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F A L A R C O M S E U C O R P O E S C A B E L O Estudos lacanianos na ECF: “Falar lalíngua do corpo” Eric Laurent Extrato da Quarta sessão: – O escabelo e a sublimação – Leitura de “Joyce, o sintoma” / 04.02.2015. Transcrição a partir do registro divulgado pela Rádio Lacan, pela equipe reunida por Didier Mathey; tradução de Teresinha N. Meirelles do Prado. O escabelo e a sublimação freudiana. Do forçamento [forçage] à manipulação Passemos, agora, ao escabelo e ao modo como, em sua conferência,

F A L A R C O M S E U C O R P O – E S C A B E L O · Jacques-Alain Miller fala desse escabelo. Ele fala com uma distância crítica, mas ele o introduz como “isto sobre o que

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F A L A R C O M S E U C O R P O –

E S C A B E L O

Estudos lacanianos na ECF: “Falar lalíngua do corpo”

Eric Laurent

Extrato da Quarta sessão: – O escabelo e a sublimação – Leitura de “Joyce, o

sintoma” / 04.02.2015.

Transcrição a partir do registro divulgado pela Rádio Lacan, pela equipe reunida por

Didier Mathey; tradução de Teresinha N. Meirelles do Prado.

O escabelo e a sublimação freudiana. Do forçamento [forçage] à

manipulação

Passemos, agora, ao escabelo e ao modo como, em sua conferência,

Jacques-Alain Miller fala desse escabelo. Ele fala com uma distância crítica,

mas ele o introduz como “isto sobre o que o falasser se ergue, sobe para se

embelezar. É seu pedestal, que lhe permite elevar-se à dignidade da coisa”.

Essa frase faz referência à leitura que Lacan faz da sublimação freudiana em

seu seminário sobre A ética da psicanálise − que se dá cinco anos mais tarde

que o seminário 4. Ela difere daquela do seminário 4 pela nova relação que é

introduzida com o real. Para situar essa nova ótica da Ética da psicanálise no

seu lugar, retomemos as ênfases mais importantes que Lacan deu à sua

leitura da sublimação freudiana como um dos “destinos das pulsões”, como se

exprime Freud no capítulo que abre sua Metapsicologia de 1915, “Pulsões e

suas vicissitudes”[1]. Ele atribui quatro destinos às pulsões: a reversão a seu

oposto (ver – ser visto); o retorno sobre a própria pessoa; o recalcamento e a

sublimação ». Ele reformulou o que havia enunciado em seus Três ensaios

sobre a teoria da sexualidade e também num texto seguinte, que aborda a

moral sexual civilizada, no qual enunciou: “A pulsão sexual põe à disposição

do trabalho cultural quantidades de força extraordinariamente grandes, e isto

graças à particularidade, especialmente acentuada nela, de poder deslocar a

sua meta sem perder, quanto ao essencial, a sua intensidade. Chama-se a esta

capacidade de trocar a meta sexual originária por outra meta, que já não é

sexual, mas que psiquicamente se aparenta com ela, capacidade de

sublimação”[2]. Logo, a sublimação é deslocada quanto ao alvo. Essa

sublimação é inibida quanto ao alvo sexual, zielgehemmt, mas ela se satisfaz

sem recalcamento; há gozo. Freud remaneja essa sublimação ao longo de suas

descobertas. Quando ele isola o narcisismo, destaca que a sublimação é não

somente transposição da pulsão sexual, mas que é preciso que ela passe pela

paixão narcísica e que, desse modo, ela se “dessexualiza”. Depois, quando

introduz as pulsões de morte nos anos 1920, ele se pergunta se, afinal, não

seria possível não apenas sublimar a satisfação da pulsão parcial, as pulsões

de vida, mas também a pulsão de morte. Tantos enigmas que Freud decifrará

aos poucos, enquanto conserva o « deslocamento quanto ao alvo » como uma

das características maiores das pulsões. Em seu Seminário 11, Lacan poderá

dizer o quanto isso era um enigma colocado desde o início da obra. E Lacan

vai propor diversos modos de resolvê-lo, levando em conta a distância

introduzida entre o alvo sexual e o gozo da pulsão. A pulsão se desloca quanto

ao alvo sexual porque não varia quanto ao seu autoerotismo. A “sublimação”

de Freud, como apontava Jacques-Alain Miller, é o ponto em que Freud se

aproxima da “não-relação sexual” lacaniana, o ponto em que o sexual se

separa do “autoerotismo” da pulsão e de seu gozo. Todo o problema, para

Lacan, é estabelecer a articulação entre o gozo e o sexual, ou de como o gozo

autoerótico da pulsão vem se juntar ao desejo do Outro.

