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“CORRENDO PARA ALCANÇÁ-LOE XERCÍCIOS DA F RATERNIDADE DE C OMUNHÃO E L IBERTAÇÃO R IMINI 2014

Exercícios Espirituais Correndo Para Alcançá-Lo

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  • Correndo para alCan-lo

    E x E r c c i o s d a F r a t E r n i d a d E

    d E c o m u n h o E L i b E r t a o

    r i m i n i 2 0 1 4

  • Correndo para alCan-lo

    E x E r c c i o s d a F r a t E r n i d a d Ed E c o m u n h o E L i b E r t a o

    r i m i n i 2 0 1 4

  • Traduo de Jos Maria de Almeida e reviso de Isabella Santana Alberto.

    Na capa: Eugne Burnand, Os discpulos Pedro e Joo correm ao Sepulcro na manh da Ressurreio, 1898. Museu dOrsay, Paris.

  • O Papa me encarregou de lhes trazer a sua saudao, a sua sau-dao afetuosa, o seu encorajamento, e de lhes dizer que sabe que pode realmente contar com vocs para essa converso pastoral no sentido missionrio, a qual chama toda a Igreja na Evangelii Gaudium, o do-cumento que foi definido como programtico deste pontificado. Uma missionariedade que encontra o seu sentido na atrao.

    Cardeal Pietro Parolin, Secretrio de Estado de Sua SantidadeDa saudao antes da bno final. Sbado, 5 de abril de 2014

  • Sexta-feira, 4 de abril, noiteNa entrada e na sada:

    Ludwig van Beethoven, Sinfonia n. 7Herbert von Karajan Berliner Philharmoniker

    Spirto Gentil n. 3, Deutsche Grammophon

    n INTRODUO

    Julin Carrn

    Correndo para alcan-Lo.1 A quem de ns no agradaria estar aqui esta noite com a mesma face toda aberta, toda tensa, toda desejosa, plena de admirao de Pedro e Joo a caminho do sepulcro, na manh da Pscoa?2 Quem de ns no desejaria estar aqui com essa tenso bus-cando Cristo, como vemos nas faces deles? Com o corao pleno daquela espera de encontr-lo de novo, de rev-lo, de ser atrado, fascinado como no primeiro dia?

    Mas quem de ns espera verdadeiramente que possa acontecer algo assim? Como eles, ns tambm temos dificuldade de dar crdito ao ann-cio das mulheres, dificuldade de reconhecer o fato mais desconcertante da histria, de dar-lhe espao dentro de ns, de hosped-lo no corao para que nos transforme. Ns tambm, como eles, sentimos a necessi-dade de sermos novamente agarrados, para que desperte em ns toda a saudade de Cristo.

    Peamos juntos ao Esprito Santo que desperte em cada um de ns a espera, o desejo dEle.

    Vinde Esprito Criador

    Bem-vindos!Sado cada um de vocs aqui presentes e todos os amigos que esto

    conectados conosco de diversos pases e todos os que vo fazer, depois, os Exerccios nas prximas semanas.

    Dois fatos marcaram a nossa caminhada juntos nos ltimos meses: a Jornada de Incio de Ano e a minha audincia com o Papa Francisco.

    1 Fil 3,12.2 Ver o quadro de Eugne Burnand (1850-1921): Os discpulos Pedro e Joo correm ao Sepulcro na manh da Ressurreio, leo sobre tela, 1898, Museu dOrsay, Paris.

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  • 5Na Jornada de Incio de Ano, colocamos, como tema, duas perguntas: Como se faz para viver? O que estamos fazendo no mundo?. Ao nos fazermos essas perguntas, naquela ocasio, vimos que aquilo de que mais precisamos nos tornarmos cada vez mais uma presena original, no reativa. Dom Giussani nos recordava: Uma presena original quando brota da conscincia da prpria identidade e da afeio por ela, e nisso encontra a sua consistncia.3

    Desde ento, passaram- se vrios meses, fomos desafiados por muitos eventos. O que aconteceu diante das provocaes das quais o real no nos poupou? Estes dias so uma ocasio preciosa para ver qual foi a ve-rificao que fizemos da proposta. O golpe desses desafios fez emergir a nossa originalidade? Verificamos a nossa consistncia, ou nos deixamos levar pela mentalidade de todos, no conseguindo ir alm de uma posi-o reativa?

    A audincia com o Papa Francisco, cujo contedo foi retomado na carta que em seguida enviei Fraternidade, colocou em evidncia, desde o primeiro instante, o que mais importa ao Santo Padre como pastor de toda a Igreja. No me parece suprfluo retornar sobre isso no incio dos nossos Exerccios.

    O que mais importa ao Papa? Ele nos disse com seu modo sinttico: a nova evangelizao, a urgncia de despertar no corao e na mente dos nossos contemporneos a vida de f. A f um dom de Deus, mas im-portante que ns, cristos, mostremos que vivemos de modo concreto a f atravs do amor, da concrdia, da alegria, do sofrimento, porque isso suscita perguntas, como no incio do caminho da Igreja: por que eles vivem assim? O que os move? [] [O] corao da evangelizao [] o testemu-nho da f e da caridade. Aquilo de que necessitamos, especialmente nestes tempos, de testemunhas crveis que, com a vida e tambm com a palavra, tornem visvel o Evangelho, despertem a atrao por Jesus Cristo, pela be-leza de Deus. [] necessrio cristos que tornem visvel aos homens de hoje a misericrdia de Deus, a sua ternura por cada criatura.4

    Portanto, o que mais importa ao Papa a misso: A nova evange-lizao um movimento renovado rumo queles que perderam a f e o sentido profundo da vida. Este dinamismo faz parte da grande misso de Cristo, de anunciar a vida ao mundo, o amor do Pai pela humanidade. O Filho de Deus saiu da sua condio divina e veio ao nosso encontro. A

    3 L. Giussani, Dallutopia alla presenza (1975-1978), Ed. Bur, Milo 2006, p.52.4 Francisco, Discurso aos participantes da Plenria do Pontifcio Conclio pela Promoo da Nova Evangelizao, 14 de outubro de 2013, 1.

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    Igreja encontra-se no interior deste movimento, e cada cristo chamado a ir ao encontro do seu prximo, a dialogar com aqueles que no pensam como ns, com aqueles que seguem outro credo ou que no tm f. pre-ciso encontrar a todos, pois todos temos em comum o fato de termos sido todos criados imagem e semelhana de Deus. Podemos ir ao encontro de todos, sem medo e sem renunciar nossa pertena.5

    O Papa identificou com clareza tambm o mtodo: o apelo ao essen-cial. Ir at as periferias da existncia, escreve, exige o empenho [] que chame ao essencial e que esteja bem centrado no essencial, isto , em Jesus Cristo. No adianta perder-se em muitas coisas secundrias e su-prfluas, mas se concentrar na realidade fundamental, que o encontro com Cristo, com a sua misericrdia, com o seu amor, e amar os irmos como Ele nos amou; isto nos impulsiona tambm a percorrer cami-nhos novos com coragem, sem nos fossilizarmos! Poderamos perguntar--nos: como a pastoral das nossas dioceses e parquias? Ela torna visvel o essencial, ou seja, Jesus Cristo?.6

    Na carta aps a audincia, eu escrevi: Peo-lhes que acolham como dirigida a ns especialmente a ns que nascemos somente para isto, como testemunha toda a vida de Dom Giussani a pergunta do Papa Francisco: cada um de ns, cada comunidade do nosso Movimento, tor-na visvel o essencial, isto , Jesus Cristo?.7 Diante das circunstncias histricas atravs das quais o Mistrio desafiou cada um de ns, torna-mos visvel o essencial, ou nos perdemos em tantas coisas secundrias e suprfluas?

    Com o seu apelo ao essencial, o Santo Padre nos indica para onde ele olha a fim de responder ao desafio de viver hoje a f no nosso mundo. O apelo ao essencial uma indicao de mtodo crucial.

    Por isso, a questo fundamental : o que, para ns, o essencial? O essencial o que responde pergunta sobre como se faz para viver. O que o essencial para cada um de ns? Nenhuma pergunta mais pertinen-te do que essa para o incio dos nossos Exerccios, justamente pela sua radicalidade. Ningum pode servir a dois senhores, porque ou odiar um e amar o outro, ou se afeioar a um e desprezar o outro.8 Essa frase de Jesus nos indica que cada um de ns s pode afirmar uma coisa como ltima, de tanto que a unidade do eu humano indiscutvel. Por

    5 Idem, 2.6 Idem, 3.7 J. Carrn, Carta Fraternidade de Comunho e Libertao, 16 de outubro de 2013.8 Mt 6,24.

  • 7isso, diante da provocao do viver, cada um obrigado a decidir o que realmente importa em ltima instncia. O choque das circunstncias no nos deixa sada, obriga-nos a desvelar a coisa mais cara que possumos.

    Como podemos surpreender, sem erro, o que , para ns, o essencial? O mtodo sempre nos foi ensinado por Dom Giussani: surpreendendo--nos em ao, na experincia. Porque os fatores constitutivos do hu-mano so percebidos [e nos tornamos conscientes deles] quando esto empenhados na ao, de outro modo, no so encontrveis []. Quanto mais algum est comprometido com a vida, tanto mais percebe tambm, em cada experincia, os prprios fatores da vida. A vida uma trama de acontecimentos e de encontros que provocam a conscincia, produzindo nela problemas em variada medida. O problema nada mais que a ex-presso dinmica de uma reao diante dos encontros. A vida , portan-to, uma trama de problemas, um tecido de eventos reativos aos encontros provocantes, pouco ou muito provocantes. O significado da vida ou das coisas mais pertinentes e importantes da vida um ponto de chega-da possvel somente para quem leva a srio a vida, seus acontecimentos e encontros, isto , para quem est comprometido com a problemtica da vida. Estar comprometido com a vida no significa um compromisso exasperado com um ou outro de seus aspectos: o compromisso com a vida nunca parcial. O compromisso com um ou outro aspecto da vida, se no for vivido como derivao de um compromisso global com a pr-pria vida, correr o risco de tornar-se uma parcialidade desequilibrante, uma fixao ou uma histeria. Lembro um pensamento de Chesterton: O erro uma verdade que enlouqueceu. Por isso, a condio para poder surpreender em ns a existncia e a natureza de um fator sustentador e decisivo como o senso religioso o compromisso com a vida inteira, na qual tudo est compreendido: amor, [trabalho], estudo, poltica, dinhei-ro, at a comida e o repouso, sem nada esquecer nem a amizade, nem a esperana, nem o perdo, nem a raiva, nem a pacincia. Dentro de cada gesto est o passo em direo ao prprio destino.9

    Ento, o que acontece quando algum se empenha com todos os fato-res da vida, com a vida inteira? Que quanto mais a pessoa vive, mais apa-rece diante dos seus olhos qual a natureza da sua necessidade. E quan-to mais descobrimos as nossas exigncias, mais percebemos que no as podemos resolver sozinhos, nem podem faz-lo os outros, homens como ns, pobres como ns: O sentimento de impotncia acompanha cada ex-perincia sria de humanidade. este sentimento de impotncia que gera

    9 L. Giussani, O senso religioso, Ed. Universa, Braslia 2009, pp. 62-63.

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    a solido. A solido verdadeira no provm do fato de estar fisicamente s, mas sim da descoberta de que um problema fundamental nosso no pode encontrar resposta em ns ou nos outros. Pode-se perfeitamente dizer que o sentimento da solido nasce exatamente no corao de cada srio empenho com a prpria humanidade.10

    Justamente este sentimento de impotncia, no qual consiste ultima-mente a solido e do qual cada um de ns faz experincia na vida, o que precisa encontrar resposta. Sem essa resposta, todo o resto distrao.

