Fábio Vieira - Distâncias Egípcias,Encontros Núbios Interações Culturais e Fronteiras Étnicas No Novo Império Egípcio

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Fronteiras étnicas e interações culturais entre o Egito e a Núbia sob o Reino Novo egípcio

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  • Plthos, 4, 1, 2014 www.historia.uff.br/revistaplethos

    ISSN: 2236-5028

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    Distncias egpcias, encontros nbios: interaes culturais e fronteiras tnicas no Novo Imprio egpcio

    Fbio Amorim Vieira (UDESC)

    Resumo: Caracterizado pelos expressivos contatos egpcios com povos estrangeiros, o perodo denominado de Novo Imprio, entre 1580 e 1080 a. C., fornece evidncias do processo de estabelecimento de relaes tnicas e intercmbios culturais entre os povos do Egito e os seus vizinhos estrangeiros do sul, na Nbia. Este artigo anseia perceber as fronteiras culturais, formaes de identidades tnicas e relaes de contato edificadas, mantidas e transformadas entre egpcios e nbios no contexto do nordeste saariano.

    Palavras-chave: Egito, Nbia, frica Antiga, Etnicidade, Cultura.

    Egyptian distances, Nubian encounters: cultural interactions and ethnic boundaries in the Egyptian New Kingdom

    Abstract: Characterized by expressive Egyptian contacts with foreign peoples, the period called New Kingdom, between 1580 and 1080 BC, provides evidence of the establishment process of ethnic relations and cultural exchanges between the people of Egypt and their southern foreign neighbors in Nubia. This article yearns to understand the cultural boundaries, formation of ethnic identities and contact relationships built, maintained and processed between Egyptians and Nubians in the context of Saharan northeast.

    Keywords: Egypt, Nubia, Ancient Africa, Ethnicity, Culture.

    ***

    J havia passado muitos anos desde que Sanehet, servidor da princesa Neferu, fugira pelo

    deserto egpcio rumo s terras estrangeiras. A velhice o alcanava e, apesar das bem aventuradas

    relaes desenvolvidas em solo forasteiro, o homem nascido na terra do Nilo clamava: aquele

    dos deuses que ordenou aquela fuga: s misericordioso e leva-me (de volta) terra natal!

    Certamente tu deixars que eu (re)veja o lugar onde reside o meu corao! O que mais

    importante do que ser enterrado o meu corpo na terra onde nasci? (CARDOSO, 1994: 134). O

    rei do Egito, ao saber da circunstncia de Sanehet, manda um decreto real a este homem egpcio

    em terras estrangeiras, onde diz: Volta para o Egito! (Re)v a Residncia onde nasceste! (...) No

    Morrers num pas estrangeiro. No sers depositado numa pele de carneiro, ao ser feito teu

    tmulo (CARDOSO, 1994: 136).

    Sanehet um dentre os tantos homens e mulheres eternizados nos vestgios

    documentais, escritos e imagticos, da antiga sociedade faranica. Desde as colossais paredes de

    templos at a delicada ourivesaria real, o Egito dos faras foi descrito por milnios nos registros

    escritos e visuais de seu povo. Contudo, Sanehet, aqui, um dos sujeitos despertados da tinta

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    dos escribas sob a especificidade de ser evidenciado a partir de uma escrita em particular: aquela

    que traz indcios acerca dos intercmbios culturais entre os egpcios e os outros povos que os

    cercavam e com quem mantinham relaes de contato. Indcios estes que, encontrados em

    documentos, nos advertem do trnsito de relaes com as populaes estrangeiras, a partir dos

    quais os egpcios construam suas fronteiras tnicas, edificadas de forma situacionalmente

    coletiva e contrastiva s prticas culturais do outro (CARDOSO, 2007: 9-10; SMITH, 2007: 221).

    Na demarcao dos limites entre Ns e Eles que incluses e excluses formadoras da

    fronteira podem variar atravs de interaes sociais interiores e exteriores sob mltiplos

    elementos culturais (BARTH, 2011: 195-197), a refletirem o dinamismo presente na

    subjetividade de demarcaes fronteirias tnicas. Estes limites e dinamismos pautam-se em

    prticas culturais incessantes ante a tramas de significados (GEERTZ, 1989: 14-41), alm de

    interaes sociais, orquestrando processos de etnicidade (POUTIGNAT; STREIFF-FENART,

    2001: 111). Dessa maneira, a etnicidade, diretamente associada cultura, dinmica e, portanto,

    mutvel em sua essncia coletiva, identitria e distintiva.

    A perspectiva referente etnicidade presente neste texto permear a noo de interaes

    e constantes manutenes de fronteiras e identidades tnicas, vistas aqui enquanto associadas a

    atribuies e conjuntos culturais especficos e significativos (POUTIGNAT, STREIFF-

    FENART, 2011: 111-113).

    Estudos acerca da antiga sociedade egpcia e seus povos vizinhos por vezes tm utilizado,

    equivocadamente, a correspondncia entre diferenciaes tnicas dos antigos com conceitos

    raciais modernos. Dessa forma, egiptlogos e estudiosos do tema tm tratado os nbios,

    denominados pelos egpcios com o termo Nehesi, a partir da categoria racial negros (SMITH, 2007:

    220). Ao enxergar estes povos do continente africano a partir de critrios raciais, restringem-se as

    diversas experincias de contato e transformaes existentes sobre as fronteiras traadas entre

    tais populaes. A entender as designaes a partir do prprio contexto de sua formulao,

    pautando-se em uma perspectiva tnica e cultural, propomos direcionar o olhar para as

    populaes do Nilo atravs de lentes que evitem abreviar estes sujeitos do passado por

    definies e aspiraes prvias do presente.

