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FAde MIRANDA ROSA Q Fenômeno Jurídic» como Fato Social 13a EDIÇÃO Jorge Zahar Editor 

Fade Miranda Rosa - Sociologia Do Direito - Fenômeno Jurídico Como Fato Social - 13º Edição

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  • F A de MIRANDA ROSA

    Q Fenmeno Jurdic como Fato Social

    13a EDIO

    Jorge Zahar Editor

  • X V

    C a p t u l o I I I

    0 DIKEITO COMO FATO SOCIAL

    1 A norm a ju rd ica como resultado reflexo da midade eocnal. 2 Condicionamentos toiocultiira is da normativ i- dade jurd ica. 3 Form ao extralepU lativa do D ireito ,

  • O Direito fato social. Ele se manifesta cornoI uma das realidades observveis na sociedade,1

    o instrumento institucionalizado de maior importncia para o controle social. Desde o incio das sociedades organizadas manifestou-se o fenmeno jurdico, como sistema de normas da., conduta a que corresponde- uma coao exercida pela sociedade. segundo certos princpios aprovadosT Obffntsa lormas predeterminadas.

    A norma juridica^portanto, 6 um resultado da rea . lidade soial. Ela emana da sociedade, por seus instru mentos ^"instituies destinados a formular o Direito, refletindo o que a sociedade tem como objetivos, bem como suas crenas e valoraes, o complexo de seus conceitos ticos e finalfsticos.

    Esse fato pode ser esclarecido mediante simples referncia variedade de sistemas e normas de Direito em diferentes quadros culturais. O estudo histrico das sociedades revela a existncia de estruturas juridicas bastante diversas no tempo e no espao. As pesquisas realizadas sobre a evoluo do direito de famlia, ou sobre as diversas frmulas adotadas no direito de sucesso hereditria, no que se refere ao direito de propriedade etc., mostram que cada uma dessas faces do fenmeno jurdico global apresentou uma dessemelhana de formulaes, extremamente interessante e curiosa. As realidades sociais diferentes condicionaram ordens jurdicas tambm diversas.

    importante pesquisar as relaes existentes entre as estruturas e a dinmica sociais dos exemplos tomados, e as manifestaes das instituies de Direito. Nesse

    J Lus Recasns SICIIE9, Tratado de Soeiolopia, j cit., pAp 692.

  • 58 Sociologia do Direito

    estudo, a relao entre a realidade do meio social e cada uma das facetas do seu sistema cultural, nele includa a ordem Jurdica, revela a existncia de uma Interao entre a conjuntura global e a normatividade jurdica.

    por esse motivo, por exemplo, que as manifestaes jurdicas nas sociedades em desenvolvimento tendem a apresentar grandes diferenas em relao s que so vigentes nos pases chamados desenvolvidos. As sociedades em desenvolvimento , ou subdesenvolvidas, tm realidades socioculturals prprias, inconfundveis e no-identificveis com outros modelos. O contexto real de tais sociedades no pode ser assemelhado ao que se observa nas sociedades plenamente desenvolvidas.

    H uma realidade particular de cada processo histrico nacional, ou grupai, multo prpria e diferenciada, dentro de um quadro mundial que tende para a reduo das diversidades fundamentais e para a maior Influncia recproca de todos os grupos humanos. A essa realidade particular corresponde a produo de instituies tam bm particulares, entre elas as jurdicas. O motivo evidente do fracasso de frmulas e instituies de Direito to bem sucedidas em certas sociedades, quando aplicadas sem as devidas modificaes a outras sociedades, precisamente a inadequao das normas assim editadas realidade concreta do meio em que se as pretende empregar. Modelos jurdicos das sociedades industriais mais avanadas no podem, evidentemente, ser bons para sociedades subdesenvolvidas, a menos que sofram grandes transformaes no processo de aplicao, quando Isso se tome possvel.

    A mudana social, que opera em escala planetria, repercute assim, sempre, na transformao do Direito. O fato, notrio alis, mereceu de Friedmann um preciso exame em trs livros interessantes, em um dos quais o analisou de forma genrica, focalizando especialmente as interaes da mudana social com a mudana do Direito, lembrando que os estmulos sociais modificao da ordem jurdica assumem formas variadas, seja pelo crescimento lento da presso dos padres e normas alterados -*a vida social, criando uma distncia cada vez maior entre os fatos da vida e o Direito, seja pela sbita e Imperiosa exigncia de certas emergncias nacionais, visando a uma redistribuio dos recursos naturais ou

  • Direito com o Fato Social 59

    novos paradigmas de justia social, ou seja ainda pelos novos desenvolvimentos cientficos.

