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FACULDADE DE SÃO BENTO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA
MESTRADO ACADÊMICO
A PERCEPÇÃO HUMANA E SUA ABRANGÊNCIA A PARTIR DO PREFÁCIO À
FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO DE
MAURICE MERLEAU-PONTY
Mestranda: MARIA INÊS FREITAS DE CASTRO SIEBURGER
Orientador: PROF. DR. FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA
SÃO PAULO
2015
Maria Inês Freitas de Castro Sieburger
A PERCEPÇÃO HUMANA E SUA ABRANGÊNCIA A PARTIR DO PREFÁCIO À
FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO DE
MAURICE MERLEAU-PONTY
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de São Bento, sob a orientação do Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Área de Concentração: História da Filosofia
SÃO PAULO
2015
Maria Inês Freitas de Castro Sieburger
A PERCEPÇÃO HUMANA E SUA ABRANGÊNCIA A PARTIR DO PREFÁCIO À
FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO DE
MAURICE MERLEAU-PONTY
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de São Bento, sob a orientação do Prof. Dr. Franlin Leopoldo e Silva, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Aprovado em: ___/__/___ BANCA EXAMINADORA ______________________________ Prof. Faculdade de São Bento ______________________________ Prof. Faculdade de São Bento ______________________________ Prof.
Para meu amor, Marcelo Sieburger, por me inspirar a me tornar aquilo que a generosidade de seus olhos projetam como meu próprio ser.
AGRADECIMENTOS
Aos meus amados pais por terem despertado em mim o gosto pela leitura e pelo saber.
Ao Prof. Dr. José Carlos Bruni e à Profª. Dra. Elcie Salzano Masini por provocarem
novas ponderações sobre os temas apresentados, através de suas intervenções construtivas e
pontuais quando do exame de qualificação.
Ao Prof. Dr. Djalma Medeiros cujo apoio ultrapassou as responsabilidades de seu
cargo, auxiliando na definição das disciplinas por mim cursadas, acompanhando e orientando
durante todo o período de graduação e finalmente tornando possível a finalização desse
trabalho após minha transferência para o exterior.
Agradeço muito especialmente ao Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva por sua atuação
serena, seu olhar generoso e especialmente por conduzir-me à reflexão e à construção do
saber através de sua dedicada e segura orientação.
À Faculdade de São Bento, cujo ambiente acolhedor ofereceu as condições ideais para
o aprendizado. Em seus corredores, muitas vezes, interrompi o andar apressado para escutar
as vozes dos anjos entoando cantos gregorianos ao anoitecer, fazendo-me sentir pisando um
pedacinho do céu.
“Não sei se ele ficou tão entusiasmado quanto eu quando aprendi, pela primeira vez, aquilo que nossos mestres nos haviam escondido: que se pode refletir sobre um lampião a gás. Mais humanista, ele fez com que se abandonasse o lampião para deslocar a reflexão para o homem que o acende. Enquanto as luzes e as avenidas de Paris me fascinavam, ele se fascinava com ‘a verdadeira vida’, com os sofrimentos e o cotidiano dos homens. O que eles fazem, desejam e vêem.” (Jean Paul Sartre)
RESUMO
SIEBURGER, M. I. F.de C. A percepção humana e sua abrangência a partir do prefácio à Fenomenologia da Percepção de Maurice Merleau-Ponty. 2015. 56 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia. Departamento de Filosofia, Faculdade de São Bento, 2015. Resumo: Neste trabalho, buscamos apontar o significado de percepção, bem como expor sua relevância e abrangência a partir do Prefácio à obra Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty. Inicialmente explicitamos os aspectos críticos presentes na obra do autor e, em um segundo momento apresentamos os aspectos construtivos de sua obra. Dessa forma, acompanhamos o autor romper a tradição e apresentar a filosofia como fundação do ser. Palavras-chave: fenomenologia – percepção – Merleau-Ponty – temporalidade – ser SIEBURGER, M. I. F. de C. Human perception and its comprehensiveness from the preface to Phenomenology of Perception by Maurice Merleau-Ponty. 2015. 56 s. Dissertation (M.A.). Faculdade de Filosofia. Departamento de Filosofia, Faculdade de São Bento, 2015. Abstract: In this work, we seek to point out the significance of perception as well as to explain its relevance and comprehensiveness from the Preface to the work Phenomenology of Perception, by Merleau-Ponty. Initially we make it explicit the critical aspects in the work of the author and, subsequently, we lay out the constructive aspects of his work. Thus, we witness the author break the tradition and present philosophy as the foundation of existence. Keywords: phenomenology – perception – Merleau-Ponty – temporality – existence
ÍNDICE
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................09
CAPÍTULO I – ASPECTOS CRÍTICOS PRESENTES NO “PREFÁCIO” DO LIVRO
FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO, DE MAURICE MERLEAU-PONTY
1 Interrogação Primeira......................................................................................................13
1.1 Brevíssimo Histórico.........................................................................................................14
1.2 Crítica ao Idealismo e à Análise Reflexiva......................................................................16
1.3 Crítica ao Empirismo........................................................................................................21
1.4 A atitude interrogativa de Merleau-Ponty frente aos temas basilares de Husserl......25
CAPÍTULO II – ASPECTOS CONSTRUTIVOS DA OBRA DE MERLEAU-PONTY
2 Os novos rumos propostos por Merleau-Ponty..............................................................34
2.1 A temporalidade como padrão de racionalidade...........................................................36
2.2 O caráter central do mundo na construção do conhecimento......................................40
2.3 O corpo e a experiência do sujeito no mundo................................................................45
2.4 O caráter central da percepção na constituição da verdade humana..........................49
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................58
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................60
ANEXO....................................................................................................................................61
9
INTRODUÇÃO
O presente trabalho de dissertação tem como objeto de estudo a percepção, conforme
apresentada no prefácio da obra Fenomenologia da Percepção, de Maurice Merleau-Ponty.
Partiremos de uma afirmação constante no final do prefácio, que na verdade é um posfácio
pois foi escrito depois que a obra já havia sido concluída, onde o filósofo assevera: “Todos os
conhecimentos apoiam-se em um ‘solo’ de postulados e, finalmente, em nossa comunicação
com o mundo como primeiro estabelecimento da racionalidade.”1 Buscaremos, neste trabalho,
compreender a amplitude do significado de tal declaração2 e suas possíveis consequências
para a filosofia. Para fins didáticos, desdobraremos os dizeres de Merleau-Ponty em três
trechos, buscando identificar as múltiplas afirmações ali constantes e as questões que elas
suscitam3.
Primeiramente, Merleau-Ponty diz que “todos os conhecimentos apoiam-se em um
‘solo’ de postulados”. Como acontecem esses conhecimentos? Que “solo” é esse referido? De
onde ele surge? Se os conhecimentos advém de “postulados”, devemos refutá-los
completamente? É a ciência como um todo que Merleau-Ponty pretende rejeitar? Ou é a
racionalidade que ele refuta? Observamos que Merleau-Ponty dedicará boa parte do prefácio
para elucidar estas questões, descrevendo o saber clássico, levantando os problemas por ele
enfrentados e apontando os novos rumos que considera viáveis para lidar com os paradigmas
ali encontrados, sugerindo, de uma maneira totalmente inovadora, os novos passos para a
fenomenologia.
Seguindo nossa proposta de desdobramento da afirmação supracitada, lemos que
“todos os conhecimentos apoiam-se [...], finalmente, em nossa comunicação com o mundo”.
Se todos os conhecimentos apoiam-se em nossa comunicação com o mundo, essa
1 Merleau-Ponty, A Fenomenologia da Percepção, p. 20
2 Salientamos que a declaração supra-citada foi destacada do Prefácio (p. 20), onde aparece antecedida pela
oração: “A fenomenologia, enquanto revelação do mundo, repousa sobre si mesma, ou, ainda, funda-se a si mesma”. O recorte ora apresentado visa, sem distorcer o sentido dado pelo autor, utilizar especificamente o trecho no qual ao nosso ver Merleau-Ponty reitera o sentido da Fenomenologia da Percepção, o que proporciona a abertura de um caminho bastante rico para o desenrolar de nossa tarefa. 3 Reconhecemos que as questões que apresentaremos nesta Introdução e no decorrer de parte da dissertação
não são aquelas que Merleau-Ponty se faria, posto terem um caráter evidentemente empírico, distanciando-se do sentido da Fenomenologia da Percepção. Porém, acreditamos serem questões necessárias, não para que recebam respostas objetivas e completas, mas para que através delas possamos aos poucos afastar o fantasma do empirismo que permeia nossa conduta, para enfim adentrarmos nas questões fenomenológicas que acabam muitas vezes por ficarem obscurecidas. Assim, distendendo alguns fios do pensamento que habitualmente nos norteiam, pretendemos atingir a verdadeira teia que compõe a Fenomenologia da Percepção.
10
“comunicação com o mundo” parece assumir um caráter central na construção do
conhecimento. Mas de que forma essa comunicação se dá? Qual o papel do mundo na
construção do conhecimento? De imediato percebemos que em Merleau-Ponty o mundo não
poderá ser reconhecido apenas como um grande objeto, como afirma o empirismo. Tão pouco
poderá ser apenas uma constituição do sujeito, como sugerem os idealistas. Ao lermos a
primeira página do prefácio, encontraremos o filósofo a responder “o que é a fenomenologia”
e leremos que ela é “uma filosofia para a qual o mundo já está ‘ali’, antes da reflexão, como
uma presença inalienável”.4 Parece-nos bastante esclarecedora tal afirmação. Assim,
poderemos, a partir dela, buscar as respostas que preencherão algumas lacunas de nossos
questionamentos sobre o mundo e sua participação na construção do conhecimento. No que se
refere à nossa comunicação com o mundo, Merleau-Ponty nos indica:
“No silêncio da consciência originária, vemos aparecer não apenas aquilo que as palavras querem dizer, mas ainda aquilo que as coisas querem dizer, o núcleo de significação primário em torno do qual se organizam os atos de denominação e de expressão”.5
A riqueza de tal declaração nos convoca a entendermos mais profundamente como se
dá a comunicação do sujeito com o mundo, de onde surge o “núcleo de significação
primário”, ali referido. Aqui, alcançamos o objeto de estudo de nosso trabalho. E nosso olhar
pousará em compreender a estrutura da percepção, buscando afastar a forte névoa decorrente
do uso de expressões que em um primeiro momento parecem esclarecedoras mas que, ao
serem analisadas, mostram-se confusas, provocando ainda um maior distanciamento de um
efetivo entendimento de seu significado. Buscaremos reconhecer a essência da percepção,
uma vez que ela é “definida por nós como acesso à verdade”,6 assumindo, portanto, um
caráter central em nosso saber primordial.
Finalmente, completando nosso desmembramento, encontramos o “mundo como
primeiro estabelecimento da racionalidade”. O que isso vem a significar? A racionalidade
acontece no mundo? Mas a razão não está diretamente ligada ao sujeito? Não é ele o senhor
da razão? De que forma Merleau-Ponty funda tal afirmação? Quais as consequências de
colocarmos o mundo como protagonista da racionalidade? E o sujeito, qual o seu papel dentro
dessa nova realidade? Buscando acalmar nossas dúvidas que borbulham ansiosas, o filósofo
nos diz que “o mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei da constituição; ele é o
meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas percepções
4 Id, ibid., p. 1
5 Id, ibid., p. 12
6 Id, ibid., p. 14
11
explícitas", e acrescenta ainda, “não existe homem interior, o homem está no mundo, é no
mundo que ele se conhece”.7 Consequentemente, se “o homem está no mundo”, podemos
afirmar que ele “é ser no mundo”; neste mundo que “está ali antes de qualquer análise”8 que o
homem possa fazer dele e que, sempre permanecerá subjetivo. É neste fértil solo que
Merleau-Ponty lança as bases da Fenomenologia da Percepção, ponto onde estenderemos
nosso último olhar durante este trabalho.
Embora o fio condutor deste trabalho seja a afirmação citada no primeiro parágrafo e
ela esteja subdividida em três trechos, observamos que para fins didáticos será mais produtivo
organizarmos a dissertação em apenas dois capítulos, os quais abordarão em si os aspectos
mais relevantes de cada um dos trechos de acordo com a pertinência. Assim, sempre
utilizando-nos especialmente do “Prefácio”, procuraremos apontar no primeiro capítulo da
dissertação o aspecto crítico presente na obra de Merleau-Ponty e no segundo capítulo nos
dedicaremos a identificar o aspecto construtivo da referida obra.
Observamos, a partir da leitura do “Prefácio”, que os problemas encontrados na
tradição, especialmente por Husserl, são o ponto de partida do pensamento de Merleau-Ponty.
Será nossa tarefa no primeiro capítulo identificar alguns desses problemas apontados e,
valendo-nos do olhar de Merleau-Ponty, analisarmos as razões que o levam à crítica. A leitura
do “Prefácio”, parece-nos, sugere que durante o período clássico, crenças dogmáticas foram
assumidas como a verdade do mundo em consequência da inexistência de uma reflexão mais
profunda por parte dos pensadores, que os conduzissem a vencer os paradigmas e reconhecer
a existência de um “irrefletido” antecedendo toda e qualquer reflexão. Supomos que o
impasse decorreu, de um lado, pela angústia provocada pelos paradoxos constitutivos da
existência humana, uma vez que eram entendidos como aparências a serem superadas, e de
outro, pela máscara colocada pela dicotomia sujeito-objeto, que induzia a uma ruptura do
pensamento em subjetivo ou objetivo.
No que se refere ao segundo capítulo, que trata do aspecto construtivo da obra de
Merleau-Ponty, buscaremos descrever os passos seguidos pelo autor no “Prefácio”, os quais
conduziram-no a reconhecer o caráter central da percepção na constituição da verdade
humana, bem como, a reconhecer sua abrangência . Nossa finalidade é, sempre coerentes com
o ponto de vista do autor, elucidar como o filósofo equaciona os equívocos do saber clássico,
transita da Fenomenologia à Ontologia, passando por uma reflexão no campo da Psicologia e
nos entrega um novo entendimento sobre percepção, capaz de modificar definitivamente tanto
7 Id, ibid., p. 6
8 Id, ibid., p. 5
12
a Fenomenologia como a própria Filosofia. Nossa hipótese, aqui, é que o núcleo de
significação primário, que permeia todo conhecimento humano, encontrava-se obscurecido
diante de definições da percepção que mais confundiam do que elucidavam seu significado.
Parece-nos, pela leitura do Prefácio, que o reconhecimento da percepção como responsável
pela constituição das significações vividas exige uma mudança radical na tarefa do filósofo,
que deverá abandonar o pensamento reflexivo como central em sua atuação e assumir o
pensamento pré-reflexivo como fonte de seu trabalho. Porém, no bojo dessa mudança, já
antecipando nossos achados, observamos que surgirá um novo paradoxo, o “paradoxo da
imanência e da transcendência”, que, acreditamos, precisará ser analisado cuidadosamente
pelos estudiosos, para que não se torne um novo impasse para a Fenomenologia.
13
CAPÍTULO I
ASPECTOS CRÍTICOS PRESENTES NO “PREFÁCIO” DO LIVRO FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO, DE MAURICE MERLEAU-PONTY
“Todos os conhecimentos apoiam-se em um ‘solo’ de postulados [...]”9 1 Interrogação Primeira
Merleau-Ponty inaugura o prefácio do livro Fenomenologia da Percepção
interrogando-se sobre “o que é a fenomenologia ?”10, visto considerar que, apesar de meio
século passado dos trabalhos publicados por Husserl, esta pergunta permanecia longe de ser
resolvida. E como método para alcançar alguma coerência nas ambíguas respostas até então
apresentadas, ele decide “ligar deliberadamente os famosos temas fenomenológicos assim
como eles se ligaram espontaneamente na vida.”11
Para começar a realizar a referida tarefa, Merleau-Ponty irá utilizar-se da ordem dada
por Husserl à fenomenologia iniciante “de descrever, não de explicar nem de analisar”, ou
seja, “de ser uma ‘psicologia descritiva’ ou de realizar o movimento de retornar ‘às coisas
mesmas’”12, o que significa “retornar a este mundo anterior ao conhecimento”13. Merleau-
Ponty sinaliza que, para Husserl, “retornar ‘às coisas mesmas’ é antes de tudo a desaprovação
da ciência”, e acrescenta: “Este movimento é absolutamente distinto do retorno idealista à
consciência, e a exigência de uma descrição pura exclui tanto o procedimento da análise
reflexiva quanto o da explicação científica.”14 Assim, Merleau-Ponty mostra-se claramente
inconforme tanto com o idealismo e seu modelo reflexivo quanto com o empirismo científico.
Resta-nos compreender do que se trata exatamente essa inconformidade e para onde ela nos
leva, seguindo a ótica merleau-pontiana.
Observa-se, ainda, que Merleau-Ponty apresenta no “Prefácio” uma importante
preocupação no que se refere à própria filosofia: “A filosofia [...] como está, ela também na
história, usa, ela também, o mundo e a razão constituída.”15 Há aqui uma crítica à forma como
a filosofia está se posicionando até então, ou apenas um alerta quanto a uma situação que, não
9 Id, ibid., p. 20
10 Id, ibid., p. 1
11 Id, ibid., p. 2-3
12 Id, ibid., p. 3
13 Id, ibid., p. 4
14 Id, ibid., p. 4
15 Id, ibid., p. 20
14
podendo ser modificada, precisa ser atentada? Teremos também de investigar este aspecto de
maneira a elucidar o que Merleau-Ponty está nos apontando através desta afirmação.
Buscaremos neste primeiro capítulo apresentar as principais críticas presentes no
“Prefácio”, bem como elucidar de que forma Merleau-Ponty as fundamenta. Nossa
expectativa é que ao final deste capítulo, todos os questionamentos levantados na introdução
dessa dissertação no que se refere ao primeiro trecho da afirmação de Merleau-Ponty de que
“todos conhecimentos apoiam-se em um ‘solo’ de postulados”, possam ser suficientemente
esclarecidos. Começaremos com um muito breve histórico com o intuito específico de apontar
o caminho que levou à dicotomia empirismo-racionalismo.
