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Etnias, Fluxos e Fronteiras: Processo de Emergência Étnica dos índios Cariri em Queimada Nova PI 1 Cinthya Valéria Nunes Motta Kós, [email protected] PPGANT-UFPI RESUMO A presença indígena foi, desde o princípio da história do Piauí, invisibilizada, o estado foi um dos últimos do Brasil a reconhecer e admitir a existência de uma história indígena e considerar o ressurgimento de uma cultura autóctone. A resistência a este reconhecimento tem embasamento na ideia de extermínio total desses grupos, replicada nos registros oficiais. Os grupos que tem reivindicado recentemente o reconhecimento enquanto grupos indígenas passam por diferentes tipos de desconfianças, pelos diferentes setores da sociedade piauiense, na maioria dos casos referentes a uma "repentina" auto declaração, considerada muita das vezes baseada em critérios fictícios por não apresentarem distintividade cultural e fenotípicas que os caracterizem como indígenas, baseadas num representação da idealização do protótipo xinguano. No município de Queimada Nova no sudeste do Piauí, um grupo indígena vinculado a etnia Cariri, demanda reconhecimento pelos órgãos competentes. A localização geográfica em que esse grupo se encontra denuncia tal vinculação - em uma região fronteiriça entre os estados do Pernambuco e da Bahia, área de ocorrência desses grupos. No mês mo local há também a existência de outros grupos étnicos; grupos quilombolas que detêm um amplo reconhecimento nos movimento sociais por sua organização política. Este trabalho tem como objetivo investigar as condições locais que favoreceram tal situação de "etnogênese", analisando o papel das relações intersocietárias (com grupos quilombolas) na formação de uma identidade étnica, considerando a peculiaridade do espaço geográfico onde estas se desenrolam e os limites físicos e simbólicos (fronteiras físicas e étnicas) no qual estão inseridos. Palavras-chave: emergência étnica; índios do nordeste; fronteiras, processo de territorialização. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

Etnias, Fluxos e Fronteiras: Processo de Emergência Étnica dos … · tem embasamento na ideia de extermínio total desses grupos, replicada nos registros oficiais. Os grupos que

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Etnias, Fluxos e Fronteiras: Processo de Emergência Étnica dos índios Cariri em

Queimada Nova – PI1

Cinthya Valéria Nunes Motta Kós,

[email protected]

PPGANT-UFPI

RESUMO

A presença indígena foi, desde o princípio da história do Piauí, invisibilizada, o estado foi

um dos últimos do Brasil a reconhecer e admitir a existência de uma história indígena e

considerar o ressurgimento de uma cultura autóctone. A resistência a este reconhecimento

tem embasamento na ideia de extermínio total desses grupos, replicada nos registros

oficiais. Os grupos que tem reivindicado recentemente o reconhecimento enquanto grupos

indígenas passam por diferentes tipos de desconfianças, pelos diferentes setores da

sociedade piauiense, na maioria dos casos referentes a uma "repentina" auto declaração,

considerada muita das vezes baseada em critérios fictícios por não apresentarem

distintividade cultural e fenotípicas que os caracterizem como indígenas, baseadas num

representação da idealização do protótipo xinguano. No município de Queimada Nova no

sudeste do Piauí, um grupo indígena vinculado a etnia Cariri, demanda reconhecimento

pelos órgãos competentes. A localização geográfica em que esse grupo se encontra

denuncia tal vinculação - em uma região fronteiriça entre os estados do Pernambuco e da

Bahia, área de ocorrência desses grupos. No mês mo local há também a existência de outros

grupos étnicos; grupos quilombolas que detêm um amplo reconhecimento nos movimento

sociais por sua organização política. Este trabalho tem como objetivo investigar as

condições locais que favoreceram tal situação de "etnogênese", analisando o papel das

relações intersocietárias (com grupos quilombolas) na formação de uma identidade étnica,

considerando a peculiaridade do espaço geográfico onde estas se desenrolam e os limites

físicos e simbólicos (fronteiras físicas e étnicas) no qual estão inseridos.

Palavras-chave: emergência étnica; índios do nordeste; fronteiras, processo de

territorialização.

1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto

de 2014, Natal/RN.

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Introdução

A presença indígena foi, desde o princípio da história do Piauí, invisibilizada. O

estado foi um dos últimos do Brasil a reconhecer e admitir a existência de uma história

indígena e considerar o ressurgimento de uma cultura indígena.

Na contramão dos dados oficias (que até a pouco tempo afirmava que índios no

estado teriam sido dizimados por completo) é crescente o número de pessoas que se

autodeclaram pertencentes a uma etnia no estado do Piauí. A recente atenção dada a

existência de grupos indígenas em território piauiense demandou a vinda de um escritório

da FUNAI para o estado, afim de se instrumentalizar as ações oficiais de reconhecimento,

que até então estão em processo de regularização.

Circunscrita num bioma de caatinga o grupo social que aqui se propõe a ter como

alvo de estudo, é um caso ilustrativo de um movimento regional de emergência étnica. A

Comunidade Indígena Cariri da Serra Grande é uma dentre as três comunidades declaradas

de procedência indígena no estado, as demais encontram-se no norte do estado: em Piripiri

(Tabajaras) e Pedro II (Tremembés).

Juntamente com o estado do Rio Grande do Norte, e mais remotamente o Ceará, o

Piauí figurou como uma federação na qual a ausência indígena era fato inquestionável.

A reprodução de tal asserção no senso comum se deve a disseminação por intelectuais e

pelas autoridades da idéia de extermínio total da população indígena pelos agentes

colonizadores, que encaravam os grupos autóctones como empecilho a uma ocupação

efetiva de áreas para implantação dos primeiros currais de gado.