    Estamos ss com a nossa necessidade, o que depois foi documentado em muitas perguntas que emergiram nestes meses. Bem, se esta a nossa situao, o que nos permite ficar de p? Em outras palavras: o que o essencial de que precisamos para viver como homens, segundo toda a profundidade da nossa exigncia? O que para ns o essencial? No h outro modo de colher o que essencial para ns a no ser surpreendendo, na experincia, de onde ns esperamos a resposta necessidade do viver.

    Pode ser fcil, e at mesmo bvio pela educao que recebemos, respon-der de imediato que para ns o essencial Cristo, a presena de Cristo. Po-rm, no podemos nos safar assim to facilmente. Uma resposta mecnica no basta. De fato, muitas vezes, observando-nos em ao, devemos nos render evidncia de que o essencial, para ns, est em outro lugar.

    O critrio para descobri-lo nos dado pelo Santo Evangelho: Onde est o teu tesouro, a estar tambm o teu corao.11 Abre-se aqui a distncia entre a inteno de que Cristo seja o essencial da vida e a sur-presa de que muitas vezes, na experincia, no bem assim. Aqui emerge a diferena entre inteno e experincia. Podemos descobrir, ento, que, mesmo em boa f, o essencial se tornou outra coisa e no mais Cristo; e tendemos para outra coisa, talvez at em nome daquele essencial que continua, de qualquer modo, a ser citado em nossos discursos.

    decisivo captar o que estamos dizendo para no reduzir logo tudo ao problema dos nossos erros ou das nossas fragilidades quotidianas, das nossas incoerncias morais. Quando se sublinha a distncia entre inteno e experincia, o tema no , antes de tudo, a coerncia, no quantas vezes erramos, mas o que nos define at quando erramos; ou seja, o tema o con-tedo da autoconscincia, qual o real ponto de consistncia, o que ns efe-tivamente perseguimos e amamos na ao, o que para ns o essencial. De fato, podemos ser incoerentes e sermos centradssimos no essencial, como a

    10 L. Giussani, O caminho para a verdade uma experincia, Ed. Companhia Ilimitada, So Paulo 2006, pp. 105-106.11 Mt 6, 21.

  • 9criana de que tantas vezes nos falou Dom Giussani , que apronta todas, enlouquece a me mil vezes ao dia, mas, no centro do seu olhar, no h nada mais do que a me. Ai se a levam para longe da me! Berra, se desespera.

    Por isso, a defasagem entre inteno e experincia no tem nada a ver com a discrepncia entre teoria e aplicao, mas indica que o contedo de conscincia e de afeio, de fato, se tornou um outro, alm da co-erncia-incoerncia tica. como dizer que, sem perceber, muitas vezes nos deslocamos, orientamos o nosso olhar para outro lado, estamos cen-trados em um outro (o essencial no foi negado, mas se transformou num a priori, num postulado que ficou para trs e no define quem somos, no define a nossa identidade pessoal e o nosso rosto hoje no mundo).

    A nossa histria demonstrou isso, de modo particularmente eviden-te, em alguns momentos, como veremos amanh. Basta, agora, recordar o que Dom Giussani nos disse, como destacamos na Jornada de Incio de Ano: O projeto tinha substitudo a presena12, sem que tivssemos percebido.

    O que nos permite olhar isso, olhar tudo, at mesmo os erros, at mes-mo essa falta de autoconscincia, sem medo, livres da tentao de se jus-tificar? (como os publicanos, que iam a Jesus porque s com Ele podiam ser eles mesmos, sem negar nada de si; por isso O procuravam, por isso tinham necessidade de voltar para Ele: para finalmente poderem ser eles prprios). A certeza da Sua aliana, a certeza de que Ele tomar tambm os nossos erros como ocasio para nos fazer descobrir a Sua diversidade, quem Ele. A certeza desse amor define a aliana que Deus fez conosco, como lembra o profeta Isaas: Assim diz o Senhor: No tempo da graa eu te escutei, no dia da salvao eu te ajudei. Eu te guardei e te coloquei como aliana entre o povo, para reergueres o pas, para devolveres as pro-priedades arrasadas, para dizeres aos cativos: Sa livres!, aos presos em crcere escuro: Vinde para a luz! Por todo o caminho tero o que comer, em qualquer cho seco podero se alimentar; jamais tero fome ou sede, sol ou calor no os atingir, pois Aquele que deles se condoeu que vai conduzindo este povo, Ele os guia para as fontes de gua. Transformarei minhas montanhas em caminhos, vo surgindo os aterros de minha es-trada. E uns, ento, vm do oriente; outros, do norte; outros, do lado do mar e outros, da terra de Assu. D louvores, cu! Fica feliz, terra! Montanhas, soltai gritos de louvor, pois o Senhor vem consolar seu povo, mostrar ternura para com seus pobres.13

    12 L. Giussani, Dallutopia alla presenza (1975-1978), op. cit., p. 64.13 Is 49,8-13.

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    Contudo, apesar dessa preferncia, ns desafiamos o Senhor com as nossas conversas fiadas: Sio disse: O Senhor me abandonou, o Senhor se esqueceu de mim.14 Quantas vezes pensamos assim! A essa provoca-o, Deus poderia reagir como ns, com a costumeira reatividade, enfu-recendo-se; mas Ele nos surpreende sempre com uma presena toda ori-ginal, irredutvel. Em vez de se deixar determinar pelas nossas conversas fiadas, por aquilo que dizemos dEle ou pensamos, aproveita a ocasio para mostrar mais uma vez a Sua diversidade, desafiando a nossa razo de um modo desconcertante: Por acaso uma me se esquece do seu filho, no se comove uma mulher com o filho do seu ventre? Mesmo que ela se esquecesse, eu no te esquecerei jamais.15

    O que seria da nossa vida se no pudssemos ouvir uma vez mais essas palavras! Essa a Sua fidelidade, que nos permite olhar tudo, que nos permite deixar entrar a Sua prpria presena na vida, a nica que pode reduzir cada vez mais a distncia entre a inteno e a experincia, porque nos torna possvel uma experincia de unidade do viver como aquela que experimentavam os publicanos encontrando Jesus. Por isso voltavam para Ele, como ns voltamos, esperando ouvir aquela pala-vra que [] me libertou, por aquela esperana que Ele havia suscita-do em ns.16

    esta a unidade de vida que todos desejamos: O adulto quem alcanou a unidade de vida, uma conscincia do seu destino, do seu sig-nificado, uma energia de adeso.17 o que todos desejamos: essa uni-dade de vida. S assim poderemos ser verdadeiramente ns mesmos, e a nossa presena poder ser til para ns e para os outros. Como recordava Dom Giussani a certa altura da nossa histria foi em 1977 , nestes ltimos anos passados, ns fomos verdadeiramente vtimas da presun-o do Movimento como panaceia para a Igreja e para a Itlia. Mas [] se o Movimento no for a experincia da f como solucionadora, como iluminadora das minhas problemticas, tambm no pode ser uma proposta para os outros,18 dizia Dom Giussani. Por isso desejava que a f se tornasse uma experincia e nos ensinou sempre que o caminho para adquiri-la no outro seno a personalizao da f. chegado

    14 Is 49, 14.15 Is 49, 15.16 Cf. C. Chieffo, Ballata deluomo Vecchio e Il monologo di Giuda, Canti, Societ Cooperativa Ed. Nuovo Mondo, Milo 2014, p. 218 e p. 230.17 Fraternidade de Comunho e Libertao (FCL), Arquivo histrico do Movimento de Comunho e Libertao (AMCL), fasc. CL/81, Conselho, 18/19 de junho de 1977.18 FCL, AMCL, fasc. CL/85, Centro, 17/11/77. Sntese.

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    o momento da personalizao [] do acontecimento novo que nasceu no mundo, do fator de protagonismo novo da histria, que Cristo, na comunho com aqueles que o Pai lhe entregou. [] Giussani sublinha que um problema de experincia: A primeira coisa em que temos que nos ajudar confirmar que o princpio de tudo a experincia []. O conceito de experincia provar julgando.19

    Sem que a f se torne experincia pessoal, no existe a misso, e aca-bamos nos tornando pretensiosamente juzes de tudo. Porque a propos-ta passa atravs da minha humanidade mudada, e o mpeto da misso uma gratido, caso contrrio uma presuno.20 Isto faz entender que hoje a nica posio adequada o testemunho, como nos lembra o Papa. A razo ainda Dom Giussani que nos recorda: Numa socie-dade como esta, no se pode criar nada de novo a no ser com a vida: no h estrutura, nem organizao ou iniciativa que permanece. s uma vida diferente e nova que pode revolucionar estruturas, iniciativas, relaes, tudo, enfim. E a vida minha, irredutivelmente minha.21 Esta frase belssima!

    preciso a vida! No basta a dialtica. No entanto, h quem pense que o testemunho, isto , a vida, a experincia do viver, seja uma esco-lha de renunciadores, intimista, uma justificao da falta de empenho. No h nada mais errado. O testemunho , na realidade, a escolha mais exigente, porque requer um empenho mais totalizante do que qualquer outra opo. Exige tudo de ns, no s um retalho de tempo que de-cidimos dedicar a um projeto qualquer. O testemunho para pessoas que querem viver altura da prpria humanidade, requer que se esteja presente com todo o nosso ser ao encontrar o outro, levando-lhe uma novidade vivida de modo to radical que ele possa despertar em toda a sua humanidade, de homem para homem. Deus salva o homem atravs do homem22, como lemos na Escola de Comunidade. preciso toda a minha humanidade. necessria toda a dor da nossa amiga Natascha [de Bolonha] frente ao seu filho para fazer nascer uma nova seo de pa-tologia neonatal. No basta uma conferncia pro life. O testemunho no se colocar margem ou retirar-se da batalha: exige o empenho de toda a minha humanidade: energia, afeio, inteligncia, tempo, unidade do

    19 A. Savorana, Vita di Dom Giussani, Ed. Rizzoli, Milo 2013, p. 762.20 FCL, AMCL, fasc. CL/85, Centro, 17/11/77. Sntese.21 Movimento, regra de liberdade, por O. Grassi, Litterae Communionis CL, novem-bro de 1978, Milo, p. 44.22 L. Giussani, Na origem da pretenso crist, Ed. Companhia Ilimitada, So Paulo 2012, p. 153.

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  • Exerccios da Fraternidade

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    viver. Bem diferente de espiritualismo! Bem diferente de delegar a algum especialista a soluo da nossa vida!

    Por isso, insistir na personalizao da f insistir no ponto-chave de onde pode surgir aquela diversidade que nos torna presena, capazes de um testemunho original na sociedade. Quem no sente a necessidade dis-so? Ns podemos viver a responsabilidade qual nos chamou o Papa somente se no considerarmos bvio o sujeito (isto , que somos teste-munhas apenas pelo fato de diz-lo), mas aceitarmos percorrer aquele ca-minho que nos tornar testemunhas segundo o desgnio que Deus quiser. O Movimento o que ajuda a isso e basta diz Giussani : ajuda voc a ser voc mesmo.