    Os condicionamentos socioculturais da normativi-2 dade jurdica, destarte, se mostram claros e in

    discutveis. As modificaes do complexo cultural de uma sociedade correspondem, a seguir, alteraes na sua ordem jurdica. Tais modificaes so verificadas com maior ou menor celeridade, dependendo de diversos fatores incidentes sobre o processo social, e atendendo ao fato de que a norma jurdica, geralmente, mas no sempre, como afirmou erradamente H all- em trabalhos de 1952, editada aps a constatao, pelos rgos sociais a isso destinados, da sua necessidade diante de determinada realidade da vida social. O chamado retarda* mento cultural que se refere maior lentido com que as modificaes sociais se operam, comparadas com os progressos materiais; e o fenmeno da diferena em ritmos e velocidades na mudana social, entre as diversas manifestaes culturais, explicam essa variao na rapidez da resposta dos mecanismos produtores de normas jurdicas s alteraes do sistema cultural.

    O que se afirmou acima fica mais claro diante da observao do que ocorre no campo do Direito, paralelamente evoluo das comunicaes e dos contatos entre as diversas sociedades, em uma escala global. Um dos fatos marcantes dos meados deste sculo precisamente essa expanso do sistema de comunicaes, de modo que qualquer fato social de alguma significao quase imediatamente conhecido e observado em todos os continentes. As modificaes do contexto social, por-, tanto, se verificam em dimenso mundial, ocorrendo ar tendncia para certa uniformidade cultural em todo o planeta.

    Esse processo rumo padronizao sociocultural ainda est em sua fase de desenvolvimento, porm a

    * WOLFGANO FrJIDMANN, Lano iii a hanging Societl/, Pengujn Book* Ltd., Middleaex, Inglaterra, 1964. Seus dois outros trabalho a respeito foram L. Contemporary B rita in e T h f Changing S tru ctu re of International L,aw. _ *

    8 Jehome H a ia , Theft, Law and Soeiety, lndianpolis, 19S2; (kpud Jerom H. Skolnick, em La Soeiolvia dcl D iritto , loe. ejt., pR. 289.

  • 60 Sociologia do Direito

    previso normal de que no se detenha, de modo que a Terra apresentar, provavelmente, dentro de certo nmero de decnios, um panorama sociocultural relativamente homogneo. No vaticinamos aqui a supresso de todas as diversidades histrico-culturais relativas s diversas civilizaes, porm tais variaes tendem a esmaecer, sob o influxo das conseqncias sociais do enorme progresso tecnolgico.

    O fenmeno da transformao de nosso mundo planetrio numa grande aldeia foi analisado com grande sucesso por McLuhan, especialmente no que se refere ao campo da comunicao social, seus smbolos e os resultados do aperfeioamento de seus meios e instrumentos, mostrando que a humanidade estendeu, com o progresso tecnolgico, o sistema nervoso central de cada homem, "num abrao global , em pleno processo de transformao da criatura humana que estaria readquirindo uma escala de valores de culturas anteriores escrita e retomando, pelo conhecimento em bloco, instantneo, dos fatos de toda parte, processos sociocultu- rals de longa data cm declnio,*

    A verdade que o Direito vai tambm sofrendo os impactos de tais novas realidades. A influncia do elemento tempo nas vrias formas de normatividade jurdica disso exemplo. Prazos de validade, presuno de conhecimento de fatos juridicamente relevantes, encurtamento de distncia para efeitos prticos, pela facilidade de- comunicaes e de deslocamento fsico das pessoas, problemas relativos eficcia e aos efeitos das leis, foram diretamente afetados pelas novas condies materiais que a tecnologia moderna criou.

    Assim sendo, curioso observar que essas relativas Identidades de quadros socioculturais apresentam, tambm, Uma semelhana crescente dos sistemas jurdicos das diversas sociedades, que se aproximam, uma das outras, no modo de viver. Existe certa uniformidade de padres sococultuais, por exemplo, na civilizao ocidental; os sistemas de Direito nos pases pertencentes a tal civilizao so tambm assemelhados, e nele so

    * MABSHAIA M cLuhan, Undertandm g Mtdxa; The Extenrunt* o f Man, The N ew American L fbrary Inc., Nova York, 11.* edio.

