrapalhado, mas finalmente aceitou a oferta.
No dia 20 de junho de 1736 foi ordenado por aquele bispo. Na semana seguinte
recebeu seu título de Bacharel em Artes da Universidade de Oxford, e no domingo
seguinte à sua ordenação, aquele que cinco anos havia sido o pobre servente de uma
taberna, pregou na Igreja de Santa Maria de Crypt, precisamente localizada mui próxima
daquela (da taverna de Gloucester). Enorme multidão foi ouvi-lo. Foi ordenado presbítero
no dia 14 de janeiro de 1739 pelo mesmo bispo Benson.
A gente que o via passar pelas ruas chamava-Ihe "o rapaz pregador", e muitos, não só
ao ouvir dizer que ele passava, saíam à porta para vê-Io. Jamais se havia visto na Inglaterra
um jovem ministro crescer na estima do povo comum como conseguiu Whitefield. O
segredo estava em que falava ao coração dos humildes, conhecedor que era da natureza
de sua miséria espiritual e da magnitude da graça divina.
Não podemos acompanhá-lo nos três primeiros anos de seu ministério na
Inglaterra, por causa do limitado espaço destes estudos. Estranho como pudesse parecer,
repentinamente o jovem Whitefield sentiu forte inclinação por abandonar a terra natal e ir
56
também como missionário para a Geórgia, a colônia inglesa na América do Norte. Seus
amigos não puderam compreender a razão desse abandono e fizeram todo o possível
para detê-lo, mas ele se fez surdo a todas as ofertas e rogos que lhe faziam. Com
dificuldade despediu-se de seus grandes auditórios e admiradores, especialmente daqueles
que haviam assistido a seus primeiros triunfos oratórios em Gloucester e Bristol. Ele
mesmo refere ao que se passou com ele depois de haver pregado em Bristol o sermão de
despedida:
"As multidões me seguiram até a casa chorando e no dia seguinte tive de
entreter-me com elas desde as sete horas da manhã até à meia-noite, falando e
dando conselhos espirituais às almas que haviam sido esquecidas." (7)
Pouco antes de partir para a América, Whitefield chegou a pregar até nove
vezes por semana, e aos domingos de manhã. Mesmo antes de clarear o dia, podia-se ver a
gente enchendo as ruas em direção à igreja. Sua popularidade havia crescido tanto que já
não podia ir à igreja a pé; tinha de fazê-lo às ocultas, dentro de uma carruagem, para evitar os
"hosanas da multidão".
A pesar de haver embarcado para a América no dia 30 de dezembro de 1737, não
conseguiu sair das costas da Inglaterra antes do dia 2 de fevereiro de 1738. No dia
anterior havia-se encontrado com João Wesley que voltara da Geórgia. Este tentou
dissuadi-lo e quis convencê-lo de que não fosse às novas terras, já que sua experiência havia
sido negativa, mas Whitefield, decidido a tudo, já havia cortado as amarras e não se deixou
impressionar pelas palavras do amigo. Atingiu primeiramente Gibraltar e só em princípios de
maio de 1738 chegou a terras americanas.
Não ficou muito tempo na América. Em princípios de dezembro de 1738 está
novamente de volta a Londres. Apesar de ter acolhida favorável por parte do Arcebispo de
Canterbury e de regressar do Novo Mundo com maior prestígio do que granjeara antes de
partir da Inglaterra, verifica, ao voltar, que sua popularidade em Bristol havia declinado e que,
pelo menos, cinco igrejas, nas quais costumava pregar antes, lhe fecharam as portas.
Essa oposição se foi acentuando tanto que a 17 de fevereiro de 1739 já o
encontramos em Kingswood pregando pela primeira vez ao ar livre. Esse lugar ficava
perto de Bristol. Ali, noutros tempos, havia bosques onde o rei se entretinha em caçadas, mas
57
agora era quase descampado, pois se exploravam minas de carvão e era habitado por
gente "desregrada e brutal", muito diferente do restante da população. Esse gesto de
pregar ao ar livre levaria, pouco mais tarde, João e Carlos Wesley a seguir o mesmo curso.
Desta maneira, Jorge Whitefield foi quem levou de novo o Evangelho à rua, à praça
pública, fora dos recintos tidos como sagrados e próprios para a proclamação da Palavra.
De pé, sobre uma elevação de terra, proclamou nesse dia o Evangelho a cerca
de duzentos mineiros, gente que vivia em completo abandono e num meio ambiente
degradado e soez (ignorante, vulgar). Dessa ocasião registra em seu Diário:
"Bendito seja Deus, porque o gelo foi quebrado e agora tenho o campo
aberto. Alguns podem censurar-me, mas acaso há motivo? Os púlpitos me são
negados e os pobres mineiros estão a ponto de perecer por falta de
conhecimento." (8)
Esse proceder chamou imediatamente a atenção do povo comum. Diz-se
que quando pregou pela segunda vez, mais de duas mil pessoas estiveram presentes, e na
terceira houve de quatro a cinco mil, crescendo a assistência, segundo dados
estatísticos daqueles dias, até a dez, quatorze e vinte mil assistentes.
A gente (multidão) não se importava com os fortes raios solares, e guardava
tão profundo silêncio que chegava a enchê-lo de "admiração santa". Para ouvi-lo, subiam
até em árvores e cercas. Tão logo começava a falar, reinava silêncio que perdurava ao
longo de toda a exposição, que comumente se estendia mais de uma hora. Logo se fez
notar a influência de sua prédica na vida daqueles pobres miseráveis, que jaziam tão
abandonados a sua desditosa condição, parecendo que até Deus os havia desprezado e
olvidado. Ante a enormidade do trabalho e a impossibilidade de fazer frente a todas as
demandas, mandou pedir a João Wesley que viesse em seu socorro. Wesley, a
princípio, julgou estranho esse proceder, e seu espírito repelia a idéia de pregar dessa
maneira, e em terreno não consagrado.
Até 2 de maio de 1739 não se aventurou a seguir nas pisadas de
Whitefield, dizendo em seu Diário: "Submeti-me ao mais vil". Contudo, mais, tarde o fez, e
mais de três mil pessoas escutaram seu primeiro sermão ao ar livre, baseado no texto: "O
Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar aos pobres."
58
A sorte estava lançada, e desde aí o movimento metodista não respeitaria
nenhuma trava, crítica, oposição ou prova. Estavam abertas as comportas, e qual rio
caudaloso, o movimento se estenderia por toda a Inglaterra e além dos mares. A Jorge
Whitefield devemos, pois, a inovação desta "irregularidade" que o levou a imitar nosso
Mestre, que jamais escolheu "lugares sagrados" para pregar; antes falava do Reino onde a
gente o buscasse com seus problemas e necessidades.
Esse ministério "irregular" de Jorge Whitefield transplantaria ao Novo Mundo.
E ele converteu-se no evangelista por excelência, sem pousada certa, sem jamais ter
congregação própria, não se envolvendo em questões denominacionais, desejando
tão-somente aproximar os pecadores do trono de Deus.
Um dos testemunhos mais dignos de fé que nos ficam sobre a natureza e
resultados da obra de evangelização de Whitefield acha-se na autobiografia de Benjamim
Franklin, um dos próceres (homens importantes) da independência dos Estados Unidos, que
diz:
"Em 1739 chegou da Irlanda entre nós o Rev. Sr. Whitefield, que se havia
distinguido como pregador itinerante. A princípio lhe foi permitido pregar em
algumas de nossas igrejas, mas o clero, desgostado com ele, recusou
imediatamente ceder-lhe o púlpito, pelo que se viu obrigado a pregar ao ar livre. As
multidões de todas as seitas (grupos religiosos, doutrinas) e denominações que
iam ouvir seus sermões eram enormes, e era matéria de especulação para mim,
que era um do grupo, observar a influência extraordinária de sua oratória sobre os
ouvintes e o muito que o admiravam e respeitavam, a despeito do abuso que mui
amiúde fazia deles ao assegurar-lhes que, por natureza, eram meio bestas e
meio diabos. Era maravilhoso ver a mudança que se produzia tão prontamente
nos hábitos de nossos habitantes. De um estado religiosamente indiferente e
despreocupado, parecia agora como se todo o mundo se estivesse tornando
religioso, de tal maneira que ninguém, ao entardecer, podia caminhar pela cidade
sem ouvir cânticos de salmos em muitos lares e em cada rua." (9)
Nesse seu entusiasmo evangelizador, foi além de sua própria teologia.
Contrariamente a João e Carlos Wesley, Whitefield acreditava na eleição divina: eleição que
permite que alguns se salvem e outros se percam para "a glória de Deus". De forma que
59
somente aqueles que Deus elegeu "desde a fundação do mundo" podiam salvar-se.
Isto, naturalmente, partia de sua própria experiência religiosa. Como podia ele, um réprobo
(condenado, mau) de tão perversa estirpe (raiz, origem), ter chegado a ser pregador tão
poderoso da Palavra senão que Deus em sua maravilhosa providência o houvesse eleito
para isso? Certamente, por sua própria vontade, jamais teria chegado a ser o que foi. Só a
graça imerecida de Deus o salvou e arrebatou, literalmente falando, de um dos círculos mais
infernais da terra. Teoricamente, pregava àqueles que haviam sido eleitos que
despertassem para a realidade de sua eleição e não menosprezassem, em sua
ignorância, a graça divina que os distinguira com seu favor. Sem embargo, não era mui
conseqüente com sua teologia e pregava como se todos houvessem sido eleitos para a
salvação.
Essa diferença teológica o distanciou por algum tempo dos Wesley, distância que se
produziu principalmente pela publicação de um sermão de João Wesley sobre a "Livre
Graça" e a réplica que a ele havia feito Whitefield numa carta, publicada sem seu
conhecimento, mas que foi causa para que em 1741 se acirrassem os ânimos e se
suscitasse acre (áspera) controvérsia entre os amigos e camaradas. Apesar de tudo
isso, a separação não duraria permanentemente, embora fosse causa principal de
primeira divisão no movimento. Quando, em 1770, a Inglaterra soube da morte de
Whitefield, pois morreu nas colônias inglesas da América, João Wesley pregou um
sermão em sua memória, fazendo comovedora e encomiástica (elogiosa, louvável) apologia
(defesa) de seu antigo camarada.
Apesar de seu grande talento ser o de pregador evangelista, um dos principais
interesses do ministério de Whitefield se concretizou no estabelecimento dum orfanato que
fundou ao começar sua obra na América, em Savannah, na Geórgia, e ao qual pos o
nome de "Bethesda". Essa empresa (empreendimento) lhe custou muito trabalho,
afã (cuidado, diligência), viagens, desgostos e controvérsias. Nunca se soube
precisamente quantos meninos e jovenzinhos se beneficiaram com essa instituição, por
cuja existência lutou nobremente até quase ao fim da vida, e cujo estabelecimento e sustento
foi em grande parte devido a sua oratória.
Benjamim Franklin, que era amigo de Whitefield, sem por isso participar de seus
sentimentos religiosos, pois se intitulava "livre pensador", publicou muitos de seus escritos e
o ajudou em outras empresas (empreendimentos). Entretanto não estava de acordo com
60
Whitefield em que se abrisse aquele orfanato na Geórgia, por ali faltarem materiais e obreiros
para levar a cabo um plano de tão alto vôo, como o que o evangelista projetava. Whitefield
teimou em abri-lo na Geórgia, e por isso Franklin lhe negou apoio. Mas quando Whitefield
realizou na Filadélfia, cidade onde vivia Franklin, uma assembléia a fim de levantar dinheiro
para aquela instituição, este resolveu ir ouvi-lo, mas com a determinação de não contribuir
nem com um centavo para a empresa. O que aconteceu nessa reunião, Franklin o descreve
assim:
"Eu tinha no bolso um punhado de moedas de cobre, três ou quatro
dólares de prata e cinco dobrões de ouro. Enquanto ele prosseguia, comecei a
abrandar-me e resolvi dar as moedas de cobre. Outro golpe de sua
oratória me envergonhou dessa resolução e determinei, então, dar-lhe as de
prata. E terminou tão admiravelmente que esvaziei inteiramente meu bolso na
salva de ofertas com ouro e tudo. Ouvindo esse sermão estava também um
senhor de nosso Clube, que tendo o mesmo parecer que eu quanto ao edifício de
Geórgia, e suspeitando que se levantaria oferta, tomou a precaução de esvaziar
os bolsos antes de sair de casa. Lá pela conclusão do discurso, sem dúvida,
sentiu forte desejo de dar, e solicitou a um vizinho, que estava perto, que lhe
emprestasse algum dinheiro para a oferta. Infelizmente o pedido foi 'feito talvez à
única pessoa no grupo que teve a firmeza de não se deixar afetar pelo pregador.
Sua resposta foi: "Em qualquer outra ocasião, amigo, eu te emprestaria
liberalmente, mas não agora, pois me parece que estás fora de juízo." (10)
Por muitos anos Whitefield, fiel às suas idéias ascéticas, pensou em não se casar,
mas finalmente resolveu fazê-lo. Mais por um senso prático da vida que por
sentimentalismo. Nesse sentido orou para que Deus lhe concedesse uma esposa que lhe
permitisse viver como se não a tivesse. Diz um biógrafo seu que certamente essa oração foi
ouvida, pois a que veio a ser sua esposa pouco interferiu em seu trabalho, mas quando ela
faleceu, confessou que sua morte lhe havia deixado a "mente em muita liberdade".
Sua vida matrimonial não se distinguiu, portanto, por alguma demonstração de
profundo afeto, mas viveu em boa harmonia com a esposa. Casou-se no dia 14 de janeiro de
1741 com Elizabeth James, viúva que devia contar então seus 34 anos de idade. Dela teve
um filho que morreu aos quatro meses depois de nascer, e não lhe nasceram outros.
61
Esteve casado vinte e sete anos, falecendo a senhora Whitefield no dia 9 de agosto
de 1768, dois anos antes dele. João Wesley escreveu em suas memórias que era mulher
cheia de "candura e humanitária". Vários testemunhos afiançam que ela foi esposa
consagrada e cônscia de seus deveres, embora o marido, por sua itinerância, tivesse de
deixá-la longo tempo sozinha em casa, tanto na Inglaterra como na América, pois ela não
era muito dada a viajar.
Apesar de seus grandes esforços evangelizantes, quase sem precedentes, e de
sua devoção em favor dos órfãos, além de outras empresas menores, sua obra não
alcançou a transcendência que teve pessoalmente, e nem a obra que levaram a termo João e
Carlos Wesley. Faltava-lhe gênio organizador, equilibrada calma e paciência para
receber conselhos, visto como tinha a convicção de que para, todas as coisas receberia a
direção de Deus, portanto, tudo devia ter uma solução feliz.
Sem embargo, sempre será lembrado na história da Igreja Cristã como um dos
raros prodígios de oratória fulminante e quase demagógica. Pregava a tempo e fora de
tempo, sem medida e sem preocupar-se com o esforço que isto exigia de seu físico,
sempre enfermiço e sujeito a periódicos achaques. Calcula-se que num período de trinta e
quatro anos, pregou dezoito mil sermões. Sua média semanal era de uns 10.
Na América assumiu o compromisso de viajar a cavalo num circuito de mil e
quinhentas milhas (2.700 Km), para pregar incessantemente enquanto viajava. É incrível o
que se conta acerca das multidões que se ajuntavam de todas as partes, quando corria a
notícia de que ele se aproximava de alguma localidade. Vinham a pé, a cavalo, em carros,
cruzando campos, vales e bosques, como que atraídos por uma força irresistível. E rara era a
pessoa que o ouvia e não sentisse em si o desejo de arrepender-se de sua vida passada
e aceitar a cruz salvadora de Cristo. Em certa ocasião, quando o médico o aconselhou a
limitar suas pregações, escreveu em seu Diário: "Estou reduzido à curta ração de pregar
somente uma vez por semana e duas vezes nos domingos".
Seu ministério foi repartido entre América e Grã-Bretanha. Cruzou o Atlântico treze
vezes; seu itinerário na América compreendia desde o que é hoje o Estado de Geórgia até o
Maine. Viajava para a Inglaterra, principalmente, a fim de levantar dinheiro para seu orfanato
de Savannah e conservar vivas as relações na mãe-pátria. A América foi-lhe o campo
62
predileto. De fato escreveu: "Agrada-me andar errante pelos bosques da América e muitas
vezes penso que não devo mais voltar à Inglaterra".
E realmente não voltar ia mais. Morreu no dia 30 de setembro de 1770,
encontrando-se na época e apesar de seu precário estado de saúde, num giro
evangelizante. É realmente impressionante o relato que temos de suas últimas horas de vida:
“Ele havia partido nesse mesmo dia para Newburyport, onde se esperava
que ele pregasse no dia seguinte. Durante a hora da ceia, o pátio em frente à
casa e mesmo a entrada encheram-se de gente que se empenhava em ouvir
umas poucas palavras de seus lábios eloqüentes. Mas estava exausto e,
levantando-se da mesa, disse a um dos clérigos que estavam com ele: “Irmão,
diga a essa gente que eu não posso dizer-Ihes uma só palavra”. E tomando de
uma vela apressou-se em ir a seu dormitório, mas antes de chegar lá parou; uma
sugestão de seu coração generoso lhe dizia que não devia abandonar assim uma
multidão ansiosa e faminta pelo pão da vida que anelava receber de suas mãos.
Parou sobre os degraus para dirigir-lhes a palavra. Ele já havia pregado seu
último sermão. Esta seria sua última exortação. Pareceria que algum estranho
pensamento, algum vago pressentimento se houvesse apossado de sua alma
com a apreensão triste de que esses momentos eram demasiados preciosos para
que os usasse em seu descanso. Demorou-se na escada, enquanto a multidão o
contemplava com olhos chorosos, como Eliseu ao contemplar o profeta
Elias que ascendia ao céu. Sua voz, que talvez jamais vibrasse mais musical e
emotiva, fluía incessantemente até que a vela que levantara em sua mão,
consumiu-se totalmente. Na manhã seguinte ele já não era: Deus o havia tomado
para si". (11)
Morreu de um ataque de asma. Cumpriu-se, assim, o desejo que expressara em
certa ocasião, quando um companheiro lhe recomendou não se excedesse em suas
atividades e não pregasse tão amiúde como o fazia: "Quero consumir-me antes de
enferrujar-me".
Assim terminou a vida daquele que fora o verbo mágico e eletrizante do metodismo
63
calvinista. Em sua época, nenhum outro pregador teve a distinção de viajar tanto quanto
ele o fizera, e de pregar com tanta veemência e constância num circuito tão vasto e cheio de
inumeráveis tropeços e imprevistos.
NOTAS:
1) Gorge Whitefield, "A Shart Aceaunt of God's Dealing with the Rev. Mr. George WhitefieId" (London 1740).
(2) Idem
(3) Stevens, A., Op. Cit. Vol I,
(4)
(5)
( 6) Citado por Stuart, C.H., “Geoge Whitefield”.
(7) Diário, Vol. I.
(8) Citado por Stevens, A., Op. Cit., Vol I
(9) Harvard Classics, Vol I
(10) Harvard Classics, Vol I
(11) Stevens, A., Vol I, Op. Cit.
64
CAPÍTULO SEXTO
UMA ESTRELA DA GRAÇA
" Meu labor está concluído.
Nada mais tenho a fazer senão ir para a casa de meu Pai".
Selina Shirle, a Lady e Condessa de Huntingdon
Foi na primavera de 1741 que Jorge Whitefield voltou pela segunda vez de suas
peregrinações evangelizantes na América (foi durante a sua segunda estada na
América que estabeleceu o orfanato Bethesda, pelo qual havia estado pedindo ajuda
na Inglaterra depois de seu primeiro retorno.
Pouco tempo depois de chegar à Inglaterra, foi publicada a carta em que atacava a
teologia de João Wesley, especialmente suas idéias arminianas, isto é, da
universalidade da salvação (que defendia a salvação divina pela graça, ou seja, para
todos e qualquer um que a aceitasse em Jesus Cristo, o que se opunha à doutrina
calvinistas da eleição ou predestinação que o próprio Deus fazia de uns para a salvação
e de outros para a perdição). João Wesley publicou um sermão sob o título de "Livre
Graça", em que confirmava suas convicções arminianas. Desta controvérsia, que por
momentos tomou aspecto virulento, como já dissemos, surgiram os dois ramos do
metodismo: O arminiano e o calvinista.
65
Parece que Whitefield, além de suas convicções pessoais, havia recebido na
América essa influência calvinista, especialmente ao associar-se com alguns grupos batistas
e presbiterianos. Na Grã-Bretanha, os que apoiavam as mesmas tendências e que haviam
sido despertados em seu interesse religioso pelo movimento wesleyano, agruparam-se ao
redor de Whitefield a quem reconheceram como seu guia. Entre eles encontrava-se uma
mulher que faria o papel importante no destino desse movimento calvinista. Era Selina
Shirle, conhecida pelo título de Lady Huntingdon e posteriormente como Condessa
Huntingdon.
Nasceu essa senhora no dia 24 de agosto de 1707, na localidade de Chartley, e ao
que parece tinha conexão distante com a família real. Era a segunda filha de
Washington, conde de Ferrars. Apesar de estar acostumada a uma vida fácil e luxuosa, pois
tanto o pai como o esposo possuíam numerosas propriedades em diferentes lugares
do reino, sempre teve profundo interesse pelas coisas religiosas e por socorrer em suas
necessidades a seus dependentes e aos pobres da vizinhança.
Ela casou-se aos 21 anos de idade com Teófilo Hastings, nono conde de
Huntingdon. Este morreu em abril de 1746, aos 50 anos de idade, deixando-a viúva quando
ela beirava os 39 anos. Ela não voltou a casar-se, antes empregou sua viuvez e seus
haveres para incrementar e estender a obra religiosa.
Foi aos 32 anos, depois de uma séria enfermidade, que a Condessa de
Huntingdon teve ocasião de avistar-se com os Wesley (ano 1739). Ao que parece, o
primeiro contacto foi com Carlos. Sem embargo, segundo alguns historiadores, ela
freqüentou também as reuniões dos morávios, em Fetter Lane (a mesma comunidade onde
João Wesley teve sua experiência do Coração Aquecido), com os quais também os primeiros
metodistas soíam (costumavam) reunir-se durante algum tempo, antes de formarem grupo à
parte. Ademais, mostrou simpatia pela obra de Whitefield e teve certa influência para que o
grande evangelista fosse ordenado presbítero em janeiro de 1739, depois de seu primeiro
regresso da América, conforme se infere (conclui) de uma carta que o bispo Benson
escreveu ao conde de Huntingdon. Nela expressava o desejo de que essa ordenação
desse a Condessa Huntingdon alguma satisfação e esperava, ao mesmo tempo, que ela
não tivesse outro motivo para queixar-se de alguma falta do bispo. A condessa parece
haver-se irritado com a oposição hostil que os clérigos da Igreja Oficial fizeram para que
Whitefield fosse ordenado presbítero. Como regra seguida, ela comenta:
66
"Embora equivocado em alguns pontos, creio que ele (Whitefield) é
um jovem piedoso, com boas intenções, grandes habilidades e muito zelo.
Garanto que o bispo de Canterbury tem dele elevada opinião." (1)
Uma das mais decisivas influências que teve em sua vida religiosa, e que em verdade
a levou a decidir lançar sua sorte com os metodistas, foi a de sua cunhada Lady Margarida
Hastings. Apesar de ser ela da alta linhagem na sociedade inglesa, Margarida casou-se em
1741 com James Ingham, que foi um dos membros do "Clube Santo", dos tempos de
Oxford. Assim, tanto Lady Margarida Hastings quanto a Condessa de Huntingdon, fizeram
pública profissão de fé com os metodistas. Vale a pena consignar aqui, que Betty, a irmã
de Margarida, uma década antes já patrocinava o tradicional grupo do "Clube Santo" em
Oxford. De aí a relação de Ingham com Margarida e dos metodistas com a família do conde
de Ferrars.