    possvel encontrar indcios que permitem compreender as fronteiras culturais e as

    relaes de contato mantidas entre os povos do Egito e os seus vizinhos estrangeiros localizados

    ao sul, ponto rara ou brevemente colocado na historiografia ocidental. Sem a pretenso de

    esgotar a discusso, mas, principalmente, na tentativa de lanar propostas para uma outra anlise

    possvel, intenciona-se indicar questes em torno da formao de identidades tnicas atravs da

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    proximidade egpcia com o outro nbio, atravs da anlise de documentos concernentes prpria

    antiguidade destes povos, reflexos do trfego de relaes to dinmicas quanto suas culturas,

    vistas aqui como teias de significados tecidas e atreladas a eles; impossibilitadas de se determinar,

    mas passveis de interpretaes (GEERTZ, 1989: 14-41). Por meio de uma descrio densa

    (GEERTZ, 1989: 17), prope-se interpretar os significados atrelados aos fluxos de identificao

    e distino evidenciados nos documentos, vestgios de especificidades culturais e resignificaes

    tramadas de maneira ativa e coletiva por homens e mulheres de sociedades em movimento.

    As fontes escolhidas para anlise se referem ao perodo hoje conhecido como Novo

    Imprio ou Reino Novo, respectivo poca das XVIII, XIX e XX dinastias faranicas,

    aproximadamente entre 1580 e 1080 antes da era crist (MOKHTAR; VERCOUTTER, 1983: xliv).

    Marcado pelo nascimento da XVIII dinastia, tal momento se caracteriza, entre outras questes,

    por corresponder ao contexto posterior aos 200 anos de dominao estrangeira no Egito,

    quando os egpcios reconquistam o imprio aps a invaso e controle governamental dos

    asiticos hicsos. Nesse perodo de reconquista, o contato e a presena de estrangeiros no reino

    aumentaram significativamente, no somente pela permanncia de asiticos resultante do perodo

    dominado pelos hicsos, como aps a restaurao do controle egpcio, quando do fortalecimento

    das relaes do Egito com as terras estrangeiras, especialmente em regies nbias (SANTOS,

    2012: 61).

    As relaes entre egpcios e nbios existiam desde o terceiro milnio antes da era crist,

    tornando-se pontuais nesse perodo em decorrncia do florescimento de um reino nbio

    destacado do Egito durante os dois sculos de domnio hicso, quando coube aos governantes

    egpcios da reconquistadora XVIII dinastia reatar os laos imperiais de controle com o sul

    (CARDOSO, 2010: 22), descortinando relaes de contato entre os sujeitos destas sociedades.

    Entre as fontes egpcias selecionadas para a anlise encontram-se documentos escritos e

    pictricos. Em relao a estes, diversos apresentam aluso aos nbios, nos quais os artistas

    apreciavam retratar os aspectos distintivos de homens e mulheres, egpcios e nbios, com quem

    dividiam o deserto. Tambm sobreviventes esto obras de literatura, manuscritos e outros

    produtos bibliogrficos do perodo, produzidos pela cultura letrada egpcia.

    Nas pginas a seguir, observando fontes escritas, pictricas e arqueolgicas do perodo,

    pretendemos apontar indcios que tornem possvel perceber de que maneira ocorreram as

    relaes entre estes dois grupos, a tentar perceber traos indicirios, prenncios e significados

    desta constituio identitria, refletida em experincias e aes de ecos inter-fronteirios.

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    O EGITO E A NBIA: UM CENRIO DE INTERAES

    Em 1926 o egiptlogo estadunidense James Breasted afirmava categoricamente que o

    imprio egpcio permanecia separado do que chamou mundo negro da frica por uma barreira

    desrtica intransponvel, bloqueando qualquer influncia africana precoce civilizao egpcia

    (1926: 113). Quarenta e seis sculos antes de Breasted, entretanto, o fara Sneferu, da nascente

    IV dinastia, anuncia em uma estela a conquista de 20.000 cabeas de gado e 7.000 cativos em

    uma expedio militar na Nbia, ao sul do Egito (BRISSAUD, 1978: 64; SILVA, 2002: 21).

    No s os hierglifos do governo de Sneferu nos contam acerca de relaes entre o

    Egito faranico e a Nbia no continente africano. J nos primeiros momentos de unificao

    faranica, os nbios subsistem nos documentos escritos e imagticos. De expedies militares

    at a busca comercial por materiais caros ao Egito e presentes entre as populaes do sul do

    Nilo, as interaes entre egpcios e nbios se configuraram desde o limiar da documentao

    disponvel (BRISSAUD, 1978: 60-64).

    Percebendo o meio ambiente como um fator biolgico e social aos diversos dinamismos

    presentes no contexto (SERRANO; WALDMAN, 2007: 38-75), torna-se vlida no somente a

    apreciao geogrfica deste cenrio, como tambm as aes culturais de homens e mulheres

    neste espao ao longo do tempo.

    Ocupando aproximadamente 30% do continente, o deserto do Saara, hoje com extensa

    composio arenosa e pedregosa, foi at o final do terceiro milnio a. C. uma mida poro de

    terras favorveis ocupao humana. Com o gradativo ressecamento de parte da frica do

    norte, o manto de areia investiu-se sobre o nordeste africano. Em meio a esta crucial mudana, o

    vale do Nilo prevaleceu como rota dos povos transeuntes nesta conjuntura a partir de 2400 a. C.

    (MOKHTAR; VERCOUTTER, 2011: xxxv-xxxvi).

