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1 Etiologia e Paisagem: notas sobre a relação natureza e cultura Laércio Fidelis Dias 1 Resumo A paisagem natural das Terras Indígenas do Uaçá é caracterizada por uma extensa bacia hidrográfica na qual os rios Curipi, Urucauá e Uaçá se destacam. As nascentes desses rios estão localizadas dentro da Terra Uaçá, em sua porção oeste, área de floresta tropical de terra firme. À leste, predominam as áreas ribeirinhas e alagadas. Fazem, ainda, parte da paisagem, as montanhas Cajari, Carupina e Tipoca, referências fundamentais na região e palco de importantes eventos míticos da cosmologia das populações indígenas. É nessa paisagem natural que as populações realizam atividades de subsistência: caça, pesca, coleta e produção de farinha de mandioca e seus derivados, para sustento próprio e comércio nas cidades vizinhas. Ao mesmo tempo em que a floresta, os rios e campos fornecem o sustento da população, também fornecem os recursos simbólicos para as etiologias das doenças. Assim sendo, o objetivo da apresentação e revelar o modo como a paisagem natural atua como recursos simbólicos que tornam cognoscível a experiência da doença. O objeto de análise são as etiologias xamânicas e os tratamentos dos especialistas terapêuticos chamados de sopradores. Do ponto de vista metodológico, os dados foram levantados segundo os procedimentos clássicos do método etnográfico: descrição dos aspectos socioculturais das populações, com base na coleta de dados e informações feita através de observação direta a fim de apreender o ponto de vista indígena. Quanto às técnicas empregadas, além da observação participante, foram realizadas entrevistas individuais, em profundidade, semi-estruturadas e gravadas. Palavras-chaves: Índios Sul-Americanos; Etnomedicina; Xamanismo; Meio Ambiente; Amazônia. 1 Doutor em Antropologia Social pelo Departamento de Antropologia da USP e professor junto ao Departamento de Sociologia e Antropologia (DSA) e ao PPGSC, ambos da Unesp-Marília.

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Etiologia e Paisagem: notas sobre a relação natureza e cultura

Laércio Fidelis Dias1

Resumo

A paisagem natural das Terras Indígenas do Uaçá é caracterizada por uma extensa bacia

hidrográfica na qual os rios Curipi, Urucauá e Uaçá se destacam. As nascentes desses

rios estão localizadas dentro da Terra Uaçá, em sua porção oeste, área de floresta

tropical de terra firme. À leste, predominam as áreas ribeirinhas e alagadas. Fazem,

ainda, parte da paisagem, as montanhas Cajari, Carupina e Tipoca, referências

fundamentais na região e palco de importantes eventos míticos da cosmologia das

populações indígenas. É nessa paisagem natural que as populações realizam atividades

de subsistência: caça, pesca, coleta e produção de farinha de mandioca e seus derivados,

para sustento próprio e comércio nas cidades vizinhas.

Ao mesmo tempo em que a floresta, os rios e campos fornecem o sustento da

população, também fornecem os recursos simbólicos para as etiologias das doenças.

Assim sendo, o objetivo da apresentação e revelar o modo como a paisagem natural atua

como recursos simbólicos que tornam cognoscível a experiência da doença. O objeto de

análise são as etiologias xamânicas e os tratamentos dos especialistas terapêuticos

chamados de sopradores.

Do ponto de vista metodológico, os dados foram levantados segundo os procedimentos

clássicos do método etnográfico: descrição dos aspectos socioculturais das populações,

com base na coleta de dados e informações feita através de observação direta a fim de

apreender o ponto de vista indígena. Quanto às técnicas empregadas, além da

observação participante, foram realizadas entrevistas individuais, em profundidade,

semi-estruturadas e gravadas.

Palavras-chaves: Índios Sul-Americanos; Etnomedicina; Xamanismo; Meio Ambiente;

Amazônia.

1 Doutor em Antropologia Social pelo Departamento de Antropologia da USP e professor junto ao

Departamento de Sociologia e Antropologia (DSA) e ao PPGSC, ambos da Unesp-Marília.