1.1 Brevíssimo Histórico
No prefácio da obra Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica de Edmund Husserl, Ribeiro de Moura16 indica que a possibilidade de acesso
da subjetividade à transcendência teve seu berço em Descartes, quando este se perguntou
sobre como a legitimação de nossas ideias pode assumir um valor objetivo capaz de garantir a
concordância ou correspondência entre nossas representações e o mundo. Ocorre que a
formulação deste problema trouxe em seu bojo um importante equívoco referente à imagem
de subjetividade e transcendência ali apresentadas. A subjetividade referida por Descartes
pressupunha uma certa interioridade e colocava diante de si um mundo transcendente, ou seja,
externo ao sujeito subjetivo. Dessa forma, estabeleceram-se dois mundos: o mundo de ideias
que pertencia ao “sujeito-alma” e o mundo transcendente, externo, ao qual pertencia o
“sujeito-corpo”, reconhecido apenas como objeto.
Sobre este tema Merleau-Ponty assevera:
“Fomos habituados pela tradição cartesiana a uma atitude reflexiva que purifica simultaneamente a noção comum do corpo e da alma, definindo o corpo como uma soma de partes sem interior e a alma como um ser totalmente presente a si mesmo, sem distância. Essas definições correlativas estabelecem a clareza em nós e fora de nós: transparência de um objeto sem dobras, transparência de um sujeito que é exclusivamente aquilo que ele pensa ser. O objeto é objeto de ponta a ponta e a consciência, consciência de ponta a ponta. Há dois e somente dois sentidos para a palavra existir: existe-se como coisa ou existe-se como consciência”.17 18
16
Ribeiro de Moura, Prefácio. In: Ideias para uma fenomenologia e para uma filosofia fenomenológica, p. 19 17
Merleau-Ponty, op. cit., p. 268 18
No último livro que Merleau-Ponty pôde concluir em vida, O olho e o espírito, ele apresenta outra consequência decorrente dos equívocos do Idealismo. Trata-se da transposição do sujeito encarnado em sujeito transcendental e da realidade do mundo em idealidade. Ele afirma: “Um cartesiano não se vê no espelho: vê um manequim, um ‘exterior’ do qual tudo faz supor que os outros o vejam do mesmo modo, mas
15
O que se observa é que Descartes ao separar o sensível do inteligível, transformou-o
em simples signo da existência das coisas. Em consequência, a reflexão cartesiana nos
conduziu a um “universo de consciência”, enfatiza Merleau-Ponty, que é “no sentido restrito
um universo do pensamento”. Tal universo dá conta do pensamento de ver, mas “o fato da
visão e o conjunto dos conhecimentos existenciais permanecem fora dele".19
Ver-se-á posteriormente que superar a separação entre o domínio do sensível e do
inteligível se tornará relevante para Merleau-Ponty como condição para redefinir o problema
da racionalidade. Da mesma forma, a visão da tradição cartesiana do corpo como objeto,
conforme claramente descrita por Merleau-Ponty, será retomada mais adiante com maior
atenção. Nos ateremos neste momento à cisão entre filosofia e ciência decorrente da posição
cartesiana antes descrita.
Chaui (2002, p. 205) indica que a cisão do “em-si” e do “para-si” delineou-se em
Descartes, mas foi na “tradição cartesiana” que se consolidou a separação definitiva entre
filosofia e ciência. Como apresentado em um dos trechos de Merleau-Ponty acima transcrito,
a ciência passou a tratar o mundo como um grande objeto e, em contrapartida, a tratar o
sujeito como um sujeito teórico, totalmente distanciado do objeto empírico “mundo”. O
mundo dessa forma definido assumiu características que permitiram seu conhecimento pleno,
ao menos quanto à sua exterioridade.
A realidade, diz Chaui, passou a ser “definida e determinada” pela ciência, “a partir
das operações da ‘coisa física’ ou natural, isto é, das operações e leis da Natureza”20, cabendo
ao cientista descrever essas operações ou leis que regiam esse mundo. De outra parte, para a
filosofia o sujeito tornou-se o protagonista do conhecimento e da realidade conhecida,
realidade definida e determinada a partir das representações ou dos conceitos por ele
estabelecidos. Esse sujeito, como aponta Oliveira21, pertencente ao “mundo do espírito”, cuja
fronteira com o “mundo das coisas” estava claramente delineada, passava a se ver diante da
necessidade de alcançar um acordo que validasse o acesso da subjetividade a esse mundo
exterior de tal forma que suas representações fossem reconhecidas e conformes. Aparece
nessas circunstâncias uma cientificidade nova, “transcendental, capaz de assegurar o
conhecimento absolutamente fundado [...] imediata e apoditicamente”, diz Moutinho.22
que, para ele próprio como para os outros, não é uma carne. Sua ‘imagem’ no espelho é um efeito da mecânica das coisas; se nela se reconhece, se a considera ‘semelhante’, é seu pensamento que tece essa ligação, a imagem especular nada é dele.” Merleau-Ponty, O olho e o espírito, p. 29 19
Merleau-Ponty, A Estrutura do Comportamento, p. 304 20
Chaui, Marilena. Experiência do Pensamento, p. 205 21
Oliveira, W. C. O conceito de fenomenologia a partir do prefácio... In: A Fenomenologia da Experiência, p. 157 22
Moutinho, L. D. S. O Projeto da Fenomenologia da Percepção. In: A Fenomenologia da Experiência, p. 96
16
O legado da tradição cartesiana, conforme Chaui23, pode ser entendido sob dois
aspectos: o da “res cogitans”, ou seja, da presença da consciência a si mesma como pura
interioridade, ou o da “res extensa”, da pura exterioridade das coisas corpóreas. O legado da
“res cogitans” é “a tradição das filosofias da consciência”, que culminaram “nas filosofias
transcendentais, tanto no idealismo kantiano como na fenomenologia husserliana”. Já o
legado da “res extensa” é “a tradição do realismo naturalista ou do naturalismo, recebido
pelas ciências e desenvolvido, inicialmente, sob a forma do empirismo e, a seguir, sob a dos
vários positivismos”.
1.2 Crítica ao Idealismo e à Análise Reflexiva
Conforme lemos na primeira seção deste capítulo, Merleau-Ponty deixa evidente que o
movimento proposto por Husserl de retornar “às coisas mesmas”, em seu entender “é
absolutamente distinto do retorno idealista à consciência”, assim como a descrição pura
proposta por aquele autor “exclui tanto o procedimento da análise reflexiva quanto o da
explicação científica”.24 Neste primeiro momento, investigaremos a crítica merleau-pontiana
ao idealismo moderno e seu modelo reflexivo, e para tal buscaremos apoio nas próprias
palavras de Merleau-Ponty:
“Descartes e sobretudo Kant, desligaram o sujeito ou a consciência, fazendo ver que eu não poderia apreender nenhuma coisa como existente se primeiramente eu não me experimentasse existente no ato de apreendê-la; eles fizeram aparecer a
consciência, a absoluta certeza de mim para mim, como a condição sem a qual não
haveria absolutamente nada, e o ato de ligação como o fundamento do ligado.25
Observamos aqui como a reflexão idealista se conjuga com o tema da constituição,
essência do idealismo. A separação do mundo como um grande objeto em contrapartida de
um sujeito como puro espírito ou consciência, realizada por Descartes e “sobretudo” por Kant,
acabou por estabelecer a consciência como condição imprescindível sem a qual “não haveria
absolutamente nada”; ou seja, somente após o sujeito se experimentar existente como
consciência é que o mundo se constituiria para essa consciência. Assim, o sujeito viu-se
transformado em “fundante” ou “naturante” do mundo, sendo o ato de ligação sujeito-mundo
entendido como ato de constituição do mundo pelo sujeito. Porém, observe-se aqui, que
23
Chaui, op. cit., p. 204-5 24
Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 4 25
Id, ibid, p. 4, grifos nossos
17
quando Merleau-Ponty afirma que a consciência transcendental em Kant é naturante, significa
dizer que ela é naturante de uma significação do mundo, não do próprio ser do mundo.
Para que as coisas se manifestem ao espírito ou consciência, diz Merleau-Ponty, faz-se
necessário oferecer-lhe um sentido. Em Descartes26 vemos que a união do “conhecimento da
verdade” com ‘a prova da realidade”, não acontece na alma, e sim, em Deus.27 O sensível
neste caso se separa de sua significação, uma vez que Descartes integra significação e
existência em Deus. Consequentemente, o sensível torna-se pura aparência. Diferentemente,
em Kant, através da percepção é “a própria coisa” que é alcançada, “já que toda coisa na qual
podemos pensar é um ‘significado da coisa’”. Assim a percepção torna-se “o ato no qual esse
significado se revela” para o sujeito.28 Neste caso, aparece a ideia de “fenômeno”, conforme
podemos ler abaixo:
“A análise do ato de conhecer leva à ideia de um pensamento constituinte ou naturante que funda interiormente a estrutura característica dos objetos. Para marcar ao mesmo tempo a intimidade dos objetos com o sujeito e a presença , neles, de estruturas sólidas que os distinguem das aparências, nós os chamaremos de ‘fenômenos’ e a filosofia, na medida em que se atém a este tema, se torna uma fenomenologia, ou seja, um inventário da consciência como meio do universo.”29
Porém, a consciência transcendental em Kant se revela impossível, afirma Merleau-
Ponty, exatamente porque o mundo é pensado a partir de uma consciência que se afirma como
“meio universal”, ou seja, como fonte de significação. Desta forma, Kant tomando a
consciência como fonte de significação, não pode integrar essa significação à existência,
porque essa significação é produto da própria consciência constituinte. Em consequência, a
percepção que é o ato no qual o significado se revela ao sujeito, se torna apenas uma
variedade da intelecção. Como se observa, a análise reflexiva, conforme indica Merleau-
Ponty (2011, p. 4-5), elevou o sujeito a uma condição de possibilidade distinta da própria
experiência da qual esta análise partiu e transformou a síntese universal em algo determinante
da existência do mundo. “Nesta medida”, afirma Merleau-Ponty, a análise reflexiva “deixa de
aderir à nossa experiência, ela substitui a um relato uma reconstrução”30
26
Id, A Estrutura do Comportamento, p. 305 27
Conforme Merleau-Ponty, o que faltou a Descartes foi integrar significação e existência, na própria experiência e não em Deus, como ele o fez. E depois de Descartes, “essa integração devia aparecer como a solução dos problemas postos pelo realismo filosófico.” (Merleau-Ponty, A Estrutura do Comportamento, p. 305) 28
Merleau-Ponty, op. cit., p. 309 29
Id, Ibid., p. 308 30
Id, A Fenomenologia da Percepção, p. 4-5
18
A reflexão idealista31, então, passou a buscar reconstituir o caminho da constituição do
objeto, que ela própria estabeleceu como constituído pelo espírito. Porém, enquanto ela
acreditava seguir em sentido inverso o caminho de uma constituição prévia, o que ocorria na
verdade, conforme Merleau-Ponty, era a reflexão se recolocando “em uma subjetividade
invulnerável, para aquém do ser e do tempo”. Aos olhos do fenomenólogo, tratava-se
evidentemente de uma reflexão incompleta, uma vez que “perde a consciência de seu próprio
começo”.32 Uma reflexão que subtraía a possibilidade de existência de um relacionamento do
sujeito com o mundo e onde, como já dito, o relato via-se substituído pela reconstrução. Na
análise reflexiva, aponta Merleau-Ponty, “a matéria do conhecimento torna-se uma noção-
limite posta pela consciência na sua reflexão sobre si mesma, e não um componente do ato de
conhecer.”33
Ainda acompanhando as palavras do autor, lemos:
“Entre o sentir e o juízo, a experiência comum estabelece uma diferença bem clara. O juízo é para ela uma tomada de posição [...]; sentir, ao contrário, é remeter-se à aparência sem procurar possuí-la ou saber sua verdade. Essa distinção se apaga no intelectualismo, porque o juízo 34 está em todas as partes em que não está a pura sensação, quer dizer, em todas as partes.”35
Merleau-Ponty salienta ainda o equívoco de se pretender igualar sínteses e percepção,
uma vez que sínteses “são da ordem do juízo, dos atos ou da predicação”36. Sínteses são o
resultado de operações profundas, enquanto “a percepção” somente “segundo o mundo ou
segundo a opinião” é que ela “pode aparecer como uma interpretação”.37 A percepção neste
caso, diz Merleau-Ponty, não pode ser uma interpretação para a consciência porque antes dela
não há nada a ser interpretado e também não pode ser um raciocínio pois não existem
sensações que possam servir de premissa.
31
Mais tarde, Merleau-Ponty tornará a criticar a reflexão idealista, dizendo: “Colocando diante do espírito, foco de toda clareza, o mundo reduzido a seu esquema inteligível, uma reflexão consequente faz desaparecer toda questão concernente ao relacionamento entre este e aquele, que doravante é pura correlação: o espírito é o que pensa, o mundo é o que é pensado, não se poderia conceber nem a imbricação de um no outro, nem a confusão de um com o outro, nem a passagem de um para o outro, nem mesmo o contato entre eles – um estando para o outro como o vinculado para o vinculante, ou o naturado para o naturante, ambos são demasiada e perfeitamente coextensivos para que um possa alguma vez ser precedido pelo outro, por demais irremediavelmente distintos para que um possa envolver o outro.” Merleau-Ponty, O Visível e o Invisível, p. 54 32
Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 5 33
Id, A Estrutura do Comportamento, p. 310 34
Merleau-Ponty procura mostrar no capítulo III, do livro Fenomenologia da Percepção, o quanto “atenção” e “juízo” no intelectualismo possuem somente clareza aparente. 35
Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 62 36
Id, Ibid., p. 5 37
Id, Ibid., p. 66
19
Por conta desse entendimento, Merleau-Ponty inverte a posição desse dado
supostamente originário, das sensações como premissa, e afirma que “a pura sensação,
definida pela ação dos estímulos sobre nosso corpo, é o ‘efeito último’ do conhecimento, em
particular do conhecimento científico”38 e indica ser apenas por uma ilusão que acreditamos
que ela seja anterior ao conhecimento. “Chegamos à sensação quando, refletindo sobre nossas
percepções, queremos exprimir que elas não são absolutamente nossa obra.” Para o
fenomenólogo, a pura sensação “pertence ao domínio do constituído e não ao espírito
constituinte.” Consequentemente, com a ideia de sensação ultrapassando a ideia de uma
atividade simplesmente lógica, tudo deve passar ao domínio do constituído, e assim o
idealismo transcendental tornar-se capaz de superar toda a passividade, toda a finitude.
Conforme o entendimento de Merleau-Ponty, no idealismo o sujeito não poderia se
perceber envolvido em seu corpo se ele não fosse capaz de “pensar” essa relação e, portanto,
“escapar a essa inerência”39. O sujeito no idealismo, se estivesse efetivamente situado no
mundo, estaria como coisa; se ele consegue ver onde está é porque é uma consciência e como
tal não reside em lugar nenhum, podendo tornar-se presente em todas as partes apenas por
intenção. A percepção, neste caso, é apenas o pensamento de perceber. Em consequência
dessa visão, Merleau-Ponty afirma: “se uma consciência constituinte universal fosse possível,
a opacidade do fato desapareceria.”40
Finalmente, lemos no “Prefácio” um argumento bastante relevante levantado por
Merleau-Ponty, referindo-se à solidez do real:
“Se a realidade de minha percepção só estivesse fundada na coerência intrínseca das ‘representações’, ela deveria ser sempre hesitante e, abandonado às minhas conjecturas prováveis, eu deveria a cada momento desfazer sínteses ilusórias e reintegrar ao real fenômenos aberrantes que primeiramente eu teria excluído dele.”41
Sabemos que o real não se confunde com os sonhos, com as fantasias ou com a
imaginação e para Merleau-Ponty isso é mais uma evidência de que o real independe de nosso
juízo e de nossas representações, caso contrário ele poderia se ver distorcido, acrescentado ou
subtraído de situações que absolutamente não lhe seriam pertencentes. Porém, sobre o tema
do “real” o intelectualismo não se questiona, diz Merleau-Ponty:
“O intelectualismo aceita como absolutamente fundadas a ideia do verdadeiro e a ideia do ser nas quais se termina e se resume o trabalho constitutivo da consciência, e sua pretensa reflexão consiste em pôr como potências do sujeito tudo aquilo que é necessário para chegar a essas ideias. A atitude natural, lançando-me no mundo das
38
Id, Ibid., p. 66, grifos nossos 39
Id, Ibid., p. 67 40
Id, Ibid., p. 95 41
Id, Ibid., p. 6
20
coisas, me dá a certeza de apreender um “real” para além das aparências, o ‘verdadeiro’ para além da ilusão. O valor dessas noções não é questionado pelo intelectualismo: trata-se apenas de conferir a um naturante universal o poder de reconhecer essa mesma verdade absoluta que o realismo ingenuamente situa em uma natureza dada.”42
A crítica de Merleau-Ponty à insuficiência das posições intelectualistas na
consideração dos elementos da representação, cuja pretensão de "verdade absoluta" se funda
em pressupostos, dicotomias e dualismos que não resistem a uma crítica dos fundamentos, e
dos modos de representar leva o autor a identificar semelhanças entre idealismo e realismo,
uma vez que ambos apresentam o conhecimento a que alcançam como “verdade absoluta”,
porém não reconhecem que esse conhecimento, em ambos os casos, é totalmente apoiado
apenas “em um ‘solo’ de postulados”43. Para o autor, a análise reflexiva rompe com o mundo
em si para constituí-lo pela consciência, consciência essa que é o correlativo de um universo
acabado e “dono” de todos os conhecimentos, os quais a consciência colhe construindo para si
“um esboço” desse conhecimento. Assim, o intelectualismo assume “a posse da ideia
verdadeira”. Pois o que se vê no empirismo, diz Merleau-Ponty, é uma “crença absoluta no
mundo enquanto totalidade dos acontecimentos espaço-temporais e a consciência sendo
tratada “como um cantão desse mundo”.44 A imagem de um mundo onde o sujeito é um
objeto entre outros e a ideia de uma consciência constituinte absoluta, no entendimento do
autor, exprimem duas vezes o prejuízo de um universo em si perfeitamente explícito. “Uma
reflexão autêntica”, diz Merleau-Ponty, “[...] rejeita-as a ambas como falsas.”45
Para encerrarmos esta seção, reafirmando todos os achados acima expostos,
transcrevemos o que Merleau-Ponty de forma sucinta mas categórica afirma em sua última
obra escrita, a qual foi publicada pós-morte por Claude Lefort, filósofo que esteve sob a
tutoria de Merleau-Ponty:
“Para evitarmos todo equívoco a respeito, reafirmamos que não censuramos apenas a filosofia reflexionante por transformar o mundo em noema, mas também por desfigurar o ser do ‘sujeito’ reflexionante, concebendo-o como ‘pensamento’ – e para terminar, por tornar impensáveis suas relações com outros ‘sujeitos’ no mundo que lhes é comum.”46
42
Id, Ibid., p. 69-70 43
Id, Ibid., p. 20 44
Id, Ibid., p. 70 45
Id, Ibid., p. 72 46
Id, O Visível e o Invisível, p. 51
21
1.3 Crítica ao Empirismo
Decorrente do legado da tradição cartesiana, conforme já visto anteriormente,
encontramos duas orientações de pesquisa às quais a consciência pode se reportar, sendo que
cada uma dessas orientações está direcionada a uma distinta decifração daquilo que é o
“objeto”. Lemos, no “Prefácio” da Fenomenologia da Percepção, que Merleau-Ponty lança
reflexões importantes quanto aos prejuízos clássicos constantes do racionalismo e do
empirismo. Na seção anterior, apresentamos alguns pontos relevantes sobre a crítica merleau-
pontiana direcionada ao racionalismo, particularmente ao idealismo e à análise reflexiva.
