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Estudos Surdos II

estudos surdos - 2 - Ronice

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Estudos Surdos II

R o n i c e M l l er d e Q u a d r o s e g l a d is p er l i n(organizadoras)

Estudos Surdos II fsrie pesquisas

Ana Regina e Souza Campello Carolina Hessel Silveira Flaviane Reis Franklin Ferreira Rezende Junior Karin Lilian Strbel Mara Massutti Maringela Estelita Patrcia Luiza Ferreira Pinto Patrcia Marcondes Amaral da Cunha Rodrigo Rosso Marques Ronice Mller de Quadros

2007 by Ronice Mller de Quadros e Gladis Perlin Todos os direitos desta edio reservados EDITORA arara azul LTDA. Rua das Accias, 20 Condomnio Vale da Unio Araras Petrpolis RJ Cep: 25725-040 Tel.: (24) 2225-8397 www.editora-arara-azul.com.br Capa e projeto grfico Fatima Agra Foto de capa Cristina Matthiesen Em reeleitura da escultura A Catedral (1908) de Auguste Rodin. Editorao Eletrnica FA Editorao Reviso Cllia Regina Ramos Ronice Mller de Quadros Regina Laginestra

Apoio

E85 Estudos Surdos II / Ronice Mller de Quadros e Gladis Perlin (organizadoras). Petrpolis, RJ : Arara Azul, 2007. 267 p. : 21cm (Srie Pesquisas) ISBN 978-85-89002-21-9 1. Surdos Meios de comunicao. 2. Surdos Educao. 3. Lngua de sinais. I. Quadros, Ronice Mller de & Perlin, Gladis. II. Srie. CDD 371.912

Aos pesquisadores surdos brasileiros que conseguiram legitimar a pespectiva dos prprios surdos... precursores das lutas pelo reconhecimento da sua lngua, da sua cultura e do seu povo.

SumrioPrefcio ................................................................................... 9 Captulo 1 . ........................................................................... 18 Histria dos surdos: representaes mascaradas das identidades surdas Karin Lilian Strbel Captulo 2 . ........................................................................... 38 Cenas do atendimento especial numa escola bilnge: os discursos sobre a surdez e a produo de redes de saber-poder Patrcia Marcondes Amaral da Cunha Captulo 3 . ........................................................................... 86 Professores Surdos: Identificao ou Modelo? Flaviane Reis Captulo 4 . ......................................................................... 100 Pedagogia Visual / Sinal na Educao dos Surdos Ana Regina e Souza Campello

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Captulo 5 . ......................................................................... 132 Educao de Jovens e Adultos: um dilogo sobre a educao e o aluno surdo Rodrigo Rosso Marques Captulo 6 . ......................................................................... 150 O currculo de Lngua de Sinais e os professores surdos: poder, identidade e cultura surda Carolina Hessel Silveira Captulo 7 . ......................................................................... 190 Os surdos nos rastros da sua intelectualidade especfica Franklin Ferreira Rezende Junior e Patrcia Luiza Ferreira Pinto Captulo 8 . ......................................................................... 212 Escrita das lnguas de sinais Maringela Estelita Captulo 9 . ......................................................................... 238 CODAs brasileiros: libras e portugus em zonas de contato Ronice Mller de Quadros e Mara Massutti

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Prefcio Ns surdos somos... I... aquele grupo que Bauman1 denomina de prias da sociedade. O que nos levou a ser classificados como isto, se estamos bem vestidos, comemos em restaurantes de classe e transitamos em qualquer ambiente como qualquer grupo, simplesmente a chamada normalidade? Ser normal2 to importante, mas to importante mesmo, que no se consegue entender at que ponto vai seu significado. Hoje os prias, os no-normais no iro para quaisquer pases como nos tempos da colonialidade em que o rei determinava a criao de novas cidades e os deficientes eram jogados pelos despenhadeiros, por representarem um peso para a sociedade. A temporalidade daqueles feitos incautos mudou. Ficamos entre os homens e mulheres, pois assim a vida possvel. Acontece que estamos integrados, como querem alguns e no integrados, como falam outros. A identidade dos surdos sobrevive a uma forma de incerteza constante. Uma narrativa captada ao acaso nos corredores de uma1 2

BAUMAN, Z. Vidas desperdiadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. Ser normal segue uma norma. Mas ser normal para o surdo significaria ser surdo, ser autenticamente surdo.

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universidade, das mais importantes de nosso pas, que no esconde nas vozes de uns e de outros o que a maioria social pensa sobre o surdo: Em primeiro lugar, para mim que at o presente momento no havia tido contato com ningum que tivesse deficincia auditiva, difcil pensar no surdo, a primeira vez, como um grupo cultural parte. Isto assombra! Nesse sentido, representamos nossa identidade mesmo na contradio do que ela representa. Somos um grupo cultural parte. Notadamente, no existem trilhas bvias para retornarmos ao quadro das identidades daqueles que se consideram normais. A nossa trilha perfaz nos identificarmos enquanto surdos, enquanto aqueles com marcas de diferena cultural. No nos importa que nos marquem como refugos, como excludos, como anormais. Importa-nos quem somos, o que somos e como somos. A diferena ser sempre diferena. No tentem colocar todos os capitais do mundo para declarar-nos diversos porque no isso que estamos significando. Continuamos a ser diferentes em nossas formas. Continuamos a nos identificar como surdos. Continuamos a dizer que somos normais com nossa lngua de sinais, com o nosso jeito de ser surdos. Nossas posies de resistncia, como referem nossas nostalgias, tm de reivindicar iseno regra universal das identidades. Temos de seguir resistindo ou nos encontraremos em campos que nos obrigam a perecer. Da ento, simplesmente surdos, com os direitos3 que nossas representaes esto exigindo.

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A UNESCO j tem prontos os direitos humanos de minorias lingsticas, ou seja, inventados enquanto minoria lingstica, temos direitos enquanto sujeitos surdos. Este tambm se constitui em tema no Encontro Mundial dos Surdos realizado em Barcelona, Espanha, 2007.

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II..... ento um grupo cultural parte. Um grupo que realmente investe na deciso de ser diferente. De transformar o anormal em normal no cotidiano da vida. um jogo perverso que se instaura. Jogo entre o que nossa inveno e o que inventaram sobre ns. Porque jogo inventado? prprio do modernismo criar uma alteridade para o outro e obrig-lo a segui-la. Neste ponto, a universalizao e a historicizao se confrontam num afrontamento em que riscos esto presentes num movimento sinuoso que envolve. Grupo cultural que hoje prossegue e atinge novos pices passa a carecer novos escales onde se arquitetam os artefatos da cultura e se fortalecem e unem as razes culturais que a histria sepultou. Hoje, sados dos esconderijos, das sepulturas, liberados para a cidadania do ns, estamos em movimento. Certas facetas do mundo contemporneo nos remetem a olhares diferentes em diferentes sentidos.

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III.... cultura. Deixamos margem o princpio universal e colocamos a enfatizao de nossa cultura como necessria nossa sobrevivncia. nosso princpio, a nossa nostalgia mais imensa e obstinada: a qualidade de vida, de comunicao, da diferena, que nos considerem sujeitos culturais e no nos considerem deficientes. Surgem a os pontos de referncias culturais, diferena de ser diante dos no-surdos que se propaga pelos artefatos culturais: nossos lderes surdos, a lngua de sinais, a escrita de sinais, histria, pedagogia, didtica, literatura, artes, etc. Ento, se aludimos ao desenvolvimento sustentvel enquanto cultura surda, estamos nos referindo a um paradigma que atualmente

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visa pontos de busca de esforo crescente da presena pedaggica em todos aspectos culturais que trazemos presente. Porque nossa acirrada enfatizao cultural na diferena? Terry Eagleton4 analisa a cultura como uma questo de auto-superao e ao mesmo tempo de auto-realizao. O autor cita que se a cultura celebra o eu na diferena, tambm o disciplina esttica e essencialmente. A cultura, nesse sentido, une nossas moldagens como povo surdo. Assim, a teoria cultural deveria estar se voltando para questes to importantes do povo surdo, sobre os contornos ticos, morais sustentados e politicamente dominados por uma administrao arbitrria de alguns no-surdos envolvendo questes de direitos humanos.

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.... os diferentes dos no-surdos, dos surdos implantados ou dos deficientes auditivos. A estes grupos no interessa nossas lutas, elas lhes dizem de outras paragens sem interesse, sem encanto. A ns isto importante. Compreendemos os choques culturais. Conhecemos de norte a sul as necessidades destes outros grupos, ns as recomendamos e damos a eles os exemplos de nossas resistncias para que prossigam nas suas conquistas. E os informamos de nossas lutas no acabadas.... Os estilos de nossos escritores afirmam certas verdades e as defendem de possveis ataques. O que importa nestes escritos que eles tm muito a dizer sobre nossas identidades diferentes em diferentes momentos e que aludem nossos interesses sem se importarem com a tutorizao da linguagem e a falsidade de alguns discursos que nos mantm na deficincia.

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EAGLETON, Terry. A idia de cultura. So Paulo: UNESP, 2005.

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Esta informao delineia ainda mais a preocupao da pesquisa nos Estudos Surdos. O que toma conhecimento de uma poro da realidade da diferena tem acesso direto pela experincia. Diferem os problemas vivenciados e registrados por estes grupos e so sofridos e enfrentados de maneira diferente. Tivemos nossos naufrgios na histria, dificilmente alguns de ns viemos a tona. A histria nos colocou todos como prias sociais, como deserdados e toda sorte de esteretipos, menos valias nos colocaram todos com os mesmos caracteres, todos no constantes dos espaos de desenvolvimento do pas, apesar da visibilidade de nossas diferenas. O triste espao da deficincia foi o libi para nos manterem baixas do progresso. Usurparam nossa diferena e disso sequer poderamos sair pelos cadeados colocados aqui e ali.