    Rasgando a imensido dourada de areias no nordeste da frica ao cortar o deserto, o rio

    Nilo traz em suas bordas uma viosa estepe que nasce do escuro lodo derivado dos nutrientes

    carregados pelas suas guas. Esta terra negra e frtil beira do rio era o que os egpcios

    chamavam Kemet, o Egito por excelncia, associado diretamente na cosmoviso egpcia com

    Osris, deus da fecundidade e da vegetao, enquanto o deserto adjacente era chamado Dasheret, a

    terra vermelha de onde vinham os perigos e invases estrangeiras, aliada figura de Seth, rival de

    Osris e divindade das tempestades destruidoras (BAKOS, 2009: 72-73). Finalmente, aps correr

    o seu percurso, o Nilo se encerra em diversos braos compositores de um delta verdejante,

    desembocando nas guas salgadas do mar mediterrneo. Ao percorrer o Saara, os desnveis

    geogrficos resultavam ao Nilo nbio na formao de seis cataratas, repartidas de Cartum at

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    Aswan (BRISSAUD, 1978: 28-29). A primeira delas, de norte a sul, formava a fronteira entre o

    Alto Egito e a Baixa Nbia, conforme mapa a seguir.

    Figura 1 - Mapa do rio Nilo cortando o Egito e a Nbia. Os nmeros correspondem s cataratas. Adaptao do mapa presente em SMITH, 2003: 3.

    Do ponto de vista poltico, pontual enxergar a Nbia enquanto um conjunto de

    mltiplas formaes polticas e populaes heterogneas. Se o Egito permanecia sob um reino

    unificado, a Nbia era composta por grupos somticos e reinos independentes, a ocupar terras

    ao sul da catarata de Aswan (MOKHTAR, VERCOUTTER, 2011: xxxiv).

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    Figura 2 - Mapa com as regies nbias prximas s cataratas do Nilo. Presente na obra de SILVA, 2011: 99.

    A partir do avano dinstico egpcio e do crescimento das sociedades nbias, o Egito viu-

    se cada vez mais imerso em contatos com os povos alm das cataratas. Se Sneferu, da IV

    dinastia, nos legou seu registro de 7.000 homens e 20.000 cabeas de gado oriundos da Nbia a

    entrarem no Egito, ser a partir da XI dinastia, em 2134 a. C., que o Egito empreender uma

    efetiva campanha militar de ocupao da regio (BRISSAUD, 1978: 78).

    Nos domnios egpcios de expanso ao sul, anseios econmicos encontravam-se no cerne

    dos propsitos expansivos, a garantirem os produtos importados do sul, como peles de animais,

    incenso, plumas e ovos de avestruz e marfim (SILVA, 2011: 100). Na agncia das relaes

    comerciais, elementos culturais participavam do cmbio junto aos itens comerciados,

    configurando trocas materiais em trocas culturais entre grupos distintos.

    A dominao tencionava tambm a segurana do imprio egpcio perante possveis

    invases estrangeiras, nbias ao sul e asiticas a leste. Tal nsia de defesa percebida diante da

    solidez de fortalezas egpcias construdas em solo nbio sob a XII dinastia (1938-1735 a. C), a

    fim de controlar as fronteiras do imprio (GIORDANI, 2010: 130-131).

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    Dos processos de interao entre o imprio do Egito e as populaes e reinos da Nbia

    floresceram-se relaes de interdependncia e complementaridade. Mas, alm disso, neste

    sistema de correlaes, o convvio com o outro estimula o jogo de identidades tnicas e de

    fronteiras. Um dos elementos configuradores da diferena a alta estereotipagem do grupo

    tnico, a persistir na dissonncia diante do contato intertnico estreito (BARTH, 2011: 200-201).

    Diante da alteridade do perigo estrangeiro e das relaes de poder e dominao presentes no

    contexto, coube ao mundo egpcio elaborar os smbolos legitimadores para a construo da viso

    tpica dos povos nbios. Nesse sentido, a estela do reinado de Sesostris III em Semna, regio da

    segunda catarata, emblemtica:

    Esses Nehesy (nbios) no so gente digna de respeito; so miserveis e sem coragem. Minha Majestade os viu, no mentira. Capturei suas mulheres, trouxe seus sditos, fui at seus poos, destru seu gado, colhi ou queimei seu trigo. (...) Agora, quanto a cada um de meus filhos que manter essa fronteira, que Minha Majestade fez, ele meu filho, nascido de Minha Majestade, retrato de um filho que o defensor de seu pai e que mantm a fronteira daquele que o gerou. Quanto quele que relaxar, que no lutar por ela, no meu filho, no nasceu de mim (BRISSAUD, 1978: 83).

    Esta passagem, representativa ideia apontada anteriormente acerca da construo

    estereotpica do outro, apresenta os marcos erigidos entre os egpcios e os outros, neste caso os

    nbios. Estes marcos, porm, assinalam-se frequentemente pela violncia como fator definidor

    da superioridade egpcia sobre a sujeio nbia, a legitimar na dissonncia tnica por meio do

    esteretipo da inferioridade estrangeira.

    Se a conquistadora era de Sesostris III ocupou-se em dominar a Nbia com fortificaes

    contra possveis invasores, ser aps a XII dinastia que o Egito ver a tomada estrangeira do

    imprio, desestabilizando a unidade poltica faranica, alm do controle s fronteiras assentadas

    nos reinados anteriores.

    Seguindo um domnio asitico de 200 anos em solo egpcio, entre cerca de 1780-1580 a.

    C. (MOKHTAR; VERCOUTTER, 2011: xliv), o controle faranico na Nbia ausenta-se sob o

    domnio dos hicsos, advindos do Oriente Prximo. Assim, reinos nbios como o imprio de

    Kush crescem progressivamente, recuperando a independncia anterior ocupao egpcia

    perante a desestabilidade provocada pela invaso hicsa. Tal poderio percebido quando do envio

    de uma correspondncia do governante hicso Apofis ao soberano kushita, propondo que este o

    ajudasse contra uma total reconquista egpcia, uma vez que a fora do domnio asitico

    permanecia restrita ao norte (BRISSAUD, 1978: 86-87). Tal correspondncia, no entanto, nunca

    chegou ao seu destino, sendo o mensageiro capturado por foras egpcias ante a reconquista e

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    expulso do poder hicso ao fim dos dois sculos de posse estrangeira (ZAYED; DEVISSE:

    2011: 107).