Como descreve Odilon Nunes os donos das terras agradavam as missões, se elas se

prestassem a ser instrumento da submissão desses índios aos seus interesses pecuário; mas

se as missões tratassem desses índios como pessoas humanas, a que era preciso instruir e

educar e mesmo defender contra a escravidão positiva, ou disfarçada, os curraleiros

insurgiam-se contra os missionários, recusavam-lhe os meios, intrigavam os índios entre si,

influíam com os governadores para impedir a missão.

Costa (XXXX:2) aponta duas perspectivas correntes no imaginário e na

historiografia local em relação aos grupos autóctones. Uma delas e mais replicada é a ideia

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de extermínio total. Os defensores dessa tese tratam a problemática em caráter de denúncia

contra a extrema brutalidade com que foram “arrastados” da região. Afirmam uma total

dizimação, uma história do massacre. Uma outra concepção considera que a história dos

índios do Piauí chega ao fim a partir do aldeamento e “pacificação” dos últimos rebeldes,

na passagem do século XVIII para o XIX. Se não foram completamente destruídos pela

força das armas e das doenças, os poucos sobreviventes do massacre da colonização teriam

se misturado com o restante da população, tento suas “fracas” engolidas pela civilização, e

nascendo, a partir daí, o caboclo, ou mesmo o próprio piauiense (Costa XXXX.2)

Costa aponta ainda para a inviabilidade da tese da total dizimação dos índios, pois

além do interesse que os colonizadores tinham em transformá-lo em mão-de-obra escrava, a

vastidão do território piauiense também favorecia a fuga desses para lugares de difícil

acesso.

Como explica Ribeiro (p.2) o processo civilizador descrito pela historiografia local

era especialmente violento em relação aos povos nativos, algumas vezes apresentada como

projeto e responsabilidade do estado e da coroa portuguesa(Renôr, XXXX), outras como

processo social (Martins,2002).

Situação semelhante é retrata por Cavignac no Rio Grande do Norte em relação

aos negros e índios, como os principais atores sociais da história colonial desde estado que

tiveram uma existência enquanto sujeitos encoberto por uma historiografia: para

levantarmos o manto que encobre as identidades distintas e iniciar investigações,

precisamos começar por uma revisão bibliográfica, sobretudo do que foi produzido

localmente.

Afiliação étnica

Sobre a dificuldade de classificação de um grupo étnico Barreto Filho apud Santos

(2013: 215) explica ser recorrente a existência de “limites fluídos, imprecisos e cinzentos

entre uma cultura ou um povo de outro” .

A classificação etnológica mais importante até hoje pensada sobre os índios no

Brasil foi a executada por Eduardo Galvão, em 1960. Esse etnólogo, se apoiando em

classificações pré-existentes sobre outras regiões do mundo que incluíam o Brasil, sugeriu

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as “Áreas Culturais Indígenas do Brasil, de 1900-1959” (MELATTI, 1986 [1970]: 45).

“Uma área cultural é uma região que apresenta uma certa homogeneidade quanto à

presença de certos costumes e de certos artefatos que a caracterizam” (ibid.: 43) (Santos

2013:215).

Em Pesquisa sobre a história do Piauí, obra do célebre historiador piauiense

Odilon Nunes no primeiro capítulo intitulado Pré-história: primeiros contatos com a terra, o

autor aborda o evento da chegada e fixação dos primeiros colonizadores e o tipo de relação

que estes tinham com os grupos autóctones. Afirma o nomadismo ser um fator que

dificultava a nomeação desses grupos enquanto coletivo: difícil é nomear os índios de

determinada região, pois dum modo geral eram nômades; podemos, todavia, nomear os

ocupantes da região num determinado período, ou ainda os que nela se fixaram por mais

longo tempo, a testemunhar a prodigalidade da terra ocupada e a valentia de seus

defensores.

Atualmente convencionou a falar em seis etnias que existiram em território

piauiense: Acroás, Gueguês, Jaicós, Pimenteiras, Tremembés e Tabajaras.

João Gabriel Baptista faz uma compilação das principais cartas geográficas que

descrevem o Piauí até o do século XVII ao XX. Apresenta um quadro resumido da

distribuição das tribos indígenas locais apontada por Pe. Miguel Carvalho em Dezcripção

do certão do Peauhy de 1694. São citadas 36 tribos juntamente com sua localização. Entre

as que se encontram na área de interesse deste trabalho (sudeste do Piauí) tem-se: os

Cupenharoz, Coaratizes, Jaicós, Jendoiz, Meatanz, Ubates, Urius, Ycos (Baptista 1986:

p29-45).

De acordo com Odilon Nunes os mais antigos documentos que se referem ao Piauí

nos fazem conhecer os Tremebés, os Aroás, Cupinharões, Tabajaras e Amoipiras, como

povoadores da bacia do Parnaíba. E detalha:

Os Cupinharões e os Amoipiras parece que não se estabeleceram por longo tempo

na bacia oriental do Parnaíba... Os Amoipira ocupavam a margem esquerda do

S.Francisco, a cento e cinquenta légua da Bahia, onde bandeiras religiosas

mantêm contato com os mesmos e fazem, então, dois descimentos em penosas

viagens de longos meses... Os Cupinharões ocuparam o Canindé. Mantiveram

contato com os devassadores, converteram-se em aliança, para mais tarde lhes

oferecer resistência e enfim abandonar duma vez a bacia oriental do Parnaíba. Os

Tremembés ocuparam o delta do Parnaíba e parte do litoral do Maranhão e Ceará.

Os Aroás de todos eram os tapuias mais bravos e tinham domicílio a margem do

sambito, afluente do Poti. Os Tabajaras eram descendentes dos que vieram pelo

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S.Francisco, alcançaram a Serra do Araripe, e finalmente Ibiapaba. Eram tupis

que vieram para o Piauí pelo rio...desviaram sua rota do litoral, em virtude da

resistência oferecida pelos cariris que demoravam, então, na atual região do

nordeste, e que ainda não foram bem definidos pelos etnólogos (Nunes 1975:29-

30).

