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ESTUDOS SURDOS EM ARTICULAÇÃO COM OS ESTUDOS CULTURAIS E
ESTUDOS FOUCAULTIANOS EM EDUCAÇÃO
Luciane Bresciani Lopes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Adriana da Silva Thoma
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
A utilização da expressão “Estudos Surdos” no Brasil, segundo Lopes (2011) é uma
tentativa de tradução dos chamados Deaf Studies. A produção dos Deaf Studies “surgiu em
centros de pesquisa e programas de graduação no Reino Unido e os Estados Unidos no final
da década de 1970 e 1980”. Os Estudos Surdos constituem-se como um campo
interdisciplinar na articulação de “conteúdo, críticas e metodologias da antropologia, estudos
culturais, literatura, história, filosofia, literatura, arte, cinema, estudos de mídia, arquitetura,
psicologia, geografia humana, política e estudos dos direitos humanos, entre outros”
(BAUMAN; MURRAY, 2016, p. 272). A articulação dos Estudos Surdos aos Estudos
Culturais, “facilita novos olhares para se identificar a realidade da cultura que está
envolvendo as lutas dos surdos” (REIS, 2007, p.97).
Ao tratar das possibilidades de articulação entre esses campos, bem como dos Estudos
Surdos com as produções dos Estudos Foucaultianos, não negamos a existência de outras
possibilidades teóricas e investigativas. Buscando por Grupo de Pesquisa que tratem sobre os
Estudos Surdos no Diretório dos GP do CNPq, encontramos, como exemplo dentre essas
outras possibilidades, o trabalho realizado pelos seguintes grupos de pesquisa: Grupo Estudos
Surdos da Universidade Estadual do Ceará – UECE que “busca articular, numa perspectiva
interdisciplinar, teoria crítica da sociedade capitalista e Estudos Surdos”1; Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisa em Educação – NUIPE, do Instituto Federal de Santa Catarina –
IFSC que contribui “para a produção de conhecimento que articule os Estudos de imagem e
de Sociossemiótica com a Educação de Surdos e a Educação Bilíngue”2
Em nossa universidade, podemos dizer que o contexto acadêmico que existia no
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
1 Descrição do Grupo de pesquisa disponível no Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil.
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1666372865826437 Acesso 09 mai 2017. 2 Informações sobre a linha de pesquisa Estudos Surdos e Educação Bilíngue descrita pelo grupo NUIPE,
disponível em http://dgp.cnpq.br/dgp/espelholinha/8305885757629722308339 Acesso 09 maio 2017.
PPGEDU/UFRGS no final dos anos de 1990, com a introdução da linha de pesquisa “Estudos
Culturais em Educação” na reformulação do PPGEDU/UFRGS, no final dos anos de 1996
(WORTMANN; COSTA; SILVEIRA, 2015), possibilitou a produção de novos olhares sobre
a surdez. O cenário investigativo do Programa naquele período colaborou para a criação e
consolidação do Núcleo de Pesquisas em Políticas Educacionais de Surdos –
NUPPES/UFRGS e, consequentemente, para o desenvolvimento de pesquisas articuladas ao
campo dos Estudos Surdos, que buscavam
analisar as representações de surdo e surdez vigentes em diversos textos –
desde os midiáticos até os legais – e conectar tais análises com lutas políticas
de reconhecimento da surdez como criadora de uma cultura e não como uma
marca de deficiência, frente ao mundo ouvinte normalizador. Rejeitando
uma visão clínica da surdez, vários desses trabalhos estão estreitamente
vinculados a ações e posturas políticas dos grupos surdos, em defesa do
direito ao seu reconhecimento cultural. Se esta foi a tendência dominante nos
primeiros trabalhos ligados ao tema, avultam nos últimos anos os estudos
que se debruçam sobre um espectro mais aberto da Cultura Surda.
(WORTMANN; COSTA; SILVEIRA, 2015, p.41)
Nas produções de teses e dissertações nacionais localizadas em repositórios digitais3 a
partir dos termos: “estudos surdos”, a referência ao espaço institucional do NUPPES/UFRGS
é recorrente. Os Estudos Surdos – que se constituem em uma tentativa de inversão
epistemológica da anormalidade surda e um rompimento da visão binária surdo/ouvinte – na
articulação com os Estudos Culturais e Estudos Foucaultianos em Educação passou a produzir
novos olhares para pensar as questões referentes à surdez, os surdos e sua educação em nosso
país. Segundo algumas produções que fazem referência a emergência dos Estudos Surdos, as
produções desse campo “iniciam no Brasil através do NUPPES [...] quando mestrandos e
doutorandos – surdos e ouvintes – reuniram-se para discutir diversos temas, tendo como
referência os Estudos Culturais” (ROSA, 2011, p.22).