    INTERAES E O NOVO IMPRIO

    Diante deste enredo de recuperao egpcia, emblemtico para a anlise do recobro

    imperial sobre terras estrangeiras, sob a nascente XVIII dinastia e seu fundador, o fara

    Amosis I, que o Egito prossegue em busca da reobteno governamental perdida. Partindo ao

    sul do Nilo, as foras militares novamente instalam campanhas de dominao nos territrios

    nbios. O relato do oficial egpcio Ahmes, originrio de Nekheb, nos diz: Depois que Sua

    Majestade massacrou os asiticos, subiu o Nilo at Khenthennefer a fim de destruir as tribos do

    deserto da Nbia, onde fez um grande massacre (BRISSAUD, 1978: 108).

    Nessa circunstncia de retomada do controle dos territrios, os faras instauram um

    estado de vice-reinado na Nbia. Ante um sistema administrativo de dominao egpcia, as terras

    nbias receberam escribas, sacerdotes, soldados, artesos e, sobretudo, o governo de um vice-rei

    ao servio faranico (BRISSAUD, 1978: 109; GIORDANI, 2010: 131).

    Figura 3 - Mapa do controle poltico egpcio durante o Reino Mdio (XI XII dinastia), Perodo Intermedirio de domnio hicso, e Reino Novo. As reas acinzentadas correspondem ao poder egpcio em cada estgio. Adaptao do mapa presente em SMITH, 2003: 57.

    Tutms I, prosseguindo explorao nbia, alarga o domnio egpcio at a regio de

    Dongola, na 5 catarata, onde manda erigir uma monumental estela de controle de acesso quelas

    ricas reas. Dcadas depois, Nhi, vice-rei da Nbia, envia a Tutms III listas de emisses

    tributrias das regies nbias de Wawat e Kush ao Egito. Nelas encontram-se informaes

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    correspondentes aos 10 anos do reinado do fara, do envio de tributos como ouro, marfim e

    bano, peles de animais e colheitas, alm de 60 escravos de Wawat, e 218 escravos nbios

    provindos de Kush (BRISSAUD, 1978: 109-117). Muito alm do registro tributrio de uma

    regio politicamente subordinada, possvel perceber nos anais do vice-rei Nhi o trnsito de

    nbios para localidades egpcias ante o controle de fronteiras demarcadas. Sob a gide de

    escravos, estas pessoas quantitativamente presentes, mas qualitativamente annimas na

    documentao, nos possibilitam supor os cmbios sociais presentes entre aqueles dois pases a

    cruzar o nordeste africano em amplas direes.

    Tambm da poca de Tutms III, e representativa no mbito dos trnsitos e interaes,

    tem-se uma inscrio localizada em Aswan, perto da primeira catarata entre o Egito e a Nbia,

    acerca das misses egpcias ao sul:

    Ento este exrcito de Sua Majestade chegou a Kush, a infame... Este exrcito de Sua Majestade venceu esses brbaros: eles no conservaram vivo nenhum de seus habitantes masculinos, segundo a ordem de Sua Majestade, exceto um filho de um desses chefes de Kush, a infame, que foi levado como prisioneiro. (BRISSAUD, 1978: 114)

    Presente nesta inscrio, o trfego de cativos pertencentes s chefias nbias

    considervel durante o Novo Imprio faranico. Na mesma rota que o herdeiro kushita do relato

    acima, outros filhos de reis e lderes nbios foram forosamente trazidos ao Egito, recebendo

    uma educao pautada em elementos culturais egpcios em meio corte dos faras. Dessa forma,

    a poltica de dominao faranica, alm de expedies militares e controle em terras nbias,

    instaurava uma conexo administrativa indireta, pautada em laos de educao e convvio social

    de herdeiros nbios aos costumes egpcios (MBOKOLO, 2009: 79; WILKINSON, 2011: 225).

    O relato anterior emblemtico, tambm, no que se refere presena de representaes tnicas

    acerca das populaes nbias, como a expresso Kush, a infame, e brbaros. Em que se pautam

    estas definies tnicas?

    Espelhadas nas experincias culturais contrastivas, essas definies estereotpicas nos

    remetem ao prprio termo etnia, vocbulo grego colocado aos povos no organizados sob a

    administrao poltica da plis, no partilhando o modo de viver grego e sob a condio

    distintiva de outros (CARDOSO, 2007: 9). A concepo tnica, dessa forma, traa fronteiras

    levantadas ante o contraste de questes culturais a posicionar vises de superioridade,

    inferioridade e alteridade. Assim, a cultura atua enquanto mantenedora e restauradora de limites

    tnicos contrastantes e diferenciadores.

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    Nesse contexto, no s as campanhas militares de conquista territorial retomam-se e

    aguam-se, como tambm a estereotipagem dos tipos nbios acirra-se ante a extenso egpcia

    para as terras ao sul. Perante as reconquistas estrangeiras, os discursos de superioridade egpcia e

    inferioridade no-egpcia tornam-se uma constante nas representaes oficiais textuais e pictricas

    do perodo, como um modo de preservao simblica do controle egpcio dos forasteiros aps a

    invaso hicsa.

    Loprieno (1988), ao trabalhar com as definies egpcias acerca dos estrangeiros

    presentes nas fontes, apresenta a estas a noo de Topos. A esfera do Topos, nesse sentido, refere-

    se s fontes cuja representao egpcia dos estrangeiros d-se a partir de arqutipos estruturantes

    a uma perspectiva tnica egpcia, a construir um outro tnico de maneira idealizada contrapondo-

    se ao eu egpcio dominador, sob elementos fsicos e sobretudo culturais pr-concebidos em um

    campo representativo. Assim, predominam nas evidncias egpcias de reproduo estrangeira

    signos de subalternidade e diferena. As populaes nbias, do outro lado da fronteira tnica

    egpcia, eram constantemente referidas como infames ou brbaras, pictoricamente representadas

    atravs da idealizao egpcia do nbio estereotipado e submisso ao Egito (SMITH, 2003).

