72
Ed.2 – 07/agosto/2006 VICTOR STEINBERG MOTTA EU TENHO MEDO DE VIRGINIA WOOLF DRAMA INSPIRADO EM AS HORAS Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora. 1

Eu tenho medo de virginia woolf

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Citation preview

Page 1: Eu tenho medo de virginia woolf

Ed.2 – 07/agosto/2006

VICTOR STEINBERG MOTTA

EU TENHO MEDO DE VIRGINIA WOOLF

DRAMA

INSPIRADO EM AS HORAS

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

1

Page 2: Eu tenho medo de virginia woolf

“Quase o amor , quase o t r iunfo e a chama, Quase o pr incip io e o f im – quase a expansão . . .Mas na minh ' a lma tudo se derrama. . .Entanto nada fo i só i lusão!De tudo houve um começo . . . e tudo errou. . .– Ai a dor de ser -quase ( . . . )”

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

“O tempo é uma espécie de duração. Duração s igni f ica pers is tência em exis t i r . O que não tem exis tência , também não tem duração.”

WALTER BRUGGER

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

2

Page 3: Eu tenho medo de virginia woolf

Es ta apresentação fo i fe i ta para o le i tor apressado, aquele

que pula as páginas antecedentes e va i d i re to ao começo da

h is tór ia .

Quando rabisco es ta nota , sob o impacto afe t ivo

i r redimível das sensações que foram tantas ao presenciar

“As Horas” , consola-me imaginar o le i tor , espectador ou

gente do tea t ro , com o encargo de ver (quem sabe rever) o

f i lme ou ler o l ivro ; o que será de imensa impor tância antes

de passear com os o lhos por aqui . É a opor tunidade de tentar

consent i r uma abrangência mais n í t ida dos assuntos aos

quais me ref i ro nes ta obra quase tea t ra l . Do mesmo, ver o

f i lme ou ler o l ivro é uma dica mui to mais va ledora do que

somente fazer essa tarefa como t re inamento para le r es te

tex to .

Eu rea lmente pus lá em c ima “quase tea t ra l” , pois de fa to

t ra ta- se de uma quase-obra . Uma vez que é tea t ra l por seu

formato ser es té t icamente encenáve l , mas não chega a ser

a lgo ass im. Na exis tência de uma ca tegor ia ext ra nos

ca tá logos , a lgum outro gênero l i te rár io , não tenho cer teza da

palavra que bem encaixar ia , mas penso que o mais per to

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

3

Page 4: Eu tenho medo de virginia woolf

poss ível , embora a inda afas tado, ser ia a lguma coisa em

torno do “depoimento de d is túrb ios sens íveis” . É mais

quase- tea t ro a inda , pois a mis ter iosa escr i tora que aparece

ent re as l inhas escreve um romance do qual , não se i

exatamente porquê, pode serv i r como excer tos de seu l ivro

apenas como suges tão a le i tores ou indicações desses

“depoimentos sens íveis” a d i re tores e a tores , que têm plena

l iberdade em fazer com ela o que bem entenderem no caso

de uma montagem. Um raro e ameaçador equi l íbr io ent re

dramaturgia e l i te ra tura . Entre o óbvio e o compl icado,

exis te apenas uma t roca de o lhar . E nes te exis te uma

inspi ração (“ inspi rado em ‘As horas’”) , não es tá escr i to de

maneira a lguma “Adaptação de ‘As Horas’” , quanto menos

“uma peça inspi rada em ‘As Horas’” . Mas não deixa de ser

um drama, s implesmente por causa das s i tuações . Essas

s i tuações que foram não se i como parar na minha cabeça e

morreram es t icadas em f rases no papel .

Haviam pensado que “As Horas” era um l ivro

“ inadaptáve l” . Seu excelente autor , Michael Cunningham,

vencedor do prêmio Pul i tzer em 1999, fez uma obra

inspi rada (e que inspi ração!) em Mrs . Dal loway, cujo t í tu lo

era para ser , cogi tou Virg ín ia , As Horas . O que torna ,

por tanto , a obra de Cunningham uma adaptação. Es ta ,

porém, depois de tantos preconcei tos , t ransformou-se num

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

4

Page 5: Eu tenho medo de virginia woolf

ro te i ro br i lhante e num f i lme contagioso , incurável , a mim

ins ta lou-se como uma c ica t r iz na a lma. O f i lme, de S tephen

Daldry , fo i ac lamado, espi r i tua l izado (com razão!) e

indicado a nove prêmios da academia hol lywoodiana . Seu

ro te i r i s ta-adaptador , David Hare , fez do f i lme uma

adaptação de uma adaptação. Um t rabalho d i f íc i l , a nar ração

do l ivro c i rcunda em pensamentos in ter iores das

personagens ; como t raduzir i s so em cena (c inema)? Hare fo i

su t i l : a in terpre tação das cé lebres a t r izes faz um contra-

ponto ent re as pa lavras profundamente s imples e o ponto de

v is ta que a personagem apresenta . Que t ipo de pensamento

escorre sobre aquele semblante? Pres to , encontrava- se

cora josamente adaptado.

Hare fo i v i tor ioso e ousado. Aqui , f iz tudo er rado, de um

je i to que se um produtor de c inema lesse , pensar ia ser uma

piada e uma t remenda perda de tempo. Mas vale perder o

tempo com esse l ivro , que fa la sobre o tempo perdido? A

fa lha também in teressa nas es tantes das l ivrar ias? Pois

nenhum obje t ivo fo i conclu ído, nem os meus para cr iar uma

peça in teressante sobre uma obra que amo tanto , tampouco o

dos personagens , que são tão boni tos e caem num jogo

per igoso . Foi só por amor . E o amor comete umas bobagens!

José Saramago comentou sobre a obra “Budapes te” de

Chico Buarque: “ . . .ousou mui to , escreveu cruzando um

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

5

Page 6: Eu tenho medo de virginia woolf

abismo sobre um arame e chegou ao outro lado” . No meu

caso , se Saramago lesse es te quase-coisa , d i r ia ,

provavelmente : . . . ousou mui to , escreveu cruzando um

abismo sobre um arame e ca iu no pr imeiro passo . Contudo,

em Mrs . Dal loway, “Virgin ia Woolf escreveu, na verdade, a

h is tór ia da cr ise de um indiv íduo, de uma c lasse , de uma

sociedade e a do própr io romance” .

Essa quase-peça que temos aqui é , enf im, uma inspi ração

de um rote i ro adaptado de uma adaptação, num t í tu lo

meramente culpado em responder a pergunta de uma outra

peça , sucesso em Nova York, de Edward Albee “Quem tem

medo de Virg in ia Woolf?” (que também foi adaptada para

c inema!) . O que também faz dessa uma peça de t í tu lo

adaptado.

O que torna todo esse emaranhado de inspi rações

adaptadas e uma apresentação espantosa uma peça

obviamente f racassada . E , sendo ass im, apesar dessa

contradição às expecta t ivas de um le i tor e um escr i tor , o

f racasso é a grande v i tór ia des ta quase-a lguma coisa . Pois

aqui se faz uma homenagem a Richard Brown, um escr i tor

que , no f racasso t rágico , encontrou heróico t r iunfo .

Porque acho que Virg in ia sent ia uma coisa que eu s in to ,

que qualquer escr i tor decente sente , que é a sensação de que

mesmo que o l ivro pronto , o l ivro f ina l izado, sa ia mui to

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

6

Page 7: Eu tenho medo de virginia woolf

bom, você t inha a lgo maior em mente . Você f icava

c i rculando por a í com um balão de desenho animado na

cabeça no qual es tá o “ l ivro do amor” , que contém tudo que

você sabe e imagina . Esse l ivro mudará a consciência das

pessoas , quando não o mundo rea l . E mesmo que o l ivro

f ique mui to bom, é s implesmente um l ivro . E é imposs ível

não se sent i r desapontado. F iquei mui to fe l iz ao ver que isso

t ransparece quando Richard sente que fa lhou. Porque

ar t i s tas fa lham. Todos fa lhamos . Nunca f ica tão bom quanto

você sabe que poder ia f icar . I sso é par te do que nos mantém

escrevendo e às vezes é nossa janela . A sensação de não ter

acer tado é a par te mais na tura l e inevi táve l do processo . É

c laro que você t inha um l ivro melhor em mente , você prec isa

te r . Você prec isa tentar i r a lém daqui lo que você faz . Se

você t iver a lgum t ipo de contro le , a lguma saúde menta l ,

saberá minimizar as perdas e pensar : “es te l ivro não f icou

tão bom, mas o próximo f icará” . Mas , se você for de

natureza mui to del icada , poderá encarar sua v ida como um

f racasso , mesmo que n inguém mais pense ass im, mesmo que

todos achem que f icou ó t imo, você sabe que poder ia te r s ido

um l ivro melhor se você t ivesse se es forçado mais , se

concentrado mais , se não t ivesse se embebedado naquele

sábado e f icado com ressaca , bem no d ia em que a grande

inspi ração ter ia v indo. Enf im, já d isse quase tudo sobre o

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

7

Page 8: Eu tenho medo de virginia woolf

ar t i s ta a tormentado, mas ar t i s tas são a tormentados como

quase todos . Mas acho que esse é um dos tormentos de que

mais sof rem os ar t i s tas . Você sabe , mesmo que n inguém

mais sa iba , você não conseguiu . Não fez o que podia te r

fe i to .

O Autor

DRAMATIS PERSONAE

A Escr i tora .

GABRIEL (1975 - 2002) , a pr inc íp io , um dramát ico . Anda s im

desesperado, f rági l e so l i tá r io como a lguém desprovido de

moradia tanto quanto para um imóvel quanto para as coisas que

habi tam no eu . Quer ia ser escr i tor e tem mui ta vontade de

compreender o f i lme “As Horas” . Mas é um dramát ico , com cer ta

ingenuidade.

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

8

Page 9: Eu tenho medo de virginia woolf

LÚCIO (1974 - ?) , observador e anal í t ico , mergulha nas

profundezas das pessoas . Mas quando sa i , seca-se d iscre ta e

rapidamente .

PATRÍCIA (1977 - ?) , amiga ín t ima e ant iga dos rapazes . Tem

um namorado, ANTÔNIO , que es tá morando na Europa.

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

9

Page 10: Eu tenho medo de virginia woolf

PRÓLOGO

Um solo coreográf ico de um bai lar ino .

Música “Metamorphos is # 2”, de Phi l ip Glass .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

10

Page 11: Eu tenho medo de virginia woolf

ATO ÚNICO

CENA: 2003.