Depois de entrar em contacto com o movimento metodista a Condessa de
Huntingdon extremou-se no zelo religioso e em obras de caridade, o que alarmou um
pouco o esposo. Este se dirigiu ao bispo Benson, que era seu tutor, para que tratasse de
atenuar o fervor da esposa. Combinou-se uma entrevista em que o bispo a aconselhou
não ser tão estrita em sua conduta e sentimentos. Ela, porém, o emaranhou
(enredou, envolveu) em citações das Escrituras, mostrando-lhe que outro devia
ser seu comportamento (do Bispo) e não o buscar que a gente tivesse menos religião.
Ele ficou algo ressentido com esta recriminação, dizendo-lhe que lamentava haver
ordenado a Jorge Whitefield, a quem atribuía todo esse fervor religioso que ela e outros
estavam experimentando, por ser Whitefield um dos guias do movimento, e
confessou-lhe que se sentia diretamente implicado por haver-lhe imposto as ordens
eclesiásticas, ao que ela replicou:
"Meu senhor, grave bem minhas palavras: quando estiver no leito de morte,
esta será uma das poucas ordenações que recordará com agrado". (2)
Essas palavras foram proféticas. Quando o bispo estava às portas da morte,
determinou que se enviassem ao grande evangelista Whitefield dez guinéus como prova de
sua consideração e admiração, com o pedido de que orasse a seu favor. Este incidente
nos dá uma mostra do caráter firme, decidido e ousado dessa mulher que não temia
67
enfrentar-se com os grandes de seus dias.
A Condessa Huntingdon convidou os Wesley, durante o desenrolar da 1ª
Conferência Anual Metodista, que se realizou em Londres nos fins de julho de 1744, para
realizarem uma sessão em sua residência. Isso porque ela, embora se houvesse decidido
pelo ramo calvinista do metodismo, considerava ambos os grupos como empenhados
numa causa comum. João Wesley pregou nessa reunião, havendo usado como texto o
seguinte: "Que cousas tem feito Deus!" Foi o primeiro sermão desse tipo que se pregou nessa
mansão senhorial. Mais tarde ela convidaria a Whitefield para pregar regularmente nessa
casa e em outras de sua propriedade, a muitos dos nobres da Inglaterra.
Quando Whitefield retornou de sua terceira viagem da América, em julho de 1748, a
Condessa Huntingdon enviou Howel Harris, um dos pregadores, para encontrá-lo e
convidá-lo a ir à sua casa em Chelsea, perto de Londres, para pregar a um grande círculo de
suas relações da alta sociedade inglesa. Mais tarde, esse ministério aos nobres ingleses se
estenderia às suas propriedades em Bath e Brighton. Nesses lugares ela construiu capelas e
nomeou Whitefield como um de seus capelães, sendo esta, realmente, a única
nomeação que o grande evangelista teria na Inglaterra.
Depois da morte do esposo e sem descuidar os deveres materiais — pois tinha cinco
filhos — tratou de empregar grande parte da fortuna em comprar propriedades para que os
pregadores de sua conexão tivessem onde exercer propriamente seu ministério. Adquiriu
teatros, salas públicas e capelas abandonadas, quer em Londres, Bristol ou Dublin, e as
reformou para que nelas se anunciasse a Palavra. Ademais, levantou capelas tanto na
Inglaterra como no País de Gales e na Irlanda. Ela significou dentro do movimento calvinista
o que João Wesley dentro do movimento arminiano, com a diferença que ela possuía a seu
alcance maiores recursos econômicos.
Dividiu os territórios em distritos e enviou evangelistas itinerantes a pregar, e ela
fazia frente (custeava) a todos os gastos que isso implicava. Calcula-se que despendeu
em todas essas obras de evangelização cerca de meio milhão de libras esterlinas. Essa
soma, sem dúvida alguma, representa muito mais do que hoje valeria. Chegou até a
vender suas jóias com o fito (intento) de comprar capelas. Despediu a muitos de seus
criados, reduziu grandemente suas despesas domésticas para que lhe sobrasse o suficiente
a fim de enfrentar os crescentes gastos da obra missionária.
68
Certa ocasião um alto dignitário queixou-se ao rei Jorge II de que essa senhora e
seus pregadores estavam se extremando em suas lides religiosas. O próprio rei, que a
tinha em alta estima, relatou-lhe o incidente. Achou por bem o monarca dizer a esse
dignitário que tratasse de imitar o zelo desses pregadores, e que quanto a Condessa
Huntingdon, desejava que houvesse uma igual a ela em cada diocese do reino. Ela mesma,
muitas vezes, acompanhava os capelães e pregadores por toda a Inglaterra, animando o
movimento com sua presença e inspecionando as obras para ver quais eram as
necessidades e oportunidades. O mais importante desses lugares de culto (que ainda existe)
foi o que se denominou "Tottenham Court Road Chapel", que substituiu o tabernáculo que em
1741 se erguera pela primeira vez em Moorfields para abrigar as multidões que, antes de
reunir-se ali, reuniam-se ao ar livre, e que Whitefield inaugurara no regresso de sua segunda
visita à América.
O movimento calvinista, como o arminiano, foi crescendo sensivelmente, o que
exigia maior número de pastores e capelães. Tornou-se evidente que a estes se devia
proporcionar preparo mais adequado às tarefas ministeriais. Portanto a Condessa
Huntingdon resolveu estabelecer um colégio para pregadores. Estabeleceu-o em
Gales do Sul, utilizando-se de antigo castelo, ao qual se deu o nome de "Casa Trevecca".
Foi dedicado (inaugurado) a 24 de agosto de 1768. Jorge Whitefield pregou o sermão
dedicatório e tomou por texto: "Em todo lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome,
virei a ti, e te abençoarei". No domingo seguinte voltou a pregar no pátio do colégio ante
milhares de pessoas, e desta vez seu texto foi: "Porque ninguém pode lançar outro
fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo".
Não obstante ser um colégio que tinha como principal objetivo o preparo dos
pregadores do ramo calvinista, alguns pregadores de tradição arminiana também
colaboraram, nessa obra educativa. Relações ricas e nobres da condessa carrearam
(ocasionaram, propiciaram, levantaram) fundos para fazer frente aos gastos de
compra e reforma da propriedade.
João Wesley aprovou a iniciativa e João Guilherme de La Flechère foi o primeiro
diretor da escola. Um dos mineiros convertidos por sua pregação nos "Montes de
Madeley", perto de onde estava sua paróquia, foi o primeiro estudante que se
matriculou nessa escola.
69
Os estudantes podiam permanecer na "Casa Trevecca" durante três anos com
direito a pensão, estudo e um traje por ano. Para cursar os estudos não havia
compromisso algum de servir a determinada igreja ou grupo em particular. Podiam
solicitar ordens eclesiásticas na Igreja Anglicana ou em qualquer outra denominação
cristã à qual se sentissem chamados a servir. McTyeire escreve o seguinte sobre
Trevecca:
"Trevecca, durante anos foi como quartel general do metodismo
calvinista. Supriu seus púlpitos e ao mesmo tempo fez contribuições
ministeriais importantes à Igreja Oficial (Igreja Anglicana) e aos outros grupos
Dissidentes (outras denominações). A condessa vivia ali grande parte de seu
tempo. Convinha-lhe, por causa da extensa obra que sustentava. E desse modo
podia despachar com urgência emissários e ajuda a muitos púlpitos. Sempre
havia cavalos à mão para que os estudantes fossem levados aos sábados a
pontos distantes, enquanto que os mais próximos eram visitados a pé.
Freqüentemente saíam para circuitos remotos pregando em campos, celeiros,
mercados, lares. Os retiros anuais eram como reuniões de acampamentos
metodistas. Em certa ocasião mil e trezentos cavalos de visitantes e
convidados viram-se soltos num grande campo, sem contar os que haviam
sido deixados nas aldeias circunvizinhas, além de grande número de
carruagens. Num extremo do pátio do colégio foi erigido um palco sobre o qual
se colocou um atril (estante em plano inclinado onde se põe o papel ou
livro aberto para se ler comodamente), de onde seis ou sete pregadores
discursavam sucessivamente a congregações atentas e ansiosas. Informa um
visitante que trezentas pessoas almoçaram juntas no local e conta que eram
abundantes os sermões, exortações, sacramentos, ágapes espirituais, tanto
em Inglês como em gaulês, e que mui ferventes eram os améns e o clamor (as
expressões) de 'Glória a Deus'." (3)
Naturalmente, a educação que se dispensava era mais prática que teológica, e
seus estudantes eram treinados no sentido de conduzir pessoas a Cristo, e se lhes
mostrava a urgência de sair a pregar por vales, encruzilhadas e onde que houvesse almas
necessitadas da mensagem da salvação eterna.
Quando a Condessa de Huntingdon faleceu contava 84 anos. Deixou todas as
70
propriedades que lhe restavam para o sustento das setenta e quatro capelas que havia
ajudado a construir em diferentes partes da Grã-Bretanha e considerável soma para
obras de beneficência. Dentro do grupo calvinista ocupou lugar que se pode comparar ao de
João Wesley no grupo arminiano. Certamente, se não fosse mulher (naquela época as ações
das mulheres, por mais capazes e bem preparadas que fossem, eram bastante limitadas),
teria tido influência tão grande quanto ele, ou talvez maior. Na história da Igreja Cristã é
provável que não tenha havido outra mulher que exercesse tanto poder "eclesiástico"
sem tê-lo realmente, como a Condessa Huntingdon. Horácio Walpole, ilustre homem de
letras e membro do parlamento, que foi seu contemporâneo, chamou-lhe "a Rainha do
Metodismo", e outro sábio, também do mesmo século, a qualificou como "Estrela de
Primeira Grandeza no Firmamento da Igreja".
Ao morrer exclamou: "Meu labor está concluído. Nada mais tenho a fazer
senão ir para a casa de meu Pai". Sua enfermidade foi longa e dolorosa, mas nesse
período conservou forte o ânimo, exceto uma vez ou outra quando entrou em êxtase,
parecendo-lhe por momentos encontrar-se já nos umbrais da glória celeste.
NOTAS:
(1)
(2)
(3) Op. Cit., pág. 246.
71
CAPÍTULO SÉTIMO
O PALADINO DA DIVINA
MISERICÓRDIA
“Não permita Deus que eu exclua de meu afeto
fraternal e de minha assistência ocasional, a
qualquer dos verdadeiros ministros de Cristo, porque
e l e l a n c e a s r e de s d o E v a n g e l h o c o m os
presbiter ianos, ou os independentes, ou os
quaqueres ou os batistas!".
João Guilherme de La Flechère
No estudo que fizemos de João Wesley dissemos que não havia sido
primeiramente teólogo e sim evangelista, e que sua principal fonte de pregação era o
Novo Testamento. Quando recrudesceu a controvérsia sobre o principal ponto teológico
que os dividia em calvinistas e arminianos, como duas correntes metodistas paralelas,
João Wesley teve de lançar mão de João Guilherme de La Flechère, ou João Fletcher
como era conhecido, que aparecera no cenário metodista quando o movimento já havia
tomado grande impulso na Inglaterra.
A razão pela qual o movimento metodista nunca se distinguiu como sistema
72
teológico é que seu principal interesse havia sido o de despertar a consciência evangélica
daqueles que nominalmente se diziam cristãos e de levar a mensagem do Evangelho aos
que não tinham conhecimento. Para cumprir com tal propósito, o mais importante era a
exposição que se pudesse fazer das Escrituras. Para João Wesley um sistema particular de
doutrina era coisa secundária, segundo o que ele mesmo escrevera sobre a natureza do
crente metodista:
"São estes os princípios e práticas de nossa seita (doutrina), os
traços do verdadeiro metodista... Se alguém diz: 'Mas esses são apenas os
princípios fundamentais comuns da fé cristã!!!” É precisamente isso o que quero
dizer.. . Rogo a Deus que tu e todos os homens saibam que eu e todos os que
pensam como eu, recusamos veementemente ser diferençados dos demais
homens por algo que não sejam os princípios comuns do cristianismo... Por estes
sinais, por estes frutos de uma fé viva, tratamos de distinguir-nos do mundo
crente... Mas dos verdadeiros cristãos, de qualquer denominação,
desejamos ansiosamente não distinguir-nos em absoluto... É teu coração sincero
como o meu o é para ti? Não te pergunto outra coisa. Se assim é, dá-me a mão...
Amas e serves a Deus? Isto basta. Aperto tua destra (mão) em sinal de
comunhão." ((((1111))))
Em sua "Pequena História do Povo Chamado Metodista", Wesley diz o
seguinte sobre seu achado de La Flechère:
"Dia 13 de 1757. Achando-me em estado de fraqueza, em Snowfields, orei
a Deus para que, se lhe parecesse bem, me enviasse ajuda para minhas capelas.
Assim o fiz. E tão logo terminei de pregar, veio o Sr. Fletcher, que havia sido
recentemente ordenado presbítero (da Igreja Anglicana) e se apressou em
chegar à capela com a intenção de ajudar-me, supondo que eu estivesse só. Quão
maravilhosos são os caminhos do Senhor! Quando minha força física declinava e
nenhum clérigo na Inglaterra estava em condições ou pronto para ajudar-me,
enviou-me ajuda das montanhas da Suíça e verdadeiro companheiro em todo
sentido! Onde poderia eu ter encontrado outro igual?" (2)
O fundador do metodismo tinha esperança de que esse homem, que Deus lhe
havia deparado (trazido inesperadamente) de maneira tão providencial, viria a ser seu
73
sucessor na direção do movimento. Por aquela época Wesley se encontrava um tanto
quanto desalentado quanto a seu estado físico e julgou que não viveria muito tempo mais.
Estava buscando alguém que pudesse ocupar seu posto se ele chegasse a faltar. Não
obstante ele sobreviveria a João de La Flechère, que era de constituição física muito mais
precária que Wesley.
Embora a João de La Flechère não o sucedesse na direção, foi-lhe muito útil
na luta que precisou sustentar para defender o ponto de vista arminiano perante seus
opositores calvinistas. Dessa maneira, o metodismo produziu um grande teólogo sem que
este realmente escrevesse um tratado de teologia como a "Suma Teológica" de Tomás de
Aquino ou "As Instituições Cristãs" de Calvino. Limitou-se a defender uma doutrina que lhe
pareceu mais afinada com o ensino que o cristianismo primitivo ministrava segundo o
testemunho do Novo Testamento.
João Guilherme de La Flechère não nasceu na Inglaterra. Viu a luz em Nyon,
pequeno povoado não muito longe de Genebra, Suíça, quase às margens do lago Leman,
no dia 12 de setembro de 1729. Descendia de uma família da Sabóia francesa. Estudou na
Universidade de Genebra e se distinguiu como aluno estudioso. Havia pensado fazer-se
pastor da Igreja Reformada da Suíça, mas por questões de consciência recusou
finalmente entrar. O que obstou a que ele desse tal passo foi o credo calvinista. Repugnava a
sua consciência crer que Deus, para sua glória, houvesse desde a fundação do mundo
decretado a perdição de muitos seres humanos. Renunciou a sua vocação ministerial por
esse motivo e foi a outro extremo, abraçando a carreira militar. Não durou muito essa
determinação, e logo viu que ali nunca prosperaria, visto como tinha ânimo demasiado
gentil para acomodar-se às idéias brutais da guerra. Foi quando resolveu emigrar para a
Inglaterra.
Como meio de vida nesse novo ambiente, João de La Flechère aceitou lugar de
tutor junto a uma rica família que vivia no campo e que costumava passar os invernos em
Londres. Suas ocupações docentes não fizeram diminuir-lhe o interesse pelas coisas do
espírito. Uma inquietude profunda por conhecer mais intimamente as coisas de Deus não o
deixava completamente em paz. Ouvindo falar dos metodistas, inquiriu a respeito
deles. Disseram-lhe: "São gente que ora dia e noite". A isto replicou: "Então eu os
encontrarei, se eles estão a meu alcance". Durante uma de suas permanências em
Londres pode entrar em contacto com os metodistas e renasceu-lhe o zelo religioso,
74
desejando servir ao Senhor assim como o anelara em seus anos mais juvenis. João Wesley
aconselhou-o a buscar ordens eclesiásticas no seio da Igreja Anglicana, que ele fez e
obteve.
Depois de ser ordenado ministro, o rico senhor em cuja casa servira de tutor
ofereceu-lhe a capelania de sua capela particular, em Dunham, onde lhe disseram que
havia "pouco trabalho e bom salário". Pouco antes de ser-lhe feito esse oferecimento
havia visitado o povo de Madeley, lugar não muito grande, mas onde prosperavam
algumas indústrias e minas. Notou no povo muita miséria e perdição. A Igreja Anglicana do
local vivia deserta e a gente (a população) não manifestava nenhum interesse pelas
coisas do espírito. Observou, também, a abundância do comércio de bebidas. Quando
seu antigo amo (patrão) lhe ofereceu aquela capelania, teve uma idéia: aceitá-la para
permutá-la com o pároco de Madeley. Mui gostosamente este aceitou a troca e pouco
depois La Flechère estava em seu novo posto de trabalho. Foi mirrada a colheita que
obteve ali no princípio de seu ministério. A gente (a população) se levantava tarde nos dias
de culto e por isso não assistia aos serviços religiosos. Davam, porém, como desculpa, que
o lavar e aprontar as crianças lhes tomava muito tempo para que estivessem prontos na
hora em que começavam os exercícios divinos (cultos). Então ele resolveu o problema
lançando mão do expediente de ir cedo pelas ruas tocando campainha para que se
levantassem a tempo. Além disso, se propôs visitar assiduamente, de casa em casa, indo o
melhor que pode ao encontro das muitas necessidades dessa gente, que por longo tempo
havia vivido ao abandono.
Nessa época ele já falava bem a língua inglesa e a usava maravilhosamente. Não era
homem de alta eloqüência, mas imprimia tal espírito de piedade e tal sentimento de candura
no que dizia, que suas palavras chegavam fundo no coração dos ouvintes. Um de seus
contemporâneos deu este testemunho: "Sua palavra viva remontava-se como vôo de águia".
A grande custo os ouvintes podiam reter as lágrimas, e suas mensagens eram recordadas
por muito tempo, pois deixavam impressão indelével (indestrutível) nas almas. Extremava-se
no cuidado dos pobres, que encontravam nele não só a mão caritativa, mas também o
coração compreensivo. Uma vez e outra chegou a vender os móveis de sua casa para
fazer face a alguma necessidade premente dos paroquianos pobres. Atendia com carinho as
crianças, às quais instruía no catecismo e as cercava com conselhos paternais. Consta que
chegava a reunir até trezentas delas.
75
Sua saúde nunca foi muito boa. Estava sujeito a achaques e, ao que parece, sofria de
tuberculose. Mas, apesar disso, entre enfermidade e enfermidade, levava adiante seu
ministério com dedicação e carinho. Não passariam muitas semanas em sua paróquia
antes que viesse o prêmio de seus esforços. A igreja se encheu de gente e muitos
encontraram o caminho da salvação e o sabor de uma nova vida em Cristo. Não somente
melhorou as condições de muitas famílias, mas também o povo sentiu a influência de sua
piedade e consagração. Tornou-se conhecido em toda a Inglaterra como "o Vigário de
Madeley". Aqueles que o conheciam diziam que só o seu aspecto já infundia ânimo e que
toda sua maneira de ser convidava a uma vida mais santa.
João Guilherme de La Flechère, apesar de pertencer como eclesiástico à Igreja da
Inglaterra, nunca perdeu o fervor metodista, e como já o notamos, foi um dos
companheiros mais achegados e fiéis de João Wesley. Pela citação de Wesley que
transcrevemos antes, vemos que ele apareceu quase providencialmente numa época de
premente necessidade. Wesley, em sua anotação, esqueceu-se de dizer que nesse
mesmo dia La Flechère recebeu sua ordenação de presbítero. O historiador Stevens nos faz
uma clara avaliação a respeito de sua contribuição ao movimento metodista:
"De ali em diante, dentre o clero da Igreja Anglicana, foi o coadjutor
mais ardente de Wesley, seu conselheiro e companheiro de viagem na
itinerância evangelizadora, assistente em suas Conferências (concílios), campeão
de seus pontos teológicos e, sobretudo, exemplo santo de vida e do poder do
cristianismo, assim como o ensinava o metodismo. Era lido e conhecido,
admirado e amado pelos metodistas em todo o mundo, tanto assim que Madeley,
sua paróquia, lhes é tão familiar e tanto a estimam como a própria Epworth." (3)
Wesley sentiu muito que ele resistisse em aceitar o convite para substituí-lo no
caso de vir a faltar. E por dois motivos não aceitou: por sua má saúde e por sua modéstia.
Apesar de exercer o ministério entre a gente humilde, pobre e viciada, nunca
perdeu contacto com os mais ilustres de sua época, e gozava da mesma admiração e
prestígio tanto entre ignorantes como entre sábios.
Quase até ao fim da vida se manteve solteiro. Em 1770 fez sua primeira visita de
76
regresso à Suíça. Nessa viagem passou pela Itália e empenhou-se em visitar a via Ápia, e ali
estando se descobriu e se ajoelhou em homenagem aos cristãos primitivos que por ela
haviam passado e dado a vida em testemunho do Evangelho. Voltou à sua paróquia mais
animado no espírito e mais forte no corpo, mas no verão de 1777 a saúde piora
novamente, perdendo ele a esperança de curar-se. Ao fim desse verão voltou de novo à
Suíça e ali permaneceu até 1781. Novamente os ares da terra natal lhe devolveram parte da
saúde, já que nunca chegou a curar-se por completo. Nesse mesmo ano voltou à
Inglaterra e no mês de novembro contraiu matrimônio com Maria Bosanquet, que havia
sido excelente cooperadora de João Wesley e uma das poucas mulheres a quem
concedera permissão para dirigir a palavra nas reuniões metodistas.
Maria nasceu de pais opulentos, em 1739, e desde tenra idade mostrou
pronunciado pendor pela religião. Quando tinha apenas oito anos de idade já meditava
acerca de sua salvação eterna, perguntando-se: "Que história é essa de se perdoar os
pecados de alguém e que devemos ter fé em Jesus?" Sua família estava relacionada com
círculos da alta sociedade, e assim teve ocasião de conhecer a vida prazerosa e os
centros aristocráticos das cidades de Bath e de Londres, bem como os salões de baile e casa
de ópera, todavia seu espírito religioso não desfaleceu. Em sua casa trabalhava uma
jovem criada que foi alcançada pelo movimento metodista. Essa criada exerceu grande
influência sobre Maria e sua irmã, e merece grande crédito pela resolução que Maria
tomara de aderir ao metodismo.
Depois, em Londres, no inicio de sua juventude, entrou em contacto com alguns
elementos femininos metodistas que influíram em sua maneira de viver. Os pais se
alarmaram com a religiosidade da filha e quiseram levá-la a um lugar de veraneio,
tratando de alijar de sua mente o que, na opinião deles, eram "idéias exóticas e
extravagantes". Todavia ela lhes suplicou que não a levassem, e ficou com alguns amigos em
Londres, que alimentavam sentimentos mais afins com os seus. No seio dessa família,
firmou-se mais e mais a determinação de dedicar-se a uma vida religiosa. Um dia seu pai
impacientou-se com ela e lhe disse: "Tenho de exigir-te que prometas
expressamente que nunca, em qualquer oportunidade, seja agora ou mais tarde, tentes fazer
de tuas irmãs o que chamas um cristão". A isso respondeu (ela mesma o relata): "De
acordo com o que considero ser a vontade do Senhor, não ouso consentir em tal coisa".