V..... mrtires destas jornadas pela diferena, poucos de ns conseguimos pular para dentro do veculo do progresso e com afinco trazer para as pginas de espaos acadmicos novas posies, novos achados cientficos longe daquelas palavras que sustentam a farsa sobre ns e que impem a dita anormalidade. Gladis Perlin

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Enfim, uma forma de prefacear Estudos Surdos II...Estudos Surdos II d seqncia Srie Pesquisas publicada pela Editora Arara Azul em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina, com financiamento da CAPES/PROESP. A proposta da Srie Pesquisas em Estudos Surdos visa socializar as pesquisas nesse campo de investigao. Pesquisadores surdos, professores,

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mestres e doutores, bem como pesquisadores no-surdos esto produzindo investigaes para irmos alm das discusses que focam no Portugus escrito dos surdos, tema de longa data nessa rea. Os estudos trazidos nessa Srie nos trazem questes relacionadas com os saberes e os poderes que permeiam a educao de surdos no Brasil. Os autores de Estudos Surdos II colocam que h algo necessrio para ser vivido na cultura. Seguem com paixo falando sobre as novidades que situam os surdos enquanto povo na diferena. Eles escrevem sobre o ser intelectual surdo, ser surdo, ser professor surdo, o currculo de lngua de sinais na perspectiva surda. As pesquisas relatadas resultam de lutas conquistadas aps estranhamentos e forte impacto cultural, vividas na experincia. Karin Lilian Strbel transita pela histria cultural. Seu artigo analisa as identidades e representaes dos surdos produzidas na histria e estabelece relaes entre os discursos de povos no-surdos e os discursos do povo surdo. Ela discute o jogo de espelhos existente nas representaes do surdo que forma redes de poderes de ambos os lados. Refere-se s vidas e experincias de alguns dos sujeitos surdos que se destacam na histria cultural, vestgios histricos que no so visibilizados pela sociedade. Sujeitos conhecidos atravs de vrios discursos, fatos que marcaram a histria da humanidade nada referem inveno de surdos. Faz uma reflexo sobre o porqu e como se d esta representao da identidade surda dos discursos oficiais, tais como os registros histricos em vrios livros, enciclopdias, jornais, artigos. Patrcia Marcondes Amaral da Cunha nos brinda com anlises dos discursos sobre a surdez e a produo de redes de saber-poder das professoras de uma escola bilnge (Lngua Brasileira de Sinais

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e Lngua Portuguesa) em relao incluso de crianas surdas associadas com outras deficincias (chamadas de mltiplas). As anlises que resultam de sua pesquisa de mestrado trazem elementos que nos levam a desconstruir a perversidade que se constitui na relao com o outro pautada em relaes de saber-poder: entre o ser surdo e o mltiplo a partir da Lngua de Sinais. Por outro lado, como que o ser surdo mltiplo pode passar a se constituir enquanto ser surdo nesses espaos ditos inclusivos? Flaviane Reis escreve sobre o ambiente da vida contempornea e a relao professor surdo e alunos surdos na escola. Reflete sobre alguns conceitos impostos a essa relao como se fossem confiados, sem uma prvia anlise da complexidade de seus significados. Prope que preciso desconstruir a viso do professor surdo enquanto modelo, bem como repensar os conceitos que provocam, de certa forma, crises de representao. A autora compartilha sua pesquisa desenvolvida durante o mestrado, em que realizou uma anlise acerca do processo identificatrio estabelecido na relao ensino-aprendizagem entre professor surdo e alunos surdos, observando a importncia desse processo para a construo dos conhecimentos no espao escolar. Ana Regina de Souza Campello nos traz um captulo sobre a Pedagogia Visual/Sinal. Ela apresenta algumas consideraes sobre esta diferente pedagogia visual e sua presena na educao de surdos. Brinda-nos com alguns exemplos desta pedagogia usada em sala de aula, oferecendo uma traduo dessa pedagogia. Rodrigo Rosso Marques est escrevendo sobre as suas experincias com Jovens e Adultos. Ele prope um dilogo entre educao e cultura. Para ele, a educao das pessoas surdas vem evoluindo constantemente e evidencia uma situao problemtica. O que e como ensinar s pessoas surdas?, uma questo que atormenta

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os educadores no-surdos. Neste espao, o autor expe algumas questes sobre a educao, bem como sobre os sujeitos que lidam com ela. Carolina Hessel Silveira prope uma constante e atual reflexo sobre o currculo da Lngua de Sinais em escolas de surdos. A autora faz uma sntese de alguns tpicos da prtica educacional, focalizando no cotidiano do ensino da Lngua de Sinais na sala de aula. A partir de entrevistas com professores surdos, Carolina traz elementos que fazem parte da atividade pedaggica desses professores. A identidade surda, as polticas surdas, a histria dos surdos, aspectos da cultura surda fazem parte das prticas pedaggicas, embora no sejam explicitadas nos currculos. A autora observa que os currculos precisam ser desconstrudos e construdos em uma perspectiva surda. Ela observa que o currculo necessita ser conectado com polticas surdas, se refletindo na maior presena de professores surdos nas escolas para surdos. Constata que, de maneira geral, os professores surdos enfatizam a importncia do ensino de Lngua de Sinais para os alunos surdos representarem sua diferena. Franklin Ferreira Rezende Junior e Patrcia Luiza Ferreira Pinto se apresentam como um casal surdo, que se inquieta com a experincia de serem surdos. Eles escrevem sobre os surdos nos rastros da sua intelectualidade especfica. Para eles, no importa tematizar a surdez. Eles querem reforar, segundo compreendem, aquilo que evita a subalternizao do sujeito surdo, querem trazer para as pginas do artigo o ser sujeito surdo, como criana, jovem, adolescente e velho, na diferena. Para os autores, o sujeito surdo est nos seus espaos, nos seus territrios, nos seus locais, na imensido destes ambientes, na contestao, nos debates..

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Maringela Estelita considera o que sempre de novo premia nossa Lngua de Sinais com falta de escrita. Seu artigo sobre a ELiS (Escrita das Lnguas de Sinais), um sistema de escrita de estrutura alfabtica ou seja, baseado na representao de fonemas/quiremas foi criado pela prpria autora com inteno de tornar a forma escrita parte da vida cotidiana de usurios de lnguas de sinais. A autora no se detm apenas em contextualiz-la, mas traz seus primeiros momentos de criao, apresentando o estado atual dessa criao. um texto que causa impacto, pois a Lngua de Sinais passa a ocupar espaos de pesquisa, sendo reconhecida sua inegvel diferena. Ronice Mller de Quadros e Mara Massutti trazem elementos sobre os filhos ouvintes de pais surdos, identificados como Codas. As autoras fazem uma reflexo sobre as zonas de contato entre a Lngua de Sinais Brasileira e a Lngua Portuguesa, zonas estas que vo muito alm das lnguas, zonas fronteirias que invadem os espaos de uma ou de outra, zonas que se entrecruzam. Esse texto traz questes relevantes para se pensar sobre a diferena do ser surdo e serve, tambm, como algo a ser dito para os prprios pais surdos que, na maioria das vezes, tm filhos ouvintes. A experincia trazida pelas autoras oferece elementos para se pensar sobre as zonas de contato e sobre as formas possveis das relaes entre e nas culturas. De uma perspectiva surda e ouvinte, os relatos de um Coda trazem elementos que podem ser olhados entre lugares e nos lugares. Assim, ento, encerra-se o segundo volume da Srie Pesquisas: Estudos Surdos, tendo a contribuio de vrios pesquisadores surdos como autores da prpria histria, autores das pesquisas surdas, autores do seu prprio ser. Ronice Mller de Quadros e Gladis Perlin

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Captulo I

Histria dos surdos: representaes mascaradas das identidades surdas

Karin Lilian Strbel*

Ns ramos chamados de surdos-mudos, mudos, objetos de piedade, surdos e estpidos, dos semimudos, objetos de uso e agora, ouvidos danificados. Ns ramos descritos como um dos filhos dos homens mal compreendidos entre os filhos do homem Alguns de ns so surdos e alguns de ns so Surdos. Alguns de ns usamos a Lngua de Sinais Americana e alguns de ns no. A nossa presena no revelada e a maior parte da histria desconhecida. Esta a histria americana... Atravs dos olhos surdos1. Jack R. Gannon

*Doutoranda em educao da UFSC. 1 Traduzido do ingls pela doutoranda Ana Regina e Souza Campello.

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Este artigo analisa as identidades e representaes do surdo produzidas na histria de surdos e estabelece relaes entre os discursos ouvintistas2 e os discursos do povo surdo3. Existe um tipo de jogo de espelhos nas representaes do surdo que forma redes de foras e estratgias de poderes de ambos os lados, e se refere s prticas dos sujeitos famosos, sobre as suas percepes cotidianas nos vestgios histricos da sociedade, envolvendo identidades surdas camufladas, isto , mascaradas. Estes seres famosos so sujeitos conhecidos atravs de vrios discursos oficiais por meio de feitos que marcaram a histria da humanidade, por exemplo, a inveno da luz, em performances nos cinemas e televises, participao na poltica e outros. No entanto, estes registros nada referem a respeito de que estes mesmos famosos so surdos. Fao uma reflexo sobre o porqu e de como se d esta representao exonerada e disfarada da identidade surda dos discursos oficiais, tais como os registros histricos em vrios livros, enci-

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Ouvintista: segundo SKLIAR, um conjunto de representaes dos ouvintes, a partir do qual o surdo est obrigado a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte. (1998, p 15) 3 Povo surdo: Conjunto de sujeitos surdos que no habitam o mesmo local, mas que esto ligados por uma origem, tais como a cultura surda, usam a lngua de sinais, tm costumes e interesses semelhantes, histrias e tradies comuns e qualquer outro lao compartilhado. (Strbel, 2006, p.6)2

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clopdias, jornais, artigos, etc, nas atividades e vidas de sujeitos famosos no seu cotidiano. As representaes sociais, de modo geral, analisam a forma discursiva da linguagem na qual se estimulam as identidades imaginrias, isto , sendo concebidos como seres ouvintes4, em uma dimenso histrica, no contexto agradvel e aceitvel para a sociedade. Sobre a representao, PESAVENTO diz: A fora das representaes se d no pelo seu valor de verdade, ou seja, o da correspondncia dos discursos e das imagens com o real, mesmo que a representao comporte a exibio de elementos evocadores e mimticos. Tal pressuposto implica eliminar do campo de anlise a tradicional clivagem entre real e no-real, uma vez que a representao tem a capacidade de se substituir realidade que representa, construindo o mundo paralelo de sinais no qual as pessoas vivem. (2005, p.41) Nas representaes diferenciadas acerca de surdos que se destacaram e tiveram influncias ao longo da histria, cada sujeito surdo torna-se participante obrigatrio em uma competio que vai determinar se vai ser estereotipado ou no, porque se no falar ou ouvir como o esperado pela sociedade, poder ser definido como possuidor de uma incapacidade ou de incompetncia, como explica Grigorenko (apud STERNBERG e GRI-

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ouvinte: palavra muito usada pelo povo surdo para designar aqueles que no so surdos.