Trataremos agora sobre a crítica que o fenomenólogo direciona ao empirismo, usando como
ponto de partida a desaprovação da ciência apontada por Husserl e apresentaremos a análise
realizada por Merleau-Ponty que objetiva desmontar a clareza aparente das descrições e
explicações empiristas.
Sabemos que o sujeito da ciência, bem como o da vida cotidiana, situa-se no mundo
através da orientação natural. Valendo-se dela, a consciência do sujeito em sua vida prática no
interior do mundo dirige-se às coisas para manipulá-las de forma espontânea. Da mesma
forma o cientista utiliza-se da orientação natural, apenas com a variante de que seu objetivo é
o conhecimento, ou seja, a busca por discernir as propriedades e relações “objetivas” das
coisas. Para ambos, sujeito “comum” ou cientista, são as determinações naturais dos objetos
independentes de subjetividade que estarão em foco. Decorrente desta visão, para o cientista,
o próprio sujeito torna-se simples objeto do conhecimento. Porém, sob este aspecto, Merleau-
Ponty assevera:
“[...] eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor [...] precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação ou uma explicação dele.”47
Observe-se que, conforme a ótica merleau-pontiana, enquanto a ciência define e
conceitua o sujeito e todos os objetos do mundo como o resultado ou o entrecruzamento de
múltiplas causalidades, não se atém ao fato de que sua própria expressão já é segunda,
havendo antes dela uma experiência que acontece silenciosamente. O sujeito não é um
conceito, diz Merleau-Ponty, e sim a fonte de toda experiência no mundo, sem o sujeito os 47
Id, Fenomenologia da Percepção, p. 3
22
símbolos da ciência nada diriam. Além disso, diz o fenomenólogo (2011, p. 4), as
representações científicas que colocam o sujeito como “um momento do mundo” são
“ingênuas e hipócritas”, visto subentenderem silenciosamente que antes de tudo há um mundo
que começa a existir, que age sobre nossos olhos para fazer-se ver por nós e começar a existir
para o sujeito.48
Se por um lado, as representações científicas subentendiam haver um mundo que
começa a existir antes de tudo, de outro, nos explica Ferraz, Merleau-Ponty identificava o
surgimento da “concepção da natureza como autoprodução de um sentido independente e
anterior à atividade subjetiva”49, como alternativa teórica. Tal alternativa pretendia se
contrapor tanto às ideias tradicionais intelectualistas quanto às ideias mecanicistas acerca do
mundo natural vigentes à época. Porém, Merleau-Ponty afirma que tal alternativa teórica
jamais foi adequadamente desenvolvida e cita, como exemplo desse fato, as concepções de
filósofos como Descartes e Kant.
Descartes em seus estudos definiu a natureza como um produto do poder divino, sem
interioridade própria. Para ele, a natureza foi criada como atualização plena de todas as suas
possibilidades, não havendo finalidade a ser atingida e, o mundo natural, consequentemente,
deve ser estudado como um mecanismo organizado por um sistema eterno de leis. Quanto à
imaginação, a vontade e demais atos humanos, Descartes os entendeu como vida psíquica do
sujeito. Já a percepção, a motricidade e demais funções foram reconhecidos como expressões
de uma unidade de princípio, decorrente das intenções corporais. Por buscar sempre ideias
claras e distintas, a concepção mecanicista da natureza acabou por adquirir força na obra de
Descartes. Já para Kant, a natureza é pré-existente e concede poder constituinte às categorias
do entendimento humano. Dessa forma, a natureza se reduzia aos objetos da experiência
ordenados de acordo com os poderes da subjetividade humana. Porém, como Kant se limitou
a estudar os fenômenos tais como constituídos pelas categorias cognitivas, ele acaba por não
explicitar a natureza fáctica que sustentaria os poderes da subjetividade.
Como já indicado na seção anterior, Merleau-Ponty sugere ainda haver um parentesco
profundo entre intelectualismo e empirismo, que não se limita “à definição antropológica da
48
Conforme Merleau-Ponty, no empirismo parte-se de um mundo em si que age “sobre nossos olhos para fazer-se ver por nós”, enquanto no intelectualismo “tem-se [...] uma consciência ou um pensamento do mundo, mas a própria natureza deste mundo não mudou: ele é sempre definido pela exterioridade absoluta das
partes e apenas duplicado em toda a sua extensão por um pensamento que o constrói. [...] O parentesco entre o intelectualismo e o empirismo é assim muito menos visível e muito mais profundo do que se crê.” Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 69, grifos nossos 49
Ferraz, M.S., Fenomenologia e Ontologia em Merleau-Ponty, p. 112-3
23
sensação50 da qual um e outro se servem”, mas também ao fato de que “um e outro conservam
a atitude natural5152 ou dogmática”. Se “a sobrevivência da sensação no intelectualismo é
apenas um signo desse dogmatismo”,53 por outro lado, diz o autor, “toda determinação
científica é abstrata, significativa e dependente”54 de um mundo que antecede o
conhecimento. O que se observa, diz Merleau-Ponty, é que ambos, intelectualismo e
empirismo, pressupõem “um foco de verdade intrínseca” e no entanto, quando o sujeito volta-
se para si a partir do dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, o que
encontra é “um sujeito consagrado ao mundo”.55 Nos parece evidente que Merleau-Ponty está
apontando aqui mais uma vez o “prejuízo do mundo”, porém, agora com o foco no
movimento da percepção56 que, visando ao próprio mundo, tende a se esquecer enquanto
movimento, ou seja enquanto fenômeno atuante no mundo, atendo-se exclusivamente ao
objeto ou a significação a que chega57.
Há ainda outro aspecto de extrema relevância que é a questão da encarnação do
sujeito, a qual parece ser sempre esquecida pela consciência. No próximo capítulo tornaremos
especificamente ao tema do corpo enquanto presença em toda experiência do sujeito,
50
Merleau-Ponty dedicará um capítulo inteiro para revisar o conceito de “sensação”, visto ser ponto crucial para a análise da ciência e do empirismo, especialmente porque o entendimento equivocado de seu significado tornou-se fonte de relevante distorção. Conforme a ótica do autor, “a qualidade determinada, pela qual o empirismo queria definir a sensação, é um objeto, não um elemento da consciência, e é o objeto tardio de uma consciência científica”; assim o fenomenólogo constata que “a teoria da sensação que compõe todo saber com qualidades determinadas, nos constrói objetos limpos de todo equívoco [...]”, porém estes objetos “são antes o ideal do conhecimento do que seus temas efetivos [...]”Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p.28 e 33 51
Husserl chamou assim a atitude que consiste em assumir como existente o mundo comum em que vivemos, formado de coisas, bens, valores, ideais, pessoas, etc, tal como se oferece a nós. A filosofia fenomenológica pretende sair dessa atitude por meio da dúvida radical, que consiste em suspender a atitude natural, isto é, em obstar a qualquer juízo sobre a existência do mundo e de tudo o que está nele. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário
de Filosofia, p. 89 52 No idealismo há a certeza de um real para além das aparências, e e na análise reflexiva há a ideia de um ser
absolutamente determinado. Ambos valem-se, portanto, da atitude natural, que para Merleau-Ponty representa o “prejuízo do mundo”. Antecipando nossos achados, veremos no Capítulo II que a atitude natural encontra-se no movimento da própria percepção, que visa um mundo pronto e acabado, esquecendo o trabalho de construção. (Observe-se que, embora na tradução do livro a expressão usada seja “prejuízo do mundo”, entendemos mais adequada a expressão “pré-juízo”, evitando assim distorção no sentido dado pelo autor. Na obra original: préjugé). Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 69-70 53
Merleau-Ponty, op. cit., p. 69 54
Id, Ibid., p. 4 55
Id, Ibid., p. 6 56
Sob esse aspecto, Merleau-Ponty advoga: ”A pretensa evidência do sentir não está fundada em um testemunho da consciência, mas no prejuízo do mundo”, pois “construímos a percepção com o percebido”. Com isso vemos a noção clássica de sensação, uma vez fundada no prejuízo do mundo, impedindo que a boa análise da percepção encontre, ou reencontre, seu começo. Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 25-6 57
O entendimento de Merleau-Ponty acerca da constituição do objeto será tratado oportunamente, no Capítulo II dessa dissertação. Por ora apenas cabe ressaltar que para o fenomenólogo francês, a consciência transcendental não é constituinte.
24
objetivando compreender o olhar merleau-pontiano a respeito. Por ora buscaremos em
Oliveira o esclarecimento sobre as razões deste “esquecimento” da mediação corporal. O
autor esclarece que é graças a experiência de unidade de nosso ser na experiência perceptiva
que a aplicação corporal no espaço e no tempo acaba por escapar à consciência e assim
“temos, como sujeitos encarnados, uma experiência direta das coisas. Isso acontece
quotidianamente em nossas vidas”58, diz Oliveira. Ainda segundo o autor, para Merleau-Ponty
a ciência também assumiu em suas origens essa crença objetivista de nossa atitude cotidiana e
a sistematizou. Assim, do mundo entendido como grande objeto, surgiu em contraponto “o
caráter absoluto da consciência teórica”59. Consequentemente a essa divisão, sujeito teórico e
objeto empírico, a ciência passou a se reconhecer como capaz de um conhecimento pleno de
seu objeto de estudo, mesmo que esse conhecimento pudesse ser puramente exterior. Nesse
ambiente de “profunda clareza” é que surgiu o chamado “sujeito de sobrevoo”, capaz de
exaurir o mundo posto que este se dá a ver ao sujeito em uma relação de conhecimento sem
sombras. Porém, como bem demonstra Merleau-Ponty no livro Fenomenologia da Percepção,
essa clareza das descrições e explicações empiristas são exclusivamente aparentes, resultado
de um sujeito teórico totalmente “esquecido” da encarnação corporal, a qual interfere
constantemente em toda experiência do sujeito no mundo.
Merleau-Ponty aponta no “Prefácio” que a ordem de Husserl de retornar “às coisas
mesmas”60 significa um reaprendizado do olhar para o mundo e esse olhar evidentemente
extrapola o olhar da ciência, implicando para a fenomenologia iniciante o que na expressão de
Husserl é a própria “desaprovação da ciência”. A ciência, diz Merleau-Ponty, nega a realidade
do mundo-da-vida, do qual ela é apenas “uma determinação ou uma explicação”.61 Porém
saliente-se que desaprovar a ciência significa, em Merleau-Ponty, destituir o discurso
científico de seu valor filosófico ou como fonte de toda determinação possível, e não,
obviamente, refutar “o pensamento científico”.
58
Oliveira, W. C. O conceito de fenomenologia a partir do prefácio... In: A Fenomenologia da Experiência, p. 147 59
Id, Ibid., p, 148 60
Husserl afirma “que existe ‘uma diferença fundamental entre o ser como experiência vivida e o ser como coisa’ e que, portanto, ‘uma coisa. não pode ser dada em nenhuma percepção possível ou outra modalidade de consciência em geral’. O modo de ser específico da coisa consiste no fato de que ela é dada em um número indefinido de aparições, mas permanece transcendente como uma unidade que está além dessas aparições, e que, todavia, se manifesta em um núcleo de elementos bem determinados, circundados por um horizonte de outros elementos mais indeterminados. O ser da coisa se contrapõe, assim, ao das experiências vividas ou da consciência.”[...] O que a coisa é, independentemente da sua relação com o homem, para o qual é um objeto de conhecimento denomina-se “coisa em si”. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, p. 150-2 61
Merleau-Ponty, op. cit., p. 3
25
1.4 A atitude interrogativa de Merleau-Ponty frente aos temas basilares de Husserl
Na seção a qual apresentamos a crítica merleau-pontiana ao idealismo e à análise
reflexiva, vimos que esta última deixa de aderir à experiência do sujeito, substituindo o relato
por uma reconstrução. Por conta disso, Merleau-Ponty afirma ser compreensível que Husserl
tenha censurado à Kant e oposto à analise noética, “que faz o mundo repousar na atividade
sintética do sujeito, a sua ‘reflexão noemática’, que reside no objeto e explicita sua unidade
primordial em lugar de engendrá-la”.62 Para que melhor possamos compreender como isso se
passou, cabe uma breve retomada sobre a reflexão de Husserl a respeito.
Sabemos que em um primeiro momento Husserl desenvolveu seu trabalho utilizando-
se de “uma noção de consciência de perfil cartesiano”63, conforme indica Ribeiro de Moura.
Husserl entendia que os fenômenos existiam apenas no sentido noético da palavra, ou seja,
enquanto habitantes da interioridade. Para ele, o objeto intencional era por princípio
reconhecido como “exterior” à consciência, porém o fenômeno de doação desse objeto se
dava de modo subjetivo, como uma “parte real” da consciência do sujeito. Dessa forma,
mantendo uma linguagem espacializante, o imanente permanecia identificado com o que está
no sujeito e o transcendente com o que está fora do sujeito. Consequentemente, a investigação
sobre como a subjetividade pode ter acesso a objetos transcendentes permanecia insolúvel,
refém da tradição naturalista. Assim, foi necessário à Husserl um novo passo para situar o
problema do conhecimento para além do impasse criado pela espacialização interior-exterior.
A redução fenomenológica associada a uma reforma da noção de fenômeno se tornaram
indispensáveis para que a investigação pudesse ter continuidade.
Analisemos primeiramente como se deu a reforma da noção de fenômeno. A mudança
ocorreu a partir do reconhecimento de que o objeto que é dado ao sujeito de modo subjetivo,
de acordo com variáveis de perspectiva e ambiente, situa-se diante do sujeito e não em seu
interior. Uma vez reconhecido que os fenômenos não se reduzem ao mundo interior do sujeito
e sim, habitam um universo mais amplo, acrescentou-se aos fenômenos um sentido ôntico,
como “fenômenos que não são ‘partes reais’ da consciência”.64 Esse novo conceito de
fenômeno chamado de noema, conforme Ribeiro de Moura, torna-se “essencial para que a
62
Id, Ibid., p. 5 63
Ribeiro de Moura, Prefácio. In: Ideias para uma fenomenologia e para uma filosofia fenomenológica, p. 19 64
Id, Ibid., p. 20
26
fenomenologia leve a bom termo a sua cruzada contra o ‘psicologismo’, assim como para
encaminhar de maneira satisfatória a sua investigação de crítica do conhecimento”.65
Para Husserl, o noema é o meio ideal pelo qual a realidade se oferece a uma
consciência. Quanto ao fenômeno, ele não é subjetivo porque o objeto é um habitante da
interioridade do sujeito, e sim, “por ser uma doação de determinado objeto sempre reportada a
um ‘ponto de vista’, por princípio unilateral e variável”.66 Portanto, o objeto
fenomenologicamente considerado só poderá ser interpretado como a síntese das múltiplas
significações que o descrevem, visto ele sempre nos ser dado por perspectivas, ou seja,
sempre como um objeto “subjetivo”. Chega-se assim a uma subjetividade transcendental que,
ao contrário daquela inaugurada por Descartes, “inclui em si mesma o seu ‘mundo’, ela não
tem mais nada que lhe seja exterior”.67 Nas palavras de Merleau-Ponty, lemos com clareza
seu entendimento sobre o tema:
“O mundo está ali antes de qualquer análise que eu possa fazer dele, e seria artificial fazê-lo derivar de uma série de sínteses que ligariam as sensações, depois os aspectos perspectivos do objeto, quando ambos são justamente produtos da análise e não devem ser realizados antes dela.”68
O problema inicial, portanto, se modifica para Husserl a partir desse entendimento e o
que se torna necessário ser inquerido não mais será como a subjetividade pode ter acesso a
objetos transcendentes e sim, “o que torna possível essa apresentação de uma identidade
através de uma multiplicidade”, e ainda, “quais são as estruturas de evidências presentes nessa
‘constituição’ dos objetos para a consciência”.69 E será através da intencionalidade que
Husserl poderá investigar como a subjetividade pode ter acesso à transcendência e como o
conhecimento se torna possível, afirma Ribeiro de Moura.
Porém, antes de abordarmos o tema da intencionalidade, tratemos a questão da
redução fenomenológica, que conforme vimos acima, associada com a reforma da noção de
fenômeno tornou-se indispensável para a continuidade das investigações de Husserl. Lemos
em Merleau-Ponty (2011, p. 6-7) que essa foi a questão a que Husserl despendeu mais tempo
em compreender-se a si mesmo e que “durante muito tempo, e até em textos recentes era
apresentada como o retorno a uma consciência transcendental”, frente a qual o mundo se
tornaria transparente, cabendo ao filósofo o papel de reconstituir a partir do resultado
65
Id, Ibid., p. 20 66
Id, Ibid., p. 21 67
Id, Ibid., p. 22 68
Merleau-Ponty, op. cit., p. 5 69
Ribeiro de Moura, op. cit., p. 22
27
encontrado, as apercepções que animavam este mundo. Conforme Merleau-Ponty esclarece
no Prefácio:
“Seria portanto a apreensão de uma certa hylé como significando um fenômeno de grau superior, a Sinn-gebung, a operação ativa de significação , que definiria a consciência, e o mundo não seria nada de distinto da ‘significação do mundo’, a redução fenomenológica seria idealista, no sentido de um idealismo transcendental que trata o mundo como uma unidade de valor indiviso [...] por que a percepção do mundo [...] é um feito de consciências pré-pessoais cuja comunicação não representa problema, sendo exigida pela própria definição da consciência, do sentido ou da verdade.”70
Um idealismo transcendental como este, onde todo sujeito é presença imediata no
mundo e o mundo é, por definição, único e o sistema de verdades, retira a opacidade e a
transcendência do mundo, visto ignorar o problema do outro, bem como o problema do
mundo. Conforme Merleau-Ponty (2011, p. 8), sendo o eu e o outro “sem ecceidade, sem
lugar e sem corpo, o Alter e o Ego são um só no mundo verdadeiro, elo dos espíritos”.