Um apar tamento (k i tne t ou lo f t ) a lugado no centro de

São Paulo (como de cos tume, nublado e f r io ,

ac inzentado, subaquát ico) . As t rês paredes que fecham

(encaixam) o espaço cênico aparentam gas tas e mau

pin tadas , rasgadas , manchadas de fungo e bolhas , e o

p ior , quadros incoerentes (não dever iam es tar a l i

jamais ) es forçam-se a se manter pendurados , com suas

i lus trações r id ículas de árvores , paisagens e ros tos ,

como se vár ios moradores t ivessem habi tado lá

anter iormente , o que aparenta todos e les terem s ido

mui to imundos , negl igenciando o domicí l io . O piso é

es t i rado por tapetes a tu lhados , tapetes d is t in tos , a lguns

desbotados , outros persas bem fa lsos (desacer tos nas

es tampas) , outros bem color idos e chamat ivos , os c í l ios

melecados de ácaro e ac identes (a lguém derrubou

cerveja ou deixou cair o c igarro) , a lgo que aumenta

bas tante a cafonice lamentável e apodrecida daquele

lugar . Sob esse p iso asqueroso , um rádio rodeado por cd

´s e l ivros , um sofá rasgado (espuma bege e molas –

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

11

Page 12: Eu tenho medo de virginia woolf

anéis bem enferrujados- são ev identes ) , dois colchões

nada prof i lá t icos , uma janela que dá para uma v is ta (se

for puxada a pers iana toda enroscada e a trapalhada)

fe ia e apocal íp t ica , uma mes inha de jantar para duas

pessoas , um banquinho, fo lhas de jornal , te le fone de

parede , pratos e ta lheres su jos na p ia , gavetas , fogão,

l ixo e , no corredor ao fundo, vê-se somente a por ta

aber ta de um banheir inho que ex ibe uma cor t ina de

chuveiro gosmenta e sebosa, a outra por ta do corredor

nunca será aber ta . Há, na sa la , um DVD do f i lme “AS

HORAS”. Tudo isso com pos ições es tra tégicas para todos

os cômodos serem v is íve is num campo de v isão g lobal da

p la té ia .

(Uma Escr i tora entra , abre um caderno e escreve) .

(GABRIEL, de calça jeans , gorro e b lusa de lã por

causa do fr io , abre a por ta e entra com um carr inho de

supermercado bem cheio , com aquelas sacolas p lás t icas .

Es frega as mãos , esquentando-as . Larga as chaves num

canto e vai depos i tando as compras na mes inha. L iga um

cd, Metamorphos is # 2 , de Phi l ip Glass . Procura f icar

mais à vontade , re t i rando a b lusa , a calça , menos o

gorro e de ixa coisas como car te ira e c igarro . Ves te um

roupão azul e desbotado i lus trado por foguetes , p lanetas ,

es tre las e as tronautas , a lgo bem in fant i l , mas

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

12

Page 13: Eu tenho medo de virginia woolf

s igni f ica t ivo , uma calça de mole tom e sapatos Aruba

pre tos . Põe-se a t i rar os produtos que havia comprado,

uma garrafa de v inho t in to , um l ivro de recei tas e a lguns

ingredientes gas tronômicos como tomate , abóbora,

massa , far inha, molhos e carne . O te le fone toca . Arruma

as sacolas num mont inho e vê- se sa t is fe i to . O te le fone

ins is te) .

GABRIEL (ao te le fone) : _ Alô . Oi . . . S im, es tou em

casa . Até mais . (des l iga) .

(Acende um c igarro , abre o v idro da janela e pára a f im

de re f le t i r . Dá uns t ragos , de ixa o c igarro na boca, t i ra

o mont inho de sacolas , amassa tudo e enf ia no carr inho

de compras , abandonando o mesmo num canto da

coz inha. Dá mais uns t ragos para saber o que fazer com

os ingredientes sobre a mesa. Pega o l ivro de recei tas .

Lê , dando a lguns t ragos) .

Escr i tora:_ A v ida toda num só d ia .

(LÚCIO entra , abr indo a por ta do apar tamento . Es tá

carregando – um tanto que com di f icu ldade, a f inal es tá

sem carr inho - um monte de sacolas de supermercado) .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

13

Page 14: Eu tenho medo de virginia woolf

LÚCIO:_ Gabr ie l . Gabr ie l? Gabr ie l !

(S i lêncio) .

LÚCIO:_ Richard?

GABRIEL (pára de escrever) :_ Oi.

LÚCIO : _ Como vai? Hoje achou a lguma coisa?

GABRIEL : _ Nada. Nem deu tempo de procurar .

LÚCIO : _ Meu, o lha que saco! O car r inho de

supermercado sumiu da garagem, eu t ive que car regar

tudo isso . . . (nota que o carr inho e as compras es tão no

apar tamento) . Mas o que é i sso?

GABRIEL : _ Isso o quê?

LÚCIO : _ Você sa iu?

GABRIEL : _ Ah! Eu f iz as compras . Es tou querendo

fazer um jantar .

LÙCIO : _ Porra , cara! Eu fa le i que ia fazer as compras

hoje! Depois você fa la que eu gas to d inhei ro à toa .

GABRIEL : _ E gas ta mesmo. Não aprende nunca .

(LÚCIO vai guardando as compras que carrega

enquanto observa as compras do colega, que f ica

sentado num sofá apenas para lhe escutar , anotando) .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

14

Page 15: Eu tenho medo de virginia woolf

Escr i tora: _ Ele es tá sendo agora in terrompido por

tudo.

LÚCIO : _ Mas você sa iu , você nunca sa i .

GABRIEL : _ Saí , sa í s im. O que é agora? Não posso?

LÚCIO : _ Claro que pode, não é i sso . É que você nunca

sa i . Achei es t ranho. Que h is tór ia de jantar é essa? Nossa ,

gruyére!

GABRIEL : _ Eu ia fazer uma surpresa . A Pat r íc ia não

vem aqui hoje? Então , comprei a té v inho.

LÚCIO : _ Com que d inhei ro?

GABRIEL : _ O meu! Eu também tenho d inhei ro já se

esqueceu?

(Pausa) .

LÚCIO : _ Meu Deus! Esse v inho é caro pra cacete . Que

é que deu em você hoje , he in?

GABRIEL : _ Pô, cara . Eu não tenho empregada nem

cozinhei ra para fazer um jantar . E nossa amiga es tá v indo

a í .

LÚCIO : _ Você não tem empregada porque não quer .

Podia mui to bem morar em outro lugar , mas não, f ica

t rancado nesse es t rupíc io por causa de um f i lme! Ainda

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

15

Page 16: Eu tenho medo de virginia woolf

bem que você tem um amigo. Nem se i porque f ico te

v is i tando. Tor te l l i , abóbora! Você quer abr i r um

res taurante?

GABRIEL : _ Quer ia escrever . Você sabe de a lgum

lugar que venda inspi ração? Cacei hoje o d ia in te i ro e

não achei . Depois d izem que São Paulo tem tudo.

LÚCIO : _ Como você se v i rou lá fora?

GABRIEL : _ Sei exatamente o que fazer lá fora , não se

preocupe.

LÚCIO : _ A Pat r íc ia l igou?

GABRIEL : _ Ainda não. Será que e la vem mesmo?

LÚCIO : _ Sei lá . Porque você quer fazer um jantar ,

he in?

GABRIEL : _ Me deu na te lha .

LÚCIO : _ Não é pe la Pat r íc ia?

GABRIEL : _ Também, não se i . Pode ser .

LÚCIO : _ Você só escuta essa música! É tão chato!

(Vai ao rádio e des l iga a mús ica) .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

16

Page 17: Eu tenho medo de virginia woolf

Escr i tora:_ o que fazem com a mús ica dele? O que

fazem com ele?

GABRIEL : _ Me faz bem. Eu acho boni to . É música de

f icar em casa e pensar sobre lá fora , en tende?

LÙCIO : _ Que horas você fo i ao supermercado?

GABRIEL : _ Fui bem cedo, f iquei o d ia in te i ro

inventando coisas para o jantar . Porque você não me

a juda? Comprei l ivro de recei tas , tem um pra to del ic ioso ,

esse com abóbora ; e a sobremesa é formidável . . .

LÚCIO : _ Eu já comi .

GABRIEL : _ Já comeu? Que mancada!

LÚCIO : _ Como é que eu ia saber? Desculpa .

GABRIEL : _ Não, tudo bem. Agora já fo i .

LÙCIO : _ Mas eu tomo um vinho com vocês .

GABRIEL : _ Es tá bem. Pelo menos isso .

LÙCIO : _ Um jantar na sua casa . Você nunca fo i d isso!

GABRIEL : _ E você nunca fo i de f icar rec lamando

tanto .

LÚCIO : _ Só es tou sendo s incero . Foi mui to es t ranho

chegar aqui e ver que você t inha sa ído . Como uma

surpresa , sabe? É como chegar em casa e ver um móvel

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

17

Page 18: Eu tenho medo de virginia woolf

novo, que você nem sabe como fo i parar lá . I sso faz você

f icar ques t ionando.

GABRIEL : _ Surpresa!

LÚCIO (Vê o DVD do f i lme As Horas) :_ Ah, você

comprou o f i lme!

GABRIEL :_ É. Chegou ontem. Já ass is t i umas duas

vezes .

LÚCIO : _ E o jornal? Não achou nada mesmo?

GABRIEL : _ Não. ( levanta-se) . Nada que serv isse .

LÚCIO : _ Vai t rabalhar ! F ica a í como um id io ta , parece

um velho ranzinza .

GABRIEL : _ Não dá para acredi tar que você a inda não

possa ter me entendido. Será tão d i f íc i l?

LÚCIO : _ Não é ass im. Não é ass im mesmo.

GABRIEL : _ Não é ass im mas é ass im s im! Fala a í :

Então porque quem me conhece pela pr imeira vez se

incomoda?

LÚCIO : _ Quem f ica incomodado?

GABRIEL : _ Todo mundo! Tem sempre a lguém que eu

vejo pela pr imeira vez , conversa um pouco e me chama

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

18

Page 19: Eu tenho medo de virginia woolf

para um cant inho: “posso fa lar com você? Vou ser bem

s incera . Você é d i ferente e i sso me i r r i ta” .

LÚCIO : _ Ment i ra! Quem fez i sso?

GABRIEL : _ É o que s in to . É isso . É o que s in to . Não

sou eu quem quer que eu se ja ass im.

LÚCIO : _ Você pode mudar . Parece um es túpido. Olha

para o espelho. Pensa que você no espelho é uma pin tura .

Retoque.

GABRIEL : _ Acabou a t in ta e não fabr icam mais . Vou

ver a rece i ta .

LÚCIO : _ Você consegue me deixar tenso . Só você .

Mas que porra!

GABRIEL : _ Você é que vem aqui por que quer .

LÚCIO : _ Você devia era ser agradecido. Venho porque

você é meu amigo. To fazendo a té as compras de

supermercado pra você!

GABRIEL : _ Vem porque sou um ót imo obje to de

anál ise . O paciente cdf dos ps iquia t ras .

LÚCIO : _ Ah, cara . Pára com isso! Deixa eu levar i s so

pra lá . (Segura o carr inho e sa i ) .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

19

Page 20: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL (sent indo-se culpado) : _ Esqueci que você

far ia compras hoje .

LÚCIO : _ ( fora de cena) . Não d isse?

GABRIEL : _ Es tou com a cabeça fora do e ixo . Esqueço

que exis te v ida pra v iver nesse p laneta e f ico d ivagando

na minha imaginação. Acho que o único espaço que vou

ter sempre é o que es tá de baixo da minha pele . Se eu

pudesse v i rar do avesso e v iver sempre no meu mundo eu

ser ia bem mais fe l iz , você não acha?