    No te fies nos Nbios, guarda-te de sua gente e de sua magia!, aconselhava o fara

    Amenhotep II ao vice-rei da Nbia Uesersaset (BRISSAUD, 1978: 118). Em consonncia, sobre

    uma pintura encontrada no enxoval funerrio de Tutankhamon, notvel este antagonismo

    estrangeiro na composio de uma cena de caa, onde o fara protagoniza um ataque a uma

    multido catica representada sob os esteretipos da Nbia.

    Figura 4 - Pintura de uma das caixas encontradas na tumba de Tutankhamon, com as representaes do fara em combate aos estrangeiros nbios esquerda. Referncia: http://files.abovetopsecret.com/images/member/b7e57330db60.jpg Acesso em 13/11/2013.

    Estas imagens refletem no apenas uma oposio militar, mas tambm uma ideia

    cosmognica de proteo perante o temor estrangeiro. O Egito, encenado pela figura do fara,

    combate o perigo forasteiro, referido em egpcio como isfet, os caticos inimigos estrangeiros. O

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    fara enquanto mantenedor da ordem e justia egpcias, idealizadas atravs da deidade Maat,

    deveria combater os inimigos da ordem, concebendo os invasores estrangeiros enquanto agentes

    do caos (SMITH, 2007: 223).

    Essas diferenas podem ser concebidas enquanto tnicas? Se tomarmos o conceito de

    Barth, onde a identidade tnica associada a um conjunto cultural especfico de arqutipos

    valorativos (2011: 209), razovel supor que as diferenas estabelecidas entre os egpcios e os

    outros podem ser tomadas a partir de critrios dotados de cargas de valor. Neste contexto, a

    coexistncia estrangeira e a marcao das diferenas so pontualmente percebidas nos discursos

    faranicos. Ao fim da XVIII dinastia o contato com estrangeiros se intensifica (SANTOS, 2012:

    57), e o hino ao deus Aton, reproduzido por Akhenaton, dcimo rei deste perodo, convidativo

    anlise:

    Puseste cada homem no seu lugar (...) Suas lnguas falam diversamente, como diversa sua aparncia. Sua pele diferente, pois diferenciaste os estrangeiros. (ARAJO, 2000: 335)

    Dessa forma, os estrangeiros, diante do discurso religioso a Aton, diferenciam-se perante

    condies significativas ao pensamento egpcio. Nesta fabricao divina da diferena, elementos

    como a aparncia fsica e a pele, juntas s distines culturais da fala, protagonizam o contraste

    egpcio em relao viso do estrangeiro. Entretanto, no momento de criao do homem na

    narrativa, o hino abarca as populaes estrangeiras tambm como criaes divinas, de forma que,

    mesmo como diferenciados forasteiros, estes homens compartilham culturalmente viso

    egpcia da origem sagrada do deus.

    Nesta mesma perspectiva, em uma das cenas do Livro dos Portais, conjunto de textos e

    alegorias presentes no contexto funerrio do Novo Imprio, apresentam-se quatro grupos que,

    sob a viso egpcia, formam a humanidade. Estes grupos dividem-se em egpcios, asiticos,

    nbios e lbios. Sob distintas feies tnicas idealizadas, os sujeitos representados em todos os

    grupos seguem protegidos pelo deus Hrus (SANTOS, 2012: 58-59). Perante arqutipos

    compostos por signos fsicos e culturais diversos, esta diviso tnica retratada na tela egpcia:

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    Figura 5 - Os quatro grupos que formam a humanidade em uma das cenas do Livro dos Portais, na tumba de Seti I, XIX dinastia. Da direita para esquerda na parte superior esto os lbios, os nbios e os asiticos. Na parte inferior, depois do deus Hrus, esto os egpcios, e novamente os lbios, a continuar a cena. Imagem presente na obra de SANTOS, 2012: 59.

    Na persistncia das diferenciaes tnicas, estas construes de esteretipos aos diversos

    grupos compositores da humanidade permearam as imagens de tumbas nas XIX e XX dinastias.

    Neste discurso, o estrangeiro estaria imerso em elementos que o taxariam na gide do no-

    egpcio. As barreiras tnicas edificadas nessas representaes pautam-se em caractersticas fsicas,

    alm de elementos culturais como adereos, adornos e indumentria.

    Mas teria tal discurso absoluta efetividade nas prticas sociais entre os egpcios e os

    estrangeiros? O esteretipo construdo pelos egpcios, permeado com marcos fsicos e culturais,

    permaneceria estvel na definio identitria egpcia? Tais elementos culturais e fsicos

    caminhariam sempre juntos na definio de fronteiras tnicas nestes povos?

    POLIFONIAS CULTURAIS: VOZES NBIAS NO EGITO

    Eu fui barbeado, meu cabelo foi penteado. Minha m aparncia foi devolvida ao pas estrangeiro, minhas roupas aos bedunos. Eu fui vestido de tecido fino, untado com leo de primeira; eu dormi numa cama. Eu devolvi a areia aos que nela residem, o azeite de rvore aos que com ele se untam (Sanehet, XII dinastia (CARDOSO, 1994: 140).

    O conto acima, do egpcio Sanehet, produzido durante a XII dinastia, mas amplamente

    copiado por escribas do Novo Imprio, narra a epopeia do personagem homnimo ao fugir do

    Egito e viver por anos em terras estrangeiras, at receber do fara a ordem de retorno, como

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    vimos na introduo deste artigo. Ao regressar, a narrativa conta que Sanehet volta como um

    asitico gerado por asiticos, causando estranhamento nas princesas da corte, que, discernindo-

    o, entoam cantos para o asitico nascido no Egito! (CARDOSO, 1994: 128-141). Volvendo s

    terras do Nilo, Sanehet despe-se da aparncia estrangeira, untando-se em leo, vestindo finos

    tecidos, barbeando-se, retornando-se egpcio.