As produções do NUPPES, segundo apresentam os trabalhos disponíveis nos
repositórios digitais, “tiveram impacto na produção acadêmica nacional na década de 1990,
período em que foi criado, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Rio Grande
do Sul (UFRGS), o Núcleo de Pesquisas em Políticas Educacionais para Surdos”. (RIBEIRO,
2011, p. 15). Assim, “o Estado do Rio Grande do Sul pode ser considerado um precursor de
3 Repositórios digitais: CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Disponível
em: http://bancodeteses.capes.gov.br; BDTD – Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações. Disponível
em: http://bdtd.ibict.br/vufind/; e LUME é o repositório digital da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Disponível em no endereço eletrônico: http://www.lume.ufrgs.br Acesso em 20 abr 2017.
muitas mudanças ocorridas no campo dos Estudos Surdos” (SCHUCK, 2011, p.38).
A Emergência dos Estudos Surdos em Educação no Brasil é o tema da pesquisa de
mestrado de Lopes (2016), que teve início em 2015 e será concluída em 2017. Segundo os
resultados parciais da pesquisa, pode-se afirmar que a atmosfera política e acadêmica que
existia no PPGEDU/UFRGS nos anos de 1990 possibilitou a emergência dos Estudos Surdos
em Educação no Brasil e um novo olhar que institui uma narrativa sobre a surdez como uma
identidade cultural e uma diferença política. A partir da construção de um quadro das teses e
dissertações produzidas pelo NUPPES (1996 – 2006) verificamos a recorrências de termos e
conceitos que possibilitaram a produção deste artigo, no qual nos interessa questionar sobre:
Como as produções do PPGEDU/UFRGS, a partir da segunda metade dos anos de 1990 e
início dos anos 2000, articulavam conceitos e noções desenvolvidos pelos Estudos Culturais e
Estudos Foucaultianos nas produções do campo dos Estudos Surdos em Educação?
Para responder a esse questionamento, neste trabalho analisamos produções
desenvolvidas por pesquisadores surdos e ouvintes do Núcleo de Pesquisas em Políticas
Educacionais para Surdos sob a orientação do professor Carlos Skliar nos cursos de Mestrado
e Doutorado do referido Programa, conforme quadro a seguir:
Quadro 1 - Teses e Dissertações produzidas por pesquisadores do NUPPES/UFRGS4
Autor (a) Título Ano/
Nível
Palavras-chave5
Gladis
Teresinha
Taschetto Perlin
Histórias de vida surda:
identidades em questão
1998/
ME
Identidade; Surdos; Cultura;
Diferença; Subjetividade;
Discursos.
Wilson de
Oliveira
Miranda
Comunidade dos surdos:
olhares sobre os contatos
culturais
2001/
ME
Comunidade dos Surdos;
Cultura Surda;
Identidade Surda; LIBRAS;
Educação dos Surdos;
Estudos Surdos.
Adriana da
Silva Thoma
O cinema e a flutuação das
representações surdas: “Que
drama se desenrola neste
filme? Depende da perspectiva
...”
2002/
DO
Pedagogia cultural; Cinema;
Educação de surdos; Cultura;
Discurso; Representação
Gladis
Teresinha
Taschetto Perlin
O ser e o estar sendo surdos:
Alteridade, diferença e
identidade
2003/
DO
Surdos; Povo Surdo;
Diferença; Alteridade
4 Outras pesquisas foram desenvolvidas por integrantes do NUPPES, porém nem todas estão disponíveis em
bancos de Teses e Dissertações. Para nossa análise, nesse artigo, utilizamos apenas aquelas que foram
localizadas nos bancos pesquisados. 5 Palavras-chave conforme constam nas pesquisas.
Márcia
Lise Lunardi
A produção da anormalidade
surda nos discursos da
educação especial
2003/
DO
Normalização; Surdez;
Educação Especial;
Discurso.