LÚCIO : _ Vai v iver , amigo! Você vai ver como é bom.

Depois , se não for , você se lamenta com o pé na cova.

GABRIEL : _ Eu sempre vou morrer incompleto , Lúcio .

Eu sou a escul tura mal fe i ta , o poema hermét ico , a obra

incoerente , o esboço do quadro .

LÚCIO : _ Você tem ar te na veia e f ica fa lando,

vomitando, despejando ar te toda hora . Você a í , soz inho,

rec luso , só te for ta lece como ar t i s ta . Você es tá se

preparando, parece . Um dia va i explodir .

GABRIEL (r indo) : _ Você vem aqui na minha casa e

t i ra umas conclusões!

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

20

Page 21: Eu tenho medo de virginia woolf

LÚCIO : _ Você não sabe como vai ser amanhã.

Ninguém sabe . Você sa iu hoje . Isso é d i ferente . Ontem

você nem abr ia a janela . Olha que d i ferença .

GABRIEL : _ Não é não. Não é .

LÚCIO : _ Aí , tá vendo? Suas palavras , impos tadas

desse je i to , é como uma vi tamina . Você nem pode

perceber , mas es tá se nut r indo. Ass im é que você i rá se

formar . E eu se i que esse d ia va i surgi r numa surpresa e

você vai notar como sua id io t ice era inút i l .

GABRIEL : _ Acha que sou id io ta?

LÚCIO : _ Não devo ter d i to nada que pudesse te mover ,

não é?

GABRIEL : _ Não, espera . Sabe que o que você d isse é

mui to impor tante . Moveu s im. Desculpa .

LÚCIO : _ Espero um dia d izer pa lavras que te movam

daí de verdade. Palavras que lhe levantasse .

GABRIEL : _ Você é amigo. Meu amigo mesmo.

Obr igado, amigo. Obr igado por me acei tar . Sou mal

agradecido.

LÚCIO : _ Você não es tá com fome? Eu posso a judar . . .

GABRIEL : _ Espere , o lha esse poema que eu l i hoje no

jornal ! James Merr i l . Já ouviu fa lar?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

21

Page 22: Eu tenho medo de virginia woolf

(Pega um jornal) .

LÚCIO : _ Não. . .

GABRIEL ( lendo): _ Olha que maravi lha! “…Ela

escolheu pescar , pescar usando como isca a minha v ida ,

esperando qual o suspense para a dor inevi tável de me

engol i r onde eu agarro sua água. E , de fa to , o

reconhecimento com olhos de fósforo escorrega devagar

dentro de minhas profundidades” . Legal , né?

LÚCIO : _ Legal .

(S i lêncio . Entreolham-se) .

GABRIEL (r indo) :_ Como você adora anal isar os

out ros! Você faz de todos uns quadros numa expos ição .

Sou o seu quadro prefer ido , fa la a í .

LUCIO : _ É o meu t rabalho.

(S i lêncio) .

LÚCIO : _ Porque te deu vontade de fazer esse jantar? É

o f i lme?

(S i lêncio) .

Escr i tora: _ Descobr iram-me! E sabem tudo sobre mim!

GABRIEL _ S im. É o f i lme s im.

(Pega o DVD do f i lme “As Horas”) .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

22

Page 23: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL : _ É essa maravi lha que es tá me deixando

louco.

LUCIO :_ Meu Deus , Gabr ie l . O que es tá acontecendo?

GABRIEL : _ Eu quer ia saber . Eu bem que quer ia!

Escr i tora: Es tou meio que me trans formando no f i lme.

Nem no f i lme em s i , mas no l ivro , na tr i lha sonora, no

conteúdo! Es tou deixando de ser para v iver no f i lme.

Aquele poeta . . . É como se e le t ivesse se jogado da

sacada e caísse dentro de mim. Eu, que tão vulnerável

es tava sendo, fu i sugado pelo personagem. Eu quer ia ser

e le . E a té d igo que quero ser e le do modo que eu imagino

que e le d ir ia . E não saio d isso , acabo sendo um

fracassado. E por e le também ser um fracassado, ou pelo

menos se cons iderar um, s in to-me v i tor ioso em fracassar

como e le .

LÚCIO :_ O cara é um gay velho e a idé t ico que se mata .

Pensa ass im e esquece tudo. Esquece .

GABRIEL :_ Virg in ia Woolf mesma disse que f icar

louco é bem melhor que ser normal , você pensa em coisas

que nunca que os normais dar iam conta de pensar . E eu

não se i o que é . É um sent imento . . .

LÚCIO :_ Isso , fa la . . .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

23

Page 24: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL :_ É aquele sent imento a inda . A sensação, a

maneira , o je i to que as coisas es tão fazendo, essa perda

dos sent imentos . E o in teressante é que parece que o

único sent imento que sobrou é o dessa sensação de que

todos os sent imentos foram esquecidos .

LUCIO :_ Quando você fa la essas coisas , é como se eu

deixasse de exis t i r . Ou melhor , ex is to em outro lugar ,

bem longe daqui . Eu não se i se i sso que você es tá fa lando

vem de você mesmo, você , Gabr ie l , não Richard , o

Gabr ie l , meu amigo de infância , ou você do je i to que

você quer ia ser , ser do f i lme, fa lando as mesmas coisas

do f i lme. Não dá . Eu não sou bom o bas tante pra te

compreender .

GABRIEL :_ Então o que você es tá fazendo aqui?

LUCIO :_ Eu es tou aqui , tenho cérebro e corpo. Eu fu i

um fe to também.

GABRIEL :_ Eu quer ia te r nasc ido mudo e surdo.

LUCIO :_ Ou do avesso?

GABRIEL :_ Ou do avesso . . . Mas que es t ranho. Então

porque será que somos amigos há tan to tempo se não

exis te nenhuma coisa a ver?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

24

Page 25: Eu tenho medo de virginia woolf

LUCIO :_ Talvez por uma ques tão de formal idade .

Talvez por sermos v i t imas de máscaras socia is . Talvez

porque eu te entendo e você gos ta de ser

entendido,mesmo que se ja da minha maneira , por a lguém.

É confuso .

GABRIEL :_ Dane-se se é confuso . Pode ser confuso

para uma especiez inha de seres evoluídos depois dos

macacos . O que a gente já nasce tendo, que é idênt ico o

que também já tem os animais , é mui to melhor do que

saber a lguma coisa .

LUCIO :_ Es tamos v ivendo e fa lando sobre a v ida . É

como se a gente não exis t i sse .

GABRIEL :_ Noi te após noi te , de i to e durmo ouvindo a

t r i lha sonora .Vis to-me como o a idét ico do f i lme, gos to de

ser doente? Por acaso sou sadomasoquis ta e gos to do que

é depr imente?

LUCIO :_Aí , tá vendo? Não se i se agora eu rea jo como

uma pla té ia aplaudindo de pé ou tento acredi tar que esse

é você fa lando.

GABRIEL :_ Eu também.

LUCIO :_ Como ass im, “eu também”? O que você es tá

fa lando?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

25

Page 26: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL :_ Eu es tou fa lando e essa é minha voz , puxa

v ida . Então sou eu , não sou?

LUCIO :_ Não se i !

(S i lêncio . GABRIEL vol ta a colocar Metamorphos is . A

dupla guarda a segunda compra nos devidos lugares .

Alguns produtos de l impeza, des in fe tante , esponja de

aço, de tergente , cândida, sabão em pó, os quais enf ia

num armarinho debaixo do fogão. Depois a lguns

produtos de h ig iene , pas ta de dente , papel h ig iênico e

sabonete , pos tos a trás no armarinho-espelho do

banheiro . Tudo parece es tar organizado, apesar de que a

máxima organização naquele apar tamento a inda é uma

bagunça. LÚCIO entra no banheiro e se fecha. GABRIEL

arruma a mesa do jantar do je i to que quer ia . Es t ica uma

boa toalha, bota taças , ta lheres , guardanapos de pano,

pratos boni tos e a garrafa de v inho. Lê a recei ta

novamente) .

GABRIEL :_ Eu comprei duas gar rafas de v inho.

Enquanto a Pat i não chega a gente pode i r tomando. . .

(a lcança a garrafa na coz inha)

LUCIO :_ Pode ser . Que horas são?

GABRIEL (caçando um abr idor) :_ O quê?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

26

Page 27: Eu tenho medo de virginia woolf

LUCIO :_ As horas!

GABRIEL :_ S im, o que é que tem?

LUCIO :_ Quais são as horas?

GABRIEL :_ Ah! Desculpa . (Recompõe-se) . Se is e

quinze .

LUCIO (dando a descarga, usando a p ia , sa indo do

banheiro com uma roupa mais a vontade . Uma roupa

gos tosa de f icar em casa) :_ Será que a Pat i vem mesmo?

Não se i não , he in .

GABRIEL (Após achar um abr idor e in ic iar a aber tura

do v inho) :_ Tem que v i r , né . F iz tudo isso por e la .

LÚCIO :_ Ou por você?

GABRIEL ( re t i rando a ro lha) :_ Ah, se i lá . Pega as

taças a l i na mesa .

(LUCIO pega, de ixando-as prontas para GABRIEL e

des l iga a mús ica . Serve- se o v inho) .

GABRIEL (provando) :_ Del íc ia .

LUCIO (provando) :_ Mui to bom.

(S i lêncio) .

LÚCIO :_ Ai , essa música!

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

27

Page 28: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL :_ E daí? (re f le te) . Es tá bem.

(GABRIEL ins ta la um fone de ouvido para ouvir a

mús ica) .

LÚCIO :_ Nada dá cer to . Nada dá cer to!

GABRIEL :_ O quê?

LÚCIO :_ Pára de escutar essa música um pouco! Eu

es tou te fazendo uma vis i ta !

(GABRIEL t i ra os fones e senta-se à mesa com o

amigo) .

Escr i tora: É e le a mús ica . É dele essa massa de pele

cheia de su lcos que é a mão. É uma massa de pele cheia

de su lcos essa mús ica . Quando não há mais mús ica e le

tem um gél ido nada, um nada aberração que f ica lhe

mos trando que e le não é uma coisa nem outra .

GABRIEL :_ E a í? Como fo i hoje?

LUCIO :_ Ah, a mesma coisa de sempre . Nada de mais .

GABRIEL :_ Cer to . (Pega um c igarro no maço) . Quer?

LUCIO :_ Dá um aí .

(Fumam. S i lêncio . Al ternam entre beber e fumar . Nem

se o lham) .

GABRIEL ( r indo) :_ Que engraçado, não é?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

28

Page 29: Eu tenho medo de virginia woolf

LUCIO (querendo r ir ) :_ O quê?

GABRIEL :_ Essas coisas todas .

LUCIO (com uma r isadinha soluçante) :_ Pois é .

GABRIEL :_ Eu comprei tudo isso e nem se i cozinhar .

LUCIO :_ Eu se i fazer o de sempre . Deixa eu dar uma

olhada (pega o l ivro de recei tas ) . Tor te l l i d i Zucca . Ah!

Esse que vai abóbora . . .