    O estabelecimento de estrangeiros em terras egpcias, como j apontado, reconhecido e

    refletido em fontes de diversas naturezas.

    Se os documentos faranicos nos possibilitam perceber a entrada de nbios como

    prisioneiros de guerra, viajantes tributrios ou cativos perante as definies egpcias ao outro-

    estrangeiro, suas permanncias no Egito se evanescem desta documentao oficial,

    desencadeando amplos questionamentos: de que forma se davam as prticas sociais entre estes

    estrangeiros no Egito? Permaneceriam eles estigmatizados atravs das insgnias da diferena e

    inferioridade tnicas perante os egpcios?

    De maneira a transcender as representaes annimas e idealizadas pelos escritos oficiais

    egpcios, a busca por retratos nbios no Egito primeira vista parece-nos uma rdua tarefa,

    perante o suposto silncio de ecos estrangeiros nos modos de viver egpcios. A esta aparente

    ausncia, no entanto, uma leitura acurada em outras fontes nos possibilita levantar indcios,

    intenes e evidncias a apontar sujeitos cujas silenciosas existncias no contexto (GINZBURG,

    1989: 144-167; SHARPE, 1992: 41) carregaram a mcula da etnicidade estrangeira.

    Loprieno (1998), em oposio s concepes representativas e estereotipadas do j

    mencionado Topos, elabora o conceito de Mimesis, cujas definies se relacionam com as

    divergncias presentes em prticas que no se regulam ao que os arqutipos do Topos

    intencionam definir como no-egpcios. Assim, anlise mimtica, por meio de traos culturais,

    vestgios e sinais da presena destes estrangeiros sem as diminuies figurativas do Topos, fornece

    retratos de sujeitos sob prticas diversas a transcender atravs do cotidiano os esteretipos

    tnicos das definies egpcias oficiais (CAMPAGNO, 2011: 42; SMITH, 2007; 221-238).

    Assim, o rastreio destes sujeitos no cenrio egpcio exige um olhar atento s fontes de

    maneira a interpretar indcios, pistas e vestgios que permitem supor significados nbios s

    experincias de homens e mulheres a viver e morrer no Egito. A guisa de criar uma imagem

    possvel do passado (BENJAMIN, 1985: 224) e atravs de uma descrio densa e interpretativa

    da cultura (GEERTZ, 1989: 17), anseia-se, adiante, direcionar a anlise das fontes para alm dos

    limites hegemnicos a estes sujeitos nbios, a perceber na polifonia da realidade cosmopolita

    egpcia os sentidos atribudos por eles mesmos s dimenses de suas vidas a partir da

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    construo de partculas de suas prticas cotidianas e das relaes sociais (MALAVOTA, 2007:

    34). Isto ser feito a partir da anlise e descrio de fragmentos da vida de algumas personagens.

    Vamos a elas.

    NEHESI, O PORTADOR DO SELO REAL

    Na margem ocidental do Nilo, no sul do Egito, situa-se um complexo de templos

    funerrios faranicos conhecido por Deir El Bahari. Dentre os santurios e monumentais

    tmulos ali edificados, destaca-se o templo de Hatshepsut, rainha que governou como fara o

    Egito em meados da XVIII dinastia. Neste templo, Hatshepsut e seus arquitetos ocuparam-se

    durante os anos de seu reinado em representar nas paredes e cmaras desde a concepo divina

    da rainha, a legitimar sua posio enquanto mulher no trono mximo do Egito, at os grandes e

    prdigos feitos em seu mandato, atestando sua competncia como fara. Em uma das mais

    notveis cenas da magnanimidade regencial de Hatshepsut est a expedio mandada pela fara

    s ricas terras de Punt, no chifre da frica. Os cinco navios egpcios a ir e voltar de Punt

    carregados de animais, peles, marfim e bano, rvores e ouro, bem como os relatos dos viajantes

    de Hatshepsut naquelas terras permanecem imortalizados nos baixos-relevos de Deir El Bahari

    (MBOKOLO, 2009: 39).

    No seguimento da cena, a prpria Hatshepsut aparece, a anunciar o episdio da

    expedio. Entronada na posio de fara, ante ela esto representados trs homens cuja

    nobreza apresenta-se pela proximidade deles com a governante do imprio. Infelizmente, as

    feies dos trs homens e da rainha foram raspadas da parede, restando as silhuetas de suas

    figuras, envoltas em textos hieroglficos. O primeiro deles possui uma inscrio individual, que

    diz: daro o [decreto do] tribunal para o prncipe hereditrio, conde, portador do selo real,

    nico companheiro, diretor tesoureiro, Nehesi, a despachar o exrcito para Punt. (BREASTED,

    2001: 118-119).

    Alm da elucidao acerca da viagem Punt, este relato real nos ilustra tambm alguns

    elementos da vida de um singular personagem do Egito de Hatshepsut. Sua importncia na corte

    da fara lhe concedeu lugar de destaque perante as representaes da expedio, na qual teve

    evidente papel na conduo dos acontecimentos. Os ttulos que o precedem tambm o vestem

    enquanto um egpcio de prestigiada posio na corte de Hatshepsut. Seu nome, no entanto, nos

    sugere e abre outra imagem possvel de sua existncia.