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GORENKO): Rotular algum como possuidor de uma aptido ou de dificuldade de aprendizagem o resultado de uma interao entre o indivduo e a sociedade em que ele vive (2003, p.16). LANE (1992) comenta que o povo ouvinte, quando questiona quem so os surdos, levanta algumas suposies sobre as representaes dos mesmos atravs de leituras restringidas sobre o mundo de surdos. No tendo onde se basear, podem ocorrer algumas suposies distorcidas e errneas. Tambm explica WRIGLEY (...) Se usarmos o modelo mdico do corpo, herdado do sculo XIX, a surdez comumente vista como uma simples condio (1996, p.11). (...) na realidade, os membros da comunidade dos surdos americanos no so tipicamente isolados, incomunicveis, desprovidos de inteligncia, no tem comportamentos de criana, nem so necessitados, no lhes falta nada, ao contrrio do que poderamos imaginar. Ento porque razo pensamos que lhes falta tudo? Estes pensamentos incorretos surgem do nosso egocentrismo. Ao imaginar como a surdez, eu imagino o meu mundo sem som um pensamento aterrorizador e que se ajusta razoavelmente ao esteretipo que projetamos para os membros da comunidade dos surdos (...) (LANE, 1992, p.26) A sociedade no conhece nada sobre povo surdo e, na maioria das vezes, fica com receio e apreensiva, sem saber como se relacionar com os sujeitos surdos, ou tratam-nos de forma paternal, como coitadinhos, que pena, ou lida como se tivessem uma doena contagiosa ou de forma preconceituosa e outros esteretipos causados pela falta de conhecimento. Fao meno de um acontecimento na infncia de uma surda:

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Os meus colegas no me aceitavam porque tinham receio que a surdez pegasse como uma doena contagiosa, eles tinham medo de falar comigo, achando que eu no iria compreender, sempre que estava na fila por ordem de chegada, s vezes a primeira, por morar prximo escola, eles me puxavam pelos meus longos cabelos negros que estavam tranados como uma ndia, me arrastavam e colocavam como ltima da fila; sem entender muito bem, eu aceitava as imposies. (VILHALVA, 2001, p.19) O povo ouvinte, por falta de acesso a informaes, nomeia erroneamente as representaes de surdos, como relata a experincia de Carol5, surda:

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Como acontece com muita gente hoje em dia, ao se depararem com um surdo, ficam com impresso de sermos diferentes delas. Pois elas no conhecem profundamente os surdos, como tambm nunca tiveram oportunidade para trocarem umas palavrinhas com os surdos, por isso que na primeira vez que nos vem, precipitam-se tomando-nos por estranhos, tratando-nos de outro modo (...), digo que tive um pouco dessa culpa, porque em vez de reagir, deixei que eles me tomassem por estranha (...) se no fosse por isto, no teria tomado conhecimento das palavras: preconceito e marginalizao, nem mesmo das dificuldades que ns surdos passamos no dia-a-dia. (Strbel, 2006, p.34)

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Nome fictcio para proteger a privacidade da pessoa.

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De acordo com LANE (...) porque a linguagem e a inteligncia esto muito interligadas, quando tentamos classificar uma pessoa (...), a surdez surge como deficincia do intelecto. (..) O mudo do surdo e mudo surge no s para fazer referncia mudez, como tambm fraqueza da mente. (1992, p.24). Temos as variaes de representaes no decorrer de histria de surdos e ao lado destas representaes, baseadas nos discursos ouvintistas, encontramos os vrios esteretipos negativos acerca de surdos, tais como o mudo, deficiente, anormal, doente e outros. Talvez, a mais sofrida de todas as representaes no decorrer da histria dos surdos a de modelar os surdos a partir das representaes ouvintes. WRIGLEY reflete sobre esta afirmao: (...) para o oralista, convencionalizao tem o objetivo mais amplo: as crianas surdas passaro por ouvintes, tornando-se assim aceitveis como pessoas que parecem ouvir (1996, p.47). Esta representao ouvintista ainda est presente atualmente, muitas vezes a sociedade quer que os surdos sejam curados, direcionando-os para a iluso da esperana da normalizao. Relata a surda LABORIT: O ortofonista nos havia dito para no nos inquietarmos porque voc iria falar. Deu-nos uma esperana. Com reeducao e os aparelhos auditivos, voc se tornaria uma ouvinte. Atrasada, certamente, mas voc chegaria l. Espervamos tambm, mas era completamente ilgico que voc um dia fosse, por fim, escutar. Como uma mgica. Era to difcil aceitar que voc havia nascido em um mundo diferente do nosso. (1994, p.24)

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Voltando a Wrigley, ele explica que a poltica ouvintista predominou historicamente dentro do modelo clnico e demonstra as tticas de carter reparador e corretivo da surdez, considerado-a como defeito e doena, sendo necessrios tratamentos para normaliz-la: (...) surdos so pessoas que ouvem com ouvidos defeituosos. Se pudssemos consertar os ouvidos, eles estariam ouvindo. Esta lgica comum na verdade comum, mas no necessariamente lgica. Os negros so pessoas brancas que possuem pele escura. Se pudssemos consertar a pele, eles seriam brancos. As mulheres so homens com genitria errada...; e por a vai. Essas transposies cruas revelam um tecido social de prticas pelas quais ns sabemos quais identidades so tanto disponveis quanto aceitveis. (WRIGLEY, 1996, p.71) MOSCOVICI analisa a representao social como uma formao de um outro tipo de conhecimento adaptado a outras necessidades, obedecendo a outros critrios, num contexto social preciso (1978, p. 24). Para este autor, as representaes sociais se formam principalmente quando as pessoas esto expostas s instituies, aos meios de comunicao de massa e herana histrico-cultural da sociedade. A trajetria histrica dos surdos faz referncia a atendimentos sobre como as representaes dos surdos seguem um padro por parte dos educadores, mdicos, fonoaudilogos, entre outros, que atuam com estes sujeitos. Como diz PERLIN, em sua tese de doutorado,

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(...) discurso constitudo tem sua historicidade, teve seus incios diretamente com os profissionais que trabalharam diretamente com os surdos. Os profissionais se apresentaram em campos distintos: escola e clnica. As representaes para os surdos na escola e na clnica foram produzidas em articulaes discursivas que os representam, nomeiam, definem, limitam, explicam, normalizam e mesmo alteram sua identidade. ( 2003, pg 38) Neste discurso, o sujeito surdo, para estar bem integrado sociedade, deveria aprender a falar, porque somente assim poderia viver normalmente. Se no conseguir, considerado desvio, como ressalta LOPES: Os movimentos de educar e de normalizar as pessoas surdas eram feitos pela escola deslocando da representao de invalidez as alunas surdas para uma outra representao que trazia rupturas para o projeto definido pela modernidade de lugares destinados s diferenas tidas como problemticas. (2004, p.41) Com isto, brotou a necessidade de aperfeioar a qualidade de vida dos sujeitos surdos, realada pelos princpios que norteiam a incluso e a normalizao e pela evoluo do conceito de promoo de sade. Por exemplo, estimular para que os sujeitos surdos aprendam a falar e a ouvir, fazendo com que aparentem ser ouvintes, isto , usarem identidade mascarada de ouvintes, tendo a surdez fingida ou negada. Cito o exemplo do famoso inventor do telefone, Alexander Graham Bell, cuja me

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e sua esposa eram surdas. Segundo SACKS(1990), elas tinham a identidade da surdez negada. Sabe-se que, de modo geral, a representao social respinga a averso ou vem de forma paternalista sobre quem deficiente. Houve um tempo em que o sujeito surdo era tratado como um ser doente ou anormal e defeituoso (LANE: 1990, p. 479). LANE esclarece, a respeito das representaes dos surdos, que a surdez no um privilgio para a sociedade, porque os surdos no podem apreciar msicas, nem participar de uma conversa, no ouvem anncios ou utilizam o telefone; o sujeito surdo anda toa, parece que est numa redoma; existe uma barreira entre ns, por isto o surdo est isolado (1992, p.23). Esta viso ouvintista incapacita o sujeito surdo e no respeita a sua lngua de sinais e sua cultura. A falta de audio tem um impacto enorme para a comunidade ouvinte, que estereotipa os surdos como deficientes, pois a fala e audio desempenham o papel de destaque na vida normal desta sociedade. De acordo com SKLIAR, a prtica ouvintista se traduz por: (...), nesse olhar-se, e nesse narrar-se que acontecem as percepes do ser deficiente, do no ser ouvinte; percepes que legitimam as prticas teraputicas habituais (1998, p.15). O que ser diferente? No seria igual ou no gostar das mesmas coisas? Com isto, muitas vezes os sujeitos surdos ficam com vergonha de suas identidades surdas na sociedade e tm medo de contar a algum para no prejudicar a si prprios, pois no querem ser vistos como doentes ou anormais. O pesquisador surdo MIRANDA (2001, p.23) adverte quanto identidade surda: Ela ameaada constantemente pelo outro. Este outro pode se referir aos surdos que optaram pela

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representao da identidade ouvinte. Esta poltica de representao geralmente ter uma incidncia negativa. Ento, se um sujeito surdo se sobressai e excepcionalmente aprendeu a falar e a ler os lbios, isto faz muita diferena na representao social. De fato, quanto mais insistem em colocar mscaras nas suas identidades e quanto mais manifestaes de que para os surdos importante falar para serem aceitos na sociedade, mais eles ficam nas prprias sombras, com medos, angstias e ansiedades. As opresses das prticas ouvintistas so comuns na histria passada e presente para o povo surdo. Cito alguns exemplos de identidade mascarada: o inventor da luz eltrica, Thomas Edison, era mau aluno na escola, pouco assduo e desinteressado. Saiu da escola e foi alfabetizado pela me. Aos 12 anos, vendia jornais, livros e foi telegrafista numa ferrovia. Aos 31 anos, props a si mesmo o desafio de obter luz a partir da energia eltrica. Procurei em muitas enciclopdias, artigos, revistas e, na maioria dessas referncias bibliogrficas, nem citam que ele era surdo. Por que no? Ser que, para a sociedade, difcil conceber que um sujeito surdo possa ser um gnio a ponto de inventar a luz eltrica? Durante a infncia, Thomas Edison teve uma srie de infeces de ouvido que no foram propriamente tratadas. Pelo menos em uma delas, houve a reteno de fluido no ouvido mdio. Artrite tambm foi mencionada como causa. Alm disso, ele teve escarlatina. mais provvel que a verdadeira causa da deficincia auditiva de Thomas Edison seja uma das explicaes mdicas. Mas, seja l qual for a razo, ele uma vez disse: Eu no ouo o canto de um pssaro desde que tinha treze anos. (Acessado: 16/10/2006, http://www. workersforjesus.com/dfi/785por.htm)

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thomas alva edison Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Edison

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Gasto de Orlans, o Conde dEu, era um nobre nascido na Frana e, por ser francs e ter direito a ocupar o trono na condio de prncipe consorte, tornou-se um dos fortes motivos da deposio de D. Pedro II e da proclamao da Repblica do Brasil. Conde dEu casou-se com a Princesa Isabel, herdeira do trono de Pedro II, adotou a nacionalidade brasileira e ambos se empenharam na abolio do regime escravagista. Ser que o imperador D. Pedro II6 se interessou na educao de surdos devido ao seu genro, o prncipe Gasto de Orlans, marido de sua segunda filha a Princesa Isabel, ser surdo? No entanto, em muitas enciclopdias e artigos, nada consta sobre sua

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O Eduard Huet (1822- 1882) o sujeito surdo com conhecimentos de metodologia de ensino aos surdos em Paris, no ano de 1855 chega ao Brasil sob convite do imperador D.Pedro II, com a inteno de abrir uma escola para sujeitos surdos no Rio de Janeiro. (Strbel, 2006, p.89)

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surdez, embora esteja confirmado em um livro7 de biografia da vida de Princesa Isabel.

gasto de orlans, o conde deu Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/ Conde_dEu

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Outra figura famosa que a sociedade no sabe que surdo Lou Ferrigno, fisiculturista e ator que ficou mundialmente famoso por participar da srie de televiso O incrvel Hulk. Consta que (...) teve uma grave infeco auditiva na infncia, causando a perda de 85% da audio. Tal problema foi descoberto apenas aos 3 anos de idade (acessado 16/10/2006, http:// pt.wikipedia.org/wiki/Lou_Ferrigno)

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Isabel, a Redentora dos Escravos, de autoria de Robert Daibert Junior, EDUSC: 2004.