Portanto, o eu e o outro não estão presos no tecido dos fenômenos “e mais valem do que
existem”, afirma o fenomenólogo. O Cógito, desta forma, desvaloriza a percepção do outro, e
ensina que o Eu só pode ser acessível a si mesmo, já que definido como pensamento de si.
“Para que o outro não seja uma palavra vã”, diz Merleau-Ponty, “é preciso que minha
existência nunca se reduza à consciência que tenho de existir”.71 Neste aspecto vemos que
Merleau-Ponty se aproxima da visão de Husserl.
Para Husserl, diferentemente de Kant, existe um problema do outro e o alter ego é um
paradoxo. Neste caso, ao contrário do idealismo transcendental, se o outro realmente existe
para si e não apenas para mim e se “somos um para o outro”, faz-se necessário que
“apareçamos um ao outro” e, portanto, que cada um de nós tenhamos um “exterior”. Este
entendimento distancia-se decisivamente da análise reflexiva, como muito bem expressa
Merleau-Ponty:
“O mundo que eu distinguia de mim enquanto soma de coisas ou de processos ligados por relações de causalidade, eu o redescubro ‘em mim’ enquanto horizonte permanente de todas as minhas cogitationes e como uma dimensão em relação à qual eu não deixo de me situar. O verdadeiro Cógito [...] reconhece [...] meu próprio pensamento como um fato inalienável e elimina qualquer espécie de idealismo revelando-me como ‘ser no mundo’”.72
Ao tornar evidente “a infra-estrutura corporal de nossa relação com o outro e com o
mundo”73, a fenomenologia se afasta definitivamente da suspeita de idealismo e a redução
pode ser apresentada “sob uma nova fórmula”, distinta daquela decorrente de uma filosofia
70
Merleau-Ponty, op. cit., p. 7, grifos nossos 71
Id, Ibid., p. 9 72
Id, Ibid., p. 9 73
Oliveira, W. C. O conceito de fenomenologia a partir do prefácio... In: A Fenomenologia da Experiência, p. 152
28
idealista. Porém, parece-nos, é somente em Merleau-Ponty que essa nova fórmula irá se
elucidar suficientemente e assim, trataremos sobre esse tema somente no próximo capítulo.
Por ora nos ateremos, de forma concisa, a compreender como Husserl apresentou o método da
redução fenomenológica. Sabemos de antemão que primeiramente foi por meio da “epoché
universal quanto a todo ser objetivo” e posteriormente, foi na forma de uma nova “epoché,
buscando aí acentuar seu próprio significado quanto â vida subjetiva”. Porém, vale
compreendermos melhor como isso se deu, para que possamos posteriormente alcançar a
posição de Merleau-Ponty a respeito.
Conforme nos indica Ferraz, Husserl, no parágrafo 52 do livro Crise das Ciências
Européias e a Fenomenologia aponta que todo interesse teórico ou prático para o
conhecimento do mundo é interdito ao sujeito. Portanto, qualquer premissa ou consequência
do saber científico não pode compor os estudos da fenomenologia transcendental, uma vez
que seu objetivo é justamente explicitar como o saber passa a vigorar para o sujeito. A meta
da fenomenologia torna-se, assim, identificar os correlatos subjetivos que produziram todos os
entes objetivos. Husserl apresenta como alternativa para o impasse, “o método da redução
fenomenológica por meio da epoché74 universal quanto a todo ser objetivo”.75
Com a epoché dá-se uma inversão das relações entre consciência e mundo tal como
compreendidas pela atitude natural da ciência e do senso comum. Ferraz esclarece que “na
atitude natural, o sujeito é determinado pelos processos mundanos” e “faz parte de cadeias de
eventos que ele não domina”,76 ou seja, o mundo é uma soma de eventos que independem de
suas manifestações fenomênicas e a consciência do sujeito, uma região mundana envolta
pelos eventos do mundo. Já na atitude transcendental, decorrente da epoché77 universal, o
sujeito “se torna o foco pelo qual qualquer fenômeno de ser recebe seu sentido” e, o polo
objetivo-mundano importa somente como correlato das atividades subjetivas.78 Com isso,
74
A epoché tem como finalidade a contemplação desinteressada, ou seja, uma atitude desvinculada de qualquer interesse natural ou psicológico na existência das coisas do mundo ou do próprio mundo na sua totalidade. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, p. 339 75
Ferraz, M. S. Pensar por paradoxos In: A Fenomenologia da Experiência, p. 12-3 76
Id, Ibid., p. 13 77
Conforme Marques, “a epoché husserliana caracteriza-se por ser uma suspensão do ‘mundo natural’. Esse processo, porém, não é, como nos declara o próprio Husserl, uma negação do mundo natural, mas o retorno a uma experiência vivida. Assim, [...] o fenomenólogo alemão ainda permanecia sob bases racionalistas”. Marques, R.V. A compreensão da existência e a filosofia... In: A Fenomenologia da Experiência, p. 124 78
Ferraz aponta que para Merleau-Ponty a atitude transcendental, conforme apresentada por Husserl, preserva sua identidade com a filosofia de inspiração criticista, uma vez que “o reconhecimento da consciência como meio universal não se traduz em revelação de um foco absoluto de constituição de fenômenos que submete a consciência inserida no mundo”. Ferraz, M. S. Pensar por paradoxos In: A Fenomenologia da Experiência, p. 18
29
Husserl entende que a consciência torna-se não mais uma parte do mundo, e sim um todo
absoluto que envolve todas as manifestações dos eventos.
Da transformação estabelecida entre consciência e mundo, surge o paradoxo do
sujeito, intitulado por Husserl no parágrafo 53 como “o paradoxo da subjetividade humana”:
“ser sujeito para o mundo, e ao mesmo tempo ser objeto no mundo”, ou seja, “como é
possível que o sujeito sustente esse duplo papel?”.79 A não solução deste paradoxo apontaria
para a impossibilidade de realizar uma epoché verdadeiramente universal, pois a atitude
natural coordenaria o desenvolvimento da reflexão transcendental. Husserl apresenta como
solução, acentuar o significado da epoché no que se refere à vida subjetiva: o eu mundano
passa a ser considerado apenas como “polo constituído”, assim, as evidências mundanas em
relação ao sujeito se dissolvem e ele passa a ser considerado somente como “polo egológico
de seus atos, de seus hábitos e de suas faculdades” ou seja, o ego mundano passa a ser
reconhecido apenas como uma parte da consciência do sujeito; e o ego transcendental, passa a
ser considerado como “polo constituinte pelo qual todo ser objetivo recebe sua validade como
fenômeno moldado pela atividade subjetiva”.80 A contradição fica assim superada, visto a
hierarquização das teses antes conflitantes do paradoxo do sujeito.81 No entanto, objeta
Ferraz, “a tensão que Husserl indicava entre a atitude natural e a transcendental não pode ser
resolvida por uma hierarquização”82, uma vez que a consciência enquanto meio universal não
pode assumir o papel constituinte e, de outra parte, a consciência inserida nos fenômenos não
pode assumir o papel de constituído.
Merleau-Ponty, referindo-se as propostas de redução realizadas por Husserl, afirma:
“Todo o mal-entendido de Husserl com seus intérpretes, com os ‘dissidentes’ existenciais e, finalmente, consigo mesmo provém do fato de que, justamente para ver o mundo e apreendê-lo como paradoxo, é preciso romper nossa familiaridade com ele, e porque essa ruptura só pode ensinar-nos o brotamento imotivado do mundo. O maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução
completa. Eis porque Husserl sempre volta a se interrogar sobre a possibilidade da redução.” 83
79
Ferraz, M. S., op. cit., p. 13 80
Id, Ibid., p.14 81
Sobre esse tema, lemos em Merleau-Ponty: “Em sua última filosofia, Husserl admite que toda reflexão deve começar por retornar à descrição do mundo vivido (Lebenswelt). Mas ele acrescenta que, por uma segunda ‘redução’, as estruturas do mundo vivido devem, por sua vez, ser recolocadas no fluxo transcendental de uma constituição universal, em que todas as obscuridades do mundo seriam esclarecidas. É todavia manifesto que de duas coisas uma: ou a constituição torna o mundo transparente, e então não se vê por que a reflexão precisaria passar pelo mundo vivido, ou ela retém algo deste e é por isso que ela nunca despoja o mundo de sua opacidade. É nesta segunda direção que caminha cada vez mais o pensamento de Husserl [...]”. Merleau-Ponty. Fenomenologia da Percepção, p. 489, NOTA 8 82
Ferraz, M. S., op. cit., p. 19 83
Merleau-Ponty, op. cit., p. 10, grifos nossos
30
Saliente-se que, diferentemente de Husserl, para o fenomenólogo francês a atitude
transcendental necessária à investigação fenomenológica não exige a existência de um ego
extramundano, e sim um retorno aos fenômenos84, uma vez que é por meio deles que o mundo
objetivo se torna conhecido ao sujeito. Para Merleau-Ponty, a redução fenomenológica é que
nos abre para o conjunto de vividos da percepção, ou seja, para os fenômenos, sendo por meio
deles que o mundo se apresenta e não pelos atos do sujeito. Desta forma delimita-se aqui um
espaço diferente daquele de Husserl como centro da constituição85 e consequentemente,
seguindo o entendimento merleau-pontiano, “o campo fenomenal” se torna “campo
transcendental”86. Esse tema será apropriadamente abordado no capítulo seguinte, por
entendermos tratar-se do aspecto construtivo da obra de Merleau-Ponty.
Nos atentemos neste momento em buscar entender por que Merleau-Ponty considera
necessário, como sugere Husserl, que recuemos aquém de nosso engajamento no mundo.
Certamente seu objetivo é que esse mundo possa nos aparecer como espetáculo. Ocorre que
para isso, tendo em vista “que nossa existência está presa no mundo de maneira demasiado
estreita para conhecer-se enquanto tal”,87 necessitamos do campo da idealidade para conhecer
e conquistar sua facticidade. Porém, cabe salientar que “a necessidade de passar pelas
essências não significa que a filosofia as tome por objetos”, afirma Merleau-Ponty, afinal o
universo das essências é apenas um instrumento para desencobrir a existência imersa no
mundo, não podendo tal instrumento ser confundido com a ideia de tomar as essências por
objeto. Ao contrário, o objetivo é buscar o que o mundo é de fato para nós, “antes de qualquer
tematização”. Faz-se mister para tanto, manter a proximidade da atitude natural e ao mesmo
tempo distanciar-se em uma atitude transcendental, de forma que o sujeito se revele e ao
mesmo tempo possa ser visto por si mesmo, através do distanciamento. Evidentemente, este é
apenas um artifício do filósofo para que ele se dê à descrição.
Merleau-Ponty aponta que a redução pode e deve ser ao mesmo tempo transcendental
e eidética, como anunciava Husserl. Sobre esse tema ele ainda assevera que, tanto o
sensualismo quanto o idealismo transcendental, cada um a seu modo, “reduzem” o mundo. No
84
Reforçando nossa observação na nota 73, salientamos que para Merleau-Ponty a existência de um ego
extramundano, como sugerido por Husserl não exclui a existência de uma consciência constituinte de perfil cartesiano. Para o fenomenólogo francês, retornar aos fenômenos irá abrir a possibilidade de um campo transcendental. Sobre tal assunto falaremos no Capítulo II deste trabalho. 85
Lembremos que em Husserl, o ego transcendental é o único centro de funcionamento de toda constituição. Aos olhos de Merleau-Ponty, limitar-se a uma instância transcendental pura é “deixar escapar o verdadeiro problema da constituição”, tema que trataremos no próximo capítulo desse trabalho. Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção p. 98 86
Merleau-Ponty, op. cit., p. 99 87
Id, Ibid., p. 12
31
primeiro caso, “nós só temos estados de nós mesmos” e no segundo, o mundo existe como
pensamento ou consciência do mundo, sendo imanente à consciência, assim suprimindo a
existência do mundo por si próprio. Já a redução eidética, diz Merleau-Ponty, “é a resolução
de fazer o mundo aparecer tal como ele é antes de qualquer retorno sobre nós mesmos, é a
ambição de igualar a reflexão à vida irrefletida da consciência.”88
Retomemos agora o tema da intencionalidade do ponto onde o suspendemos alguns
parágrafos acima. Afirmamos, naquele momento, que Husserl se utilizaria da intencionalidade
para investigar a questão sobre como a subjetividade pode ter acesso à transcendência e como
o conhecimento se torna possível, porém ainda nos faltavam alguns entendimentos
indispensáveis para abordarmos o assunto. Recuperemos, pois, os fios necessários para nosso
entendimento.
Vimos que graças à reforma da noção de fenômeno realizada por Husserl, a
fenomenologia passou a poder falar em um “a priori da correlação” entre consciência e
objeto, ou seja, a certeza de que toda consciência é sempre consciência de um objeto, e de que
todo objeto é sempre objeto para uma consciência. Também vimos Merleau-Ponty validar a
proposta de redução eidética de Husserl. Cabe então buscarmos o entendimento sobre a
intencionalidade da consciência. Veremos que é a redução que a torna compreensível, uma
vez que somente à medida que a consciência toma distância das coisas que ela aparece como
“consciência de alguma coisa”.89
A intencionalidade conforme apresentada por Husserl tem tamanha relevância que é
citada frequentemente como a principal descoberta fenomenológica. Porém, conforme
Merleau-Ponty observa, a afirmação de que “toda consciência é consciência de algo” tem suas
raízes em Kant, na Refutação do Idealismo, quando mostrou que “a percepção interior é
impossível sem percepção exterior” e “que o mundo, enquanto conexão dos fenômenos, é
antecipado na consciência de minha unidade, é o meio para mim de realizar-me como
consciência”. Merleau-Ponty indica que, para Kant, “a unidade do mundo, antes de ser posta
pelo conhecimento e em um ato expresso de identificação, é vivida como já feita ou já dada.”
Kant também afirma, na Crítica do Juízo, que há “uma unidade entre a imaginação e o
entendimento, uma unidade entre os sujeitos antes do objeto”.90 Sobre esse tema, Merleau-
88
Id, Ibid., p. 13 89
Oliveira chama a atenção para o esclarecimento feito por Ricoeur, afirmando que “consciência aqui significa, não a unidade individual de um ‘fluxo vivido’, mas cada cogitatio distinto voltado para um cogitatium distinto”. Oliveira, W. C. O conceito de fenomenologia a partir do prefácio... In: A Fenomenologia da Experiência, p. 160 NOTA 121 90
Merleau-Ponty, op. cit., p. 15
32
Ponty assevera que o sujeito se descobre e se experimenta, em circunstâncias como a
experiência do belo, como uma natureza espontaneamente conforme à lei do entendimento.
Leiamos o que ele nos diz:
“[...] na experiência do belo, por exemplo, eu experimento um acordo entre o sensível e o conceito, entre mim e o outro, que é ele mesmo sem conceito. Aqui, o sujeito não é mais o pensador universal de um sistema de objetos rigorosamente ligados, a potência que põe e submete o múltiplo à lei do entendimento [...].”91
Como explica o fenomenólogo, se existe uma “natureza do sujeito”, a arte da
imaginação deve condicionar a atividade categorial, não apenas quanto ao juízo estético, mas
também quanto ao conhecimento. E foi por identificar que Kant permanecia apenas em uma
intencionalidade de ato, na qual se encontram nossos juízos e deliberações, que Husserl
decide avançar na concepção de uma teleologia da consciência.
Andando na direção desse entendimento, Husserl reconhece a consciência como
projeto do mundo, destinada a apreender dele sempre alguma coisa, sem, contudo poder
abarcá-lo ou possuí-lo inteiramente. De outra parte, reconhece o mundo, palco da experiência
perceptiva, como “este indivíduo pré-objetivo cuja unidade imperiosa prescreve à consciência
a sua meta”. Decorrente de tal entendimento, Husserl apresenta uma noção ampliada de
intencionalidade92, nomeada “intencionalidade operante”, a qual “forma a unidade natural e
antepredicativa do mundo e de nossa vida”.93
Diferentemente da intencionalidade de ato, a intencionalidade operante não é da ordem
do conhecimento, ela é ainda anterior a representação. É ela que “fornece o texto do qual
nossos conhecimentos procuram ser a tradução em linguagem exata”. Trata-se de uma
intencionalidade pré-objetiva, presente no momento da abertura perceptiva do corpo para o
mundo e por isso mesmo, não há como tornar essa relação mais clara através de uma análise.
Como afirma Merleau-Ponty, “a filosofia só pode recolocá-la sob nosso olhar, oferecê-la a
nossa constatação”.94 E para que possamos vê-la, precisamos distender seus fios, como
esclarece Merleau-Ponty:
“É porque somos do começo ao fim relação ao mundo que a única maneira, para nós, de apercebermo-nos disso é suspender esse movimento, recusar-lhe nossa cumplicidade [...]. A reflexão não se retira do mundo em direção à unidade da consciência enquanto fundamento do mundo, ela toma distância para ver brotar as transcendências, ela distende os fios intencionais que nos ligam ao mundo para fazê-
91
Id, Ibid., p. 15 92
Lemos em Merleau-Ponty: “Em nossa opinião, a originalidade de Husserl está para além da noção de intencionalidade; ela se encontra na elaboração dessa noção e na descoberta, sob a intencionalidade das representações, de uma intencionalidade mais profunda, que outros chamaram de existência.” Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 172 NOTA 55 grifos nossos 93
Merleau-Ponty, op. cit., p. 16 94
Id, Ibid., p. 16
33
los aparecer, ela só é consciência do mundo porque o revela como estranho e paradoxal.”95
Finalmente, Merleau-Ponty nos aponta que, consequente à noção ampliada da
intencionalidade, a fenomenologia pode tornar-se uma “fenomenologia da gênese”, não se
limitando às “naturezas verdadeiras e imutáveis” como acontecia na intelecção clássica.