  • Direito com o Fato Social r

    i '1" 61

    observados idnticos modos de tratar as principais instituies jurdicas.

    Como j se acentuou, o fenmeno jurdico poderia ser qualificado como um "universal da sociedade. Sanchez de la Torre o afirmou em interessante: consideraes, sobre a fora garantidora que a norma jurdica possui contra o mero arbtrio. No , porm, exclusivamente sob esse aspecto que nos ocupa essa caracterstica de "universal que o Direito possui. Reexaminemos, a propsito, a afirmao de que a presena da ordem jurdica fato constatvel em qualquer sociedade complexa. Ao aparecimento do grupo social com carac tersticas prprias e institucionalizadas corresponde de logo o surgimento de um determinado sistema jurdico, compreendendo as normas de condutas aprovadas e desaprovadas pelo grupo, e os meios de coao que este utiliza, para assegurar obedincia quelas normas.

    Isso porque, em qualquer agrupamento humano, esto presentes, inevitavelmente, fenmenos de valorao, pelos quais o grupo atribui certos valores a determinadas situaes, coisas e idias. No h, contudo, valores da sociedade sem que se estabeleam condutas necessrias; nem imposies normativas sem a avaliao concreta do que justo e do que injusto. Da que todas as sociedades sejam organizaes jurdicas, pelo menos no que se refere confirmao de uma conscincia de solida riedade que estabelece regras necessrias a sobrevivncia do grupo /'

    Essa relao entre a realidade social, condiciqnante sociocultural da normatividade Jurdica, e esta pode ser ainda salientada pela enorme fora que possui o costume, cujo papel como elemento decisivo na formao do Direito no pode ser negado. O costume reflete prticas que se revelaram socialmente teis e aprovadas, ajustadas s demais formas de vida do grupo social e que, com o tempo, tendem uniformidade e a adquirir autoridade prpria.

    Essa autoridade uma conseqncia da convico que se forma na sociedade de que tal ou qual modo de proceder adequado e conveniente aos fins sociais.

    * Angel Sanchez de la Tokm, loe. eit., pig. 213.* Loe. e it, pg. 23.

  • Sociologia do Direito

    Era grande numero de casos, o costume se transformou em Direito Positivo, acolhido e institucionalizado nas leis que os rgos da sociedade editaram. Em muitos outros, o costume foi mandado observar no texto das normas de Direito Comercial, cuja importncia para a Sociologia do Direito ainda no foi convenientemente estudada. Na grande maioria dos exemplos, entretanto, o costume permanece margem do Direito Positivo, mas o influencia de maneira peculiar e o condiciona em todos os momentos.

    A questo das regras sociais juridicamente relevantes, alis, de grande atualidade. No apenas no que tange ao costume, mas tambm s normas morais, normas religiosas e outras normas de comportamento que existem em vrios planos e atendendo a interesses diversos, h conseqncias jurdicas a considerar, mesmo quando no so expressamente mandadas observar no texto das leis. O assunto, sempre fascinante para juristas e socilogos, mereceu de Balossini um tratamento primoroso que muito pode esclarecer os estudiosos, e que faz inteiramente clara a natureza de fato social que tem o fenmeno jurdico, de acolhimento que a normativi- dade jurdica manifesta s demais formas de normati- vidade social.7

    Aqui vale focalizar a questo da formao extra-3 legislativa do Direito. Do ponto de vista sociol

    gico, no se discute mais a existncia de copioso material que pode ser classificado como normas jurdicas e que no provm dos rgos estatais cuja funo seja a edio das leis. Gurvitch analisou com meticulo- sidade os diversos planos em que opera a produo das normas de Direito, segundo a estratificao social e atendendo s diversas formas de sociabilidade que adotou na sua classificao. * Depois dele, todos os autores e pesquisadores do assunto so concordes na existncia da produo de normas jurdicas fora dos quadros le- giferantes do Estado.

    T CAJO EnriOO BALOSSINt, L a Rilevansa Giuridica d U R tg o U Sociali, Ed. A. Giuffr, Milo, 1&65.

    * Gukvitch, loc. e i t pgs. 237 e e**.

  • Direito com o Fato Social 63

    O Direito que emana das associaes, criando obrigaes e deveres ntragrupais, disso um exemplo marcante. Outro o conjunto de regras das organizaes sindicais, paralelas s normas estatais, e que, como outras regras de Direito, no-oriundas dos rgos do Estado, possuem, por vezes, fora coativa superior s que o so e prevalecem em casos de conflito. Exemplo disso a normatividade que emana das grandes corporaes industriais e dos acordos entre elas, na sociedade industrial moderna.