    O caminho para a verdade uma experincia. Sempre foi assim. No conceito de desenvolvimento est em jogo a prpria vida pessoal de Newman. Isso me parece evidente na sua clebre afirmao, dentro do famoso ensaio sobre O desenvolvimento da doutrina crist: Aqui na terra viver mudar, e a perfeio resultado de muitas transforma-es. Ratzinger que o cita e prossegue: Newman foi, ao longo de toda a sua vida, uma pessoa que se converteu, que se transformou, e desta forma permaneceu sempre ele mesmo, e tornou-se sempre mais ele mesmo. Vem-me mente a figura de Santo Agostinho, to seme-lhante figura de Newman. Quando se converteu no jardim perto de Cassiciaco, Agostinho tinha compreendido a converso ainda segundo o esquema do venerado mestre Plotino e dos filsofos neoplatnicos. Pensava que a vida de pecado passada estivesse agora definitivamente superada; o convertido seria, daquele momento em diante, uma pessoa completamente nova e diferente, e o seu caminho seguinte teria consis-tido numa contnua subida para as alturas mais puras da proximida-de de Deus, algo como o que descreveu Gregrio de Nissa em De vita Moysis: Precisamente como os corpos, logo que recebem o primeiro impulso para baixo, mesmo sem ulteriores estmulos, afundam-se por si mesmos tambm, mas em sentido contrrio, a alma que se liberta das paixes terrenas, se eleva constantemente ao de cima de si com um mo-vimento veloz de ascenso num voo sempre em direo ao alto. Mas a experincia real de Agostinho era outra: ele teve que aprender que ser cristo significa, ao contrrio, percorrer um caminho sempre mais cansativo com todos os seus altos e baixos. A imagem da ascenso substituda com a de um iter, um caminho, de cujas fadigosas asperezas nos confortam e amparam os momentos de luz que, de vez em quando, podemos receber. A converso um caminho, uma via que dura a vida inteira. Por isso, a f sempre desenvolvimento, e, precisamente assim,

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    maturao da alma para a Verdade, que nos mais ntima de quanto ns o somos para ns mesmos.23

    Essa maturidade acontece por meio de todas as circunstncias da vida: O mundo, com todos os seus terremotos, instrumento de cha-mado de ateno de Deus para a autenticidade e a verdade da vida, para todos, mas, em particular, para o cristo, que como a sentinela no cam-po do mundo. s vezes esses terremotos nos desconcertam. normal, como nos lembra Dom Giussani: No fundo, como lei, no podemos evitar estar perdidos. O mundo rir, e vs chorareis.24

    Tudo o que dissemos nos torna conscientes da nossa necessidade. Essa conscincia decisiva para um gesto como este que estamos para come-ar. Porque os Exerccios da Fraternidade so mesmo um gesto. Por isso, alm da palestra ou da assembleia, so tambm silncio, canto, orao, pedido sobretudo. Ao participar de um gesto como este, podemos redu-zi-lo, e cada um escolhe, segundo o prprio critrio, do que participar ou o que seguir de todo o pacote! Como se ns fssemos ao mdico, mas de-cidssemos, ns mesmos, qual remdio tomar. Ao contrrio, quanto mais somos conscientes da nossa necessidade, tanto mais tudo o que viveremos nestes dias, todo o sacrifcio que faremos, se tornar um grito, um grito para que o Senhor tenha piedade de ns. Peamos!

    23 J. Ratzinger, Discurso por ocasio do centenrio da morte do Cardeal John Henry New-man, 28 de abril de 1990.24 L. Giussani, A longa marcha da maturidade, Passos-Litterae Communionis, abril de 2008, p. 31.

    Sexta-feira, noite

  • SANTA MISSALiturgia da Santa Missa: Sab 2,1.12-22; Sl 33 (34); Jo 7,1-2.25-30

    HOMILIA DO PADRE STEFANO ALBERTO

    Neste segundo captulo do Livro da Sabedoria descrita, com extrema preciso, a dinmica pela qual tudo se concentra numa hostilidade em relao a Cristo: ele que se gloria de ter a Deus por pai. Vejamos se suas palavras so verdadeiras. No entraramos na verdade profunda da nossa vida se no reconhecssemos aquela que a Escola de Comunidade chama de instintiva resistncia a Cristo, verdadeiro Deus, verdadeiro homem. Essa nossa resistncia no se manifesta em rebelio aberta. An-tes, assume a forma daqueles que diante de Jesus diziam: Esse a ns sabemos de onde , ns o conhecemos. A resistncia em relao qual preciso vigiar, mendigar, aprender aquela de quando ns j sabe-mos e no sentimos mais a necessidade de nos deixar agarrar. Frente a essa, que a forma mais insidiosa de resistncia, porque sufoca a sede de felicidade e a conscincia de ser em tudo dependentes do Pai, Cristo responde justamente com o lao que Ele tem com o Pai: fundamento da Sua irredutibilidade. No vim por mim mesmo, mas quem me mandou verdadeiro. Eu o conheo, porque venho dele. Ns que o encontramos esperamos conhec-Lo no pelo que j sabemos, mas pelo que agora, nes-tes dias, recebemos dEle. Ns, que assim como somos desejamos correr para apanh-Lo, se formos leais, se formos humanos conosco mesmos, sabemos muito bem que precisamos nos agarrar a Ele. E isso tem uma forma humana: um lugar, uma histria, uma presena humana, com um rosto e uma voz.

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  • Sbado, 5 de abril, manhNa entrada e na sada:

    Wolfang Amadeus Mozart, Concertos para piano e orquestra em r menor n. 20, K 466Clara Haskil, piano

    Igor Markevitch Orchestre des Concerts LamoureuxSpirto Gentil n. 32, Philips

    Padre Pino. Vou prosseguindo para ver se o alcano, pois que tambm j fui alcanado por Jesus Cristo.25

    Angelus

    Laudes

    n PRIMEIRA MEDITAO

    Julin Carrn

    O essencial para viver

    1. O essencial: esse primeiro sobressalto no corao

    Se olho no fundo dos teus olhos ternos, me esqueo do mundo com todo o seu inferno.26 possvel que olhar no fundo dos olhos possa fazer es-quecer o inferno? Para poder compreender essa frase, preciso ter visto brilhar nos olhos de uma pessoa o Ser que a faz existir agora. Para que o inferno no se apague s sentimentalmente, preciso que os olhos vibrem de uma maneira tal que no me deixem ficar na aparncia da vibrao, mas que eu seja impulsionado a ver, nessa vibrao dos olhos, o Ser que os

    25 Fil 3,12.26 V. Heredia, Ojos de cielo, Canti, op. cit., pp. 295-296. Se eu olho no fundo dos teus olhos ternos, me esqueo do mundo com todo o seu inferno. Eu me esqueo do mundo e descubro o cu quando me mergulho nos teus olhos ternos. Olhos de cu, olhos de cu, no me abandone em pleno voo. Olhos de cu, olhos de cu, toda a minha vida por esse sonho. Se eu me esquecesse do verdadeiro, se eu me afastasse do mais sincero, teus olhos de cu me fariam recordar, se eu me afastasse do verdadeiro. Olhos de cu, olhos de cu Se o sol que me ilumina se apagasse um dia e uma noite escura tomasse a minha vida, teus olhos de cus me iluminariam, teus olhos sinceros, meu caminho e guia. Olhos de cu, olhos de cu

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  • Exerccios da Fraternidade

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    faz vibrar assim. Muitas vezes ficamos na aparncia. Basta pensar no que aconteceu conosco enquanto cantvamos a cano. Apagou-se o inferno dos nossos olhos? Apagaram-se os nossos medos, a nossa incapacidade, a nossa impotncia, o medo do nada que se apresenta sempre, e de novo, na nossa vida? Se no aconteceu nada disso, ficou somente o contragolpe sentimental e, portanto, no durar muito; significa que ns no capta-mos a razo ltima do que acabamos de cantar, no participamos daquela experincia que fez nascer o canto. Ao invs, se participei, terei tido a experincia de descobrir o cu quando mergulho nos teus olhos ternos. s desse mergulho que pode surgir toda a splica: Olhos de cu, olhos de cu, no me abandone em pleno voo.

    Se eu me esquecesse do verdadeiro, se, ento, no estivesse em con-dio de ver a verdade das coisas, se eu me afastasse do mais sincero do que eu teria necessidade? De que os teus olhos me lembrem disso. Mas ainda mais: Se o sol que me ilumina se apagasse um dia, e uma noite escura tomasse a minha vida, se nos encontrssemos na obscuridade total, do que eu teria necessidade? Que os teus olhos de cus me ilumi-nem, porque teus olhos sinceros [] so para mim caminho e guia. Quando foi a ltima vez, em nossa vida, que olhando nos olhos, at nos das pessoas mais amadas, nos aconteceu isso? No como poesia, no como literatura, no como puro sentimentalismo! Como fato, como experincia vivida, porque a est todo o mtodo.

    Quando eu era professor do ensino mdio, costumava dar este exem-plo: se uma criana fosse com os pais ao parque de diverses, seria toma-da por todas as atraes que via diante de si, cada coisa seria fantstica e ela no deixaria de dizer: Veja, papai! Veja isto!, completamente atra-da. Cada atrao seria um choque, cada coisa que visse a entusiasma-ria. Mas se, num momento de distrao, se separasse dos pais e se visse sozinha no meio da confuso das pessoas, da massa da multido, o que aconteceria? Tudo o que ela tinha diante de si, com toda a sua beleza, se transformaria numa ameaa e ela comearia a chorar. Tudo est ali como antes, as atraes so as mesmas de antes, mas a criana chora, no lhe interessa mais nada do que v. Tudo se tornou um inferno. O que a faria esquecer de repente o inferno? Bastaria que voltasse a encontrar os seus pais, e tudo se reconstruiria, porque na relao com eles voltaria a ver a realidade como ela .

    As palavras do canto, ento, no expressam um sentimentalismo, mas descrevem algo de real: se cada um de ns no pudesse continuamente encontrar um olhar, uma relao, no estaria em condio de olhar cor-retamente a realidade. Se, por um momento, eu me separasse de voc,

  • companheiro do viver, eu no veria mais a realidade, seria uma noite es-cura, como no exemplo da criana. Mas se uma noite escura dominasse a minha vida, do que eu teria necessidade? Precisaria de olhos de cu que a iluminassem, de um olhar, de uma relao.

    Para aliviar esse pesado fardo dos nossos dias, essa solido que to-dos temos, ilhas perdidas, para evitar essa sensao de perder tudo,27 do que eu necessito? S preciso de que tu estejas aqui com os teus olhos claros. Mas quais so esses olhos claros? Quais olhos claros a pessoa precisa encontrar para no ter a sensao de perder tudo? De que olhos claros eu preciso para vencer a solido que todos vivemos? De que olhos claros eu preciso para estar contigo sem perder o anjo da nostalgia? Isso realmente impressionante, porque, na maioria das vezes, estar com o outro equivale a perder a nostalgia. preciso, ento, que acontea uma presena que no s no extinga a nostalgia, mas que a inflame, que rea-cenda o desejo de estar com ela. possvel? Para descobrir [] a vida, que olhar precisamos encontrar? Para tomar conscincia de que tudo belo e no custa nada, de que tudo doado, que olhar precisamos encontrar? Para descobrir e tomar conscincia das coisas,28 basta qual-quer olhar? No o do marido ou o da mulher, nem o dos amigos, mas s aquele de uma presena capaz de estar diante de todos esses desafios, que documente a experincia de que nada de belo daquilo que acontece na vida ser perdido. Precisamos de uma relao que no extinga o fogo da nostalgia, mas que o acenda. Existem esses olhos? Existe na realidade esse olhar?

    27 V.Heredia, Razn de vivir, Canti, op. cit., pp. 296-297. Para decidir se continuo colocando este sangue na terra, este corao que bate seu remendo, sol e trevas. Para continuar caminhando ao sol por estes desertos. Para ressaltar que estou vivo, em meio a tantos mortos. Para decidir, para continuar, para ressaltar e considerar, s preciso que estejas aqui com teus olhos claros! Ah, fogaru de amor e guia! Razo de viver minha vida! Para aliviar esse pesado fardo dos nossos dias, essa solido que todos temos, ilhas per-didas, para evitar essa sensao de perder tudo, para analisar por onde seguir e escolher o modo. Para aligeirar, para descartar, para analisar e tomar conscincia, s preciso que estejas aqui com teus olhos claros! Ah, fogaru de amor Para descobrir o belo e a luz sem perder distncia, para estar contigo sem perder o anjo da nostalgia. Para descobrir que a vida vai sem nos pedir nada e descobrir que tudo belo e no custa nada! Para descobrir, para estar contigo, para descobrir e tomar conscincia, s preciso que estejas aqui com teus olhos claros! Ah, fogaru de amor28 Idem.