GABRIEL :_ Isso . Achei s imples e sof is t icado. Mas ,

mesmo ass im, não se i nem o que fazer com a abóbora . . .

LUCIO ( lendo) :_ Eu cons igo fazer a massa , mas esse

recheio , va i saber . . .

GABRIEL :_ Eu a té t inha pensado que você sabia .

LUCIO :_ Eu se i . Você nunca cozinhou na v ida . Eu

t inha pensado a té que você comprou tudo pronto . Ou

comida congelada .

GABRIEL :_ Eu quis fazer tudo em casa .

LUCIO :_ Esse é seu mal . Tudo em casa . Sempre tudo

em casa .

GABRIEL :_ Ai , meu Deus . Olha , eu . . . (des is te) .

Escr i tora: _ Mas esse é o único lugar que eu posso ser

quem quero .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

29

Page 30: Eu tenho medo de virginia woolf

LUCIO ( ignorando) :_ É.

(GABRIEL se levanta e joga toda a comida que comprou

no l ixo) .

LUCIO :_ O que é i sso? O que você es tá fazendo? Puta

merda! O que você es tá fazendo!?

GABRIEL :_ Ela não vem mais .

LUCIO :_ E daí , cara? E se e la v ier? E mesmo que e la

não v iesse , por favor! Que é i sso , meu. I sso não é coisa

de gente normal não.

GABRIEL (r indo) :_ Mas é que no f i lme. . .

LUCIO :_ Você ‘ tá louco cara! (r i fa lsamente) Jogar a

comida fora? Isso é pecado, meu! Porra , acorda , cara!

Isso daqui é a rea l idade , aqui lo é um f i lme, porra! Agora

você vai querer se fantas iar de Meryl S t reep , puta que

par iu! Tem gente passando fome nesse mundo e você

compra comida pra jogar fora por causa de um f i lme?

Pelo amor de Deus! Você ‘ tá prec isando de um terapeuta ,

se i lá !

(GABRIEL r i . Toca o in ter fone) .

GABRIEL :_ Será que é e la?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

30

Page 31: Eu tenho medo de virginia woolf

LUCIO :_ Eu não fa le i? (Vai ao in ter fone) . Agora e la

chegou e não tem mais comida. . . (a tende o in ter fone)

Pronto . Oi , pode subir . Obr igado.

GABRIEL :_ É e la?

LUCIO (emburrado) :_ Es tá subindo a í .

(GABRIEL corre para o armário , t i ra o gorro , a je i ta o

cabelo , t i ra o roupão e ves te uma camise ta) .

Escr i tora: _ Precisa ser t r iv ia l e de ixar passar o

personagem um ins tante . Quando alguém chega como

Patr íc ia , não pode f icar sendo o que é ou o que quer ser .

Tenho medo de assombrar a lguma pessoa com sua

mons truos idade - que não tem nenhuma evidência .

GABRIEL :_ Nossa , meu deus , quanto tempo! Será que

e la es tá mui to d i ferente?

LUCIO :_ Vamos ver .

GABRIEL :_ Nossa . Vamos ver a cara de la de mulher

agora .

LUCIO :_ É mesmo. Ela já es tá com vin te e o i to!

GABRIEL :_ O que será que es ta v indo a i , he in Lucio?

O que será que es tá subindo esse e levador? Eu es tou com

uma sensação es t ranha. . .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

31

Page 32: Eu tenho medo de virginia woolf

LUCIO :_ Eu não se i . Não se i mesmo.

(Toca a campainha. GABRIEL corre , abre a por ta .

PATRICIA entra , agasalhada e com f lores) .

PATRICIA :_ Oi , Ga. . . (abraça GABRIEL) . Quanto

tempo. (Vê LÚCIO) . Lúcio! (corre e o abraça) . E a í? Que

saudades!

LUCIO :_ Olá , Pat i ! Tudo bom?

PATRICIA :_ Tudo bom. E a í , gente? E as novidades?

LUCIO :_ Você não mudou nada!

GABRIEL :_ Mudou s im! Quem dir ia você t razendo

f lores .

PATRICIA (vai se acomodando, de ixando o casaco no

sofá e guardando as f lores) :_ Ah, eu t rouxe, Ga. . .

GABRIEL :_ São mui to l indas . Eu não esperava isso de

você mas nunca .

Escr i tora: _ Ela precisa fa lar a lguma coisa para não

f icar quie ta e dar uma imagem de per turbada e

complexa, uma imagem que nenhuma moça quer passar .

As moças querem apenas ser moças e sent ir na v ida todos

os e logios que recebem uma moça no sent ido tão puro e

l indo que se tem quando alguém diz “uma moça”. Ao

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

32

Page 33: Eu tenho medo de virginia woolf

dizer “uma moça” a frase já tem uma par te impor tante

de beleza .

PATRICIA :_ Ai , Ga! por quê? (o lha para LUCIO) .

Onde tem um vaso?

LÚCIO ( tomando as f lores) :_ Dá aqui . (procura um

vaso , acha, coloca um pouco d´água e as f lores) .

GABRIEL :_ Não esperava esse romant ismo seu . Você

nunca fo i d isso . Sempre t razendo a s i mesma como

presente para qualquer um.

PATRICIA (Escr i tora : . . . representando . . . ) :_ Ga, eu

sempre fu i românt ica .

LUCIO :_ Bom, e a í? Você veio de car ro?

Escr i tora: Ele quis romper essa d iscussão antes de tudo

v ir a explodir .

PATRICIA :_ Eu v im. Nossa , Gabr ie l , eu jurava que

seu apar tamento não ia ser ass im.

Escr i tora:_ Patr íc ia percebe que tem o maior

arrependimento imaginável em ter entrado nesse

apar tamento .

GABRIEL:_ Feinho, né? Mas se i lá . Eu gos to desse

je i to .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

33

Page 34: Eu tenho medo de virginia woolf

LÚCIO :_ Vem aqui .

(Leva-a para o fundo. GABRIEL, soz inho, rapidamente

cheira as f lores . Vol tam. PATRICIA vê o v inho) .

Escr i tora:_ Quando vê o v inho, sente que precisa de

a lgo que se ja mis turado com seus pensamentos . Vinho

ser ia per fe i to .

PATRICIA :_ Vinho! Dá um pouco pra mim?

(LÚCIO a serve numa taça) .

PATRICIA (bebendo) :_ E como ‘ tá o t rabalho, Lucio?

LUCIO :_ Es tá ó t imo. Trabalhando bas tante .

PATRICIA :_ E você , Ga? Como es tá indo?

GABRIEL :_ Não ar rumei nada a inda .

PATRICIA :_ Ih , mas vai dar cer to! Você vai ver .

GABRIEL : _ É o que eu espero .

Escr i tora:_ o lha para amiga de uma maneira o fens iva ,

para e la , tudo é fác i l . Para e le , tudo é imprat icável .

PATRICIA :_ Vamos comer a lguma coisa?

LUCIO :_ Comer o quê? O Gabr ie l comprou um monte

de comida e jogou fora!

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

34

Page 35: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRICIA (r indo) :_ Você jogou a comida fora? (r i

mui to mais ) .

GABRIEL :_ Eu não se i cozinhar mesmo! Eu comprei

pensando que o Lucio saber ia fazer , mas e le não sabe

também. Aí eu joguei pra não f icar apodrecendo na

geladei ra .

LUCIO :_ Ah, nem é i sso . É por causa do As Horas . Por

i sso que e le jogou fora .

PATRICIA :_ O quê?

GABRIEL (envergonhado) :_ Ah, é um f i lme novo que

eu comprei que a mulher joga a comida fora também.

PATRICIA (sem entender bulhufas) :_ Esse Gabr ie l ,

v iu . E a í? O que vocês es tão a f im de comer?

LUCIO :_ Putz , eu já comi . Se eu soubesse . . .

PATRICIA :_ Ah, já? E você , Ga?

GABRIEL :_ Eu comer ia qualquer coisa .

PATRICIA :_ Mas vocês es tão a f im de pedir , de sa i r?

GABRIEL :_ Tanto faz . Ah, vamos pedir en tão .

PATRICIA :_ Uma pizza?

GABRIEL :_ Ót imo. Deixa eu ver aqui para l igar (caça

um número nos imãs de geladeira . L iga em mímica) .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

35

Page 36: Eu tenho medo de virginia woolf

LUCIO :_ E o Antônio?

PATRICIA :_ Cont inua t rabalhando lá . Vol tar para o

Bras i l es tá bem fora dos p lanos , lá e le tem tudo, pra que

se preocupar em vir aqui , né?

LUCIO :_ Nossa , Pat i ! Quanto tempo, né? Ele v ia jou e

depois d isso parece que nunca mais vol ta .

(Sorr iem e abraçam-se) .

Escr i tora:_ Apenas os dois , ass im, es tá um c l ima

del ic ioso . Mas Gabr ie l a taca com algo tão bobo.

GABRIEL (ao te le fone) :_ Pat i , p izza de quê?

Escr i tora:_ Ela precisa responder . Não quer magoar

n inguém. Não sabe, mas tem um cer to poder . Se quiser

magoar , fere v io lentamente . Se quiser a legrar , leva a

pessoa ao êx tase .

PATRICIA :_ Pode ser de ca labresa , vê qualquer uma

a í ! (vol ta para LUCIO) . Então, e e le d isse que não sabe

se vol ta cedo.

LUCIO :_ Putz , faz o maior tempão que eu não fa lo com

ele . Puta saudade.

PATRICIA :_ E eu então , Lúcio . ‘To f icando louca sem

ele . O que eu faço enquanto e le não vol ta? Ainda por

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

36

Page 37: Eu tenho medo de virginia woolf

cima parece que e le fo i e fe t ivado. Ele não largar ia tudo

pra vol tar pra cá por minha causa , né?

(GABRIEL vol ta da l igação, procurando alcançar o

assunto) .

LUCIO :_ Se e le fo i e fe t ivado é bom para e le , não é?

Quem sabe a gente que tem que i r pra lá um dia . Ou e le

paga pra gente i r . (r i ) .

PATRICIA (nunca t inha pensado n isso) :_ É.

GABRIEL :_ E o Antônio? Como es tá?

PATRICIA :_ Es tá lá a té hoje .

GABRIEL :_ Es tá tudo cer to?

PATRICIA :_ Ele tá se dando bem lá , v iu . Tá tudo

cer to , mas dá aquela saudade, né? Ainda mais quando eu

v i vocês ass im, f iquei lembrando de todos aqueles

momentos . . .

LUCIO :_ Foi tan ta coisa , não? Desde perdas de fô lego

com r isadas a té t rês d ias na delegacia .

GABRIEL :_ Aqui lo s im era v iver . Todo d ia , lembra?

Todo dia a gente inventava uma coisa d i ferente para fazer

e a gente nunca f icava sa t i s fe i to . Agora o lha a gente

aqui , um bando de adul to . Uns verdadeiros mons t ros .

Bicho-papão do p laneta Terra . É ass im, fazer o que , né?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

37

Page 38: Eu tenho medo de virginia woolf

Agora a gente depende cada um de s i para v iver . Só res ta

recordar .

PATRICIA :_ Ai , Ga! Que é i sso? A gente cont inua

sendo amigos! Olha só , a inda es tamos juntos .