O Seminário A ética da psicanálise dá um passo a mais que o Seminário

4, a partir do qual começamos a leitura. Pois o que se apresenta no Seminário

4 como alteridade absoluta vai ser instalado na dimensão do real. Ele introduz

o gozo em uma dimensão de Real no centro da realidade psíquica do sujeito,

em uma dimensão diferente daquelas do Imaginário e do Simbólico. É a zona

“das Ding”, no centro, mas como excluída, impossível de se aproximar e

protegida por uma barreira… Lacan inventou mais tarde uma belíssima

palavra para qualificar isso, a saber, “extimidade”[3]. A sublimação povoa

esse vazio, essa zona, com um certo número de objetos que estão no lugar do

vazio, que apresentam esse paradoxo de se avizinhar a esse vazio, ocupando o

vazio, fazendo a borda do vazio, seguindo os contornos da barreira que

defende a zona do Gozo real. Há a sublimação do amor, que visa essa zona, e

há os objetos, que vêm preenchê-la. Essa disjunção pode ser abordada de

diversas maneiras, conforme as soluções ou paradigmas que Lacan

desenvolve. O termo paradigma ressoa com o título dado por Jacques-Alain

Miller à retomada de uma conferência pronunciada em Los Angeles, em um

congresso de Cultural studies, em seu curso “O real na experiência

psicanalítica”. O terceiro paradigma, aquele da época de A ética da

psicanálise, sob a rubrica geral do real na experiência analítica, evidencia o

modo de impossibilidade, para o princípio de prazer, de alcançar a zona do

real do gozo. É preciso, portanto, um forçamento [forçage] para alcançar esse

lugar, o lugar do gozo. A estrutura segundo a qual “o objeto é elevado à

dignidade da coisa” é uma estrutura complexa que, em relação ao real, coloca

em jogo tanto elementos simbólicos quanto imaginários. Ao descrever essa

estrutura, Jacques-Alain Miller nomeava esses elementos dizendo: “Foi assim

que pude enumerar, no interior desse Seminário 7, nove encarnações da

Coisa, nove casos em que, sucessivamente, Lacan nos mostra que eles vêm

nesse lugar do gozo. Destaco aí esse termo ‘lugar’, que se encontra também

nos Escritos. Se há lugar, é porque existe essa barreira… Há os termos que

vêm se alojar aí a partir do simbólico… É, por exemplo, a lei moral kantiana, o

imperativo kantiano em seu absoluto destacado de tudo… Há outro elemento

que vem do simbólico, a saber, a ciência… que em sua exigência de se apoiar

no que sempre retorna ao mesmo lugar, ocupa, em seu âmbito fundamental, o

lugar da Coisa… Isso permitirá a Lacan falar da ciência como

transbordamento, como processo mortal. Há elementos provenientes do

imaginário. É nessa categoria que Lacan inscreve os objetos da sublimação

como, por exemplo, a obra de arte… E há termos que, podemos dizer,

qualificam o ser fora de qualquer ter. Lacan tomava o exemplo da simples

interjeição de amor, o “Tu! ”. É o exemplo do “Tu! ” que visa o ser do Outro

para além de todas as qualificações que suas manifestações pudessem trazer…

Mas é também a Mãe, como gozo interdito…, o Pai, como sublimação…, a

Dama do amor cortês, como parceira inumana. É, enfim, o próprio objeto

sadiano, a obra de Sade, diz Jacques-Alain Miller, estando aqui como o

exemplo dos artifícios de que é preciso lançar mão para conseguir franquear

essa barreira que isola o lugar do gozo. A recente exposição em Paris, que

apresentava as obras de Sade de maneira um tanto confusa, destacava bem o

caráter frenético que agradava tanto à conservadora que havia concebido a

coisa. Nessa ordenação, o nono termo é o vazio, que é a figura da Coisa,

quando a consideramos na perspectiva do significante”[4].

Essa série é, então, trazida por Jacques-Alain Miller para mostrar o que

ele chama de estrutura do para-além, que a A ética da psicanálise introduz no

ensino de Lacan. “Que nos representa um para-além delimitado. Não se trata

do para-além aberto do amor, em que a demanda que, por sua própria

dinâmica, vai em direção a esse amor, em direção à abertura do amor. Aqui,

pelo contrário, temos um ‘para-além’ fechado, proibido, um ‘para-além’

limite, ao qual se acedeu por forçamento [forçage], transgressão, e até mesmo

travessia… Portanto, de um lado, a transgressão, e, de outro, a defesa”. Dentre

os objetos que vêm ocupar o lugar do gozo, há o parceiro sexual do amor

cortês e aquele que Sade visa.

Essa estrutura de ‘para-além’, que radicaliza a perspectiva da sublimação

freudiana, situa um momento do ensino de Lacan em que a articulação entre

o lugar do gozo e a linguagem coloca um problema. Jacques-Alain Miller

destaca que na época em que editava as sessões do seminário A ética da

psicanálise que tratam da sublimação, havia colocado como título dessas

aulas “O problema da sublimação”. Mas, em seguida, com o seminário Mais,

ainda, a sublimação não é mais um problema, pois, “A partir do momento em

que, pelo contrário, linguagem e gozo caminham lado a lado, a partir do

momento em que o significante é a causa de gozo, pode-se dizer que a

sublimação deixa de ser um problema: ela se torna um gozo de pleno

exercício… Por falta do gozo da relação sexual, tem-se o gozo da comunicação,

o gozo comunitário, o que nos mantém juntos, ou seja, tudo o que nos ocupa

no sentido de saber como se situar ao lado do Outro, no Outro, a quais regras

vamos obedecer, como daremos ordens, como faremos agir, como nós

mesmos obedeceremos às ordens etc.” Nessa perspectiva, Miller constata:

“Mais, ainda não é mais o impossível de ultrapassar, o inacessível da

barreira, é o impossível. Passamos do inacessível, do impossível de franquear,

que se ultrapassa ao preço de um orçamento [forçage], que nos custa os olhos

da cara, passamos disso ao impossível” [5], que permite definir a não-relação

sexual e sua lógica.

É essa orientação, se quisermos retomar a metáfora sadiana da apatia

lógica, da impassibilidade lógica em relação a todo esse transbordamento

furioso, que vai nos fazer passar da ideia do forçamento [forçage] para a ideia

da manipulação – a manipulação é uma maneira de compor, de se haver com

o parceiro sexual impossível. Muito bem, há a não-relação sexual. Perfeito, há

o impossível. Contudo, manipula-se. Não há mais necessidade de fazer

atravessamentos inverossímeis. Enfim, o que resta disso agora é Cinquenta

tons de cinza (Fifty Shades of Grey) desse Mister Grey, com os « sex toys »

que são agora apresentados como produtos que vão invadir todas as lojas a

partir do momento em que o filme estiver nas telas, como as pequenas

marionetes de Guerra nas estrelas, desde sua chegada. Mas, enfim, está um

pouco extenuado. Percebe-se que é da ordem da manipulação. Acabou o

heroísmo do ultrapassamento da barreira.

É essa orientação que vai nos fazer passar do paradigma da transgressão,

do franqueamento, para o da manipulação, da imagem e do parceiro sexual

como vimos da última vez. A manipulação está no avesso da transgressão e do

ultrapassamento de uma barreira.

Então, aí, vê-se como se pareia manipulação com narcisismo. Mas

sigamos adiante.

O cruzamento com o narcisismo

Em sua conferência, depois de introduzir a relação do escabelo com a

sublimação, Jacques-Alain Miller acrescenta imediatamente que essa

sublimação está “no cruzamento com o narcisismo”. É um narcisismo

modificado pela relação com o mito freudiano, na medida em que não se trata

apenas da imagem, mas da relação de crença que liga o falasser ao corpo. É

um narcisismo em que o corpo é idolatrado em uma relação de

desconhecimento particular que faz o narcisismo freudiano dar um passo,

uma volta a mais.