    Tais regras de Direito, de formao extralegislativa, tm uma importncia que ainda est por receber exame e pesquisa adequados sua verdadeira influncia na sociedade. Elas so bem a medida da afirmao de queo Direito reflexo da realidade social e se ajusta, necessariamente, s demais formas de sociabilidade adotadas pelo grupo, a cujo modo de viver, a cujas crenas e valoraes se adapta.

  • C a p t u l o IV

    0 DIREITO COMO CONDICIONANTE DA REALIDADE SOCIAL

    1 A interao social e o D ireito. Influncia deste nobre n j demais manifestaes soeiai*. t A nnrma jurd ica cotno instrumento de controle, social. 3 Funes educativa, conservadora e transformadora. O D ireito como agente de mudana social. Ao do D ireito sobre a opinio pblica.

  • Se o Direito condicionado pelas realidades do1 meio em que se manifesta, entretanto,"age tam

    bm como elemento condicionante. A integrao entre todos os componentes de um complexo cultural um dos fatos de maior significao na vida social. A exata compreenso da sociedade como campo em que essa interao mltipla opera entre milhara de fatores influentes indispensvel a quem cuide do estudo das Cincias Sociais. Essa compreenso leva convio da extrema mutabilidade dos fenmenos dos grupos humanos, do estado de fluidez permanente que eles apresentam. E faz que se perceba seguramente que cada um dos elementos influentes na vida social , ; ao mesmo tempo, condicionante e condicionado.

    O fenmeno jurdico , assim, reflexo da realidade social subjacente, mas tambm fator condicionante dessa realidade. Ele atua sobre a sociedade, como as outras formas pelas quais se apresenta o complexo sociocultural. A vida poltica regulada pelas normas de Direito. Ela se processa segundo princpios e normas fixados na ordem Jurdica, e o Estado, mesmo, a institucionalizao maior dessa ordem Jurdica estabelecida. - Em todos os aspectos, est presente a regra de Direito. Os ftos econmicos, certamente os de maior influncia no condi- cionamento geral da sociedade, so contudo, ' tambm eles, condicionados pelos demais, desde a arte/o senso esttico, as religies, as valoraes coietivas, e assim tambm pelo Direito. 1

    0 que aqui denominamos condicionamento ,, e no caso, o condicionamento de retomo", do Direito sobre

    1 K azim ercuk , T um no v e Stejnberg, D iritto e ricerhe socio- lcgiche neirURSS", em La Sociologia dei D ir itto , cit., pg. 124.

  • 68 Sociologia do Direito

    o scio-econmico , mutatis mutandi, a "sobredetermina- o da teorizao althusseriana, que a reconhece nas diversas "instncias de qualquer formao social concreta.1 Outra coisa no , tambm o que outros autores marxistas, principalmente de pases socialistas, chamam de"efeito constitutivo" das formas jurdicas, reconhecendo a importncia que esse "efeito" tem na conformao das condies econmicas.5

    Todo o processo educacional em uma sociedade se desenvolve segundo princpios jurdicos que o moldam. A sociedade moderna, alis, deslocou em muito esseprocesso da esfera do grupo familiar, ou dos gruposvicinais, para instituies de razes mais amplas, com a criao das escolas e o desenvolvimento dos sistemas de ensino, em que a interveno normativa do Estado se faz sentir de maneira cada vez mais importante. A instruo pblica disso um exemplo do qual sepodem tirar lies significativas, dado o seu carter de servio pblico em expanso em todos os pases.

    Como resultado disso, o desenvolvimento cientfico e tecnolgico est, sempre, condiionado pela variada legislao que, dominando toda atividade educacional da sociedade, nos seus diversos nveis e setores, regula a atribuio de recursos, as atividades de pesquisa pura e aplicada, o regime de sua administrao e a sua propriedade, assim como a aplicao final dos resultados do conhecimento tcnico-cientfico.

    importante assinalar como uma adequada legislao pode favorecer, ou desfavorecer, o desenvolvimento cientfico, mediante a concesso de vantagehs atos estudiosos, a canalizao de verbas, a limitao; ou no, da troca de informaes, a garantia da continuidade, o estmulo a iniciativas nacionais, ou pioneiras, ou regionais, ou ainda, aparentemente destitudas de interesse prtico imediato, mas cujos resultados podem vir -ar ser de importncia inusitada para o progresso da cincia e da tecnologia. t

    1 L O U I S A l t h u s s e r , A n liit C rtica da Teoria M a rx itta , E d . Zahar, Rio de Janeiro, 1965.

    * V er por exemplo K aim an Kuixsar, em "Ideological Changes and the Legal Structure: A Discussion of Socialist Experience , em In ternationa l Journal o f t/te Soeiology of Laxt\ 1980, n. 8, pg. 67.