Porém, o que o fenomenólogo vislumbra a partir da constatação da impossibilidade de uma
redução completa e da revelação de uma consciência intencional investigaremos no próximo
capítulo dessa dissertação. Por ora, julgamos ter aclaradas as interrogações decorrentes do
trecho de Merleau-Ponty que foi nosso ponto de partida, o qual afirmava que “todos os
conhecimentos apoiam-se em um ‘solo’ de postulados [...]”96
95
Id, Ibid., p. 10, grifos nossos 96
Id, ibid., p. 20
34
CAPÍTULO II
ASPECTOS CONSTRUTIVOS PRESENTES NO “PREFÁCIO” DO LIVRO
FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO, DE MAURICE MERLEAU-PONTY
“Todos os conhecimentos apoiam-se [...]em nossa comunicação com o mundo como
primeiro estabelecimento da racionalidade”97
2 Os novos rumos propostos por Merleau-Ponty
Conforme indicado na Introdução desse trabalho, neste segundo capítulo buscaremos
descrever os passos seguidos por Merleau-Ponty no “Prefácio” da obra Fenomenologia da
Percepção, os quais o levaram a um novo entendimento sobre percepção, capaz de modificar
definitivamente tanto a Fenomenologia como a própria Filosofia. Expusemos no começo
dessa dissertação o fio condutor a ser utilizado, qual seja, uma afirmação feita por Merleau-
Ponty no final do Prefácio de sua obra, aqui subdividida para fins didáticos em três trechos.
Pois mantendo nossas coordenadas, tentaremos agora compreender os significados envolvidos
nos dois trechos finais dessa afirmação, ora supracitados. As subdivisões por nós
estabelecidas visam a atender tal demanda, porém, sempre com o cuidado de assegurar o
escopo delineado em nosso trabalho que é o olhar do próprio autor, apresentado no prefácio
de sua obra.
Para que possamos adentrar nos “novos rumos” propostos por Merleau-Ponty,
buscamos na primeira página do Prefácio uma de suas afirmações a respeito do que é
fenomenologia:
“É uma filosofia transcendental [...] para a qual o mundo já está sempre ‘ali’, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico.”98
Uma vez já esclarecidos no primeiro capítulo os pontos que levaram o fenomenólogo
francês a buscar compreender as relações da consciência e da natureza fora do pensamento
causal, que submete uma à outra, bem como fora do criticismo, que faz da natureza “uma
97
Merleau-Ponty, op. cit., p. 20 98
Id, ibid., p. 1
35
unidade objetiva constituída diante da consciência”99, podemos agora acompanhar o percurso
que conduziu o autor a afirmar que “o mundo já está sempre ali” e, ainda, a incitar os
filósofos a reencontrarem o “contato ingênuo” do sujeito com o mundo, ou seja, a buscarem a
comunicação do sujeito com o mundo precisamente no espaço onde a racionalidade
primeiramente se estabelece, ainda antes de se tornar a “verdade humana”.
Observamos que a superação das duas posições clássicas, em favor de uma outra
concepção das relações entre o subjetivo e o objetivo,100 trouxe em seu bojo uma renovação
no que se refere ao contato do sujeito com o meio, associada à preocupação acerca do
transcendental, indicado por Merleau-Ponty como a atitude necessária para exercer a filosofia
de Husserl. Assumir a atitude transcendental para o fenomenólogo significa buscar os
processos responsáveis pela gênese do sentido da experiência, e para tal, é necessário um
retorno aos fenômenos, uma vez que é por meio deles que o mundo objetivo se torna
conhecido pelo sujeito. Conforme Merleau-Ponty, “a experiência dos fenômenos [...] é a
explicitação ou o esclarecimento da vida pré-científica da consciência”101 e é através da
redução fenomenológica que o conjunto de vividos da percepção se abre e revela o mundo.
Conforme anunciado no primeiro capítulo, Merleau-Ponty aponta que assim “o campo
fenomenal” se torna “campo transcendental”102, porém, nos alerta o autor, a redução não leva
a um domínio transcendental puro. Vejamos o que Merleau-Ponty nos diz a respeito:
“O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. [...] O mundo fenomenológico não é uma explicitação de um ser prévio, mas a fundação do ser; a filosofia não é o reflexo de uma verdade prévia mas, assim como a arte, é a realização de uma verdade.”103
Reconhecendo o mundo fenomenológico como o “sentido que transparece na
intersecção” e na “engrenagem” decorrente das experiências do sujeito no mundo, podemos
entender por que Merleau-Ponty indica um entrelaçamento entre o mundo transcendental e o
mundo empírico de tal forma que, como vimos no capítulo anterior, torna-se impossível uma
redução fenomenológica completa. Para o autor, o sentido da experiência não se relaciona a
99
Id, A Estrutura do Comportamento, p. 1 100
Merleau-Ponty afirma: “A aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção do mundo ou da racionalidade. A racionalidade é exatamente proporcional às experiências nas quais ela se revela.” Merleau-Ponty, Fenomenologia da
Percepção, p. 18 101
Merleau-Ponty, M., Fenomenologia da Percepção, p, 92 102
Id, ibid., p. 99 103
Id, ibid., p. 18-9
36
um ego transcendental, como em Husserl, mas sim com a própria experiência do sujeito, uma
vez que o mundo fenomenológico é concomitantemente “fundação do ser” e “sentido” das
experiências do ser. Continuemos, pois, a acompanhar a linha que Merleau-Ponty distende
diante de nossos olhos e que, esperamos, nos conduzirá aos novos rumos por ele propostos.
2.1 A temporalidade como padrão de racionalidade
No Prefácio da Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty afirma que “[...] nós
estamos no mundo, já que mesmo nossas reflexões têm lugar no fluxo temporal que elas
procuram captar [...].”104 Observamos que o autor nos aponta aqui, não apenas o fato de que
nossas experiências acontecem no mundo, mas ainda, que nossas reflexões acontecem no
fluxo do tempo. Referindo-se à cogitatio, “pertença do mundo ao sujeito e do sujeito a si
mesmo”, o autor torna-se ainda mais explícito em sua afirmação quanto ao tempo:
“Veremos que ela não é indiferente ao acontecimento e ao tempo, que ela é antes o modo fundamental do acontecimento e da Geschichte (história), da qual os acontecimentos objetivos e impessoais são formas derivadas, e enfim que o recurso à eternidade só é tornado necessário por uma concepção objetiva do tempo.”105
É preciso, afirma Merleau-Ponty, compreender essa cogitatio, “nosso poder sobre as
coisas e sobre nossos ‘estados de consciência’”106, visto ser ela que torna a experiência
possível. Conforme nos indica Ferraz107, trata-se de um padrão de racionalidade que
fundamenta as descrições da atividade corporal e do mundo percebido. Tal padrão é a
temporalidade, reconhecida por Merleau-Ponty como uma “estrutura existencial complexa”.
Para o autor francês, o tempo nasce da relação do sujeito com as coisas, não sendo um
processo real, até porque “o mundo objetivo é excessivamente pleno para que nele haja
tempo.” O fenomenólogo entende que o porvir e o passado estão em "uma espécie de
preexistência e de sobrevivência eternas”108 nas próprias coisas, pois aquilo que para o sujeito
é passado ou futuro está presente no mundo. Em suas palavras, lemos:
“O passado e o porvir, por si mesmos, retiram-se do ser e passam para o lado da subjetividade para procurar nela não algum suporte real, mas, ao contrário, uma possiblidade de não-ser que se harmonize com sua natureza. Se separamos o mundo objetivo das perspectivas finitas que dão acesso a ele e o pomos em si, em todas as suas partes só podemos encontrar ‘agoras’. Mais ainda, esses agoras, não estando
104
Id, ibid., p. 10-1 105
Id, ibid., p. 500 106
Id, ibid., p. 500 107
Ferraz, M.S., Fenomenologia e Ontologia em Merleau-Ponty, p. 31 108
Merleau-Ponty, op. cit., p. 551-2
37
presentes a ninguém, não têm nenhum caráter temporal e não poderiam suceder-se.”109
Observamos que a análise do tempo assume relevância mesmo não se tratando de um
processo real, na medida em que através dela teremos acesso a estrutura concreta da
subjetividade, a qual, conforme anteriormente citado, é inseparável do mundo
fenomenológico. Para Merleau-Ponty, a compreensão do sujeito não acontece em sua pura
forma, mas sim, “na intersecção de suas dimensões”.110 Portanto, será considerando o tempo
em si mesmo e sua dialética interna que poderemos refazer nossa ideia do sujeito, sugere o
autor.
Merleau-Ponty aponta que a estrutura da temporalidade pode ser entendida como um
fluxo indiviso de passagem, que ele denomina tempo constituinte, que se compõe pela
multiplicidade de instantes sucessivamente organizados como momentos constituídos. Torna-
se fundamental ao tempo nunca estar completamente constituído, pois o que denominamos
como tempo constituído não é o próprio tempo, e sim, seu registro final, “é o resultado de sua
passagem que o pensamento objetivo sempre pressupõe e não consegue apreender.” Esse
tempo constituído, diz o autor, “é espaço, já que seus momentos coexistem diante do
pensamento, é presente, já que a consciência é contemporânea de todos os tempos”111, é na
verdade um ambiente distinto do sujeito e imóvel, onde não há fluxo e nada acontece (“nada
passa e nada se passa”). Para Merleau-Ponty, o tempo é a dimensão onde os acontecimentos
“se expulsam uns aos outros” e é também a dimensão onde cada acontecimento “recebe um
lugar inalienável”; pois “cada momento do tempo”, indica o fenomenólogo, “põe uma
existência contra a qual os outros momentos do tempo nada podem”.112
Cabe salientar, conforme nos indica Ferraz113, que Merleau-Ponty realça a primazia do
presente, considerado um foco estável através do qual os outros instantes podem ser
reconhecidos como tais. No entendimento de Merleau-Ponty, o presente é um campo denso,
que se abre espontaneamente para o passado e para o futuro. Tal densidade relaciona-se ao
fato de considerarmos que faz parte de nosso presente “tudo o que tem uma relação de sentido
com nossas ocupações do momento”114, afinal “é sempre no presente que estamos centrados, é
dele que partem nossas decisões”115, conclui o fenomenólogo. Na experiência presente vemos
109
Id, ibid., p. 552 110
Id, ibid., p. 550 111
Id, ibid., p. 556, grifos nossos 112
Id, ibid., p. 525 113
Ferraz, M.S., op. cit., p. 31 114
Merleau-Ponty, op. cit., p. 571 115
Id, ibid., p. 573
38
o mundo se manifestar conforme os parâmetros das estruturas perspectivas116; porém, observa
o filósofo, ao se estender para o passado e para o futuro, dimensões que excedem a apreensão
subjetiva atual decorrente da densidade temporal inerente à manifestação fenomênica, o
mundo mostra-se irredutível a um simples correlato subjetivo.
Para Merleau-Ponty, o problema a ser suplantado refere-se a como “explicitar este
tempo em estado nascente e prestes a aparecer, sempre subentendido pela noção do tempo, e
que não é o objeto de nosso saber, mas uma dimensão de nosso ser.”117 Conforme o
fenomenólogo, não existe uma série de agoras dos quais eu conservaria a imagem e que,
postos lado a lado, formariam uma linha, pois o tempo não é uma linha, mas sim uma rede de
intencionalidades. As intencionalidades não partem de um “Eu central”, e sim do campo
perceptivo do sujeito, que “arrasta atrás de si seu horizonte de retenções e por suas protensões
morde o porvir”.118 Portanto, o tempo não é um dado da consciência do sujeito, e sim, a
consciência é que constitui o tempo e, através da idealidade ela se estende para além do
presente. Acompanhemos as palavras do autor para clarear nosso entendimento:
“Não passo por uma série de agoras dos quais eu conservaria a imagem e que, postos lado a lado, formariam uma linha. A cada momento que chega, o momento precedente sofre uma modificação: eu ainda o tenho em mãos, ele ainda está ali, e todavia ele já soçobra, ele desce para baixo da linha dos presentes; para conservá-lo, é preciso que eu estenda a mão através de uma fina camada de tempo.”119
Eis a densidade do tempo descrita de maneira única e irretocável. Pois é nessa
densidade que nossa existência “aberta e pessoal” deve ser entendida. Uma existência que
“repousa sobre uma primeira base de existência adquirida e imóvel”, uma vez que o sujeito é
temporalidade e a dialética do adquirido e do porvir é constitutiva do tempo e, não obstante,
uma existência que é fluxo constante. O autor francês nos aponta que ao analisarmos o tempo
vemos o sujeito e o objeto aparecerem como “dois momentos abstratos de uma estrutura única
que é a presença”120 e reforça seu entendimento de que é através do tempo que devemos
pensar o ser, porquanto através das relações entre “tempo sujeito” e “tempo objeto” podemos
compreender as relações entre o sujeito e o mundo.
Vemos através da temporalidade, conforme o entendimento do fenomenólogo, além de
esclarecidas as ambiguidades anteriormente constatadas no corpo e no mundo, ser aclarado
116
“A coisa e o mundo existem apenas vividos por mim ou por sujeitos tais como eu, pois são o encadeamento de nossas perspectivas, mas elas transcendem todas as perspectivas porque esse encadeamento é temporal e inacabado.” Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 447 117
Merleau-Ponty, op. cit., p. 557 118
Id, ibid., p. 558 119
Id, ibid., p. 558, grifos nossos 120
Id, ibid., p. 577
39
também o problema das relações entre a alma e o corpo. Para Merleau-Ponty, “a vida psíquica
confunde-se com o foco presente, e os processos fisiológicos anônimos remetem a uma
multiplicidade de instantes passados sedimentados na história corporal”121, explica Ferraz. O
foco presente para Merleau-Ponty, conforme já vimos, é um campo que envolve aberturas ao
passado e ao futuro, porém a consciência presente nunca apreende totalmente o passado e o
porvir. Assim, vida psíquica e processos fisiológicos se entrelaçam122, sendo impossível
determinar o que se deve a um ou ao outro, ou seja, o que se deve ao corpo ou ao espírito, à
natureza ou à liberdade. Nas palavras de Merleau-Ponty lemos que, “pode-se dizer que o
corpo é ‘a forma escondida do ser próprio’ ou, reciprocamente, que a existência pessoal é a
retomada e a manifestação de um dado ser em situação”.123 Afinal, conclui o fenomenólogo,
“o equívoco é essencial à existência humana”.124
Finalizando o capítulo que trata sobre o tema da temporalidade, Merleau-Ponty
assevera:
“A solução de todos os problemas de transcendência se encontra na espessura do presente pré-objetivo, em que encontramos nossa corporeidade, nossa sociabilidade, a preexistência do mundo, quer dizer, o ponto de desencadeamento das ‘explicações’ naquilo que elas têm de legítimo – e ao mesmo tempo o fundamento de nossa liberdade.”125
O filósofo que incitou outros filósofos a reencontrarem o “contato ingênuo” do sujeito
com o mundo onde a racionalidade se estabelece, nos apresenta um entendimento sobre
racionalidade muito particular. Para Merleau-Ponty, a racionalidade apresenta um “padrão”
que fundamenta “a pertença do mundo ao sujeito e do sujeito a si mesmo”126. Segundo seu
entendimento, os processos responsáveis pela gênese do sentido da experiência se apoiam na
temporalidade, sendo esse o padrão de racionalidade do sujeito. Quanto à densidade do
presente pré-objetivo, ela é apresentada como o ponto-chave da inteligibilidade da própria
experiência pré-objetiva, entendida por ele como originária em relação ao ser objetivo.
Merleau-Ponty nos mostra, em sua exposição, um sujeito que através de sua consciência
intencional lança suas redes pelo emaranhado do tempo (tempo este que é nada menos que
121
Ferraz, op. cit, p.32 122
A esse respeito, Merleau-Ponty afirma: “[...] a tematização científica e o pensamento objetivo não poderão encontrar uma só função corporal que seja rigorosamente independente das estruturas da existência, e reciprocamente, um só ato ‘espiritual’ que não repouse em uma infra-estrutura corporal.” Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 577 123
Merleau-Ponty, op. cit., p. 229 124
Id, ibid., p. 233 125
Id, ibid., p. 580 126
Id, ibid., p. 500
40
uma dimensão de nosso ser), experiencia os acontecimentos e constrói sua própria história
muito antes de qualquer análise ou conceito objetivo.
Acreditamos que o fenomenólogo desta forma firma um dos mais relevantes pilares de
sua obra, o qual optamos nesse trabalho por, diferentemente do autor, expor antecipadamente
aos outros temas, por entendermos que a compreensão de sua linha de pensamento no que se
refere a temporalidade facilitará fortemente o entendimento dos outros pontos que ora
adentraremos.
2.2 O caráter central do mundo na Fenomenologia da Percepção
Vimos que a temporalidade, no entendimento de Merleau-Ponty, permite esclarecer as
ambiguidades reconhecidas no corpo e no mundo percebido e, de outra forma, permite
solucionar o problema clássico das relações entre o corpo e a alma. Na expressão de
Moutinho, com a temporalidade encontramos “a legitimação da mundanidade definitiva e, no
limite, do projeto que a Fenomenologia da Percepção põe em marcha.”127 Analisemos, agora,
o entendimento de Merleau-Ponty a respeito do mundo, partindo de algumas evidências por
ele dispostas no Prefácio ora estudado e, tentemos pois acompanhar o desenrolar de seu
pensamento, para alcançarmos todos os papéis por ele associados ao mundo.