Ainda na mesma obra o autor cita em vários momentos os índios cariris, como

uma incógnita, considerando porém a importante participação desses no momento histórico

que aborda. Afirma, a maior parte dos indígenas tapuias do Piauí eram do ramo cariri, cuja

palavra quer dizer tristonho, calado, silencioso. Os cariris constituem ainda problema

obscuro para os etnólogos. Uns classificam-nos como grupo autônomo; outros, como

mestiços resultantes de aruaques e caraíbas, e ainda outros, misturas de tupi e tapuia. Em

verdade há contatos culturais entre os cariris e os aruaques e caraíbas (Nunes 1975: 30).

Dados e relatos sobre grupos indígenas que habitavam os sertões são escassos em

decorrência de uma maior atenção dada aos grupos que habitam a zona costeira, que eram

denominados de tupi, em oposição os dos sertões denominados genericamente tapuias,

tendo um efeito homogenizante sobre o conhecimento da diversidade étnica existente nos

sertões. Como explica Mellati (1987 [1970]: 32) apud Santos (2013: 212) anterior ao

desenvolvimento dos conceitos linguísticos no Brasil, os luso-brasileiros classificavam os

indígenas em dois grupos: os tupys e os tapuyas, replicando o mesmo preconceito que os

povos Tupi, mais conhecidos dos portugueses, detinham aos de nações não-Tupi.

A tradução literal da palavra tapuya, na Língua Geral e no Nheengatu era língua

travada ou bárbaro. “Tapuia” era o termo usado por indígenas das nações Tupi

para designar os índios que falavam uma língua muito diferente da sua. É uma

palavra equivalente ao termo bárbaro usado pelos gregos para designar os povos

estrangeiros, principalmente os eslavos que viviam além das fronteiras do norte.

Também, no latim, o termo barbaru tem o mesmo sentido, e era usado pelos

romanos para designar os germanos (PORTO, 2012) citado por Santos (2013:

212).

A língua falada pelos cariris, apesar de ser considerada uma família linguística

extinta encontram-se incluso no tronco linguísticos macro-jê.

Cavignac (2003:16-17) descreve alguns hábitos, procedência e motivos de

deslocamento de grupos cariris que viviam na área correspondente ao estado do Rio Grande

do Norte:

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Pouco se sabe sobre os grupos que habitavam o interior, porém podemos pensar

que, antes do contato, existia uma grande diversidade cultural e linguística;

muitos deles pertenciam à família linguística Kariri... Eram agricultores - não

totalmente nômades, como poderíamos pensar, mas tinham uma grande

mobilidade dentro do seu território (Dantas 1941: 97; Lopes 1999; Puntoni 2002;

Pires 1 990)... Perseguidos pelos colonos que queriam tornar-se donos de suas

terras para iniciar a criação de gado e escravizá-los, eles foram tirados delas pelos

bandeirantes (Portalegre et alii.1994: 157-158). Muitos índios teriam se refugiado

primeiro nas montanhas, nas chãs ou sopés das serras, nas cabeceiras ou nas

nascenças dos rios para fugir do inimigo, indo, cada vez mais, para o interior

(Jofilly 1977: 118). Por exemplo, os índios Cariri, originários de uma região

próxima ao Seridó , na Serra da Borborema, fugiram para o Ceará, onde deram o

seu nome aos Cariris Novos. Região montanhosa e relativamente fértil, que foi

ocupada, efetivamente, só no século XIX pelos colonos (Albuquerque 1989: 84).

Os Canindé fugiram da região do Seridó, supõe-se, no início do século XVIII

(Macedo 2002: 49).

Em sua expedição missionária pelos sertões do Piauí (durante quatro anos, desde

1694) o Pe. Miguel de Carvalho divide o estado em trinta regiões utilizando-se como

marcadores acidentes geográficos em torno dos quais haviam agrupamentos humanos. A

região IV corresponde a região a qual se desenvolve esse estudo:

IV- Confina, pela parte nascente, com os sertões desertos que correm para o

Pernambuco, pelos quais se não tem descoberto caminho, nem se vadeiam, em

razão dos muitos gentios bravos que neles habitavam, e só se tem chegado, pela

parte desta povoação, a avistar uma serra chamada o Araripe, que dizem ser

muita alta e que na superfície tem plano de 50 léguas. De uma e outra parte está

rodeada de várias nações de Tapuias bravos....Rio Grande e o Rio Preto que se

metem no Rio São Francisco... estes rios estão ao sertão povoado de muitos

tapuias bravos, valentes guerreiros... como são os Rodeleiros...Para parte do sul,

confina esta povoação com o rio de são Francisco, para qual tem dois caminhos

com distancia igual de 40 léguas, por entre matos desertos, em que não se acha

água no tempo da seca...

A localização geografia na qual se encontra o grupo aqui estudado denuncia uma

evidencia quanto a uma vinculação com o grupo étnico Cariri.

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Os Cariris (ou Kariris) são uma família indígena predominante no Nordeste,

presentes desde o Ceará e a Paraíba até a porção setentrional do sertão baiano. Dominavam

especificamente o Planalto da Borborema, a serra dos Kariri e do Araripe. A partir do

século XVII esses grupos foram deslocados e espalhados em regiões vizinhas (entre elas o

Piauí) em um trabalho catequético denominado missões rurais (Dantas; Sampaio e

Carvalho p.438).

Recorte da área estudada, correspondente a Serra Dois Irmãos (Serra Grande). selecionada em vermelho.

Mapa Etno Histórico do Brasil elaborado pelo etnólogo Curt Nimuendajú.