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lou ferrigno Fonte: http://www.omelete.com.br/tv/artigos/base_para_artigos.asp?artigo=107

flou ferrigno Fonte: http://www1.uol. com.br/diversao/noticias/ult100u593.shl

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O povo surdo tem a cultura surda, que representada pelo seu mundo visual. No entanto, a sociedade em geral no a conhece e por isso nada deve ser dito sobre ela. Para representao social precisamos nos submeter cultura do colonizador, neste caso a cultura ouvinte, na forma de como ela . Segundo a sociedade colonizadora, nascemos num mundo que j existia antes de deparar com a existncia de povo surdo, e deste modo, devemos nos adaptar a este mundo e aprender com ele. Esse mundo coloniza-

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dor sobreviver com a nossa estadia, sendo s permitido ao povo surdo o esforo na tentativa de se igualar aos colonizadores, isto , aos sujeitos ouvintes, procurando agradar a sociedade usando as identidades mascaradas. A representao est associada identidade pessoal de cada sujeito, assim como afirma SILVA: (...) a representao concentra-se em sua expresso material como significante: um texto, uma pintura, um filme, uma fotografia. (...) as conexes entre identidade cultural e representao, com base no pressuposto de que no existe identidade fora da representao. (2000-a, p.97). A aceitao do termo surdo como mais apropriado (...) representa tambm uma tentativa de minimizar o processo de estigmatizao dessas pessoas, (...) atravs do qual a audincia reduz o indivduo ao atributo gerador do descrdito social. A expresso surdo, como vem sendo empregada, tem favorecido identificar a pessoa como diferente, sendo esta diferena particularizada por ser decisiva para o desempenho. (DORZIAT, 2002, p.2) SILVA afirma que a identidade e a diferena esto estreitamente conectadas aos sistemas de significao no qual um significado cultural e socialmente atribudo. A identidade e a diferena esto estreitamente condicionadas representao, que d o poder de definir e determin-las: (...) por isto que a representao ocupa um lugar to central na teorizao contempornea sobre identidade e nos movimentos sociais identidade (2005, p.91).

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Representao social Deficiente A surdez deficincia na audio e na fala A educao dos surdos deve ter um carter clnico-teraputico e de reabilitao Surdos so categorizados em graus de audio: leves, moderados, severos e profundos A lngua de sinais prejudicial aos surdos

Representao de povo surdo Ser surdo8 Ser surdo uma experincia visual A educao dos surdos deve ter respeito pela diferena lingstica cultural As identidades surdas so mltiplas e multifacetadas.

A lngua de sinais a manifestao da diferena lingstica relativa aos povos surdos.

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Antigamente, os sujeitos surdos eram aprisionados pela representao social com muitos esteretipos negativos, como foi visto acima. Entretanto, no presente, aprisionamo-nos para tentar nos afastar deles, construindo cada vez mais o respeito pela cultura surda atravs da construo de identidades surdas. O povo surdo cresceu a tal ponto que j no mais possvel tampar o sol com a peneira, como assegura MCCLEARY sobre o povo surdo: (...) no s o orgulho que eles tm da sua lngua e da sua cultura. o prprio orgulho de ser surdo, (...) diga para8

Segundo PERLIN e MIRANDA, ser surdo (...) olhar a identidade surda dentro dos componentes que constituem as identidades essenciais com as quais se agenciam as dinmicas de poder. uma experincia na convivncia do ser na diferena (2003, p.217).

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um ouvinte Eu tenho orgulho de usar a lngua de sinais brasileira. Qual pode ser a reao dele? Ele pode pensar, Sim, claro! Os gestos so muito bonitos e expressivos! Mas no por isso que voc tem orgulho! Voc tem orgulho porque quando voc usa a lngua de sinais, voc pode ser surdo e feliz ao mesmo tempo. (2003, p.1) Os povos surdos no so obrigados a ter a normalidade. A mscara no esconde o ser que o surdo, o ser surdo que humano... Quando a sociedade deixa o surdo ser ele mesmo, carece tirar as mscaras e assim chega o momento de o povo surdo enfrentar a prtica ouvintista, resgatar-se e transformar-se no que de direito: partes de ns mesmos, de termos orgulho de ser surdo! MCCLEARY (2003) alega que o orgulho de ter identidade surda um ato poltico. porque o sujeito surdo comea a agitar o mundo do ouvinte. O ouvinte comea a ter menos controle sobre o povo surdo. O povo surdo se auto-identifica como surdo que forma um grupo com caractersticas lingsticas, cognitivas e culturais especficas, sendo considerado como diferena. Refletem PERLIN E MIRANDA (...) ser surdo, a diferena que vai desde o ser lder ativo nos movimentos e embates que envolvem uma determinada funo ativa, at daqueles outros que iniciam contatos nos contornos de fronteiras9 (2003, p.217).

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Entendemos as identidades essenciais, ou ainda um essencialismo estratgico de que fala Bhabha como constantes do centro de um disco elstico em torno do qual existem as fronteiras, nesse sentido contornos de fronteiras. Andar na fronteira equivale ao hibridismo. (PERLIN e MIRANDA, 2003, p.224)

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Concluindo, a representao surda tem procurado abrir um espao igualitrio para o povo surdo, procurando respeitar suas identidades e sua legitimao como grupo com diferencial lingstico e cultural. FERNANDES (1998) descreve o comovente momento especial de povo surdo: (...) resistindo s presses da concepo etnocntrica dos ouvintes, organizou-se em todo o mundo e levantou bandeiras em defesa de uma lngua e cultura prprias, voltando a protagonizar sua histria. A princpio, as mudanas iniciais vm sendo percebidas no espao educacional, atravs de alternativas metodolgicas que transformam em realidade o direito do surdo de ser educado em sua lngua natural. (p.21) Os povos surdos esto cada vez mais motivados pela valorizao de suas diferenas e assim respiram com mais orgulho a riqueza de suas condies culturais e temos orgulho de sermos simplesmente autnticos surdos! Sou surdo! O meu jeito de ser j marca a diferena! Neste ponto devia comear a dissertao. Ser surdo, viver nas diferentes comunidades dos surdos, conhecer a cultura, a lngua, a histria e a representao que atua simbolicamente distinguindo a ns surdos e comunidade surda uma marcao para sustentar o tema em questo. A idia de comunidade surda contestada e continuamente sendo

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reconstituda, particularmente diante da diferena defendida por poucos surdos e ouvintes de extrema esquerda, se apresenta mais como uma ameaa representao do outro surdo. (MIRANDA, 2001, p.8)

Referncias:DORZIAT, Ana. Deficiente Auditivo e Surdo: uma reflexo sobre as concepes subjacentes ao uso dos termos. http://www.geocities.com/flordepessegueiro/html/surdez/deficiente_auditivo_e_surdo.htm acessado em 28/07/2002 FERNANDES, Sueli de F. Surdez e Linguagem: possvel o dilogo entre as diferenas? Dissertao do Mestrado, Curitiba: UFPR, 1998. GANNON, Jack R. Deaf Heritage: a Narrative History of Deaf America. Estados Unidos, National Association The Deaf, 1981. JUNIOR, Joel Barbosa. www.diariodosurdo.com.br/entrevista/entrevistajoel.htm. Acessado em 17/04/2004. LABORIT, Emmanuelle, O vo da Gaivota. So Paulo: Ed. Best Seller, 1994. LANE, H. A Mscara da Benevolncia: a comunidade surda amordaada. Lisboa: Instituto Piaget, 1992. __________The Medicalization of cultural deafness in historical perspective. Boston USA, 1990. LOPES, Maura Corcini, A natureza educvel do surdo: a normalizao surda no espao da escola de surdos In THOMA, Adriana da Silva e LOPES, Maura Corcini (orgs), A Inveno da Surdez: Cultura, alteri-

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dade, Identidade e Diferena no campo da educao, Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2004. McCLEARY, Leland. (2003) O orgulho de ser surdo. In: ENCONTRO PAULISTA ENTRE INTRPRETES E SURDOS, 1, (17 de maio) 2003, So Paulo: FENEIS-SP [Local: Faculdade SantAnna]. MIRANDA. Wilson de Oliveira. Comunidade dos surdos: Olhares sobre os contatos culturais. (Dissertao do mestrado). Porto Alegre: UFRGS, 2001. MOSCOVICI, S. A Representao Social da Psicanlise, Rio de Janeiro: Zahar, 1978. MLLER, Ana Cludia. Narrativas surdas: entre representaes e tradues. Dissertao de Mestrado. PUC- Rio de Janeiro, 2002.36

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PERLIN, Gladis. Educao Bilnge para surdos: identidades, diferenas, contradies e mistrios. Tese de Doutorado, Curitiba: UFSC, 2003. ________________ e MIRANDA, WILSON. Surdos: o Narrar e a Poltica In Estudos Surdos Ponto de Vista: Revista de Educao e Processos Inclusivos n 5, UFSC/ NUP/CED, Florianpolis, 2003. PESAVENTO, Sandra J.; Histria & Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2005. SACKS, Oliver. Vendo Vozes: Uma jornada pelo mundo dos surdos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1990. SILVA, Tomz Tadeu da, Teoria Cultural e Educao: Um vocabulrio Crtico, Belo Horizonte, Autntica Editora, 2000 SKLIAR, Carlos, A Surdez: um olhar sobre as diferenas. Porto Alegre: Editora Mediao, 1998 STERNBERG, Robert J. e GRIGORENKO, Elena L. Crianas Rotuladas, Porto Alegre: Artmed, 2003.

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STRNADOV, Vera. Como ser Surdo. Petrpolis: Editora Babel, 2000. Strbel. Surdos: vestgios culturais no registrados na historia. (Dissertao de Mestrado). Florianpolis: UFSC, 2006 VILHALVA, Shirley, Recortes de uma Vida: Descobrindo o Amanh. Campo Grande/MS: Grfica e Papelaria Braslia, 2001. WRIGLEY, Oliver, Poltica da Surdez, Washington: Gallaudet University Press, 1996.