GABRIEL :_ Es tamos juntos porque o Antônio es tá

v ia jando e a gente prec isava compar t i lhar essa fa l ta ou

então cada um ia p i rar da cabeça .

PATRICIA ( levantando-se) :_ Ai gente , acho que eu vou

embora . Fui infe l iz de v i r , meu deus . É . Que t r i s te .

GABRIEL :_ Não vai agora!

Escr i tora: _ Lúcio precisa acabar com essa d iscussão

de uma vez por todas . Mais uma vez .

LÚCIO :_ Pediu a p izza?

GABRIEL :_ Es tá v indo a í .

LUCIO :_ Quer mais v inho?

PATRICIA :_ Pode ser .

LUCIO :_ Quer também, Gabr ie l?

GABRIEL :_ Pode ser .

(LÚCIO enche as taças e as t raz) .

GABRIEL :_ Ele conseguiu tudo o quer ia , não?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

38

Page 39: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRICIA :_ Ele fo i e fe t ivado ontem.

LÚCIO :_ Ah, que bom, Pat i . Ele deve es tar mui to fe l iz .

Logo logo vocês es tão juntos de novo.

GABRIEL :_ Nós es taremos juntos de novo.

PATRICIA :_ É. . . E a namorada, Lucio?

LUCIO :_ Ah, nem to namorando.

PATRICIA :_ Não tá nem preocupado com isso , né! E

você , Ga?

Escr i tora: _ Porque e la me chama de Ga? O nome é

Gabr ie l . A porcar ia da minha mãe escolheu esse nome. O

problema é que eu gos to demais desse a fe to quase

in fant i l .

GABRIEL :_ Sempre à procura .

PATRICIA :_ Aí , Ga, porque você não namora aquela

sua amiga? Ela combina com você .

GABRIEL :_ É es t ranho. Todo mundo acha que eu

combino com ela , só eu que não.

PATRICIA :_ Aí , tá vendo?

GABRIEL :_ Ah, se i lá . Ela é meio desencanada demais .

Eu gos to das ar rumadinhas .

PATRICIA :_ Qual é o seu t ipo de mulher , en tão?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

39

Page 40: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL (Escr i tora: _ Es força-se mui to) :_ Ah, o lha . . .

Eu quer ia uma mulher que desse valor para o que eu faço ,

en tende? E f icasse fe l iz com meu t rabalho. Eu quer ia uma

mulher ass im. . . que se dedicasse . Uma mulher que

inventasse todo tempo como me deixar fe l iz .

PATRICIA :_ E você não far ia nada por e la?

GABRIEL :_ Se eu t ivesse uma mulher ass im, eu ia

fazer e la esquecer a pa lavra t r i s teza .

PATRICIA :_ Nossa! Que profundo. E você , Lúcio?

LUCIO :_ Eu sou ao contrár io . Eu quer ia aquelas bem

independentes , que v ivesse a v ida dela sem me encher o

saco .

PATRÍCIA :_ Ai , Lúcio , só você mesmo.

GABRIEL :_ E o Antônio? Ele é seu t ipo de homem?

PATRÍCIA :_ Ah, acho que s im. Eu já ‘ to há tanto

tempo com ele que nem se i mais o que ser ia out ro t ipo de

homem.

GABRIEL ( r indo) :_ Isso é verdade. Mas acho que eu

sou mais fe l iz so l te i ro . Nessa fase de minha v ida eu acho

que não me adaptar ia com uma mulher .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

40

Page 41: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRICIA :_ Então cada vez mais você vai f icar

pensando isso? Depois f ica um velho e a í que n inguém

mais va i te querer .

GABRIEL :_ O negócio mesmo é uma coisa que eu

cheguei à conclusão um dia . Se eu quisesse mesmo uma

mulher , eu ia a t rás . Sou capaz a té de i r nas ba lada pra

ar rumar uma. Enquanto isso , eu vou ass is t indo a v ida

passar só com meus própr ios o lhos . Sem uma visão

feminina para f icar comentando.

LÚCIO :_ Ah, eu também sou meio ass im, sabe? Sempre

fu i , né? Não sou de f icar azaranado as menininha com um

papinho de p layboyzinho e b la b la b la . Isso é tão fa lso ,

se i lá . Se a lgum dia uma mulher in teressante aparecer , a í

ó t imo, senão, pra que f icar que nem bicho a t rás de

fêmea?

GABRIEL :_ É que as pessoas guardam uma coisa

dentro da cabeça que se chama ins t in to . Af inal , a gente é

b icho como qualquer b icho.

LÚCIO :_ Mas a gente sabe se contro lar .

GABRIEL :_ Será?

PATRICIA :_ Acontece que vocês não são pra qualquer

mulher não , v iu , gente . As mulheres sempre pensam que

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

41

Page 42: Eu tenho medo de virginia woolf

são os homens que não servem para e las , mas às vezes

são as mulheres que não pres tam para os homens .

GABRIEL :_ Nossa , Pat i ! Isso é uma coisa mui to d i f íc i l

de ouvir . Uma mulher admit indo as coisas desse je i to!

Você cont inua com a mesma car inha de menina mas agora

tem opiniões formadas e prec isas . Quem são as amigas

que te ens inaram tudo isso? Tem o te lefone delas?

LUCIO :_ Ela sempre fo i ass im, va i Gabr ie l .

GABRIEL :_ O pior defe i to da Pat i fo i te r nasc ido f i lha

única! Maldi ta! Bem que você podia te r uma i rmãzinha ,

nem precisava ser idênt ica , mas parec ida , que chegasse

per to , en tende? Ou quem sabe eu espero que você e o

Antônio tenham uma f i lha , que ta l? Vinte e poucos anos

de d i ferença hoje em dia não são nada , imagine daqui

a lguns anos .

(PATRICIA dá r isada como uma cr iança) .

PATRICIA :_ Ai , Ga. Você vai encontrar essa sua musa

um dia . Não prec isa ser minha f i lha .

GABRIEL :_ Se eu encontrar uma musa e e la for uma

burra , f inge que você quer ser bas tante amiga e faz uma

boa lavagem cerebra l ne la . O que você acha? Uma coisa

bem sut i l , que e la nem perceba .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

42

Page 43: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRICIA (r indo) :_ Ai , Ga. Só você mesmo.

GABRIEL :_ Não é má idé ia não, v iu? Se eu esquecesse

essa porra de emprego que poder ia me t razer um pouco

de fe l ic idade e t rabalhasse no que minha mãe sempre

quis que eu fosse e f icasse arquib i lhardár io , vazando

d inhei ro a té pe lo cu , eu pagar ia uns dez mi lhões pra uma

gos tosa burra , e far ia de la uma legí t ima my fa ir lady . Eu

f icar ia dando aulas de e t iqueta , sexo e compor tamento e

você ser ia a professora de lavagem cerebra l , mas e la tem

que f icar igual a você , he in! Putz! Aí eu v iver ia para

sempre com uma gos tosa lambendo meus pés de

fe l ic idade .

LUCIO :_ Não fo i você quem disse que far ia a mulher

da sua v ida esquecer a pa lavra t r i s teza? Essa escravidão

manipulada poder ia acabar num processo judic ia l e você

ia v i rar aqueles ex-mar idos leprosos . A cada f im do mês

vai perdendo uma par te do que tem.

GABRIEL :_ E, por acaso , você acha que eu não ia

querer f icar lambendo os pés de uma gos tosona também?

Eu tenho fe t iches mui to in teressantes , sabia?

PATRICIA :_ Ai , Ga, que péss imo!

GABRIEL ( i rônico , para não gr i tar com os amigos) :_

Que fo i? Deixa eu sonhar um pouco! As pessoas têm uma

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

43

Page 44: Eu tenho medo de virginia woolf

imagem de mim, como se eu fosse um ps icót ico fugi t ivo .

Porra , parece que eu sou proib ido de tudo nessa v ida .

Não to fa lando que eu vou fazer i sso mesmo, vou largar

minha v ida pra fazer a merda de uma faculdade e fa turar .

Olha só . Você acha que no meu es tado eu ia fazer uma

coisa dessas? Quem vai querer um escr i tor medíocre ,

enf iado no apar tamento , cheio de d i f iculdade e um monte

de compl icações?

(vai ao banheiro) .

PATRICIA :_ Que fo i?

LÚCIO :_ ‘Tá a tacado hoje . Meio t r i s te que não es tá

achando emprego, sabe?

PATRICIA :_ Ah, se i .

LUCIO :_ É umas coisas que dão nele de repente . Coisa

de escr i tor , né?

PATRICIA (não percebe) :_ É. Mas vai dar tudo cer to .

LÚCIO :_ Ah, va i .

(GABRIEL sai do banheiro e toma água. Acende um

c igarro e se junta aos dois ) .

LÚCIO :_ Dá um cigar ro para mim?

(GABRIEL dá- lhe) .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

44

Page 45: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRICIA :_ Eu também quero . (recebe o c igarro) .

(Os três fumam).

LÚCIO :_ Nossa , sabe o que eu v i hoje?

PATRÍCIA :_ O quê?

LÚCIO :_ Duas mulheres se be i jando no meio da rua .

GABRIEL :_ Que jó ia!

PATRÍCIA :_ Ai , c redo.

GABRIEL :_ Você bei jar ia uma mulher na boca , Pat i?

PATRÍCIA :_ Eu não, imagina!

LÚCIO :_ Foi bem in teressante .

GABRIEL :_ Eu acho a coisa mais l inda duas mulheres

se be i jando. . .

PATRÍCIA :_ Ai , que safadinho você , he in . Você

bei jar ia um homem na boca?

GABRIEL :_ Ah, mas duas mulheres se be i jando tem um

outro sent ido completamente d i ferente .

PATRÍCIA :_ Pra você que é homem, né?

GABRIEL :_ Não, mas no aspecto poét ico da coisa ,

sabe? As mulheres f icam mais boni tas desse je i to .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

45

Page 46: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRÍCIA :_ É, bem poét ico mesmo.

GABRIEL :_ Ah, vocês não me entendem.

LÚCIO :_ Ah, cara . . . É que é es t ranho duas mulheres se

be i jando.

GABRIEL :_ Depende. É só não ter preconcei to e

descobr i r o porquê que e las fazem isso . E e las fazem

bas tante .

PATRÍCIA :_ Eu tenho uma amiga que já be i jou outra

também.

GABRIEL :_ E na hora você achou es t ranho?

PATRÍCIA :_ Ah, se i lá . Não cur t i mui to f icar vendo

mas não me sent i incomodada, sabe?

GABRIEL :_ E com cer teza se fossem dois caras se

be i jando ia ser bem mais es t ranho, não é?

PATRÍCIA :_ É verdade. . .

LÚCIO :_ É. Eu gos te i mais de ter v is to duas mulheres

do que dois homens .

GABRIEL :_ A mulher tem um outro je i to de v iver . Ela

é mui to mais pura , mui to mais efe t iva do que o homem,

que é tão f raco que acaba gas tando a força para se impor

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

46

Page 47: Eu tenho medo de virginia woolf

em es tereót ipos de pos ições socia is . As mulheres sabem

compar t i lhar .