Assim como a família Jê, a família Kariri já foi muito diversa, enquanto os

primeiros eram os senhores dos Cerrados, os segundos foram os senhores das Caatingas.

Apesar de nem uma dessas famílias se restringiram aos respectivos biomas, pois os Jê

também ocupam o sul e leste da Amazônia, a floresta de araucárias da Mata Atlântica, e já

ocuparam uma pequena porção da Caatinga no Piauí (Santos 2013: 288).

A relação de pertencimento étnico e sua vinculação territorial pode ser observada

em relatos orais fornecidos pelos cariri de Serra Grande. De acordo com Halbwachs, citado

por Pollak (1992 p. 2) a memória deve ser entendida como próprio da pessoa e, sobretudo,

como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído

coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes. Pollack

acrescente apontando os elementos constitutivos da memória, temos:

acontecimentos vividos pessoalmente;

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acontecimentos vividos “por tabela”;

pessoas e/ou personagens;

lugares.

O fragmento a seguir do depoimento de Francisca Cariri retratam a predominância

dos elementos apontados acima.

...Como se a gente se envergonhasse de dizer o que nós era e aí os outros povos se

aproximava da gente e a gente convivia com os outros povos e agora vai ser um trabalho

da gente resgatar aquilo que era nosso, a nossa cultura do passado que vivia. As pessoas

mais antigas já fora, meus avós e bisavós já morreram... as pessoas mais velhas são de

sessenta a oitenta anos. Nós temos a memória de alguma coisa que contavam pra gente,

principalmente as formas de discriminação. Nós fomos tão atacados que nossos

antepassados viviam ali foragidos, com medo, nas tocas que temos lá, as tocas deles nas

pedras. E as fontes, temos três fontes tampadas lá por causa que o povo expulsaram nós,

fomos expulsos e mortos e os restantes que ficaram ali escondidos (nas tocas nas pedras)

foram obrigados a tampar estas fontes porque os outros povos que chegaram ali

expulsaram eles se apropriaram. Aí eles disseram “vocês podem ficar, mas as águas não

vão ficar com vocês” que era pra ver se eles iam embora. Sempre, quem mais ficou

foram as mulheres que eram pegas por eles... pra servir como mulher pra eles . Aí foi nós

que ficamos aí, os netos dessas famílias que serviram das mulher que ficaram da nossa

comunidade.

Em um estudo de genética molecular e das populações Sérgio Pena apresenta uma

reconstituição da origem geográfica de linhagens genealógicas para compreender o

processo que gerou o brasileiro atual (2002:11). É apresentado como resultado de pesquisa

um retrato molecular do Brasil no contexto histórico, no qual conclui-se que a maioria das

patrilinhagens é européia enquanto a maioria das matrilinhagens é ameríndia ou africana.

Tal quadro é explicado pelo povoamento pós-cabralino que foi até o início do século XIX

feito por homens de origem européia. Os primeiros imigrantes portugueses (e também

invasões temporárias de franceses e holandeses) não trouxeram suas mulheres, e registros

históricos indicam que iniciaram rapidamente um processo de miscigenação com mulheres

indígena (Sena 2002: 27).

Como expresso no relato de Francisca Cariri (acima) a memória ancestral é

referente somente a figura feminina, a uma matrilinhagem. Reforça Alves em estudos

etnoarqueologico com os índios Cariri de Serra Grande:

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Para explicar a descendência do grupo, Zequinha (2011) relembra as histórias

contadas por seus avos e seus pais: “A minha bisavó tinha sido pega a dente de

cachorro, braba mesmo, outras foram pegas a cavalo, para os brancos se casarem

com as índias”, e completa com firmeza a importância do reconhecimento do

grupo, “Temos que respeitar os nossos antepassados [...] que desapareceram, mas

nos estamos aqui, somos a sua descendência, [...] trabalhamos, respeitamos e

somos remanescentes indígenas” (depoimento colhido por Alves 2011:48-49).

Narrativa recorrente entre os grupos indígenas do sertão nordestino, como é o caso do

Seridó no Rio Grande do Norte:

Assim ficaram conhecidos na memória familiar os índios e índias que

sobreviveram à dizimação durante as Guerras dos Bárbaros1 (1683-1725) ou à

escravização em épocas posteriores a estas. Escondidos nos pés de serra ou nas

suas chãs e homiziados nas furnas e grotas, fugindo a todo tempo do alastramento

da fronteira pastorícia, foram literalmente caçados pelos conquistadores, que,

montados em cavalos e com a ajuda de cães de caça, domaram a sua brabeza.

Ainda que existam alguns relatos acerca de caboclos-brabos (SOARES &

PEREIRA, 2000, p.17-8; 21), a maior incidência de histórias de família coletadas

dentre as memórias individuais dos seridoenses recai sobre a presença de

caboclas como tronco genealógico ancestral. É Luís da Câmara Cascudo quem

denuncia por primeiro na historiografia regional, até onde temos conhecimento, a

presença das caboclas-brabas como constituinte da genealogia de famílias do

Seridó. Na sua opinião “Inúmeras famílias-troncos do Seridó e oeste norte-

riograndense tiveram avó-indígena, caçada a casco de cavalo, preferida pelo

fazendeiro, mãe do filho favorito, vaqueiro exímio, multiplicador de fazendas”

(CASCUDO, 1984, p. 43). Muitas vezes essas caboclas capturadas tornaram-se

esposas ou concubinas dos primeiros colonizadores (Macedo 2010: p2-3).

Além dessas contribuições para o entendimento da memória na construção da

identidade Pollack(1992 p.5) aponta ainda a três elementos essenciais: unidade física (o

sentimento de ter fronteiras físicas, ou melhor, de pertencimento, em casos coletivos); uma

continuidade dentro do tempo (no sentido físico, moral e psicológico) e a coerência (que ira

unificar os diferentes elementos que formam o grupo).