Madalena Klein Tecnologias de governamento
na formação profissional dos
surdos
2003/
DO
Educação de Surdos;
Formação profissional;
Dispositivo; Tecnologias de
governamento;
Governamentalidade Fonte: Quadro organizado pelas autoras a partir da proposta de mestrado de Lopes (2016)
Como podemos ver no quadro, além de conceitos de autores que trabalham no campo
dos Estudos Culturais – como representação, identidade e cultura – noções de Michel
Foucault – entre as quais discurso, norma e governamento –, também eram recorrentes nas
produções do período analisadas. A seleção destas pesquisas se deu em razão do interesse
analítico deste artigo e com base no recorte conceitual definido, ou seja, nas articulações entre
o campo dos Estudos Surdos com os Estudos Culturais e os Estudos Foucaultianos em
educação. Na seção seguinte apresentaremos a análise dessas articulações.
Articulações teóricas e produção de novos olhares sobre a surdez, os surdos e a educação
dos surdos
A partir do Quadro 1, onde apresentamos dados gerais das pesquisas que compõem o
material empírico para esse artigo, construímos o Quadro 2, organizado para apresentar as
referências no campo de Estudos Culturais e Estudos Foucaultianos em destaque nas teses e
dissertações analisadas. Elencamos, como base na análise inicial do Quadro 1, três conceitos
recorrentes na produção do NUPPES inscrita no campo dos Estudos Culturais, que são:
Representação, Identidade e Cultura, bem como, três conceitos do campo dos Estudos
Foucaultianos: Discurso, Norma e Governamento, conforme apresentamos no quadro a
seguir:
Quadro 2: A articulação de conceitos e noções desenvolvidos pelos Estudos
Culturais e Estudos Foucaultianos nas produções do campo dos Estudos Surdos em
Educação do NUPPES/UFRGS
Noções conceitos utilizados –
Definição nas obras referidas
Noções conceitos utilizados –
Autores das teses e dissertações
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RE
SE
NT
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ÃO
Costa (2001, p. 40): representação é
“uma noção que se estabelece
discursivamente, instituindo significados
de acordo com critérios de validade e
legitimidade estabelecidos segundo
relações de poder, e não como um
conteúdo que é espelho e reflexo de uma
“realidade” anterior ao discurso que a
nomeia”.
Woodward (2000, p. 17): “representação,
compreendida como um processo
cultural que estabelece identidades
individuais e coletivas e os sistemas
simbólicos nos quais ela se baseia
fornecem possíveis respostas às
questões”.
Perlin (2003, p. 79): “O povo surdo foi
narrado através da representação da
invalidez”.
Thoma (2002, p. 141): “As contra-
estratégias dessa política de representação
[surdez como fatalidade] são hoje uma das
lutas da comunidade surda que reivindica
seu reconhecimento a partir de outros
discursos e de outras representações”.
IDE
NT
IDA
DE
Silva (2000, p. 96): “De acordo com a
teorização pós-estruturalista que
fundamenta boa parte dos Estudos
Culturais contemporâneos, a identidade
cultural só pode ser compreendida em
sua conexão com a produção da
diferença, concebida como um processo
social discursivo.”
Hall (1997, p.13): “O sujeito pós-
moderno é conceptualizado como não
tendo uma identidade fixa, essencial ou
permanente. A identidade torna-se uma
“celebração móvel”: formada e
transformada continuamente em relação
às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos
sistemas culturais que nos rodeiam”.
Perlin (1998, p. 09): “A partir da
interpretação que faço de Hall (1997), é
possível a exploração das identidades do
sujeito surdo. É possível conceber uma
visão situacional do sujeito surdo. Para
uma concepção do sujeito surdo como
portador de identidades culturais, preciso
vê-los dentro da diferença. Está na
diferença, na maleabilidade das
representações, as possibilidades da
construção e desconstrução das identidades
surdas”.
CU
LT
UR
A
Nelson, Treichler e Grossberg (1995,
p.14): “é entendida tanto como uma
forma de vida – compreendendo ideias,
atitudes, linguagens, práticas, instituições
e estruturas de poder – quanto como toda
uma gama de práticas culturais: formas,
textos, cânones, arquitetura, mercadorias
produzidas em massa, e assim por
diante”.
Silva (2000, p. 32): “Na teorização
introduzida pelos Estudos Culturais,
sobretudo naquela inspirada pelo pós-
estruturalismo, a cultura é teorizada
como campo de luta entre os diferentes
grupos sociais em torno da significação”.