PATRÍCIA :_ Nossa , Ga. Você entendendo ass im de

mulher e so l te i ro , he in? Quem dir ia?

GABRIEL :_ Eu gos tar ia mui to de saber o porquê

também. Eu ‘ to chegando a conclusão de que as mulheres

a lém disso são a contradição em pessoa . Sempre d izendo

que procuram homens d i ferentes e sens íveis , mas es tão

sempre acompanhadas de marmanjos de bolso cheio .

PATRÍCIA :_ Eu não sou ass im.

GABRIEL :_ Ah, va i . O Antônio sempre fo i o bonzão da

turma.

PATRÍCIA :_ Mas e le é sens ível e bem diferente .

GABRIEL :_Pelo menos isso , né?

LÚCIO :_ O Antônio é como você , Gabr ie l .

GABRIEL :_ Como eu . Mas e le es ta na Europa de v ida

fe i ta e eu aqui , não conseguindo ar rumar nada . É ass im,

os vencedores tem namoradas , os f racassos f icam

chupando o dedo e ba tendo punheta . Seleção Natura l !

LÚCIO :_ Acho que as mulheres quando vêem uma

pessoa como você se sentem tão iguais que acabam

procurando uns caras nada a ver com quem elas são .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

47

Page 48: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL :_ Escreva isso .

PATRÍCIA :_ Calma, Ga. Essa namorada dos seus

sonhos vai v i r no momento mais inesperado que você

imaginar .

GABRIEL :_ Es tamos a í para o que der e v ier .

LÚCIO :_ I sso a í , rapaz . Coragem! Larga a mão de f icar

depr imidinho, chorando nos cantos . Vá a lu ta!

PATRÍCIA :_ É, Ga. Deixa pra lá . Você vai ver .

GABRIEL :_ É tão bom f icar recebendo essas

ca l ibradas de esperança . Eu gos to mui to de vocês . Mesmo

mesmo.

LÚCIO :_ A gente cur te você pra caramba. Não prec isa

f icar achando que é um órfão de compaixão. Você devia

dar mais va lor para o que você tem.

GABRIEL :_ É, eu se i .

(Toca o in ter fone) .

LÚCIO :_ É a p izza . ( vai ao in ter fone) . Pronto? ‘To

descendo. (des l iga) . Vou descer lá .

PATRÍCIA :_ O dinhei ro!

LÚCIO :_ Ah. Quanto deu, Gabr ie l?

GABRIEL :_ Quinze .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

48

Page 49: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRÍCIA (mexendo na bolsa) :_ Então deu quanto para

cada um?

GABRIEL :_Não. Eu pago.

PATRÍCIA :_ Não, espera a í . Metade , metade!

GABRIEL :_ Não, por favor . Por favor , Pat i . Hoje eu

ins is to , eu pago. (dá o d inheiro para LÚCIO) .

PATRICIA :_ ‘Ta bom então . Obr igada .

(LÚCIO desce) .

GABRIEL :_ Oba, p izz inha del íc ia , he in?

PATRÍCIA :_ Hmmm.

GABRIEL :_ Mais v inho?

PATRÍCIA :_ Quero .

(GABRIEL a serve) .

GABRIEL :_ Vamos f icar chapados .

PATRÍCIA :_ Pelos ve lhos tempos , Ga!

GABRIEL :_ Eu f ico chapado a qualquer hora . F iquei

mais preocupado com você . Mas você nunca fo i cer t inha

mesmo.

PATRÍCIA :_ E a inda não conseguiram me corr ig i r .

Pode encher a taça .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

49

Page 50: Eu tenho medo de virginia woolf

(Enche) .

GABRIEL :_ Vou abr indo o outro v inho. . .

(Abre) .

PATRÍCIA :_ Já ‘ to começando a f icar a legr inha . E

você?

GABRIEL :_ É d i f íc i l eu f icar a legre com bebida . Eu

d i r ia que es tou começando a f icar t r i s t inho.

PATRÍCIA :_Puta merda , Ga! Que depr imido! Já se i .

Vamos numa balada hoje , mais ta rde . Que ta l? Daí você

se anima um pouco.

GABRIEL :_ Mas e o Lúcio? Ele não cur te nada de

música e le t rônica .

PATRÍCIA :_ A gente convence e le! Qualquer coisa

vamos nós dois . Só hoje!

GABRIEL ( indeciso) :_ Fes ta hoje . . .

PATRÍCIA :_ Vamos!

GABRIEL :_ Mais ta rde eu decido, ‘ tá?

PATRÍCIA :_ ‘Tá bom, Ga. . .

(LÚCIO entra com a p izza) .

LÚCIO :_Olá .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

50

Page 51: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRICIA :_ Hmmm!

GABRIEL :_ Nossa , puta fome!

(Sentam-se reunidos . Abrem a p izza) .

GABRIEL e PATRÍCIA :_ Nossa! (comem com a mão) .

LÚCIO :_ Putz , eu sabia que devia esperar pra jantar

aqui .

GABRIEL :_ Come um pedacinho!

LÚCIO :_ Ah, não . Eu já comi mesmo. Es tou sem fome

nenhuma.

PATRÍCIA :_ Ah, va i , Lúcio! Só por hoje . Pra

comemorar .

LÚCIO (Escr i tora:_ para quê ev i tar a id io t ice?) :_ ‘Tá

bom, me dá esse pedaço a í . (serve-se) .

Escr i tora:_ Cont inuam os t rês sentados , bebendo e

comendo. Bas tava fazer aqui lo . Era tão s imples . Era só .

Não precisa ter o t rabalho de ser a lguém para comer ou

beber; o que para e les era um al ív io e f icava sendo a

melhor hora da noi te .

PATRÍCIA :_ Vamos na balada hoje , Lúcio?

LÚCIO :_ Balada? Vocês ‘ tão loucos!

PATRÍCIA :_ Pra comemorar , vamos a í ! Que coisa!

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

51

Page 52: Eu tenho medo de virginia woolf

LÚCIO :_ Putz , nem se i . . . Amanhã eu tenho que acordar

bem cedo.

PATRÍCIA :_ Ai , Lú! Você não vai morrer se acordar

com sono amanhã (r i ) .

LÚCIO (e la o chamou de Lú) :_ Ai a i a i . . . be leza .

PATRÍCIA :_ Oba! Põe mais v inho pra nóis , Ga!

(GABRIEL serve a todos) .

(Comem e bebem) .

PATRÍCIA :_ Nossa , gente . Não agüento mais . ( leva o

prato na p ia) .

GABRIEL :_ Putz . Também não quero mais não . Quer

esse pedaço, Lúcio?

LÚCIO :_ Valeu , cara . ‘Tô bem sa t is fe i to .

(Fumam, t i ram as coisas da mesa. Bebem o que sobrou

da segunda garrafa . Sentam-se juntos no so fá , fumando) .

PATRÍCIA :_ Ai , como a gente es tá l ivre , não é? Sem

preocupação, cada um cuida da sua v ida , sem mãe pra

f icar fare jando aonde a gente va i , que beleza .

LÚCIO :_ Isso é bom. Mas hoje a gente t rabalha e cuida

da própr ia v ida . Isso é foda . Mas essa l iberdade vale a

pena mesmo. Olha a gente aqui , no ap . do Gabr ie l ,

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

52

Page 53: Eu tenho medo de virginia woolf

tomando vinho, comendo pizza e indo pra ba lada! Não é

coisa de cr iança não.

GABRIEL :_ A gente pensava nessa l iberdade toda vez ,

lembra? Sempre quando acontec ia a lguma merda , agente

pensava: “putz , se agente t ivesse um lugar só nosso pra

fugir” .

PATRÍCIA :_ Eu lembro. E agente não t inha lugar pra

sa i r de noi te e f icava rodando de car ro mesmo. (r i ) .

LÚCIO ( lembrando) :_ Nossa , cada uma.

GABRIEL :_ Puta merda . O passado melhora mas não

cura o presente . A gente fa lando de todas essas épocas

del ic iosas , da ans iedade pela l iberdade , mas sabe que eu

não perdi essa âns ia a inda? Hoje eu posso ter tudo bem

al i , mas tem um peso dentro que não me deixa i r pra

f rente .

LÚCIO :_ É que você a inda não se consol idou de

verdade na sua prof issão . E eu tenho cer teza que quando

você ar rumar uma namorada e começar a ganhar um

monte de prêmio, você nem vai perceber de tão l ivre que

vai es tar sendo. A sua hora a inda não chegou, meu amigo.

GABRIEL :_ Será?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

53

Page 54: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRÍCIA (bêbada) :_ F ica com medo não,

Gabr ie lz inho. . . (acar ic ia- lhe a nuca) . Fica ass im que do

je i to não vai dar pé .

LÚCIO (r indo) :_ O que você d isse?

PATRÍCIA :_ Sei lá . Eu nem se i mais o que eu ‘ tô

fazendo.

Escr i tora: _ Todos r iem. Só GABRIEL que dá uma

r isada d is farçada, tensa , es tranha – “Para quê

choramingar e depois dar inúmeras expl icações se todos

es tão se d iver t indo?”.

LÚCIO :_ Vou pegar um cigar r inho (vai t ropeçando) .

PATRÍCIA :_ Põe um som aí , Lú!

(LÚCIO imediatamente t i ra o cd de GABRIEL e coloca

outro , de mús ica mais modernosa, agi tadinha) .

Escr i tora:_ A mús ica; a mús ica!

PATRÍCIA (r indo) :_ Que música é essa , Lúcio?

LÙCIO ( r indo):_ Ah, é um cd que eu ganhei .

GABRIEL :_ Só porcar ia .

LÚCIO :_ Ah, Gabr ie l . Você não quer ia que eu

colocasse aquelas músicas suas , né , meu?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

54

Page 55: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL :_ Não, tá bom. Tá bom. Hoje a Pat i es tá aqui

então pode botar qualquer música que vocês quiserem.

PATRÍCIA :_ Acabou o v inho?

LÚCIO ( fumando) :_ Você quer mais?

GABRIEL :_ Acabou. (pensando, a fas ta-se de tudo) .

PATRÍCIA :_ Ah, eu quer ia .

LÚCIO :_Virou p inguça?

PATRÍCIA (r indo) :_ P inguça , eu?

LÚCIO :_ ‘To br incando, Pat i !

PATRÍCIA :_ Ah, eu quer ia dar uma animada, vamos

fazer a lguma coisa! Vamos pra ba lada?

LÚCIO :_ Agora?

PATRÍCIA :_ É! Vamos , Ga?

Escr i tora:_ Não ouve nada. Cont inua em outro lugar .

PATRÍCIA :_Gabr ie l !

GABRIEL (chegando) :_ Oi?

PATRÍCIA :_E a í , vamos pra ba lada?

GABRIEL :_ Acho que eu não vou não, Pat i . Você não

vai f icar brava?

PATRÍCIA :_Por quê?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

55

Page 56: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL :_ Não es tou mui to bom pra sa i r hoje .

LÚCIO :_ Puta merda , cara! Vai encanar com o f i lme de

novo?

PATRÍCIA :_ Aquele f i lme?