Fluxos e Fixos

Os povos indígenas que viviam e vivem no nordeste receberam ate pouco tempo um

tratamento secundário e até preconceituoso (enquanto categoria analítica) dentro

antropologia brasileira, devido a pouca “distintividade cultural” que apresentam. A

ausência de traços diacríticos é encarada como um produto de um longo histórico de

contato com a sociedade envolvente, logo esses grupos aborígenes, são encaixados (por

alguns teóricos) nos moldes da idéia de aculturação. Partindo dessa idéia esses grupos

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teriam perdido sua identidade cultural, recebendo assim apenas uma classificação residual,

sob o indelével signo da marginalidade. “Marginal” é alias, justamente a categoria

escolhida por Steward (1946) para classificar dicotomicamente todos os povos sul-

americanos não relacionados às florestas tropicais, caso típicos de todos os povos do

Nordeste se excluídos os Tupi costeiros.

João Pacheco de Oliveira argumenta que a categoria analítica “índios do nordeste”

foi preterida historicamente pela antropologia, sobretudo pela escola americanista, por não

apresentarem uma distintividade característica do protótipo xinguano, e explica o processo

que os tornou “índios misturados”.

Esse decurso ocorre dentro dos movimentos de territorialização apontado pelo o

autor, no que se chama de “mistura”. A primeira se deu em meados do século XVII e início

do século XVIII com os aldeamentos missionários jesuítas. A “mistura‟ foi promovida pela

tentativa de homogeneização de diferentes culturas através da sedentarização, catequese e

disciplinamento do trabalho. A segunda foi promovida pelas agências indigenistas que

estimulavam os casamentos interétnico. A terceira mistura decorreu da reorganização

espacial ocasionada pela Lei de terras de 1850 da qual muitos índios perderam a posse de

suas terras. No fim do século XIX não se falava mais em índios.

Esse processo de aparente extermínio simbólico dos grupos indígenas (para os

otimistas) é indispensável para o entendimento do processo de emergência étnica.

Sobre as “novas etnias” Cristian Teófilo da Silva sugere o conceito “identidade

contrastiva‟ como uma identidade que surge por oposição; do “nós” diante dos “outros”.

lançado por Barth (Silva 2005 p. 116). O autor se posiciona contra ideia de “manipulação

de identidade” como algo inventado”, “ falso” ou “dissimulado” e defende ser este um ato

político consciente e racional de agências e agentes na definição dos grupos e da realidade

social dos mesmos (Silva 2005 p.118).

(...) um jogo de contrastes que pressupõe negociações de imagens e autoimagens,

estratégias de luta e resistência e políticas de representação dos indígenas por

outros agentes que interagem com as tentativas dos próprios indígenas de

participar do processo de definição de si mesmos perante os aparelhos do Estado

e a sociedade envolvente (Silva 2005 p. 118)

Para Manuela Carneiro da Cunha, numa situação interétnica são as próprias

sociedades que constituem as unidades da estrutura interétnica, constituindo-se assim em

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grupos étnicos. Os componentes desta estrutura ganham novos significados como

elementos de contraste interétnicos (Cunha 2009 p. 356).

É neste contexto que Cunha, lança as definições de cultura como categoria analítica

de cultura, e “cultura”, como uma narrativa reflexiva que usa cultura para falar de si

mesmo. É dotada de autorreferencia e tomada de consciência.

Em uma crítica dirigida a João Pacheco de Oliveira quanto ao seu instrumental

teórico-analítico, Eduardo Viveiros de Castro considera ser demasiada e errônea a ênfase

dada a este a noção de territorialização e contato interétnico na construção de identidades

coletivas. A crítica recai no primeiro caso por não ser considerado outras dimensões que

permitem ver a operação e a existência de determinadas linguagens e prática de parentesco

(Rosa p. 53). O segundo contra-argumento se deve ao fato de que para um antropólogo

contatualista como João Pacheco de Oliveira, a história dos índios só passa a existir a partir

do contato com os não índios.

De acordo com o objetivo da pesquisa: investigar as condições locais que

favoreceram a emergência étnica dos índios Cariri na comunidade Serra Grande, e através

de quais critérios de pertença, fundam a oposição com o “outro” , entende-se que a

perspectiva de análise de João Pacheco de Oliveira e Fredrick Barth aparece como mais

afinadas ao propósito.

O sentido de etnicidade aqui compartilhado é de inspiração barthiana e é

impecavelmente definido por Lapierre (2011 p. 11):

A etnicidade não é um conjunto intemporal, imutável de „traços culturais‟,

transmitidos da mesma forma de geração para geração na história do grupo. Ela

provoca ações e reações entre este grupo e os outros em uma organização social

que não cessa de evoluir” (Lapierre 2011 p.11).

Aproximando-se da concepção dinâmica de cultura, considerando principalmente o

fenômeno das etnias emergentes na contemporaneidade, descarta-se a hipótese de

aculturação, que é de caráter evolucionista, pois parte do pressuposto de que a cultura flui

numa única direção. E como propõe Barth, usando o termo “corrente” como metáfora

explicativa de cultura, essa são universos discursivos, que compartilham significados,

comunicando-se em várias direções e estando em constante reformulação. Em processos de

legitimação de uma etnia (enquanto coletividade étnica) os “traços” levados em conta não

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só as somas das diferenças “objetivas” mas unicamente o que os próprios autores

consideram como significativo” (Lapierre 2011 p.13). E em casos de confrontos políticos,

alguns traços tradicionais são selecionados para serem restaurados. Tais traços culturais

imersos são de grande importância para o entendimento antropológico da situação estudada,

pois estes se formaram num curso de uma história comum que a memória coletiva do grupo

nunca deixou de transmitir de modo seletivo e de interpretar, transformando determinados

fatos e determinados personagens lendários, por meio de um trabalho do imaginário social,

em símbolos significativos de identidade étnica, agregados a uma origem comum.

