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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
EXPRESSÕES DE GÊNERO: A RESIGNIFICAÇÃO DO FEMINISMO NOS PROCESSOS CRIATIVOS DE PERFORMERS, ARTISTAS TEATRAIS E
ATIVISTAS LATINO-AMERICANAS NA ATUALIDADE
Stela Fischer1
Resumo: O texto propõe uma discussão sobre as manifestações de gênero na cena contemporânea, mais precisamente as formas de teatro, performances e ativismos artísticos que tomam as questões das mulheres como temática. Interessa-nos a resignificação dos discursos feministas e sua articulação nos processos criativos de artistas latino-americanas neste início de século. Serão abordados o grupo mexicano FOMMA – Fortaleza de la Mujer Maya, as bolivianas Mujeres Creando Comunidad, a performer guatemalteca Regina José Galindo e suas ações artísticas com enfoque em tornar visíveis as questões das mulheres de seus países. Palavras-chave: Feminismo e arte; ativismo feminista; performance feminista; teatro feminista, arte e gênero.
O contexto social brasileiro, no momento da escrita deste texto, revela a urgência de
mudanças. Acabamos de viver as manifestações do Movimento Passe Livre, nas quais milhares de
cidadãos brasileiros ocuparam as ruas de diferentes cidades do país para reivindicar não apenas pela
redução da tarifa do transporte público, mas para dar voz ao histórico e contido grito de intolerância
às inúmeras situações de corrupção da política brasileira, à discordância em relação aos gastos
públicos com as obras para a Copa de 2014 e à defesa de uma reforma política brasileira urgente.
Passamos também por tempos de retrocessos em relação aos direitos humanos e de gênero já
conquistados. Esteve em pauta a tentativa de aprovação do projeto “Cura Gay” na Comissão de
Direitos Humanos e Minorias da Câmara2 que voltaria a atribuir o caráter patológico à
homossexualidade, retirado há mais de vinte anos pela Organização Mundial de Saúde.
Outra medida austera é o projeto de lei do Estatuto do Nascituro3 que prevê que o aborto
seja proibido em qualquer circunstância, atribuindo ao embrião o status jurídico e moral de pessoa
nascida e viva. O projeto prevê ainda o pagamento de benefício financeiro pelo Estado para a
mulher vítima de violência sexual com subsequente gravidez, ‘bolsa estupro’. Novamente, um
1 Stela Fischer é doutoranda em Artes Cênicas na Universidade de São Paulo, Mestre em Artes/Teatro pela
Universidade Estadual de Campinas. Autora do livro Processo Colaborativo e Experiências de Companhias Teatrais
Brasileiras (Hucitec, 2010). Coordena na cidade de São Paulo o Coletivo Rubro Obsceno, um agrupamento de
mulheres artistas com a finalidade de discutir as questões de gênero nas artes cênicas. 2 Sob o comando do Deputado Federal Marco Feliciano (PSC-SP), o projeto de decreto legislativo foi aprovado
numa primeira instância no dia 18 de junho e retirado de pauta pelo próprio autor o Deputado João Campos (PSDB-
GO), em 02 de julho de 2013. Ao que tudo indica, o projeto poderá ser reapresentado em 2014. 3 O Projeto de Lei 478, escrito por Luiz Bassuma (PV-BA) e Miguel Martini (PHS-MG), foi aprovado em 5 de junho de
2013 pela Comissão de Finanças e Tributação do Congresso Nacional. Ainda será votado pela Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara e, em seguida, pelo Plenário.
2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
retrocesso aos princípios éticos e constitucionais já existentes que prezam pelo direito das mulheres
abortarem em casos de estupro, risco de vida à mulher e anencefalia do feto. A proposta viola
diretamente os direitos humanos e reprodutivos das mulheres brasileiras, em tempos de se pensar
efetivamente a legalização do aborto no Brasil.
Além dessas informações na ordem do dia, vale lembrar o aumento significativo do
feminicídio no Brasil: “Nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010 foram assassinadas no país acima
de 92 mil mulheres, 43,7 mil só na última década”, de acordo com pesquisa realizada pelo Centro
Brasileiro de Estudos Latino-Americanos.4 Similarmente, o mesmo se aplica a outros países da
América Latina e Caribe, como El Salvador, Guatemala, México e Nicarágua.