    O portador do selo real da corte de Hatshepsut eternizou-se na parede do templo de

    Deir El Bahari. Seu nome, Nehesi, significava, literalmente, nbio, na antiga lngua egpcia. Na

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    cosmoviso egpcia, o nome possua extrema importncia, sendo o ato de nomear algo ou

    algum profundamente significativo, diretamente ligado ao provimento vital do ser. Na hora do

    parto, nomear a criana nascente caracterizava-se como uma ao solene que lhe garantiria uma

    vida auspiciosa. Sob a escolha do nome podiam variar fundamentos diversos, dentre a evocao

    de uma qualidade fsica, uma origem ou uma homenagem a uma deidade (BAKOS, 2009: 164).

    No caso do corteso Nehesi, aparentemente optou-se pela segunda alternativa, a memorar pelo

    significado de seu nome uma provvel ascendncia nbia.

    Infelizmente os limitados lampejos da vida de Nehesi presentes at ns, por ora,

    restringem-se a este mural do templo de Deir El Bahari. As elucidaes sobre este sujeito,

    portanto, so acanhadas, mas significativas anlise de um homem cujos indcios de existncia

    incandescem um possvel reflexo das experincias sociais de origens nbias no Egito.

    MADJA

    Em 1935, chegou ao Museu do Louvre, na Frana, um presente do governo egpcio.

    Tratava-se de um belo sarcfago de madeira pintada, escavado por Bernard Bruyre em Deir el-

    Medina, sul do Egito. Hoje exposto na coleo egpcia do museu, este esquife datado da XVIII

    dinastia, entre os reinados de Tutms III e Hatshepsut, chama ateno por sua elegncia, apuro e

    preciso da arte egpcia.

    O sarcfago, com decorao policromada sobre fundo branco, possui ao longo dos seus

    184 centmetros de comprimento cenas artsticas de cunho funerrio egpcio no perodo, com

    pinturas do caixo sendo guiado para a tumba, alm das representaes dos deuses Anbis,

    Osris, sis e Nftis, a protegerem a mmia no processo de sepultamento. Na parte superior do

    caixo, a arte do rosto composta por tinta amarela na delicada face, alm dos olhos delineados

    sob uma expresso firme e serena. Os cabelos, imitando as cabelereiras de lpis-lazli dos deuses

    e deusas, emolduram o rosto com uma volumosa peruca azulada a cobrir parcialmente o amplo

    colar em amarelo, azul e vermelho. No corpo do esquife, bandagens pintadas de amarelo trazem

    as inscries a respeito da falecida.

    Possuindo um status social que lhe permitiu a compra de um sarcfago decorado, esta

    personagem sepultada em Deir El Medina nos eleva dvidas perante as informaes ecoantes de

    seu material funerrio. Sua tumba, rusticamente escavada e sem estelas ou mesa de oferendas,

    contrasta com o ornado caixo onde se encontrou.

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    Figura 6 - Sarcfago de Madja, no Museu do Louvre http://www.louvre.fr/en/oeuvre-notices/sarcophagus-madja. Acesso em 15/11/2013.

    Sob as bandagens presentes na pintura do sarcfago, pode-se ler seu nome: Madja.

    Incomum aos nomes egpcios, o seu aparentemente possui razes nbias, sendo inclusive

    homnimo a uma regio nbia cujas relaes com o imprio egpcio mantinham-se desde a VI

    dinastia (ZAYED; DEVISSE, 2011: 106). Como anteriormente visto, o nome para a cosmoviso

    egpcia carregava-se de considerao e sua escolha traava-se de significados (BAKOS, 2009:

    164). Outro aspecto considervel a ausncia de ttulos a Madja. Uma vez que toda mulher com

    certa posio social era referenciada como Senhora da casa, Madja, enquanto possuidora de um

    esquife de qualidade, surpreende por ausentar qualquer ttulo sobre seu nome. Como outros

    casos na poca, isto pode sugerir que o sarcfago de Madja foi-lhe dado j acabado, tendo

    somente ela completado seu nome sobre as bandagens funerrias j existentes.

    No cemitrio onde foi encontrada, tambm foram localizadas outras tumbas cujos

    proprietrios possuam nomes com evidentes origens srio-palestinas. Tal circunstncia abre a

    possibilidade de colocar Madja diante de uma necrpole sequente de uma comunidade egpcia de

    origens estrangeiras (BONNEFOIS, s/d). Talvez em vida Madja, de ascendncia nbia expressa

    pelo nome, prestasse culto aos deuses do pas onde residia e os quais aparecem em seu adornado

    sarcfago. Se as bandagens da mortalha decorada de Madja emergem seu nome e propem a este

    uma origem estrangeira, seu funeral lembra que, como o deus Osris, Madja enquanto egpcia

    optou ser enterrada na terra dos faras.

    A restrio documental sobre Madja, abarcada em seu material funerrio,

    lamentavelmente nos fornece limitadas expresses a nossa personagem. Permitindo-nos

    exclusivamente trabalhar com poucos, mas eloquentes sinais acerca de sua existncia, a sugerirem

    significados nbios s experincias de uma mulher a viver e morrer no Egito.

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    MAIHERPRI, O LEO DO CAMPO DE BATALHA

    Em 1899, sob o contexto de exploraes arqueolgicas em solo egpcio, o francs Victor

    Loret, aps ter encontrado junto de sua equipe as tumbas dos faras Tutms III e Amenhotep

    II, deparou-se naquele ano com um terceiro tmulo no Vale dos Reis, principal necrpole

    egpcia. A tumba, ao contrrio de todas as outras at ento, permanecia praticamente intacta

    (ROMER, 1994: 202; SANTOS, 2012: 64-65).

    Riqussima em artefatos, Loret logo tratou de retirar tudo de dentro da pequena tumba.

    Em um dos itens funerrios, o sarcfago de resina negra ornado com hierglifos dourados, Loret

    leu o nome do dono: Maiherpri, ou O leo do campo de batalha, traduzido do egpcio. Ainda que

    possusse em um dos pedaos de linho o nome de Hatshepsut, sugerido que Maiherpri tenha

    vivido entre os reinados de Tutms IV e Amenhotep III (SANTOS: 2012: 65).