A noção de fronteira será aqui abordada sob duas perspectivas diferentes, porém

coextensas. São elas: a noção de fronteira, enquanto limite físico, geográfico e a outra é a

fronteira étnica.

Para a primeira teremos como alicerce as contribuições de Roberto Cardoso de

Oliveira e Stephen Baines, que lançaram as bases para o estudo de relações sociais vividas

em regiões nacionais e/ou étnica estão postas em conjunção com o sentido de

nacionalidade. Sabemos que o foco desses autores recae sobre uma configuração espacial

mais abrangente e em que pesam as questões de estratégias de soberania nacional e

nacionalidade. No caso aqui a atenção se volta para fronteiras interestaduais, porque estas

aparecem como problemáticas a realidade que se pretende estudar. Com implicações

inclusive, numa possível demarcação de terra.

A relação entre fluxos e fronteiras é significante no caso dos índios Cariri de Serra

Grande, num quadro atemporal de percepção de espaço. Este grupo admite uma

procedência pernambucana, mas se consideram piauienses. Atualmente estão em constante

fluxos dentro desta região fronteiriça (PI, PE e BA), por diferentes motivos, trabalho,

estudos, práticas religiosas, relações pessoais entre outros.

Tomemos como exemplo o estudo de Luis Eugenio Campos que ilustra a relação de

identificação de um grupo étnico pertencente a uma unidade federativa diante de outras:

Lo que quiero destacar aqui, es que desde lós próprios municípios oaxaqueños,

Zapotecas o Mixtecos, se construyen e articulan uma serie de representaciones

que también explican lós fenômenos de fronteras, desde um nível local. Y si se

mira desde las comunidades o municípios de base y no a partir de lós estados-

naciones, la frontera, cualquiera que sea, se torna um médio cotidiano de relación

com estos... pueden estar localizados a Miles de kilometros o a unos cuantos

minutos de casa. La frontera em este sentido no es ya separación, sino médio de

comunicación, de conseguir lós insumos necesarios para la vida cotidiana

(Campos, 2005 p. 145).

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Cardoso de Oliveira afirma a necessidade de pesquisa de campo que envolva

observação direta, ao estilo da investigação antropológica para sabermos como pensam e

como se relacionam as pessoas nos espaços interculturais, o que não é possível saber pelo

estudo do sistema jurídico que recobre esta área (Cardoso de Oliveira 2005, p 19).

A segunda perspectiva de fronteira é referente às formulações de Fredrick Barth

quanto aos limites étnicos que os grupos criam no processo de identificação e rejeição de

atributos culturais. Muitos pontos do engajamento teórico de Barth já foram apresentados

nos trechos acima, no que se refere à fricção interétnica.

Tal perspectiva permite-nos visualizar os limites transpostos pelas relações de

alteridade, ou seja, nas diferenciações baseadas no movimento de inclusão e exclusão na

produção de uma identidade social. Partindo assim de uma ideia barthiana de fronteira

étnica. Tal discussão se mostra importante nesta proposta de pesquisa, porque como

percebemos na entrevista dada por Francisca Cariri, um incisivo elemento deflagrador da

identidade indígena foi o contato com outros grupos sociais, como no caso, comunidades

quilombolas vizinhas.

Tais fronteiras (boundaries) exprimem os fluxos relacionais diante de outros grupos

sociais e entre si mesmos. Como podemos perceber no depoimento de Francisca Cariri:

Não estamos reivindicando a terra como quilombola porque até mesmo a gente não se

sente. Não temos a característica de sermos negros. Até que nossos antepassados tiveram

os negros, mas nós temos a descendência mais próxima de índio, a gente se identifica mais

próximo de índio do que de mesmo negro. A gente até aceita as duas raças, né? Duas

famílias juntas, negros e índios. Nos viemos num processo já de muitos anos, de trabalho

com a comunidade. A gente vivia oprimido, com nossos antepassados tinha até medo de

dizer que o povo discriminava, que era índio, que era discriminativo e tinham vergonha de

nos identificar como índio. Daí... fundamos a associação de trabalhadores e vinhemos

organizando a comunidade e fazendo levantamento com a comunidade, pensamos que não

adianta a gente se esconder e dizer que nós não somos índios”.

É importante recorremos mais uma vez a historiografia para entendermos tanto a

formação da identidade do grupo estudado, como a relação desses com a vizinhança. A

comunidade quilombola referida no relato acima faz parte de um grupo dominante em

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número nas cabeceiras do rio Canindé e comungam com os “caboclos” a categoria de

“moreno” atribuída por outrem.

A ocupação demográfica, justificada em praticas econômicas consiste numa versão

explicativa para um expressivo número de comunidades negras rurais no sudeste do estado.

Situada na primeira zona de colonização, nas proximidades do estado da Bahia e

Pernambuco de onde partiram terços sertanistas, liderados por Domingos Jorge Velho. O

“desbravamento” do território piauiense, em início de formatação, tinha o aniquilamento

dos “grupos bravios” para a instalação das fazendas de gado a principal justificativa para a

vinda desses bandeirantes.

A vinda de escravos negros africanos para o estado era devido ao tipo de

empreendimento (fazendas de gado e plantações de algodão mais especificamente na

caatinga) inferior ao que se tinha em outras partes do país, onde predominava as

plantations.

No ano de 1884 se tem notícia de quilombo no sertão do Piauí. Claudio de

Albuquerque Bastos apud Santos (2006: 75) comenta que foi mandada uma escolta com o

fim de capturar diversos escravos que se achavam reunidos em quilombos, No município de

União. Em 1886 o número de escravos no Piauí chegou a 16.727 e em 1888 tinha

diminuído para quinze mil por diversos fatores: mortandade, libertação dos sexagenários e

saídas para outras Províncias. Com a libertação dos escravos em 13 de maio de 1888,

centenas ainda permaneceram em suas fazendas de gado, houve uma continuação do modo

de vida, porém sem os grilhões da escravidão (Lima, 2002 apud Santos 2006).