Estas informações estão aqui destacadas para justificar que ainda se faz necessário e
imprescindível tratar das questões sobre a legitimação de direitos das mulheres e de gênero em
diversos âmbitos, inclusive o artístico. Nota-se, nas últimas décadas, um crescente número de
coletivos teatrais, artistas da performance e ativistas que se interessam pela temática e avançam na
continuidade do legado histórico das mulheres artistas feministas da “segunda onda” (a partir dos
anos 1960 do séc. XX). 5
Nesta direção, apresento brevemente três exemplos de artistas e ativistas latino-americanas,
cujos trabalhos são realizados com a prerrogativa de denúncia, resistência e intervenção nos
contextos sociais e políticos nos quais se inserem. Artistas utilizam seus corpos, discursos e
poéticas como vias de inscrições políticas, na articulação das questões de gênero, etnia e classe,
principalmente das mulheres indígenas latino-americanas.6 São elas: as mexicanas do FOMMA -
Fortaleza de La Mujer Maya, as bolivianas do Mujeres Creando Comunidad e a guatemalteca
Regina José Galindo.
1. FOMMA – Fortaleza de La Mujer Maya (México)
Chiapas é o estado mais pobre do México economicamente, porém rico em abrigar culturas
locais diversas e pelo ímpeto aguerrido de lutas históricas de resistência, como as do Ejército
Zapatista de Liberación Nacional que tomou o governo em 1994.
4 Disponível em: http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_atual_mulheres.pdf - Acesso em 28 de
junho de 2013. 5 Na cena brasileira, grupos como o pernambucano Loucas de Pedra Lilás (1996), o mineiro Obscena (2007), o
catarinense Em Companhia de Mulheres (2010), o carioca As Marias da Graça (1991), as paulistanas As Mal-Amadas
Cia de Teatro (1992), a extinta Atuadoras (2006), Kiwi (1996), Cia Monalisa (2009), Magna Mater (2002) e Coletivo
Rubro Obsceno (2012), são algumas referências de iniciativas que integram arte, ação e reflexão sobre questões
pertinentes ao gênero feminino, cada um a sua maneira e atuando muitas vezes às margens do “mercado” cultural. 6 Considerando que as diferenças entre sexos são ainda mais acentuadas em comunidades indígenas.
3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Apesar da instauração de um movimento feminista contra as férreas normas patriarcais de
gênero e raça, uma série de assassinatos de mulheres na última década imprimiu um clima de estado
de sítio a Chiapas. Dezenas de meninas (algumas entre 8 e 10 anos) e mulheres de diferentes idades
foram vítimas de feminicídio: de janeiro de 2012 a fevereiro de 2013, 91 mulheres morreram
assassinadas. A indiferença das autoridades para erradicar a violência e aplicar justiça mobilizou
manifestantes e ativistas na campanha de intervenção social com atos artísticos, chamada “¡Ni una
más!”, para conscientização, denúncia e reivindicação por segurança, justiça e pela memória das
vítimas.7
O mesmo se aplica na cidade de San Cristóbal de las Casas, onde aconteceram muitos casos
de violência, estupros e assassinatos de mulheres indígenas e não indígenas. Todo dia 14 de cada
mês são realizados atos contra os feminicídios da região. O FOMMA, Fortaleza de La Mujer Maya,
associação cultural comunitária e grupo teatral que integra mulheres indígenas campesinas de
diversos municípios com o objetivo de empoderamento e luta por seus direitos, está comprometido
com a causa e participa das ações com atividades culturais e intervenções nas ruas da cidade.
O FOMMA foi criado em 1994 por Petrona de la Cruz Cruz, de etnia tzotzil, e Isabel Juárez
Espinosa, de origem tzeltal. Juntas, vinham desenvolvendo parcerias com outros grupos teatrais
locais, o que destacou Petrona como a primeira mulher indígena a ganhar o prêmio de Literatura
Rosario Castellanos (1992).
Sua premissa, além do teatro como atividade principal, é oferecer possibilidades de
emancipação das mulheres de suas comunidades. Também tem como objetivos: o fortalecimento da
cultura maia, entretanto, questionando os aspectos tradicionais que afetam a dignidade das
mulheres; a promoção do teatro e literatura indígena; a construção de espaços coletivos para refletir
sobre a problemática étnica e de gênero; a oferta de atividades de capacitação das mulheres
indígenas para que adquiram novas habilidades e possíveis inclusões no mercado de trabalho; o
estímulo e a geração de empregos às mulheres indígenas e a ajuda com os cuidados de seus filhos
para que possam trabalhar e estudar.