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    Aconteceu.29 Aconteceu quando a gente no esperava. Aconteceu um fato na histria que introduziu esse olhar para sempre.

    Como o sabemos?

    Escrevia, h anos, Dom Giussani: O mais belo pensamento ao qual me entrego h muitos meses a reflexo, a imaginao do primeiro sobressalto no corao que Madalena experimentou. E esse sobressalto no corao no foi: Vou largar todos os meus amantes, mas o encantamento com Cristo. E Zaqueu, o primeiro sobressalto no corao no foi: Devolvo todo o dinheiro, mas a surpreendente paixo por aquele homem. [Ento,] Que Deus tenha se tornado um de ns, um companheiro, a gratuidade absoluta, tanto verdade que se chama graa. A gratuidade mais ma-ravilhosa que Deus tenha se tornado meu companheiro de caminhada, como o percebeu Zaqueu e como o percebeu Maria Madalena. Por isso, a sua Presena repercute [em mim,] em ns como espantosa gratido.30 Que gratido por ter um companheiro que alivia o peso dos meus dias, da mi-nha solido, que liberta da sensao de perder tudo! por isso que Maria Madalena e Zaqueu foram fisgados, presos. Sentiram-se atrados, ficaram logo apegados a Ele. Eram uns pobrezinhos como ns, pecadores, feridos pelo viver, mas nada os impediu de serem fisgados, agarrados. Nada impe-diu o sobressalto no corao deles, que os encheu de ilimitada gratido. E para esse sobressalto no corao, no foi necessrio nada, nenhuma pr--condio. Apenas aconteceu! Basta que acontea para sermos golpeados e agarrados. Porque o que deseja cada um de ns, o que a todo instante esperamos. Aquele arder do corao enquanto Algum fala conosco ao longo do caminho.31

    O que ter acontecido quela mulher, Maria Madalena, para no po-der subtrair-se ao desejo de busc-Lo todos os dias, todas as noites? No meu leito, ao longo da noite, busquei o amor da minha alma,32 o amado do meu corao.

    29 A. Calcanhoto P. Cavalcanti, Aconteceu, do CD A Fbrica do poema, 1994. Aconteceu quando a gente no esperava. Aconteceu sem um sino pra tocar. Aconteceu diferente das histrias que os romances e a memria tm costume de contar. Aconteceu sem que o cho tivesse estrelas. Aconteceu sem um raio de luar. O nosso amor foi che-gando de mansinho, se espalhou devagarinho, foi ficando at ficar. Aconteceu sem que o mundo agradecesse, sem que rosas florescessem, sem um canto de louvor. Aconteceu sem que houvesse nenhum drama, s o tempo fez a cama, como em todo grande amor.30 Retiro dos Memores Domini de 24 a 26 de maio de 1985, pro manuscripto, p. 15.31 Cf. Lc 24,32.32 Ct 3,1.

  • assim que o Mistrio queima todas as etapas, todas as distncias, to-das as distraes, todos os erros. Nada disso pode impedir que o Mistrio se dirija a eles e os encante. No sentimentalismo. A ligao que Cristo estabelece com eles no um sentimentalismo. O sentimentalismo no se-ria capaz de agarr-los assim. um relacionamento que faz com que eles se tornem eles prprios, em que h certamente um contragolpe sentimental, como tudo que entra no nosso horizonte,33 mas tem uma dimenso que vai alm do sentimento, e que nos introduz numa experincia de ns mesmos que nenhum sentimentalismo sequer pode sonhar alcanar.

    No sentimentalismo, o de Jesus, e nem mesmo uma censura, uma condenao, um manter-se longe deles, mas um abrao, uma ternura, uma paixo pela vida deles, atravs da qual Ele faz com que eles final-mente se tornem eles prprios, a eles que no sabiam o que significaria ser verdadeiramente homens e mulheres. assim que entra no mundo um modo novo de ser homem, de viver a vida, de estar presente na realidade, um modo que todos consciente ou inconscientemente desejam, aspi-ram, mas que no esto em condio de alcanar com as prprias foras, com a prpria imaginao, com a prpria energia.

    Com Jesus, entra no mundo a descoberta da pessoa.34 Essa frase da Escola de Comunidade alcana, para ns, nesse tempo, toda a sua dimenso histrica. O cristianismo um acontecimento, um fato pre-sente, to presente que se pode toc-lo com as mos, como vimos lendo o captulo oitavo de Na origem da pretenso crist. Esse captulo a do-cumentao, no presente, da existncia desses olhos. o testemunho de Dom Giussani, dois mil anos depois, de que esses olhos ainda existem, presentes no real, do contrrio no teria podido escrev-lo. Olhos irredu-tveis a ns, aos nossos sentimentos, s nossas reaes, no manipulveis por ningum, porque introduzem o olhar de uma Presena totalmente diferente de ns. Somente quem os viu, quem se deparou com eles, pode responder pergunta decisiva: quem Jesus?

    S se deixarmos entrar esse olhar, que poderemos entender existen-cialmente quem Jesus. Fazendo experincia maravilhados de um a mais de humanidade, comeamos a entender quem realmente Jesus. Isso explica por que Maria Madalena e Zaqueu tiveram aquele sobres-salto no corao pelo qual se surpreenderam colados em Jesus desde o primeiro dia, como Joo e Andr. De que era feita, psicologicamente, aquela impresso excepcional, aquele maravilhamento inicial? O maravi-

    33 Cf. L. Giussani, Terceira premissa, em O senso religioso, op. cit., pp. 45-58.34 L. Giussani, Na origem da pretenso crist, op. cit., p. 127.

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    lhamento inicial era um juzo que se tornava imediatamente um apego. Era um apaixonar-se sem comparao. Era um juzo que era como uma cola: um juzo que os grudava. Todos os dias passavam demos de cola e no podiam mais desgrudar! [] Nasce um maravilhamento de estima que faz voc se apegar.35 um juzo, no um sentimento. Entende-se, en-to, que toda a vida deles transcorreu na corrida para alcan-Lo. Man-cando, errando mil vezes, mas sem ir embora nunca. a mesma ternura, nica, que, atravs de Dom Giussani, nos despertou. Ns o tocamos por meio do testemunho dele.

    Disso depende quem somos e qual a nossa incidncia histrica.Imaginemos aqueles pescadores da Galileia que, s com esses olhos no-

    vos, chegam a Roma de ento, cujo teor de vida todos conhecemos. O que ter prevalecido nos coraes deles? O que os preocupava quando chega-ram a Roma? E se Joo e Andr chegassem agora no nosso mundo, o que predominaria neles? O que seria para eles o essencial? O que teriam em mente para comunicar a todos neste momento, diante dos desafios que se colocam hoje? Teriam como nica preocupao aquela que tinham visto em Jesus e, por isso, testemunhariam aquele olhar que lhes investiu, deixa-riam entrar aquele olhar em cada circunstncia e em cada relacionamento.

    Nos tempos de Jesus, como agora, o verdadeiro desafio o surgimen-to da pessoa. Isso explica a paixo de Cristo pelo homem. Porque ambos os de ento e os de agora so tempos de misria evanglica, e tam-bm hoje, como outrora, serve o essencial, o reacontecer, aqui e agora, da Sua presena que gera aquele sobressalto no corao.

    Dom Giussani nada mais fez que testemunhar isso. No final da sua vida, resumia com essas palavras no que havia consistido a sua tentativa, o que quis fazer ao longo de toda a sua existncia: Eu no apenas nunca pretendi fundar nada, como considero que a genialidade do movimento que vi nascer ter sentido a urgncia de proclamar a necessidade de um retorno aos aspectos elementares do cristianismo, ou, em outras palavras, a paixo pelo fato cristo enquanto tal, em seus elementos originais, e nada mais.36 Isso era, para ele, o essencial. O cristianismo esse acon-tecimento. O seu sinal o acontecimento do eu, tornado possvel pela experincia de Cristo presente numa humanidade diferente.

    Escrevo-lhe depois do impacto que a participao na Equipe dos universitrios de CL de hoje provocou em mim. A primeira coisa que

    35 L. Giussani, O sim de Pedro, Passos-Litterae Comunionis, maio 2000, pp. 23-24.36 L. Giussani, Carta a Joo Paulo II no 50 aniversrio do nascimento de CL, Passos-Litterae Comunionis, abril 2004, p. 2.

  • quero destacar o fato de ter chegado com uma interveno preparada que desejava fazer, mas por questes de tempo no foi possvel, como para muitos outros; mas trabalhar com voc, ver o que estava acontecen-do diante dos meus olhos atravs de outros testemunhos, e o seu olhar paterno para com cada um de ns aprofundou de tal maneira o juzo que eu comeava a dar a tudo o que acontecia comigo, que no pude deixar de pensar, enquanto estava ali sentado: Mas isso Cristo acontecendo!. Estava acontecendo, de fato, aquilo que, na Escola de Comunidade, Dom Giussani chama um olhar revelador do humano, ou melhor, um olhar que leva em considerao todos os fatores, um olhar que salva todos os fatores da experincia humana, um olhar que o maior sinal, como voc nos dizia hoje, da presena de Cristo. Para acolh-Lo, basta sermos crianas: Na verdade, eu vos digo, quem no acolhe o reino de Deus como o acolhe uma criana, no entrar nele.37

    No que eu vejo que Cristo aconteceu e que eu O acolhi? Quando os Seus olhos se tornam meus a ponto de poder olhar os olhos de qualquer um at a sua origem, at ver vibrantes, neles, o Ser que os faz.

    um Outro que vive em mim: Vivendo na carne, participo de um Acontecimento que me torna capaz de uma inteligncia nova, mais pro-funda e mais verdadeira, das minhas circunstncias. O que quer dizer escrevia Dom Giussani olhar o rosto de uma jovem segundo a car-ne? Significa que tudo se reduz a um gostei, no gostei; simpatizo, no simpatizo; difcil, no difcil. Embora vivendo na carne, vivo na f quer dizer, ao invs, que encaro o relacionamento com ela na f do Fi-lho de Deus, na adeso a Cristo.38 Cristo como fato presente escancara o meu olhar: no Cristo evocado nominalmente, como um mero nome, mas como fato presente, do mesmo modo que a presena dos pais consti-tui o olhar da criana, funda o seu modo de ver a realidade. No bastam os slogans, no bastam as estratgias. preciso que a presena de Cristo determine de tal modo, seja to real, to determinante do meu olhar, que eu possa olhar o outro de modo verdadeiro. E ento aquela jovem , na medida da atrao Dom Giussani no deixa nada fora o sinal atra-vs do qual sou convidado a aderir na carne ao ser das coisas, a descer realidade das coisas, at onde as coisas so feitas.39 Como nos perdemos quando Ele falta! Se os vejo com a abertura que me d Cristo presente, os

    37 Mc 10, 15.38 L. Giussani S. Alberto J. Prades. Generare tracce nella historia del mondo, Rizzoli, Milo, 1998, p. 77.39 Idem.

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    olhos de qualquer pessoa podem apagar o inferno. Mas preciso fazer a verificao no real.