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Captulo 2

Cenas do atendimento especial numa escola bilnge: os discursos sobre a surdez e a produo de redes de saber-poder

Patrcia Marcondes Amaral da Cunha1

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Psicloga pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Mestre em Educao pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

c e n a s d o a t e n d i m e n t o e s p e c i a l n u m a e scola bilnge

Gostaria de comear falando da satisfao de, sendo ouvinte, poder compartilhar com outros pesquisadores surdos esse espao dos Estudos Surdos que tem sido constantemente criado e recriado no meio acadmico nos ltimos quarenta anos2. As produes nos permitem perceber no s as mudanas de rumos em termos de objetos de pesquisa e de orientaes tericas pela qual a rea tem passado, mas tambm a participao cada vez maior de acadmicos surdos discutindo questes que lhes so pertinentes. No entanto, como explica Quadros (2006) na introduo do primeiro volume dessa srie, essa caminhada no se deu num contexto livre de tenses. Alm disso, dentro de um referencial foucaultiano, o qual servir de base para a minha discusso, pode-se dizer que a narrao dos surdos por eles mesmos no necessariamente estaria carregada de uma maior veracidade ou autenticidade desse discurso sobre a surdez. So novos olhares que se constroem (e acredito que nesse ponto que reside a grande contribuio), mas que produzem, assim, novos objetos, eles mesmos carregados, como todo saber, de relaes de poder. Tendo esse pressuposto em mente, procuro pensar uma questo no muito freqente nos trabalhos e pesquisas que se localizam dentro dos Estudos Surdos, qual seja o discurso de professores sobre a escolarizao de um subgrupo de surdos, aqueles denomi2

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Em 1998, Skliar falava dos avanos em relao a esse conjunto novo de discursos e de prticas educacionais que se acentuara nas trs dcadas anteriores. Dez anos mais tarde, esse campo continua se desenvolvendo.

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nados por textos oficiais do Ministrio da Educao ou manuais de desenvolvimento psicolgico como deficientes mltiplos. Mais especificamente, busco analisar as relaes que se configuram entre dois grupos de alunos (os surdos e os deficientes mltiplos) dentro do espao de uma escola bilnge localizada no Estado do Rio Grande do Sul. Como procurarei mostrar, se para Foucault prtica e teoria no se dissociam, importante que se questione como os discursos sobre a educao de surdos tm entrado no espao escolar, orientado certas prticas e se alimentado delas. Este artigo consiste num recorte da minha dissertao de mestrado, a qual foi desenvolvida dentro da linha de pesquisa sobre o Ensino e Formao de Educadores. No se procurou ouvir o que as professoras diziam como a manifestao psicolgica do seu pensamento, mas levando em considerao os saberes que se cruzam na sua prtica com os alunos mltiplos. Mais alm, no se pretendeu categorizar esse discurso dentro do binarismo bom professor x mau professor, como se tem feito freqentemente nesse domnio de pesquisa3. As contribuies desse trabalho vo muito mais no sentido de apresentar e discutir as diversas posies de sujeito que as professoras podem ocupar e os efeitos que elas podem ter na prtica escolar cotidiana. No que diz respeito organizao desse texto, inicio retomando alguns construtos tericos de Foucault desenvolvidos em duas etapas de sua obra: a arqueologia e a genealogia, focando em alguns conceitos importantes para o debate. Num segundo momento, cito falas de trs professoras entrevistadas e de autores

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A esse respeito, ver MANTOAN (1997) e NUNES et al. (1998), GOMES e BARBOSA (2006).

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que pesquisaram questes surdas para analisar as repercusses desse discurso na escolarizao dos deficientes mltiplos. Concluo citando que perigos precisamos enfrentar diante desses novos contextos educacionais.

1. Um pouco de teoriaO projeto arqueolgico de Foucault sofreu grande influncia da epistemologia a partir dos pressupostos de autores como Bachelar e Canguilhem. Ora aproximando-se deles, ora contrapondo-se a eles, a prpria definio dos objetos de anlise conduziram Foucault a outros princpios metodolgicos, distantes da proposta de seus tutores. De forma resumida, nos seus primeiros trabalhos, como Histria da Loucura, O Nascimento da Clnica e As Palavras e as Coisas, o que Foucault buscou foi entender como aquilo que denominou de saberes apareciam e se transformavam, contrapondo-se aos epistemlogos que se preocupavam com a questo da cincia. Foucault rejeitou, ainda, a noo epistemolgica de progresso cientfico e estudou a descontinuidade4 dos saberes, focando sua anlise na constituio das cincias humanas. no texto da Arqueologia do Saber que Foucault esclarece questes que havia delineado em As Palavras e as Coisas, especialmente no que diz respeito ao mtodo que utilizara na sua anlise. Aps desmanchar as noes tradicionais de unidade do discurso,

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Veiga-Neto (2003) lembra que a palavra arqueologia usada para descrever esse processo de escavar verticalmente as camadas descontnuas de discursos j pronunciados muitas vezes de discursos do passado, a fim de trazer luz fragmentos de idias, conceitos, discursos talvez j esquecidos (p.54).

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no final da primeira parte da Arqueologia do Saber, Foucault avana no sentido de discutir quais as conseqncias dessas rupturas para a sua teoria do discurso. Ao mostrar que a medicina clnica, a economia poltica e a histria natural parecem ser uma disperso de elementos (pelas suas falhas, desordens, incompatibilidades, substituies), ele afirma, ao mesmo tempo, que elas podem ser descritas em sua singularidade se estabelecermos as regras segundo as quais so formados seus objetos, conceitos, enunciaes e opes tericas. Ao mesmo tempo em que a sua inteno era olhar os enunciados enquanto uma descrio pura, Foucault no quer simplesmente estabelecer diferenas nos moldes estruturalistas e muito menos elencar as diversas condies de possibilidades. O que o autor pretende falar das regularidades das transformaes que efetivamente acontecem. Trata-se muito mais de condies de existncia do discurso do que de possibilidades. Se, por um lado, a arqueologia permite, at certo ponto, desvincular teoria e prtica, para isolar discursos-objetos, a genealogia funcionar como ferramenta para investigar as prticas a partir do seu prprio interior, e ambas passaro a se complementar daqui para frente. A leitura dos textos de Nietzsche e a nova conotao que Foucault d aos conceitos genealgicos caracterizam uma nova etapa no seu pensamento sobre os saberes e, conseqentemente, sobre o sujeito. Em 1970, Foucault convidado para assumir o posto de Jean Hippolyte junto ao Collge de France, tornando-se responsvel pelos cursos anuais que lecionou at pouco tempo antes de sua morte em 1984. Nessa poca, Foucault retoma a promessa feita no final da Arqueologia do Saber e se debrua sobre temas como a relao entre a verdade, teoria, e valores e as instituies e prticas sociais

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nas quais eles emergem (DREYFUS e RABINOW, 1995, p.XXI). At aquele momento, a arqueologia tinha permanecido um pouco vaga enquanto instrumento de luta poltica. O que Foucault faz, ento, usar a genealogia nietzscheana para, ao contrrio, problematizar as formas por meio das quais a nossa concepo de mundo nos dada historicamente. Ao atribuir um objetivo crtico investigao arqueolgica, busca uma anlise para a revolta e controvrsia em torno do problema da subjetividade em nossa vida poltica e cultural (RAJCHMAN, 1987, p.99). Deleuze (2005) nos aponta em que direo aquele filsofo francs avana a partir dos conceitos apresentados em Nietzsche, a Genealogia e a Histria: entre 1971 e 1973, ele, Foucault e outros intelectuais estavam engajados no Grupo de informaes sobre as prises, o qual propunha um novo questionamento do problema do poder. Mais especificamente, eles rejeitavam as formas burguesas e marxistas de leitura do poder e tinham como prtica um tipo de luta social local, especfica, cuja unidade no advinha nem de um processo totalizante e nem centralizador. Na viso de Deleuze, a proposta da genealogia foucaultiana pode ser caracterizada, portanto, pela contestao de certos postulados que marcavam a posio tradicional da esquerda. Nesse trabalho faz-se referncia a trs desses postulados: a) Postulado da propriedade para Foucault no h a ciso entre aqueles que detm o poder e aqueles que dele so alienados ou, ainda, entre quem tem o direito de saber e quem mantido na ignorncia. O poder no se possui, mas ele se exerce a partir das estratgias. Como exemplo desse deslocamento contnuo de foras, o filsofo cita a configurao que se estabelece entre mdicos e pais para vigiar a sexualidade infantil, a qual acaba se modificando de

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tal modo que, a partir da relao entre o psiquiatra e a criana, a sexualidade adulta tambm seja colocada em xeque. b) Postulado da localizao o conceito de interstcio como esse no-lugar, onde as lutas se configuram, abre uma brecha para a crtica foucaultiana do Estado como um suposto centro de onde o poder emanaria. Segundo a genealogia, possvel dizer que o Estado aparece como um efeito das engrenagens do poder, constituindo microfsicas do poder. Conseqentemente, no h um poder global, mas uma estratgia global sustentada por estratgias locais, mas nem por isso localizveis devido ao seu carter difuso. Essas correlaes de fora podem se formar em grupos restritos e instituies como a famlia e, ao mesmo tempo, servirem de suporte para outros afrontamentos que os perpassem, como Foucault explica: Nenhum foco local, nenhum esquema de transformao poderia funcionar se, atravs de uma srie de encadeamentos sucessivos, no se inserisse, no final das contas, em uma estratgia global. E, inversamente, nenhuma estratgia poderia proporcionar efeitos globais a no ser apoiada em relaes precisas e tnues que lhe servissem, no de aplicao e conseqncia, mas de suporte e ponto de fixao. (2005b, p.95). c) Postulado da Modalidade a idia de que o poder age por violncia ou por alienao ideolgica tambm refutada por Foucault. Ele deixa claro que aquilo que define uma relao de poder uma forma de ao que no direta e imediata sobre os outros, uma ao sobre a ao. A relao de violncia, no seu ponto de

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vista, tem inerente a si a submisso e a anulao da resistncia e, desse modo, admite apenas o plo da passividade. Ao contrrio, a relao de poder se articula sobre dois elementos que lhe so indispensveis por ser exatamente uma relao de poder: que o outro (aquele sobre o qual o poder se exerce) seja inteiramente reconhecido e mantido at o fim como sujeito de ao; e que se abra, diante da relao de poder, todo um campo de respostas, reaes, efeitos, invenes possveis (FOUCAULT, in DREYFUS E RABINOW, 1995, p.243). O termo conduzir ou conduta teria a conotao que Foucault procura, tanto por referir-se ao de conduzir outros (a ao sobre a ao), como no sentido de definir formas de os outros se comportarem dentro de um espao definido de possibilidades. Em suma, o poder, no fundo, menos da ordem do afrontamento entre dois adversrios, ou do vnculo de um com relao ao outro, do que da ordem do governo (FOUCAULT, in DREYFUS E RABINOW, 1995, p.244). Ser no livro Vigiar e Punir que Foucault aprofundar as conexes entre o poder e as tcnicas de dominao do corpo. Segundo o autor, as mudanas na legislao penal do sculo XVIII descaracterizam antigas formas de ver a natureza das infraes e formalizam novas formas de punir e de enxergar o infrator, agora considerado delinqente. a partir desse novo modelo que so desenvolvidos procedimentos do poder disciplinar que tem como objetivo menos punir e mais promover uma modificao comportamental (em nvel do corpo e da alma), com a conseqente produo de corpos dceis. O corpo, que at ento deveria ser