Com auxílios financeiros provenientes de aportes local e internacional, as mulheres artistas
do FOMMA conseguiram sua sede própria para empreender suas atividades. A partir de 2008, o
Instituto Hemisférico de Performance e Política, vinculado a New York University, criou uma
7 Informações extraídas do site http://contrafeminicidio.wordpress.com/2013/01/09/ni-una-mas-14-02/ - Acesso em
29 de junho de 2013.
4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
parceria com o FOMMA, originando o Centro Hemisférico em Chiapas, um espaço para
investigação das artes cênicas e performance políticas.
Desde 1999, o FOMMA tem trabalhado em parceria com a diretora de Nova York com
raízes colombianas, Doris Difarnecio, que tem orientado suas montagens. Sua função como diretora
é organizar o material criativo gestado em sala de ensaio, coordenar o processo de escritura textual
e cênica, propor exercícios de desenvolvimento e sensibilização corporal, vocal e na criação das
personagens.
Nas encenações, o grupo utiliza recursos simples de linguagens e nas soluções cenotécnicas.
Assume a inversão de papeis, ou seja, as atrizes representam os personagens masculinos, utilizando
máscaras confeccionadas por elas próprias. Também recorre aos elementos da tradição tsotsil que
são levados à cena pelas indumentárias, cores e costumes que permitem identificar a origem
indígena de suas personagens e situações dramáticas.
Sob uma dinâmica de produção artística coletivista, passaram a integrar o Fomma Maria
Francisca Oseguera Cruz, Maria Pérez Santís e Victoria Patishtan Gómez que desempenham
diversas funções no grupo, desde as administrativas até as de manutenção do espaço.
A dramaturgia também é organizada coletivamente. A partir de temas elencados pelas
participantes, as responsáveis pela tessitura dramatúrgica Petrona de la Cruz Cruz e Isabel Juárez
Espinosa organizam um roteiro que é levado para a diretora e atrizes experimentarem na sala de
ensaio. Em seguida, é feito o tratamento final dos diálogos e das situações dramáticas pelas autoras.
A criação dramatúrgica é autorreferencial. Apoiada nas biografias pessoais das atrizes como
campo de exploração temático, expõe e questiona os costumes tradicionais cerceadores de suas
comunidades, como o desprezo diante do nascimento de meninas, os maus-tratos e violência de
familiares, as diferenças nas relações de gênero, os impasses do corpo e da sexualidade feminina, o
alcoolismo. Estes temas são convertidos em material criativo textual e na criação de cenas de seus
espetáculos.
Tanto Petrona como Isabel compartilham uma história de violência e marginalização social. (...) O feminismo é considerado uma palavra má e um conceito perigoso. (...) FOMMA soube negociar com êxito com as forças opostas mediante o uso do humor, da exploração de gêneros populares como a telenovela e a recriação de histórias extraídas de suas próprias comunidades. (TAYLOR, 2004, p.95)8
Por exemplo, seu novo trabalho “Dulces y Amargos Sueños,” monólogo escrito por Petrona,
é baseado em dados autobiográficos sobre a sua infância no seu povoado, a violência sexual da qual 8 TAYLOR, Diana. La bruja monja: Petrona de La Cruz Cruz e Isabel Juárez Espinosa. Disponível em:
<http://www.casa.cult.cu/publicaciones/revistaconjunto/145/taylor.pdf> - Acesso em: 28 de junho de 2013. Tradução
nossa.
5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
foi vítima aos 17 anos e a subsequente gravidez. Sem nenhum apoio emocional ou familiar, viu-se
diante da imposição dos costumes da sua comunidade que a obrigavam casar-se com o seu violador.
O espetáculo de forma poética, mas realista no tratamento da temática, narra a saga da autora, a
fuga para a cidade dos “homens” e a sua sobrevivência em meio ao enfrentamento da nova
realidade.
Cartaz e imagens do espetáculo Dulces y Amargos Sueños, monólogo de Petrona de La Cruz Cruz, estreiou em maio de
2013 no espaço FOMMA. Foto: Luis Enrique Aguilar.9
Assim o FOMMA tem utilizado o teatro como forma de empoderamento, delegando aos
corpos das mulheres indígenas de Chiapas, o status de corpos políticos, corpos de mulheres que, em
comunidade, têm validado outras possibilidades de viver e intervir no seu meio social.