    2. O desafio das circunstncias e o caminho a percorrer

    Quem Jesus? O que , para ns, o essencial?Depois de uma experincia como essa que acabamos de descrever,

    tambm ns responderamos como Pedro pergunta sobre o essencial.Mas vs, quem dizeis que eu sou?40 Pedro explicou recentemente

    o Papa Francisco foi sem dvida o mais corajoso naquele dia, quan-do Jesus perguntou aos discpulos: Mas vs quem dizeis que Eu sou?. Pedro respondeu com deciso: Tu s o Cristo. [] Ns tambm segura-mente daramos a mesma resposta de Pedro, aquela que aprendemos no catecismo: Tu s o Filho do Deus vivo, tu s o Redentor, tu s o Senhor!. Mas, continua o Papa, quando Jesus comeou a explicar o que devia acontecer: o Filho do homem devia sofrer, Pedro ficou fora de si. A Pe-dro certamente no agradava esse discurso. Ele raciocinava assim: Tu s o Cristo! Tu vais vencer, e vamos em frente!. Por essa razo no entendia esse caminho de sofrimentos indicado por Jesus. Tanto que, como narra o Evangelho, o tomou parte e se ps a censur-lo. Estava muito con-tente por ter dado aquela resposta Tu s o Cristo que se sentiu [at] com fora para censurar Jesus.41

    Ns tambm, como aconteceu com Pedro, no fomos poupados dos de-safios, depois do sobressalto no corao. Vemos isso em todos os lugares onde h a presena do Movimento. To logo dei incio assembleia com os universitrios de CL nos EUA, um deles me perguntou: Como possvel no perder tudo o que de belo acontece na vida?. a mesma do canto: Como evitar essa sensao de perder tudo?42 No Brasil, uma jovem que trabalha em contato com o sofrimento, num hospital, encorajada pelos seus colegas a distrair-se e a no dar tanta importncia dor, porque uma hora a gente se habitua, perguntava: Como possvel viver com essa dor desolado-ra?. Os amigos da Venezuela, desafiados pela situao social e poltica cada vez mais dramtica; os da Argentina, com os dramas histricos do seu pas-sado recente; os do Mxico, onde a violncia provoca, num ano, mais mortes

    40 Mt 16, 15.41 Papa Francisco, Meditao Matutina, Mas vs, quem dizeis que eu sou?, Santa Marta, 20/02/2014. 42 V. Heredia, Razn de vivir, Canti, op. cit., p. 296.

  • do que uma guerra; os do Uruguai, onde veem ser legalizada a maconha como resposta ao drama do viver; os dos EUA, desafiados pela gravidade da situao econmica; os amigos da Rssia e da Ucrnia, desafiados pela crise criada com a ocupao da Crimeia; os espanhis, diante da nova proposta de lei sobre o aborto; ou muitos que vivem em contextos totalmente estra-nhos ao cristianismo. Aos desafios representados pela crise econmica, pela emergncia educativa, pela falta de trabalho, pela progressiva decomposio da sociedade (como se documenta na dificuldade das pessoas casadas de viver o seu relacionamento, pelo desnimo de tantos frente educao dos filhos e ao mal-estar do viver), acrescentou-se uma outra, que para muitos ardente, a dos novos direitos, sintoma de uma profunda mudana cultural e social, de um modo de conceber o homem que hoje se impe e se difunde cada vez mais. Desafios, enfim, no faltam.

    Esses desafios so uma provocao para cada um de ns e para toda comunidade mundo afora. O belo desses desafios que so desafios co-muns, que ningum pode evitar. E cada um, de fato, est respondendo nos dilogos com os colegas, com os amigos, em casa , a essas questes hoje to ardentes, que tm para ns o valor de nos fazer sair da cova, levando-nos a descobrir o que para ns o essencial. Porque o essencial, como dizamos ontem, vem tona, surpreendendo-nos em ao. E todos podemos nos perguntar, diante de todos os desafios que encontro: na minha resposta, na minha tentativa, o que emergiu, o que eu disse de mim, o que descobri em mim como essencial? O que desejaria dizer? Que resposta dei a todas essas circunstncias? urgente esclarecer qual o modo adequado de estar diante delas.

    A primeira coisa a entender a natureza mesma dessa provocao. Esses desafios so um chamado para ns, como sempre foram. Diz

    Giussani: Sempre foi assim na histria da Igreja: o esforo mundano que chama a ateno para uma urgncia ou um aspecto da vida, mesmo quando o faz de maneira facciosa e parcial provoca, dentro do povo cristo autntico, a retomada da conscincia, a crise e a retomada da conscincia. Deus se serve de todas as coisas que acontecem. [] Tudo o que acontece permitido por Deus para o amadurecimento daqueles que Ele escolheu.43 Em meio a toda a complexidade da situao, muitos se sentem perdidos, desorientados, e no so poucos os que ficam chocados. E quanto mais sentimos a gravidade dos desafios, tanto mais cresce em ns a urgncia de fazer algo, de dar a nossa contribuio, e torna-se cada vez mais urgente a pergunta sobre o que fazer, qual iniciativa tomar.

    43 L. Giussani, A longa marcha da maturidade, op. cit., p. 21.

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    Qualquer que seja a modalidade, com que cada um reagiu a tais pro-vocaes, ter podido verificar o que dizia o Papa Francisco a respeito de Pedro: para responder pergunta que ns todos sentimos no corao quem Jesus para ns? talvez no seja suficiente o que aprendemos e estudamos no catecismo. Certamente importante estud-lo e conhe-c-lo, mas no suficiente, insistiu o Santo Padre, porque para conhe-c-lo verdadeiramente necessrio fazer o caminho que Pedro fez.44

    Isso significa que tambm para ns, assim como para os primeiros, no termina tudo com o sobressalto no corao, pois a vida continua com todas as suas provocaes. Tambm ns podemos responder, como Pedro, pergunta sobre Cristo, que como identificar nEle o essencial para viver. Mas muitas vezes ns tambm nos sentimos desviados do es-sencial, apesar de t-lo reconhecido. Por isso, sem fazer um caminho, ns nos perdemos como Pedro: A f , alm disso, conhecimento ligado ao passar do tempo, necessrio para que a palavra seja pronunciada: co-nhecimento que se aprende somente em um caminho de seguimento.45

    A pergunta sobre o essencial no , ento, uma pergunta retrica para nos distrair nesta manh. crucial para responder s questes colocadas (Como se faz para viver? O que estamos fazendo no mundo?). Vemos isso quando os desafios mordem a nossa carne e nos impedem de olh-los da arquibancada.

    Outro dia me contava um amigo espanhol amos juntos a uma das manifestaes para defender a tentativa do governo popular da Espa-nha de fazer uma lei menos favorvel ao aborto. Estvamos caminhando junto manifestao, e eu conversava com um amigo que tem trs filhos e se viu inesperadamente aguardando o quarto. As condies eram ti-mas: ele ama a esposa, tm um casamento slido, no tm particulares problemas econmicos, so nossos, so catlicos, tudo certinho. E me dis-se: Sabe, o primeiro golpe quando minha mulher veio com o resultado de que estava grvida foi dizer: no verdade, no pode ser verdade!, porque agora est difcil, no quero, muda um pouco todos os planos E me disse: Agora estamos caminhando numa manifestao contra o aborto, mas a natureza do protesto, eu a carrego dentro de mim, eu que sou acom-panhado, educado, sustentado por uma companhia h vinte anos O que ser para uma jovem sozinha, que no casada, que no tem dinheiro? O que pensar uma mulher sozinha, ou no sozinha, ou uma jovem de 18

    44 Papa Francisco, Meditao Matutina, Mas vs, quem dizeis que eu sou?, Santa Marta, 20/02/2014. 45 Papa Francisco, Carta Encclica Lumen fidei, 29.

  • anos diante de um teste positivo de gravidez? Pensar que como no sabe administrar essa coisa, a destri, elimina, porque parece mais fcil. Foi belo porque refletimos longamente, e eu lhe disse: Veja, sem essa conscin-cia, incorreto estar nesta manifestao, porque do contrrio defendemos os valores catlicos, mas no entendemos o que querem dizer na vida.

    As provocaes no diminuem nem mesmo quando fazemos uma ideia reduzida da necessidade do outro. Alis, a sua rebelio nossa tentativa de reduzir o seu desejo torna ainda mais urgente a pergunta: o que estamos fa-zendo no mundo? Num grupo de amigos, ajudamos as pessoas a procurar emprego com uma modalidade muito simples: as acompanhando! Com os mais espertos, basta encontr-los duas vezes e, em seguida, despertado o prprio eu, encontram logo, eles mesmos, o trabalho. Mas os mais proble-mticos, os que no so capazes de se mexerem sozinhos, ns os acompa-nhamos um a um, e ficamos junto por todo o tempo necessrio, at que eles encontrem emprego. Porm, nem sempre o encontram. Entre tantas pessoas que conhecemos, h trs anos encontramos uma pessoa deficiente fsica, de 50 anos, numa cadeira de rodas, acompanhado pela me. Duran-te a conversa, ele nos diz que sabe usar o computador; ento eu lhe respon-do logo que posso encontrar um trabalho que pode ser feito em casa, mas ele, evidenciando todo o seu eu, me diz que quer sair de casa! A essa altura, eu o abrao, pois tem um corao infinito como o meu, e eu j o tinha redu-zido cadeira de rodas. Atravs de um detalhe vem tona toda a natureza da necessidade: aquele homem no se contenta com menos.

    Ou aquele moa que escreve para um grupo de amigos contando que, diante da sua prima que lhe diz estar esperando um beb e que estava tomando as providncias para verificar se era sadio, lhe pergunta: Mas para que serve, no fundo, saber antes se o filho saudvel?. A resposta dela foi glacial: Se tiver algum problema, eu o jogo fora. Eu o jogo fora! Foram os minutos mais longos da minha vida. Eu no conseguia pensar em nada, estava imvel, petrificada, no conseguia falar. S con-segui balbuciar algumas palavras para me despedir. Veio-me uma tristeza inconsolvel. E fiquei repensando na Pgina Um []: possvel estar dentro das circunstncias, com toda a medida humana da dramaticidade da vida, luz da Escola de Comunidade? [Esse sobressalto no corao suficiente para viver, permanece diante de qualquer desafio?]. Aqui cada um de ns faz a verificao, independentemente da opinio que possa-mos ter, se a resposta que d provocao do real capaz de oferecer verdadeiramente uma resposta, de responder ao problema que me provo-ca e me desafia. E a moa concluiu: Essa a questo! Essa a estrada! Na dor, na quantidade de perguntas que se carrega por trs do que eu

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    lhe escrevi, no desejo de poder estar ainda mais prxima da minha prima de um modo mais humano, total, verdadeiro, humilde e discreto, est o meu desejo de verificar de novo e agora se verdade, como verdade, que Cristo Rocha, nica nica! Pedra angular; se verdade, como verdade, a resposta pergunta: Quid animo satis?: Est Vir qui adest.

    Estes testemunhos nos tornam conscientes do caminho que devemos per-correr. De fato, se no entendemos a dimenso das provocaes, se no co-lhemos todos os fatores em jogo, cometeremos os mesmos erros do passado.

    3. Uma luz a partir da nossa histria

    Para enfrentar os desafios atuais culturais, sociais, polticos, jurdicos no partimos do zero. Temos a riqueza de uma histria, de um caminho feito na companhia de Dom Giussani. Por isso, para iluminar os desafios atuais, me foi muito til revisitar alguns momentos da nossa histria o ano de 1968 e os anos seguintes , em que a provocao e a presso das circunstncias foi to forte que levou muitos a debandar. Naqueles anos, a presena de Dom Giussani se revelou mais uma vez crucial. Surpreenden-do-nos em ao, ele nos ajudava a perceber o que, na verdade, era o essen-cial, apesar das nossas intenes, justamente porque, tomando conscincia de todos os fatores, no reduzia como, pelo contrrio, costumamos fazer as dimenses do problema. Seus juzos constituem gestos de caridade em relao a ns, e ao mesmo tempo fazem emergir diante dos nossos olhos toda a sua autoridade, que nos impedia de ficar desorientados.