LÚCIO :_ É. Tem uma mulher no f i lme que chama o

cara pra uma fes ta e e le não vai , f ica em casa . E o

Gabr ie l f ica imi tando o f i lme, sabe? Uma encanação do

cacete .

GABRIEL :_ Não é que eu f ico encanado no f i lme! Eu

não es tou a f im de sa i r mesmo. Sei lá . Bebi demais ! Não

ia nem conseguir .

LÚCIO :_ Es tá bem, cara . Vamos f ingi r que es tamos no

f i lme, Richard . E as vozes? Es tão aqui , Richard?

GABRIEL :_ Pára , cara . Não é i sso .

LÚCIO :_ Mrs . Dal loway diz que vai comprar as f lores

e la mesma.

GABRIEL :_ Larga a mão disso .

PATRÍCIA :_Você v iu o f i lme?

LÚCIO :_Vi duas vezes no c inema por causa dos “por

favor , va i comigo” dele .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

56

Page 57: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRÍCIA :_ Vamos ver o f i lme então . Es tou cur iosa

já .

GABRIEL :_ Ah, não , gente . Deixa pra lá .

PATRÍCIA :_ Então vamos sa i r !

GABRIEL :_ Então beleza . Vamos sa i r , ué .

(S i lêncio) .

Escr i tora:_ Ela percebe a lguma coisa , en tão tenta não

press ionar demais .

PATRÍCIA :_ Gente , de ixa então . Vamos f icar aqui e

pronto . Já es tá ó t imo. A gente não é mais adolescente!

LÚCIO :_ Pelo je i to ; não é?

PATRÍCIA :_ Vamos conversar . O papo já tava ó t imo

pra quê parar , não é? Então . O que es tá acontecendo com

você , Ga?

GABRIEL ( já um tanto desesperado) :_ Boa pergunta!

Vocês me fazem tantas perguntas d i f íce is !

LÚCIO :_ É que é o seguinte . ( impõe-se) Os laços

despropos i ta is dos ar t i s tas ! (Para GABRIEL) Vê se não é

meio ass im, cara . (Para PATRÍCIA) Eu a té já converse i

bas tante com ele sobre i sso . Esse choque, essa encanação

engrunhida é porque a mãe do cara do f i lme t ra tou o f i lho

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

57

Page 58: Eu tenho medo de virginia woolf

mais ou menos da mesma maneira que a mãe do Gabr ie l

t ra tou e le e também tem outras coisas que e les se

parecem, você lembra da mãe do Gabr ie l?

PATRÍCIA :_Lembro.

Escr i tora:_ GABRIEL pres ta dedicada a tenção. Como

LÚCIO pode fazer uma coisa dessas? Que dom! Que

mergulho! Mas por qual razão e le tem de me humilhar?

LÚCIO :_ Duas mães que de je i tos d i ferentes

abandonaram o f i lho . Ao mesmo tempo em que são

bruxas , são santas . E cr iaram monst ros como Richard e

Gabr ie l . Pode ter de ixado e les de lado, mas são e ternas

grávidas .

GABRIEL (r indo) :_ Viu só? Nem preciso pagar

te rapeuta! Tenho tudo em casa!

PATRÍCIA :_ Mas o que fo i que sua mãe fez que te

de ixou tão t r i s te , Ga?

GABRIEL :_ Eu nem gos to mui to de f icar fa lando sobre

o je i to que f iquei por causa da minha mãe. Me s in to um

id io ta . E percebi que me s in to um id io ta de tanto que eu

cheguei ta rde pra ver como é que eu f iquei por causa

dela . Cheguei ta rde demais .

PATRÍCIA :_ Gabr ie l , a gente é seu amigo.

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

58

Page 59: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL (Escr i tora:_ com a frase de PATRÍCIA

ecoando dentro da cabeça. Ela es tá bêbada? Ela

realmente quer saber i sso?) :_ Ah, vamos cont inuar a

fa lar sobre as coisas boas que a gente faz ia! Para quê

lembrar das coisas pessoais , os medos , as paranóias !

Tava tão gos tosa nossas memórias de aventuras e o que a

gente aprontava .

LÚCIO :_ Mas a conversa chegou aqui , cara . E fo i por

acaso . Acho impor tante a gente revelar a té as coisas mais

ín t imas para os amigos de verdade. A gente não deve pôr

essa fa ls idade de vol tar aos assuntos fe l izes se a gente

chegou nos assuntos t r i s tes . Senão tudo parece tão

mi to lógico , tão representa t ivo .

GABRIEL :_ Mas tem tanta coisa . Se eu contasse o

porquê que eu acho que pareço com Richard , porquê

minha mãe ent ra na h is tór ia , por i sso ou por aqui lo , é

tudo tão evidente! Eu sou ass im do je i to que eu f iquei

hoje por causa de tudo o que aconteceu. E eu f iquei ass im

também porque tenho essa velha sens ib i l idade que é como

uma doença , en tende? Pode parecer tão imbeci l , mas uma

das coisas que eu mais lembro fo i ass im: Meu quar to

t inha um monte de desenhos do espaço, sabe? Até o te to ,

cheio de foguetes , p lanetas , es t re las e as t ronautas . Eu

sent ia que era o meu universo . E eu era o deus daquele

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

59

Page 60: Eu tenho medo de virginia woolf

universo . Até que minha mãe resolveu ar rancar o papel de

parede e tudo fo i p in tado de branco. Ela me deu aquele

mundo e de repente tudo es tava vazio quando eu cheguei

da escola . Tudo branco, fedendo a t in ta f resca . Eu t ive

que dormir em outro quar to por causa do chei ro e nunca

f iquei tão t r i s te . Como a cr iança sente essas coisas , não

é? E como isso inf luencia de outras maneiras , t ipo , a

mulher que me empres tou um universo e de repente , sem

consul ta , sem razão, por pura vaidade , t i ra esse universo

de mim.

Escr i tora:_ GABRIEL f ica meio sér io , pres tando

a tenção na conversa como um al ienígena lendo os lábios

para entender como os humanos são ass im. Af inal ,

conf iante , e le realmente expôs coisas de seu mais

in tangíve l in ter ior .

LÚCIO :_Ah, eu também t ive cada decepção quando eu

era cr iança . Uma vez eu quer ia fazer uma exper iência em

casa e bote i fogo no sofá mais adorado da famíl ia .

Queimei metade do negócio e chamaram bombeiro , levei

uma porrada do meu pai . Foda, né?

PATRÍCIA (r indo) :_ Você fez i sso , Lú? Ai , meu deus . . .

cada uma!

LÚCIO :_ E você , Pat i?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

60

Page 61: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRÍCIA :_ Ah, eu já afoguei o cachorro da minha vó

na p isc ina , já perdi na escola a roupinha de fes ta junina

da minha mãe, putz! Minha mãe sof reu comigo, coi tada .

LÚCIO (r indo) :_ Nossa , como você fo i levada , he in!

PATRÍCIA :_ Desas t rada! Sempre fu i desas t rada .

LÚCIO :_ É. As cr ianças são ass im. Imagine quando a

gente t iver nossos f i lhos .

PATRÍCIA :_ Nem me fa le n isso! Mais desas t res !

LÚCIO :_ Desas t res recompensadores .

PATRÍCIA :_ E afe t ivos!

(Riem) .

GABRIEL (metendo-se no meio da conversa) :_ Se for

para eu ter um f i lho , rezo para que e le nunca se ja como

eu sou. Nem como o Richard do f i lme. E que a mãe do

meu f i lho não se ja nem parecida com a minha nem com a

dele .

PATRÍCIA (r indo) :_ Tomara que eu não f ique como

sua mãe então .

LÚCIO (r indo) :_ Pelo amor de deus , he in Pat r íc ia!

GABRIEL :_ Puxa, como vocês são legais !

PATRÍCIA :_ Ah, br incadei ra , Ga.

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

61

Page 62: Eu tenho medo de virginia woolf

LÚCIO :_ Mas que não se ja mesmo! Você quer ia que a

Pat i fosse como sua mãe para o f i lho dela?

GABRIEL :_ Claro que não.

PATRÍCIA :_ Gente , vou no banheiro . (Vai) .

Escr i tora:_ Sobram GABRIEL e LÚCIO na sensação de

que a tormenta PATRÍCIA deu uma pausa, esse era o

momento do d ia que e les es tavam como antes de la

chegar . GABRIEL já sente fa l ta . LÚCIO sente a l ív io e

percebe que se cansou. E não supor ta mais ouvir o

amigo.

GABRIEL :_’Tá vendo? As mulheres v ivem mui to mais

no passado do que nós . Apegam-se aos lugares ; e seus

pais . . . as mulheres sempre se orgulham de seus pais . Eu

aqui , como uma es tá tua ant iga ro ída de chuva ác ida e e la

lá , com a cabeça no fu turo e com a roupa do passado,

como se agora não exis t i sse .

LÚCIO :_ Mas agora exis te ou tudo não passa de uma

cont inuação?

GABRIEL :_ Não se i .

LÚCIO :_ Ai , cara . Já es tá meio tarde . ( levanta-se) . Vou

dormir , que amanhã começa tudo de novo. Você não vai

dormir?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

62

Page 63: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL :_ Vou depois . Pode i r .

LÚCIO :_ Beleza . Boa noi te , en tão , Gabr ie l .

GABRIEL :_ Boa noi te .

LÚCIO ( indo ao quar to , no corredor) :_ Boa noi te , Pat i !

PATRÍCIA (do banheiro) :_ Já va i dormir?

LÚCIO:_ Amanhã vou t rabalhar . Foda, né?

PATRÍCIA (abr indo a por ta , sa indo) :_ Es tá bem. Boa

noi te . (Bei ja- lhe a bochecha) .

(LÚCIO vai para o quar to . PATRÍCIA caminha meio

insat is fe i ta a té a sa la) .

Escr i tora:_ Não procura saber , mas a lgo lhe d iz que

vai ter de agüentar esse GABRIEL novamente . Agora sem

a a juda do outro amigo. E GABRIEL descobre que agora

não haverá mais quem possa romper com sua própr ia

verdade. PATRÍCIA e GABRIEL em s i lêncio .

GABRIEL (sorr indo) :_ Quer um café?

PATRÍCIA:_ Tem chá?

(GABRIEL levanta e se dedica ao chá. PATRÍCIA mexe

nas coisas do apar tamento . Acaba achando o f i lme) .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

63

Page 64: Eu tenho medo de virginia woolf

PATRICIA (observando a capa da cópia) :_ É pra fa lar

de você? Tudo bem, entendi o jogo. O que você v iu nesse

f i lme? Até agora fo i o Lúcio que d isse por você .

GABRIEL :_ Fala sobre t rês mulheres num único d ia . Só

que a v ida cabe toda nesse d ia . Uma escreve um l ivro .

Em outra época uma mulher es tá lendo esse l ivro . E a

out ra v ive nos d ias de hoje e meio que es tá v ivendo a

h is tór ia do l ivro .

PATRICIA :_ Legal . Parece ser d i ferente .