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destrudo segundo as tcnicas de suplcio, agora serve de molde para construo de subjetividades. Com esse objetivo, utilizou-se a observao detalhada e ininterrupta, a classificao meticulosa, o controle estrito dos horrios e a elaborao dos dossis completos, propiciando a formao de saberes sobre os indivduos que continuamente atualizados, permitem reparti-los na priso, menos em funo de seus crimes que das disposies que demonstram. A priso torna-se uma espcie de observatrio permanente que permite distribuir as variedades do vcio ou da fraqueza (FOUCAULT, 2004c, p.104). Pode-se dizer que essa tecnologia disciplinar resultante de elementos transpostos de um modelo militar para a rea criminal, mas que no se restringe a ela, uma vez que a disciplina consiste na expresso articulada de prticas mais gerais que controlam indivduos e populaes e esto presentes em diversas instituies, como, por exemplo, a escola e o hospital. Tem-se ento que as atividades, pensamentos e comportamentos mundanos podem servir para entender os aspectos singulares desses indivduos (aptides, capacidades, evoluo) e tomar decises sobre onde melhor fix-los e como melhor manipul-los. Por outro lado, os dossis funcionam como matria-prima para elaborao de sistemas comparativos com o restante da populao. O curso do Collge de France: Em Defesa da Sociedade, que separa a publicao dos livros Vigiar e Punir e A Vontade de Saber, representa um espao para Foucault reavaliar alguns de seus pressupostos e delimitar as novas reas de pesquisa futuras. Nesta obra, uma das idias que o autor desenvolve como a teoria clssica da soberania atua, ou seja, este direito que o soberano tem sobre a vida e a morte de seus sditos. Portanto, o campo da vida e da morte no se localizaria apenas no domnio biolgico, mas tam-

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bm no domnio poltico. Contudo, a partir desse atributo, no se pode dizer que o soberano tenha nem o direito de deixar viver ou morrer e nem fazer viver ou fazer morrer, mas que o efeito do direito de poder fazer morrer o direito de deixar viver. Ainda que esta seja uma discusso de filosofia poltica, na qual Foucault no quer adentrar, preciso lembrar que, com as transformaes do direito poltico no sculo XIX, o direito de soberania foi complementado por outra noo, que o poder de fazer viver e de deixar morrer. Essa idia de proteo contra a ameaa vida, conforme o autor, orienta a constituio da figura de um poder absoluto e com isso lhe concede o direito sobre ela. Chega-se concluso, portanto, que a vida uma noo que orienta a escolha dos soberanos. Nos sculos XVII e XVIII, aparecem tcnicas de poder focadas no indivduo enquanto dimenso corprea. Ainda no final do sculo XVIII, entretanto, tendo em vista essa preocupao com a vida, possvel notar o desenvolvimento de uma tecnologia de poder que no exclui a primeira, mas que se articula nela, configurando-se como uma tecnologia no disciplinar que se dirige esfera do homem enquanto ser vivo, enquanto espcie. Foucault a chama de biopoltica. Os primeiros objetos e primeiros alvos da biopoltica so a preocupao com a natalidade, vista como taxa de reproduo e fecundidade de uma populao, e com a morbidade, pensada em funo da ocorrncia das doenas endmicas (e no mais apenas as epidmicas), que afetavam essa mesma populao. Aos poucos, vo se estabelecendo outras reas de atuao do biopoder: alm do estudo da doena enquanto fenmeno populacional, analisase a velhice e a anormalidade enquanto incapacidades biolgicas, alcanando propores maiores, ou seja, o estudo das cidades

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enquanto meio (geogrfico, climtico, hidrogrfico), que repercute na vida dos indivduos. As implicaes desses objetos que configuram nesse perodo podem ser organizadas em trs grupos. O primeiro deles referese ao aparecimento de um elemento at ento desconhecido da prtica disciplinar e da teoria do direito, que o corpo mltiplo, de inmeras cabeas, ou a populao. Alm disso, biopoltica suscita um interesse pelos fenmenos coletivos, de massa, e pela sua durao numa populao. A terceira implicao diz respeito s novas funes que o biopoder assume em relao s tcnicas disciplinares. No se pretende diferenciar, hierarquizar e normalizar de modo a modificar padres de certos indivduos; inversamente, por intermdio de medies globais, estatsticas e previses, busca-se determinar quais as determinaes desses fenmenos, de forma a promover a longevidade de uma populao inteira, de otimizar um estado de vida: No se trata, por conseguinte, em absoluto, de considerar o indivduo no nvel do detalhe, mas, pelo contrrio, mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilbrio, de regularidade; em resumo, de levar em conta a vida, os processos biolgicos do homemespcie e de assegurar sobre eles no uma disciplina, mas uma regulamentao (FOUCAULT, 2005c, p. 294). Essas duas vertentes convergem quando se trata da constituio de discursos que sustentam e, ao mesmo tempo, resultam dessas prticas de poder. A medicina, por exemplo, ganha uma importncia fundamental ao firmar esse vnculo entre o conhecimento cientfico e os processos biolgicos e orgnicos, ao mesmo tempo

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em que prope intervenes sociais. Foucault discute como essa articulao construda, ao tratar da forma pela qual a sexualidade indisciplinada traria conseqncias patolgicas para o indivduo, alm de comprometer as prximas geraes: [a sexualidade indisciplinada] tem sempre duas ordens de efeitos: um sobre o corpo, sobre o corpo indisciplinado, que imediatamente punido por todas as doenas individuais que o devasso sexual atrai sobre si. Uma criana que se masturba demais ser doente a vida toda (...) [ao mesmo tempo em que] uma sexualidade devassa, pervertida, etc., tem efeitos no plano da populao, uma vez que se supe que aquele que foi devasso sexualmente tem uma hereditariedade, uma descendncia que, ela tambm, vai ser perturbada, e isso durante geraes e geraes, na stima gerao, na stima da stima (2005c, p.301). O ponto onde poder disciplinar e biopoder se cruzam, desse modo, o elemento norma, j que se pode aplic-la tanto ao corpo que se quer tornar dcil (os procedimentos de sano normalizadora j exemplificaram como) quanto a uma populao que queremos regulamentar. A norma, conforme explica Veiga-Neto, o elemento que, ao mesmo tempo em que individualiza, remete ao conjunto dos indivduos; por isso, ela permite a comparao entre os indivduos. Nesse processo de individualizar e, ao mesmo tempo, remeter ao conjunto, do-se as comparaes horizontais entre os elementos individuais - e verticais entre cada elemento e o conjunto (2003, p.90).

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Levando em conta a importncia da norma nessa articulao, Foucault ento questiona o tema do direito de deixar morrer,5 quando o biopoder pretende garantir a vida dessa populao. Ou ainda, como exercer o poder de morte num sistema poltico centrado no biopoder? A resposta para essa questo se configura a partir da noo de racismo, que opera atravs de dois princpios: o primeiro deles, realizando uma separao entre o que deve viver e o que deve morrer em funo de critrios biolgicos de raa, de sangue. O segundo princpio desenvolver a idia de que para assegurar o bem-estar comum e a segurana da populao, necessria uma relao positiva entre a minha vida e a morte do outro. No se trata de uma relao guerreira (mato porque seno sou morto), mas que preciso assassinar o outro, o diferente, o anormal, para assegurar o fortalecimento da minha raa, da populao da qual eu fao parte: Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da sobrevivncia dos corpos e da raa que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens. E, por uma reviravolta que permite fechar o crculo, quanto mais a tecnologia das guerras voltou-se para a destruio exaustiva, mais as decises que as iniciaram e as encerram se ordenaram em funo da questo nua e crua da sobrevivncia (FOUCAULT, 2005b , p.129).

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Quando Foucault fala em morte, em tirar a vida, no entende apenas o assassnio direto, mas tambm tudo o que pode ser assassnio indireto: o fato de expor morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte poltica, a expulso, a rejeio, etc. (2005c, p.306).

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O que se observa nessa relao a proximidade entre a teoria biolgica (nos termos do evolucionismo, do sexo) e as relaes de poder, ou entre a morte dos outros fortalecimento biolgico do indivduo indivduo como membro de uma pluralidade unitria e viva. Dreyfus e Rabinow chegam mesmo a demonstrar que a prpria sociedade de normalizao aquela que cria os perigos e promove os meios para combat-los ou reformlos. Os autores ainda acrescentam que o desenvolvimento do biopoder contemporneo do aparecimento e da proliferao das prprias categorias de anomalias que as tecnologias de poder e saber supostamente eliminariam. A expanso da normalizao funciona atravs da criao de anormalidades que ele deve tratar e reformar (1995, p.214). Bem, no s o racismo, mas as demais tcnicas disciplinares do controle do tempo, do espao, das atividades, dos lugares ocupados por cada uma das personagens vo nos ajudar a estabelecer essa rede entre saber e poder que se articula nas prticas da escolarizao dos deficientes mltiplos. O objetivo desta introduo , portanto, situar o leitor com conceitos, assim como Deleuze acreditava que Foucault construa mapas, no para espelhar o terreno, mas para produzir utenslios de trabalho.