    Dizia Dom Giussani: Para mim a histria tudo; eu aprendi com a histria,46 quer dizer, pela experincia. Lendo o livro de Savorana, vamos verificando como isso verdade. Nem a ele eram poupadas as circunstncias.

    No ano de 1993, provocado pela interveno de um universitrio, o qual relatava que alguns intelectuais se queixavam de CL, porque CL era muito melhor antes [] de 1976, quando se lanava nas lutas polticas, quando discutia ideologicamente, quando levava avante um projeto seu, apresentava a proposta de um projeto seu na sociedade, mas agora, diziam aqueles intelectuais, est reduzido a uma forma de piedade.47 Podero ler isso no prximo livro das Equipes que ser publicado em outubro. Para responder a essa provocao, Giussani nos mandou reler um trecho de Homens sem

    46 A. Savorana, Vita di Dom Giussani, op. cit., p.VIII.47 Faz referncia a uma Equipe contida no volume de L. Giussani, In cammino (1993-1998), em vias de publicao pela Ed. Bur, na Itlia.

  • ptria, de 1982, em que dizia: Toda a nossa atividade, desde que nasceu Comunho e Libertao, a partir de 1970, [] tudo aquilo que ns fazemos [que fizemos] para termos uma ptria, para termos uma ptria neste mun-do. Alguns recordaro a passagem: No digo que no seja justo. Digo que o fazemos para termos uma ptria e que esta ptria no a teremos.48

    Como que isso aconteceu? Para abordar a interrogao, Giussani vol-ta de novo histria daqueles anos: Em 1968-69, ns nos encontrvamos como que fora de casa,49 desnorteados pela ideologia marxista e o seu dese-jo de libertao. Analogamente, hoje podemos encontrar-nos desnorteados perante as agitaes e as novas nsias de libertao, que, por exemplo, se expressam na reivindicao de novos direitos, todos filhos de 1968. Cada um destes representa uma modalidade, parcial e frequentemente contraditria, mediante a qual se busca uma satisfao para exigncias que logo reconhe-cemos como profundamente humanas: a necessidade afetiva, o desejo de maternidade e de paternidade, o medo do sofrimento e da morte, a busca da prpria identidade Cada um desses novos direitos tem as suas razes no tecido pelo qual constituda toda a existncia humana. Da a sua atrao. O multiplicar-se dos direitos individuais exprime a expectativa de que o orde-namento jurdico possa resolver os dramas humanos e assegurar a satisfao das necessidades infinitas que habitam o corao humano.

    Como que o Movimento [] acusou o golpe [deste desejo de liber-tao de 1968]? Houve uma perda de rumo [] caracterstica de algum que, percorrendo seu caminho e vivendo uma experincia que lhe fun-damental, surpreendido por acontecimentos que exigem um nvel de fle-xo, de traduo, de interpretao e de deciso ao qual a sua experincia ainda no chegou.50

    Perante esta situao, as pessoas perguntavam-se: O que devemos fazer? []. Um grupinho de trs ou quatro universitrios apareceu, um dia, [] com um panfleto, o primeiro panfleto contrarrevolucionrio que saiu, e talvez por serem quatro no os agrediram dessa vez. O panfleto era intitulado Comunho e Libertao []. O que significava este ttulo?.51

    1) Em primeiro lugar significava que a libertao era tambm uma exi-gncia do nosso corao. Tambm ns tnhamos um desejo de libertao: Havia um fio que nos ligava ao corao de todos, porque gritando liber-

    48 L. Giussani, Uomini senza patria (1982-1983), Ed. Bur, Milo 2008, p. 88.49 Faz referncia a uma Equipe contida no volume de L. Giussani, In cammino (1993-1998), em vias de publicao pela Ed. Bur, na Itlia.50 L. Giussani, A longa marcha da maturidade, op. cit., p 22.51 Faz referncia a uma Equipe contida no volume de L. Giussani, In cammino (1993-1998), em vias de publicao pela Ed. Bur, na Itlia.

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    tao, libertao tambm o marxista exprimia uma exigncia do corao, ainda que confusa, obscurecida, dilapidada por um discurso ideolgico. Mas era um desejo do corao.52

    2) Em segundo lugar, aquele ttulo significava que a libertao per-tencia ao anncio cristo: Cristo o libertador. De fato, Cristo se fez conhecer como o libertador do homem. o conceito de Redentor: Cris-to redentor quer dizer Cristo libertador. A libertao no pode vir do esforo humano; [] no podem mudar com as suas foras, a libertao no mundo unicamente pode vir de algo que j livre. O que j livre neste mundo? Algo que no apenas deste mundo, que est neste mundo, mas no apenas deste mundo, vem de fora, de longe: Cristo o libertador. Mas Cristo, agora, onde est? [] Cristo torna-se presente por meio da companhia daqueles que O reconhecem.53

    Mas viver a novidade trazida por Cristo na pertena Igreja, no Mo-vimento como sinal de mudana, no parecia bastante. Construir a comu-nidade crist parecia insuficiente para a dimenso do desafio, era preciso fazer alguma coisa. E a imagem deste fazer era ditada pela posio dos outros: tratava-se de uma iniciativa igual e contrria dos outros contrria enquanto inspirada nos princpios cristos.

    Qual foi, ento, a modalidade de resposta perda de rumo? A perda de rumo superada repentinamente, por vontade de intervir. 54 Fize-mos, diz Dom Giussani, uma infinidade de iniciativas, a mais relevante foi a grande assembleia no Palalido, tomados pelo frenesi de fazer, de conseguir realizar respostas e operaes em que pudssemos demonstrar aos outros que, agindo segundo os princpios cristos, se fazia melhor do que eles. S assim tambm ns poderamos ter uma ptria.55

    Tentou-se, pois, superar a perda de rumo com uma vontade de inter-vir, de operar, de agir, com um jogando-se de cabea no seguimento do mundo,56 num esforo e numa pretenso de mudana das coisas com as prprias foras, exatamente como os outros.

    E o que aconteceu? Aconteceu um deslocamento, com consequncias imprevisveis. Sem nos darmos conta, aconteceu, diz Giussani, a passa-gem de uma matriz para outra, [] minimizando e tornando o mais abs-trato possvel o discurso e o tipo de experincia de que a pessoa participa-

    52 Idem.53 Idem.54 L. Giussani, La lunga marcia della maturit, op. cit., p. 62.55 Faz referncia a uma Equipe contida no volume de L. Giussani, In cammino (1993-1998), em vias de publicao pela Ed. Bur, na Itlia.56 L. Giussani, A longa marcha da maturidade, op. cit., p. 24.

  • va antes. Deste modo realiza-se uma reduo ou um esvaziamento da densidade histrica do fato cristo, [] minimizando seu alcance hist-rico, esvaindo-o, tornando-o o mais vazio possvel enquanto incidncia histrica.57 So todas palavras suas. Em suma, tudo o que se estava viven-do ento na pertena ao Movimento (a educao recebida, a caritativa, a presena quotidiana em escolas e universidades, a resposta s diversas ne-cessidades) estava como que esvaziado, no era estimado o suficiente: era preciso fazer outra coisa diferente para mostrar que ns tambm estva-mos interessados na sorte do mundo, que, precisamente enquanto cristos, sabamos dar uma contribuio mais resolutiva, que tnhamos um projeto e uma prxis melhores. Esta posio, enfim, definiu a maior parte daqueles que ficaram, no s os que decidiram ir embora.

    Essa reduo da densidade histrica do fato cristo no se produz sem consequncias. Vejamos como Dom Giussani as expe.

    Em primeiro lugar: Uma concepo eficaz do empenho cristo, com tons de moralismo. Mais que tons: uma reduo completa a moralismo! Por que deveramos continuar ainda a ser cristos? Porque o cristianismo impele voc a agir, impele voc a se empenhar, e to somente isso! [] O cristo s continua a ter o direito de permanecer no mundo na medida em que se lana na ao mundana: o cristianismo tico []. Diante da necessidade do mundo, elabora-se uma anlise dessa necessidade, uma teoria para responder a ela e a resposta a ser dada, de acordo com essa teoria. Toda a aposta recai sobre a medida humana, Cristo no interessa; interessa, mas num nvel alm do tempo e do espao; uma inspirao moral, que est alm do tempo e do espao, transcendente. 58

    Segunda consequncia esta a mais grave : a incapacidade de culturalizar o discurso, de levar a prpria experincia crist at o n-vel em que ela se torna juzo sistemtico e crtico, passando, portanto, a sugerir formas de ao. a experincia crist sem o seu potencial de incidncia no mundo, pois uma experincia s deixa marcas no mundo quando alcana uma expresso cultural. 59

    Terceira consequncia: o menosprezo terico e prtico da experin-cia da autoridade. [] O Fato cristo preciso repetir tem na funo da autoridade criada por Cristo o lugar geomtrico em que se preserva o Mistrio. 60

    57 Idem, p. 22. 58 Idem, p. 23, 25.59 Idem, p. 23.60 Idem, p. 24.

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    Assim, resume Dom Giussani, na perda de rumo generalizada [] [aquilo que dominou foi] jogar-se de cabea no seguimento do mundo []. A histria que tinham vivido e seus contedos de valor foram mi-nimizados, interpretados ao mximo como abstratos em relao vida, excludos, exilados da possibilidade de uma incidncia na contingncia histrica e, sendo assim, de uma verdadeira encarnao. Pouco antes de fazer essa observao, referindo-se ao comportamento global daqueles que participaram no movimento de contestao em 1968, Dom Giussani havia dito: a minha ingenuidade ao me considerar medida de todas as coisas, a ingenuidade do homem que diz: Deixa comigo, que agora eu vou consertar tudo. a ingenuidade do homem como medida de todas as coisas, a ingenuidade do amor-prprio. E exclamou: Que melanco-lia! Que melancolia ns experimentamos em seguida, e como foi ficando mais sria com o passar dos anos.61

    Lanando-nos a fazer coisas em nome do ser cristos, para demonstrar que, sendo cristos, tnhamos respostas melhores que as dos outros para os problemas, podia parecer que Cristo era o essencial. Mas o juzo de Giussa-ni nos perturba, como de costume: O nosso ideal no realmente aquele [] que a imprensa imagina, o nosso ideal no realmente o de ter direito a estar na terra e na sociedade porque sabemos responder s pretenses ou s exigncias ou s necessidades que os outros tm, que os homens tm. bom responder s carncias e necessidades das pessoas, mas ns no esta-mos aqui para isso. Em 1976, em Riccione (Itlia), a dois mil responsveis universitrios, quando me pus de p e no sabia o que dizer, mas sentia um grande incmodo interior, [] disse: Ns no estamos aqui para isso, o nosso objetivo de cristos no esse. Podemos perfeitamente entrar em to-das as cooperativas do mundo, podemos entrar em todas as associaes do mundo e dar a nossa contribuio para o bem comum atravs delas, mas o cristianismo no uma associao desse tipo, o cristianismo no uma organizao para suprir as necessidades dos homens. [] Esta a iluso que o homem percorreu em todas as pocas e, nela, o homem sempre caiu. uma iluso, chama-se utopia. [] [Por qu?] Porque o homem no pode ser capaz de identificar, assimilar, reunir e realizar a totalidade dos fatores que esto em jogo; ao homem sempre escapa alguma coisa.62

    Sem nos darmos conta, tnhamos nos desviado de Cristo para a utopia. O essencial tinha se tornado tambm para ns a utopia. Podamos conti-

    61 Idem, p. 24-25, 21.62 Faz referncia a uma Equipe contida no volume de L. Giussani, In cammino (1993-1998), em vias de publicao pela Ed. Bur, na Itlia.