O anúncio do ensino do passe que aconteceu no último dia 13 de janeiro,

aproximava dois ditos de Lacan bem escolhidos, em que um responde ao

outro e o esclarece. Nesse anúncio, podíamos ver um extrato do seminário O

sinthoma. Lacan declara: “O falasser adora seu corpo porque crê que o

tem”[6]. Se continuamos um pouco mais, as três frases seguintes, vemos: “Na

realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência

mental, é claro, pois seu corpo cai fora a todo instante”. Era o sintoma, é “O

sinthoma”, na página 64. E um ano antes, em uma conferência em Nice,

Lacan enuncia: “o homem ama sua imagem como o que lhe é mais próximo,

isto é, seu corpo. Simplesmente, de seu corpo, ele não tem estritamente

nenhuma ideia. Ele crê que seja eu. Cada um crê que seja ele. É um furo. E

depois, fora, há a imagem. E com essa imagem, ele faz o mundo[7]”. Vocês

percebem a homologia dessas duas frases? No seminário O sinthoma, temos:

“ o falasser adora seu corpo porque crê que o tem”. Na realidade, ele não o

tem, mas “seu corpo é a única consistência – consistência mental, pois seu

corpo cai fora a todo instante” e, em Nice, “o homem ama sua imagem como o

que lhe é mais próximo, isto é, seu corpo. Simplesmente, de seu corpo, ele não

tem nenhuma ideia”. Ele crê que seja eu. Cada um crê que seja ele. É um furo.

E depois, fora, há a imagem. E com essa imagem ele faz o mundo”.

Essa declaração, com essa imagem, “ele faz o mundo”, essa imagem-

mundo vem como um eco do texto de Heidegger, em 1938, sobre A época das

concepções do mundo que é a nossa, é a da ciência. Cito um extrato dessa

conferência na qual Heidegger fala da “imagem-mundo”, o “Weltbild”, o

mundo na medida de uma “concepção” não significa, portanto, uma ideia do

mundo, mas o próprio mundo apreendido como isso de que se pode “ter-

ideia”. O ente, em sua totalidade é, então, tomado agora de tal maneira que só

é verdadeira e unicamente ente na medida em que é retido e fixado pelo

homem na representação e na produção. Com o advento do “Weltbild”

cumpre-se uma atribuição decisiva quanto ao ente em sua totalidade. O ser do

ente é, a partir de então, buscado e encontrado no ser-representado do

ente”[8] – o que Lacan condensa: basta ter uma imagem, isto é, o fundamento

da representação, e com essa imagem se faz um mundo.

Para Lacan, contrariamente a Heidegger, o primordial não é a

representação como tal, mas o corpo, e não a representação-imagem. É por

isso que ele diz: “O homem ama sua imagem como… seu corpo” − seu corpo

como primordial. Esse é o ponto constante dos textos que lemos durante

nosso ano de leitura. Esse corpo é marcado pelo trauma. Lacan pôde dizer

isso de diversas maneiras. Aí, ele o diz como furo. O corpo “é um furo”. E o

falasser tenta preencher esse furo com uma crença. Na fase precedente de seu

ensino, a da estrutura do para-além, Lacan instalava o lugar do gozo como um

vazio, circundado por uma barreira, e se interessava pelos objetos que vêm

povoar esse vazio. Aqui, é primeiro o furo e o que vem se inscrever aí, não

dentro, mas como um fora. É a imagem a primeira representação ou primeira

barreira diante desse furo, essa imagem com a qual ele faz o mundo.

A partir daí é preciso apertar os cintos.

“O S.K. belo, é o que condiciona no homem o fato de que ele vive do ser

(ou que ele esvazia o ser) ”[9]. Isso é o furo de início, o trou-ma – o corpo é o

trouma[10]. Não partimos de manifestações do ser ao modo de Heidegger.

Começamos primeiro por fazer um grande furo. Portanto, o fato de “que ele

vive de ser (ou que esvazia o ser) uma vez que tem seu corpo: inclusive ele só

o tem a partir daí”, a partir do furo. O falasser é um ser de vazio, é o furo da

conferência de Nice, tanto quanto um ter ou uma terência [avoiement][11],

segundo uma grafia de Lacan, segundo uma terência primeira.

A crença no corpo, no escabelo de antes da esfera, é também um

desconhecimento – e esse é um esclarecimento decisivo que Jacques-Alain

Miller nos traz em sua conferência para nos permitir decifrar essa passagem

que vamos ler. Miller a liga ao fato de que ela “se funda no ‘eu não penso’

inicial do falasser – esse ‘eu não penso’ é também um modo de traduzir esse

‘vive do ser’ [vit de l’être]”. O que é esse ‘eu não penso? ’, se pergunta Jacques-

Alain Miller. “É a negação do inconsciente pelo qual o falasser se acredita

senhor de seu ser”. Há no escabelo e na sublimação um modo de erro, de

esquecimento que retoma esse esquecimento do ser do Seminário 4, mas

completamente transformado, que faz com que, ao se apoiar em uma recusa

primária do tecido dos equívocos do inconsciente e, apoiando-se a

acreditando em seu escabelo, o falasser se esqueça para se encontrar, para se

pensar mestre de si mesmo, senhor de seu corpo. Esse esclarecimento é

decisivo porque ele liga o narcisismo da crença no ídolo corporal com a

adoração do corpo como superfície de inscrição do trouma e uma recusa do

“falar sem saber”, para continuar a crer-se mestre de seu ser. É desse modo, e

por essa crença, que se desconhece o fato de que “Falo com o meu corpo, e

isto sem saber. Digo, portanto, sempre mais do que sei”[12]. É um ponto

insuportável. Disso decorre a « negação do inconsciente » que aloja nesse

ponto o esclarecimento de Jacques-Alain Miller. É, portanto, no lugar do “eu

não penso” inaugural que há adesão, a crença nos ideais da cultura, “reserva

de escabelos”. A cultura, como laço social e como discurso, funda-se em um

primeiro insuportável do inconsciente para construir, em seguida, “reservas

de escabelos”.

Lacan considera a sua substituição do falasser, que encontramos aqui: “Daí

minha expressão falasser que virá substituir o ICS de Freud (inconsciente, é

assim que se lê): saia daí então, que eu quero ficar aí. Para dizer que o

inconsciente em Freud, quando ele o descobre (o que se descobre é de uma

vez só, mas depois da invenção é preciso fazer o inventário)”[13]. Lacan

considera aqui a sua contribuição do falasser ao inconsciente freudiano por

um uso irônico e singular da oposição, cara aos empiristas lógicos e a Karl

Popper, entre contexto de descoberta e contexto de justificação[14]. Essa

oposição epistemológica foi introduzida por um empirista lógico, Hans

Reichenbach em um conhecido texto de 1938, Les trois tâches de

l’épistémologie. O contexto da descoberta não era considerado por esse autor

como proveniente da filosofia das ciências, mas da psicologia e das

circunstâncias sociais, o contexto de justificação resultando apenas dos

argumentos utilizados para fazer aceitar a descoberta. O importante é que,

uma vez descoberta, trata-se de saber quais são os argumentos utilizados por

aquele que descobriu algo para fazer com que os outros o aceitem. O contexto

de justificação é este: como se justifica o que foi descoberto por motivos que

dependem de circunstâncias sociais, da psicologia do pesquisador e de tudo

mais que quisermos?