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Introdução

As Terras Indígenas do Uaçá, Juminã e Galibi de Oiapoque estão localizadas na

Amazônia legal brasileira. Como se sabe, os ecossistemas da região amazônica eram e

são bastante heterogêneos. Por exemplo, a qualidade das águas, em termos de nutrientes

transportados que formam os rios. A variação anual da chuva e do nível dos rios

oferecem dois períodos bem definidos: a seca durante o verão e a cheia no inverno.

A variedade nos elementos físicos que caracteriza a Amazônia permite, contudo,

que se identifiquem quatro compartimentos geográficos distintos: 1) faixa que margeia a

Cordilheira dos Andes (Bolívia, Peru, Equador e Colômbia); 2) áreas ribeirinhas e

alagadas; 3) regiões de terras firmes; 4) zonas de estuário e litoral (partes do Amapá,

Pará e Maranhão) (Moran 1994: pp. 103-108; Neves 2006: pp. 18-19).

Destes quatro grandes compartimentos geográficos, dois caracterizam as Terras

Indígenas (TIs) Uaçá, Juminã e Galibi de Oiapoque: 1) áreas ribeirinhas e alagadas; 2)

regiões de terras firmes. As Terras são banhadas por uma extensa bacia hidrográfica na

qual os rios Curipi, Urucauá e Uaçá se destacam. As nascentes desses rios estão

localizadas dentro da Terra Uaçá, em sua porção oeste, área de floresta tropical de terra

firme. À leste, predominam as áreas ribeirinhas e alagadas. Fazem, ainda, parte da

paisagem, as montanhas Cajari, Carupina e Tipoca, referências fundamentais na região e

palco de importantes eventos míticos da cosmologia das populações indígenas.

É nesse ambiente que as populações realizam as suas atividades de subsistência:

caça, pesca, coleta, cultivo das roças, produzem farinha de mandioca e seus derivados,

para sustento próprio e comércio nas cidades vizinhas.

De um ponto de vista sociocultural, Karipuna, Galibi Marworno, Palikur e

Galibi Kali´na têm características comuns. São características que resultam de redes de

relações interétnicas, extensas no tempo e no espaço, envolvendo as populações das

cidades e localidades vizinhas do lado brasileiro, as pequenas vilas de Palikur e de

Saramaká (ex-escravos refugiados de antigas colônias holandesas) localizadas às

margens do rio Oiapoque, na Guiana Francesa. Contudo, ao mesmo tempo em que

partilham de uma tradição comum, esses povos também apresentam diferenças que os

distinguem uns dos outros, na organização social, em crenças religiosas e

particularidades lingüísticas.

Biodiversidade geográfica e sociodiversidade humana criam um processo de

ocupação dos espaços dinâmico e heterogêneo (Neves 1992). Ao mesmo tempo em que

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a floresta fornece plantas, animais e outros recursos materiais para as populações

humanas, também fornece recursos simbólicos para compor as narrativas xamânicas, os

motivos estilísticos e as etiologias das doenças.

Assim sendo, o objetivo do artigo é revelar o ambiente como fonte de recursos

simbólicos que tornam cognoscíveis a experiência da doença. O objeto de análise são as

etiologias e os tratamentos de um dos especialistas terapêuticos presentes nas Terras

chamados de sopradores.

Figura 1. Legenda: Montanha Cajari vista do rio Urucauá, 2002. Foto Laércio Fidelis

Dias.

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Figura 2. Legenda: Porto da aldeia Santa Isabel, 1998. Foto Lux Boelitz Vidal.

Figura 3. Legenda: Porto da aldeia Flexa (sic), 2002. Foto Laércio Fidelis Dias.

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Karipuna, Galibi-Marworno, Palikur e Galibi Kali´na fazem uso de vários

recursos terapêuticos, tanto nas aldeias quanto nas cidades vizinhas próximas das TIs.