Atualmente essa região que no passado fazia parte do município de Jaicós apresenta

um expressivo número de comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Palmares

no estado. A área que correspondia ao município de Paulistana (desmembrada de Jaicós), as

dos municípios de Acauã, Betânia do Piauí, Jacobina do Piauí e Queimada Nova (as três

emancipadas de Paulistana na década de 90) possui atualmente 18 comunidades

quilombolas autodeclaradas e reconhecidas por órgãos competentes. A saber:

Paulistana (05): Angical, Barro Vermelho, Chupeiro, Contente e São Martins;

Acauã (03): Angical de cima, Escondido e Tanque de Cima;

Betânia do Piauí (03): laranjo, Baixão e Silvino;

Jacobina do Piauí (03): Campo alegre, Chapada e Maria;

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Queimada Nova (04): Baixa da onça, Pitombeira, Sumidouro e Tapuio.

Se atualmente há uma relação amigável entre índios e negros, o mesmo não

acontece desses dois grupos com os chamados “coelhos” (situação semelhante acontece nos

municípios vizinhos.

Hipoteticamente descendentes de Valério Coelho Rodrigues (português abastardo

que teria comparado uma faixa de terra que ia de Rajada á Oeiras, fundando a cidade de

Paulistana. Proprietários de fazendas de gado e plantações de algodão, possuía um grande

número de negros trazidos da Bahia em regime de cativeiro) os coelhos consistem em um

grupo étnico existente em quase todas cidades do semi-árido piauiense. São de pele branca,

possuem um sistema de parentesco fechado, com casamentos endogâmicos. São apontados

pelos outros grupos como isolados, tímidos... existe entre ele uma autoproteção grupal.

Esses grupos apesar de encontrarem-se na situação de camponeses assim como os demais,

detêm um destaque entre estes referentes ao campo político e econômico dominantes.

Como observa Santos (2006: 204): com relação a política, nos municípios de Paulistana e

Queimada Nova sempre foi comanda pelas famílias de Amorim e Coelho, esta última é

descendente do Capitão Valério Coelho. Essa família de ex-senhores de escravos que vem

se alternando no poder político a décadas, mesmo com a emancipação da cidade de

Queimada Nova, continua de forma direta e indireta, administrando a cidade.

Há momentos que são compartilhados entre os índios de Serra Grandes e os demais

grupos étnicos que vivem no município de Queimada Nova, é o caso da feira que acontece

às segundas-feiras na sede do município e das festas que são oferecidas nas comunidades.

São momentos que é possível perceber a forma de interação entre esses grupos e merece

um aprofundamento. Afirmam que antes havia mais segregação, que os “coelhos” não se

juntavam com gente de cor, antes tinha os locais separado dentro da cidade. Atualmente há

mais mistura nos espaços comuns dentro do município (sindicato, praças, igrejas, bares). Os

grupos étnicos no entanto permanecem geograficamente concentrados em suas

comunidades. Ficando os negros numa aglomeração de comunidades numa área

denominada Jacú; os “coelhos” estão em maior número numa área chamada Cantinho; os

índios cariri na Serra Grande e os ciganos mais aproximados do núcleo da cidade.

São raríssimos os casos de uniões conubiais entre esses grupos. A estabilidade da

ocupação territorial dos grupos que embaçam a teoria das 3 raças (brancos, negros e índios)

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em Queimada Nova não implicou numa mestiçagem soberana. Apesar da diminuição da

segregação nos espaços públicos, o distanciamento nas relações afetivas ainda é mantido.

Além disso há um curioso repertório classificatório desses grupos em relação a seus

atributos físicos-biologicos. Assim como a classificação usada pelos teóricos evolucionista

para designar a diversidade étnica brasileira. Nesses municípios citados anteriormente,

identificamos termos como: cabra, cazzo (albino), caboclo, alaranjado, negro, coelho,

maroto (moreno) e marinheiro.

Para cada “tipo antropológico”, para usar o temo de Nina Rodrigues, tem-se um

conjunto de qualidades e as vezes associações atávicas.

São citados marcadores biológicos, como, tipo de cabelo, cor de pele e formato dos

olhos. Daí se fala também em “qualidade do sangue” quando há uma “pureza”. Outros

atributos como grau de interação com outros indivíduos (habilidade relacional) e

participação na economia local são considerados.

A importância de se ressaltar tal quadro de diferenciação por uma estereotipia se

deve ao fato de que mesmo superadas nos estudos antropológicos tais termos terem uso

vigente na região aqui estudada e são acionados o tempo todo para a distinção entre os

grupos aí existentes.

Quanto à noção de territorialidade, esta foi pioneiramente tratada no contexto da

antropologia evolucionista, com Morgan, Fortes e Evans-Pritchard apud Oliveira, como

critério para distinguir formas de governo (baseados em parentesco, território e

propriedade). A antropologia funcionalista o utilizava como um fator de regulação de uma

sociedade e sua localidade no sistema cultural.

Contrapondo a ideia de Bohanan apud Oliveira, de que a ação social não tem

conexão com base fixa territorial, Pacheco de Oliveira (p.54) afirma ser esta última um

ponto chave para se apreender as transformações pelas quais passam uma sociedade, desde

o funcionamento de suas instituições até a significação de suas manifestações culturais.

A partir dessa afirmação Oliveira formula a noção de territorialização, que é um

processo de reorganização social que implica: 1) a criação de uma nova unidade

sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; 2) a

constituição de mecanismos políticos especializados; 3) a redefinição do controle social

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sobre os recursos ambientais; 4) a reelaborarão da cultura e da relação do passado (Oliveira

1997, p. 55).