Perlin (1998, p. 33): “A cultura surda como
diferença se constitui numa atividade
criadora. Símbolos e práticas jamais
conseguidos, jamais aproximados da
cultura ouvinte. Ela é disciplinada por uma
forma de ação e atuação visual. Já afirmei
que ser surdo é pertencer a um mundo de
experiência visual e não auditiva”.
Thoma (2002, p. 171): “‘Culturas surdas’,
assim, se referem ao modo de vida distinto
pelo qual os/as surdos/as se organizam e os
significados e valores por eles/as
compartilhados. Falar em culturas surdas
significa assumir que existe um grupo de
pessoas que interpreta o mundo, expressa
sentimentos e compartilha ideias e valores
de forma mais ou menos semelhante.”
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Foucault (1996, p.52): [os discursos
podem ser entendidos] “como práticas
descontínuas, que se cruzam por vezes,
mas também se ignoram ou se excluem”.
Foucault (1996, p. 10 e p. 49): “o
discurso não é simplesmente aquilo que
traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que
se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar” [...] “O discurso nada mais é
do que a reverberação de uma verdade
nascendo diante de seus próprios olhos”.
Miranda (2001, p.31): “Enquanto o
conhecimento sobre os surdos e a surdez
for produzido no campo de educação
especial, os discursos dificilmente
ultrapassarão duas ciências: a psicologia e
a biologia. Nestes discursos do
conhecimento não existe comunidade surda
nem identidade surda”.
Lunardi (2003, p. 101): “A partir de um
conjunto de formações discursivas que
envolve, aqui, os saberes da medicina, da
fonoaudiologia, da psicologia e da
Educação Especial, vou fazer um exercício
para mostrar como esses discursos, que
fazem parte dos materiais produzidos pelo
MEC/SEESP, colocam em funcionamento
instrumentos disciplinares que sejam
capazes de produzir sobre os sujeitos
surdos práticas de normalização que traçam
um limite entre os que estão de acordo com
a normalidade e os que não estão”.
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RM
A
Ewald (1993, p.108): [norma é] “uma
maneira de um grupo se dotar de uma
medida comum segundo um rigoroso
princípio de auto-referência, sem recurso
a nenhuma exterioridade, quer seja a de
uma ideia quer a de um objecto”.
Foucault (2000, p. 302): “De uma forma
mais geral ainda, pode-se dizer que o
elemento que vai circular entre o
disciplinar e o regulamentador, que vai
se aplicar, da mesma forma, ao corpo e à
população, que permite a um só tempo
controlar a ordem disciplinar do corpo e
os acontecimentos aleatórios de uma
multiplicidade biológica, esse elemento
que circula entre um o outro é a ‘norma’.
A norma é o que pode tanto se aplicar a
um corpo que se quer disciplinar quanto
a uma população que se quer
regulamentar”.
Perlin (2003, p. 38): “Sinalizando com
Foucault, a norma estabelece a deficiência
e conseqüentemente hoje, deficientes todos
aqueles com uma “necessidade especial”.
Em vista disto, em confronto com a norma,
o corpo surdo, em termos teóricos foi
transportado para o quadro da deficiência”.
Klein (2003, p. 95): “Os surdos, referidos à
espécie humana, são diagnosticados,
nomeados, identificados como indivíduos
“anormais”, portadores de “desvios”,
estando sujeitos às práticas de correção”.
Lunardi (2002, p.109): “Assim, nesse
processo de normalização, o padrão de
referência sempre é o ouvido normal”.
[grifo da autora]
GO
VE
RN
AM
EN
TO
Foucault (1997, p. 101): [governamento
se refere a] “técnicas e procedimentos
destinados a dirigir a conduta dos
homens”.
Klein (2003, p. 97): “No governamento
da diversidade, os estranhos são
inventados e capturados pelos discursos
da norma e nomeados de diferentes
maneiras: estranhos, anormais,
deficientes, incapazes”.
Lunardi (2003, p. 150): “Em nome
desse descontrole da exclusão, desse
suposto afastamento dos excluídos, a
inclusão, enquanto processo de
normalização, é uma forma de
dominação, de controle e de
‘governamento’”.