Então o pai lhe replicou: "Em tal caso me obrigas a que te ponha fora de minha casa". A
isso ela respondeu: "Está bem, senhor, e de acordo com sua maneira de ver as coisas,
77
entendo sua atitude. De minha parte me guardarei de provocar ambiente
desagradável". E quando alcançou a maioridade, estando de posse de uma pequena
fortuna, por direito de herança, abandonou o lar. Com o consentimento dos pais
estabeleceu-se em companhia de sua criada, num local um tanto afastado de sua morada
anterior. Dedicou-se ali à vida religiosa que tanto almejava e, exceto o que reservava para
seu modesto sustento, distribuía todas as rendas entre algumas viúvas pobres.
Dessa época em diante passou a vida em simplicidade, aprofundando-se na
piedade e extremando-se em atividade benevolente. Pôs-se à disposição das
"Sociedades Metodistas" de Londres e foi alto expoente da maneira de viver, pensar e crer
dos Wesley. Muitas haviam sido, já, as atividades que exercera, quando se casou com
João de La Flechère. Os historiadores dizem que nunca antes duas almas tão gêmeas
viveram sob um mesmo teto. O poeta Roberto Southey dá o seguinte parecer: "É
mulher profundamente apropriada para ele em idade, temperamento e talentos". (4) Foi
constante companheira do esposo em todos os misteres pastorais, secundando-o
(auxiliando-o )em todos os giros evangelizantes e sustentando-o em sua débil saúde.
Escrevendo a Carlos Wesley sobre seu casamento, depois de pouco mais de um ano de
casados, diz João de La Flechère:
"Eu tinha medo, a princípio, de dizer muito sobre este particular, porque os
recém-casados não se conhecem devidamente um ao outro, mas havendo vivido
em meu novo estado por esses quatorze meses, posso dizer-lhe que a
Providência me reservou um prêmio, e que minha esposa é muito melhor para
mim que a Igreja para Cristo, de tal maneira que se o paralelismo falha, será por
minha causa." (5)
Com a publicação das Atas da Conferência Anual reunida em Londres, em 1770, surge
uma nova controvérsia com os elementos calvinistas. Estes haviam interpretado algumas
asserções ali contidas como se advogassem "a salvação por meio das obras", e não pela fé
somente, bradando aos céus e dizendo que se haviam apartado por completo da sã doutrina.
Na realidade, o que a Conferência quis salientar era a necessidade de a fé ser confirmada
por uma vida pura, dedicada ao bem. Deste incidente, que a princípio parecia ser coisa sem
importância, desencadeou-se uma controvérsia que durou longo tempo, e João Guilherme de
La Flechère se converteu no defensor da tese doutrinária do metodismo arminiano. Fê-lo com
altura e profundidade em cartas e folhetos que depois foram reunidos em volumes chamados
78
"Cheeks to Antinomianism", nos quais se esforçou por expor o que considerava ser a
essência do Evangelho, sem ferir suscetibilidades. A respeito dessas publicações, João
Wesley faz o seguinte comentário:
"Não se sabe o que admirar mais: se a pureza de linguagem, ou a força e
clareza do argumento, ou a gentileza e doçura de espírito que se desprende de
tudo isto." (6)
Como resultado desta controvérsia, a Condessa Huntingdong despediu o
metodista arminiano José Benson da direção do colégio Trevecca, em virtude de sua
negativa em aceitar a doutrina da predestinação absoluta. Ante essa atitude da Condessa,
que havia sido também responsável por chamar a atenção ao conteúdo das Atas de
1770, La Flechère, eleito na época presidente da Instituição, enviou-lhe a renúncia de seu
cargo, dizendo-lhe entre outras coisas que:
"O Sr. Benson fez uma defesa muito justa quando disse que comigo
sustentava a possibilidade de salvação para todos os homens e que a misericórdia ou
é oferecida a todos, embora possa ser recebida ou rejeitada. Se isto é o que sua
senhoria identifica como opinião do Sr. Wesley, livre arbítrio ou arminianismo, e se
qualquer arminiano tem de deixar o colégio, de fato estou igualmente despedido.
Diante de meu atual ponto de vista nesta questão, vejo-me obrigado a manter este
sentimento, se em verdade a Bíblia é verdadeira e Deus é Amor. " ( 7)
Antes de sua renúncia, ele se manteve no cargo de diretor do colégio Trevecca por
dois anos, e depois da renúncia, de quando em quando visitava a escola para ali ficar alguns
dias e estar em contacto com os alunos. Dessas visitas temos este testemunho de Benson:
"O leitor me perdoará se pensa que estou exagerando, mas meu coração se
ilumina enquanto escrevo. Isto é o que eu via: que direi? Um anjo em carne
humana? Não me excederia muito da verdade se assim o dissesse. Em verdade eu via
diante de mim um descendente do caído Adão tão completamente restaurado das
conseqüências da queda, que embora o corpo estivesse atado à terra, sem dúvida
sua conservação era dos céus e sua vida estava dia após dia escondida com Cristo
em Deus. Oração, louvor, amor e consagração, tudo isso ardente e elevado muito
acima do que comumente julgamos ser possível alcançar neste nosso estado de
79
fraqueza, eram os elementos pelos quais vivia constantemente. As línguas, as artes, a
ciência, a gramática, a lógica e mesmo as próprias matérias teológicas eram postas de
lado quando ele aparecia em aula entre os estudantes. Estes raramente o ouviam por
muito tempo sem que brotassem lágrimas de seus olhos e sem que cada coração se
incendiasse com a chama que ardia em sua alma." (8)
Talvez seja conveniente dizer que depois de seis anos de controvérsia, os dois
grupos se reconciliaram, reconhecendo que, apesar de seus diferentes pontos de vistas
teológicos, estavam trabalhando para a mesma causa e que decerto se haviam excedido em
zelo e expressões. Em conexão com este fato é reconfortante recordar ainda que
Fletcher possuía um estranho espírito ecumênico, para quem o mais importante não era
pertencer a esta ou àquela denominação, e sim ter o espírito de Cristo na vida e na alma.
Uma declaração sua, a respeito da atitude que tinha para com os colegas de outras
denominações, revela-nos esse espírito:
"Não permita Deus que eu exclua de meu afeto fraternal e de minha
assistência ocasional, a qualquer dos verdadeiros ministros de Cristo, porque
ele lance as redes do Evangelho com os presbiterianos, ou os independentes, ou
os quaqueres ou os batistas! Se eles não me desejam boa sorte no Senhor, eu a
desejarei a eles. Podem eles excomungar-se se seus preconceitos os compelem a
isso, podem levantar, se quiserem, muros de separação entre mim e eles, mas
pelo poder de meu Senhor, cujo amor é tão ilimitado como sua imensidade,
saltarei por cima de seus muros. " (9)
A morte o surpreendeu no dia 14 de agosto de 1785, apenas quatro anos após seu
enlace matrimonial. Sua saída deste mundo foi tão gloriosa e luminosa como sua própria vida.
A esposa o acompanhou carinhosamente em seu leito de morte, vigiando-o minuto após
minuto e bebendo de seus lábios as últimas palavras, até que já não pôde falar mais.
Durante os últimos dias, em meio à dor, ouviam-se, de quando em quando, estas
exclamações: "Deus é amor! Proclamai-o, proclamai-o com força! Oh! que uma onda de
louvor se estenda até aos confins da terra!" Seu espírito arminiano, segundo o qual o
amor de Deus está sempre permanente e ativo, acompanhou-o até aos últimos momentos de
vida. No último dia, quando estava agonizando, os pobres que ele havia socorrido
vieram de toda parte desejando vê-lo pela última vez, e deixaram que passassem diante da
porta do quarto onde jazia para que dessem uma última olhadela em seu rosto. Não podendo
80
falar mais, a esposa se inclinou sobre ele e lhe disse: "Conheço tua alma, mas por amor
aos demais, se Jesus está mui perto de t i, levanta tua mão direita".
Imediatamente a levantou. Outra vez ela lhe disse: "Se as perspectivas de glória se
abrem amplamente sobre ti, repete o sinal". Instantaneamente a levantou outra vez e
passado meio minuto, uma vez mais. Ato contínuo levantou-a tão alto como se quisesse
alcançar a cabeceira da cama. Depois disso as mãos não se moveram mais, e como se
estivesse dormindo, morreu. João Wesley deixou este comentário a respeito de sua vida:
"Muitos homens exemplares, santos na vida e no coração, tenho
conhecido durante oitenta anos de vida, mas igual a ele não conheci nenhum tão
consagrado a Deus, tanto interior como exteriormente, caráter tão sem jaça
(mancha) em todo sentido. Não tenho encontrado nem na Europa, nem na
América, nem espero encontrar outro igual neste lado da eternidade." (10)
NOTAS:
(1) Citado por Schofield, C.E., "La Iglesia Metodista", pág. 131.
(2) Stevens, A., Op. Cit., Vol. I, pág. 365.
(3) Stevens, A., Op. Cit., Vol I, pág. 367.
(4) Soutley, R., citado por Stevens, A., Op. Cit. Vol II.
(5) Wesley, C., citado por Stevens, A., Vol II, págs 270-271.
(6) Wesley, citado em “A New History of Methodism”, Vol I, págs 319-320.
(7) Citado por Stevens, A., Op. Cit., Vol II, pág. 37.
(8) Citado por Stevens, A., Op. Cit., Vol I, pág. 425.
(9) Citado por Stevens, A., Op. Cit., Vol II, pág. 272.
(10) Citado por Stevens, A., Vol. II, pág. 274.
81
CAPÍTULO OITAVO
TINHA ASAS DE ÁGUIA
"Anseio ter as asas da águia e a voz de trombeta para
poder proclamar o Evangelho pelos quatro pontos
cardiais da terra."
Tomás Coke
Durante a Conferência Anual que João Wesley presidiu em Leeds, Inglaterra, em agosto
de 1778, achava-se presente pela primeira vez, numa reunião como aquela um homem que viria
a figurar nos anais (história ou narração organizada ano por ano) do movimento metodista como
um de seus principais atores. Seu nome era Tomás Coke, doutor em leis. Essa não era,
entretanto, a primeira vez que ele entrava em contacto com os metodistas. Antes disso,
havia estado relacionado com Tomás Maxfield (de quem falaremos mais adiante), que foi
o primeiro pregador leigo metodista e que lhe falou da natureza da religião que abraçara muitos
anos antes. Depois entrou em contacto com outros que haviam sido alcançados pelo
metodismo wesleyano. Esses contactos levaram-no a modificar sua própria religião e
sendo, além de doutor em leis, ministro da Igreja Anglicana, começou a pregar à maneira
metodista. O interessante, no caso de Coke, é que foi levado a uma vida mais espiritual da
religião cristã através da instrumentalidade de leigos, que em sua simples, porém profunda fé,
tiveram o poder de mostrar-lhe algo que não encontrara através da teologia formal de sua
Igreja.
82
A decisão de voltar seu interesse religioso com os metodistas, embora não
houvesse tido ainda ocasião de encontrar-se com João Wesley, obrigou-o mui cedo a
haver-se com as autoridades eclesiásticas. As obras de João de La Flechère e os
sermões de Wesley fizeram-lhe tão grande impressão que o compeliram a modificar
completamente o conteúdo e a forma de sua pregação, com tal ousadia, que chegou a exercer o
ministério fora das paredes da igreja. Ainda mais, introduziu o cântico de hinos na
congregação e começou a pregar "ex-tempore". Foi admoestado pelo bispo da cidade de Bath,
e Wells, seu superior na paróquia, o despediu. Os paroquianos ameaçaram apedrejá-lo.
Por fim o expulsaram da igreja. Durante o debate pregou na rua, perto da igreja. Voltou a
pregar ao ar livre no domingo seguinte, e com grande dificuldade pode sair ileso da multidão
que quis apedrejá-lo. Um jovem e sua irmã serviram-lhe de escudo para defendê-lo. Afinal se viu
obrigado a sair do lugar chamado Petherson, onde iniciara seu ministério. Nesse dia os
sinos do povoado foram aos ares para celebrar sua expulsão, e o metodismo ganhou
para sempre aquele que, depois de Wesley, seria a figura mais notável. João Wesley
escreveu o seguinte em seu Diário, com data de 13 de agosto de 1776:
"Aqui (em Kingston) encontrei o Dr. Coke, que a propósito viajou vinte milhas
(32 km) para encontrar-se comigo. Tive uma longa conversa com ele, e desde esse
instante se iniciou uma verdadeira comunhão que espero jamais termine. " (1)
E o desejo se cumpriu. João Wesley já estava ficando muito idoso e anelava
(desejava) encontrar quem pudesse coadjuvar (ajudar) na administração de uma obra que
havia ido muito além de suas possibilidades. Como anteriormente vimos, ele pôs as
vistas em La Flechère, mas não pôde concretizar a idéia. Não recuou em seu empenho de
buscar algum outro, mas seus esforços resultaram infrutíferos. Agora era Deus que lhe punha
ao alcance o homem que tanto desejara e de que necessitara.
Antes de prosseguir, diremos algo mais sobre seus antecedentes. Nasceu no
povoado de Brecon, no ano de 1747, no País de Gales. Era filho único de pais abastados.
Estudou na Universidade de Oxford, havendo-se matriculado no colégio de "Jesus" a 10 de
junho de 1770. Foi ordenado diácono e três dias depois recebeu o título de Mestre em Artes. No
dia 23 de agosto de 1772 foi ordenado presbítero. Em junho de 1775 recebeu diploma de
83
doutor em leis civis. Dedicando-se ao ministério, foi nomeado vigário da paróquia de South
Petherson, ficando ali até ser expulso pelos motivos já mencionados. Nesse posto
extremou-se em zelo, de tal maneira que chamou a atenção dos paroquianos. Logo a
igreja se tornou pequena para comportar a assistência. Apelou reiteradamente ao diretório da
congregação ("vestry") para que pusesse uma galeria suplementar a fim de aumentar a
capacidade do templo ante a crescente assistência aos serviços religiosos, mas o pedido foi
rejeitado. Então mandou colocá-la por sua própria conta. Essa determinação já revela o
caráter desse homem para quem pareceria não existir a palavra "impossível".
Naturalmente, possuía ao alcance da mão recursos materiais próprios, que com freqüência
o ajudaram a solucionar problemas que de outro modo lhe houvera sido difícil resolver, senão
impossível. Trouxe a serviço do metodismo sua mente erudita, força de vontade
inquebrantável e assombrosa amplidão de vistas, além de potencial econômico muito
providencial.
Sua primeira nomeação no movimento metodista foi feita pela Conferência de
1778, como um dos ajudantes de João Wesley. Sua trajetória ascendente no seio do
metodismo foi rápida. Em 1780 já o encontramos viajando extensamente e pregando sem
cessar. Sob a direção de Wesley visitava as Sociedades Metodistas tratando de informar-se
quanto a seu crescimento e problemas, com o fito (objetivo) de melhorar sua eficácia. Essa
itinerância duraria quase sem interrupção, até ao dia em que as águas do oceano Índico o
receberam em seu seio para guardar-lhe zelosamente os restos. Já em 1782 o
encontramos em Dublin, na Irlanda, presidindo, por ordem de Wesley, a Conferência de
pregadores metodistas irlandeses. A primeira Conferência que nessa ilha se realizou foi em
1752 e João Wesley a presidira por trinta anos com intervalos de dois ou três anos. Mas, a
partir de 1782, a Conferência começou a reunir-se anualmente. Por muitos anos o Dr. Coke
visitou anualmente a Irlanda para presidir a suas Conferências. Ao mesmo tempo exerceu o
ministério por todo o restante da Grã-Bretanha, isto é, Inglaterra, Escócia e Pais de Gales.
Em 1784 cruzou pela primeira vez o Atlântico para pisar terras americanas. Dali em diante
sulcaria (navegaria) essas mesmas águas do Atlântico dezessete vezes. No total realizou nove
viagens de ida e volta à América, todas por sua própria conta.
Fizemos referência a sua primeira viagem à América em 1784. Essa data marca
na história do metodismo um fato transcendente, pois nesse ano foi organizada formalmente,
84
como denominação, a primeira igreja metodista do mundo. Na chamada "Conferência de Natal"
(Christmas Conference), que abriu suas sessões na véspera da data em que se comemora o
nascimento de Cristo, reconheceu-se de fato a separação do metodismo americano de sua
congênere nas Ilhas Britânicas. Como se recordará, em 1776 as treze colônias originais do
país que compreendiam o que hoje são os Estados Unidos, proclamaram sua independência. E
ao separar-se politicamente, romperam-se também os laços com a Igreja da Inglaterra (o
movimento metodista, ainda que marginalizado e desprezado, acontecia dentro da Igreja
Anglicana, a igreja oficial do estado inglês, e da qual João Wesley era pastor), que estava
intimamente ligada ao Estado inglês. Agora que o governo inglês nada mais tinha que
ver com a nova nação, tampouco a Igreja Oficial. Desse modo, João Wesley julgou que a
única forma capaz de dar estabilidade à obra metodista do novo mundo (obra que se vinha
levando a cabo desde 1766), seria a de constituí-la em grupo independente e dar-lhe governo,
ministério, leis eclesiásticas e ritual tais que lhe garantissem vida própria. Para levar a cabo
essa missão escolheu o Dr. Tomás Coke, a quem chamava seu "braço direito".
Embora a obra dos Estados Unidos começasse na data já indicada, devido às
guerras da Independência, não ficou nas antigas colônias inglesas nenhum ministro
metodista ordenado de procedência inglesa. Mas ficou Francis Asbury, que jamais havia
sido ordenado, apesar de agir como pregador itinerante desde muitos anos. Os clérigos da
Igreja Anglicana na América, ao avizinhar-se o movimento da independência, também
deixaram em quase sua totalidade o país, de maneira que as condições espirituais de
ambos os grupos estiveram à mercê das contingências por longos anos. Asbury conseguiu
manter seus companheiros sujeitos à supervisão de Wesley, embora por muito tempo não
houvesse comunicação com ele. Homem acostumado à disciplina, não concebia que um
pastor sem ordenação pudesse celebrar a Santa Ceia e por isto vigiava os companheiros
metodistas para que não o fizessem, e insistia, principalmente com os que se opunham a seu
critério, a que buscassem a ajuda dos poucos ministros ordenados que ficaram nas ex-colônias.
Pelo que se vê, esse estado de coisas não era satisfatório sob nenhum ponto de vista.
Enquanto continuavam interrompidas as comunicações, enviaram a Wesley insistentes
pedidos para que enviasse pregadores ordenados à América, onde, no ano de 1784, os
metodistas eram já quinze mil e seus pregadores itinerantes não ordenados somavam oitenta e
três.
85
João Wesley tentou, sem êxito, por duas vezes, convencer o bispo Lowth a ordenar,
pelo menos, dois pregadores a fim de enviá-los à América. Então se viu obrigado a recorrer a
uma medida extrema, justificando sua atitude na tese que, segundo o Novo Testamento, não há
diferença entre o presbítero e o bispo, senão no exercício de suas funções.
Recordar-nos-emos de que um seu antepassado (o bisavô João White, em 1641) já havia
sustentado essa mesma tese. Portanto decidiu, ele mesmo, ordenar alguns de seus
pregadores itinerantes, com a assistência de outros presbíteros. Isto aconteceu na cidade de
Bristol, em 1784. Um dos que foram ordenados, o Rev. R. Whatcoat, recorda em seu Diário:
"1º de setembro de 1784. O Rev. João Wesley, Tomás Coke e James
Creighton, presbíteros da Igreja da Inglaterra (Anglicana) formaram um presbitério e
ordenaram a Ricardo Whatcoat e Tomás Vasey diáconos e no dia 2 de setembro,
pelas mesmas mãos, Ricardo Whatcoat e Tomás Vasey foram ordenados presbíteros
e Tomás Coke, doutor em leis, superintendente para a Igreja de Deus sob nosso
cuidado na América do Norte. " (2)
João Wesley ratificou este proceder escrevendo mais tarde uma carta circular que
começa assim:
"Visto que nossos irmãos americanos estão agora completamente
desembaraçados, tanto do estado como da hierarquia eclesiástica inglesa, não
ousamos enredar-nos novamente tanto em um como em outra. Agora estão com
plena liberdade de cingir-se (prender-se, ligar-se, no sentido de submeter-se) tão só
às Escrituras e à Igreja Primitiva. E nós julgamos que o melhor é que eles
permaneçam firmes naquela liberdade com que Deus os fez dessa maneira
providencialmente tão livres."
O título de superintendente usado para o Dr. Coke foi mudado na América pelo de
bispo, porque os irmãos ali disseram que segundo as Escrituras, o uso do termo bispo era mais
apropriado que o outro. Nas atas do ano de 1785 da Conferência de ministros na América,
acha-se a seguinte nota:
"Como os tradutores de nossas versões da Bíblia têm usado a
86
palavra inglesa 'bispo' em vez de 'superintendente', pensamos que seria mais
conveniente, conforme as Escrituras, adotar o termo bispo." (3)
Desta maneira Tomás Coke veio a ser o primeiro bispo da Igreja Metodista no mundo
inteiro. E por certo que foi digno dessa distinção, e sua obra o justificaria. É de notar que
Wesley não houvera chegado a tal extremo se não fosse porque a necessidade o obrigou, e, ao
curvar-se ante a necessidade, sentiu o dever de justificar sua atitude como que para dar-lhe
caráter e força de legalidade. A missão do Dr. Coke nos Estados Unidos consistia em organizar
os metodistas em corpo separado, que em princípio se adequaria, com ligeiras modificações,
às leis canônicas e à liturgia da Igreja Anglicana, pois parecia a João Wesley que eram as
melhores que ele podia oferecer-lhes dentre, todas as demais liturgias e formas de governo
eclesiástico. Além disso, ia com poderes para ordenar tantos ministros itinerantes quantos
estivessem em condições de sê-lo, e consagrar superintendente em pé de igualdade com ele
a Francis Asbury, que foi o líder natural do grupo (metodista) americano.
Quando o Dr. Coke tratou do assunto com Francis Asbury, este recusou aceitar como
terminantes e finais as ordens de João Wesley para que ele fosse consagrado
superintendente (bispo). Propôs que se convocasse uma Conferência de todos os
pregadores para que eles mesmos, depois de haver-se inteirado da resolução de João Wesley,
tomassem as determinações que melhor lhes parecessem. Somente aceitaria tão alta
responsabilidade se os colegas americanos estivessem de acordo em elegê-lo
superintendente. Então enviaram Freeborn Garrettson, um dos pregadores itinerantes de
maior influência entre seus companheiros, que saiu a galope para convocar os pregadores da
América que pudesse encontrar para uma Conferência Geral na cidade de Baltimore, Maryland.
Nela se resolveria o futuro destino do metodismo americano e se realizaria a eleição dos que
haveriam de assumir a direção da flamante igreja. (4) Essa foi a tão lembrada Conferência de
Natal.
Dos oitenta e três pregadores estiveram presentes cerca de setenta, e elegeram por
unanimidade Coke e Asbury como superintendentes associados do metodismo
americano. No segundo dia da Conferência, dia de Natal, Asbury foi ordenado diácono por
Coke, assistido por Whatcoat e Vasey. No dia seguinte foi ordenado presbítero e no outro,
consagrado superintendente (bispo). No serviço de consagração participou também o Rev.
87
Filipe Otterbein, ministro alemão, grande admirador e amigo pessoal de Asbury.