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2. Conhecendo a instituioSe em 1960 a escola surgiu como a Escola Municipal de SurdosMudos, dentro de uma proposta de oralizao, ainda no final daquela dcada ganhou o nome de Centro Educacional para De-

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ficientes da Audio e da Fala Gabriela Brimmer6. O ano de 1987, por sua vez, representou o momento em que houve a separao entre o atendimento clnico, realizado pela Associao Gabriela Brimmer, e a criao da Escola Municipal de 1. Grau incompleto Gabriela Brimmer, seguindo uma proposta de Comunicao Total7. Cinco anos mais tarde, em 1992, iniciou-se um processo de mudana da proposta pedaggica da instituio, com a implantao de um modelo bilnge8 de educao, passando a chamar-se Escola Municipal de Ensino Fundamental Gabriela Brimmer. O que importante ressaltar nessa trajetria, contudo, que esse modelo clnico de atendimento dos surdos, da surdez como deficincia, parece ter sido abandonado em lugar de uma proposta que concebe a surdez como uma experincia cultural e lingstica. Entre 1960 e 1992, a terminologia sofre mudanas:

O nome da escola foi alterado para resguardar a identidade da instituio na figura das professoras e dos alunos sujeitos da pesquisa. Daqui para frente, portanto, a escola ser denominada como Escola Municipal de Ensino Fundamental Gabriela Brimmer. As informaes contidas nesse histrico foram obtidas no site da escola. 7 Conforme Souza (1998), com a proposta da Comunicao Total, pretende-se desenvolver as possibilidades da criana estabelecer uma comunicao real, com completa liberdade de uso das diversas linguagens: sinais (incorporados da Libras), sinais criados para marcar aspectos gramaticais da lngua oral, o desenho, a dramatizao, o treino auditivo, o treino dos rgo fonoarticulatrios, a escrita, a expresso corporal, a linguagemafetiva, etc. Para esta autora, o lema dessa abordagem que o importante que a mensagem seja transmitida, no importa de que forma. 8 So denominadas escolas ou classes de educao bilnge aquelas em que a Libras (Lngua Brasileira de Sinais) e a modalidade escrita da Lngua Portuguesa sejam lnguas de instruo utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo (Decreto N. 5626, captulo VI, artigo 22, Perspectiva, Florianpolis, volume 24, n. Especial, 2006, p.304-313).6

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de surdos-mudos para deficientes da audio, e destes para surdos, deixando, inclusive, de aparecer no nome da escola. Nesse processo, Carlos Skliar9 teve um papel importante em termos da reestruturao da escola, iniciada em 1992, ao prestar assessoria aos demais profissionais da escola e corroborar com a idia de que a Lngua de Sinais funciona como um fator de identidade cultural dos surdos e se converte no meio idneo para exercitar o direito informao que toda a pessoa possui (site da escola). Esse princpio terico desenvolvido a partir das discusses geradas num campo de saber denominado de Estudos Surdos (ES), ramificao de uma rea mais ampla dos Estudos Culturais (EC). De fato, o que aconteceu com a escola Gabriela Brimmer um exemplo dos rumos que o movimento surdo tomou na dcada de 90. Se, naquele momento, a comunidade surda se reuniu para reclamar o seu direito a uma escola de surdos e o reconhecimento da Libras como lngua a ser adotada nestes espaos, atualmente, o movimento comea a levantar novas bandeiras. Como exemplo, Lopes e Veiga-Neto (2006) observam que, agora, os objetivos da luta so as condies de ensino, o reconhecimento da capacidade surda de aprender e a construo de currculos surdos nos quais os marcadores culturais estejam presentes para alm dos contedos escolares (p.81).

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Fonoaudilogo argentino que, por muitos anos, esteve ligado a universidades brasileiras estudando a surdez com base em uma perspectiva cultural. Atualmente, como investigador da rea de educao na Facultad Latinoamericana de Cincias Sociales LACSO, tem se voltado para a questo das diferenas e da tolerncia ao outro/ outrem dentro de um referencial filosfico deleuziano e derridiano.

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No que se refere s crianas com mltiplas deficincias, desde a sua fundao na dcada de 60, esta escola tem procurado atender as crianas que tem algum outro comprometimento, tais como viso reduzida, deficincia mental, paralisia cerebral e transtornos neuropsiquitricos (Documento sobre o atendimento especial fornecido pela escola, p.1). Da mesma forma que com os surdos, inicialmente as crianas tinham atendimentos nas reas emocionais, cognitiva e psicomotora, a partir de um enfoque clnico. Mais recentemente, a proposta passou a abordar o aspecto pedaggico, com o objetivo de propiciar o desenvolvimento global da criana, compatvel com suas potencialidades e particularidades, integrando as prioridades da famlia com a prtica pedaggica (p.1) Por outro lado, se o site traz que o surdo tem o direito de se organizar em grupo, mantendo sua identidade lingstica e cultural [...] da mesma forma [que] tem direito a freqentar uma escola especial, onde possa fazer uso da sua Lngua natural e conviver com seus pares, nas duas pginas do documento sobre o atendimento especial, a importncia do acesso a Libras mencionada num nico pargrafo que trata de um curso oferecido aos pais, cujo objetivo favorecer a comunicao com os seus filhos. A referncia ao compartilhar de experincias culturais no feita e parece que as necessidades [das crianas com mltiplas deficincias] vo [mesmo] alm das necessidades especficas dos surdos (Documento acerca do atendimento especial , p.1). Portanto, uma vez que esta escola abraou esse enfoque terico, importante que se discuta minimamente as bases em que o projeto da escola est alicerado. Entro na discusso sobre a construo da cultura surda, ainda, para pensar que lugar acaba sendo reservado ao atendimento especial a partir da superao da noo de surdez enquanto deficincia. Discuto as redes de poder

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estabelecidas entre surdos e mltiplos e entre surdos e ouvintes como efeitos dos saberes dos estudos surdos.

3. Os Estudos Culturais (EC) e os Estudos Surdos (ES)Os Estudos Culturais, enquanto rea de investigao, nasceram em 1964, com a criao do Centro para os Estudos Culturais Contemporneos na Universidade de Birmingham (CCCS), na Inglaterra. Com Hoggart, Williams e Thompson, fundadores do centro, se posiciona a cultura como uma dimenso de anlise e se adota a perspectiva da crtica cultural em trabalhos que enfocam o que se distinguiu por cultura ou culturas populares, prticas cotidianas, artefatos e produtos culturais (TURA, 2005, p.112). Em outras palavras, a inteno era olhar para o outro lado, o lado onde est o povo, onde tm origem as produes culturais populares, as organizaes comunitrias, os movimentos sociais de resistncia (TURA, 2005, p.112). Na Amrica Latina, os Estudos Culturais florescem numa poca em que os regimes totalitrios esto em decadncia e que as lutas polticas pela democratizao esto em asceno. Conforme Tura (2005), tanto o surgimento de novos atores polticos (mulheres, homossexuais, minorias tnicas), como o interesse de pesquisadores em compreender a confluncia de descontinuidades culturais num espao que se abriu para um fluxo intermitente de correntes migratrias e para a mestiagem (p.118) deram espao para novas problematizaes de questes sociais. No Brasil, e de forma mais localizada, nas pesquisas desenvolvidas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), temos trabalhos que aliaram os EC s investigaes sobre o currculo escolar. Skliar e Quadros (2004), por sua vez, tambm estiveram engajados no

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processo de difuso dos EC atravs da formao de grupos de pesquisa que buscam discutir as relaes entre educao surda, estudos culturais e estudos surdos, identidade surda e cultura surda dentro do espao institucional da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O resultado dessa articulao foram os Estudos Surdos (ES), ou um territrio de investigao educacional e de proposies polticas que, atravs de um conjunto de concepes lingsticas, culturais, comunitrias e de identidades, definem uma particular aproximao e no uma apropriao com o conhecimento e com os discursos sobre a surdez e sobre o mundo dos surdos (SKLIAR, 1998, p. 29). Nesta direo, o americano Owen Wrigley, autor do livro A Poltica da Surdez (1996), que serve de embasamento terico para vrios trabalhos no Brasil, ajudou a desmontar a idia de que a surdez seja algo concreto, de existncia prpria, independente dos sentidos que damos a ela. Dito de outro modo, ele contesta a surdez enquanto uma deficincia sensorial localizada no corpo e que traria consigo alguns impedimentos para a convivncia num mundo prioritariamente feito de som. Para ele, a questo precisa ser deslocada de um problema do corpo individual para um problema social, com o conseqente debate acerca do privilgio dos canais visuais em detrimento de outras possibilidades: invs do foco no canal auditivo deficiente, pensar num canal visual repleto de possibilidades. Padden e Humphries (2005) avanam ainda mais nessa discusso ao escrever que ser surdo vai alm dessa habilidade sensorial

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aguada e da participao em prticas que tenham a viso como elemento central; as especificidades esto muito mais relacionadas a uma longa histria de interao com o mundo de certas formas, de uma maneira cultural. Segundo eles, as prticas de olhar no so necessariamente naturais ou lgicas, no sentido que os surdos tm um sentido visual aguado, mas as formas pelas quais eles olham derivam de uma longa histria [que] envolve as escolas que eles freqentaram, as comunidades nas quais eles se engajaram depois de sair da escola, os empregos que tiveram, a poesia e o teatro que criaram, e finalmente, o vocabulrio que se deram para descrever o que eles sabem (p.2, traduo livre). No Brasil, Perlin (1998) uma pesquisadora da linha dos ES que, a partir do conceito ps-moderno de identidade apresentado por Hall10, defende que no h uma identidade surda, mas identidades plurais, mltiplas, que se transformam, que no so fixas, imveis, estticas ou permanentes, que podem at ser contraditrias, que no so algo pronto (p.52). Dessa forma, a identidade seria algo em construo, uma construo mvel que empurra o sujeito em diferentes posies (p.52). Entretanto, a autora procura mostrar que essa mobilidade e fragmentao se configuram em funo de um elemento determinado, qual seja, o tipo de embate

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Hall (1997, apud PERLIN, 1998) explicita tambm os modelos iluminista e sociolgico de identidade. O primeiro refere-se identidade enquanto ideal, perfeio do ser humano; e o segundo como estruturada pelas representaes sociais.

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que se estabelece entre os surdos e o poder ouvintista11. Como esclarece neste trecho, as identidades surdas assumem formas facetadas em vista das fragmentaes a que esto sujeitas face presena do poder ouvintista que lhes impem regras, inclusive encontrando no esteretipo surdo uma resposta para a negao da representao da identidade surda ao sujeito surdo (p.54). Resumindo a categorizao adotada pela pesquisadora, temos cinco tipos de identidade: identidade surda - reconhecvel nos surdos que adotam as formas visuais de experienciar o mundo, nas suas diversas manifestaes. O trocar dessas experincias uma caracterstica importante na construo dessa identidade (valoriza-se o momento de encontro entre os surdos); identidade surda hbrida surdos que tiveram acesso experincia ouvinte, mas agora passam a conhecer a comunicao em sua forma visual; Perlin (1998) acrescenta que nascer ouvinte e posteriormente ser surdo ter sempre presente duas lnguas, mas sua identidade vai ao encontro das identidades surdas (p.64) identidade surda de transio os surdos (como filhos de pais ouvintes) que quebram uma concepo ouvintista de surdez e se filiam identidade surda j mencionada, mas que ficam com seqelas da representao que so evidenciadas em sua

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O ouvintismo um conjunto de representaes dos ouvintes, a partir do qual o surdo est obrigado a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte. Alm disso, nesse olhar-se, e nesse narrar-se que acontecem as percepes do ser deficiente, do no ser ouvinte, percepes que legitimam as prticas teraputicas habituais (SKLIAR, 1998, p.15).