GABRIEL :_ Prec iso fa lar a lguma coisa? (vai serv indo

o chá) . É bem diferente , sabe? Tenho que fa lar sobre o

f i lme. Um f i lme é um f i lme quando você percebe que

exis te a lguma coisa por t rás da h is tór ia . Sabe que a

pa lavra f i lme é de pel ícula , de pele . E se você consegue

enxergar a lgum nervo, a lgum sangue ou a lguma a lma por

t rás dessa pele a í você soube entender o f i lme. É que nem

as páginas de um l ivro . As páginas es tão a l i , é a pe le ,

mas o espí r i to , o sangue, o coração, os ossos , es tão tudo

no meio das f rases , en t re as pa lavras . E o in teressante é

que e le é um personagem, não exis te , mas aqui no rea l

e le es tá me pegando, e le me in t r icou, entende? Ele f ica

meio que ass im no f i lme. . . (T ira a camise ta . pega o

roupão e o gorro) .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

64

Page 65: Eu tenho medo de virginia woolf

Escr i tora:_ Agora, mais uma vez , mas como se fosse a

vez de f in i t i va , a grande tenta t iva de t rans formação, e le

vai ser Richard Brown; Ele vai ser Richard, mas sempre

na pele de Gabr ie l .

GABRIEL:_ Desse je i to , com essas roupas no

apar tamento dele , doente , e le tem Aids sabe , escreveu um

l ivro , uma espécie de tenta t iva de l ivro , um l ivro que fo i

para e le como uma bacia que e le vomitou tudo o que

es tava enta lado no corpo, essa ca ixa mole que guarda os

órgãos humanos , e não consegue supor tar mais a v ida .

Até perdeu a noção do tempo. Nem sabe se já es tá mor to .

PATRICIA :_ Pelo je i to você cur te bas tante esse

personagem aí . Você comprou as roupas dele?

GABRIEL :_ Não, eu já t inha . Sabe , e le é um grande

homem. Ele la rgou a v ida para sa lvar out ra . Eu meio que

me tornei fã de le . Para mim, a a t i tude desse personagem

é um verdadeiro exemplo . Mas o f i lme tem mui tas out ras

coisas , a gente ia f icar fa lando e fa lando.

PATRICIA :_ Vamos ass is t i r o f i lme .

GABRIEL :_ Eu não se i se vou poder , Pat r íc ia .

PATRICIA :_ Por quê?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

65

Page 66: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL :_ É que esse f i lme anda mexendo mui to

comigo. Eu es tou f icando com medo dele .

PATRICIA :_ Ai , Ga. Não fa la i s so . É só um f i lme.

GABRIEL :_ É, eu se i . Mas é como eu d isse . É só um

f i lme, mas que me deu a enxergar as coisas que es tão

dentro dele . O Antônio deve ter gos tado. Ele v iu esse

f i lme lá? Fez mui to sucesso . E e les f i lmaram por a l i

também.

PATRICIA :_ Nem se i se e le v iu . Ele tem t rabalhado

tanto . Não sobra tempo nem pra comer d i re i to , quanto

mais i r ao c inema, coi tado.

GABRIEL :_ Ele anda bem ocupado, então?

PATRICIA (d is tante) :_ Ele anda fazendo de tudo.

Trabalhando d ia e noi te .

GABRIEL :_ Ele é um homem de sor te .

PATRICIA :_ E você , Ga? F ica aqui o d ia in te i ro . . . Não

faz mais nada da v ida?

GABRIEL (Escr i tora:_ não sabe para onde ir , quase

não consegue d izer uma palavra sequer . Prefer ia ser um

mudo. Um morto) :_ Não.

PATRICIA :_ Por quê?

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

66

Page 67: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL (Escr i tora:_ Fica choroso, não pode fazer

coisa nenhuma. Alcançaram num ponto do qual a verdade

necess i ta ter ex is tência) :_ Eu não posso ser mais nada .

(Ves te o roupão e o gorro) .

PATRICIA :_ Mas você a inda quer ser escr i tor?

GABRIEL :_ S im. Eu quer ia poder escrever . Mas se i

que não posso .

PATRICIA :_ O que acontece?

GABRIEL :_ É apenas mui ta coisa . Eu não cons igo

mais . Eu es tou f icando com pena dos meus amigos por

causa desses conselhos forçados só pra tentar aca lmar um

pouco essa paranóia doent ia que se in t rometeu aqui na

minha pele .

PATRICIA :_ Você a inda tem a v ida in te i ra pe la f rente .

GABRIEL :_ I sso mesmo. Saber que a inda tenho a v ida

in te i ra pe la f rente acabou se tornando meu maior medo.

Aquele t rac inho ent re o ano de nasc imento e o ano da

mor te que aparece nos túmulos e nas b iograf ias fo i a p ior

coisa que já me aconteceu.

PATRICIA :_ Não fa la ass im; você , que é tão d i ferente .

Eu se i que a inda pode fazer a lguma coisa .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

67

Page 68: Eu tenho medo de virginia woolf

GABRIEL :_ Eu posso ser d i ferente para as pessoas que

v ivem de je i to t r iv ia l . Mas eu não cons igo entender

minha d i ferença , o que me torna a lguém es t ranho ent re o

banal e o incomum. Eu mesmo tenho a per fe i ta

consciência dessa pessoa especia l que eu poder ia es tar

sendo, ah s im, tenho mesmo, mas essa consciência não

pode compreender se es tá pensando de modo

pr inc ipalmente d i ferente ou s implesmente normal . Eu

quer ia ser ass im que nem você . O je i to que você leva sua

v ida f ica fazendo de mim uma pessoa melhor , en tende?

(GABRIEL avança em PATRICIA e a bei ja de maneira

s igni f ica t iva , nada demasiada, to lerante e “ teatral” ,

Escr i tora :_ e ten ta sugá- la o quanto puder o que e la é .

PATRICIA não move e não sente nada. Nada mesmo) .

(Longa pausa. Música) .

GABRIEL :_ Eu não consegui ser banal e não consegui

pôr para fora o que me faz ia ser tão incomum. Então o

que sobrou? Esse f racasso que , não tendo mais em quem

se espelhar , admira os f racassados . Os que vencem amam

os vencedores . Eu me contento com quem f racassa . F ico

ass is t indo o tempo enquanto tenho a conf iança segura que

essa v ida vai te rminar . E ass im é que é o f i lme “as

horas” . Essa coisa ent re o poder do tempo e a esperança

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

68

Page 69: Eu tenho medo de virginia woolf

de ser a lguém. F ica desvendando a cada momento nem

“quem é você” , mas “o que é você” . O que é você , Pat i?

Você vai esperando o seu amado e enquanto i sso procura

ar rumar coisas para se d is t ra i r . I sso é v ida . A longa

espera para morrer , ou para acabar logo com tudo ou para

v iver do je i to que quiser para sempre . E eu acho que t ive

a opor tunidade de nascer para ver como é boni to a lguém

viver ass im.

(PATRÍCIA chora) .

GABRIEL (como se es t ivesse marchando, indo para a

janela , sentando na beira , levantando as pernas e

segurando os joe lhos , de ixando seu corpo ocupando o

menor espaço poss íve l ) :_ Af inal o que você acha que eu

es tou fazendo aqui , conversando com você , Pat i? Eu

es tou apenas esperando tudo o que exis te i r embora . Eu

es tou esperando as horas passarem de uma vez para tudo

o que eu v iv i de ixar essa rea l idade . Eu quer ia é es tar

escrevendo. Sabe , escrever é a permissão para você

conseguir ent rar em s i mesmo. E escrevendo eu poder ia

colocar todas as minhas dores . Eu quer ia es tar

escrevendo sobre tudo. Eu quer ia escrever como fo i o seu

d ia hoje , a tex tura desse chão, o je i to que a luz i lumina a

c idade , quais são as cores mais encantadoras , quais são

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

69

Page 70: Eu tenho medo de virginia woolf

os pensamentos que v ivem encos tados nas pessoas . Mas

eu f racasse i , minha l inda .

Escr i tora:_ Ela é l inda e es ta a f irmat iva é como um

car imbo de conf irmação. Pois e le a inda t inha idade de

chamar uma mulher de l inda e fazê- la sent ir -se bem.

Af inal um homem com mais de c inqüenta anos como

Richard, ao d izer “minha l inda” a uma moça, ser ia como

as palavras de um pai , uma dedicação paterna. Mas a um

rapaz como Gabr ie l , um e logio recompensador , um

convi te à v ida .

(PATRÍCIA não consegue. Es tá es tá t ica) .

(LÚCIO chega; tenta encontrar o que es tá

acontecendo) .

GABRIEL (para s i ) :_ Eu não posso mais cont inuar

es t ragando sua v ida . E não acredi to que duas pessoas

foram mais fe l izes do que nós fomos . (Treme de medo.

Fecha os o lhos com as mãos . Inc l ina-se) .

LÚCIO (de o lhos fechados , na conf iança, num

sussurro) :_ Isso mesmo.

(GABRIEL se arremessa janela abaixo) .

PATRÍCIA (num lamento profundo) :_ Ai , meu deus do

céu! Ai , meu deus! Vamos chamar uma ambulânc ia!

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

70

Page 71: Eu tenho medo de virginia woolf

Vamos descer lá em baixo, por favor! Ai , que é i sso?

Meu deus! Lúcio , porque e le fez i sso? O que é i sso? O

que é i sso tudo? Porque você es ta a í parado que nem um

id io ta , Lúcio?

LÚCIO :_ Deixa d isso , Pat r íc ia . Não prec isa fazer nada .

Escr i tora:_ Aos l e i t ores que a inda permanecem nes t e l i v ro ,

a t é a f rase de Lúc io posso cons iderar a obra t e rminada. Aos

que qu i serem saber o porquê daque le su i c íd io por opção ,

hes i t o expl i car t anto de modo reservado quanto de modo

panorâmico e f r í g ido , poi s não t enho coragem em d i s secar

aque la mor te . Porque a lguém prec i sa morrer para os ou t ros

darem mai s va lor a v ida . E e le morreu por e l e s . E ganhou a

recompensa de sent i r na pe l e o que é se r um ar t i s ta

imor ta l i zado pe la mor t e de opção par t i cu lar . Com medo de

descobr i r a v ida , f i nalmen te encará- la face -a- face , a segui r

amá- la e depo i s de i xá- la de l ado. E l e t inha que morrer por

causa do que acon teceu an tes , do que acontec ia agora e do

que ia acon tecer depo i s . Por causa do tempo . Por causa do

amor . Por causa das horas .

VICTOR STEINBERG MOTTA nasceu

em Campinas , São Paulo , em 1985. Ator

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

71

Page 72: Eu tenho medo de virginia woolf

formado pelo Conservatór io Car los Gomes ,

escreve desde os 13 anos . Aos 15 escreveu

a peça A Chuva , publ icada em 2002 e

recebeu a medalha Car los Gomes pela

Câmara Munic ipal de Campinas “pelos

re levantes serv iços pres tados nos campos

da cul tura e da ar te” . Es ta é sua segunda

obra tea t ra l .

Copyright © 2004 by Victor Steinberg Motta. Todos os direitos autorais reservados e

protegidos pela lei 9.610 de 19/02/98. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer

meios, sem autorização prévia, por escrito, do autor ou da editora.

72