Nessa mesma Conferência foram ordenados quinze diáconos, dos quais treze foram
ordenados presbíteros. Dois destes foram enviados à Nova Escócia, atendendo a um
chamado dali, e outro a Antígua, nas Ilhas Ocidentais. O nome adotado pela nova
organização foi "Methodist Episcopal Church" (Igreja Metodista Episcopal). A Conferência
adotou o primeiro livro de disciplina eclesiástica, que, em substância, era o mesmo já
existente para todo o metodismo, chamado "Enlarged Minutes" (Atos Ampliados),
com adaptações para as necessidades da América do Norte. Definiram-se os deveres dos
pregadores, fixou-se o salário dos mesmos e se estabeleceram dois fundos: um para o sustento
ministerial e outro para os gastos gerais da obra.
É interessante conhecer algo do caráter do Dr. Coke e acompanhá-lo em sua
primeira viagem à América, que duraria diversas semanas. Apesar da dureza de cruzar o
Atlântico em barcos tão frágeis, ocupou o tempo em estudos e se regozijou por contar tão longo
tempo à sua disposição para isso. Com as incessantes viagens e excursões que tinha na
Grã-Bretanha, jamais se lhe ofereceu oportunidade tão propícia para leituras prolongadas, de
modo que pôde dedicar-se à leitura a vontade, "tragando" uma série de livros e dentre eles
Virgílio. Anotou em seu Diário:
“Deus fez estas horas de ócio para nós. Desde agora ele será meu Deus para
sempre. Posso dizer em sentido muito melhor que ele (Virgílio)”.
Realmente não foram horas de ócio, mas de estudo e meditação em preparo para
a tarefa que o esperava na outra margem do mar. Essa disposição revela-se principalmente em
outras notas desse mesmo Diário, com data de 24 de setembro de 1784:
"Entretive-me lendo a vida de Francisco Xavier. Oh! quem me dera ter uma
alma como a sua, mas glória a Deus porque nada lhe é impossível! Anseio ter as
asas da águia e a voz de trombeta para poder proclamar o Evangelho pelos
quatro pontos cardiais da Terra!.. .
Na terça-feira, dia 28 de setembro, escreveu:
88
“Durante estes últimos dias tenho estado lendo a vida de Davi Braynerd.
Oh! que eu possa segui-lo como ele seguiu a Cristo! Sua humildade, sua renúncia,
sua perseverança e seu zelo ardente por Deus são, em verdade, exemplares...
Registrou na segunda-feira, 4 de outubro:
“Terminei de ler a vida de Davi Braynerd."
Desde que começou a viajar para fora das Ilhas Britânicas, não recuou em suas
peregrinações pelo mundo. Em 1786, na segunda viagem à América, foi parar na ilha de
Antígua, deixado pelo capitão do navio, que quase o lança de bordo por ocasião de uma furiosa
tempestade que pôs em perigo de naufrágio o barco. O capitão do navio tomou o Dr. Coke
como novo Jonas, supondo ser ele o causador da tempestade! E embora não chegasse a
arrojá-lo ao mar, atirou todos os seus livros e manuscritos. Em Antigua o Dr. Coke se encontrou
com um tal João Baxter, carpinteiro naval, que tomava conta de uma sociedade metodista de
mais de mil e quinhentos membros, todos de raça negra, com exceção de dez. Essa sociedade
tivera seus princípios em 1760, por iniciativa de um advogado chamado Natanael Gilbert,
agricultor dessa ilha, que começou as reuniões em sua própria casa. Ele e duas de suas
escravas ouviram Wesley na Inglaterra, em janeiro de 1758. Essas escravas, de origem
africana, foram as primeiras pessoas negras que João Wesley batizara, e o princípio de uma
obra entre os africanos e seus descendentes que se estenderia por diversas partes do globo. O
Dr. Coke, nessa viagem, ia com destino a Nova Escócia, juntamente com três missionários, mas
em virtude de não poder chegar por causa da tempestade, e de ter encontrado tão numeroso
grupo de crentes em Antigua, resolveu deixar aqueles missionários ali. Baxter havia
chegado em 1778, enviado pelo governo inglês para trabalhar em obras navais, encontrando
assim os remanescentes da sociedade metodista estabelecida por Gilbert, que haviam
conservado a fé, principalmente por causa do zelo de duas mulheres africanas.
O Dr. Coke, ao encontrar-se com Baxter, convenceu-o a deixar seu trabalho com
o governo e entregar-se completamente à tarefa de evangelização. O doutor e seus
missionários foram de ilha em ilha pregando e estabelecendo sociedades. Não podemos
acompanhar o Dr. Coke em todas as suas viagens dentro dos limites que nos temos
imposto nestes estudos, mas o que relatamos nos dá uma idéia de seu espírito zeloso e
evangelizador.
89
Já mencionamos que João Wesley considerava o Dr. Coke como seu braço
direito. Com o desenvolvimento que logrou o movimento metodista, João Wesley se viu na
obrigação de ir adquirindo propriedades para abrigar as sociedades que iam surgindo, de
maneira que em muitos lugares se levantaram capelas ou se reconstruíram
propriedades para locais de culto. Mas não se tinha nenhuma garantia de que, com a morte
de João Wesley (a princípio as propriedades f icaram em nome do João Wesley),
essas propriedades pudessem continuar em mãos dos metodistas, o que poderia pôr em
perigo a estabilidade do movimento, pois elas poderiam passar às mãos do Estado. Fazia falta,
portanto, que essa entidade não oficializada, a que João Wesley chamava de "Conferência",
e que consistia de uma assembléia anual que reunia para consulta os pregadores, se
constituísse com personalidade jurídica, a fim de assegurar continuidade legal e permitir a
posse de propriedades. Foi o Dr. Coke que sugeriu a conveniência de conseguir personalidade
jurídica para essa Conferência, e que preparou o instrumento legal que se adotaria. Foi
chamado "Deed of Declaration" (Ato de Declaração) pelo qual se concedia o direito de
depositários das propriedades, por morte de João Wesley, a cem pregadores da
Conferência Anual. Esse corpo legal subsistiu através dos anos, preenchendo-se em cada
caso os claros que se verificavam. Desta maneira se garantiu na Inglaterra a continuidade do
movimento que em 1797 se constituiu em Igreja autônoma, havendo sido, anteriormente,
apenas Sociedades Unidas sob a direção de João Wesley.
Além das características já assinaladas, mencionaremos mais duas que também nos
parecem de muita importância para revelar-nos o caráter ecumênico e liberal do Dr.
Tomás Coke. Quando foi à América do Norte pela primeira vez, ficou chocado por ver o estado
em que jaziam os escravos africanos trazidos por navios negreiros da África. Seu ânimo
se rebelou ao ver esse estado deplorável e pregou com veemência dos púlpitos contra a infame
instituição da escravatura. Isto lhe acarretou inimizade de parte daqueles que se beneficiavam
com o tráfico e exploração de escravos, ainda mesmo dentro da comunidade metodista. Até ao
fim da vida, tanto na Inglaterra como em outras partes, não deixou de levantar sua voz de
protesto contra esse abuso abominável.
Fizemos referência a sua atividade na ilha Antigua e noutras das de Sotavento.
Durante essa excursão simpatizou sobremaneira com a raça africana e surgiu nele um desejo
90
poderoso de estender seu ministério até a África. Em seu Diário escreve:
"Desde minha visita às ilhas (índias Ocidentais), descobri que tenho um dom
especial para falar aos negros. Parece-me uma coisa irresistível. Quem sabe se o
Senhor não me está preparando para uma visita, nalgum tempo futuro, às costas
da África?" (5)
Desse desejo seu nasceria a obra missionária que a Igreja Metodista da
Inglaterra começaria no continente Africano.
A outra característica marcante de Dr. Tomás Coke é seu amor pela liberdade.
Em 1779 foi, com Francis Asbury, felicitar o primeiro presidente dos Estados Unidos,
George Washington, em nome da Igreja Metodista Episcopal desse país. A nota que levaram
começava assim:
"Nós, bispos da Igreja Metodista Episcopal, conjunta e
humildemente solicitamos em nome de nossa Sociedade vossa atenção, a fim de
poder expressar os calorosos sentimentos de nosso coração, e de apresentar, a V.
Excia., nossas sinceras congratulações pela vossa eleição à presidência destes
Estados..." (6)
Este passo significou um grande desgosto a seus irmãos metodistas da Inglaterra,
que o admoestaram por achar que em sua posição de súdito britânico (era inglês) não lhe
correspondia tal manifestação, e aprovaram por unanimidade um voto de censura contra
seu caráter. Apesar disso, o Dr. Coke deu informações sobre a obra missionária que levara a
cabo, e não puderam fazer outra coisa senão ouvi-lo com interesse.
Contudo, a maior obra do Dr. Coke consistiu em sua paixão missionária, tanto assim
que o apelidaram de "Ministro das Relações Exteriores do Metodismo". Já fizemos referência a
umas poucas de suas viagens. É realmente uma história extraordinária a que passa ante nossos
olhos quando revisamos as memórias que este homem deixou em seu Diário. Como dissemos,
era filho único de uma família abastada; além disso, casou-se duas vezes e ambas com
mulheres de muitas posses, que tinham seu mesmo espírito, tanto em fervor religioso como em
91
generosidade.
Em realidade o Dr. Tomás Coke foi o "Conselho de Missões" do metodismo primitivo:
o que formulava os planos, o que os executava e o que assumia a responsabilidade maior pelos
gastos. Comprometia seus recursos para cobrir tudo o que se fizesse necessário para a obra
que se ia levando a cabo em diferentes partes do mundo. Por exemplo, em 1794, se publicou
informação sobre as entradas e saídas que se registraram durante o ano precedente para a obra
missionária, e ali ele aparecia como credor de uma importância equivalente a mil e cem dólares,
por adiantamentos que fizera para enfrentar as despesas. Terminou doando toda essa
importância à Causa.
Não contente com suas incessantes viagens pela Inglaterra, Escócia, Irlanda, País
de Gales, América e ilhas inglesas do Caribe, chamadas de Índias Ocidentais, lá pelo fim de
sua carreira viveu obcecado por abrir uma obra missionária na Índia. Em 1813 compareceu
perante a Conferência Anual na Inglaterra, suplicando a seus irmãos que o enviassem, junto
com outros missionários, a esse ponto distante, com o qual havia estado em contacto pela
correspondência que mantivera ao longo de muitos anos. A Conferência Anual achava seu
plano missionário para a Índia coisa descabida e impossível de levar a cabo, especialmente pela
erosão financeira que isso implicava. Além disso, agia contra o plano a oposição dos que, na
Inglaterra, mantinham interesses comerciais na índia e que não desejavam que a influência do
Evangelho viesse a prejudicá-los economicamente. Por sua vez, alguns amigos trataram
de dissuadi-lo, achando que sua idade era empecilho para alcançar o propósito. Contava,
então, 66 anos e sua saúde era precária. A um amigo que lhe escrevera querendo
convencê-lo a abandonar seus desígnios, respondeu:
"Estou morto para a Europa e vivo para a índia. O próprio Deus me disse: "Vai
a Ceilão". Preferiria ser arrojado nu a suas costas, e sem um amigo, a deixar de
ir. Estou estudando a língua portuguesa continuamente." (7)
Quando, finalmente, a Conferência Anual rejeitou seu projeto, ele voltou a seu
aposento chorando de desespero pelas ruas. Passou quase toda a noite em lágrimas e orando.
Um missionário amigo, que o havia acompanhado na noite anterior, encontrou, na manhã
seguinte, a cama estendida como estava na véspera. Realmente o Dr. Coke não havia deitado,
92
e quando voltou no dia seguinte à sala de sessões fez um apelo comovedor e patético, para
que a Conferência revogasse a anterior decisão. Novamente se ofereceu para ir, e além disso
pôs à disposição da Conferência a importância de trinta mil dólares para fazer face às despesas.
Ante esse dramático oferecimento, escudado no apoio de alguns amigos, a Conferência já não
podia resistir. Se o tivesse feito, teria parecido oposição à própria vontade de Deus! Finalmente
se votou autorizando-o a ir e levar consigo sete companheiros, um para a África do Sul e os
outros para a Índia. Regressou a seu quarto chorando, agora, de alegria, e dizendo ao mesmo
missionário que o acompanhara no dia anterior: "Não te havia dito que Deus responderia a
nossas orações?"
No dia 30 de dezembro de 1813 o Dr. Coke e os outros missionários partiram para a
Índia. A viagem foi demasiado longa para o velho e enfermo visionário. Muitas tempestades
haviam açoitado o comboio em que iam, e na manhã de 3 de março de 1814, quando
estavam próximos da meta, o criado que o chamou à sua porta às cinco e meia, hora em que
sempre se levantava, não obteve resposta. O Dr. Çoke jazia estendido no solo do
camarote do seu navio. Sobre seu rosto se esboçava, porém, um sorriso. Parece que se
levantou para pedir socorro e caiu sem vida após um ataque apopléctico.
Seu corpo foi sepultado no mar. O seio das ondas recebeu o corpo do grande
missionário. Os soldados que estavam no barco foram alinhados para prestar-lhe a
homenagem póstuma, enquanto o sino do barco tocava tristemente o adeus. Todos os
passageiros e tripulantes assistiram, em respeitoso silêncio, à cerimônia do sepultamento, na
hora em que o sol tramontava (se escondia) nas águas. Disse alguém que o corpo de uma
alma tão grande somente podia ter por sepultura um lugar tão imenso como o oceano. Sua obra
não se escondeu com o desaparecimento daquele dia.
Apesar de seus companheiros ficarem consternados com sua morte,
prosseguiram na empresa (empreendimento). E plantaram em terras longínquas a semente
da fé, que com os anos produziria frutos permanentes e abundantes. Quando na América se
recebeu a notícia de sua morte, a Conferência Anual pediu a Francis Asbury que pregasse o
sermão em memória do falecido. Seu antigo colega recordou a ocasião em seu Diário:
"Domingo, 21 de junho de 1815. Ontem por decisão da Conferência
93
preguei o sermão em memória do Dr. Coke — benévolo de alma e mente, do terceiro
ramo do metodismo de Oxford — um gentil homem, erudito, e para nós, Bispo. Como
ministro de Cristo foi, em abnegação, labores e obras, o maior homem do último
século."
Maior tributo do que o que lhe rendera o Bispo Asbury não poderíamos fazê-lo.
Tomás Coke não apenas foi o homem mais proeminente de sua época, entre os que Deus
levantou no seio do movimento metodista, mas a sua figura ainda nos desafia a que não
deixemos de ir “até aos confins da terra" em obediência ao mandado de Cristo de "Ide e
pregai o Evangelho a toda criatura".
NOTAS:
(1) Stevens, A., Op Cit, Vol I, pág. 131.
(2) Citado por “A New History of Methodism”, Vol I, pág. 231.
(3) Das Atas da Conferência Annual dos Estados Unidos de 1785, pág. 50.
(4) Para maiores informações, ver o Diário de Asbury, datado de 14 de janeiro de 1784.
(5) Barclay, Wade Crawford, Op. Cit., Vol I, págs 108-109.
(6) Idem, pág. 110.
(7) Citado por Stevens, A., Op. Cit, Vol III, pág. 330.
94
CAPÍTULO NONO
O PROFETA
DO CAMINHO SOLITÁRIO
"Quero fé, valor, paciência, mansidão e amor.
Quando outros sofrem tanto por seus interesses materiais,
certamente posso sofrer um pouco para a glória de Deus e
o bem-estar das almas."
Francis Asbury
Corria o ano de 1771. A Conferência Anual das Sociedades Metodistas da
Grã-Bretanha realizou-se na cidade de Bristol, que depois de Londres era o centro mais
importante e tradicional do metodismo na Inglaterra. Durante as sessões, João Wesley
dirigiu a seguinte pergunta aos assistentes: "Nossos irmãos na América estão clamando por
ajuda; quem está disposto a ir para ajudá-los?" A este desafio para servir como missionários na
América, cinco responderam, mas apenas dois foram enviados: Francis Asbury e Ricardo
Wright. No dia 4 de setembro de 1771 os dois embarcaram para o novo destino e chegaram a
Filadélfia no dia 27 de outubro.
95
Desde a Conferência Anual de 1767, que se reunira em Londres, e na qual foi
admitido à experiência, até 1771, Asbury esteve exercendo a itinerância na Inglaterra. Esse
período seria o único dedicado a sua terra natal. Porque da América não voltaria mais. Já em
1769 a Conferência enviara Ricardo Boardman e José Pilmoor como os dois primeiros
obreiros da Inglaterra na América. Em 1773 foram enviados Jorge Shadford e Tomás Rankin
(que será a partir de então, por nomeação de João Wesley, o Superintendente Geral da
Sociedades Metodistas da América) e em 1774 mais dois: Martin Rodda e Jaime Dempster.
Quando o movimento de Independência chegou ao f im em 1776, os
missionários da Grã-Bretanha que ainda estavam na América voltaram à terra natal, com a
exceção de Francis Asbury que se recusou abandonar os irmãos metodistas. Como os
americanos suspeitassem de suas intenções de permanecer no país, teve de ocultar-se por
quase um ano, vivendo e pregando como podia, fiel a sua tarefa e instando com os
irmãos pregadores americanos a que seguissem adiante na sua vocação, sem exorbitar de
suas funções, pois, como já dissemos, se opunha a que uma pessoa sem ordenação
celebrasse o sacramento da Santa Ceia. Desta maneira se constituiu em figura notável e
principal do movimento metodista no novo país. Nenhuma outra figura aparece como ele, nos
Estados Unidos, com sinais mais evidentes de apostolicidade. Parece quase figura legendária,
dessas que deixam a impressão de estar em toda parte ao mesmo tempo e que deixam atrás
de si marcas luminosas que o tempo não pode apagar nem a memória dos homens olvidar.
Suas origens humildes não poderiam antecipar-lhe a trajetória e o papel
preponderante que teria não só no seio do movimento religioso a que pertencia, mas também na
própria vida de uma jovem nação. Nasceu de pais de poucos haveres, sem ser realmente
pobres, no dia 20 de agosto de 1745, na localidade de Staffordshire, distante quatro milhas de
Birmingham, na Inglaterra. Seus pais também tiveram uma filha que morreu na infância,
restando-lhes Francis como filho único. Devido a isso quiseram dar-lhe educação esmerada.
Puseram-no sob cuidados de um professor, mas suas maneiras de ensinar eram tão brutais e
antipedagógicas, que o menino em vez de sentir amor aos estudos, teve aversão por eles, e
sua educação formal não foi além do terceiro grau.
Tinha treze anos quando tratou de exercitar-se nalgum mister de ordem
96
comercial. Desde mui criança esteve submetido a uma disciplina rígida no lar, e ao
mesmo tempo a uma atmosfera verdadeiramente religiosa. Sua mãe ficou muito afetada com a
morte da filha e se entregava a longos espaços de isolamento, dedicando-se a leituras
devocionais e à oração. Asbury registra o seguinte em seu Diário a respeito do lar:
"Aprendi de meus pais umas certas palavras formais como oração, e
recordo-me muito bem de que minha mãe insistia muito com meu pai para que
tivesse leituras devocionais familiares. A prática de cantar salmos era costume mui
comum entre eles. Muitas vezes me ridicularizavam e me chamavam o cura
(vigário de aldeia ou povoação) metodista porque minha mãe convidava para nossa
casa qualquer pessoa que tivesse aparência de ser muito religiosa." (1)
Naturalmente que uma atmosfera como essa não podia senão desenvolver uma
tendência favorável à religião. Quando tinha quatorze anos, apareceu em sua casa um homem
piedoso, a quem sua mãe convidara e que se interessou pelo jovem. Conversou com ele acerca
de assuntos religiosos e exercitou-o na oração. Isto fez que se aplicasse mais seriamente à
religião e começou a ler livros que despertassem nele a procura de uma vida piedosa mais
profunda. Diz em suas memórias:
"Tornei-me muito sério — lendo muito os sermões de Whitefield e Cennick
(este também metodista) — e todo bom livro que eu pudesse encontrar. E
não passou muito tempo antes que eu começasse a investigar junto a minha mãe
quem eram os metodistas, onde estavam e que faziam. Ela me deu informação
favorável e levou-me a uma pessoa que podia conduzir-me a Wednesbury para
ouvi-los. Imediatamente achei que essa não era como a Igreja — era melhor. A
gente era tão devota que homens e mulheres se ajoelhavam e diziam "Amém". E
eis que eles estavam cantando hinos — que doces eram! — e, coisa estranha, o
pregador não tinha nenhum livro de oração e, sem embargo, orava
maravilhosamente! O mais extraordinário, todavia, foi que o homem tomou seu
texto e não usou nenhum livro de notas, isto é em verdade extraodinário! — pensei
eu. É certamente, uma maneira estranha, mas a melhor maneira. Falou a respeito da
confiança, certeza, etc... " (2)
97
Antes de passar adiante, registraremos aqui a influência que teve em seu sentir
religioso o pensamento de Whitefield. No ano de 1798 encontramos este testemunho:
"Dia 14 de Agosto. Comi e me apressei indo pela região de Ipswich e dali
a Newburyport: aqui passei da tumba do antigo profeta, o querido Whitefield,
sepultado sob o lugar onde se realizam cultos presbiterianos. Seus sermões me
estabeleceram na doutrina do Evangelho mais que qualquer outra coisa que eu
tivesse escutado e lido naquele tempo, de tal maneira que me encontrava
excepcionalmente preparado para fazer frente à exprobração (acusação) e à
perseguição." (3)
Entregou-se de cheio a uma nova expressão religiosa somente depois de
assistir a outras reuniões, de falar com seus integrantes, de exercitar-se em suas leituras, de
sofrer a perseguição e de ver que se fechavam as casas onde se realizavam as reuniões
por medo às conseqüências. Então decidiu promover reuniões na casa de seus pais, onde
exortava a gente a ser mais piedosa. Desde logo verificou que sua pregação produzia bons
efeitos na vida espiritual dos ouvintes. Finalmente, entrando mais intimamente em
contato com os metodistas na casa de reunião destes, seus trabalhos se intensificaram e
muitos ficaram admirados com os resultados que alcançava. E assim, de modo quase natural,
viu que se havia convertido num pregador local, sempre pronto a servir e acudir ao chamado que
se lhe fizesse a qualquer hora do dia ou da noite, indo a todos os povoados adjacentes em busca
de almas para salvar.
Em geral pregava três, quatro ou cinco vezes por semana, e ao mesmo tempo
continuava em seu trabalho regular. Esse ritmo e prática ele os manteve até passados os 20
anos de idade. Diz em suas memórias:
"Penso que eu estava entre os 21 e 22 anos de idade quando me entreguei
completamente a Deus e a seu trabalho, depois de servir como pregador local por
espaço de cinco anos." (4)
98
Em sua viagem para a América pôs à dura prova sua fé e determinação. Em
primeiro lugar, não tinha qualquer dinheiro para a viagem. Confessa em seu Diário:
"Quando vim a Bristol não tinha um centavo, mas o Senhor logo abriu
o coração de amigos que me proporcionaram roupa e dez libras esterlinas. Assim
verifiquei, por experiência, que o Senhor provê para aqueles que confiam nele." (5)
De sua viagem sobre o mar escreveu:
"Dia 13 de outubro de 1771: Muitas têm sido minhas provas no curso
desta viagem por falta de cama adequada e provisões apropriadas, por causa de
enfermidade e por estar cercado de homens e mulheres ignorantes de Deus e muito
maus." (6)
Quando iniciou a viagem, examinou-se a si mesmo sobre a natureza dos
motivos que o estavam levando à América, mesmo quando esses desejos já os tinha
mesmo antes de ir apresentar-se à Conferência Anual, pois escreveu em seu Diário:
"Antes de aceitar senti, por cerca de seis meses, fortes insinuações em minha
mente que eu devia ir à América, o que coloquei diante do Senhor, não querendo fazer
minha própria vontade e adiantar-me antes de ser enviado." (7)
Presa, pois, desse sentir escrupuloso, é que sobre o oceano volta a consultar sua
consciência:
"Para onde vou? Ao Novo Mundo. Para fazer o quê? Ganhar honra?