Merleau-Ponty nos indica que ao mesmo tempo o mundo “está ali antes de qualquer
análise”128; é a “tese constante”129 da vida do sujeito; e, ainda, é o protagonista da
racionalidade130, assim possuindo um papel central na construção do conhecimento. Dizer que
o mundo “está sempre ali” é dizer que nosso mundo já é carregado de significação antes
mesmo de nossa reflexão e conhecimento. Esse mundo pré-objetivo, que existe antes de
qualquer pensamento, é também o protagonista131 da racionalidade, visto ser o mundo-da-
vida132. Em outras palavras, o mundo é o lugar onde a racionalidade se estabelece, posto ser o
palco onde se desenrola a experiência ingênua do corpo. Em Merleau-Ponty, a “experiência
127
Moutinho, L. D. S., O Projeto da Fenomenologia da Percepção. In: A Fenomenologia da Experiência, p. 100 128
Merleau-Ponty, op. cit., p. 5 129
Id, ibid., p.14 130
Id, ibid., p. 20 131
Entendemos por protagonista, aquele que desempenha ou ocupa o primeiro lugar num acontecimento. 132
“Termo introduzido por Husserl em Krísis, para designar ‘o mundo em que vivemos intuitivamente, com suas realidades, do modo como se dão, primeiramente na experiência simples e depois também nos modos em
que sua validade se torna oscilante (oscilante entre ser e aparência, etc.)’.” Krísis, § 44 in ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, p. 689
41
ingênua do corpo” refere-se ao movimento onde o corpo133 aplica-se ao tempo e ao espaço,
ainda antes de todo pensamento determinante. De outra parte, dizer que há um mundo em-si,
para Merleau-Ponty, significa dizer que o mundo tem um caráter autônomo, porém, observe-
se que a experiência perceptiva tem pleno acesso a esse mundo. logo, o mundo percebido é na
verdade em-si-para-nós, onde “o caráter em-si do mundo”, conforme esclarece Ferraz, “não
se deve a um conjunto de eventos que não se doa para as capacidades perceptivas, mas apenas
ao fato de que a ordenação, o sentido e a subsistência de tais eventos não são criados pela
atividade subjetiva.”134
Por ser o mundo-da-vida, o mundo acaba por tornar-se a tese constante da vida do
sujeito, posto que todo o processo dialético acontece nele. Merleau-Ponty nos mostra que essa
“tese constante” está fadada ao inacabamento em consequência do sujeito não conseguir
“nunca inteiramente dar razão”, e isso decorre em parte devido ao fato de que “nenhuma
reflexão pode reconstruir”135 essa experiência e, em parte, por referir-se a um mundo que
existe em-si, não sendo dado ao sujeito conseguir “abarcar ou possuir"136 completamente.
Assim, nos sugere Marques, “falar do mundo é referir-se ao ‘horizonte’ maior donde todos os
outros são possíveis e do ponto originário de toda percepção”137. Nas palavras de Merleau-
Ponty, lemos:
“O mundo tal como tentamos mostrá-lo, enquanto unidade primordial de todas as nossas experiências no horizonte de nossa vida e termo único de todos os nossos projetos, não é mais o desdobramento visível de um Pensamento constituinte, nem uma reunião fortuita de partes, nem, bem entendido, a operação de um pensamento diretriz sobre uma matéria indiferente, mas a pátria de toda racionalidade.”138
Como vemos com toda clareza, o fenomenólogo nos aponta ser o mundo a pátria de
toda racionalidade e nos indica que tal afirmação decorre do fato do mundo ser a unidade
primordial de todas as experiências do sujeito. Lembremos, pois, que na experiência presente
do sujeito, o mundo se manifesta conforme os parâmetros das estruturas perspectivas139, mas
ao se estender para o passado e para o futuro ele mostra-se irredutível a um simples correlato
133
Nas seções entituladas “O corpo e a experiência do sujeito no mundo” e “O caráter central da percepção na constituição da verdade humana”, detalhamos o entendimento do autor quanto ao ‘corpo do sujeito’ e ao ‘corpo fenomenológico’, bem como quanto ao ‘campo fenomenológico’, ponto de extrema relevância em sua obra. Nesse momento apenas alertamos que o significado cartesiano que provocou a dicotomia corpo e alma dista fortemente da visão merleau-pontyana, quando este se refere a “corpo” do sujeito. 134
Ferraz, op. cit., p. 30 135
Moutinho, op. cit., p. 96 136
Merleau-Ponty, op. cit., p. 15 137
Marques, R.V., A Compreensão da Existência e a filosofia... In: A Fenomenologia da Experiência, p. 122 138
Merleau-Ponty, op. cit., p. 576 139
Lemos em Ferraz: “[...] o mundo se manifesta como repousando em si próprio, e a organização dos seu eventos, embora se harmonize exatamente com as estruturas do corpo, ocorre nas próprias coisas e situações e não na subjetividade humana.” Ferraz, M.S. Fenomenologia e Ontologia em Merleau-Ponty, p. 30
42
subjetivo. Conforme já visto, tal impedimento decorre do presente remeter à transcendência
dos horizontes, o que impede definitivamente que se possa fazer da percepção uma
coincidência com a coisa. Observa-se aqui Merleau-Ponty desvelar uma ambiguidade que não
impõe a escolha entre o inacabamento do mundo e a sua existência. A ambiguidade se resume
àquela do tempo, que é um meio só acessível se nele ocuparmos uma situação e o
apreendermos através dos horizontes dessa situação. Consequentemente, “o ideal do
conhecimento objetivo”, diz Merleau-Ponty, “é ao mesmo tempo fundado e arruinado pela
temporalidade”140. O autor elucida essa afirmação:
“O mundo no sentido pleno da palavra não é um objeto, ele tem um invólucro de determinações objetivas, mas também fissuras, lacunas por onde as subjetividades nele se alojam, ou, antes, que são as próprias subjetividades. Compreende-se agora por que as coisas, que devem ao mundo o seu sentido, não são significações oferecidas à inteligência, mas estruturas opacas, e por que seu sentido último permanece embaralhado.”141
O presente vivo, conforme nos aponta o filósofo francês, está dilacerado entre um
passado que ele retoma e um porvir que ele projeta. Assim, “é essencial à coisa e ao mundo
apresentarem-se como abertos”, remetendo-nos para além de suas manifestações
determinadas, sempre como promessa de “outra coisa a ver”. Daí esse “mistério” que envolve
coisa e mundo, que não é da ordem do pensamento objetivo e que se torna um mistério
insolúvel ao sujeito, exatamente por referir-se à opacidade das estruturas dessa coisa e mundo.
Para Merleau-Ponty, o mundo não é um objeto e também não é uma soma de coisas que
sempre se poderia colocar em dúvida, o mundo é sim “o reservatório inesgotável de onde as
coisas são tiradas”142. A coisa e o mundo, nos diz Merleau-Ponty, se mostram através do
encadeamento de nossas perspectivas, mas sempre as transcendem, visto que esse
encadeamento é temporal e inacabado. É a imperfeição do ser intencional que faz com que
acreditemos na plenitude “do objeto e do instante”143. Em verdade, as coisas e os instantes
articulam-se uns aos outros para formar o mundo através do que denominamos de
subjetividade.
Porém, evitando qualquer mal-entendido, Merleau-Ponty salienta:
“Trata-se de reconhecer a própria consciência como projeto do mundo, destinada a um mundo que ela não abarca nem possui, mas em direção ao qual ela não cessa de
140
Para Merleau-Ponty, o ideal do conhecimento objetivo é fundado pela temporalidade na medida em que a síntese objetiva é uma síntese temporal (ver p. 52); e é arruinado pela temporalidade exatamente por ser temporal e, portanto, tratar-se de uma síntese sempre inacabada. 141
Merleau-Ponty, op. cit., p. 447 142
Id, ibid., p. 460 143
Id, ibid., p. 447
43
dirigir-se – e o mundo como este indivíduo pré-objetivo cuja unidade imperiosa prescreve à consciência a sua meta.”144145
Ao dizer que o mundo possui o poder de prescrever à consciência a sua meta, o
fenomenólogo deixa evidente ser o mundo um indivíduo pré-objetivo, que absolutamente não
é apenas o resultado do trabalho da subjetividade humana, mas que se dá a conhecer ao
sujeito. De outra parte, parece-nos, ao indicar a consciência como projeto do mundo, o autor
está se referindo de um lado à intencionalidade operante, identificada por Husserl e
apresentada no primeiro capítulo desse trabalho, presente no momento da abertura perceptiva
do corpo para o mundo e que nos aponta um sujeito destinado ao mundo; de outro lado, o
autor se refere a própria capacidade perceptiva do sujeito. Para complementarmos nosso
entendimento, destacamos:
“[...] uma coisa não é efetivamente dada na percepção, ela é interiormente retomada
por nós, reconstituída e vivida por nós enquanto é ligada a um mundo do qual trazemos conosco as estruturas fundamentais, e do qual ela é apenas umas das
concreções possíveis. Vivida por nós, ela não é menos transcendente à nossa vida porque o corpo humano, com seus hábitos que desenham em torno de si uma circunvizinhança humana, é atravessado por um movimento em direção ao próprio mundo.”146
Para Merleau-Ponty, buscar a “essência do mundo”147 refere-se a buscar aquilo que de
fato ele é para o sujeito ainda antes de qualquer tematização, ou seja, antes da interiorização e
reconstituição realizadas pelo sujeito. A transposição da realidade do mundo em idealidade,
objetada pelo autor conforme vimos no primeiro capítulo desse trabalho, subtrai a encarnação
do sujeito e do sensível, assim tornando inacessível a coisa “em carne e osso”, conforme é
dada na percepção. Porém, ao buscar a referida essência do mundo Merleau-Ponty se
questiona: “o que é o ligado sem a ligação, o que é este objeto que ainda não é objeto para
ninguém?”148 E ele responderá que a reflexão transcendental, que mostra o sujeito como
pensador intemporal do objeto, “não introduz nele nada que ali já não esteja”, limitando-se a
formular aquilo que dá um sentido ao objeto, que faz estável a sua estrutura e torna possível
ao sujeito sua experiência da objetividade. Assim, Merleau-Ponty assevera:
“É a partir do ligado que tenho, secundariamente, consciência de uma atividade de
ligação, quando, assumindo a atitude analítica, decomponho a percepção em qualidades e em sensações e quando, para encontrar a partir delas o objeto no qual
144
Id, ibid., p. 15-6 145
Lembremos que para Merleau-Ponty, há um imperativo de unidade para a consciência, ou seja, mesmo a percepção acontecendo em perspectivas,o sujeito constitui a unidade dos objetos visto o movimento da própria percepção visar um mundo pronto e acabado. 146
Id, ibid., p. 438, grifos nossos 147
Id, ibid., p. 13 148
Id, ibid., p.320
44
primeiramente eu estava jogado, sou obrigado a supor um ato de síntese que não é senão a contrapartida de minha análise.”149150
Vemos aqui o autor pensar a síntese perceptiva sem um ato efetivo de ligação, sem
uma potência ligante151 e, sobre tal, encontramos já no Prefácio Merleau-Ponty anunciar que
“sem dúvida, o ato de ligação não é nada sem o espetáculo que ele liga”152. Ocorre que,
diferentemente da reflexão transcendental, em Merleau-Ponty a síntese perceptiva realizada
pelo sujeito é temporal e, conforme abordamos na seção que trata sobre temporalidade, a
subjetividade no campo da percepção refere-se exatamente à temporalidade. Para
compreendermos como ocorre essa síntese perceptiva, acreditamos ser necessário avançarmos
no entendimento sobre a percepção humana, e para tal, adentrarmos também no conhecimento
sobre esse sujeito que percebe e que tem como meta permanente o próprio mundo. Porém,
primeiramente queremos analisar um último aspecto que pode ajudar a elucidar ainda mais o
nosso entendimento sobre o mundo.
Trata-se de esclarecermos a respeito dos motivos que levam Merleau-Ponty a apontar
o mundo como o palco de todas as experiências do sujeito. Em seus estudos, ao analisar
situações diversas, ora onde o sujeito se encontra em vigília e com plena saúde, ora com
doenças como as alucinatórias, ora fechado em seus sonhos, ou mesmo apenas silenciado em
suas reflexões, Merleau-Ponty sempre se depara com um sujeito vinculado ao mundo,
dirigindo-se incansavelmente a ele, posto ser ele sua meta constante. É no mundo que os
acontecimentos se realizam, nos diz Merleau-Ponty, e mesmo durante o sonho, o sujeito não
abandona o mundo. O fenomenólogo nos explica que “o espaço do sonho separa-se do espaço
claro, mas utiliza todas as suas articulações, o mundo nos obceca até no sono e é sobre o
mundo que sonhamos.”153 Da mesma forma, nossas reflexões “têm lugar no fluxo temporal
149
Id, ibid., p. 319, grifos nossos 150
Lembremos que a reflexão transcendental nos diz que “para que haja visão do objeto ou percepção tátil do objeto, faltará sempre aos sentidos essa dimensão de ausência [...]. A consciência do ligado pressupõe a consciência do ligante e de seu ato de ligação, a consciência de objeto pressupõe a consciência de si, ou antes elas são sinônimos.” Pois, para o fenomenólogo francês é possível pensar a síntese perceptiva sem o ato de ligação, e isso deve-se a um novo entendimento sobre o corpo que será tratado na próxima seção. Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 318 151
Merleau-Ponty retomará a esse tema em outro ponto do livro e nos dirá: “A relação entre a razão e o fato, entre a eternidade e o tempo, assim como aquela entre a reflexão e o irrefletido, entre o pensamento e a linguagem ou entre o pensamento e a percepção, é aquela relação com dupla direção [...]”, onde, “o fundante [...] é primeiro no sentido em que o fundado se apresenta como uma determinação ou uma explicitação do fundante, o que lhe proíbe de algum dia reabsorvê-lo, e todavia o fundante não é primeiro no sentido empirista e o fundado não é simplesmente derivado dele, já que é através do fundado que o fundante se manifesta.” Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 527, grifos nossos 152
Merleau-Ponty, op. cit., p. 4 153
Id, ibid., p. 393
45
que elas procuram captar”154, logo, estão diretamente vinculadas ao mundo e ao “padrão”
temporalidade, o qual fundamenta “a pertença do mundo ao sujeito e do sujeito a si mesmo”,
conforme anteriormente apresentado em nosso trabalho.
Ao mesmo tempo que reconhecendo o mundo presente em nossos sonhos, reflexões e
até mesmo nas alucinações, Merleau-Ponty nos mostra o quanto a existência do mundo
independe do sujeito. “O real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para anexar a si
os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações mais verossímeis”155,
nos diz o filósofo. Logo, se não há confusões possíveis entre fatos, reflexões e sonhos,
podemos afirmar a existência de um mundo em-si, pré-objetivo, cujo sentido e subsistência
independem da atividade subjetiva, e concomitantemente reconhecer ser esse mundo o
mundo-da-vida do sujeito, ao qual a consciência objetiva tem acesso e no qual todas as
experiências acontecem. Ou seja, reafirma-se o entendimento de o mundo percebido ser em-
si-para-nós, onde todas as experiências acontecem e para o qual todas as reflexões e sonhos
se dirigem, e que torna-se a tese constante da vida do sujeito, tese essa sempre inacabada,
mas permanentemente em construção.
2.3 O corpo e a experiência do sujeito no mundo
Ao se referir sobre o sujeito cujas experiências acontecem no mundo, Merleau-Ponty
afirma que ele não é apenas um objeto do mundo e, ainda, que seu conhecimento é decorrente
de suas experiências no mundo. Vejamos em suas palavras:
“Eu não sou o resultado ou o entrecruzamento de múltiplas causalidades que determinam meu corpo ou meu ‘psiquismo’, eu não posso pensar-me como uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada.”156
Ao ler tais afirmações, nos indagamos: quem é esse sujeito cujo corpo não é um
objeto, que não se define apenas pelo entrecruzamento de causalidades e cujo conhecimento
acontece em um mundo que possui o poder de prescrever-lhe sua meta? A nós, esses dados
sugerem uma história com dois protagonistas e não apenas um157, posto que a racionalidade é
154
Id, ibid., p. 10-1 155
Id, ibid., p. 6 156
Id, ibid., p. 3 157
Alusão ao idealismo e ao empirismo: conforme entendimento de Merleau-Ponty, de um lado, o Idealismo atribuía ao “sujeito” a constituição do mundo e, de outro, o Empirismo apontava um “mundo” em si, agindo
46
um resultado consequente de uma trama construída a dois, na qual mundo e sujeito
interagem158. Conforme vimos na seção anterior, no entendimento de Merleau-Ponty, o
mundo, embora palco de todas as experiências do sujeito, tem sua existência autônoma159,
pré-objetiva e, ainda, tem o poder de ditar à consciência sua meta, ou seja, entre ele e o sujeito
se dá uma troca profunda. Pois tentemos caminhar um pouco mais para referendarmos ou não
a existência de dois protagonistas. Para tal, comecemos por retomar o que em uma nota na
seção anterior havíamos deixado pendente de explicação: o novo entendimento de Merleau-
Ponty sobre o corpo, o qual tornou possível ao autor pensar a síntese perceptiva sem o ato de
ligação. Esperamos assim compreendermos por que o autor distingue nosso corpo de um
objeto qualquer do mundo e, paralelamente, aprofundarmos nosso conhecimento sobre o
próprio sujeito.