Com a construção do Quadro 2 podemos analisar a articulação dos conceitos,
conforme referenciados no original e as articulações possíveis naquelas produções
acadêmicas. Os conceitos de identidade e cultura contribuíram para a produção de um
discurso sobre a surdez que buscava inscrever os surdos enquanto pertencentes a uma minoria
linguística e sujeitos culturais. No movimento de produções acadêmicas do NUPPES/UFRGS
no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, as pesquisas rompiam com a ideia da surdez
como deficiência narrada pelo discurso clínico e do surdo como sujeito a ser educado no
espaço da educação especial.
Na esteira do pensamento de Michel Foucault, compreendemos que os discursos
produzem efeitos. Esses efeitos podem ser vistos, no presente, por exemplo, na legislação e
políticas de inclusão escolar que, entre outras ações: 1) instituíram o ensino da Língua
Brasileira de Sinais em todos os cursos de formação de professores e de fonoaudiologia; 2)
geraram o aumento da matrícula de alunos surdos em classes comuns na rede regular de
ensino, 3) provocaram a diminuição do número de matriculas de alunos surdos nas escolas
especiais/bilíngues para surdos e 4) contribuíram para o aumento de matrículas de alunos
surdos com deficiências associadas em escolas e/ou classes bilíngues etc.
As teses e dissertações analisadas, quando utilizavam o conceito de representação,
traziam a compreensão deste como “significante” (SILVA,2000, p. 97), entretanto, algumas
das produções recorriam a uma análise que tratava de apresentar as representações dos surdos
em uma relação binária (surdo versus ouvinte). Não por acaso, a tese de Perlin (2003), assim
como citado no Quadro 2, trata do olhar sobre os surdos centrado em uma concepção
corretiva e normalizadora desses sujeitos. Uma parte significativa das produções trata das
representações sobre a surdez, muito centradas à ideia de como os surdos eram vistos pelos
ouvintes e de como os próprios surdos se narravam. Ou seja, várias das pesquisas analisavam
e problematizavam as representações, a norma e os processos de normalização da surdez
buscando desconstruir as narrativas “ouvintistas”6 predominantes até então.
Ao tratar da norma, normalidade e normalização, as pesquisas analisadas
questionavam as práticas corretivas e normalizadoras a que os surdos eram expostos tomando
como referência uma norma ouvinte. Neste aspecto, questionam o lugar da surdez no discurso
clinico-terapêutico e as intervenções para a produção de uma normalidade. O outro extremo
deste questionamento é a produção de uma norma surda, que hoje podemos observar quando
se estabelecem “modelos de ser surdo, servindo como balizas para que ações de normalização
sejam investidas na e pela própria comunidade surda, quando essa estabelece um tipo normal
de ser surdo a ser seguido” (LOPES; VEIGA-NETO, 2006, p. 83).
Outra noção recorrente é a de discurso a partir do pensamento de Michel Foucault.
Para Silva (2000, p.43), o discurso “não descreve simplesmente objetos que lhe são
exteriores: o discurso “fabrica” os objetos sobre os quais fala”. Apresentar a surdez fabricada
pelo discurso clínico e uma fabricação da surdez pelo discurso cultural foi um dos
movimentos analíticos recorrentes nas teses e dissertações do período pesquisado. Entretanto,
6 Ouvintismo foi um termo cunhado por Perlin e Skliar em analogia a “racismo”, “machismo” e outros ismos que
pressupõem relações de poder verticais, onde um grupo é visto como superior a outro. No caso, ouvintismo se
refere à imposição das representações dos ouvintes sobre os surdos. Porém, essa forma vertical de entender o
poder difere do entendimento que Foucault dá ao termo. Para ele, o poder é horizontal, está nas relações,
acontece em rede.
compreendemos que o exercício de inscrever a surdez em uma outra ordem discursiva
significava, para aqueles pesquisadores, romper com a lógica da deficiência que subjulgava os
surdos e os expunham à processos corretivos de escolarização.
Na produção dessa nova ordem discursiva sobre a surdez, observamos análises que
tratam das estratégias de governamento para produzir sujeitos produtivos e incluídos no jogo
neoliberal. A tese de Klein (2003), por exemplo, aponta para a construção de projetos do
governo federal para a fabricação de sujeitos competitivos no mercado de trabalho. Na linha
do pensamento foucaultiano, Lunardi (2003) trabalha a inclusão educacional dos surdos como
uma forma de condução das condutas, referindo-se à noção de governamento no qual
ninguém pode estar fora do jogo. Ou seja, se a inclusão escolar é um imperativo de Estado,
governar as condutas surdas passa pela garantia de acessibilidade para a produção de uma
escola para todos.