Isso não tem nenhuma importância sob o ponto de vista do empirismo

lógico, evidentemente. É o contrário para Lacan que, de sua parte, toma essa

oposição em um sentido neo-heideggeriano quando diz que quando se

descobre algo, é de uma só vez, de um só golpe. É da ordem do desvelamento,

e é repentino. Não estava aí, está aí. É um golpe para Freud. Blink!, como

diriam os amantes dos processos neuronais. Em seguida, é preciso um tempo

mais longo para o inventário da invenção que aconteceu. O que foi

encontrado? Lacan coloca a oposição deste modo: “Para dizer que o

inconsciente, em Freud, quando ele o descobre (o que se descobre é de uma

vez só, mas depois da invenção é preciso fazer o inventário)”[15]. Ele

considera então que a única forma admissível de falar desse inconsciente

descoberto é dizer – ele justifica o inconsciente como – é “um saber enquanto

falado, como constitutivo do UOM”.

Essa sucessão, essa escansão é conforme ao que precede. De início o que

constitui o UOM, que é o trauma fora de sentido, que provoca um falar sem o

saber, depois o saber se deposita a partir dos equívocos do falado – falado

com “ado”, no passado. O laço do ser com o sentido é confirmado por essa

nova definição da fala. É a fala segundo o seminário Mais, ainda, aquela que é

enlaçada ao gozo, uma fala não plena de verdade, como no primeiro ensino de

Lacan, mas plena de gozo. Daí o fato de que Lacan diga no texto que lemos: “a

fala, é claro, define-se aí por ser o único lugar em que o ser tem um sentido”.

O “é claro” está duplamente conotado. Primeiramente, “é claro” vem por

antífrase, porque Lacan introduz uma definição nova, e não habitual, da fala,

ele a fez preceder de “é claro”. Em seguida porque a fala “se ouve” e, portanto,

há a voz na jogada. O que, após toda a ênfase colocada sobre o olhar e a vista,

a vesguice, a mancada, sobre tudo o que precedia, tudo o que colocava a

tônica sobre o olhar, vem agora em ruptura.

O escabelo e o falasser

Sobre as sutilezas da fala como o único lugar em que o ser tem um

sentido, remeto-os ao curso de Jacques-Alain Miller, “O ser e o Um”,

inteiramente centrado nessa tensão entre o ser que se encontra no lugar do

Outro e o Um que está alhures. Notemos também que o lugar não é mais só o

lugar “do Outro”, mas o lugar “da fala”. O parágrafo se conclui pela

reafirmação da ontologia lacaniana. O ser não é primário; o que é primário é o

‘ter’. Contudo, a torsão ontológica comum segundo a qual o ser vem

primeiramente é autorizada pelo “sentido do ser”. É porque existe um lugar

em que há esse sentido que é dado, que ele aparece depois como primeiro. A

frase de Lacan segundo a qual “o sentido do ser é presidir o ter, o que justifica

o balbucio epistêmico” é notável, especialmente arquitetada, e deve reter

nossa atenção, sobretudo sua primeira parte. Em dez palavras, Lacan articula

cinco que são fundamentais no discurso ocidental: o ser, o ente, o ter, o

mestre (que preside) e, a esse dispositivo filosófico que Lacan questiona,

responde a segunda parte da frase que, por sua vez, inclui a desculpa que

remete à falha fundamental e ao ato falho, e o saber como sempre ligado à

equivocidade que vem ocultar o balbucio epistêmico. O sentido do ser, longe

dos devaneios heideggerianos, é também o gozo do sentido [jouis-sens], e é

precisamente ele que determina e preside, é ele o mestre, segundo a expressão

de Lacan. É ele que determina e precise tudo o que virá do registro do ter, do

possessivo, do “meu” corpo ou “minha imagem”. É preciso então distinguir o

nível fundamental em que o corpo, nós o temos, o que não supõe nenhum

possessivo possível, e depois um segundo nível do ter, aquele em que posso

pensar, por exemplo, nos objetos da representação, pois tenho uma forma,

uma esfera, que preside o Eu [Moi].

Daí o parágrafo seguinte, que exige ainda uma atenção mais detalhada,

que desenvolve esse ponto e começa por situar o primeiro ‘ter’ do corpo, antes

de tê-lo, no sentido secundário, como “meu” corpo, entre em jogo. “O

importante, de que ponto – diz-se “de vista” – deve ser discutido? O que

importa, pois, sem esclarecer de onde, é perceber que UOM tem um corpo – e

que essa expressão permanece correta (...)”

Lacan parte de um nível em que não há eu, há um partitivo[16]: “UOM

tem um corpo”. É uma atribuição que precede tudo ter. Essa atribuição, Lacan

quer defini-la como anterior ao estádio do espelho, antes da relação com a

vista, antes da relação com o ponto de vista, o ponto de onde somos vistos.

Philippe Lacadée havia feito muita coisa com esse ponto de onde etc. Mas aí,

não há mais disso. Portanto, importa sem precisar de onde. É o mesmo ponto

que é visado em “Radiofonia” com o objeto a como incorpóreo que funda o

corpóreo, e no texto seguinte que lemos com o “isso se sente aí” [ça s’y sent].

Pouco importa de onde. Antes de toda entrada em jogo do olhar e do “ponto

de vista”, o corpo é o produto de uma operação de impacto do dizer. A escolha

de Lacan é destacada pela equivocidade em torno do ponto [point][17]. A

expressão francesa “ponto de vista”, se for dividida, faz aparecer a

equivocidade de ponto [point], entre o ponto como lugar, a “pequena parcela

de”, e o ponto [point]como segundo elemento da negação. É aí que o

esclarecimento de Jacques-Alain Miller é crucial. “O escabelo é a sublimação,

na medida em que ela se funda sobre o eu não penso primordial do falasser”.

O ponto [“Point”] do início dessa frase, “o importante de qual ‘ponto’ – ele

coloca um travessão –, deve ser entendido como recusa, e não como “ponto de

vista”.

Lacan sublinha que seu partitivo: “UOM tem um corpo”[18] é uma

expressão que permanece correta. Isso deve ser entendido no sentido forte,

com todos os equívocos da expressão, da expressão expressionista, mas

sobretudo da expressão fórmula lógica, destacada pelo correto que a adjetiva.