No capítulo “A Experiência do Corpo e a Psicologia Clássica”, do livro
Fenomenologia da Percepção, vemos Merleau-Ponty diferenciar o corpo próprio do objeto:
“o objeto”, nos indica o fenomenólogo, “só é objeto se pode distanciar-se e, no limite,
desaparecer de meu campo visual, enquanto o corpo próprio apresenta-se com uma
permanência “de um gênero inteiramente diverso”.160 Sabemos que o corpo próprio não está
no limite de uma exploração indefinida e apresenta-se ao sujeito sempre sob o mesmo ângulo,
assim, ele não está no mundo como um objeto que se desdobra diante do sujeito, ele existe
com o sujeito. Mesmo ao tentar observar-se refletido em um espelho, o sujeito descobrirá seu
corpo imitando suas intenções e se recusando a manter-se fixo como um objeto de análise o
qual permite ao sujeito variar as perspectivas. Também, observa o filósofo francês, é vedado
ao sujeito ver-se inteiramente; seu corpo visual é limitado, o próprio rosto só pode ser visto
pelo sujeito em reflexo, nunca diretamente. Ao buscar a opção do tato, ainda o corpo se
recusará a assumir o papel de simples objeto. Merleau-Ponty cita como exemplo o entrecruzar
realizado pelas mãos direita e esquerda de um dado sujeito, onde, mesmo nessa hora, o corpo
“transgride o estatuto de objeto que queremos impor-lhe”161, pois “as duas mãos nunca são ao
mesmo tempo tocadas e tocantes uma em relação à outra”162.
sobre nossos olhos. Assim, ora sujeito, ora mundo era apresentado como protagonista. Sobre a expressão “protagonista”, ver nota 129, p. 38. 158
Para Merleau-Ponty, mundo e sujeito interagem, posto que “o objeto é falante e significativo”. Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty, p. 184 159
Observe-se que ao dizer que o mundo tem sua existência autônoma, Merleau-Ponty está sinalizando que existe “um mundo”, não entrando no mérito se esse mundo é ou não apenas tal qual nossa percepção nos aponta. 160
Id, ibid., p. 133 161
Oliveira, W.C., O Conceito de Fenomenologia a partir... In: A Fenomenologia da Experiência, p. 144 162
Merleau-Ponty, op. cit., p. 137
47
O corpo, em decorrência de suas peculiaridades, é apontado por Merleau-Ponty como
tendo uma permanência absoluta ao sujeito e tal permanência “serve de fundo à permanência
relativa dos objetos que podem entrar em eclipse”163, ou seja desaparecer do campo visual do
sujeito. De outra parte, a doação do objeto acontece sempre somente por uma de suas faces
em decorrência da própria espacialidade do corpo, uma vez que é a posição do corpo que
determina a perspectiva do objeto avistado. Assim, é a “resistência” do corpo próprio “a
qualquer variação perspectiva” que justifica a visualização e a não visualização de partes do
objeto. Merleau-Ponty salienta ainda que se o sujeito crê nos lados escondidos do objeto,
“como também em um mundo que os envolve a todos e que coexiste, com eles”, é porque o
corpo, ao mesmo tempo que sempre presente para o sujeito, está também permanentemente
envolvido no meio dos objetos e do mundo por relações objetivas e “os mantém em
coexistência com ele”, fazendo “bater em todos a pulsação de sua duração.”
O autor francês entende o corpo como “meio de nossa comunicação” com o mundo e o
mundo “como horizonte latente” das experiências do sujeito, “presente sem cessar, ele
também, antes de todo pensamento determinante”164. E nessa comunicação com o mundo,
salienta o autor, o corpo se posiciona de acordo com a tarefa que o envolve, ou seja, em uma
“espacialidade de situação”, enquanto o objeto permanece em uma “espacialidade de
posição”165, dessa maneira diferencia-se mais uma vez corpo e objeto. Mesmo o espaço
corporal, nos diz Merleau-Ponty, distingue-se do espaço exterior ao envolver suas partes ao
invés de desdobrá-las, deixando destacarem-se “o gesto e sua meta”. O espaço corporal forma
com o espaço exterior um sistema prático, no qual os objetos podem aparecer como metas da
ação do sujeito. Em decorrência desse entendimento, o fenomenólogo busca analisar mais
atentamente o movimento do corpo e, a partir de suas observações salienta:
“[...] o sujeito posto diante de sua tesoura, sua agulha e suas tarefas familiares não precisa procurar suas mãos ou seus dedos porque eles não são objetos a se encontrar no espaço objetivo, ossos, músculos, nervos, mas potências já mobilizadas pela percepção da tesoura ou da agulha, o termo central dos ‘fios intencionais’ que o ligam aos objetos dados. Não é nunca nosso corpo objetivo que movemos, mas nosso corpo fenomenal[...].”166167
163
Id, ibid., p. 136 164
Id, ibid., p. 136-7 165
Id, ibid., p. 146 166
Id, ibid., p. 153 167
A respeito do corpo fenomenal, Merleau-Ponty afirma: “[...] cada contato de um objeto com uma parte de nosso corpo objetivo é na realidade contato com a totalidade do corpo fenomenal atual ou possível. Eis como pode realizar-se a constância de um objeto tátil através de suas diferentes manifestações. Ela é uma constância para-meu-corpo, um invariante de seu comportamento total. [...] ele traz consigo uma certa típica do ‘mundo’ tátil.” (FP, p. 425)
48
O corpo objetivo conforme entendido pela anatomia, como podemos depreender, é
apenas um elemento no sistema do sujeito e de seu mundo. Antes, é o corpo fenomenal,
agente nas situações mundanas, que surge como originário em relação a esse corpo objetivo e
situa-se entre o “puro sujeito e o objeto”, vindo a formar, na expressão de Merleau-Ponty,
“um terceiro gênero de ser”168, que faz o sujeito perder sua pureza e transparência. Esse corpo
fenomenal “dispõe de uma intencionalidade própria”, que compõe um repertório de
possibilidades psicomotoras, e “que projeta sobre os estímulos formas típicas de apreender o
ambiente”169, nos lembra Ferraz.
Para o autor, o acontecimento fisiológico é apenas um esboço do acontecimento
perceptivo. Através do corpo, o objeto regula diretamente os movimentos do sujeito, e o
sujeito por sua vez, através da percepção pode penetrar no objeto e assimilar sua estrutura170.
Há, portanto, um diálogo do sujeito com o objeto, uma “retomada pelo sujeito do sentido
esparso no objeto e pelo objeto das intenções do sujeito”, tal diálogo “dispõe em torno do
sujeito um mundo que lhe fala de si mesmo e instala no mundo”171 os pensamentos do sujeito.
Assim, a percepção exterior e a percepção do corpo próprio variam conjuntamente, uma vez
que são as duas faces de um mesmo ato.
Entendemos aqui, que nossa sugestão de dois protagonistas em uma mesma história se
confirma e se nega ao mesmo tempo. Se confirma na medida em que ambos, objeto e sujeito
são protagonistas na construção da verdade humana e se nega quando entendemos que essa
construção se dá através de um “terceiro gênero de ser”, que é originário em relação ao corpo
objetivo e que situa-se entre o “puro sujeito e o objeto”, ou seja, antes mesmo de nomearmos
a existência de um corpo e de um objeto, num contato direto anterior até mesmo à qualquer
reflexão.
Em Merleau-Ponty são as perspectivas e o ponto de vista que inserem o sujeito no
mundo, e é a percepção a responsável pela inerência do sujeito às coisas e, portanto, pela
constituição de um “núcleo de significação primário”. Será somente através da mediação
corporal que, posteriormente, o sujeito poderá apreender a unidade do objeto, nos diz o
filósofo francês. E essa possibilidade do sujeito resumir todas as perspectivas costumeiras
realizando sínteses, decorre precisamente de seu corpo poder ver alternativamente o objeto,
168
Merleau-Ponty, op. cit., p. 469 169
Ferraz, M.S., op. cit., p. 30 170
“Ter um corpo é possuir uma montagem universal, uma típica de todos os desenvolvimentos perceptivos e de todas as correspondências intersensoriais para além do segmento do mundo que efetivamente percebemos.” Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 437-8 171
Merleau-Ponty, op., cit., p. 185
49
“de diferentes posições”172. Dessa forma, Merleau-Ponty, que nos apresentou a temporalidade
como um padrão de racionalidade, nos mostra agora a relevância do corpo fenomenal e da
espacialidade na construção das sínteses perceptivas e assevera categoricamente que “o
homem está no mundo” e que “é no mundo que ele se conhece”173, um mundo onde o sujeito
não deixa nunca de se situar, não como um objeto do mundo, mas sim como uma obra de arte.
Leiamos:
“Um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um contato direto, e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar temporal e espacial. É nesse sentido que nosso corpo é comparável à obra de arte. Ele é um nó de significações vivas e não a lei de um certo número de termos co-variantes.”174
Para o filósofo francês, o corpo fenomenal é um “nó de significações vivas”, uma
estrutura que se comunica com o mundo sensível, logo é uma “unidade expressiva”, por meio
da qual percebemos o mundo. Ele “é um eu natural e como que o sujeito da percepção”175.
Conforme Oliveira, residindo “abaixo do eu pensante”, este outro eu (natural) “me abre ao
mundo, medeia minha relação com ele e o compreende mesmo antes de eu poder pensá-lo”176.
Cabe pois refletirmos sobre como acontece essa compreensão do mundo, como o sujeito
consegue ver alternativamente o objeto, sempre em perspectiva e, ainda assim, elaborar
sínteses que assumem caráter de verdade absoluta.
2.4 O caráter central da percepção na constituição da verdade humana
Como apontado no final da seção anterior, uma vez aclarada a existência de um corpo
fenomenal capaz de apreender o mundo, fica ainda a dúvida sobre como se dá a construção
das sínteses perceptivas, posto que todas as coisas aparecem ao sujeito apenas por perfis. Pois
para melhor entendimento, começaremos aprofundando nosso entendimento sobre a
percepção humana, tema que também havia ficado pendente quando tratamos sobre o mundo.
Começaremos, pois por refletir a respeito da percepção em Merleau-Ponty. Ao ler sua
obra vemos que o fenomenólogo constrói a compreensão fenomenológica da percepção com
base no diálogo com a psicologia, em especial com a Gestalt, e finalmente, também, com base
172
Id, ibid., p. 273 173
Id, ibid., p. 6 174
Id, ibid., p. 209-10 175
Id, ibid., p. 278 176
Oliveira,W.C., op. cit., p. 155
50
no diálogo com a arte, sobretudo com a pintura moderna e os trabalhos de Cézanne, Matisse,
entre outros. Para realizar esta construção, Merleau-Ponty, no livro Fenomenologia da
Percepção, parte da noção de sensação visto ser fundamental na compreensão da percepção.
Em seus achados, o autor francês nos aponta que a sensação não é nem um estado ou uma
qualidade, nem a consciência de um estado ou de uma qualidade, como definiu o empirismo e
o intelectualismo. As sensações, nos esclarece o autor, só são compreendidas em movimento.
Para tal descoberta, Merleau-Ponty expõe alguns pacientes à experiência da cor, apresentadas
na forma de estímulos fracos ou breves. Como resultado desta experiência, o autor identifica
que há uma reação motora às cores. Decorrente de suas descobertas, o fenomenólogo diz:
“A cor, antes de ser vista, anuncia-se então pela experiência de certa atitude de corpo que só convém a ela e com determinada precisão. [...] O sujeito da sensação (portanto) não é nem um pensador que nota uma qualidade, nem um meio inerte que seria afetado ou modificado por ela; é uma potência que co-nasce em um certo meio de existência ou se sincroniza com ele. As relações entre aquele que sente e o sensível são comparáveis às relações entre aquele que sente sono e seu sono: o sono vem quando uma certa atitude voluntária repentinamente recebe do exterior a confirmação que ela esperava.”177
A partir do expresso por Merleau-Ponty, podemos depreender que a apreensão do
sentir se faz com o corpo, porém esse sentir não é individual ou passivo178. De outra parte,
também o que se dá a perceber, “o ‘algo’ perceptivo está sempre no meio de outra coisa, ele
sempre faz parte de um ‘campo’.”179 Assim, a sensação é uma expressão criadora, cujo sujeito
é “uma potência” que atua ou co-nasce em um certo meio, potência essa que resulta da
interação do sujeito com o meio. Logo, a percepção não é uma representação mental, e sim,
um acontecimento da corporeidade na própria existência. Conforme já anunciado no
parágrafo anterior, para Merleau-Ponty, as sensações só são compreendidas em movimento,
visto que na imobilidade a percepção do corpo torna-se confusa, faltando-lhe a
intencionalidade do movimento. Para o fenomenólogo, a intencionalidade leva o sujeito a
situar-se nas coisas, disposto a habitá-las com todo seu ser. Da mesma forma, os objetos
convidam o sujeito à realização de um gesto. Assim, os movimentos acompanham esse acordo
perceptivo sujeito-mundo180. Desse acontecimento da corporeidade na existência resulta uma
criação constante de novas possibilidades de interpretação das situações existenciais. Porém,
177
Merleau-Ponty, op. cit., p. 284-5 178
“[...] se tentamos apreender a ‘sensação’ na perspectiva dos fenômenos corporais que a preparam, encontramos não um indivíduo psíquico, função de certas variáveis conhecidas, mas uma formação já ligada a
um conjunto.” Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 31 179
Merleau-Ponty, op. cit., p. 24 180
Em “O Visível e o Invisível”, Merleau-Ponty afirma que as coisas verdadeiras e os corpos que percebem, “uns e outros, próximos ou afastados, estão, em todo caso, justapostos no mundo, e a percepção, que talvez não esteja ‘em minha cabeça’, não está em parte alguma a não ser em meu corpo como coisa do mundo”. Merleau-Ponty, “O Visível e o Invisível”, p. 21, grifos nossos
51
alerta o fenomenólogo, “entre minha sensação e mim há sempre a espessura de um saber
originário que impede minha experiência de ser clara para si mesma”. Sobre tal circunstância
falaremos logo a seguir.
Seguindo pois sua busca na construção da constituição fenomenológica da percepção,
Merleau-Ponty analisa a história do conceito de atenção, deduzido pelo empirismo pela
hipótese de constância. Para o empirismo, as “sensações normais” sempre já estarão no
próprio estímulo e a atenção é a função que as revela. Diferentemente, para o fenomenólogo
francês, prestar atenção “não é apenas iluminar” dados pré-existentes, e sim, a partir de dados
que só estão pré-formados enquanto horizontes, “realizar neles uma articulação nova
considerando-os como figuras”181. É essa articulação que o autor deseja aclarar. Para isso,
continuando sua busca, Merleau-Ponty revisa o entendimento vigente sobre juízo, e em suas
conclusões, assevera:
“[...] perceber no sentido pleno da palavra, que se opõe a imaginar, não é julgar, é apreender um sentido imanente ao sensível antes de qualquer juízo. O fenômeno da percepção verdadeira oferece portanto uma significação inerente aos signos, e do qual o juízo é apenas a expressão facultativa.”182
No entendimento de Merleau-Ponty, há uma sintaxe perceptiva que se articula
segundo regras próprias, de forma que a ruptura de relações antigas, o estabelecimento de
relações novas e o juízo exprimem o resultado dessa sintaxe, sendo por conseguinte somente
sua constatação final.
Para o filósofo francês, a significação do percebido não tem equivalente no universo
do entendimento e por essa razão para encontrar as origens da percepção faz-se necessário
retornar ao mundo vivido, aquém do mundo objetivo e reencontrar os fenômenos, reencontrar
“a camada de experiência viva através da qual primeiramente o outro e as coisas nos são
dados, o sistema ‘Eu-Outro-as coisas’ no estado nascente”183. Pois Merleau-Ponty nos
apresenta aqui uma das noções mais fundamentais em sua obra: a noção de campo fenomenal,
que absolutamente não é um mundo interior como supunha a psicologia, mas sim um sistema
complexo composto por “Eu-Outro-as coisas”. O campo fenomenal, aponta o autor, opõe uma
dificuldade de princípio à explicitação direta e total, daí surge o campo fenomenal se
transformar em campo transcendental184. Entendamos suas razões:
181
Merleau-Ponty, op. cit., p. 58 182
Id, ibid., p. 63 183
Id, Ibid., p. 90 184
Referindo-se à expressão transcendental, Merleau-Ponty explica: “Chamaremos de transcendência este movimento pelo qual a existência, por sua conta, retoma e transforma uma situação de fato. Justamente por ser transcendência, a existência nunca ultrapassa nada definitivamente, pois então a tensão que a define
52
“[...] a fenomenologia é a única entre todas as filosofias a falar de um campo transcendental. Esta palavra significa que a reflexão nunca tem sob seu olhar o mundo inteiro e a pluralidade das mônadas desdobradas e objetivadas, que ela só dispõe de uma visão parcial e de uma potência limitada.”185
Observe-se que para o autor, a reflexão deve ser considerada como uma operação
criadora que participa ela mesma da facticidade do irrefletido, de tal forma que o sujeito
nunca reúne efetivamente, ao mesmo tempo, todos os pensamentos originários que
contribuem para sua percepção ou sua convicção presente.
A identificação do campo fenomenal, que opôs uma dificuldade de princípio à
explicitação direta e total conforme entendia a psicologia, leva o filósofo a analisar o caminho
percorrido pela psicologia e especialmente pela Gestaltheorie. Em sua análise, Merleau-Ponty
não se furta a criticar a psicologia por seu “psicologismo” e a reconhecer como positiva a
entrada da Gestalt na reflexão do psicólogo, pois introduz a atitude transcendental em seu
trabalho, mesmo eles “sendo pouco fiéis”186 a ela. No entendimento do autor, porém, também
a Gestalttheorie, responsável pela introdução da psicologia da forma, termina por incidir em
psicologismo, na medida em que ela realiza a forma, em que a toma como um
"acontecimento da natureza”187. No entendimento de Merleau-Ponty, tal postura compromete
exatamente o que ele considera o maior benefício da forma, que é trazer um tipo de unidade,
de totalidade, que não pode ser encontrada em um ser da natureza. Para o fenomenólogo, a
forma “é a própria aparição do mundo e não sua condição de possibilidade, é o nascimento de
uma norma e não se realiza segundo uma norma”, e ainda mais relevante, a forma “é a
identidade entre o exterior e o interior e não a projeção do interior no exterior”.188 Merleau-
Ponty nos diz ainda que “cada forma constitui um campo de forças caracterizado por uma
lei”, e essa lei “não tem sentido fora dos limites da estrutura dinâmica considerada”, porém,
em contrapartida, essa lei “determina para cada ponto interior suas propriedades, de modo que
estas nunca serão propriedades absolutas, propriedades deste ponto”189. Lembremos que, na
seção que trata sobre temporalidade, Merleau-Ponty aponta que os dualismos clássicos são
ultrapassados a partir do entendimento da temporalidade. Pois agora poderemos identificar
que é a própria descrição da percepção como forma temporal o que abre caminho para que
Merleau-Ponty apresente a temporalidade como solução.
desapareceria. Ela nunca abandona a si mesma. Aquilo que ela é nunca lhe permanece exterior e acidental, já que ela o retoma em si.” Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. p. 234) 185
Merleau-Ponty, op. cit., p. 95 186
Id, ibid., p. 93 187
Merleau-Ponty, A Estrutura do Comportamento, p.212 188
Id, Fenomenologia da Percepção, p. 95 189
Id, A Estrutura do Comportamento, p. 214
53
Retomemos pois alguns pontos que julgamos relevantes para esse entendimento.