  • nuar a dizer que o essencial era Cristo, mas surpreendendo-nos em ao, Dom Giussani obrigava-nos a perceber que j nos tnhamos desviado (isso se via pelo fato de que no ramos capazes de identificar e realizar a to-talidade dos fatores). De fato, como se o Movimento de Comunho e Libertao, de 1970 em diante, tivesse trabalhado, construdo e lutado com base nos valores que Cristo trouxe, enquanto o fato de Cristo, para ns, para as nossas pessoas e para todos aqueles que fizeram CL conosco, tivesse ficado em paralelo.63

    O que conduziu a isso? A falta de conscincia do problema. Nisto con-siste o nosso ser modernos, filhos da mentalidade que nos circunda. um problema de concepo, de conscincia de si, de autoconscincia, no de coerncia tica. O nosso ser modernos (mas no fundo a modernida-de uma tentao do esprito de todos os homens em todos os tempos) manifesta-se neste desvio do centro de gravidade sobre as nossas perfor-mances religiosas, culturais, operativas: a Presena, o Fato de Cristo, passa a ser um a priori terico; um a priori que no determina quem somos, como olhamos, o sentido do nosso estar no mundo.64

    A dificuldade de erradicar de ns essa mentalidade demonstrada pela histria sucessiva do Movimento, recentemente evocada na Pgina Um. 65 O primeiro passo consciente foi o Cartaz da Pscoa. [] O passo que o Cartaz [Cristo companhia de Deus ao homem, 1982] convidou todos a dar, e que muitos conseguiram realizar, porque [] revelou que a questo no tudo o que estamos fazendo, no o nosso fazer, no a nossa an-lise das coisas, o nosso ponto de vista sobre as coisas inspirado em valores cristos. Fomos adiante durante dez anos trabalhando sobre os valores cristos e esquecendo-nos de Cristo, sem conhecer Cristo.66

    Giussani denunciava o desvio do centro de gravidade, a substituio do essencial por aquilo que ns fazemos como todos os modernos , sem nos

    63 L. Giussani, Uomini senza patria (1982-1983), op. cit., p. 56.64 Cf. A poca moderna, ou melhor, a poca contempornea a prova trgica daquilo a que o homem chega na pretenso de autonomia: a pretenso de fazer-se por si mesmo, de realizar-se por si mesmo, de criar-se por si mesmo, de decidir por si mesmo, de ter a si mesmo como centro. Esta pretenso leva dissoluo, perda da liberdade como originalidade de juzo sobre a vida: fica-se alienado na opinio comum, na cultura, nas opinies induzidas pela cultura dominante (L. Giussani, Uomini senza patria. 1982-1983, op. cit., p. 265).65 J. Carrn, Testemunho e Relato, Passos-Litterae Communionis, maro de 2014, p. 17-20.66 L. Giussani, Uomini senza patria (1982-1983), op. cit., p. 88-89.

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    darmos conta da sua absoluta inadequao aos fatores do problema: Se estamos to vergonhosamente divididos, fragmentados, que impossvel a unidade at entre o homem e a mulher, e no se pode confiar em ningum; se somos to cnicos em relao a tudo e todos, e to desapaixonados de ns mesmos, como podemos deste lodo retirar alguma coisa para recons-truir as nossas paredes derrubadas, obter o cimento para a construo de paredes novas? [] Dada esta nossa situao ferida, no podemos, com efeito, dizer: Vamos reconstruir o humano!. Se estamos assim vencidos, como poderemos vencer? [] preciso que tenha algum de fora tem de vir de fora e que diante desta nossa casa derrubada refaa as paredes. [] Aqui reside a dificuldade maior em relao [] ao cristianismo autntico: atravs de outra coisa que vem de fora que o homem se torna si mes-mo []. [Mas isto] no me agrada, porque faz entrar, d hospitalidade a algo que no corresponde nossa imaginao e a uma nossa imagem de experincia, que parece abstrato na sua pretenso.67

    Esta outra coisa, Cristo, parece-nos abstrata. E dado que nos parece abstrato, para responder urgncia de mudar, de construir, prende-nos [] numa aspirao impotente a remediar ou numa pretenso fraudulen-ta, mentirosa, quer dizer: identifica-se o remdio com a prpria imagem e vontade de remediar. Terrvel! Assim nasce, continua Dom Giussani, o discurso sobre os valores morais, porque o discurso sobre os valores morais subentende que o remdio para a dissoluo vem pela fora da imaginao e da vontade do homem: Vamos juntar-nos, que remediare-mos!.68 Modernos at a medula! Dizia isso para ns, no para os outros.

    Mas por que nos desviamos de Cristo para esse ativismo, para o fa-zer? Aqui o juzo de Dom Giussani ainda mais surpreendente: desvia-mo-nos porque o nosso fazer nos parece menos abstrato que Cristo como ponto de apoio para responder aos nossos medos. De fato, diz, uma insegurana existencial, um medo de fundo, que faz conceber como pr-prio ponto de apoio, como razo da [] [prpria] consistncia, as coisas que se fazem culturalmente ou organizativamente.69

    O mais espantoso a consequncia que Giussani retira daqui. Essas ati-vidades por meio das quais tentamos vencer a nossa insegurana entre ns seriam automaticamente identificadas como presena. Mas nada est mais longe da realidade do que isso. Escutem o que diz: Assim toda a ati-

    67 L. Giussani, sempre una grazia, in , se opera, suplemento da revista 30Giorni, fevereiro de 1994, p. 57-59.68 Idem, p. 59.69 L. Giussani, Uomini senza patria (1982-1983), op. cit., p. 97.

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    vidade cultural e toda a atividade organizativa no se tornam expresso de uma fisionomia nova, de um homem novo so expresso do nosso medo, da nossa insegurana. Dizia: Se fossem expresso de um homem novo, poderiam at nem existir quando as circunstncias no o permitissem, mas aquele homem estaria erguido. Ao passo que, inversamente, muitas pessoas aqui presentes, se no fossem estas coisas, no estariam erguidas, no sabe-riam por que esto aqui, no saberiam aquilo a que aderem: no esto, no consistem, porque a consistncia da minha pessoa a presena de Outro.70 Aqui surge em toda a sua clareza a relao entre o que nos permite estar de p, o essencial, e o que estamos fazendo no mundo.

    Sem reconhecer e sem fazer experincia daquilo que responde nossa insegurana existencial, ao nosso medo de fundo, a nossa presena no mais que o sinal da tentativa moderna de encontrar consistncia naquilo que fazemos. por isso que, como observou Dom Giussani, muitas pes-soas no saberiam por que esto aqui71 se determinadas atividades no existissem.

    Qual o porqu ltimo deste desvio, ao qual voltarei durante a tar-de? O porqu, em ltima anlise, a dificuldade que o discurso cristo a experincia crist tem para se tornar maduro. [] A impacincia no a ltima das armadilhas, a primeira. A experincia crist pen-sem s mudar o mundo; mas, para mudar o mundo, necessria toda a trajetria da histria. [] A experincia crist mudar a minha vida, mas precisa de toda a trajetria da existncia [da histria; ns, porm, procuramos sempre um atalho para chegarmos antes, julgando sermos mais inteligentes!]. [] A experincia crist no sacia o apetite de eficin-cia do homem, a nsia febril de ter, de ter imediatamente, que a tenta-o dos fariseus, que disseram a Cristo: Faa o milagre do jeito que ns dizemos que tem de ser, mande-nos um raio do cu. Mande um raio do cu, e, ento, ns acreditaremos em voc. Eram eles que estabeleciam como o milagre tinha de ser,72 como devia mudar a realidade para que O seguissem (No foi pelos trinta denrios []. Mas o seu reino no vi-nha73). Esse realmente o pathos que est por trs do drama daquela poca e da incerteza, da melancolia, do cansao e das dvidas de hoje. aqui que a pessoa entende, que se d conta do que significa a f crer, crer nEle , do que significa dar crdito ao Fato cristo [isto , confiar-se

    70 Idem.71 Idem.72 L. Giussani, A longa marcha da maturidade, op. cit., p. 26.73 C. Chieffo, O monlogo de Judas, Canti, op. cit., pp. 230-231.

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    a um desgnio, no modo de mudar a realidade, que o Seu; mas a ns pare-ce lento demais, muito pouco eficaz]. Pois, em certos momentos, de fato como morrer para ns mesmos, ou melhor, realmente morrer para ns mesmos. Por isso as pessoas que se salvaram, s se salvaram, em pri-meiro lugar, graas ao sentimento de fidelidade sua histria, na medida em que tinham clara era a nica coisa que tinham clara, pode-se dizer a grandeza da dimenso religiosa que incidia na contingncia concreta, portanto a presena do Mistrio como fator que incide na contingncia humana; e, em segundo lugar, por terem voltado a descobrir, de maneira leal e clara, o crdito que deveriam dar autoridade, por voltarem a des-cobrir a funo histrica da autoridade.74

    Talvez agora se entenda melhor por que que Dom Giussani se per-guntava, em 1993: Ento, para que estamos aqui?. Se o nosso objetivo como cristos no fazer iniciativas e construir obras para responder s necessidades, para resolver os problemas dos homens, qual ento? Ele desvia-nos de novo, chamando-nos ao essencial, reafirmando a centrali-dade do crdito ao fato cristo. Esta a sua resposta provocao: sem o retorno origem, no h nada a fazer.

    4. Retorno origem: O Movimento caminha exclusivamente por fora da afeio a Cristo

    Ento, para que estamos aqui? Em 1993, Dom Giussani responde: O motivo duplo, e o segundo consequncia do primeiro; se poderia dizer consequncia ocasional ou contingente do primeiro.75 impressionante porque, para ilustr-lo, sem mediaes, diz: ns estamos aqui para di-zer estvamos caminhando ao longo de uma estrada, ouvimos algum, um idelogo que falava, mas era mais que um idelogo, porque era um tipo srio, chamava-se Joo Batista. Fomos l escut-lo. A certo ponto, uma pessoa que estava ali conosco fez meno de ir embora e vimos que Joo Batista parou para olhar para aquele ali que ia embora e a um certo ponto ps-se a gritar: Eis o Cordeiro de Deus. Tudo bem, um profeta fala de modo estranho, mas ns dois, que estvamos l pela primeira vez, vnhamos do interior, de longe, nos separamos do grupo e fomos no encal-o daquele homem;assim, por uma curiosidade que no era curiosidade,

    74 L. Giussani, A longa marcha da maturidade, op. cit., p. 26.75 Faz referncia a uma Equipe contida no volume de L. Giussani, In cammino (1993-1998), em vias de publicao pela Ed. Bur, na Itlia.