“A expressão permanece correta”. Maneira de nos fazer ouvir que Lacan

reformula, nesses dois parágrafos que acabamos de ler, a lógica que em seu

primeiro ensino ele retomava de Freud, sobre o juízo de atribuição e o juízo

de existência. Remeto-os às páginas mais familiares dos Escritos, em que

Lacan se apoiava em Hyppolite para se interessar pelo balbucio epistêmico

relativo ao ser e ao ter sob a forma legada por Freud através da filosofia de

Brentano. O ponto fundamental dizia respeito, na época, à abolição simbólica,

causada pela Verwerfung e suas consequências sobre o juízo de atribuição de

um ter, a Bejahung. Cito essas páginas para lembrar a música do primeiro

ensino, tocando-as em uma melodia quase wagneriana em relação ao

condensado que lemos em que, no entanto, enlaçam-se as relações do ser e do

ter em frases de dez palavras. Isso não é wagneriano, é Debussy. É francês,

muito francês, “A Verwerfung, portanto, corta pela raiz qualquer

manifestação da ordem simbólica, isto é, a Bejahung, que Freud enuncia

como o processo primário em que o juízo atributivo se enraíza, e que não é

outra coisa senão a condição primordial para que, do real, algo venha se

oferecer à revelação do ser, ou, para empregar a linguagem de Heidegger, seja

deixado ser. Pois é justamente a esse ponto recuado que Freud nos leva, uma

vez que é só depois dele que se poderá encontrar o que quer que seja como

ente. Tal é a afirmação inaugural, que já não pode ser renovada senão através

das formas veladas da fala inconsciente (...)”[19].

É desse modo que é preciso entender o Einbeziehung ins Ich, introdução

no sujeito, e a Ausstosung aus dem Ich, expulsão do sujeito. É essa instância

que constitui o real... pois o real não espera, e particularmente não espera o

sujeito, uma vez que não espera nada da fala. Mas ele está aí, idêntico à sua

existência, ruído no qual se pode tudo ouvir, e prestes a transbordar de seus

estilhaços o que o “princípio de realidade” aí construiu sob o nome de mundo

exterior”.[20] Nessa abordagem Lacan funda brilhantemente sua teoria da

alucinação: o que não foi admitido no simbólico, reaparece no real. E

esclarece, de forma poderosa, com esse magnífico desenvolvimento, a

alucinação do homem dos lobos. Mas esse é um momento de seu ensino em

que as três consistências não são equivalentes e no qual o grampo

simbólico/real não está determinado como acessível ao processo analítico

pelo imaginário e sua raiz de corpo.

Gostaria de chamar a atenção para essa frase que termina o parágrafo

que li e que permanece como um ponto de ligação para Lacan, esse real como

para-além da realidade, no qual se pode “tudo” ouvir. Esse real que “(...) está

aí, idêntico à sua existência, ruído no qual se pode tudo ouvir, e prestes a

transbordar de seus estilhaços o que o “princípio de realidade” aí construiu

sob o nome de mundo exterior” [21].

Reencontramos os mesmos mecanismos da constituição que Lacan, no

Seminário O sinthoma destacava: há o furo, em seguida há uma imagem que

vem como de fora, e dessa imagem se constrói um mundo. Essa estruturação

da constituição do mundo pelas relações do ser e do ter, que em 1955 ele

pegava por meio dessa lógica Bejahung-Ausstosung, agora ele retoma de

outro modo. Devemos aproximá-la da frase que encontramos, escolhida pelos

AE como epígrafe de sua soirée: “o homem ama sua imagem como o que lhe é

mais próximo, isto é, seu corpo. Simplesmente, de seu corpo, ele não tem

estritamente nenhuma ideia. Ele crê que seja eu”. Este é justamente o

mecanismo do Ich, do Lust-Ich, como se compõe etc. Não se trata mais de

uma ideia prévia, são operações que incidem sobre o que é repelido e o que é

admitido. “Cada um crê que seja ele. É um furo. E depois, fora, há a imagem.

E com essa imagem, ele faz o mundo” [22].

O texto publicado em 1956 destaca também os dois tempos do ter ou da

representação e a questão do dentro e do fora. “Primeiro houve a expulsão

primária, isto é, o real como externo ao sujeito. Depois, no interior da

representação (Vorstellung), constituída pela reprodução (imaginária) da

percepção primária, a discriminação da realidade (...). Mas, nessa realidade

que o sujeito tem que compor segundo a gama bem temperada de seus

objetos, o real, como suprimido da simbolização primordial, já está presente.

Poderíamos até dizer que fala sozinho” [23] . Temos aí uma homologia entre o

furo, a imagem, a constituição do mundo a partir da representação-imagem

que permite em seguida que o sujeito possa determinar objetos que possa

dizer seus a partir de um registro de ter que é absolutamente disjunto – a

terência [avoiement] primeira. Seria preciso retomar ponto por ponto a

homologia e as diferenças entre o texto dos Escritos e o dos Outros escritos,

partindo do gozo como o que muda tudo e determina a báscula em direção ao

“Outro Lacan”. Conforme apontou Jacques-Alain Miller, Gozo só está no

índice ponderado dos Escritos na medida em que se liga à castração[24] e é

em seguida que ele aparecerá na sua dimensão não negativável – justamente,

não marcada pelo menos fi da castração –, ocupando o lugar de uma

afirmação anterior à Bejahung. Seria preciso esse esforço de leitura para

seguir Lacan ao repensar a constituição do mundo daquele que ele chama

com três letras, UOM, a partir das três consistências tornadas equivalentes: R,

S e I. É isto que ele coloca na epígrafe do desenvolvimento que seguimos: “Ele

tem (inclusive seu corpo) por pertencer ao mesmo tempo a três... chamemo-

las de ordens”.[25] Mas essa entrada no detalhe da homologia dos textos dos

Escritos e dos Outros escritos supunha sem dúvida dedicar nossas leituras

lacanianas unicamente ao texto de “Joyce, o Sintoma”. Preferi escolher a

transversalidade, para promover a transversalidade dos conceitos que

Jacques-Alain Miller valoriza, e que a unidade, em contrapartida, seja dada

por sua Conferência.