Não! Eu conheço meu coração! Ganhar dinheiro? Não! Vou viver para Deus e induzir
outros a que façam o mesmo! Parece-me que são os metodistas o povo que Deus
tem na Inglaterra. As doutrinas que pregam e a disciplina que impõem, segundo
creio, são as mais puras no presente entre qualquer outro grupo no mundo. O Senhor
tem abençoado grandemente suas doutrinas e disciplina nos três Reinos
(Inglaterra, Escócia e Irlanda): devem, portanto, agradá-lo. Se Deus não me
confirmar na América, voltarei imediatamente à Inglaterra. Sei que por ora meus
objetivos são justos: que nunca venham a ser outra coisa!" (8)
99
Dois testemunhos que consigna a respeito de seus pais valem a pena que sejam
registrados aqui, porque revelam não apenas o caráter deles, mas também a estima em que o
filho os tinha. Quando resolveu ir para a América, voltou à casa paterna para despedir-se
deles e de suas relações. Descrevendo essa visita, comenta:
"Embora fosse penoso para a carne e o sangue, consentiram em
deixar-me ir. Minha mãe é uma das mais ternas no mundo; creio, pois que ela foi
abençoada na presente circunstância com a assistência divina para poder separar-se
de mim." (9)
Por ocasião da morte de seu pai, em 1798, escreveu em seu Diário: "Cerca de 39
anos, meu pai teve pregação do Evangelho em casa".
Como vimos, Asbury chegou à América no dia 27 de outubro de 1771. No dia 20 de
novembro já escrevia o seguinte acerca de como a obra se realizava pelos obreiros ali
destacados:
"Fiquei em Nova York, embora não esteja contente porque estamos
parados na cidade (o outro missionário era Ricardo Boardman). Não tenho, todavia, o
que busco — um rodízio dos pregadores, para evitar parcialidade e
popularidade. Em verdade me aferro ao plano metodista, e o que faço, faço-o
fielmente para Deus. Tenho o presságio de dificuldades imediatas. Estas eu já
esperava quando deixei a Inglaterra; estou disposto a sofrer, em verdade morrer,
antes de atraiçoar uma causa tão excelente por qualquer bagatela. Será coisa
dura enfrentar a oposição e permanecer firme contra ela, forte como coluna de ferro
e firme como muro de bronze. Não obstante, poderei todas as coisas por Cristo que
me fortalece." (10)
Em concordância com essa determinação, apesar de ser nomeado para
trabalhar em Nova York, vemo-lo viajando de lugar em lugar, em busca de novos lugares e
pessoas para evangelizar. Foi principalmente devido a seu exemplo que a Igreja
Metodista se estendeu por todo o território da nova nação, e que a itinerância entrou a formar
100
parte, como coisa imprescindível, do sistema eclesiástico metodista.
Na história da Igreja Metodista dos Estados Unidos ele é conhecido como "O
Peregrino dos Caminhos Solitários". Quem viaja hoje por aquele país não faz idéia do que era há
coisa de duzentos anos. Naquela época não havia caminhos, às vezes nem para andar a pé.
Tinha de ir através de emaranhadas florestas e por vales sombrios, cruzar rios sem pontes,
e pântanos, sempre sob o constante perigo de ataques de índios selvagens ou
revoltados. Asbury e seus companheiros de itinerância viam-se, mui a amiúde, em
necessidade inevitável de abrir picadas em muitos lugares, a fim de poder alcançar os colonos
dispersos pelas regiões mais avançadas da fronteira móvel, muito além de povoados e
cidades. O relato das peripécias ocorridas nessas viagens é algo tão dramático que sobrepuja a
própria ficção.
Nada detinha esse homem admirável! Nem as inclemências do tempo, nem cansaço,
nem perigos, nem ameaças, nem longas solidões, nem enfermidades, exceto quando estas o
prostravam imóvel no leito. O peregrino solitário, muitas vezes tremendo de febre e com a
garganta em chagas, seguia seu caminho levado pelo imperativo do dever, por não querer
faltar ao compromisso assumido de estar presente em lugar certo, dia certo, hora certa.
Convém recordar que as distâncias eram enormes e que comumente não lhe era
possível visitar um mesmo ponto senão depois de algumas semanas ou meses. Perder
uma oportunidade era postergar a visita por um período indeterminado. De seu Diário
extraímos algumas anotações acerca dessas viagens a cavalo. Diz em um lugar:
"Viajei quase 300 milhas (perto de 500 quilômetros) para Kentucky, em seis
dias, e no meu retorno perto de 500 milhas (800 quilômetros) em nove dias. Oh! que
excursões para um pobre homem e seu cavalo!"
Noutra parte registra:
"Fiz os cálculos que viajei 4.900 milhas (8.000 quilômetros) desde 30 de
julho de 1801 a 12 de setembro de 1802. Como poderia queixar-se um homem
responsável e cristão?"
Era para ele coisa intolerável ver-se obrigado a guardar o leito (ficar acamado), pois
101
isso o enfermava ainda mais. Quem atenderia a seus compromissos? Durante os últimos anos
de sua itinerância viajava em carruagem, coisa que fez até quase ao último dia de vida. Morreu
na casa de Jorge Arnoldo, amigo seu, a 20 milhas (32 quilômetros) distantes de
Frederickburgo, Virgínia. Seu companheiro de viagem, João Wesley Bond, que lhe havia sido
assistente nos dois últimos anos, escreveu sobre sua morte:
"Nosso querido pai deixou-nos, unindo-se à Igreja Triunfante. Morreu da
mesma maneira que viveu — cheio de confiança e de amor — às quatro horas de
tarde do domingo 31 de março de 1816."
No domingo anterior havia pregado pela última vez na cidade de Richmond, Virgínia.
Tiveram de carregá-lo desde a carruagem ao púlpito e colocá-lo num assento especial
preparado para ele, pois já não podia caminhar nem permanecer de pé. Ainda assim, obrigado a
fazer de quando em quando uma pausa para recobrar alento, pregou cerca de uma hora sobre
Romanos 9:28: "Porque o Senhor cumprirá a sua palavra sobre a terra, cabalmente e em
breve". Este seria seu último sermão.
Como vimos no capítulo anterior, em 1784 foi eleito superintendente geral (Bispo)
para a América do Norte, juntamente com o Dr. Coke. Contava nessa época 39 anos de idade.
Seu ministério episcopal durou 32 anos. Até à morte foi indiscutivelmente o guia quase absoluto
da obra metodista nos Estados Unidos, apesar de haver tido o Dr. Coke como companheiro nas
lides episcopais e, mais tarde, outros mais jovens que ele. Foi ele mesmo que conservou
unida uma obra tão extensa e dispersa, e que deu à Igreja Metodista nesse país seu
sentido de coesão. Tanto ele quanto seus colegas não tinham território definido para o exercício
do ministério episcopal. Eram superintendentes gerais da Igreja Metodista, e desta maneira
serviam a todas as congregações como se fossem um só corpo.
Durante os 32 anos de sua superintendência, calcula-se que Francis Asbury
viajou algo assim como 270.000 milhas (432.000 quilômetros) pregando umas 16.000
vezes. Ordenou 4.000 ministros e presidiu a 224 Conferências Anuais. Temos de levar em
consideração que tudo isso foi cumprido em luta constante contra toda sorte de enfermidades e
sob o peso constante causado pelos excessos das tarefas, vendo-se sujeito a toda sorte de
desconforto e a dormir no chão, uma e outra vez com as roupas úmidas, mal nutrido, sem
102
cuidados médicos, tomando remédios para nós inconcebíveis. Foi surpreendente que seu
organismo agüentasse tanta fadiga e as infusões que era obrigado a ingerir!
Em seu Diário, quase sem exceção, encontramos referências a suas constantes
enfermidades e ainda quando não se queixava, notamos que geme sob o jugo de tormentos
indizíveis. Viveu uma vida de contínuos reveses e provas, sem ter jamais, por amor a Cristo e a
seu Evangelho, morada certa e o calor de um lar. Em geral tinha de pousar nas aglomeradas
cabanas dos colonos, que nesses tempos possuíam escassa comodidade. Às vezes,
quando se achava imobilizado pelas intempéries ou enfermidades, via-se obrigado a
passar horas do dia na única dependência disponível para todos os da família e onde se
executavam todos os misteres do lar, entre os brinquedos e a algazarra das crianças. Para
um homem habituado à solidão dos caminhos e com achaques físicos (doença ou mal-estar sem
gravidade, mas em geral recorrente), tudo isso era um tormento indizível, mas inevitável.
Nunca desejou casar, não por ter idéias ascéticas, mas porque acreditava
contribuir para a limitação de sua obra se o fizesse. Sempre lhe causava amargura o enlace
de algum de seus pregadores itinerantes; figurava-se-lhe como quase a perda segura de um
colaborador, dado que, com muita freqüência, depois de casar, os itinerantes se
localizavam (deixavam o ministério itinerante, tornando-se fixos numa localidade). Isto se
devia, em grande parte, ao sustento tão limitado e incerto que recebiam e que não dava para
manter família. Aqueles que, casando-se, não se fixavam num lugar, sempre o faziam
sujeitando-se a tremendas renúncias e sacrifícios, e terminavam a vida prematuramente.
Quando um de seus pregadores se casava, geralmente dizia que esse "havia sido tentado pelo
diabo" mudar de estado, para enfraquecer a obra. Naturalmente eram poucos aqueles que
podiam aceitar seu sistema de vida itinerante e suas idéias sobre o celibato.
Admira também que ele chegasse, com tão escassa educação formal, a ocupar posto
de tanta responsabilidade, alcance e transcendência. Isso foi porque, apesar de sua aversão
aos estudos quando esteve sujeito a um professor inconsciente, desenvolveu depois o
hábito de educar-se a si próprio, tratando de adquirir por esforço pessoal algo do que não pôde
quando estudante. Portanto o encontramos, à maneira de João Wesley, estudando enquanto
viajava a cavalo e nessas condições chegou a obter, não sabemos como, conhecimento
regular do hebraico e do grego, tanto que fazia muitos de seus estudos bíblicos baseados
103
nas línguas originais. Mais pôde a força de vontade que as oportunidades que teve na
juventude. Os períodos de enfermidade eram ocasião para que se dedicasse à leitura e ao
estudo. De outra maneira era-lhe impossível!
Ainda mais, como já devemos ter notado pelas reiteradas referências, no decorrer da
existência conservou um diário. Até hoje sua leitura inspira, a quem o leia com intenção
e paciência, a ambicionar uma vida consagrada e consciente para usá-la em holocausto
(sacrifício de abstrair a vontade própria para satisfazer a vontade de Deus) à obra eterna de
Deus. Seu ministério ainda era suplementado pela distribuição que constantemente fazia de
porções bíblicas, folhetos e livros, ligando dessa maneira as famílias isoladas com o restante da
Igreja e do mundo.
Poucos homens existiram na história da Igreja Cristã que houvessem tido como Francis
Asbury espírito tão apostólico e zelo tão aventuroso e, ao mesmo tempo, tão isento de
glória pessoal. O fragmento de uma carta que escreveu em agosto de 1775 a Tomás Rankin, o
então "Superintendente Geral das Sociedades Metodistas da América", em resposta a um
convite que aquele lhe fizera para abandonar o país, em vista do movimento de Independência,
demonstra claramente esse temperamento:
"Não posso, de maneira alguma, concordar em abandonar um
campo que se apresenta tão pródigo de colheitas de almas para Cristo, como o que
temos na América. Seria uma desonra eterna para os metodistas se
abandonássemos três mil almas que desejam entregar-se a nossos cuidados, e tão
pouco é papel dum pastor deixar seu rebanho em época de perigo. Portanto,
resolvi, pela graça de Deus, não abandoná-lo, quaisquer que sejam as
conseqüências." (11)
Não teve na alma outra paixão senão Cristo. Seu lar foi o caminho aberto e interminável,
e sua suprema ambição era ver muitas almas aos pés de Cristo. Talvez se possa criticar muitas
de suas características peculiares, especialmente a de que foi quase despótico no uso da
autoridade episcopal. Sem dúvida isso emanava da disciplina a que ele mesmo se submetia.
Tinha a íntima convicção de que essa disciplina produzia benefícios inestimáveis para o
Reino e, portanto, achava que seria excelente para todo bom soldado de Jesus Cristo.
104
Esquecia-se de que são mui poucos os que têm uma fé tão profunda, capaz de fazê-los aceitar
as privações e renúncias. Ao mesmo tempo este fato nos dá uma idéia da surpreendente
humildade deste estupendo homem, que não se considerava superior a ninguém, antes julgava
que todos podiam ser fortes, nobres e consagrados como ele.
NOTAS:
(1)
(2) Citado por McTyeire, H. M., Op. Cit, págs 293-294.
(3) Diário, Vol II, pág. 388.
(4) Diário, Vol. I.
(5) Diário, Vol I, pág. 12.
(6) Diário, Vol I.
(7) Idem, Vol. I.
(8) Diário, Vol. I, pág. 12.
(9)
(10)
(11) Citado por Barclay, W. C., em Early American Methodism”, Vol I, pág. 43.
105
CAPÍTULO DÉCIMO
O BANDO DOS
“IRREGULARES”
PARTE 1
"Não, não posso temer; não, não posso temer ao homem
ou ao diabo, enquanto sinta em minha alma o amor de
Deus, como agora o sinto."
João Nelson
O renomado historiador e pensador metodista contemporâneo H. B. Workman faz a
seguinte declaração:
"Contrariamente ao que sucederia com a Igreja Anglicana, o
metodismo, mesmo privado de seu ministério, poderia assim sobreviver, mas privado
de seus obreiros leigos, certamente morreria. Não apenas seu bem-estar, mas
sua própria existência depende do serviço deles."
106
Esta opinião não é apenas um tributo que se faz ao elemento leigo dentro do
movimento metodista; corresponde, também, a um fato histórico: é que privado do
ministério leigo, não teria podido sobreviver, e isto porque, desde o princípio, sua obra e sua
vida estão intimamente tecidas dentro da textura geral. Em verdade não podemos entender o
movimento metodista sem levar em consideração a obra efetiva de tantos que trabalharam em
posições secundárias e sem ordenação eclesiástica de qualquer espécie, mas que receberam,
sem dar margem à dúvida, a ordenação invisível do Espírito Santo. Porque levar a cabo a obra
de Cristo não depende de ordenação humana, e sim de uma paixão profunda por Cristo e seu
Evangelho.
João Wesley já dizia em sua época:
"Dai-me cem pregadores que nada temam senão o pecado, e nada
desejam senão a Deus, e não me importaria se fossem clérigos ou leigos; com eles
somente sacudiria as portas do inferno e estabeleceria o Reino de Deus na terra."
Por certo tinha razão em expressar-se assim, visto como em mais de uma
ocasião foi levado a tomar decisões que não teria tomado, se atrás dele não houvesse
estado a importunação e, às vezes, quase a imposição dos elementos leigos. Como
chegou a organizar-se a primeira Sociedade Metodista? Por que um dia ocorreu a João Wesley
organizá-la a fim de ter com ela um grupo ao qual expor suas convicções religiosas? Ele
mesmo nos conta, na introdução das "Regras Gerais das Sociedades", como surgiu a
primeira delas. Com efeito, diz:
"Na última parte do ano de 1739, oito ou dez pessoas vieram a mim, em
Londres, e desejaram que eu empregasse algum tempo com elas em oração e que
as aconselhasse sobre como fugir da 'ira vindoura'. Esta foi a origem da Sociedade
Unida."
E acrescenta que isto aconteceu imediatamente após a consagração do local de
cultos chamado a "Fundição". E é importante lembrar também que a Fundição fora aberta a
11 de novembro de 1739 para a Adoração pública por instâncias (pedidos insistentes)
de pessoas alheias a ele. O número dos assistentes (participantes) cresceu rapidamente,
107
e se na primeira noite houve doze, na seguinte houve quarenta e logo eram cerca de cem.
Desta maneira João Wesley foi compelido a organizar a primeira Sociedade Metodista pelo
expresso desejo de alguns leigos que desejaram estar sob seu ministério, visto como ele não
tinha púlpito de onde pregar.
Antes disso, já se havia iniciado a construção da primeira capela metodista em Bristol
(a pedra angular foi abençoada a 12 de maio de 1739), e ali também, por essa época, haviam
sido formados as primeiras “bands”, pequenos grupos ou células de quatro ou seis pessoas que
se reuniam informalmente para exame introspectivo e oração.
Quando estava concluída a construção da primeira capela erguida na cidade de
Bristol, ficou pendente uma grande dúvida que os membros da sociedade ali trataram de saldar.
Encarando como resolver esse problema, surgiram acidentalmente as chamadas "classes"
metodistas. Isso ocorreu a 15 de fevereiro de 1742. Wesley descreve assim o início:
"Estava falando com vários membros da Sociedade de Bristol acerca dos
meios para pagar a dívida ali, quando alguém se pôs de pé e disse: 'que cada
membro dê um xelim por semana, até que tudo esteja pago'. Outro respondeu:
'Mas muitos deles são pobres e não podem dar tanto'. Então o primeiro
contestou: 'Ponham-se onze dos mais pobres comigo; se eles não podem dar
nada, eu darei por eles tanto quanto por mim mesmo, e cada um de vocês visitará
semanalmente outros onze de seus vizinhos, receberá o que eles lhe dêem e porá de
sua parte quanto falte'. Assim se fez. Passado pouco tempo, alguns destes me
informaram que haviam achado tal ou qual pessoa que não vivia como deveria. Isso
me chamou imediatamente a atenção e disse: 'Esta é a coisa, exatamente a que
desejei por muito tempo'. Reuni todos os guias de classe (assim nos
acostumamos a chamar-lhes) e desejei que cada um deles fizesse uma
investigação particular do comportamento individual daqueles a quem veriam
semanalmente. Assim o fizeram. Muitos que agiam desordenadamente foram
descobertos. Desse modo, alguns foram desviados de seus maus caminhos.
Outros foram esclarecidos. Houve os que foram eliminados e ainda outros que
se humilharam e se regozijaram perante Deus com reverência." (2)
108
Como vemos, também esta foi uma iniciativa que João Wesley tomou por sugestão e
ajuda dos leigos.
Encontrava-se Wesley noutra ocasião igualmente em Bristol visitando a
sociedade ali, quando alguém que viera de Londres lhe disse que um de seus leigos, que ele
deixara ali para exortar em sua ausência, se exorbitava pregando sobre texto das Escrituras.
Um exortador só podia aconselhar os demais membros da sociedade, ler algum trecho
devocional e orar com eles, mas não pregar tomando como base um texto. Isso era prerrogativa
tão só dos ministros ordenados.
João Wesley resolveu voltar imediatamente a Londres para pôr fim a esse
"abuso". Sua mãe aconselhou-o a que, antes de fazê-lo, ouvisse o que aquele que exorbitara
em suas funções de exortador. João Wesley aceitou a sugestão materna e foi ouvir o pregador
improvisado. Depois de ouvi-lo, não pôde senão convencer-se de que o homem falava
inspirado pelo Espírito Divino. Opor-se a ele teria sido temeridade. Desta maneira, pela porta do
fundo, teve entrada no sistema metodista o pregador leigo. Isto foi nos fins de 1739, na
"Fundição". Em 1744 já eram quarenta os pregadores locais que João Wesley usava. Enquanto
ele e seu irmão iam viajando de um lado a outro do Reino Unido, esses pregadores locais
cuidavam das sociedades ou pregavam nos lugares onde residiam.
Embora, evidentemente, não possamos passar em revista todos os que, sem ordens
eclesiásticas, mereceriam ser lembrados, teremos que, pelo menos, mencionar alguns para que
tenhamos idéia da natureza de seu caráter e obra.
109
Tomás Maxfield Nas páginas do metodismo sempre será lembrado com carinho o nome de
Tomás Maxfield, o primeiro que teve a ousadia de ir além das ordens dadas por João
Wesley. Era um humilde pedreiro. Converteu-se espetacularmente a 21 de maio de 1739. No
princípio do movimento metodista, mui freqüentemente a pregação inflamada dos Wesley e de
Whitefield provocava uma comoção tal nos ouvintes, que muitos desmaiavam ou eram
presos de convulsões e soltavam, ao mesmo tempo, exclamações de desespero ou gritos de
angústia, ou clamores pelo perdão divino. Essas estranhas manifestações eram criticadas
acerbamente pelos de fora, pois as interpretavam como exagero mórbido ou gestos teatrais
para impressionar.
Numa reunião como essa, Tomás Maxfield se converteu e também foi tomado
de manifestação violenta. João Wesley comenta em seu Diário essas manifestações e por
sua vez descreve a conversão de Maxfield nestes termos:
"Um, outro e mais outro foram caindo ao solo, agitando-se
tremendamente na presença do poder de Deus; outros gritavam, com voz forte e
irada: 'Que devemos fazer para ser salvos?' E em menos de uma hora sete pessoas
completamente desconhecidas para mim até então, regozijavam-se e cantavam com
toda a força e davam graças a Deus por sua salvação. Isto ocorreu à tarde, ao ar
livre. À noite narrei o que Deus havia feito como prova dessa importante verdade, que
Ele não deseja que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento.
Outra pessoa caiu ao solo junto a um indivíduo que era muito contrário a essas
manifestações. Enquanto este ficou pasmado com a cena, um jovem que
também se achava perto dele foi acometido da mesma maneira. Um jovem que
estava parado atrás dele cravou os olhos nele e caiu como se estivesse morto, mas
imediatamente começou a rugir e a golpear-se contra o solo de tal maneira que dois
homens dificilmente podiam sujeitá-lo. Seu nome era Tomás Maxfield. . . Nunca vi
ninguém tão castigado pelo maligno." (3)
Foi tal a transformação que se operou nesse homem, que pouco depois
Wesley o nomeou exortador da sociedade que se reunia na "Fundição". Já fizemos referência
110
anterior ao fato de que Wesley, numa viagem que fizera a Bristol, deixou um exortador
para aquela sociedade. Esse exortador, como o leitor já deve ter concluído, era Tomás Maxfield.
Mencionamos também a interferência que sua mãe teve no assunto. O conselho que ela lhe deu
nessa oportunidade foi:
"João, tu conheces os meus sentimentos. Não suspeitarás que eu favoreça
ligeiramente qualquer coisa desta espécie. Mas toma cuidado no que fazes com
respeito a este jovem, porque em verdade ele foi igualmente chamado a
pregar como tu o foste. Examina quais foram os frutos de sua pregação, e
também, ouve-o tu mesmo." (4)
Assim o fez, e depois de ouvi-lo, exclamou: "É o Senhor, é o Senhor! Faça Ele como
lhe agrade". A Condessa Huntingdon também o ouviu pregar e ficou tão impressionada com
a palavra candente do jovem, que escreveu a Wesley:
"Ele é
uma das maiores manifestações que conheço do favor peculiar de
Deus. Levantou de entre as pedras uma pedra para que assentasse entre os
príncipes de seu povo. Ele me é um assombro; quão poderosamente se manifesta o
poder de Deus na fraqueza!" (5)
Dali em diante Maxfield cresceria na estima de João Wesley, que o ajudou em todo
sentido, relacionando-o com uma posição social superior à que convivera
anteriormente, proporcionando-lhe este fato um casamento vantajoso. Mais tarde Wesley
conseguiu para seu colaborador a ordenação das mãos do bispo de Londonderry, na Irlanda, um
dos poucos eclesiásticos dessa hierarquia que favoreciam (apoiavam Wesley) sua obra.