Nas aldeias, recorrem a tratamentos à base de ervas; às enfermarias, onde são assistidos

por auxiliares de enfermagem indígenas; recorrem a especialistas terapêuticos indígenas

denominados de benzedores, sopradores e xamãs. Também utilizam, como mais um

recurso terapêutico, as promessas aos santos padroeiros das aldeias. Fora das áreas,

todos recorrem, principalmente, à Casa de Saúde do Índio de Oiapoque (CASAI) e aos

postos de saúde e hospitais da rede pública de saúde.

A escolha de qualquer um desses tratamentos não significa que outro seja

preterido. Com bastante frequência esses tratamentos sobrepõem-se uns ao outros. Ao

menos abertamente, Palikur e Galibi Kali´na não fazem, hoje em dia, uso de recursos

terapêuticos ligados ao universo xamânico e aos sopradores. No caso dos Palikur,

também não realizam as festas de santos padroeiros nem recorrem a eles para solicitar

interseções terapêuticas porque são pentecostais desde a década de 60 do século XX.

Por que tratar especificamente dos sopradores? Porque alguns de seus

tratamentos evidenciam de forma bastante evidente o meio ambiente como recurso

simbólico para a etiologia das doenças. Como lembras Dominique Buchillet (1991): é

impossível de diferenciar o empírico, o natural, ou o objetivamente eficaz, do mágico-

religioso, sobrenatural ou simbólico.

A autora faz essa refutação enfática ao procurar romper com a clássica

diferenciação dicotômica entre a biomedicina e as medicinas tradicionais e indígenas, na

qual estas segundas seriam mágico-religiosas e, a primeira, empírico-racionais.

Buchillet (1991) enfatiza que os resultados da experiência se inserem na lógica

simbólica e a lógica simbólica nunca contradiz e, mesmo, se funda parcialmente sobre

ela. E é exatamente isto que se vê nas etiologias e tratamentos dos sopradores:

experiência e lógica simbólica imbricadas de maneira dinâmica e complementar.

Corpo, Corporeidade, Percepção e Paisagem

Que ferramentas teóricas e conceituais permitem elucidar a imbricação entre

experiência e lógica simbólica, no caso específico dos sopradores? Autores como Mauss

(2011), Merleau-Ponty (1964; 2011), Csordas (2008) e Tim Ingold (2000) possuem

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essas ferramentas. Os conceitos de corpo, corporeidade, percepção e paisagem, nesses

autores, são cruciais.

Central para Csordas (2008) é compreender que o corpo da pessoa não é de

forma alguma o objeto, mas sempre o sujeito da percepção. A pessoa não percebe o

próprio corpo. A pessoa é seu corpo e percebe com ele tanto no sentido de ser uma

ferramenta perfeitamente familiar (Mauss, 2011) como no sentido de serem, self e

corpo, perfeitamente coexistentes.

Csordas (2008, p. 19) esclarece que o corpo surge então como “o solo existencial

da cultura”, onde se articulam: sujeito e objeto; conhecimento e autoconhecimento;

subjetividade e alteridade.

Corporeidade, ainda segundo Csordas (2008), seria a síntese desta encarnação da

cultura que constitui os seres humanos historicamente situados e o locus privilegiado de

articulação da dualidade sujeito e objeto e seus sucedâneos.

A paisagem aparece aqui como a unidade coerente do visível, o campo de

percepção de todos aqueles que a habitam e a constituem e por ela são constituídos. A

paisagem não é a totalidade abstrata de um universo inteligível, mas a unidade que se

experiencia deste continente que nos abriga na forma de um mundo local, mundo ao

qual se chama terra. (Merleau-Ponty 1964; 2011).

O esforço empreendido aqui – em articular os conceitos de corpo/corporeidade,

percepção e paisagem – vai no sentido de pensar a condição humana imersa no mundo

para apreender esta imersão não apenas no nível do corpo individual, mas também no da

paisagem como corpo do mundo.

Ou seja, a paisagem aparece aqui como um fenômeno complexo que abarca ao

mesmo tempo o visível e o invisível, enquanto percepção humana, e incorpora tanto o

solo profundo que suporta nossos corpos quanto a atmosfera fluida na qual respiramos.