O corpo e ALM. Crítica do gozo do escabelo

Continuemos a ler o que o homem tem: “UOM tem um corpo (...),

embora a partir daí uomem tenha deduzido que era uma alma – o que, é

claro, “em vista de” sua vesguice, ele traduziu como se também ele tivesse

essa”[26]. Esse encadeamento que também aí requer toda a nossa atenção,

supõe o que o precede. É o ponto em que se enlaça a recusa do saber sobre o

despedaçamento da experiência de gozo equívoco e a crença na unidade do

corpo, na sua forma primordial, que desde Aristóteles se chama alma. E aí

ainda, Lacan nomeia os dois objetos que são o ouvido, a voz e o olhar, a vista,

como o que ele chama de vesguice, outro nome da mancada, que inclui o

mesmo bis, o mesmo “duas vezes”, o mesmo redobramento que estava em

funcionamento inclusive captado de alguma forma em 56. Evidentemente

vocês são sensíveis ao partitivo. Lacan não diz ‘não’: “ele traduziu que essa

alma, ele também a tinha”, mas ele diz que a traduz de isto que essa alma, ela-

também, ele a tinha. Por que chamar de tradução? Talvez porque nesse ponto

que se desvela o porquê Lacan parte do UOM em três letras. É para fazer

assonância, ressonância, da tradução primordial entre ALM e UOM. A

ambição de Lacan é nos ajudar a encontrar, aquém da tradução, metáfora de

ALM/UOM. ALM sobrepujou o fundamento de UOM, no qual a constituição

de UOM deve ser recolocada em seu lugar lógico, que escapa a toda sexuação.

O comentário acrescentado por Jacques-Alain Miller sobre esse

momento de tradução que Lacan marca, tradução que é sempre traição, é

decisivo. “É a negação do inconsciente por meio da qual o falasser se crê

senhor de seu ser. E, com seu escabelo, ele acrescenta a isso o fato de se crer

um senhor belo”.

Esse domínio, Lacan aborda por meio do “fazer com” que vem do

segundo tempo do ter. “Ter é poder fazer alguma coisa com”. Esta frase

ressoa, toma suas distâncias, subverte o que era em certo momento uma

evidência do estruturalismo: “Saber é poder”. De modo consistente para

Lacan, o saber vem no a posteriori do equívoco e do mal-entendido. Para

Lacan, saber é poder se enganar se fartar. Saber não é poder. Saber, o único

poder que tem, é de enfim se enganar. Vocês veem, vocês teriam dito isso a

Foucault, ele não teria... Enfim, não era seu ponto de partida. Primeiro há o

ter como poder de ‘fazer com’. Estamos longe do poder, de poder ser o mestre,

e das relações entre dominantes e dominados, e toda a parafernália que vem a

partir do momento em que se tem: “saber, é poder”. Foucault, Bourdieu, têm

a mesma linhagem. Há primeiro o ter como poder de ‘fazer com’. É por isso

que a expressão “saber fazer com” o sintoma, que utilizamos sem refletir

sobre ela, merece, pelo contrário, toda a nossa atenção, merece que nos

detenhamos em seu labirinto. O “saber fazer” não vem imediatamente. É

preciso primeiro que haja articulação com a modalidade do possível.

Isso é o que se tem depois, mas desdobremos a condensação lacaniana. A

alma, segundo Aristóteles, era o ponto em que se enlaçavam o corpo e o

intelecto, os noumena, que são as ideias que a inteligência (nous), que é uma

espécie de órgão suplementar ao modo de Chomsky, permite ver. Ela vê as

ideias, apreende, então, que a vista só pode alcançar as coisas visíveis, os

oromena. Os noumena são as Ideias que não podemos perceber pelos

sentidos, mas apenas pelo intelecto[27]. É esse enlace entre visão e intelecto

que Lacan desfaz ao destacar ainda que o mundo como conjunto de possíveis

não é uma percepção. Uma visão das ideias graças ao instrumento de visão

superior que é a alma. Como dizia um platônico francês que Lacan cita mais

adiante, “Deus fez a razão para perceber a verdade como ele a fez, o olho para

ver e a orelha para ouvir”.[28]

Lacan inventa para nós o termo “avisão” [avision] para se distanciar de

qualquer percepção das ideias. Esse vocábulo condensa o verbo avisar, que

tem duplo sentido em francês. Em primeiro lugar, é o de sublinhar um

momento de descoberta pela visão, a vida avisada, é realmente o instante de

ver. É um aperceber mais do que um ver, um “começar a olhar”, diz o

dicionário Le Robert. Para nós, é o instante de ver. Em seguida, avisar é

também refletir. “É preciso avisar ao mais apressado”, diz Proust. Esse é o

tempo de compreender, e só Deus sabe se ele o considerava. O avisiont de

Lacan, com um ‘t’ no final, é um refinamento. Ele tem homofonia com avisão

[avision], com um ‘s’, sem o ‘t’ no final, que já é uma nova palavra, uma visão

marcada pelo ‘a’ privativo: uma ausência de visão. E, se acrescentamos, como

o faz Lacan, o ‘t’ final, pura letra muda, nós apreendemos que essa ausência

de visão é também bastante determinada por uma ausência de visada. Ela se

produz sem que vejamos o que quer que seja (verbo em homofonia com

visiont). Da mesma forma, é a ausência se ideia do corpo que faz com que

acreditemos em um corpo que seria Eu; também não percebemos as ideias no

mundo, o que torna a constituição do mundo possível a partir de um “não”

[ne pas]. Acreditamos em um corpo que seria Eu: porque há um furo, não há

ideia do corpo, e portanto é preciso acreditar nisso. E, bom, o mesmo se dá aí:

é porque não se tem nenhuma visão desse conjunto de possíveis, mas que,

pelo contrário, como diz Lacan, é preciso primeiro definir o possível a partir

de um “não” [ne pas]. “A única definição do possível é que ele possa não [ne

pas] ‘ter lugar’: o que é tomado pelo lado contrário, haja vista a inversão geral

do que é chamado pensamento”[29]. E aí, Lacan coloca em oposição Platão e

Bacon. Daí a frase divertida: “Aristóteles, Nãbesta [Pacon], ao contrário do B

de rima igual”, que faz pensar também na quadra que muito lhe agradava: ‘De

Malebranche ou de Locke, qual é o mais astuto, qual é o mais louco? É da

filosofia divertida e muito potente. Então por que considerar que Platão não é

Pacon se se compara a Bacon?’ Lacan apenas criticava, sem dúvida, seu

Novum Organum, no qual ele fundou sua abordagem das ciências e do

mundo. O guia de Lacan aí, sem dúvida, é Koyré. Para as questões de ciência,

ele confiava em Koyré. No início de seus Etudes galiléennes, Alexandre Koyré

declara: “Bacon, iniciador da ciência moderna” – como sintagma – é uma

piada, e de mal gosto, que muitas vezes os manuais ainda repetem. De fato,

Bacon nunca entendeu nada de ciência. Deixo para Koyré sua

responsabilidade. Os ingleses, claro, os epistemólogos ingleses já

acrescentaram alguns volumes de biblioteca para explicar que: Koyré, em

certo sentido, tem razão, mas em outro, está errado, e mesmo assim, foi

Bacon quem fundou a ciência moderna, e com ele, a Inglaterra inteira. Koyré

se fundava nisso porque outros autores, em particular, por exemplo, aqueles

que fizeram a tradução francesa da Novum Organum, de publicação

relativamente recente, enfim, há quinze anos, destacam o quanto sua filosofia

natural o conduz a preferir a metafísica às matemáticas em seu discurso do

método pessoal. “Certamente, Bacon rejeita Copérnico, desdenha Gilbert –

que era um físico experimental, matemático, e critica Galileu”.[30]