O bispo disse ao ordená-lo: "Senhor, ordeno-o (Maxfield) para que ajude a este
bom homem (Wesley), a fim de que não se mate trabalhando."(6)
Maxfield trabalhou com Wesley até pouco depois de 1760, quando teve uma
divergência com ele, irritado especialmente pelo que julgava ser excesso de autoridade. Wesley
111
o repreendera por haver-se associado a um grupo de fanáticos, encabeçados por um tal Bell,
que estava sujeito a fantasias e alucinações e dizia possuir o poder milagroso de curar e
prever o futuro. Por causa dessa desavença, uma considerável quantidade de membros
da sociedade metodista de Londres seguiu a Bell e a Maxfield, apesar de as predições do
primeiro, de que o mundo ia acabar numa data próxima, não se cumprirem. Diziam,
porém, que as orações que foram elevadas, invocando a misericórdia de Deus, poderiam
ter evitado o desastre.
Com essas pessoas Maxfield organizou uma capela independente no bairro de
Moofields, que fora cenário de muitas pregações ao ar livre de parte dos Wesley, e onde,
provavelmente, o próprio Maxfield havia se convertido. Continuou trabalhando com esse
grupo por espaço de uns vinte anos.
Também abraçou o ponto de vista calvinista e chegou a publicar um escrito seu
contra Wesley. Não obstante, Wesley nunca deixou de acompanhar com interesse o antigo
discípulo e de colaborar com ele.
Quando já ancião e enfermo não podia atender a seus paroquianos, Wesley foi
pregar por ele na sua capela e também esteve a seu lado rogando a Deus que o acompanhasse
em seus últimos dias de vida. Apesar de tudo, ele havia sido o instrumento que o compelira a
adotar a pregação leiga nos primeiros tempos do metodismo!
112
João Nelson
Entre os muitos que trabalharam com Wesley desde o princípio, talvez nenhum se
distinguisse tanto como o que se chamou João Nelson. Exercia, também, a profissão de
pedreiro. Converteu-se durante a primeira pregação que João Wesley fez ao ar livre em
Moorfields. Veio para a região de Yorkshire trabalhar em seu ofício em Londres. Pelo visto, seu
trabalho lhe provia sustento para viver decentemente e, segundo ele, "em paz e fartura". Apesar
de não lhe faltar o necessário para a vida, acabrunhava-o um grande descontentamento, pois
sentia interiormente um tremendo vazio, de tal maneira que chegou a dizer que se tivesse
de viver outros trinta anos, como os que já havia vivido, quase seria preferível enforcar-se.
Andava mui preocupado com seu futuro eterno e se desesperava ao pensar que teria
de defrontar-se com Deus no juízo final. Buscou, sem resultado, entre diversos grupos
religiosos, alívio para suas inquietudes espirituais, e quando já desesperava de encontrar o
que sua alma anelava, foi ouvir Whitefield, mas também este não o convenceu.
Sobre este evangelista disse:
"Eu o apreciava de tal maneira que se alguém se atrevesse a
molestá-lo, eu estaria pronto a pelejar por ele. Eu não o entendia, contudo
obtive alguma esperança de misericórdia divina, de tal modo que recebi
estímulo para continuar orando e ocupar minhas horas livres em ler as Escrituras." (7)
Tal era sua preocupação pela salvação eterna, que amiúde se despertava
durante a noite tomado de horríveis pesadelos que o faziam tremer e suar. Finalmente se viu
presente nessa primeira prédica de Wesley em Moorfields, de cuja experiência dá este
testemunho:
"Oh! essa foi manhã bendita para minha alma! Tão logo ele se pôs de pé
na tarimba, atirou os cabelos para trás num movimento de cabeça e dirigiu o rosto
para o lugar onde eu estava de pé; pensei que ele tinha os olhos fixos em mim. Sua
aparência provocou tão terrível temor sobre mim, que antes de ouvi-lo falar, fez
oscilar meu coração como se fosse o pêndulo de um relógio, e quando em
113
realidade falou, pensei que toda sua prédica era dirigida a mim." (8)
Em realidade, essa era a forma peculiar de João Wesley pregar — dava a impressão
de que suas palavras eram dirigidas a cada ouvinte em particular. Nessa ocasião as palavras
que mais feriram a sensibilidade de Nelson foram:
"Quem és tu que agora vês e sentes tua impiedade interna e
externa? Tu és o homem! Quero-te para meu Senhor, desafio-te a que te
prepares para ser filho de Deus pela fé. O Senhor tem necessidade de ti. Tu que
sentes que és tão só digno do inferno, és digno de promover sua glória — a glória de
sua graça gratuita, a que justifica o ímpio e aquele a quem tudo é indiferente. Oh!
vem ligeiro! Crê no Senhor Jesus e tu, tu mesmo, serás reconciliado com Deus." (9)
Ao terminar o sermão, ainda sob impressão deste convite solene, disse Nelson
dentro de si mesmo:
"Este homem pôde revelar os segredos de meu coração, mas não me
deixou ali (não ficou só nisso) e mostrou-me o remédio, a saber, o sangue de Cristo." (10)
Imediatamente ao chegar à casa onde morava, começou a contar as
experiências e a viver uma vida religiosa intensa. Os senhorios se alarmaram com essa atitude
porque lhes parecia ser a de um fanático, e lamentavam que houvesse assistido a essa reunião
do grande pregador. Pensaram até em ver-se livres dele, temendo que cometesse algum
desmando, pois julgavam que se transtornara com as idéias recebidas em vista do muito
tempo que passava em orações e expressões jaculatórias (orações curtas e fervorosas).
Diante disso, Nelson resolveu deixar a casa, mas os senhorios, por sua vez, se
alarmaram, dizendo: "Que faremos se João está certo?" Então lhe disseram: "Se Deus fez por ti
mais do que por nós, mostra-nos o caminho que nos possa levar à misericórdia". (11) Isto,
naturalmente, agradou sobremodo a Nelson que os conduziu às reuniões de João
Wesley. Em seu entusiasmo por contagiar a outros com a mesma experiência do
Evangelho que ele tivera, chegou a pagar um companheiro de profissão as horas que ele
114
perdesse de seu trabalho, contanto que fosse ouvir João Wesley. Aquele, depois de ter assistido
à reunião e haver sido influenciado por ela, disse que esse fora o melhor presente que ele e sua
esposa já haviam recebido. Nelson, ademais, jejuava uma vez por semana para economizar
dinheiro e dá-lo para o serviço aos pobres.
Pouco tempo depois de sua conversão voltou a Bristol, seu povoado de origem, onde
tinha a família, com o propósito principal de recomendar-lhe a vida religiosa que ele agora
levava, e para que essa influência se estendesse à vizinhança e entre antigas amizades.
No povoado continuou trabalhando em seu ofício, e depois das horas de trabalho soía
(costumava) sentar-se à porta de sua casa para ler e explicar as Escrituras a todos
quantos tivessem interesse em ouvi-lo. Logo ele formou uma congregação, e sem querer,
converteu-se em pregador e assim foi instrumento para que o movimento metodista se
implantasse naquela região.
Tempos depois, quando Wesley chegou àquele lugar, encontrou ali esperando-o
uma sociedade já formada e um pregador. Teve de pregar-lhes a Palavra do alto de um morro.
Fez de Nelson um de seus ajudantes e incorporou o grupo que formara às "Sociedades Unidas"
(1742).
De Bristol, o metodismo se expandiu aos povoados de toda a região de
Yorkshire. Entre 1743 e 1744 Wesley visitou de novo Bristol, onde ainda se encontrava Nelson
cuidando da Sociedade, e com ele fez algumas visitas ao centro do mesmo condado onde
fundou sociedades sobre o trabalho previamente feito por seu acompanhante (Nelson). Em
1744 Nelson acompanhou Wesley na região de Cornwall, num dos extremos a sudoeste da
Inglaterra. Em St. Yves encontraram uma sociedade com cento e vinte membros. Tomaram
esse lugar como uma espécie de quartel general, de onde iriam evangelizar a ponta dessa
península em que se encontrava o condado de Cornwall. Nelson trabalhava durante o dia
em seu ofício e de noite ajudava tanto a Wesley como a outro ajudante leigo deste, de nome
Sheperd, na pregação pelos povoados da península. Na maioria desses lugares o metodismo
ainda não se estabelecera, e muitas vezes os pregadores passavam por necessidades. Nelson,
em suas memórias, dá-nos um exemplo das penúrias e provas que tinham de enfrentar:
"Durante todo esse tempo o senhor Wesley e eu nos deitávamos no chão:
115
ele tinha meu sobretudo por travesseiro e eu um livro de notas sobre o Novo
Testamento. Depois de estar ali por espaço de três semanas, uma noite, às três
horas da madrugada o senhor Wesley virou-se e vendo que eu estava acordado, me
deu uma palmadinha dizendo: 'Irmão Nelson, tenhamos bom ânimo; ainda tenho
um lado bom, já que do outro estou desolado e me sinto em carne viva'.
Comumente pregávamos ao povo mais humilde, indo de um casebre a outro, e
mui poucas vezes éramos convidados a comer ou beber. Um dia estivemos num
lugar chamado Santo Hilário de Baixo, onde o senhor Wesley pregou sobre a
visão dos ossos secos de Ezequiel, e enquanto pregava os ouvintes se
comoveram. Quando voltávamos, o senhor Wesley deteve seu cavalo para colher
algumas amoras e me disse: 'Irmão Nelson, deveríamos estar agradecidos que
aqui haja tanta amora, porque esta é a melhor região em que tenho estado para ter
um bom estômago, mas a pior que já vi para enchê-lo. Será que a gente pensa que
podemos viver apenas da pregação?' Respondi-lhe: 'Não sei o que eles pensam,
mas alguém me pediu que tomasse algo quando vim de São Justo, e em verdade
comi a valer pão de centeio e mel'. Ele disse: 'Tu estás bem, então; eu pensei em
pedir uma fatia de pão à mulher que me hospedou quando estive com a gente
do local chamado Morvah, mas só me lembrei quando já eslava a alguma distância
da casa'." (12)
Isto nos dá outra mostra do quilate desses homens diante das privações a que se
submetiam e da fidelidade que mostravam na tarefa da evangelização.
Noutra ocasião, ao encontrar-se num lugar chamado Pudsey, João Nelson
buscou alojamento, mas não conseguiu porque se soube que os soldados o estavam
procurando, e teve de ir para Leeds, onde, em companhia de Wesley, fundara uma sociedade.
Ali esteve trabalhando como pedreiro de dia e pregando de noite, até regressar novamente a
sua casa em Bristol, onde o esperava uma ingrata surpresa. Foi-lhe dito que o estavam
buscando a fim de obrigá-lo a servir ao exército, pois os taberneiros e o pároco (o pastor da
Igreja Anglicana) o haviam denunciado: os primeiros porque ele alijava os fregueses da
taberna, e o outro porque lhe fazia demasiada concorrência na pregação. Aconselhado
a que fugisse para não ser alcançado, respondeu: "Nada posso temer porque Deus está a meu
lado e sua palavra me fortaleceu a alma neste dia." (13)
116
No dia seguinte, quando estava pregando num lugar chamado Adwalton,
prenderam-no e embora um concidadão seu oferecesse dinheiro para que o deixassem em
liberdade, não o soltaram e o levaram à cidade de Halifax perante um júri do qual formava parte
o pároco de Bristol. Os vizinhos de Nelson quiseram depor a seu favor, mas o júri não quis
ouvi-los e somente deu ouvidos ao pároco, que afirmou ser Nelson um vagabundo que
não tinha qualquer meio de vida visível. A essa mentira Nelson contestou: "Posso trabalhar com
estas mãos em meu ofício bem como qualquer outro na Inglaterra, e o senhor o sabe". (14)
Contudo, foi enviado a outro lugar chamado Bradford. Ao deixar Halifax, muitos do povo
humilde choravam e oravam por ele enquanto passava pelas ruas. Disse-lhes ele: "Não
temais; Deus tem seus caminhos até no torvelinho e Ele defenderá minha causa. Apenas
orai por mim para que minha fé não vacile". (15)
Em Bradford, antes de ser incorporado ao exército, foi posto por uma noite numa
imunda prisão. Recorda ele: "Cheirava mal como se fosse um chiqueiro, mas minha alma
estava tão cheia do amor de Deus que era como um paraíso para mim". (16) Não tinha
onde sentar-se e a cama era um montão de palha. Até seus adversários intercederam
por ele e suplicaram às autoridades que lhes deixassem vê-lo para dar-lhe de comer em suas
casas. Como as autoridades não acederam ao pedido, levaram-lhe comida, vela e água e
fizeram chegar-lhe essas coisas através de um buraco que havia na porta de sua cela. A gente
permanecia do lado de fora e o acompanhava quase toda a noite entoando cânticos. Ele dividiu
o que lhe haviam trazido com um pobre prisioneiro que compartilhava essa pocilga.
Sua esposa veio na manhã seguinte animá-lo em sua desgraça. Ela tinha dois filhos
a quem sustentar e estava esperando outro em breve. Não obstante, dirigiu-lhe a
palavra através do postigo (pequena janela), nestes termos:
"Não temas, a causa é de Deus, é por ela que estás aqui e ele te
defenderá. Portanto não te preocupes por mim e nossos filhos, porque aquele que
alimenta as aves cuidará de nós. Ele te dará força naquele dia. E depois de
sofrermos um pouco, ele aperfeiçoará o que estiver incompleto em nossas almas e
nos levará para onde os maus cessarão de importunar-nos e os cansados
acharão repouso. " (17)
117
A isso ele respondeu:
"Não, não posso temer; não, não posso temer ao homem ou ao diabo,
enquanto sinta em minha alma o amor de Deus, como agora o sinto." (18)
Tempos depois recuperou a liberdade e continuou, então, com suas
peregrinações evangelizantes, pregando ainda com maior poder, enfrentando toda
oposição que lhe faziam; estabeleceu-se novamente em Bristol, de que fez seu centro de
atividades, visto ser ali muito estimado pelo povo. Seu ministério durou trinta e três anos.
Morreu repentinamente em uma de suas excursões evangelizantes. Seu corpo foi
conduzido em procissão de Leeds até Bristol. Conta-se que o cortejo fúnebre que
ocupava cerca de meia milha na estrada, entoava hinos de Carlos Wesley. Nunca se viu um
homem que fosse tão estimado em seu próprio povo como ele.
Infelizmente não podemos estender-nos mais; entretanto esperamos que os incidentes
narrados deixem na mente e no coração do leitor uma impressão profunda, quanto à qualidade de
homens que o metodismo primitivo soube cunhar para a glória de Deus e extensão de seu reino.
Certamente Nelson merece o elogio que nos deixou um de seus biógrafos:
"De tal fibra era João Nelson, homem das filas mais humildes da
Inglaterra, mas cujo coração valente e integridade imutável o habilitaram a tomar
lugar entre os mártires mais nobres, se para isso ele houvesse sido chamado.
Sua fervente piedade, sua constante abnegação e energia saxônia fizeram dele um
dos apóstolos do metodismo primitivo. Sua magnanimidade natural, senso comum,
clara apreensão das Escrituras, estilo fácil e maneiras simples, fizeram-no um dos
pregadores mais favoritos e idôneos entre um grupo a que poucos clérigos
instruídos houvessem podido alcançar. " (19)
Ao mesmo tempo admira-nos, por certo, o espírito heróico de sua esposa ante a
prisão, quando instava com ele a ser fiel à vocação cristã. Sem embargo ela é apenas uma
demonstração do espírito heróico da mulher metodista dessa época longínqua. Diz-se que
em geral as mulheres aceitavam com alvoroço a mensagem pregada pelos mensageiros
metodistas. Encontramo-las como guias de classes, guias de grupos de oração, visitadoras
118
sociais, professoras, e, às vezes, até como pregadoras. As boas obras por elas realizadas são
inumeráveis.
Wesley resistiu, como havia resistido a outras inovações, a dar à mulher lugar nas lides da
pregação. Mas seu bom senso, em mais de uma ocasião, levou-o a ceder, dizendo: "Se Deus usa
mulheres na conversão de pecadores, quem sou eu para interpor-me entre elas e ele?"
119
Maria Bosanquet
Já fizemos referência a Maria Bosanquet, esposa de La Flechère. Ela foi talvez, o tipo
mais característico das mulheres que ousaram pregar, apesar da resistência de Wesley. Foi
uma das poucas que obtiveram permissão de pregar, embora não o fizesse do púlpito. Como
nos lembraremos, ela havia pertencido a uma família de mui boa posição social e rica. O
que lhe coube por herança gastou tudo na manutenção de um orfanato e de um posto de
caridade. Instalou o orfanato em uma casa de sua propriedade em Laytonstone, em 1763. Ao
mesmo tempo converteu esse lugar num ponto de pregação e no dia 15 de dezembro
formou uma sociedade com vinte e cinco membros. E assim a casa em Laytonstone não
serviu apenas para órfãos pobres, mas também se converteu em santuário.
Outra mulher, Sara Ryan, secundava-a (auxiliava-a) em suas tarefas. João Wesley
visitou esse local em 1765 e escreveu: "Viajei até Laytonstone e ali encontrei uma verdadeira
família cristã", e em 1767 escrevia novamente:
"Oh! que casa de Deus está aqui! Não somente pela decência e
ordem, mas ainda pela vida e poder da religião. Lamento que se encontrem mui
poucas casas como esta nos domínios do Rei. " (20)
Mais tarde, depois que morreu Sara Ryan, a instituição foi transferida para uma
estância num local chamado Cross-Hill, em Yorkshire. Ali também se instalou um centro com
muitas atividades religiosas e a gente vinha adorar de muitos lugares, de tal maneira que às
vezes faltava espaço. Não só ali, mas também em outros lugares, matinha serviços religiosos
semelhantes. Era exímia oradora, capaz de manter acesa a atenção em muitas assembléias,
especialmente entre gente rude. Por algum tempo fez da cidade de Leeds o centro do distrito
que ela atendia. Calcula-se que durante um ano viajou mais de 1.500 quilômetros, e dirigiu 120
serviços religiosos públicos, atendeu a 600 classes e reuniões particulares, escrevendo
também 116 cartas.
Enquanto seu esposo vivia, nas capelas que se foram originando ao redor de
Madeley, havia um assento elevado de um ou dois degraus sobre o nível do piso, de onde ela
120
costumava dar instruções religiosas ao povo ansioso por ouvir-lhe a palavra. Suas dissertações
eram sensatas, claras, verdadeiramente eloqüentes e enriquecidas com os ensinos do
Evangelho. Sobre a sua elocução Wesley dá o seguinte testemunho: "É fluente, fácil e
natural, mesmo quando o sentido é profundo e vigoroso". E acrescenta: "Suas palavras eram
como fogo, que ao mesmo tempo comunicavam luz e calor aos corações dos que a ouviam". (21)
Após o falecimento do esposo continuou vivendo em Madeley. Por 30 anos ali esteve,
até sua morte, e seu lar continuou como santuário para os pobres, as mulheres devotas e os
evangelistas itinerantes. Não recuou em seu ministério apesar de sua saúde abalada, e
continuou pregando nas vilas vizinhas como também na sua própria casa. Conservou espírito
jubilosamente religioso até ao fim da vida. No seu 28º aniversário de casamento, escrevia em
seu Diário:
"Há vinte e oito anos, nesta mesma hora, dei minha mão e coração a
João Guilherme de La Flechère. Período proveitoso e abençoado de minha
vida! Sinto no presente um afeto mais terno para com ele do que sentia então, e
agora, pela fé, uno minha mão novamente à sua." (22)
Acreditava que seu espírito continuava inalteravelmente em comunhão com o do
esposo e sentia-se disposta a partir a qualquer momento para reunir-se com ele. Faleceu
a 9 de dezembro de 1815, com a idade de 76 anos.
Sua morte foi tão lamentada como o foi a do esposo, por toda a comunidade de
Madeley e povoados circunvizinhos. Sempre foi mui sóbria em suas necessidades
pessoais e mui generosa para com os outros. Diz um seu biógrafo que seus gastos
pessoais durante todo um ano nunca excederam cinco libras esterlinas. No entanto, em sua
caderneta de contas do último ano de vida figuram nada menos de cento e trinta e oito libras
para os pobres.
Se nos empenhássemos em escrever algumas outras biografias de mulheres
metodistas, não terminaríamos tão logo a tarefa. Basta que recordemos, todavia, nomes de
outras como a senhorita Mallet, depois como senhora Boyce, que também recebera na
Conferência de 1787 autoridade como pregadora "por todo o tempo em que ela pregar a
121
doutrina metodista e conformar-se com sua disciplina"; de Ana Kitler, que viajava pelo
distrito de Bradford e se distinguiu pelo poder que tinha na oração; de Esther A. Bogers (esposa
de Jaime Rogers, um dos pregadores itinerantes), que, apesar de morrer aos 38 anos de idade,
deixou cartas e um diário que, publicados, alentaram por muito tempo os fiéis metodistas;
de Hannah Ball, que em 1769, antes que Roberto Raikes começasse a sua, estabeleceu uma
escola dominical em Wycombe, que dirigiu até sua morte em 1792 (esta escola ainda
funciona); de Sofia Coole (que mais tarde se casou com Samuel Bradburn) lembrada
especialmente porque inspirou a Roberto Raikes a iniciativa de começar formalmente a
obra das escolas dominicais foi a que marchou com Raikes pelas ruas de Gloucester com o
primeiro grupo de meninos estropiados e com as roupas em frangalhos para uma igreja, a fim de
receberem instrução e noções de religião (1780).
Todas essas mulheres e muitas outras estiveram na sucessão apostólica de Susana
Wesley e falam eloqüentemente do poder do Evangelho, em que não há acepção de pessoas,
senão que salva, exalta e usa todo aquele que sentindo o chamado do Senhor se entrega
de corpo e alma.
NOTAS:
(1)
(2) “Works”, Vol V, pág. 179
(3) Diário, 21 de maio de 1739.
(4) “A new History of Methodism”, Vol I, pág. 293.
(5) Stevens, A., Op. Cit., Vol I, págs 174-175.
(6) Stevens, A., Op. Cit., Vol I, págs 407-408
(7) McTyeire, H. N., Op. Cit., pág. 163.
(8) McTyeire, H. N., Op. Cit., pág. 163
(9) Idem
(10) My Cyeire, H. N., Op. Cit., pág. 163
(11) Ibid, pág. 164
(12) Do Diário de Nelson, citado por Stevens, A. Op. Cit., Vol I, págs 193-194.
(13) Citado por Stevens, A. Op. Cit., Vol I, pág 207.
(14) Citado por Stevens, A. Op. Cit., Vol I, pág 207.
(15) Idem, pág. 208.
(16) Idem.
(17) Stevens, A. Op. Cit., Vol I, pág 208.
122
(18) Idem.
(19) Stevens, A. Op. Cit., Vol I, págs 179-180.
(20) Stevens, A. Op. Cit., Vol II, pág 267.
(21) Stevens, A. Op. Cit., Vol II, pág 270.
(22) Stevens, A. Op. Cit., Vol III, pág 226.
123
CAPÍTULO UNDECIMO
O BANDO DOS
“IRREGULARES”
Parte 2
"Filipe: tens de pregar-nos ou todos iremos para o inferno
e Deus exigirá nosso sangue de tuas mãos."