2. Mujeres Creando Comunidad (Bolívia)
Na Bolívia, as mobilizações de gênero e sexualidade, etnia e de resgate a memória e direitos
dos povos originários, têm tido maior visibilidade devido aos coletivos culturais que se ocupam
com ações políticas e de lutas sociais. Disseminam-se expressões artísticas a partir do teatro, da
música, da literatura, da rádio alternativa e de ações mais pontuais com reverberações políticas. São
exemplos o Teatro Trono, a fundação COMPA (Comunidad de Productores en Arte), a Casa Juvenil
de las Culturas Wayna Tambo, Mujeres Creando e Mujeres Creando Comunidad. Estes últimos são
9 Disponível em http://centrohemisferico.wordpress.com/2013/05/15/dulces-y-amargos-suenos-una-nueva-obra-de-
petrona-de-la-cruz-cruz/# - Acesso: 28 de junho de 2013.
6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
coletivos anarquistas feministas criativos e revolucionários que utilizam a arte como forma de
intervenção social, na defesa da diversidade sexual e delegam à intervenção artística e política
boliviana de resistência um reconhecimento internacional.
O coletivo feminista Mujeres Creando Comunidad surgiu em 2002 após desmembramento
do grupo original Mujeres Creando, idealizado originalmente por Julieta Paredes, María Galindo e
Mónica Mendoza, com o objetivo de construir um feminismo próprio que abrigasse as
particularidades das mulheres bolivianas contra as injustiças do patriarcalismo dominante. A
criatividade é sua ferramenta de luta, na qual a ideologia feminista se inscreve nas ações poéticas,
artísticas e ativistas do grafite, da música, da poesia, da intervenção de rua. Após a ruptura, os dois
coletivos coexistem na cidade de La Paz.
Liderado por Julieta Paredes, ativista e intelectual aymara radicada na Bolívia, propõe um
trabalho de construção de uma teoria e prática feminista radical que confronta com o ideal
neoliberal de democracia: o “feminismo comunitário”. O movimento aposta em um novo sistema de
organização baseado na comunidade feminina indígena em áreas rurais, em setores populares,
contra a sua invisibilidade política e econômica das mulheres.
Integra também a Asamblea de Feminismo Comunitario, coletivo composto por mulheres de
origens aymaras, quéchuas, guaranis, com a premissa de recuperar a memória de seus povos,
denunciar o colonialismo e participar ativamente no processo de mudança social da Bolívia e
América Latina. Seus corpos são seu campo de ação e luta. Corpos que foram marcados pelo
colonialismo, exigem agora seus direitos e querem ter voz própria. Acredita que o corpo é um lugar
de liberdade e não de repressão. Deve abrigar uma existência individual e coletiva e desenvolver-se
a partir do cotidiano, da própria biografia e da história de seus povos originais.
O feminismo comunitário parte da premissa de comunidade e irmandade constituída por
mulheres e homens como duas metades imprescindíveis, complementares, não hierárquicas,
recíprocas e autônomas: “Não queremos ser nem femininas nem masculinos, queremos ser
mulheres e homens com história e cultura própria, como ponto de partida, para nomearmos com
nossas próprias vozes em meio aos processos de mudanças que vive o nosso país”. (Paredes, 2010,
p. 25).10
A rua é, fundamentalmente, o espaço onde desenvolve suas ações criativas e ativistas.
Estabelece alianças com diferentes organizações sociais, participa de diversos eventos culturais e
políticos, de formação crítica e promoção de debates sobre o feminismo comunitário e os direitos
10
Tradução nossa.
7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
das mulheres. Também auxiliou, durante um período de tempo, o plano de políticas públicas do
governo do Presidente Evo Morales.
Sobre o ativismo artístico do Mujeres Creando Comunidad, Paredes explica:
O ativismo para os nossos povos é uma questão de vida. O ativismo é imprescindível. Assim como a repressão se transforma para nos calar, devemos sempre inventar formas criativas para combatê-la. Ainda mais que temos uma proposta e não apenas um protesto. Então, as formas de comunicação do nosso feminismo comunitário é muito rica e forte. O feminismo comunitário é uma corrente de feminismo que tem uma organicidade, que representa a comunidade como uma proposta política, desenvolvido com um pensamento próprio, com metodologias próprias, em que a criatividade é um instrumento de luta. (Em entrevista para Stela Fischer, em julho de 2013)
Adriana Amparo e Julieta Paredes em apresentação no 8º. Encontro Hemisférico de Performance e Política, em São
Paulo, janeiro de 2013. Foto: Julio Pantoja / Instituto Hemisférico.