  • por um interesse estranho, quem sabe quem colocou isso dentro de ns, e Ele voltou-se, a um certo ponto, e disse: O que buscais?, e ns: Onde moras?, e Ele: Vinde e vede. Fomos e ficamos l todo esse dia a v-lo falar, porque no se entendiam as palavras que dizia, mas falava de deter-minada maneira, dizia aquelas palavras de tal modo, tinha tal rosto que ns estvamos ali a v-lo falar. Quando fomos embora, porque era noite, fomos para casa com outro rosto, vimos as nossas mulheres e os nossos filhos de um modo diferente, havia como que um vu entre ns e eles, o vu daquele rosto, e nos fundia a cabea. Naquela noite, nenhum dos dois dormiu sossegado e no dia seguinte, fomos outra vez procur-lo. Tinha dito uma frase que ns repetimos aos nossos amigos: Venham ver algum que o Messias que havia de vir; o Messias, foi Ele quem disse: Eu sou o Messias. E os nossos amigos vieram e tambm eles ficaram magnetizados por aquele homem. Era como se dissssemos, noite, quando nos reun-amos ao redor do fogo, com os quatro peixes que havamos apanhado na noite anterior: Se no se acredita num homem assim, se eu no acredito num homem assim, j no posso acreditar nos meus olhos.76

    Continua Dom Giussani: Ns estamos no mundo para gritar a todos os homens: Vejam que est entre ns uma presena estranha; entre ns, aqui, agora, h uma presena estranha: o Mistrio que cria as estrelas, que cria o mar, que faz todas as coisas [] fez-se homem, nasceu do ventre de uma mulher []. Ns estamos no mundo porque a ns, e no a outros, foi dado conhecer que Deus se fez homem. H um homem entre ns, que veio entre ns h dois mil anos e ficou conosco (Estarei convosco todos os dias, at o fim do mundo), h um homem [entre ns] que Deus. A felicidade da humanidade, a alegria da humanidade, a realizao dos desejos todos da humanidade Ele que o leva a cumprimento; o realiza para aqueles que O seguem.77 Ns, hoje, poderamos acrescentar: tambm a nsia de libertao, que confusa e contraditoriamente expressa nas reivindicaes dos novos direitos, s pode encontrar cumprimento em Cristo.

    Eis que, ento, se esboa tambm o segundo motivo: A consequn-cia contingente de olhar para Ele, de v-Lo falar, de ouvi-Lo, de ir atrs dEle, de dizer a todos: Est aqui, est aqui entre ns, o Deus feito homem [], a consequncia contingente para quem fala assim que vive melhor melhor ; no resolve, mas vive melhor at mesmo os problemas da sua humanidade: gosta mais da sua mulher, sabe como gostar mais dos filhos, gosta mais de si mesmo, ama os amigos mais que os outros, olha os estra-

    76 Idem.77 Idem.

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    nhos com uma gratuidade, com uma ternura de corao, como se fossem amigos, socorre os outros nas suas necessidades como pode, como se fosse a sua necessidade, encara o tempo com esperana e, por isso, caminha com energia; usa de tudo para poder caminhar e fazer caminhar tambm os outros, na dor anima, na alegria prudente, intensamente prudente; intenso na alegria, mas com a conscincia de que tudo tem um limite, um limite que provisrio. De limite em limite, o homem, junto, caminha para o seu destino, para aquele dia em que Ele reaparecer, no como apareceu a Joo e Andr, os dois que o seguiam, mas como apareceu a um certo momento da sua vida, no monte Tabor, como apareceu ressuscitado dos mortos.78

    Ns, portanto, estamos aqui por esta presena. Mas essas coisas, quem as entende? Dom Giussani perguntava-se: Pais, padres, associaes cat-licas, quem entende bem a diferena desta tarefa, quem percebe bem esta presena, quem no procura ser digno de achar um espao para si neste mundo, o direito a viver neste mundo, s porque responde s necessidades alheias, quem?.79

    o testemunho que nos oferece todos os dias o Papa Francisco: quem entende estas coisas?

    uma grande purificao, uma grande iluminao que deve acolher e dominar o nosso esprito, uma grande graa que nos deve acontecer O que deve acontecer conosco? O que nos aconteceu! Porque aquilo que nos dissemos no Movimento desde o primeiro dia isto, ainda que por outras palavras; aquilo que ouviram dizer, que os levou a dizer: Bem, gos-taria de ir junto com eles, aquilo que todos pressentimos isto (temos de admitir que subverte tudo): o centro da vida no ser bem-sucedido, mas reconhecer Algum. No ser bem-sucedido, mas reconhecer Algum.80 Foi isso o sobressalto ao corao, e, logo em seguida Dom Giussani pe esta alternativa: O valor de uma pessoa est em ser reconhecida como tima, como apta, como esperta ou em ser amada? to verdade que a nica dignidade da pessoa est em ser amada, que a consistncia e a natureza de um eu, do seu eu, a de ser sido escolhido pelo Mistrio: [] o ser amado a consistncia, a natureza do seu eu.81

    Quando falta isso, ficamos todos perdidos. O centro da vida no um sucesso, mas o reconhecimento de uma presena (e talvez, porque no

    78 Idem.79 Idem.80 Idem.81 Idem.

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    se sentiram amados, porque no se sentem amados, alguns de ns, como muitos dos nossos contemporneos, procuram a realizao noutro lugar). este o problema cristo, continuava, com relao ao problema de qualquer filosofia []: a nossa salvao no a utopia, [] mas uma Pre-sena a reconhecer: no um fazer, um amor.82 Bastaria dar-se conta do que somos para perceber se, com o nosso fazer, conseguimos respon-der ao nosso drama humano. A vida esse amor, o reconhecimento de sermos amados (Amou-nos com um amor eterno e teve piedade do nosso nada83). E Dom Giussani acrescentava: Quando pronuncio esta palavra [amor], quando digo isso que agora disse o problema da existncia no um fazer, mas um amor , em noventa e nove por cento das faces leio uma confusa estranheza.84

    O que esta estranheza? o sinal de que no entendemos, de que j estamos afastados. Esta estranheza diz, mais do que todo o resto, do qu e de onde esperamos a resposta. Alis, precisamente por essa estranheza que nos afastamos do essencial para ir procurar a nossa consistncia na-quilo que fazemos. Essa estranheza o juzo mais potente que damos de Cristo e de ns. Sem entender qual o nosso problema, no entendemos verdadeiramente quem Cristo. No fundo, o que importante, o essencial, est em outro lugar. a confusa estranheza que sentimos diante do miste-rioso desgnio de Deus, a mesma estranheza de Pedro diante do desgnio do Pai ao qual Jesus obedece e que, pelo contrrio, Pedro no entende. essa estranheza que nos leva a desviar do essencial, a procurar a nossa con-sistncia em algo que, nos pensamentos secretos dos nossos coraes, consideramos menos inconsistente que Cristo.

    No poderemos dar a nossa contribuio original vida do mundo se no encontrarmos a consistncia neste amor que nos permite ser di-ferentes no panorama social e cultural. Dom Giussani nunca desistiu de nos indicar onde ns podemos encontrar uma verdadeira consistncia: A consistncia da minha pessoa a presena de Outro.85

    Ao contrrio, Dom Giussani nos recordava que procuramos a consis-tncia naquilo que fazemos ou naquilo que possumos, que o mesmo. Assim, a nossa vida no tem nunca aquele sentimento, aquela experin-cia da certeza plena, que a palavra paz indica, [] aquela certeza plena,

    82 Idem.83 Cfr. Jer 31,3.84 Faz referncia a uma Equipe contida no volume de L. Giussani, In cammino (1993-1998), em vias de publicao pela Ed. Bur, na Itlia.85 L. Giussani, Uomini senza patria (1982-1983), op. cit., p. 97.

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    aquela certeza e aquela plenitude sem a qual no h paz e, por conseguinte, no h alegria. No mximo, chegamos complacncia naquilo que faze-mos ou complacncia em ns mesmos. E esses fragmentos de compla-cncia naquilo que fazemos ou naquilo que somos no trazem nenhuma alegria, nenhum sentido de plenitude seguro, nenhuma certeza e nenhuma plenitude []. A certeza algo que ocorreu em ns, aconteceu em ns, entrou em ns []. Algum aconteceu em ns, se doou a ns, se doou de tal forma que se inseriu na carne e nos ossos e na alma: Vivo, no eu, mas [Cristo] [] vive em mim.86

    chegado um momento, dizia Dom Giussani em 1991, em que a afeio entre ns tem um peso especfico imediatamente maior do que a lucidez dogmtica, a intensidade de um pensamento teolgico ou a energia de uma conduo. A afeio que preciso trazer entre ns s tem uma comparao [uma s urgncia]: a orao, a afeio a Cristo. E, de fato, chegado o momento em que o Movimento caminha exclusivamente por fora da afeio a Cristo que cada um de ns tem, que cada um de ns suplica ao Esprito para ter. 87

    S um homem certo poder ser capaz de responder aos desafios do presente: entrar no quarto de um doente terminal onde no entra mais ningum, ter um filho com malformaes, trazer filhos ao mundo, enfren-tar a falta de trabalho sem fraquejar, etc.

    Por que Dom Giussani volta sempre a Joo e Andr, ou seja, ao primei-ro anncio cristo, ao primeiro encontro? Por que est fora do mundo? Por que iludido? No! porque est convencido de que a soluo dos proble-mas que a vida pe todos os dias no acontece diretamente enfrentando os problemas, mas aprofundando a natureza do sujeito que os enfrenta. Por outras palavras, o particular resolve-se aprofundando o essencial.88 Para abordar os problemas, portanto, necessrio algo que faa vir tona e cumpra a natureza do nosso eu, aquele mistrio eterno do nosso ser,89 de que fala Leopardi. A verdadeira questo, ento, perguntar-se quem pode redespertar o eu das suas redues, libertando-o da ditadura dos seus pequenos desejos para abri-lo ao grande desejo do cumprimento do viver.

    86 L. Giussani, La familiarit con Cristo, Ed. San Paolo, Cinisello Balsamo (Mi) 2008, pp. 25-26.87 Corresponsabilidade. Trechos das conversas entre Luigi Giussani e o Conselho interna-cional de CL, Litterae communionis-CL, novembro de 1991, p. 32.88 A. Savorana, Vita di Dom Giussani, op. cit., p. 489.89 Cf. G. Leopardi, Sobre o retrato de uma bela mulher esculpido em seu jazigo, vv. 22-23, in Giacomo Leopardi. Poesia e Prosa. Org. Marco Lucchesi. Ed. Nova Aguilar, Rio de Janeiro 1996. pp. 276-277.

  • S o divino salva os fatores do humano. 90 esse o ncleo da pretenso crist. A tarefa de Cristo no outra seno redespertar a pessoa, fazer emergir toda a extenso do seu desejo, de modo a libert-la da escravido dos seus pequenos desejos.

    Para ir ao essencial, Jesus usa toda e qualquer ocasio, mesmo um fato quotidiano, simples o Evangelho est cheio deles , como sentar-se junto de um poo para descansar, ter sede, pedir a uma mulher para lhe dar de beber. Esta mulher, uma vez que samaritana, fica bloqueada no que pensa: Como que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou samaritana?. Est presa nos esquemas habituais, porque os judeus no se do com os sa-maritanos. Jesus podia ter parado ali, colocando-se de um lado ou de outro. Em vez disso, rompe as divises pondo diante dela uma posio no reativa, mas original: sabe muito bem que detrs das aparncias, detrs do forma-lismo dos esquemas, existe o corao sedento de uma mulher e a provoca justamente ao nvel do seu corao: Se voc conhecesse o dom de Deus e quem lhe est pedindo de beber, voc que lhe pediria. E ele daria a voc gua viva. Jesus aproveita a oportunidade para dizer quem Ele , qual a pretenso que tem. Que olhar preciso ter para no ficarmos sempre na apa-rncia perante as provocaes do real e s divises que se apresentam! Agora estamos nas mesmas circunstncias, presos entre contraposies ideolgicas, e podemos aceitar permanecer enredados na ideologia de uns e de outros. A mulher samaritana finge no entender, como se no tivesse percebido o desafio: Senhor, no tens um balde, e o poo fundo. De onde vais tirar a gua viva? Certamente no pretendes ser maior do que o nosso pai Jac. Jesus no volta atrs; pelo contrrio, aumenta a dose: Quem bebe desta gua vai ter sede de novo, mas aquele que beber a gua que eu vou dar, este nunca mais ter sede, [] vai nascer nele uma fonte de gua que jorra para a vida eterna. Mas quem este que tem a pretenso de responder a toda a sede do desejo do homem e de apresentar-se como a gua que pode saci-la plenamente? Quem pode ter semelhante pre