Considerações Finais
Para responder ao objetivo deste texto, de analisar a articulação dos conceitos e noções
desenvolvidos pelos Estudos Culturais e Estudos Foucaultianos nas produções do campo dos
Estudos Surdos em Educação, a partir da segunda metade dos anos de 1990 e início dos anos
2000, no PPGEDU/UFRGS, analisamos algumas dissertações e teses e verificamos a
produção de um discurso sobre a surdez, os surdos e sua educação resultante do envolvimento
dos pesquisadores com as pautas de luta da comunidade surda. Nesse sentido, julgamos
importante destacar que as pesquisas do NUPPES/UFRGS, realizadas através de estudos
etnográficos e análises textuais, eram produzidas com uma forte articulação entre a academia,
movimento surdo, comunidade surda e escolas de surdos.
A partir dessas primeiras produções no campo dos Estudos Surdos no Brasil,
observamos a recorrência e proliferação do uso de conceitos como identidade surda, diferença
surda, cultura surda, povo surdo etc. Porém, assim como os Estudos Culturais e os Estudos
Foucaultianos, os Estudos Surdos se configuram, no contexto investigativo do
PPGEDU/UFRGS, desde então, como um trabalho intelectual de vocação política e “um
pensamento sem garantias”.
Outra questão importante de ser trazida aqui é que, daquele período até então, as
produções do campo dos Estudos Culturais desenvolvidas pelos pesquisadores do
NUPPES/UFRGS – hoje, parte deles, reunidos no GIPES – tem aprofundado as análises sobre
questões mais atuais, como as produções culturais da comunidade surda, educação bilíngue e
políticas de inclusão escolar. Nas atuais pesquisas, Observamos uma hipercrítica do próprio
trabalho intelectual realizado nos anos de 1990, no sentido de tentar entender o que se ajudou
a construir a partir daquela produção na atualidade – “o que estamos ajudando a fazer de nós
mesmos” – pois os efeitos não podem ser previstos. Um exemplo disso é a captura das lutas
surdas por reconhecimento da sua língua de sinais e da cultura surda pelo Estado, que utiliza
essa conquista para colocar a inclusão escolar em funcionamento, enquanto que o movimento
surdo apresenta a escola bilíngue como nova pauta de suas latas.
A área da Educação de Surdos teve muitos ganhos com as produções dos Estudos
Surdos em articulação com os Estudos Culturais e Estudos Foucaultianos, porém as lutas hoje
são outras. Como dissemos acima, naquele período, as produções acadêmicas tinham uma
forte articulação com o movimento surdo, a comunidade surda e as escolas de surdos, o que
segue acontecendo, porém com outras pautas. O trabalho de Braga (2006), Para além do
Silêncio: Outros olhares sobre a surdez e a educação de surdos, que analisa as produções
desenvolvidas por pesquisadores do NUPPES, mostra que embora os pesquisadores tenham
“feito o esforço de não querer dizer o que é melhor para a educação de surdos, em um sentido
universal” ao analisar as recorrências enunciativas verificou que as produções determinavam
“um tipo de modelo, de militância e de comunidade surda a ser seguida” (BRAGA, 2006, p.
09). Outro exemplo é o trabalho de Gomes (2011), O imperativo da cultura surda no plano
conceitual: emergência, preservação e estratégias nos enunciados discursivos, que apresenta
a atualização do discurso sobre a cultura surda o trabalho de que não pretende afirmar ou não
a existência de uma cultura surda, mas entender porque se tornou imperativo para o
movimento surdo afirmar a existência dessa cultura.
Ao tentarmos mostrar como as produções do campo dos Estudos Surdos em Educação
do PPGEDU/UFRGS, a partir da segunda metade dos anos de 1990 e início dos anos 2000,
articulavam conceitos e noções desenvolvidos pelos Estudos Culturais e Estudos
Foucaultianos, não tivemos a intenção de esgotar as análises, mas de oferecer um breve
panorama do que vêm sendo produzido na educação de surdos a partir da constituição e de
expansão de um campo de estudos – os Estudos Surdos – que olha para a surdez tendo como
base em referenciais culturais que buscam desconstruir as narrativas de falta e incapacidade
dos surdos e os situam como sujeitos da diferença.
Referências Bibliográficas
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