Bárbara Heck
Lá pelos fins do século XVII, o rei Luís XIV de França devastou, por intermédio do
Marechal Turenne, a região alemã do Palatinado sobre o Reno. A população da região era
quase toda formada de protestantes que se viram em necessidade de abandonar suas
terras e refugiar-se noutros países. A rainha Ana, da Inglaterra, enviou vários navios para levar
uns tantos deles de Roterdã, na Holanda, para a Inglaterra. Mais de seis mil chegaram a
Londres, abatidos e reduzidos a uma pobreza lamentável. Muitos deles foram viver na
Irlanda, até que se lhes abrisse oportunidade de estabelecer-se noutra parte. Em 1710 o
governo britânico enviou quase três mil deles à América, onde se estabeleceram em
regiões que hoje em dia compreendem os estados de Nova Iorque, Pensilvânia e Carolina do
Norte. Muitos, porém, permaneceram na Irlanda e se foram mudando dali,
paulatinamente, no decorrer dos anos.
124
O primeiro metodista que da Inglaterra cruzou o canal para ir à Irlanda foi um tal de
Tomás Williams, que estabeleceu uma sociedade em Dublin. João Wesley visitou, nesse
mesmo ano, essa obra e daí para a frente fez visitas freqüentes àquela Ilha. Em poucos anos o
metodismo estava disseminado em muitos pontos.
Em 1752 um jovem carpinteiro foi alcançado pelo avivamento metodista. Seu nome
era Filipe Embury. Em 1758 ele recebeu carta de pregador local. Em 1760 formou parte de um
grupo de emigrantes que de Limerik, Irlanda, saíram para a América. Entre eles estava lambem
sua prima Bárbara Heck que, como ele, era membro de uma das sociedades metodistas. Os
dois primos e suas famílias se estabeleceram em Nova Iorque. Foram descendentes
daqueles protestantes que tiveram de abandonar o Palatinado no século anterior, muitos dos
quais, como esses dois primos, foram também alcançados pelo avivamento wesleyano.
Mais ou menos pela mesma época outro pregador local metodista se trasladou da
Irlanda para a América, e se estabeleceu na região de Maryland. Era Robert
Strawbridge. Alguns historiadores pensam que ele não podia haver-se mudado para a América
antes de 1764 ou 65, chegando alguns a dar a tardia data de 1766.
Embury e Strawbridge são tidos como os dois primeiros caudilhos (chefes)
do metodismo na América do Norte. Passaremos, então a considerar estes dois homens,
para depois mencionar uns poucos mais da mesma estirpe e que juntos serviram para
ilustrar também o poder que o avivamento metodista teve no coração e na vida dos que
militaram nas fileiras leigas.
125
Os primos Filipe Embury e Bárbara Heck
Quando Filipe Embury e sua prima Bárbara Heck chegaram a Nova York,
ficaram desvinculados da influência metodista, pois ali ainda não havia nenhuma sociedade
formada, não obstante as viagens e as pregações evangelizadoras de Jorge Whitefield. A
princípio uniram-se a outro grupo evangélico, mas não lhes agradou o ambiente e, por fim,
perderam quase todo o fervor religioso. Narra a história que numa tarde de domingo de 1766
se encontrava um grupo de homens jogando cartas, passatempo predileto de muita gente
depois das horas de trabalho, quando entrou Bárbara Heck e irritou-se diante da cena a tal
ponto que lhes tomou as cartas das mãos e as lançou ao fogo. Exortou os presentes a mudar de
vida e instou com alguns a lembrar-se de que eles também eram metodistas antes de vir para a
América. Dali foi à casa de seu primo Embury, informando-o do acontecido e dizendo-lhe com
grande veemência: "Filipe: tens de pregar-nos ou todos iremos para o inferno e Deus exigirá
nosso sangue de tuas mãos."
Filipe, um tanto surpreendido por essa visita inesperada da prima e pelo repto
(provocação, desafio), respondeu como que desculpando-se: "Como posso pregar, se não
tenho local nem congregação?" A isto Bárbara respondeu: "Prega em tua própria casa e aos de
tuas relações". Antes de deixá-lo conseguiu do primo a promessa de que faria uma prova, e
poucos dias depois Filipe dirigia a primeira reunião em sua própria casa. Nessa ocasião
somente cinco pessoas ouviram o sermão, e esse foi o primeiro pregado por um
metodista na América, exceto se Strawbridge houvesse pregado anteriormente no sul.
Assistiram àquele serviço religioso, Bárbara Heck e seu esposo (Paulo), a esposa de
Embury, mais João Lawrence e Betty, esta última uma menina serva de origem africana.
A partir desse momento Embury exerceu o ministério leigo. Mas desde logo sua casa se
tornou pequena para conter os que se interessavam por assistir e então alugaram um
"Cenáculo". Este, tão pouco, pode conter os concorrentes (os participantes) por muito tempo, e
já em 1767 foi preciso alugar outro local, conhecido pelo nome de "Rigging Loft", que media vinte
metros de comprimento por seis de largura. Ali Embury pregava aos domingos, às seis da
manhã, e mais tarde também às quintas-feiras à noite.
126
Em 1768, na St. John Street, foi alugada uma propriedade e que foi comprada em
1770. Ali foi erigida a primeira capela metodista do Novo Mundo. Fez-se subscrição e
duzentas e cinqüenta pessoas se comprometeram a ajudar. Entre os que assinaram o
compromisso encontrava-se um tal Capitão Webb (sobre ele falaremos mais adiante) que deu a
maior quantia, algo assim como cento e cinqüenta dólares, importância considerável para
aquela época. Construiu-se uma capela de pedra que media vinte metros por quatorze.
Embury, fiel a seu ofício de carpinteiro, fez o púlpito. Bárbara Heck facilitou os planos
para a construção da capela de uma maneira original. Depois que o grupo resolveu construir a
capela, Bárbara, em sonho, "teve revelação" de como se devia edificar, e levando em conta que
ela despertou o zelo religioso do grupo e era muito estimada, aceitaram suas indicações.
Entretanto, havia uma dificuldade: também na América, colônia da Inglaterra, os
metodistas eram tidos como dissidentes da Igreja Anglicana, a Igreja Oficial do Reino,
e segundo os regulamentos em vigor, não podiam edificar capelas ou 'templos. Para
resolver a dificuldade e não se verem privados de construir, colocaram uma chaminé na capela,
a fim de dar-lhe aparência de um edifício comum.
O sermão inaugural dedicatório da nova capela para o culto divino foi
proferido a 30 de novembro de 1768 por Embury. Tomou como texto: "Semeai para vós
outros em justiça, ceifai segundo a misericórdia; arai o campo virgem; porque é tempo de
buscar ao Senhor, até que ele venha e chova a justiça sobre vós." (1)
Deu-se o nome de "Wesley" à capela. O carpinteiro-pastor esteve à frente da
Sociedade Metodista que se formava em Nova Iorque até 1769, quando vieram da
Inglaterra os primeiros missionários enviados por João Wesley e assumiram a
responsabilidade do movimento metodista na América.
Embury e todos os membros do grupo alemão-irlandês dessa primeira Sociedade
metodista foram viver na localidade de Camden, entre 1767-1770, mais tarde parte de Salém,
condado de Washington, hoje no estado de Nova Iorque. E perto de onde passaram a viver,
num lugar chamado Ashgrove, Embury organizou uma nova sociedade.
Em 1775, trabalhando no campo, pois havia mudado sua ocupação de carpinteiro para a
127
de agricultor, feriu-se com um dos instrumentos de trabalho e, em conseqüência do ferimento,
morreu.
Bárbara Heck e o esposo Paulo, João Lawrence e a esposa (a viúva de Embury) e
Samuel Embury, filho de Filipe, mudaram-se em 1783 para o Canadá e se fixaram
permanentemente no povoado de Augusta em 1785.
No Canadá vieram a formar o núcleo de uma classe metodista, da qual Samuel Embury foi
escolhido guia. Bárbara morreu em 1804 e até hoje é lembrada com veneração, considerada
como a mãe do metodismo canadense.
128
Robert Strawbridge
Alguns historiadores opinam que Robert Strawbridge pregou antes de Embury, no sul
dos Estados Unidos, mas nunca se pode firmar com certeza tal fato, e assim compartilham a
glória de haver sido ambos os primeiros a disseminar o avivamento metodista em terras
americanas.
O certo é que Strawbridge se converteu mais tarde do que Embury,
igualmente pela pregação de João Wesley, em 1758. Não há dados certos quanto à data de seu
nascimento. Fixou-se nas colônias americanas num lugar chamado "Sam's Creek", em
Maryland, e fez de sua casa um santuário (lugar de culto e pregação) para todos os
vizinhos, continuando assim a vocação de pregador já exercida na Irlanda.
Logo a casa se tornou pequena para receber os que vinham ouvir suas
exposições, e então construiu uma capela de troncos de árvores ("Log House") na qual se
deixaram aberturas para uma porta e três janelas, mas estas nunca foram colocadas. Não
obstante se instalou o púlpito, pois se sabe que sob ele foram sepultados dois filhos de
Strawbridge.
O interesse religioso se propagou tanto por aquela região que para atender a todos
os pedidos de pregação, faltou a Strawbridge o tempo para atender aos interesses particulares e
começou a descuidar de seus campos; como conseqüência, as colheitas já não bastavam para
o sustento da família. Diante disso, reuniu os vizinhos e disse-lhes: "Se desejam que eu lhes
pregue o Evangelho, terão de cultivar também minhas terras, pois não poso fazer as duas
coisas ao mesmo tempo". Os vizinhos se comprometeram a fazê-lo e .assim pode ampliar seu
campo de ação.
É reconhecido como quem primeiro estabeleceu a obra metodista nas cidades de
Baltimore e Hartford. Evidentemente aproveitou muito dos frutos deixados pela pregação
de Whitefield. Alguém disse com muita expressão: "Ele recolheu os frutos que Whitefield
sacudira dos ramos". Teve o mérito de ser o instrumento para a conversão de Ricardo
Owen, o primeiro pregador metodista nascido na América.
129
Strawbridge era de espírito independente. Muito contra a vontade submeteu-se, mais
tarde, à direção de Asbury, e foi um dos poucos que não obedeceram a suas ordens de não
administrar os sacramentos (visto que era um leigo). Achava que na falta de pastores
ordenados, qualquer cristão que estivesse à frente do rebanho, pela graça de Deus estava em
condições de fazê-lo. Por causa disso, mais de uma vez entrou em controvérsia com Asbury e
deste andou separado e distanciado por muito tempo.
Seu ministério teve uma duração de 21 anos. Faleceu em 1781 perto de Baltimore.
Ricardo Owen pregou o sermão em memória daquele que o levara a Cristo. Comentando a
respeito do caráter de seu ministério, W. C. Barclay assevera:
"Se um homem pode ser julgado pelo fruto de seus labores, Robert
Strawbridge serviu à causa de Deus com tanta eficácia até à morte, como
qualquer dos pregadores primitivos do metodismo. Sua influência pessoal
abrangeu campo mais vasto e afetou vitalmente mais gente que a de qualquer outro.
Ao tempo de sua morte, aproximadamente quatro quintos (80%) de todos os
membros das sociedades metodistas na América estavam em Maryland e para o sul,
onde sua influência se estendera mais." (2)
Outro historiador contemporâneo, William W. Sweet, diz em seu livro "A
Religião da Fronteira Americana":
"Strawbridge adiantou-se a seu tempo e bem pode ele ser chamado 'o
primeiro verdadeiro paladino (chefe, líder) do metodismo americano." (3)
130
Capitão Webb
Já fizemos menção ao fato de que um tal Capitão Webb figurava no topo da lista
de contribuintes que se comprometeram com a construção da primeira capela metodista
em Nova York.
Certamente poucas figuras históricas mais interessantes existem no seio do
metodismo que a deste velho militar. Pertencia às milícias inglesas, perdendo o olho direito
numa refrega (batalha) e saindo com o braço direito ferido em outra. Em 1765 ouviu Wesley
em Bristol e se uniu ali à sociedade metodista. Pouco tempo depois recebeu licença de
pregador local. Dele disse Wesley: "É um homem de fogo e o poder de Deus continuamente
acompanha sua palavra". Não era apenas Wesley que tinha em alta conta esse
militar-pregador; outra autoridade em assuntos metodistas escreveu do Capitão o seguinte:
"A gente via em seu rosto o guerreiro e ouvia em sua voz o
missionário. Sob a influência de sua eloqüência santa a gente tremia e chorava,
rendendo-se sob o poder extraordinário de sua palavra." (4)
Era homem de talento natural, embora tivesse considerável inteligência. Lia muito
e conhecia bem os homens pelo contacto que com eles havia tido em sua carreira militar.
Chegou a ler o Novo Testamento em grego e o exemplar que nessa língua usava é ainda uma
das relíquias mais preciosas que se conservam na América.
Foi para a América do Norte a fim de servir na cidade de Albany, Nova Iorque, uns
três anos depois de sua conversão. Ao chegar, continuou seu costume de realizar o culto
doméstico, que chamou a atenção a seus vizinhos, mais ainda por ser militar. Esse costume
despertou neles interesse de conhecer a natureza da religião que aquela família professava, e
assim muitos pediram admissão a essas reuniões familiares. Logo se formou um grupo em
sua casa, que se reunia periodicamente para oração e meditação. Nesse ínterim o Capitão teve
notícias das reuniões que Embury dirigia em Nova Iorque, e resolveu ir até lá para ver de que se
tratava.
Foi memorável essa primeira visita à congregação metodista daquela cidade.
131
Chegou quando o culto já estava iniciado e sentou-se entre a congregação, com a sua espada
ao lado. Os irmãos, ao ver esse militar, tomaram-se de um pequeno susto, pois pensaram que
viria interferir em suas reuniões e fechar-lhes o local. O próprio Embury não se sentiu muito
cômodo no púlpito com esse estranho militar ali na frente e que o acompanhava com muito
interesse, olhando-o fixamente com o único olho que tinha. Quando concluiu o sermão, como
era costume na época, Embury perguntou se alguém se sentia movido pelo Espírito a dizer
alguma palavra de exortação. A esse convite o Capitão se levantou, ocupou o púlpito, pôs sobre
este a espada, e disse: "Irmãos, eu também sou metodista".
Podemos imaginar o suspiro de alívio e de alegria que brotou de todos os corações
ao saber que tinham nele outro irmão e com quem podiam contar para o afiançamento da
causa. Realmente veio a ser uma coluna forte desta congregação e contribuiu mais do que
qualquer outro para que se erigisse a primeira capela em Nova Iorque, reunindo muito do
dinheiro necessário.
Pouco tempo depois desse encontro se aposentou e se fixou com a família numa
ilha de Nova Iorque, chamada Long Island, onde logo formou uma sociedade. Agora que já não
tinha compromissos com o exército, entregou-se inteiramente à pregação e estendeu seus
labores por toda a ilha, indo além, até Nova Jersey, Delaware, Maryland e Pensilvânia.
Logo cresceu e se firmou a fama de suas pregações. Na cidade de Filadélfia
organizou uma sociedade com sete membros, que constituíram o núcleo inicial do que ainda é a
congregação de São Jorge. Como em Nova Iorque, interessou-se em que a sociedade tivesse
seu próprio local de cultos e, como conseqüência, empenhou-se para que em 1769 se
adquirisse e concluísse um edifício que pertencia a uma congregação reformada alemã
parcialmente constituída. Esse templo, modificado e reconstruído em parte, ainda está em uso,
sendo considerado o templo Metodista em uso constante e o mais antigo da América do Norte.
Nessa cidade de Filadélfia, nos fins de 1769, deu as boas-vindas a dois dos
missionários vindos da Inglaterra, enviados por João Wesley e pela Conferência Anual:
Boardman e Pilmoor, embora não fossem esses que ele pedira.
Pouco depois de chegar, Pilmoor escreveu a Wesley dando seu testemunho
132
sobre a obra feita por Webb, e seus resultados:
"Grande foi a surpresa ao encontrar o Capitão Webb na cidade e uma
sociedade com cem membros aproximadamente, que desejam estar em estreita
relação com o irmão. Isto procede do Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos.
Preguei diversas vezes e a gente acode em multidões para ouvir. Domingo à
noite saí a campo. Tive por púlpito a plataforma que se usa nas corridas de cavalos
e creio que entre quatro e cinco mil ouvintes estiveram em profundo silêncio. Bendito
seja Deus pela pregação ao ar livre! A princípio, quando falei em pregar às cinco
horas da manhã, acharam que isso não daria resultado na América, entretanto
resolvi experimentar e tive boa congregação." (5)
Em 1772 o Capitão Webb foi à Inglaterra e compareceu perante a Conferência
reunida em Leeds, que, em face de seu apelo comovedor, enviou outros dois missionários
à América (os já mencionados Rankin e Shadford). E voltou ao Novo Mundo com eles. Um dos
documentos que nos revelam o espírito aventureiro da obra missionária daqueles tempos
consiste numa cartinha que João Wesley escreveu a Shadford, quando o avisou de que havia
chegado o momento de partir. Aqui a transcrevemos:
"Querido Jorge, a ocasião de embarcares para a América chegou. Deverás
partir de Bristol, onde te encontrarás com Tomás Rankin e o Capitão Webb e sua
esposa. Deixo-te livre, Jorge, no grande continente americano. Publica tua
mensagem sob a luz do sol e faze todo o bem que possas. Caro Jorge, aqui
permaneço afetuosamente teu. " (6)
O Capitão Webb passou algum tempo mais ajudando na obra de evangelização na
América e depois voltou à Inglaterra onde continuou a evangelizar, sempre como leigo. Morreu
no mesmo lugar onde conhecera a Cristo, na cidade de Bristol, a 20 de dezembro de 1796,
com a idade de 72 anos. Um contemporâneo seu disse que até ao fim da vida, Webb conservou
grande vitalidade, e que aos 70 anos parecia ter 55. Um pregador que o acompanhara em seus
últimos dias assim relata seu ocaso:
"Quarta-feira, dezembro 21. Ontem à noite, cerca de 23 horas, o Capitão Webb
133
entrou repentinamente no gozo do Senhor. Participou da ceia e retirou-se para
descansar, lá pelas dez, sentindo-se bem. Em menos de uma hora seu espírito
deixou o corpo terreno para entrar nos reinos da eterna felicidade. Tinha o
pressentimento de que mudaria de mundo no decorrer deste ano e que a partida seria
repentina." (7)
Em Bristol ajudou a erguer a capela da rua Portland sob cujo altar foram
sepultados seus restos mortais. Provavelmente o maior tributo que fora feito a esse
soldado-pregador veio do Sr. John Adams, que chegou a ser presidente dos Estados
Unidos. Ouvindo-o em Filadélfia, depois o descreveu assim: "O velho soldado é um dos homens
mais eloqüentes que já ouvi. Ele sabe despertar a imaginação e emocionar muito,
expressando-se com propriedade". (8)
134
Robert Williams
Uma das vidas mais novelescas que se registram na história do metodismo
americano, entre os pregadores leigos, foi, sem dúvida alguma, a de Robert Williams.
Foi o primeiro pregador itinerante que chegou à América do Norte antes que viessem
os que, em 1769, a Conferência Anual resolveu mandar. Chegou a Nova Iorque em agosto de
1769, procedente da Irlanda. Na primavera desse ano, havendo chegado notícias da obra de
Embury e da necessidade que tinha este de que alguém o ajudasse, ofereceu-se a Wesley.
Parece que este não demonstrou muito interesse, e parece que a razão principal era o fato de
Williams haver criticado asperamente em público clérigos da Igreja Anglicana. E isto
desgostou a Wesley, que se opunha a que se fizessem comentários contra o clero oficial,
mesmo quando merecidos. Por fim, ante sua insistência quase impertinente, consentiu em que
fosse, desde que ele mesmo custeasse as despesas de viagem e se colocasse às ordens dos
missionários que a Conferência enviaria mais tarde.
Era homem de muita iniciativa e já havia pregado por três anos na Irlanda, o que
lhe granjeou (conquistou) muitos amigos, entre os quais um tal senhor Ashton, leigo metodista
de Dublin. Este não só ofereceu pagar-lhe a passagem, mas também prometeu acompanha-lo
até Nova Iorque. Ante essa estupenda promessa do amigo, vendeu o cavalo para pagar as
dívidas e empreendeu a viagem a pé até Dublin, carregando o alforje nos ombros, levando
um pão e uma garrafa de leite.
Dois meses antes que os missionários regulares chegassem à América, Williams
chegou com seu amigo. Ao desembarcar não perdeu tempo, pois foi imediatamente em
busca de Embury oferecer-lhe seus serviços que, aceitos, continuaram até à chegada de
Boardman, um dos dois missionários regulares.
Não ficou parado em Nova York. Começou a viajar em seguida, tomado da
mesma inquietude que Asbury. Em verdade este o menciona muitas vezes em seu
Diário, observando que o encontrava aqui, ali e acolá, empenhado em fazer trabalho
de itinerante. Obteve os melhores resultados em Maryland e Virgínia. É tido como o que
135
introduziu e estabeleceu o metodismo neste último Estado. Foi constante em sua
itinerância ministerial, até que se casou.
Uma das coisas que distinguiram esse obreiro foi o fato de ser ele o primeiro
metodista que publicou e distribuiu livros na América. Por essa época não era permitido a
qualquer pregador publicar livros, exceto com licença expressa de João Wesley. Mas
Will iams não se ateve a essa restrição e publicou folhetos, sermões e livros,
evidentemente enfrentando ele mesmo os riscos da empresa (empreendimento). Todo
esse material ele distribuía profusamente em suas viagens, levando-o em seus alforjes. Jesse
Lee, um dos mais renomados e eminentes pregadores metodistas dos fins desse século, e que
se convertera sob seu ministério, escreveu:
"Robert Williams reimprimiu muitos livros do senhor Wesley e os espalhou
por todo o país, para grande vantagem da religião. Os sermões que ele imprimiu em
formato pequeno e fez circular entre o público tiveram grande efeito e deram ao povo
luz e compreensão a respeito da natureza do novo nascimento e do plano de
salvação. E assim, houve oportunidade em muitos lugares para que nossos
pregadores fossem convidados a pregar onde nunca estiveram antes." (9)
Essa atividade desgostou a Wesley quando soube das publicações na
América, e escreveu a Asbury para que tomasse providências, indicando-lhe que não
permitisse publicar qualquer outro livro sem seu consentimento. Ao mesmo tempo
escreveu a Williams no mesmo sentido. Mas até 1773, pelo menos, ele continuou
desconhecendo a ordem de Wesley, pois na Conferência de pregadores realizada na América,
naquele ano, e provavelmente obedecendo a ordens de Wesley, inseriu-se nas atas da
Conferência o seguinte: "Nenhum pregador poderá reimprimir qualquer dos livros do senhor
Wesley sem sua licença (quando esta pode ser obtida) e sem o consentimento de seus irmãos".
Também esclareceram que Robert Williams podia vender os livros já impressos, mas não lhe
era permitido imprimir outros sem observância do que estabelecera a Conferência.
Faleceu a 26 de setembro de 1775, não muito depois de haver se casado e localizado
136
residência num lugar situado entre as cidades de Suffolk e Norfolk, na Virgínia. Ele viajou
durante todo seu ministério como simples pregador leigo, pois nunca chegou a ser ordenado.
Teve, pois, o mérito de ser o primeiro metodista itinerante na América, o primeiro a publicar
literatura e o primeiro a casar-se e, também, o primeiro a morrer!
137
John King
Terminaremos esta breve série recordando mais um exemplo desses homens
intrépidos e sem ordenação humana (eclesiástica).
Nasceu na Inglaterra em 1746. Também, como Robert Williams, foi para a América
de maneira irregular, isto é, sem ser enviado pela Conferência Anual. Converteu-se, como
tantos outros, pela pregação de João Wesley. Estudou em Oxford e numa escola de medicina
de Londres, por onde se diplomou médico. Seu pai irou-se muito quando ele se converteu e
aderiu ao movimento metodista, ameaçando deserdá-lo se insistisse em permanecer unido a
esse grupo de "fanáticos". John King desistiu e o pai cumpriu a palavra deserdando-o. Mas
ele não se deixou vencer pelo desalento e foi adiante saindo fortalecido da prova. Agora
estava convencido, mais do que nunca, de que Deus o chamava a pregar.