  • Realidade Sociat 69

    A tica recebe, de volta, influencias da norma juri dica. O mundo da moral, cuja capacidade condicionante da normatividade jurdica axiomtioa, e a isso se referiu. de novo. recentemente, o j aludido .Jorion,'1 no escapa assim s influncias de torna-vagem que o Direito distribui em toda a sociedade. Tem sido observado que, com uma freqncia pouco ressaltada, mas significativa, comportamentos ditades aparentemente apenas pelas normas morais de certos grupos tiveram e tm origem em mandamentos de ordem jurdica. Tais mandamentos se refletem, dessa maneira, em modos de agir, formas de comportamento que adquirem contedo moral prprio, independente da origem juridca, mas nem por esse motivo despidos de contedo tico marcante Idntico fenmeno, de formao aproximadamente a mesma, o do costume de origem legai, nascido de determinao em lei ou norma estatal de outra espcie, que pode, ou no, continuar em vigor. \ No momento em que se forma um comportamento costumeiro decorrente daquela norma jurdica, ele passa a ter vida independente, de modo que se projeta, por vezes, muito tempo aps a revogao da norma e sua substituio por outra, Isso explica e se exemplifica nos casos de leis posteriores que mo dificam institutos ou simples disposies de Direito, mas que no chegam a ter eficcia real, continuando a prevalecer os comportamentos inspirados nas antigas normas legais revogadas, porque tais comportamentos criaram fora consuetudinria capaz de se sobrepor s novas determinaes da ordem jurdica.

    Tudo, enfim, o que se observa dentro de uma socie dade influenciado por certa ordem jurdica, que se infiltra nas formas de sociabilidade, modificando-as por vezes, reforando-lhes os traos principais, dando-lhe maior vigor ou reduzindo-lhe a fora condicionante.

    a norma jurdica o instrumento institucionali-2 zado mais importante de controle social. por

    seu intermdio, sem a menor dvida, que esse controle se manifesta formalmente com maior eficincia, pois a norma jurdica dispe da fora de coao, pode

    * Jorion, loe. d l., pgs. 101-e &egs.

  • 70 Sociologia do Direito

    ser imposta obedincia da sociedade pelos instrumentos que essa mesma sociedade criou com esse im .

    Stone dedicou a esse aspecto do Direito um captulo inteiro de Social Dimensiom of Law and Justice,* focalizando minuciosamente o fenmeno jurdico em relao ao controle social. interessantssima a anlise que esse professor australiano fez das fronteiras entre o controle Jurdico ou legal e os outros controles sociais, fronteiras essas que qualifica de cambiantes. No breve apanhado histrico que realizou, contudo, indicou fato que nos parece de grande significao: o de que o controle Jurdico invadiu reas antes guardadas a outros tipos de controle social, por exemplo, a competio (referida pelo prprio Stone), na evoluo moderna dos Estados industriais.

    A interdependncia do controle Jurdico, ou legal, e os demais tipos de controle social, tambm de interesse. Se a interao entre o fenmeno Jurdico e os demais fenmenos socioculturais fato evidente, ao qual j fizemos referncia, segue-se necessariamente que essa interao se estende a todas as manifestaes desses fenmenos, ou melhor, a todas as funes sociais de tais fenmenos, includa a de controle social.

    preciso no esquecer aquela onipresena do fato jurdico na vida da sociedade, a que nos referimos antes, e o carter que o Direito possui de constituir a forma expressa mais elevada de ordenamento, social, emanados dos rgos especificamente destinados a produzi-lo dentro de cada grupo. Logo, a ordem jurdica se destina, precisamente, a abranger a vida grupai, de maneira a estabelecer nela a regulao dominante da conduta coletiva e individual. No a -mais copiosa, mas aquela a que a sociedade atribui maior fora, mais elevada situao hierrquica, na escala de normas socialmente aprovadas.