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identidade em reconstruo nas diferentes etapas da vida (p.64); identidade surda incompleta surdos que tentam experienciar a surdez a partir do referencial ouvintista, uma vez que essa cultura dominante, por exemplo, ridiculariza certos aspectos da identidade surda ou desencoraja os encontros da comunidade surda; identidade surda flutuante - encontra-se em surdos conscientes da surdez, mas que no escapam ideologia ouvintista. Trata-se desses alguns surdos querem ser ouvintizados a todo custo. Desprezam a cultura surda, no tm compromisso com a comunidade surda. Outros so forados a viverem a situao como que conformados a ela (PERLIN, 1998, p.65). Muitos nem adquirem a lngua de sinais e nem a comunicao oralizada, retendo fragmentos de identidades ouvintes e surdas, sem conseguir transitar entre nenhuma delas. O primeiro comentrio que fao sobre essas teorizaes vai na linha das possveis aproximaes e distanciamentos entre os Estudos Surdos (enquanto ramificao dos EC) e os princpios foucaultianos. Ao mesmo tempo em que existe a possibilidade de dilogo entre os dois campos tericos12, como mostrou Veiga-Neto (2000), existem momentos em que o debate torna-se difcil. Como procurei mostrar, para Foucault o poder uma fora difusa, que no se filia a um centro e que, portanto, no cria a

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Tanto os Estudos Culturais quanto Foucault usam a teoria no s para descrever as prticas e configuraes sociais, mas para propor outras possibilidades de arranjo. Em ambos os casos, est presente uma clara inconformidade,

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dicotomia entre dominantes e dominados. No texto de Veiga-Neto (2000), a posio dos autores filiados ao CCCS e, at certo ponto, de alguns autores contemporneos, justamente oposta: o poder como algo que se arrebata, se possui, a fim de submeter os outros vontade de uma classe social (dominante), de uma instituio ou do Estado (p.64). Para eles, por causa dessa derivao, o poder entendido como de natureza mutvel: ele uma coisa nas sociedades primitivas, ele outra coisa no mundo feudal, e outra coisa no mundo capitalista. E, portanto, poder se tornar outra coisa bem diferente de tudo isso no futuro; para construir esse futuro que temos que agir no presente. Dado que, nesses casos, a Histria vista como um movimento intrinsicamente contnuo, progressivo e teleolgico, h um destino potencial, desde sempre impresso no poder (...) (VEIGA-NETO, 2000, p.64, grifos meus). Considerando que, deste prisma, o objetivo da luta o abrandamento, a humanizao ou at mesmo a extino das prprias

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uma atitude explcita contra as condies do presente ou, no mnimo, desconfiada dessas condies (VEIGA-NETO, 2000, p.48). Alm disso, as duas abordagens compartilham do pressuposto que os discursos e as prticas (ou a cultura) interpelam os sujeitos, constituindo posies (ou identidades) distintas. Desta forma, posies de sujeitos e identidades s se constroem dentro de um grupo, no confronto com outros indivduos. O que se estuda, nos dois casos, so os mecanismos discursivos (ou narrativos) de construo dos objetos e dos sujeitos, rejeitando a busca de uma representao original com suas supostas correspondncias e distores.

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relaes de poder (VEIGA-NETO, 2000, p.64), parece-me que o resultado dessa disputa seria a abstrao de uma sociedade em que ningum poderia agir sobre a ao do outro. Para esse autor, o poder imanente lgica de viver em sociedade (p.63) e, por isso, pensar uma sociedade sem essas relaes seria tentar reverter essa mesma lgica. Tanto Perlin (1998) quanto Skliar (1998) parecem concordar quando colocam as questes dos Estudos Surdos em termos da polarizao entre dominantes e dominados e teorizam no sentido da superao dessa condio. A primeira autora convoca os surdos a se oporem s tentativas de colonialismo lingstico e cultural; o segundo sugere que a discusso seja deslocada para as nossas (ouvintes) representaes sobre a surdez e os surdos, bem como os seus desdobramentos em termos escolares e polticos, conforme esse trecho: o nosso problema, em conseqncia, no a surdez, no so os surdos, no so as identidades surdas, no a lngua de sinais, mas, sim, as representaes dominantes, hegemnicas e ouvintistas sobre as identidades surdas, a lngua de sinais, a surdez, e os surdos. Deste modo, a nossa produo uma tentativa de inverter a compreenso daquilo que pode ser chamado de normal ou cotidiano(p. 30). Partindo da pergunta desse autor acerca de qual relao de poderes e saberes temos perpetuado, aprofundado, negligenciado na nossa relao de ouvintes com a surdez? (2001, p.107), desloco-a para qual relao de poderes e saberes que temos criado, produzido e enfatizado nessa nossa (nova) relao de tericos (surdos e ouvintes) com a surdez?

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Klein e Lunardi (2006), ao estudarem as fronteiras da cultura surda e das diversas acepes do hibridismo13, contribuem com essa discusso, uma vez que debatem tanto os essencialismos de uma cultura surda em oposio noo de fragmentao, quanto o posicionamento de um tipo puro de cultura como um modelo a ser alcanado a partir da superao de outros. Assim, estas redes de poder, que parecem ter uma configurao mais rgida nas obras de alguns autores dos Estudos Surdos, bem como no discurso de lideranas das comunidades surdas, ganham uma nova interpretao na viso de Klein e Lunardi (2006): Nosso entendimento afasta-se de um binarismo, em que cultura surda e cultura ouvinte encontram-se em posies opostas, em relaes de dominao onde o ser surdo passa pelo movimento de negao de uma cultura ouvinte (...) Os processos de hibridao nos exigem o registro e anlise das relaes de poder envolvidas em fios que se mesclam, constituindo tramas. O poder no se constitui em relaes verticais: as bipolaridades se esvaem (p.19). Na verdade, parece-me que a filiao ao sistema lingustico da lngua de sinais passou a ser um elemento to central na configurao das identidades surdas que acarretou um corte entre dois grupos: o dos surdos e o dos Surdos. A distino que o so-

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As autoras defendem que a lngua de sinais no pode mais funcionar como nica expresso da cultura surda sob pena de fossilizar o que se entende como surdez: Entender as culturas surdas perceb-las enquanto elementos que se deslocam, se fragilizam, hibridizam no contato com o outro, seja ele surdo ou ouvinte (p.17, grifo meu).

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ciolingista James Woodward traou em 1972 (apud WRIGLEY, 1996) permanece at hoje em alguns textos que discutem a cultura surda: desde ento, uma distino passou a ser feita entre os surdos que se vem como deficientes auditivos (os surdos com s minsculo) e os Surdos que compartilham uma categoria cultural de auto-identificao (os Surdos com S maisculo): seguindo o exemplo de James Woodward, ns adotamos a conveno de letra maiscula Surdo para descrever as prticas culturais de um grupo dentro de um grupo. Ns usamos a conveno surdo com letra minscula para se referir condio da surdez, ou o grande grupo de indivduos com perda auditiva sem referncia a essa cultura particular. Usando esta distino, o grupo dos Surdos varia dentre aqueles que so surdos profundos at aqueles que ouvem relativamente bem para conversar em ingls falado e usar o telefone, os chamados com perda auditiva. Ns nos limitamos a estabelecer a distino dessa forma (PADDEN e HUMPHRIES, 2005, p.1-2, traduo livre). Nessa mesma linha de raciocnio escrevem Lopes e Veiga-Neto (2006). Conforme os achados obtidos a partir de uma pesquisa com surdos militantes da causa surda e/ou surdos em fase de escolarizao, esses autores descreveram trs marcadores culturais presentes nas falas desses sujeitos: a experincia visual, a importncia da convivncia da comunidade como aspecto fortalecedor da identidade e a noo de luta pela causa surda. Ao comentarem a questo dos encontros surdos como esse momento de fortalecimento identitrio, relatam tambm a desconfiana

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em relao queles membros que podem no ser integrantes autorizados nessa comunidade: Fortalecem-se as narrativas entre os surdos que produzem fronteiras, que dividem a sociedade entre amigos e inimigos, entre simpatizantes da cultura surda e no-simpatizantes. Na segunda diviso, mesmo aqueles aceitos como amigos esto constantemente sob suspeita, ou seja, suspeita de exerccio de ouvintismos. Viver entre amigos, enfatizar a importncia dos encontros presenciais para que todos possam olhar para conversar so prticas de exaltao da comunidade que podem ser percebidas em diferentes narrativas de surdos (LOPES e VEIGA-NETO, 2006, p.89).

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No se nega que a histria dos surdos seja pautada na dominao pelos ouvintes. Entretanto, os efeitos dessa assimetria no podem ser simplificados. Wrigley (1996) apresenta, por exemplo, como o discurso do surdo enquanto minoria discriminada, isolada, foi utilizado tanto por Abb de lEpp14 para justificar uma escola especial para os surdos, como recapturado na atualidade por mdicos especializados em implantes cocleares para justificar seus procedimentos cirrgicos, assim como por aqueles profissionais envolvidos nas questes educacionais e escolares dos surdos. Em outras palavras, o discurso no necessariamente bom ou necessariamente mau; ele provoca efeitos que colocam em jogo relaes (assimtricas) de poder. Na opinio de Wrigley, a distino entre Surdos e surdos, por si s, no parece dizer muito:

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Personagem importante na historia da escolarizao dos surdos em escolas bilnges. Ver Wrigley (1996) para maiores detalhes.

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um dualismo severo bom Surdo, mau surdo que no contribui muito para ajudar os indivduos na sua vida diria. Nem ajuda a iluminar a amplitude de estratgias empregadas pelos indivduos, lidando com a excluso e as muitas formas de opresso na vida diria deles. Em termos simples, a dicotomia do S/s to grosseira que, enquanto inicialmente til, hoje serve para silenciar a gama ampla de experincias s/Surdas (1996, p.55, traduo livre). Mais que silenciar as outras formas de ser surdo, contudo, penso que as distines e categorizaes servem para definir modelos (aceitveis) de surdez. Ao mesmo tempo em que h a negao do modelo de deficincia, cria-se a verdadeira identidade cultural surda a ser seguida: A comunidade surda, ao se opor aos discursos que a localizam na lgica da deficincia e dos discursos ouvintistas, acaba, tambm, excluindo aqueles que no atingem as prerrogativas de uma suposta cultura surda (KLEIN e LUNARDI, 2006, p.20). A hiptese de Lopes e Veiga-Neto (2006), como j fiz referncia anteriormente, de que a escola, enquanto espao disciplinar, funciona como um espao que exige a padronizao e minimiza as dissidncias. O espao escolar impede que as diferenas apaream. Cito agora alguns trechos da literatura e das falas das professoras que mostram como a construo dessa rede acontece.

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4. Os efeitos do enredamento entre teoria e prtica: cenas do cotidiano escolarDiante do engajamento da escola com a proposta de educao bilnge, duas questes se desdobram: a primeira delas est rela-

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cionada ao fato de que com a centralidade da Libras no contexto escolar dos s