O nome de John King aparece na lista nos quatro pregadores nomeados para a
América no ano de 1770, pela Conferência Anual da Inglaterra, embora apenas dois o fossem
oficialmente em 1769. King, como Williams, veio por sua própria conta, provavelmente
com o consentimento pessoal de Wesley. Chegou à América em 1769, pouco depois de
Boardman e Pilmoor, e se apresentou imediatamente depois de chegar. Mas como não trazia
nenhuma credencial oficial, Pilmoor o rejeitou com desdém. O jovem, sem embargo, não
perdeu seus brios e pregou mesmo sem permissão, pois nele clamava o grito do Apóstolo: "Ai
de mim se não pregar o Evangelho!"
Foi ao cemitério, e dos sepulcros pregou aos pobres seu primeiro sermão na América.
Os que o ouviram suplicaram a Pilmoor que lhe concedesse permissão para pregar perante a
sociedade metodista. Por fim lhe concederam licença de pregador e foi para Wilmington e Delaware
anunciar a Palavra, passando daí a Maryland onde Strawbridge. o recebeu jubilosamente.
Parece que ele foi o primeiro pregador itinerante que chegou à cidade de Baltimore
(era apenas um pregador local, embora viajasse muito) e pregou seu primeiro sermão na esquina
de uma rua, em pé sobre a bigorna de um ferreiro, e o segundo noutra esquina sobre uma mesa.
O reitor da Igreja Anglicana de São Paulo convidou-o a pregar, mas não voltaria a fazê-lo, pois,
138
segundo o testemunho de alguém que o ouviu, "fez voar o pó das velhas almofadas de veludo".
Até 1777 seu nome aparece na lista de pregadores itinerantes juntamente com os
demais, e depois desaparece. Enquanto esteve na lista, foi nomeado para circuitos nas regiões
de Nova Jersey, Virgínia, Nova Iorque e Carolina do Norte. Sua itinerância cessou nesse ano
porque se casou. Comprou casa em Louísburgo, na Carolina do Norte, onde exerceu a
medicina, continuando, sem embargo, na categoria de pregador local, até à morte, em 1795.
Embora nunca chegasse a receber ordens eclesiásticas e sempre fosse, na
verdade, pregador leigo itinerante, dois de seus filhos, chamados João Wesley e
Guilherme Fletcher, chegaram a ser pregadores metodistas ordenados. Os outros quatro filhos
que teve foram todos membros da Igreja.
O nome de John King será sempre lembrado como um dos pioneiros metodista da
América do Norte e conservado merecidamente em seu rol de honra. Como Asbury,
Williams e Pempster, John King foi um dos quatro pregadores metodistas chegados da
Inglaterra, que durante a revolução da independência resolveram ficar para trabalhar e
morrer ali. Morreu em New Berne, Virgínia, durante uma visita que fizera ali, mas foi
sepultado no distrito de Wake, em Carolina do Norte, onde vivia desde 1789.
Ser-nos-ia agradável falar de outros leigos da mesma categoria, que foram
"ponta de lança" no estabelecimento da obra metodista em muitos outros lugares da terra como
em Antigua, Nova Escócia, Canadá e África. Mas estas páginas já ultrapassam o limite que
nos propusemos e teremos de concluir aqui nossa lista, que nos dá uma idéia muita pálida da
legião imensa de homens e mulheres desse quilate, e cujo número sobrepujou em muito
a dos que saíram a pregar com ordens eclesiásticas. A maioria deles trabalhou heróica e
nobremente no anonimato; a história registra mui poucos de seus nomes. Somente Deus
sabe quantos foram e quanto trabalho realizaram impelidos pelo seu Espírito. Por certo ser
lembrado pelos homens tem valor muito relativo. O importante será que seus nomes e os
nossos estejam na memória de Deus e registrados para sempre no Livro da Vida.
NOTAS:
(1)
139
C A P Í T U L O D U O D É C I M O
CINTILAÇÕES
INEXTINGUÍVEIS
"Não anelamos morar em túmulos,
Nem nas escuras celas monásticas,
Relegados por votos e barrotes;
A todos, livremente, nos oferecemos,
Constrangidos pelo amor de Jesus,
A viver quais servos da humanidade."
Carlos Wesley
Provavelmente haja aqueles que, depois de haver lido as páginas que antecedem,
exclamem: "Mas naqueles tempos havia gigantes na terra!" De que eles foram gigantes na
ordem moral e espiritual, não há dúvida; duvidamos, isso sim, é de que aquela estirpe de
gente só pudesse existir "naqueles tempos".
Se analisássemos intimamente a vida, o ser, as possibilidades e o meio ambiente
em que atuaram, além de outros pormenores, descobriríamos que eram homens e
140
mulheres de carne e osso como nós, que viveram, sem dúvida alguma, em épocas e
circunstâncias muito menos favoráveis que as nossas. O Deus que eles adoraram e por quem
viveram e morreram é o mesmo Deus. E o Salvador, de quem receberam redenção e graça, é
todavia o mesmo, no dizer do escritor da carta aos Hebreus, "ontem, hoje e para sempre".
O principal instrumento de inspiração e trabalho é ainda o mesmo: as Sagradas
Escrituras. O povo, no meio do qual vivemos e atuamos, afastada a aparência exterior e retirado
o verniz de uma civilização agraciada com os avanços técnicos da ciência, é o mesmo povo
que enfrenta, cada dia, vida e morte, tristezas e alegrias, paixões e esperanças,
desilusões e sonhos, sede de integração e eternidade, e inquietude por segurança e
estabilidade.
Esses personagens que passamos em revista não eram todos eles sábios, não
eram todos eles ignorantes. Alguns, e por certo a maioria dos líderes, receberam a melhor
instrução possível da época: pisaram os átrios universitários; quase todos eles receberam
honrarias; foram oradores de grande talento; ombrearam-se com os grandes e seus nomes
ficaram registrados na história entre os que alcançaram mérito diante dos homens e graça
diante de Deus.
Outros foram humildes, no que se refere a letras humanas, e às vezes completamente
indoutos (de pouco saber, ou melhor, de baixa escolaridade), da mesma linhagem de que faziam
parte os pescadores do Mar da Galiléia, que acompanharam a Jesus nos prístinos (antigos)
dias do Evangelho. Não poucos deles vieram das camadas mais humildes da sociedade,
onde as luzes do intelecto eram escassas, por causa das dificuldades em ganhar o pão
de cada dia e a preocupação constante pela falta das coisas necessárias a uma vida
normal e decente. Passamos por toda a gama das possibilidades intelectuais, desde o que
está no pináculo (auge) da sabedoria humana, até aquele que está imerso na mais deprimente
ignorância. Sem embargo, vemos que todos eles receberam num dado momento através de
alguma contingência inesperada, ou por uma busca porfiada e agonizante, a luz que ilumina a
alma e que a faz ascender (subir) aos píncaros (cume) das melhores alturas e arranca do
lodo os que caminham por vales de sombra e miséria.
Tampouco foram o que foram por pertencerem, pelo que vimos, a uma só classe,
141
a classe dos privilegiados ou dos desprotegidos. Em nossa "Estranha Estirpe de Audazes"
encontramos teólogos, nobres, fazendeiros, médicos, advogados, artesãos, soldados,
agricultores, carpinteiros, pedreiros, professores, donas de casa e criados, todos eles passando
ante nossos olhos possuídos por uma mesma e profunda paixão, indo em busca de um mesmo
alvo e lutando no mesmo afã (entusiasmo) de superação e abnegação para encontrar dentro de
sua vocação comum que o que vale — porque as diferenças humanas nada são — é o que
levamos dentro de nós, essa decisão de sintonizar nosso eu, pequeno e insignificante, com o
grande Eu do universo.
Também não foram o que foram por pertencerem a uma determinada escola
teológica. Alguns que eram teólogos deixaram sua teologia formal e tradicional. Outros
nunca souberam dela, nem se preocuparam por adquiri-la de maneira sistemática, nem
vieram a constituir uma nova escola teológica. Suas doutrinas e suas crenças são comuns a
um grupo e outro de cristãos. Nada descobriremos de novo ou de original ou superior ao que
já se sabia no terreno dos conhecimentos das coisas de Deus. Somente encareceram (tornaram
caro, deram grande destaque e valor) certos conceitos teológicos e bíblicos desusados,
esquecidos ou desprezados por conveniências do momento, ou para "cobrir uma multidão de
pecados", ou por inércia para não sair do status quo (o estado em que se achava
anteriormente certa questão), ou por temor ao que se pudesse dizer, ou por não
ofender os que viviam em libertinagem. O movimento metodista nunca se distinguiu por sua
teologia. Como já dissemos no início, não tem sido uma nova doutrina, mas uma nova vida, um
esforço por encarar o espírito de Cristo, que no dizer do apóstolo Paulo, é "ter o mesmo
sentimento que houve também em Cristo Jesus".
Tampouco o foram por querer formar uma denominação com governo eclesiástico
mais moderno ou um ministério diferente. A forma denominacional que o movimento tomaria
mais tarde, por diversos fatores (alguns dos quais foram mencionados) foi tão só acidental e de
valor secundário. O movimento encontrou, desde o início, a hostilidade e animosidade dos
eclesiásticos responsáveis (líderes da Igreja Anglicana) e, assim, em lugar de operar no seio da
Igreja, teve de, com raras exceções, impor-se à margem dela, como acontecera com os outros
movimentos de reforma no curso da História.
Foi um movimento do Espírito pelo espírito, da graça divina operando nos
142
recipientes sensíveis a seu chamado, da paixão de Cristo manifestando-se em seres
conscientes da grandeza e permanência das coisas espirituais.
Na verdade João Wesley organizou sociedades, mas essas sociedades não eram
igrejas, e deviam ter suas reuniões em períodos diferentes das horas em que as igrejas
celebravam os cultos. Os ministros que pertenciam a outras igrejas e os chamados
"pregadores irregulares", itinerantes ou locais, eram, na mente de João Wesley, tão só
coadjutores de um ministério regular.
Whitefield, por sua vez, nunca se preocupou com reunir de alguma forma aqueles
que alcançou com sua palavra. Foram outros, juntamente com a Condessa de Huntingdon,
que trataram de dar forma de permanência a seus labores dentro da idiossincrasia (maneira de
ver e crer) predestinacionista (que Deus, desde o ventre da mãe, já predestinava quem seria
salvo e quem iria para a perdição eterna), e só ante a negativa dos clérigos da Igreja Oficial
(Anglicana) de incorporar o movimento dentro dela. Infelizmente o movimento desembocou em
denominacionismo (uma nova denominação) e por isto, talvez, haja perdido o empuxo (força
que a lançava pra frente), o entusiasmo, o frescor e a independência que tinha em seus
primitivos tempos.
Que foi, então, que contribuiu para que as cintilações dessas personalidades
permanecessem com reverberações inextinguíveis? Trataremos de analisar, tão brevemente
quanto nos seja possível, esses elementos que transcendem estados, classes, posições,
conhecimentos e tradições.
1. Em primeiro lugar estava a convicção firme de que a pessoa tinha de
experimentar por si mesma o perdão e o amor de Deus em Cristo. Não era suficiente que a
Bíblia e a Igreja o dissessem. Isso não dava segurança a ninguém. Cada pessoa, presa de
angústia e incerteza, devia satisfazer por si mesma a sede de estar em comunhão com o
Deus de graça e misericórdia, devia senti-lo sem temê-lo e adorá-lo sem tremer ante sua
presença, sabendo que o eu, "meu eu", tal qual alguém o sente ser, foi perdoado e refeito por
Deus, arrancado do abismo da morte para viver ante a esperança de um amanhã de
inextinguível ventura junto de Deus. Ainda no caso da eleição (o chamado de Deus para uma
nova vida em Jesus, a vocação para a tarefa missionária de testemunhar Cristo aos demais), o
143
seu recipiente (a pessoa chamada e vocacionada por Deus) deve ter, de alguma maneira,
consciência de que Deus o elegeu e de que por essa eleição se converte em vaso digno da
graça. Não que deva fazer algo capaz de pagar a graça de Deus, posto que não tem preço,
senão corresponder à graça com uma vida que seja para "sua glória".
2. Seguia-se a isso a convicção de que, para permanecer no estado de salvação e
graça, era necessário que a direção constante do Espírito Santo se manifestasse na vida do
indivíduo e da Igreja. Sua direção é muito mais necessária do que a tradição e o
costume, porque se pode seguir uma e outra insensivelmente, sem que o coração e a
consciência nada tenham a dizer e a sentir. O Espírito Santo é a ação contínua de Deus na vida
redimida do indivíduo e da Igreja. É a de Cristo, quando tem de estar unido à videira, para
que produza fruto e diz: "Sem mim nada podeis fazer". É' a do ramo que fruto
permanente e abundante. O testemunho e a presença do Espírito Santo não são apenas
necessários, senão imprescindíveis, o "sine qua nom" (a condição “sem a qual” não há vida
cristã) na vida do crente.
3. Existia a convicção, pelo menos entre a maioria desse movimento, de que
cada pessoa está natural e inevitavelmente exposta à ação salvadora de Deus; isto é, que
ninguém está excluído da possibilidade de converter-se de filho das trevas em filho da luz. De
pecador a filho de Deus. Esta foi a "redemocratização" do Evangelho, o apelo soberano nessa
extraordinária cruzada que buscava resgatar os mais destituídos, ignorantes e
abandonados à margem dos que se consideravam os "eleitos e privilegiados". A misericórdia
divina não tem limites ou favoritismos de qualquer espécie, ou regiões onde se manifeste
mais ou menos. Se João Wesley podia dizer "O mundo é a minha paróquia!", foi porque
descobriu que o mundo inteiro era paróquia de Deus, assim como já o dissera Cristo aos
fariseus de seus dias, quando lhes contou as parábolas da ovelha perdida, da moeda perdia
e do filho pródigo. Que diremos, então, daqueles que dentro do movimento criam (acreditavam)
na eleição divina? Já dissemos como Whitefield, em teologia, pensava como
predestinacionista, mas em sua obra de evangelização atuava como arminiano. Também
era crença sua e daqueles que pensavam como ele, ser mister (tarefa) despertar a
consciência dos eleitos, para que pudessem aproveitar a largura e a profundidade da graça de
Deus ainda na Terra. Daí também, a urgência da pregação daqueles que criam na eleição
divina.
144
4. As Sagradas Escrituras eram, primeiramente, a única base e instrumento para a
salvação, e em seguida seu uso se relaciona com o cultivo da piedade cristã. Em toda parte este
despertar religioso era sempre seguido de um interesse imediato por um conhecimento mais
cabal das Sagradas Escrituras quanto a seu caráter devocional e instrutivo. Daí que se fizesse
finca-pé (empenho) na urgência de sua leitura, exposição e divulgação. As pregações, os
cultos familiares, as reuniões de oração e de aprofundamento espiritual sempre se escudavam
(amparavam) no testemunho das Escrituras e em sua autoridade final na determinação da
conduta. Essa busca e exata compreensão das Escrituras dependiam da iluminação do Espírito
Santo, que, segundo seu entender, era o único instrumento capaz de abrir o segredo da
sabedoria do texto sagrado. Os pregadores itinerantes saíam com seus alforjes (sacolas,
bolsas, mochilas) repletos de Bíblias, porções da mesma e de livros que pudessem ilustrar e
aplicar seu conteúdo.
Havia em todos eles a necessidade de uma relação mais íntima com Deus e a
convicção de que tinham de arrepender-se cabalmente de seu passado. Essa convicção
levava a alguns deles a um estado de profunda tristeza e agonia por sentir-se em uma
condição de absoluta insuficiência e rebeldia. Mas quando esse estado dava lugar à
convicção de que o perdão e o amor de Deus os haviam alcançado, de acordo com a
mensagem das Sagradas Escrituras, então a angústia e o desespero se transformavam em
alegria e jubiloso entusiasmo, que transcendiam, segundo os de fora (do movimento
metodista), os limites da "razão e da decência". Isto, porém, não deve estranhar a ninguém,
posto que também no dia de Pentecoste os discípulos foram tomados por gente "cheia de
mosto " (embriagada) os que receberam a bênção do Espírito Santo e se espalharam
jubilosos pelas ruas de Jerusalém, dando assim expansão a sua alegria espiritual. Esse
estado de júbilo e entusiasmo era para eles revelador da verdadeira natureza da religião
cristã, a que segundo o apóstolo Paulo deve manifestar-se em "amor, gozo, paz, tolerância,
benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança". O Apóstolo também coloca o gozo
como uma das primeiras manifestações da presença do Espírito na vida do crente.
6. Além disso, tinham o sentido da urgente responsabilidade por alcançar a outros,
num esforço às vezes heróico e sempre pertinaz. Tinham a missão de colocar as pessoas
sob a ação da graça divina e de despertar o apetite pelas "coisas que não perecem". Não
145
que eles agora se sentissem capazes, por si mesmos, de operar a salvação de alguém, —
mas por gratidão e reconhecimento se colocavam às ordens de Deus, para que os usasse
como instrumentos dóceis e ef icientes na salvação dos outros, para que estes
experimentassem o mesmo sentir de júbilo espiritual que eles haviam experimentado e
gozavam depois de seu encontro pessoal com Cristo e seu Evangelho!" , o segredo do poder
que os empuxava ainda quando iletrados e destituídos de bens materiais, que brotava
irresistível, envolvente, impetuoso, inevitável e jubiloso de cada alma redimida.
7. Nesse afã de apelo e propagação do Evangelho não tinham limites o sacrifício e a
ousadia. Agora a vida que possuíam, redimida no amor sacrificial de Deus em Cristo, já não
lhes pertencia, porque era propriedade de Deus. Teria sido pecado imperdoável alguém
conservá-la para si mesmo e gozá-la em segredo, a sós na presença de Deus. Agora tinham de
enfrentar, assim como Cristo o fizera, todas as dificuldades e, se necessário, até
mesmo a cruz, a fim de que o Evangelho não fosse detido e pudesse gozar de livre curso
para o coração de cada ser humano. A salvação não era, portanto, algo que alguém
tivesse o direito de conservar avaramente (de modo egoísta, gananciosamente) para si.
Quando alguém está de posse da salvação não pode fazer outra coisa senão comparti-la com
outros para que aumente o número dos herdeiros do reino de Deus. Dessa maneira, as
dificuldades, as barreiras e as perseguições se transformavam em urgente estímulo para
prosseguir na luta e alcançar em Cristo a vitória. Se alguém chegava a perder a vida na luta, em
verdade não a perdia inutilmente, pois mais valia perdê-la no combate que conservá-la na
covardia.
8. Havia neles um agudo sentido de mordomia. João Wesley escrevia, relatando seu
último recebimento registrado em seu livro pessoal de contas, e pouco antes de terminar sua
carreira, o seguinte:
"1790. Por mais de 86 anos registrei estritamente minhas contas. Não o
tentarei fazer mais daqui para o diante, sentindo-me satisfeito com a firme
convicção de que economizei tudo o que pude e dei tudo o que pude — e isto é tudo
o que tive." (1)
146
Este senso de responsabilidade na mordomia dos bens esteve mui presente no ânimo de
todos, como, sem dúvida, já teremos percebido, tanto no daquele que possuía muito como
no daquele que possuía pouco, e alguns deles tiveram muito pouco! Sentiam que a
responsabilidade de manter a obra e expandi-la não era obrigação da "Igreja" no sentido
abstrato, senão de cada um deles, de tal maneira que poderíamos interpretar sua atitude da
seguinte maneira: "O que sou, o que tenho: tempo, dinheiro, talento, tudo é do Senhor e para
ser usado para sua glór ia e a salvação de meu próximo" . Quando existe este
desprendimento das coisas materiais com o fim de promover a Causa de Deus, esta tem
necessariamente de seguir adiante e prosperar.
9. Havia, também a convicção de que a obra de Deus tinha de ser feita
indistintamente por todos aqueles que haviam sido redimidos e batizados em Cristo: pelos
que haviam sido ordenados e pelos que não o haviam sido (os que nesse livro chamados de
“Os irregulares”, justamente por fazerem sem ordenação eclesiástica um trabalho que
naquele tempo exigia-se a tal ordenação). E nisto, os que denominamos "O Bando dos
Irregulares" tiveram muito que ver. Havemos de recordar-nos de que em mais de uma vez eles
forçaram o ministério regular a admiti-los a seu lado como coadjutores na proclamação das
verdades divinas, derrubando o muro de separação que se levantava entre clérigos e leigos.
Restabeleceram a prática comum dos primeiros dias da era cristã, quando a proclamação do
Evangelho não era privilégio de poucos, mas obrigação de todos. E esse testemunho havia de
ser dado ali onde alguém se encontrasse, com muitas ou poucas capacidades e talentos que
tivesse, com ou sem instrução, entre as próprias amizades e com os meios à disposição,
tratando de melhorar sempre o que sabia e aperfeiçoar-se incessantemente no estado espiritual,
afanando-se (buscando com insistência) por superar-se dia após dia, na ação " a tempo e fora
de tempo", como se na fidelidade de cada um, de seu progresso, de sua fé e de suas orações
dependesse a vinda do Reino de Deus.
Provavelmente com a nova consciência ecumênica e missionária que se vai
despertando na Igreja, não existe nada mais urgente — ante um mundo hostil, profundamente
pagão e sacudido por convulsões tremendas — que a restauração, em grande escala, do
"sacerdócio universal dos crentes". Não devemos nos esquecer de que o elemento leigo dentro
da Igreja constitui mais de noventa e nove por cento do total e que é impossível que o reduzido
147
número de homens e mulheres ordenados tome sobre si a responsabilidade da salvação do
mundo. Urge que o "Bando dos Irregulares" tome forma de exército e invada o mundo,
levantando bem alto o estandarte glorioso da salvação em Cristo.
10. Finalmente, embora isto já esteja implícito no que dissemos, essa "Estranha
Estirpe" era heróica e audaz porque sabia enfrentar resolutamente o vitupério (insulto, injúria)
dos homens. Num mundo como o nosso, cheio de sofismas (argumento falso usado para
enganar, para induzir o outro ao erro) e de orgulho humanista, avalentados (encorajados,
animados) pelas descobertas surpreendentes da ciência e pelas realizações de técnica, são
muitos os que acham que a religião e Deus já não têm lugar, que o Evangelho é uma doutrina
anacrônica (atrasada, superada, própria dos tempos antigos)e superstição ridícula. Sair à arena
(às ruas) para pregar o Evangelho de um que morreu nos braços da cruz, é ainda hoje loucura
e escândalo.
Os homens e mulheres em cuja companhia andamos através das páginas desse
livro tiveram de suportar o escárnio, o escândalo, a indiferença e a oposição brutal de
seu tempo e de seus contemporâneos. Não obstante (contudo) não se
amedrontaram, antes fizeram frente a tudo quanto se lhes opunha de uma forma ou de outra,
transformando o vitupério (injúria, insulto e até perseguição) dos homens em meio
(instrumento) para alcançar a glória, de Deus, seguindo nas pisadas do grande missionário
Paulo de Tarso, o primeiro e maior de todos, que do fundo de um cárcere dava o mais
formidável testemunho de sua fortaleza de espírito e confiança na vitória final, ao dizer:
"Tudo posso naquele que me fortalece".
Somente com homens e mulheres da têmpera (índole, inteireza de caráter) dessa
"Estranha Estirpe de Audazes" as portas do Inferno não prevalecerão contra a Igreja.
NOTAS:
(1) Último recebimento do livro pessoal de contas de João Wesley, citado em “A New
History of Methodism”, Vol. 1, Pág. 232.