Mais do que esse νοὺϛ de Platão, que supõe combinar percepção dos

sentidos, coletânea dos sense data na experiência, e visão das verdades

superiores pelo corpo, Lacan prefere o nó a três. E ainda faz uma observação

que merece que nos detenhamos sobre ela: “Nó entre que e quê, não digo, na

impossibilidade de saber, (...)”. Mesmo assim, é surpreendente. Desde o

começo ele nos diz que é preciso um nó de três com R, S e I, por que aí,

brutalmente, ele nos diz: “Nó entre que e quê, não digo”? Mas, felizmente, ele

continua. “(...) mas tiro proveito de que a trindade, UOM não pode deixar de

escrevê-la, desde o momento em que se imunda [s’immonde]. Sem que a

preferência de Victor Cousin pela triplicidade acrescente algo a isso: mas vá

lá, se ele quiser, já que o sentido [sens] aí são três; o bom senso [bon sens],

bem entendido”.[31] Então, o que isso quer dizer? Por que dizer “Nó entre

que e quê, não digo, na impossibilidade de saber, (...)”? E é então que Lacan

martela que se trata de R, S, I, que se enlaça a três. Para sabe-lo, é preciso ler

mais longe. Ele coloca na frente o três do nó, a trindade, da qual ele distingue

a triplicidade do caro Victor Cousin. A trindade, Lacan a coloca fora de

sentido. Desde UOM até RSI, é fora de sentido. Trata-se de Nomes. Vimos

isso na aula passada. Nomes puros que em última instância repousam sobre o

nome próprio final e portanto, fora de sentido. Em contrapartida, a

triplicidade é plena de sentido: o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Essa triplicidade

vem do curso de estética de Victor Cousin[32] dado pela primeira vez em

1818, e no qual esse brilhante aluno do Liceu Carlos Magno, puro produto da

Educação National napoleônica, lança seu método, que havia sido uma

enorme sensação. Fundar a verdade sobre um método não dialético, não

hegeliano, qualificado de eclético, em que, enfim, é pelo bon sens que ele se

orienta[33]. Pierre Macherey, excelente professor que tive a sorte de ter,

explica isto muito bem na revista Corpus, que acompanhava o corpus das

edições dos filósofos franceses. Um pensador crítico, Bakunin, anarquista e

contrário a qualquer pensamento oficial, nos disse isso ao inverso. Ele fala de

Cousin dizendo: “Orador superficial e pedante, inocente de qualquer

concepção original, de qualquer pensamento que lhe fosse próprio, mas muito

forte em lugar comum, que cometeu o erro de confundir com o bom senso,

esse filósofo ilustre preparou sabiamente, para o uso da juventude estudantil

francesa, um prato metafísico ao seu modo, e cujo consumo, tornado

obrigatório em todas as escolas do Estado, submetidas à Universidade,

condenou diversas gerações que se seguiram e uma indigestão do

cérebro”[34]. Isto é para as neurociências o efeito positivo sobre os neurônios.

Evidentemente, Bakunin, como é anarquista, ri-se de tudo e deve ter

devorado o ensino de Cousin. Mas, no início, quando Cousin falava em seus

primeiros seminários, ele teve Balzac como aluno. Em contrapartida, Balzac

apreciara muito seu ensino, que seguiu de 1816 a 1919. Balzac foi muito

impressionado por Cousin, ele tinha uma boa impressão. Portanto, tudo

acaba em fabricar efetivamente pratos indigestos. Mas, quando Lacan retoma

com ironia o “bom senso” ao modo de Victor Cousin, é para introduzir o

sentido lacaniano, isto é, o gozo-sentido, o gozo. É o que Jacques-Alain Miller

esclarece de modo magistral em sua conferência. Depois de introduzir o

escabelo da mesma forma que o sinthoma, como conceitos da época do

falasser, Miller os separa pelo registro de gozo que lhes é próprio. O escabelo

é “o falasser sob sua face de gozo da fala. Esse gozo da fala origina os grandes

ideais do Bem, do Verdadeiro e do Belo” – é ao atordoar palavras ao modo de

Bakunin ou então se relemos Macherey que explica bem como construiu seu

sistema anti-cético. Isto quer dizer que ao encurralar a via de qualquer

reflexão cética. Mas o essencial é pelo gozo da fala, do blá-blá-blá que se chega

aos grandes ideais –, “O escabelo está do lado do gozo da fala que inclui o

sentido. Em contrapartida, o gozo próprio ao sinthoma exclui o sentido”.

Encontramos aí uma crítica voltada para a nova forma de sublimação que

implica o escabelo. Ela implica um gozo ligado ao sentido. Isto pelo que é

preciso passar antes de alcançar o fora de sentido. E é por isso que Lacan

pode dizer ao mesmo tempo: eu me sirvo do nó, que é composto de três

ordens, R, S, I, mas não digo de que a quê faço o nó. É por isso que ele pode

dizer: “Nó entre que e quê, não digo, na impossibilidade de saber, (...)”. Mas é

porque é esse nó que permite produzir o gozo em sua articulação.