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Figura 4. Legenda: Rio Uaçá visto do posto Encruzo, que fica na confluência deste rio

com o rio Curipi, 2011. Foto Laércio Fidelis Dias.

Segundo Ingold (2000), a experiência da vida não é vivida no interior de um

corpo que se relaciona com outros corpos como um objeto entre outros, mas se dá no

fluxo dos materiais (luz, som, vento, líquidos, texturas etc.) que os atravessam, diluindo

os limites de seus corpos, de suas mentes e de suas superfícies. A cosmologia de Ingold

revela o mundo como linhas que se entretecem no horizonte de uma atmosfera

(weather-world) que encompassa a terra e o firmamento.

Seu interesse é compreender a experiência comum a todos os seres vivos de

serem transpassados por materiais que os constituem como organismos que, por sua

vez, não se limitam a invólucros corporais ou identidades fechadas. O seu pensamento

apresenta-se como uma filosofia afirmativa da vida, extensiva aos organismos que

habitam o mundo.

O que é um Soprador. Qual a diferença para um Xamã?

Os sopradores são pessoas que aplicam terapias à base de sopro, em patuá: pota. Ao

contrário do tratamento à base de ervas que está ao alcance de todos, no sentido de que o

conhecimento do preparo dos remédios caseiros é largamente difundido, a habilidade de

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soprar restringe-se a um número menor de pessoas. Quando necessário, os sopradores

também utilizam ervas: cascas de árvores, folhas, raízes e sementes. Mas apenas eles

sabem soprá-las corretamente. Se as ervas forem utilizadas sem o sopro do soprador, seu

efeito será inócuo. Por essa razão, o soprador sempre assopra os remédios que prescreve.

“Os potas são canções entoadas em voz muito baixa, próximas à cabeça ou ao

corpo do doente, acompanhadas de sopros e pequenas cuspidelas” (Tassinari 1998: p.247).

O som é baixo, como um cicio. As letras, geralmente entoadas em patuá, são

compreendidas apenas pelo soprador. O tratamento é realizado durante o dia na própria

casa do doente e não necessita de ajudantes, nem é acompanhado por uma platéia, como

ocorre durante as sessões xamânicas.

Um soprador não possui poderes para entrar em contato com os karuãna, como

possuem os xamãs. O poder especial dos sopradores, que os distingue das pessoas comuns,

refere-se à capacidade de expulsar as doenças através de cantarolas, entoadas em voz

baixa, próximas ao corpo do doente. Essas cantarolas são acompanhadas de sopros suaves.

Sopros que levam a doença para longe, “curando a pessoa”. Tendo boa cabeça para

memorizar as entoações (potas), com o tempo, a prática e a experiência chegam e, então, a

pessoa se torna um soprador reconhecido e procurado.

Ainda sobre as diferenças entre xamã e soprador, certa vez um Palikur revelou-me

que o “soprador parece um médico”. Um xamã Galibi-Marworno esclareceu que o

soprador precisa ter, sobretudo, “boa cabeça para decorar as canções” (pota). Tanto que,

quando alguém é tratado com sopro, e tem boa cabeça, depois de curada, a pessoa pode

assoprar outras e também se tornar um soprador.

Este mesmo xamã Galibi-Marworno revelou, também, que os sopradores podem

tratar vômito, diarréia, dor de barriga e febres (muitas vezes esses mal-estares estão

associados à ingestão de alimentos ou água contaminada) que os remédios da farmácia não

conseguem dar jeito.

Segundo o Palikur, o soprador pergunta o que a pessoa tem, pergunta quando

começaram as queixas, depois faz o diagnóstico. Além disso, os diferentes potas são

simplesmente aprendidos e não ensinados por ninguém. Quando são cantados, ninguém

consegue compreendê-los.

Já o xamã, prossegue o Palikur, para fazer o diagnóstico, tem de cantar antes. Sem a

cantarola, a doença não pode ser vista. É preciso ver a doença para saber a sua causa

(etiologia) e para indicar o preparo do remédio. O soprador não tem o poder de ver a

doença.