Sabemos de antemão que o corpo constitui com as coisas um conjunto de significações vivas
ou, na expressão de Merleau-Ponty, “um sistema em que cada momento é imediatamente
significativo de todos os outros”190. Com isso, fica evidente que a experiência do sujeito
“desemboca nas coisas e se transcende nelas”, acabando por se efetivar no quadro de “uma
certa montagem em relação ao mundo”191. Pois cremos ser essa montagem que precisamos
compreender.
Ao tratar sobre o mundo, Merleau-Ponty nos mostra que ele é um campo organizado
segundo uma lógica perceptiva que se alinha com a percepção do sujeito. O mundo em sua
manifestação primeira, que ocorre em uma camada pré-objetiva originária em relação ao
mundo tratado pelas ciências, é “um meio perceptivo que ainda não é o mundo objetivo, um
ser perceptivo que ainda não é um ser determinado”.192 Nessa camada, a significação do
percebido não tem equivalente no universo do entendimento, assevera o filósofo francês.
Quanto aos parâmetros de organização dessa camada pré-objetiva, Merleau-Ponty indica que
eles são originais em relação ao mundo objetivo, pois exibem uma inteligibilidade própria,
onde o que é dado através da experiência do sujeito no mundo “não é somente a coisa, mas a
experiência da coisa”193, diz o fenomenólogo.
A “experiência da coisa”, conforme apontado por Merleau-Ponty, é uma
transcendência que acontece “em um rastro de subjetividade”194 e que acaba por levar o
sujeito à “crença na coisa e no mundo”.195 Porém, saliente-se que para acreditar na coisa e no
mundo faz-se necessário uma síntese acabada e sabemos que esse acabamento é impossível
pela própria natureza da percepção do sujeito, a qual se dá em perspectivas que são
indefinidamente ligadas à novas perspectivas, em um horizonte inesgotável196. Parece-nos,
portanto, uma evidente contradição que o sujeito possa compor uma síntese de um objeto que 190
Id, Fenomenologia da Percepção, p. 404 191
Id, ibid., p. 407 192
Id, ibid., p. 77 193
Para elucidar tal experiência, Merleau-Ponty cita, entre outros, o clássico exemplo de dois segmentos de reta, os quais, na ilusão de Müller-Lyer, com a adjunção de linhas auxiliares torna desiguais duas figuras objetivamente iguais. Tal fato se dá em decorrência das linhas apresentadas não estarem postas nos terreno do ser, onde poderiam ser comparadas, e sim são apreendidas cada uma em seu contexto particular. Eis aí a evidência de um “rastro de subjetividade”. Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 27 e 29 194
Merleau-Ponty, op. cit., p. 436 195
Id, ibid., p. p. 443 196
Marilena Chaui dirá a esse respeito: O pensamento nos leva ao duplo enigma do invisível: de um lado, o da
universalidade das ideias sob a solidão do pensar; de outro, o do modo de relação entre o percebido e o
pensado, pois o primeiro é sempre inacabado enquanto o segundo é sempre acabado. Em outras palavras, o percebido permanece essencialmente indeterminado porque jamais será completamente visto pelos olhos do corpo, enquanto o pensado é essencialmente determinado porque completamente percebido pelo olho do espírito. Chaui, M., Experiência do Pensamento, p. 202
54
nunca se dá por inteiro à percepção. Porém, tal contradição cessa, ou “se generaliza”, diz
Merleau-Ponty, une-se às condições da experiência do sujeito, quando operamos no tempo. O
fenomenólogo explica que a síntese perceptiva é essencialmente temporal, mas não no sentido
de estar sujeita ao tempo, e sim no sentido de confundir-se “com o próprio movimento pelo
qual o tempo passa”.
A ambiguidade do saber do sujeito refere-se, diz o autor, ao fato de seu corpo
comportar duas camadas distintas, a do corpo habitual e a do corpo atual197, sendo a última,
uma camada onde ocorre a experiência instantânea, singular, plena, e a outra, a do corpo
habitual, a camada que, como um ser impessoal, apresenta um aspecto de generalidade198.
Assim, enquanto o tempo impessoal, vivido pelo corpo atual, se escoa e substitui percepções
antigas por percepções novas, o tempo pessoal vivido pelo corpo habitual permanece preso
em sua estrutura. O corpo habitual apresenta-se como uma “quase-presença” do passado, mas
evidentemente não é uma presença objetiva. Também, essa existência impessoal não é uma
coisa inerte, pois esboça um movimento de existência quando o presente assume esse corpo
habitual e o reintegra ao corpo atual, portanto, à existência pessoal.
A fim de melhor compreendermos o que foi dito acima, vale salientarmos aqui que,
como vimos ao tratarmos sobre temporalidade, Merleau-Ponty não define o presente como
um instante pontual, mas como um campo denso, que espontaneamente se abre para o passado
e para o futuro a partir da consciência intencional do sujeito. Para o fenomenólogo, o passado,
o adquirido “só está verdadeiramente adquirido se é retomado em um novo movimento de
pensamento” e esses mundos adquiridos dão à experiência do sujeito o seu sentido segundo,
tendo sido eles mesmos recortados em um mundo primordial, o qual funda seu sentido
primeiro. Merleau-Ponty enfatiza que os mundos adquiridos ficam armazenados em um
“mundo de pensamentos”199, onde ficam sedimentadas as operações mentais que permitem ao
sujeito contar com seus próprios conceitos e juízos sem precisar a cada momento refazer sua
síntese. Porém, reiteramos o alerta do autor: esse saber construído e sedimentado “não é uma
massa inerte”, posto que os pensamentos se alimentam a cada momento do pensamento
presente, assim, eles oferecem um sentido, mas o sujeito o restitui a eles. Dessa forma, “o
nosso adquirido disponível exprime a cada momento a energia de nossa consciência
197
Merleau-Ponty, op. cit., p. 122 198
Em um ponto mais adiante, refletindo sobre a síntese perceptiva, Merleau-Ponty nos diz: “[...] minha posse do longínquo e do passado, assim como a do futuro, é apenas de princípio, minha vida me escapa por todos os lados, ela é circunscrita por zonas impessoais.” Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 444 199
Merleau-Ponty, op. cit., p. 182
55
presente”.200 Cremos ser esse o ponto que o autor se refere quando nos fala de um sistema em
que cada momento é imediatamente significativo de todos os outros.
Conforme já anunciamos anteriormente, a descrição da percepção como forma201202
temporal é que permite compreendermos seu funcionamento, bem como, compreendermos a
construção de sínteses perceptivas. Conforme vimos, há uma via de mão dupla, onde “para
pensar um objeto, é preciso apoiar-se em um ‘mundo de pensamento’ precedentemente
construído”.203204 A ambiguidade do saber refere-se, assim, a ambiguidade do próprio corpo
que aparece como um único ser, embora constituído pelo corpo habitual e pelo corpo atual,
ambos unificados em decorrência de sua mesma orientação para um polo intencional ou para
o mundo. É pois, na densidade do presente que o corpo habitual é reintegrado ao corpo atual,
alimentando-se ele próprio do presente. Reciprocamente, na densidade do presente, o corpo
atual alimenta-se do passado, apoiando-se no saber que foi previamente construído pelo corpo
habitual.
A partir da descrição apresentada por Merleau-Ponty da percepção como forma
temporal, podemos entender com maior propriedade quando o autor afirma ser a percepção “o
fundo sobre o qual todos os atos se destacam.”205 A percepção não é de fato um ato, uma
tomada de posição deliberada; ela é sim, o que “funda para sempre a nossa ideia da
verdade,”206 ela abre horizontes onde o saber enfim “se instala.”207 Da mesma forma,
podemos entender mais profundamente como para o fenomenólogo é possível pensar a síntese
perceptiva sem o ato de ligação. Para Merleau-Ponty, viver a unidade do objeto significa fazê-
la, uma vez que a síntese perceptiva é de fato uma síntese temporal. A “subjetividade, no
plano da percepção, não é senão a temporalidade”208, diz o fenomenólogo. Esse novo
entendimento permite ao autor preservar a opacidade e a historicidade do sujeito ao invés de
200
Id, ibid., p. 182-3 201
“[...] as ‘formas’ , e em particular os sistemas físicos, se definem como processos totais cujas propriedades não são a soma das propriedades que as partes isoladas possuiriam.” Merleau-Ponty, A Estrutura do
Comportamento, p. 69 202
Cumpre salientar, portanto, que para Merleau-Ponty, a forma é impregnada de significação, ela é junção de ideia e existência. Espaço e tempo são formas, as quais “o corpo habita”. Merleau-Ponty, Fenomenologia da
Percepção, p. 193 203
Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 191 204
Se de um lado Merleau-Ponty nos diz que para alcançar o objeto é preciso penetrar na densidade do
presente, de outra parte, ele deixa claro também a necessidade de afundar na espessura do mundo. Leiamos: “[...] se posso alcançar o objeto, não é que eu o constitua do interior: é porque pela experiência perceptiva eu me afundo na espessura do mundo.” Assim, para o fenomenólogo, tempo e espaço assumem papel inequívoco na constituição da verdade. Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 275 205
Merleau-Ponty, op. cit., p. 6 206
Id, ibid., p. 13 207
Id, ibid., p. 280 208
Id, ibid., p. 321
56
torná-lo pura consciência, e assim prescindir do ato de ligação. Vejamos, na expressão do
autor:
“Aquele que percebe não está desdobrado diante de si como uma consciência deve estar, ele tem uma espessura histórica, retoma uma tradição perceptiva e é confrontado com um presente. Na percepção, nós não pensamos o objeto e nos pensamos pensando-o, nós somos para o objeto e confundimo-nos com esse corpo
que sabe mais do que nós sobre o mundo, sobre os motivos e os meios que se têm de fazer sua síntese.”209
Em outras palavras, na camada originária do sentir, que coincide com o ato210 de
percepção, o sujeito vive sua própria unidade e a unidade intersensorial da coisa, ao invés de
pensá-los apenas. Isso significa que, para Merleau-Ponty, perceber é “apreender um sentido
imanente ao sensível antes de qualquer juízo,”211 e essa apreensão acontece precisamente pela
experiência de unidade vivenciada, pois na percepção efetiva, tomada no estado nascente,
antes de toda fala, “o signo sensível e sua significação não são separáveis nem mesmo
idealmente”.212 No que se refere à síntese perceptiva, ela não se efetua integralmente na
atualidade, como já visto, ela se beneficia do trabalho feito pelo corpo habitual. Mas Merleau-
Ponty deixa claro que essa síntese permanece sempre em aberto:
“Graças ao tempo, tenho um encaixe e uma retomada das experiências anteriores nas experiências ulteriores, mas em parte alguma uma posse absoluta de mim por mim, já que o vazio do futuro se preenche sempre com um novo presente.”213
A síntese perceptiva é, em verdade, apenas uma “síntese presuntiva”, construída de
objetos ou de recordações não mais discerníveis, em “um horizonte anônimo que não pode
mais fornecer testemunho preciso”214, deixando portanto o objeto inacabado e aberto, como
de fato ele o é na experiência perceptiva, uma abertura que o futuro se encarrega de preencher
indefinidamente. Surge assim o paradoxo da imanência e da transcendência, já anunciado na
introdução dessa dissertação. Ele é exatamente o resultado da presença concreta das
manifestações fenomênicas, que se dão em “carne e osso” à consciência, associado à ausência
decorrente da visão do sujeito se dar sempre apenas em perspectiva, exigindo uma
constituição para além do seu aparecer. Assim torna-se indivisível presença e ausência. Cabe
ainda elucidar que, independentemente do desenvolvimento da experiência perceptiva, na
209
Id, ibid., p. 320, grifos nossos 210
Ressalve-se aqui que o uso da expressão “ato” nesse caso não pressupõe uma tomada de posição deliberada e sim, o momento preciso em que acontece a percepção 211
Merleau-Ponty, op. cit., p. 63 212
Id, ibid., p. 68 213
Id, ibid., p. 322-3 214
Id, ibid., p. 107
57
qual “variar a atitude do corpo implica variar o espetáculo do mundo”215, o mundo se
conserva o mesmo através de toda a vida do sujeito, “porque ele é justamente o ser
permanente”216 no interior do qual o sujeito opera todas as correções do conhecimento em
busca da verdade por ele evidenciada.
215
Oliveira, W.C., op. cit.,, p. 157 216
Merleau-Ponty, op. cit., p. 439
58
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Prefácio do livro Fenomenologia da Percepção, Maurice Merleau-Ponty apresenta
como meta para sua obra descrever o ser ainda não objetivado, porém observando para não
recair na subjetividade pura, que o torna inacessível à reflexão. O autor objetiva superar o
antagonismo provocado pelas correntes idealista e realista e encontrar uma nova forma de
entender a existência. Para tal, o filósofo parte do ponto de vista da experiência da consciência
e descobre nela a presença constante do corpo e do mundo. Merleau-Ponty apresenta essa
descoberta, associada ao entendimento da temporalidade como forma, em uma construção
inédita capaz de vencer as dificuldades reconhecidas entre sujeito e mundo, bem como de
romper a dicotomia sujeito-alma e, provocar, como consequência, a necessidade de mudanças
relevantes na postura do filósofo.
A obra de Merleau-Ponty caracteriza-se em um primeiro momento por uma forte
crítica ao saber clássico que se ateve à “fé originária da percepção”, provocando grave dano à
ciência e à filosofia uma vez que conduziu-as a utilizarem o mundo e a razão constituída,
perdendo dessa forma o verdadeiro ato de constituição. O fenomenólogo assevera que a
filosofia deve abandonar a reflexão radical e assumir o pensamento pré-reflexivo como fonte
de seu trabalho, para então retomar a história da constituição, a história da passagem do
indeterminado ao determinado, não mais permitindo assim ao sujeito esquecer a fonte de todo
saber existente.
A introdução do pensamento pré-reflexivo à Filosofia parece-nos ser uma das maiores
contribuições dadas por Merleau-Ponty, posto que significa um retorno à percepção em
detrimento da reflexão. Para que o filósofo possa alcançar esse campo anterior à objetividade
precisa recorrer à redução fenomenológica. Porém, Merleau-Ponty aponta a impossibilidade
de uma redução completa e indica que a melhor fórmula da redução é sem dúvida a
admiração217 diante do mundo. Dessa maneira, com o objetivo explícito de ver melhor o
mundo, a reflexão deve tomar distância, romper a familiaridade entre mundo e sujeito, e dar
lugar ao olhar admirado que enfim redescobrirá esse mundo como “estranho e paradoxal”.218
A fenomenologia de Merleau-Ponty coloca-nos, portanto, diante do mundo, não como
ser puro, mas como sentido; sentido esse que se torna aparente à razão precisamente no
217
O termo admiração foi usado pelo assistente de Husserl, sugerindo ser essa a melhor fórmula da redução. Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção, p. 10 218
Merleau-Ponty, op. cit., p. 10
59
momento das experiências vivenciadas pelo sujeito no mundo; um mundo que, por sua vez,
mostra-se inseparável da subjetividade e da intersubjetividade. Nas palavras do autor:
“[...] o único Logos que preexiste é o próprio mundo, e a filosofia que o faz passar à existência manifesta não começa por ser possível: ela é atual ou real, assim como o mundo, do qual ela faz parte, e nenhuma hipótese é mais clara do que o próprio ato pelo qual nós retomamos este mundo inacabado para tentar totalizá-lo e pensá-lo.”219
Para o fenomenólogo francês, quer se trate das coisas ou das situações históricas a
filosofia tem a função de tornar a nos ensinar a vê-las e para que ela se realize precisa
destruir-se como “filosofia separada”220. Como pudemos testemunhar no decorrer de nossos
estudos, a obra de Merleau-Ponty mais do que tudo é original, pois realiza a vocação da
filosofia de romper a tradição para, imediatamente após, reapresentar a filosofia, a partir de
então não mais como “o reflexo de uma verdade prévia”, mas “assim como a arte, como a
realização de uma verdade”.221
Finalmente cabe dizer que o objetivo que norteou a totalidade desse trabalho foi o de
apresentar os fundamentos que justificam a decisão de Merleau-Ponty por retornar à
percepção. Buscamos configurar aqui um guia introdutório sobre os temas fundamentais por
ele tratados, que esperamos sejam objeto de futuras reflexões. Alertamos mais uma vez que
esse trabalho foi realizado a partir do Prefácio da obra Fenommenologia da Percepção, não
incluindo qualquer crítica ao pensamento do autor, mas sim, procurando enunciá-lo de forma
clara e fidedígna.
Compreender como construímos a idéia de verdade sempre foi uma questão que pairou
em nossas vidas, desde antes mesmo da vida acadêmica. Pois gostaríamos de encerrar essa
dissertação afirmando que, através do estudo atento da obra de Merleau-Ponty, tornou-se
possível, não obtermos uma resposta objetiva e conceitual mas, assim como a Fenomenologia
da Percepção que o autor nos apresenta, começarmos a viver essa construção de forma atenta
e admirada. Acreditamos que essa nova postura de vida, que envolve vivenciar a percepção,
pode modificar fortemente não apenas a Filosofia, mas diversas áreas do saber humano, sendo
portanto, um caminho de extrema relevância a ser trilhado por outros estudiosos.
219
Id. Ibid., p. 19 220
Id, ibid, p. 612 221
Id, ibid., p. 19
60
BIBLIOGRAFIA
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti, São Paulo: Martins Fontes, 2007
CHAUI, Marilena. Experiência do pensamento: ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins Fontes, 2002
FERRAZ, Marcus Sacrini A. Fenomenologia e Ontologia em Merleau-Ponty. Campinas, SP: Papirus, 2009
HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tradução Márcio Suzuki. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2006
MERLEAU-PONTY, Maurice. A Estrutura do Comportamento. Tradução Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2006
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Tradução Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Cosac Naify, 2013
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o Invisível. Tradução José Artur Gianotti e Armando Mora d’Oliveira. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014
MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. Tradução Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1991
MORATO, Débora Cristina. MARQUES, Rodrigo Vieira. Fenomenologia da experiência: horizontes filosóficos da obra de Merleau-Ponty. Goiânia: Ed. Da UFG, 2006
61
ANEXO
VERDADE
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os dois meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em duas metades,
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
As duas eram totalmente belas.
Mas carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
(Carlos Drumond de Andrade)