Desse modo, falar com seu corpo-escabelo, é passar pelos desfiladeiros

da fala sustentada pela dimensão do sentido. Este entendido como no último

ensino de Lacan, isto é, falas de gozo e gozo da fala, que vai engendrar os

universais. Nada de visões sublimes à moda de Platão, ou de neuro-

darwinismo ao modo de Jean-Pierre Changeux, que quer engendrar pelos

meios da biologia o sujeito do Belo, do Verdadeiro, do Bem, definido e

garantido simplesmente pela adequação do pensamento com o mundo. É

também um argumento contra-cético. Nessa perspectiva, a de Changeux, que

quer fazer com que representações sejam garantidas e, portanto, nos levem

inelutavelmente ao Belo, ao Verdadeiro e ao Bem, elas são garantidas por um

processo não de impressão, mas de seleção biológica na interação com o

mundo. “Quando interage com o mundo exterior, nosso cérebro se desenvolve

e funciona segundo um modelo de variação-seleção, por vezes denominado

‘darwiniano’. Seguindo esse esquema, (...), a variação, a gênese de uma

diversidade de formas internas precede a seleção da forma adequada. As

‘representações’ se estabilizam em nosso cérebro não simplesmente por

‘impressão’, como sobre um pedaço de cera, ms indiretamente, em seguida a

um processo de seleção”. [35] Nessa perspectiva, as leis da razão coincidem

com o mundo ao longo do processo de seleção que teria podido fazer de modo

que as leis fossem de outra maneira se o mundo tivesse se dado de outra

forma.

Nem um, nem outro, nem visio, nem neuro, falar com seu corpo-escabelo

supõe um gozo particular, que se experimenta com o corpo: o gozo da fala.

[1] Freud, S. « Os instintos e suas vicissitudes », In Obras psicológicas completas de

Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987[1915], V.XIV, p.137-164.

[2] Freud, S. “Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna”, In Obras psicológicas

completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987[1908], p.193.

[3] Miller, J-A. Curso « Do Sintoma à fantasia », Sessão de 12 de janeiro de 1983, inédito.

[4] Miller, J-A. Curso « O parceiro sintoma », sessão de 4 de março de 1998, inédito.

[5] Miller J-A. Discussão com P.-G. Guéguen in : « Le partenaire symptôme 1998 ou en

1997 ». A verificar.

[6] Lacan, J. O seminário, livro 23, O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, p. 64. Na edição

francesa, p.66 : « Le parlêtre adore son corps parce qu’il croit qu’il l’a. En réalité, il ne l’a

pas, mais son corps est sa seule consistance - consistance mentale bien entendu, car son

corps fout le camp à tout instant. »

[7] Lacan, J. « O fenômeno lacaniano ». Opção lacaniana, número 68-69, dezembro 2014,

p.18.

[8] Heidegger, M. « L'époque des "conceptions du monde » in : Chemins qui ne mènent

nulle part. Paris : Idées/Gallimard, 1980, p.117.

[9] N. T. No original há uma homofonia entre estas duas frases, que não é possível

reproduzir em português: « il vit de l’être » e « il vide l’être ».

[10] N.T. Aqui outro jogo de palavras, entre furo (trou) e trauma, daí trouma, também

impossível de manter em português.

[11] N.T. Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.561.

[12] Lacan, J. O seminário, livro 20, mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, [15 de maio de

1973, p.161.

[13] N.T. Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.561.

[14] Reichenbach, Hans. [1938] « Les trois tâches de l’épistémologie ». In Philosophie des

sciences - Théories, expériences et méthodes, textos reunidos por S. Laugier e P. Wagner.

Vrin, 2004, p.307.

[15] N.T. Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.561.

[16] N.T: O partitivo é um artigo cuja função é designar uma quantidade indeterminada,

uma parte indefinida retirada do todo: du pain; de l’argent; cuja tradução seria, no caso,

simplesmente pão, ou dinheiro No caso, a frase referida por Laurent é: “de LOM a un

corps”.

[17] N.T. Em francês, a mesma palavra que designa ponto (point), também designa uma

negação (ne... point).

[18] N.T. Em francês: « de LOM a un corps ».

[19] N.T. Lacan, J. “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite” [1954]. In: Escritos. RJ:

Zahar, p.389-390.

[20] Lacan, J. “Resposta ao comentário de Jean Hyppolite” [1954]. In Escritos. RJ: Zahar,

p.389-390.

[21] Ibid., p. 390.

[22] Lacan, J. « O fenômeno lacaniano », op.cit, p.18.

[23] Lacan, J. Escritos, p.391.

[24] Ibid., p.915.

[25] Lacan, J. “Joyce O Sintoma”. In: Outros Escritos, p.561.

[26] Ibid., p.562.

[27] Article « Noumène » in Les Notions philosophiques, dictionnaire 2, PUF, 1990,

p.1772.

[28] Cousin, V. Du vrai, du beau et du bien, (1853).

[29] Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”, op.cit., p.562.

[30] Introduction de Michel Malherbe et Jean-Marie Pousseur à Bacon, Novum Organum,

PUF, 1986, p.32.

[31] Lacan J., Autres Ecrits p. 566.

[32] Du vrai, du beau et du bien (Cours de philosophie professé à la Faculté des Lettres

pendant l'année 1818 par Victor Cousin sur le fondement des idées absolues du vrai, du

beau et du bien, publié par Adolphe Garnier, original: Du vrai, du beau et du bien, Paris

1836).

[33]Macherey, Pierre. In Corpus n° 18-19 « sur Victor Cousin » p. 29-49, disponível no site

stt.recherche.univ-lille3.fr « Cousin reafirmava em seguida, sempre depois de Royer-

Collard, a exigência de confiar no senso comum: « A filosofia moderna era cética desde

então porque não admitia outra evidência natural que a da consciência e da razão. A

hipótese das ideias não é uma máquina imaginada para atacar e inverter o mundo, mas

para destacá-lo e protegê-lo; ela não era destinada a destruir a percepção, mas a fazer-lhe

suplência, quando a percepção foi destruída, e servir de escudo contra o ceticismo, escudo

impotente que não substitui o verdadeiro, aquele que a própria natureza colocou no

entendimento de todos os homens que não pode ser abalado pelo sofisma, e que, ao cair,

necessariamente leva consigo todas as realidades externas ». Encontrava-se aí a

ressonância das críticas de Reid contra a doutrina intelectual da representação e seu

‘ideísmo, ao qual ele criticava por subordinar a existência do mundo externo a critérios

racionais, e de conduzir deste modo a uma dúvida universal: e para escapar a esse risco,

Reid havia preconizado restabelecer outras formas de certeza, pré-racionais por princípio.

Cousin retomava, então, esse argumento, sem nada acrescentar. No máximo, completava

ele, nessa passagem de seu curso, a referência a Reid por uma breve alusão a um

“metafísico francês contemporâneo”: sem dúvida, Maine de Biran, cujas concepções, ainda

ignoradas do grande público, era ainda pela primeira vez evocadas em um enquadre

oficial”.

[34] Bakounine M., Dieu et l’Etat, 1882.

[35] Ricœur, P. e Changeux, J-P. « Ce qui nous fait penser », p.109, apud Catherine

Malabou, Epigénèse et rationalité, PUF, 2014, p. 259.