    Com um rico enxoval funerrio e seguindo com rigor os ritos funerrios das altas classes

    egpcias, a tumba de Maiherpri continha um grande atade com mais dois esquifes em seu

    interior e, dentro destes, a mmia coberta com uma mscara funerria. Tambm presente na

    tumba estavam uma cama de Osris, objeto mgico-religioso presente nos equipamentos funerrios

    do perodo, outro atade inacabado contendo o Livro dos Mortos de Maiherpri, alm de uma

    caixa com os vasos canpicos e oferendas, nforas e vasos. A qualidade dos itens, tpicos de

    funerais da XVIII dinastia, denota o envolvimento de Maiherpri com artesos que serviam

    corte egpcia (SANTOS, 2012: 65).

    A cpia do Livro dos Mortos de Maiherpri, ao ser desenrolada, impressionou pela

    condio e requinte dos desenhos e textos presentes no papiro. No entanto, o que chamou a

    ateno dos egiptlogos foi o desenho do dono da tumba no Livro dos Mortos. Maiherpri

    aparece na tpica cena religiosa egpcia fazendo oferenda aos deuses e penetrando no mundo dos

    mortos, porm, destoando das comuns representaes egpcias nas peas funerrias daquela

    necrpole, sua pele profundamente escura, e seu cabelo desenhado com cachos curtos e

    aparados, tal qual nas representaes tnicas dos estrangeiros nbios, assim como o saiote

    branco coberto por uma fina camada de tecido, indo at as suas canelas. Todos os elementos

    daquele contexto funerrio falavam aos egiptlogos de mais um enterro egpcio, exceto estes

    traos percebidos na representao de Maiherpri (ROMER, 1994: 203).

    Surpresos novamente ficaram os estudiosos quando dois anos mais tarde, no Museu do

    Cairo, desembalaram a mmia do Leo do Campo de Batalha e se depararam com o conservado

    corpo de um homem cuja fisionomia lembrava muito o seu peculiar retrato no Livro dos

    Mortos. A mmia de Maiherpri tambm vestia uma peruca nbia (ALDRED, 1957), semelhante

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    aos cabelos que exibe no desenho. O seu sarcfago, por outro lado, refletia em seus traos o

    rigor do padro idealizado e uniforme dos esquifes egpcios.

    Figura 7 - Detalhe da ilustrao de Maiherpri em seu Livro dos Mortos. http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/b/b6/Maherperi.JPG/220px-Maherperi.JPG. Acesso em 14/11/13.

    Os eptetos de Maiherpri presentes nas fontes da tumba tambm so vlidos para se

    levantar questes acerca deste notvel egpcio enterrado no Vale dos Reis. O primeiro, Criana

    da Creche, assim como o primor das peas em sua tumba, sugere que ele teve sua criao em

    um berrio real, prximo corte egpcia. O segundo ttulo, Portador do Abanador Real,

    denota sua proximidade oficial com o fara, servindo de brao direito ao monarca em ocasies

    pblicas. vlido perceber que este epteto posteriormente foi utilizado pelos vice-reis nbios. A

    sua cpia do Livro dos Mortos tambm lhe atribui o ttulo o seguidor real dos passos (do rei)

    em todas as terras meridionais e setentrionais estrangeiras (FORBES, 1998: 104-105 apud

    SANTOS, 2012: 65).

    Por meio de uma imagem possvel atravs destes elementos presentes nos documentos,

    pode-se interpretar e elaborar uma viso da vida de Maiherpri. Atravs de seu epteto de

    Criana da Creche, aliado aos significados tnicos de seu retrato, seria ele a imagem de um dos

    infantes filhos de reis nbios levados ao Egito durante as conquistas faranicas no Novo

    Imprio? Diante de uma provvel origem estrangeira, seus outros ttulos reais egpcios nos

    possibilitam enxerg-lo ao lado do fara, em ocasies pblicas como o portador do abanador

    real, ou em eventos exteriores, como seguidor dos passos do rei em terras estrangeiras.

    CONSIDERAES FINAIS

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    Este artigo tencionou apontar, no campo de uma histria antiga do nordeste africano,

    interaes, trnsitos e elos de contato elaborados entre egpcios e nbios percebidos sobre e

    sob fronteiras tnicas edificadas e restauradas constantemente pelas aes destes sujeitos.

    Diante de fontes cujas representaes egpcias tecidas aos nbios nos denotam processos

    de identificao e alteridade, possibilitou-se a interpretao da viso egpcia diante de seus

    vizinhos ao sul, atravs de intenes, experincias e movimentaes a construrem constantes

    interaes culturais.

    Sob estes processos de alteridade, elementos contrastantes de significados fsicos e,

    sobretudo, culturais moldavam os tijolos formadores das fronteiras tnicas, alguns mais frgeis

    que outros, a rurem perante passos dados por homens e mulheres cuja presena em um dos

    restritos lados cortados pela muralha fronteiria j no mais sustentava sua essncia.

    Alguns destes homens e mulheres, cujos rostos despertaram nesta anlise, elucidaram

    fragmentos de experincias de vida a transcenderem restries e limites tidos absolutos no

    contexto de suas existncias terrenas ou pstumas em terras egpcias.

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    Sobre o autor: Fbio Amorim Vieira Graduado no curso de licenciatura e bacharelado em

    Histria pela Universidade do Estado de Santa Catarina, atuou no Ncleo de Estudos Afro-

    Brasileiros - NEAB-UDESC - de 2011 ao incio de 2013 atravs de pesquisa com nfase nas

    populaes de origem africana em Florianpolis nos sculos XIX e XX. Durante o primeiro

    semestre de 2013 foi monitor da disciplina de Histria Antiga na mesma instituio. Realizou

    trabalho de concluso de curso com pesquisa acerca da histria da frica antiga e historiografia

    do Egito faranico.