O processo de territorialização é em suma, um ato político, deflagrador de

identidades. É o movimento pelo qual um grupo social, dotado de identidade étnica

diferenciadora vem se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma

identidade própria, instituindo mecanismo de tomada de decisão e de representação, e,

reestruturando suas formas culturais (Pacheco de Oliveira 1997, p.56). O autor ressalta

ainda uma diferença entre territorialização e territorialidade, sendo a primeira um processo

social deflagrado pela instância política e o segundo, uma qualidade inerente a cada cultura

(termo mais usado na geografia).

Uma instabilidade territorial pela qual a comunidade cariri passa e deve ser

analisada mais a fundo, está ligada a instalação de um parque de geração de energia eólica

nas terras ocupadas por este grupo, abrangendo também áreas de comunidades quilombolas

ali existentes. A situação foi exposta por meio da mídia virtual: Quero socializar a situação

de angustia e conflito que estão passando os nossos parentes Indígenas da Tribo Kariri em

Serra Grande e a comunidade Quilombola Sumidouro, que vivem a mais de 150 a 200 anos

em Queimada Nova e agora estão sendo ameaçados por Empresas de Energia Eólica para

instalarem seus grandes projetos”, (Rosalina dos Santos, vereadora de Queimada Nova).

A geração de energia com a implantação de um parque eólico é atualmente a

principal causa de temor dos que vivem em Serra Grande em relação aos seus destinos. Em

reunião articulada pelos moradores na ocasião da minha visita a comunidade . Os

participantes demonstraram grande preocupação em relação a uma possível perseguição da

empresa, pois não possuem documento que confirmam posse de terra e temem de serem

impedidos de ter acesso a área em que vivem e assim perder seus costumes e modo de vida,

como eles próprios afirmam. Colocam-se consciente sobre a possibilidade da empresa não

cumprir todos os benefícios que promete, além de considerarem irrisório o valor proposto

pela empresa pelo arrendamento da terra (R$ 2,00 por hectare, por ano). Outro fator

complicador é a compra de terras da serra por pessoas “de baixo da serra” que estariam

repassando estas para a empresa. Afirma Do Carmo: a serra é boa por isso é perseguida. É

pra quem tem coragem por não tem água... agora melhorou por causa das cisternas.

Duas empresas competem para concessão de instalação: Casa dos Ventos e Atlantic.

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Considerações Finais

De acordo com Barth os grupos étnicos concentram-se naquilo que é socialmente

efetivo. Um traço fundamental é a característica da autoatribuição ou atribuição por outros

a uma categoria étnica. Uma atribuição categórica é uma atribuição étnica quando classifica

uma pessoa em termos de sua identidade básica mais geral, presumivelmente determinada

por sua origem e seu meio ambiente. Na medida em que e outros autores usam identidade

étnicas para categorizar a si mesmo e outros, com objetivo de interação, eles formam

grupos étnicos neste sentido organizacional. As características que são levadas em

consideração não são a soma de diferenças “objetivas”, mas somente aquelas que os

próprios atores consideram significantes. O conteúdo cultural das dicotomias étnicas

parecem ser analiticamente de duas ordens: 1. sinais ou signos manifestos – os traços

diacríticos que as pessoas procuram e exibem para demonstrar sua identidade, tais como

vestuário, a língua, a moradia, ou o estilo de vida; e 2. orientações de valores fundamentais

– os padrões, moralidades e excelência pelos quais as ações são julgadas... nenhum desses

tipos de conteúdos culturais deriva de uma lista descritiva de traços ou de diferenças

culturais; não podemos prever a partir de princípios evidentes quais traços serão realçados e

tornados organizacionalmente relevantes pelos atores (Barth 193-194).

Podemos dizer que uma das motivações da recente emergência étnica dos Cariris

de Serra Grande, é a instabilidade territorial devido a instalação de empreendimento nas

terras que ocupam imemorialmente. Motivo esse que vem sendo frequente em outros casos

de “etnogênese” no Brasil. Quando um grupo vulnerável a mudanças indesejadas, decide

descobrir o manto da invisibilidade de uma cultura diferenciada que carregam,

considerando e fazendo uso dos dispositivos jurídicos que lhe dão proteção e lhes garantem

uma existência enquanto tal.

Podemos afirmar ainda que outro fator para tal fenômeno é a realidade interétnica

que esse grupo está inserido, no qual grande parte dos indivíduos com que se relacionam ,

apresentam um sentimento de pertençam a algum grupo com atribuições étnicas.

A unidade entre os diferentes grupos sócias que compõe a área pesquisada é dada

pela peculiaridade ecológica de um clima semi-árido em um bioma de caatinga,

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combinação responsável por ciclos de estiagem severas, que são compartilhadas com uma

vivacidade na memória de tais grupos. Barth apresenta quatro formas de relações em

situações em que nichos comum constituem um ponto de articulação entre as populações

distintas entre populações culturalmente distintas (Barth p. 202). Weber (p.274) também

ressalta o alto grau na adaptação a condições naturais externas, como uma das fontes que

dão origem a costumes comum. Esse modo de vida parcialmente compartilhado graças a

um elo ecológico, pode seguramente ter seu raio de alcance geográfico estendido para áreas

circunvizinhas. Esse modo de vida de amplo alcance regional está relacionado ao ethos

sertanejo.

Dessa forma podemos dizer que formação de uma identidade étnica não está

congelada em um tempo e espaço hiper-delimitado. Ela se dá através da relação

reconhecimento/estranhamento com outros grupos, característico do processo de alteridade.

Os elementos que são passiveis de comparação, que são uma moeda de identificação, são

também constantemente ressignificado. Sendo que articulação externa pode ser supralocal,

além das fronteiras político-adminitrativa.

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