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Existe na região um tipo de xamã chamado de gado (em patuá), que é uma

espécie de xamã que enxerga mais do que os outros. Gado é a substantivação do verbo

gade (em patuá), que quer dizer ver, enxergar. Gade, por sua vez, parece claramente

uma derivação de regarder (em francês) que significa ver, enxergar.

Ficam claras com estes esclarecimentos as distinções entre o valor epistêmico da

percepção sensível do xamã e do soprador. No caso do xamã, o poder está em ver, em

estimular as sensações visuais. Ele retira a doença do corpo do doente e a mostra para a

plateia que acompanha a sessão xamânica. O gado faz o mesmo, mas de modo ainda

mais arguto. No caso do soprador, o poder estar em soprar. O estímulo das sensações

táteis e auditivas é chave da eficácia de seu tratamento.

Ambos, entretanto, lidam com o invisível. O xama atua no invisível do outro

mundo, do mundo sobrenatural. O soprador lida com o invisível deste mundo.

Origens das Doenças Tratadas pelos Sopradores

As doenças tratadas pelos sopradores têm origens em vários tipos de ventos e

arco-íris.

Os ventos podem ser:

Gho ueio panã (vento que corre na água como peixe),

Vã mitã (vento comum),

Txi vã (pequeno vento pequeno),

Gho vã (vento grande).

O gho ueio pana (vento que corre na água como peixe) é descrito como um

vento provoca dor de barriga, simplesmente.

O vã mitã (vento comum) causa dor menor que gho vã (vento grande), embora

sejam parecidos.

O txi vã (vento pequeno) é apanhado quando se engole água. A sensação que

provoca é de dor de barriga “que vai e vem, sempre incomodando a pessoa”.

O gho vã (vento grande) provoca vômito ao ser engolido e aparece na água sob a

forma de redemoinho.

Um professor indígena esclareceu que ventos, diferentemente de sopro, “são

apanhados na natureza”: “no igarapé, no rio, no lago ou na comida exposta ao vento”.

Este mesmo professor indígena esclareceu acerca dos arco-íris. Há dois tipos:

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1) lakansiel nuit (arco-íris da noite), apanhado à noite, na neblina, quando se

bebe água do lago e do rio;

2) e lakansiel jonê (arco-íris da manhã), apanhado quando se bebe água num

temporal de chuva e sol, “com o sol bem quente”. Este último vento pode matar se não

for tratado.

Em síntese, existem quatro tipos de vento e dois tipos de arco-íris.

Ventos:

1) Vã mitã (vento comum);

2) Txi-vã (vento pequeno);

3) Gho vã (vento grande);

4) Gho ueio pana (vento que corre na água como peixe).

Arco-íris

1) Lakansiel nuit (arco-íris da noite);

2) Lakansiel jonê (arco-íris da manhã).

Os sopradores podem tratar distúrbios causados por bichos invisíveis que moram

na mata. Três tipos de bichos invisíveis, que não se confundem com os bichos do Fundo

(karuanãs), porque, com estes, apenas o xamã tem contato, foram revelados:

Txih-txih; Tataikenê; Goj totxi.

Txih-txih é descrito como um “pássaro branco” que passa a noite sobre as casas

contaminando os potes de água destampados, podendo causar dor de barriga.

Tataikenê é descrito como um “pássaro que voa à noite com o peito para cima e

o pescoço torto”. Se esse pássaro olhar para as pessoas, elas ficam com o pescoço e a

boca tortos.

O bicho goj totxi (pescoço de tartaruga) deixa a pessoa com o pescoço duro, como

se ela estivesse com tétano.

Os sopradores podem tratar doenças provocadas por ações humanas que rompem

certas regras sociais. Por exemplo, o do pai de recém-nascido que deixa a caça sofrer

antes de morrer. Nesse caso, a criança pode ser acometida pelo sin (sofrimento) do

animal. Por isso, se o animal for trazido ainda vivo para a aldeia, como é o caso do

jacaré e tracajá, evita-se matá-lo em frente das crianças para protegê-las do sin do

animal.