As intervenções performativas e poéticas de Julieta Paredes e das integrantes de Mujeres
Creando Comunidad expõem seus corpos e culturas andinas como lugar de resistência. A resistência
não apenas como ato estético e ideológico, mas como forma de viver e de pensar as convivências,
baseadas no exercício da igualdade e da colaboração. Desestabilizam as estruturas hegemônicas de
gênero e etnia, confrontando os discursos e práticas dominantes.
Suas performances, intercaladas pelos cantos de seus povos, criam uma ação poética, ética e
crítica que resignificam e agenciam, nos dizeres de Paredes, uma renovação da criatividade para
pensar o mundo, onde o sonho se constrói com as próprias mãos e corpos. O corpo feminino
indígena, lésbico, aliados ao discurso feminista de uma pertinência e validade poderosa, tomam
aqueles que participam de suas apresentações pelo seu ativismo como estratégia de impactar os
direitos e sinalizar a necessidade de mudanças sociais.
8 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
3. Regina José Galindo (Guatemala)
Desde meados do século XX, artistas de diferentes localidades têm se mobilizado contra
estruturas de poder, utilizando seus corpos como meios de enfrentamento a realidades sociais. De
acordo com a estudiosa da performance Diana Taylor, a arte da performance tem sido comumente
aplicada como forma de intervenção social e ativismos de resistência, cidadania, identidade sexual e
questões de gênero, raça e direitos humanos que “em seu caráter de prática corporal em relação com
outros discursos culturais, oferece também uma maneira de gerar e transmitir conhecimento através
do corpo, da ação e do comportamento social” (Taylor, 2012, p. 31).
Assim o faz a poeta, artista e performer guatemalteca Regina José Galindo. Valendo-se de
seu corpo para também tornar visíveis as realidades brutais dos assassinatos e violências contra as
mulheres de seu país. Propõe ações performáticas, vídeos e instalações nos quais coloca seu corpo
em situações de risco para uma maior eficiência crítica e estética.
Apesar de não trabalhar apenas com a temática das mulheres, não há como negar que sua
condição como mulher latina imprime em suas performances uma historicidade marcante. Sobre
Galindo, Taylor ressalta ainda o seu físico aparentemente frágil, uma mulher de pequena estatura,
magra, de cabelos negros, como a representação dos corpos de todas as mulheres da Guatemala,
mas de extrema valentia criativa quando toma seu corpo como zona de confronto de violentas
forças sociais (Taylor, 2012, p. 134).
Para uma melhor compreensão da validade do trabalho de Galindo, selecionei quatro
exemplos em que a performer utiliza seu corpo poético/político como denúncia à violência contra as
mulheres da Guatemala, em especial as indígenas.
3.1 Perra (2005): Sentada em uma cadeira, Galindo entalha a palavra “perra” em sua perna
direita com uma faca. Uma denúncia/crítica à série de assassinatos impunes cometidos contra
mulheres na Guatemala, onde os corpos de mulheres vítimas de torturas e de violência sexual são
marcados com inscrições feitas por facas ou navalhas, com palavras de xingamento.
9 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Imagens da Performance Perra (2005)11
3.2 Mientras, ellos siguem libres (2007): grávida de oito meses, Galindo fica atada em uma
cama por cordões umbilicais, representando as mulheres indígenas violentadas durante a gravidez
por parte do exército durante o conflito armado na Guatemala nos anos 70 e 80. Esse ato era
realizado de maneira deliberada com a intenção de fazer a vítima abortar por meio do estupro ou
lhes causar graves infecções para que elas não gerassem mais filhos, eliminando, desde a origem, a
vida dos povos indígenas.
Imagens da Performance Mientras, ellos siguem libres (2007)12
3.3 La Conquista (2009): instalação composta por esculturas feitas com cabelos de
mulheres indígenas, comprados por Galindo. Estacas sustentam cabelos/perucas de mulheres
indígenas, alusão à colonização inglesa e espanhola. Tem se tornado comum a prática de compra e
trafico de cabelos de indígenas para confecção de perucas em outros países, como os Estados
Unidos. Ressaltando que os cabelos longos, para as mulheres indígenas, tem um forte significado
religioso e cultural.
11
Disponível no site http://www.reginajosegalindo.com. 12
Idem.
10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Imagem da instalação La Conquista (2009)13
3.4 Hermana (2010): com a participação da atriz Rosa Chávez, indígena de origem maya-
kiché, Galindo propõe uma inversão de papeis, na qual a indígena a agride a mulher que representa
a cultura ocidental com vários tapas na cara, cuspes e golpes como crítica à condição de humilhação
em que muitas mulheres de origem indígena sofrem por ser a “outra”.
Imagens da vídeo-performance Hermana (2010)14
A partir desses exemplos, tanto das ações de Galindo, como as das mulheres do FOMMA e
Mujeres Creando Comunidad, nota-se uma vigorosa resignificação dos discursos feministas nas
artes contemporâneas. Contrapõem as divergências nas quais a arte e as teorias feministas são
tomadas pejorativamente como retrógradas e desnecessárias, uma vez que o movimento feminista é
13
Idem. 14
Idem.
11 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
indicado por alguns teóricos em processo de despolitização e esgotamento a partir das últimas
décadas do séc. XX.15
A experiência dessas artistas valida a necessidade imprescindível de tratar das questões
sobre a legitimação de direitos das mulheres e de gênero em diversos campos, inclusive o artístico.
Nas artes percebidas e pensadas como formas de inscrição política, “quaisquer que sejam as
intenções que as regem, os tipos de inserção social dos artistas ou o modo como as formas artísticas
refletem estruturas ou movimentos sociais” (RANCIÈRE, 2009, p. 19).
Assim, o ativismo artístico latino-americano tem-se demonstrado, nas últimas décadas, um
potente protagonista na reivindicação social e na interlocução entre as políticas públicas, a
população e a cultura. As ações individuais ou em grupo, propõe novos meios e linguagens de
dimensão poética, com destaque para a utilização de seus corpos e experiências pessoais/biográficas
como vias de empoderamento. Projetam-se em direção ao compromisso com a problemática de suas
comunidades e culturas.
A participação do artista nas problemáticas urgentes de seu contexto, propiciando rituais coletivos, colocando seus recursos artísticos a serviço de ações que buscam denunciar o estado das coisas ou simplesmente aliviar o sofrimento cotidiano; constituem situações nas quais apagam as fronteiras entre arte e vida, entre ator, performer e cidadão, entre ficção e realidade, destacando a dimensão ética do ato estético e a realização de praticas artísticas como forma de ativismo social. (DIÉGUEZ, 2008, p. 28)16
As expressões das artistas do FOMMA, do Mujeres Creando Comunidad e de Regina José
Galindo são resultado de processos de simbolizações e corporificações de memórias e testemunhos
de situações de traumas e violência, do resgate de constituição de identidades que formam, ao final,
a construção de subjetividades políticas. A partir de suas intervenções sociais e artísticas, seus
corpos femininos e subalternos tornam-se um espaço político. O atravessamento desses corpos pela
experiência real/ficcional da crítica ao colonialismo, à discriminação, às diferenças de gêneros,
classes e etnias, promove um ato estético de resistência e libertação.
Referências:
COSTANTINO, Roselyn & TAYLOR, Diana. Holy Terrors: Latin American women perform. Durham, NC: Duke University Press, 2003.
15
Alguns autores destacam como aspectos de seu desgaste a redundância de argumentos e ações, a perda do espaço
para outras políticas de identidade e o impacto negativo das mídias de comunicação de massa (DURING apud
ROMANO, 2009, p. 53). 16
Tradução nossa.
12 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
DIÉGUEZ, Lleana. Prácticas de visibilidad. Ethos, teatralidad y memória. In: ZAPATA, Miguel Rubio. El cuerpo ausente (performance política). Lima: Grupo Cultural Yuyachkani, 2008.
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13 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X
Gender Expressions: the resignigication of feminism in the creative processes of current Latin American performers and drama artistis Astract: This work discusses the study of gender in the contemporary scene, more specifically in drama, performances and artistic activism that take the women issue and feminist criticism as a main topic. We aim at relating the resignification of the feminist discourses and its Latin American creative processes of the current century. The Mexican group FOMMA, Fortaleza de la Mujer Maya, the Bolivian actvist group, Mujeres creando la comunidad and the performer Regina José Galindo, from Guatemala, will be considered. Keywords: Feminism and art; feminist activism, feminist performance; feminist theater, art and gender