O próprio caçador pode ficar panema se permitir que o animal sofra antes de

morrer. Panema é um termo bem difundido na Amazônia. Num sentido mais genérico, a

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palavra quer dizer má-sorte, desgraça, infelicidade. Em outro sentido mais preciso, diz-

se que alguém está empanemado quando é vítima de insucessos repetidos, sendo que o

infortúnio não pode ser atribuído a causas naturais ou ambientais (Da Matta 1973: pp.

85-86). E o soprador pode atuar nesses casos.

Os sopradores podem também tratar as doenças provocadas pelas almas dos

mortos. Após a morte, a alma das pessoas pode ter três destinos: ir para o céu; ir para o

cemitério; ou ficar vagando pelo mundo. Aquelas pessoas que se impressionam com os

mortos, que não conseguem esquecê-los, são as mais suscetíveis de serem perseguidas e

atacadas por essas almas transeuntes. Almas de pessoas enfeitiçadas, que às vezes não

conseguem ir para o céu, precisam da ajuda de outra alma. Uma forma de obter esta

ajuda é “encostar” em pessoas doentes a fim de matá-las. Esperam que desse modo a

alma do doente as ajude a “entrar para o céu” com mais facilidade. Os Karipuna

costumam dizer que o estado de quem é atacado por almas assemelha-se ao estado de

quem sofre um enfarte ou ataque epiléptico.

Os sopradores também conhecem as técnicas do pota, ou seja, sopro, que podem

fazer o bem ou o mal a outras pessoas, deixando-as doente. Para tanto, basta que o

conhecedor dos potas assopre o outro em nome de um tipo de árvore ou animal cujas

qualidades sejam consideradas ruins. Dessa maneira, a pessoa assoprada adquire essas

qualidades malfazejas e adoece.

Por outro lado, se forem boas as qualidades do animal, pássaro ou árvore, em

nome do qual a pessoa foi assoprada, ela recupera a saúde e vitalidade.

Existem, por exemplo, pota de quatá (Ateles geoffroyi), pota de macaco-prego

(Cebus apella) e pota de porcão (Tayassu pecari).

Não seria demais destacar que “contra um pota, só outro pota”. O xamã só pode

curar doenças provocadas por sopros se também souber assoprar.

O pota do urubu e o pota do macaco são bastante ilustrativos de potas

destinados ao para o mal e para o bem, respectivamente.

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No caso do pota do urubu, os efeitos não são bons. Aquele que for assoprado em

seu nome ficará tão feio e magro a ponto de ninguém querer se casar com a pessoa.

Quando uma criança está abatida, amuada, quieta, não faz travessuras nem quer

brincar, recomenda-se o pota do macaco para lhe dar vida e alegria. O macaco é “esperto,

agitado e vive pulando de galho em galho”. Assoprar a criança em seu nome a deixará com

as mesmas qualidades. O pota do macaco também pode ser usado para qualquer pessoa

recuperar o ânimo, o apetite e a disposição.

Considerações Finais

As explicações acerca das doenças causadas por ventos, arco-íris, bichos invisíveis,

ações humanas inapropriadas e almas transeuntes etc, revelam a percepção da pessoa, do

grupo e do especialista terapêutico (soprador) do corpo, tanto individual quanto social, em

sua relação com o meio ambiente, para tornar cognoscível a experiência da doença. Essas

explicações revelam que o meio ambiente, transformado em paisagem através das

percepções que populações humanas, além de fornecer o alimento necessário ao seu

sustento, as ervas e demais substâncias de origem animal e mineral para preparar os

remédios caseiros, também é fonte de metáforas e significados que compõem as narrativas

indígenas que dão sentido à experiência do corpo doente, bem como fornecem

instrumentos que guiam a ação para o restabelecimento da saúde.

Agradecimentos

À Fapesp pelo auxílio concedido através do processo 98/00444-4. Aos

interlocutores indígenas do Uaçá e a Lux Boelitz Vidal pela cessão de fotografia.

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