    Sua funo de controle socisi, portanto, no pode ser posta de lado em qualquer anlise que se faa de sua natureza. O Direito no apenas um modo de resolver conflitos. Ele os previne e vai mais alm, pois condiciona, direta ou indiretamente, o comportamento.

    * Loc, cit., pgs. 743 e Mgs,

  • Realidade Social 71

    Sua simples autoridade, como forma de manifestao da vontade social, exerce influncia da maior significao sobre a conduta grupai, como veremos adiante.8

    Outras funes de importncia exercidas pelo3 Direito devem ser referidas, entretanto, especial

    mente as funes educativa, conservadora e transformadora. A respeito da primeira dessas funes, existem trabalhos curiosos que demonstram que a simples existncia de uma regra de Direito resulta, geralmente, na convico, por parte de quem a conhece, de que a conduta recomendada na referida norma a mais conveniente.

    Esse fato revela a influncia educativa da norma jurdica, moldando as opinies sociais e portanto o comportamento grupai, por meio de um processo de apren dizado e de convencimento de que socialmente til, ou bom, agir de certo modo. No se trata, a propsito, apenas de ameaa de sanes impostas pela sociedade, em conseqncia da transgresso dos mandamentos da ordem jurdica, o que j possui em si aquela influncia sobre a conduta, a que aludimos. Cuida-se tambm da fora condicionante da opinio pessoal e grupai, quanto ao que justo ou injusto, bom ou mal para a sociedade, modo de proceder adequado ou, inadequado.

    Skolnick observou, com propriedade, que indagar dos entrevistados, em pesquisa, qual o seu ponto de vista sobre o caminho que a lei deve adotar, entre duas hipteses possveis, em termos abstratos, no o mesmo que fazer idntica pergunta depois dc dizer qual a soluo que a lei efetivamente adotou, Lembrou mais que se poderia fazer a pergunta pelas duas formas, a dois grupos diversos de entrevistados de caractersticas semelhantes, para se medir a diferena das respostas nos dois casos, porque o Direito , em si mesmo, uma fora que cria opinies.7

    No que se refere funo conservadora da ordem jurdica, deve ser dito que ela , essencialmente, a ex-

    Sobre easa funo de resolver", ou de tratar os conflitos qoe se manifestam n vi d social, ver o Captulo V,

    7 Jeeom e H. SKOLNicit, 'La Sociologia dei Diritto negli Stati Uaiti d America, esn L a Sociologia dei D iritto , cit., pg. 287.

  • 12 Sociologia do Direitopresso de uma determinada ordem social cuja regula o, cujo controle e cuja proteo se destina a realizar. Como bem acentuam os autores mais modernos, ela reflete a relao de poder entre as vrias classes sociais e as convices dominantes na Sociedade * Logo, exerce funo conservadora dessa ordem, garantindo-lhe as instituies e o tipo de dinmica social considerado bom para seus fins, com uma estrutura a isso adequada. Protege os valores socialmente aceitos e, como j acentuamos, gera uma tendncia conservadora entre os especialistas em seus estudos.

    incluso de normas de autodefesa do sistema, assim, algo de normal e encontradio em todos os exemplos de crdem jurdica de mais complexidade. As sociedades no-primrias, ao estabelecerem seu modo de vida, seu sistema' de valores e instituies, fixam tambm, na ordem jurdica, princpios e regras de manuteno do sistema total, em que so previstas as hipteses d sua defesa contra as tentativas de modific-lo. Sob esse ponto de vista, a Sociologia do Direito pode ser entendida em ntima relao com a chamada Sociologia do Poder. A natureza, a qualidade de suas normas de autodefesa, depende das relaes de poder na sociedade observada.

    Tais relaes de poder, certamente, repousam na estrutura social e no seu mecanismo funcional. Os con- dicionantes scio-econmicos das relaes de poder pos suem, portanto, conseqncias polticas, que se verif,iam em tais relaes propriamente, e se explicam, sempre, em manifestaes de ordem jurdica. Estas, ^pomo resultado, possuem sempre aquele carter de expresso de

    , uma determinada ordem social e,, inegavelmente, so manifestaes de uma ideologia, sob cuja presso se formam e vivem.

    Em sentido contrrio, porm, as normas jurdicas possuem uma funo transformadora do meio1.' Quando editadas atendendo a- necessidades sentidas pelos rgos legiferantes, ou em resposta ao consenso de grupos que se antecipam ao processo histrico, elas resultam

    * Or la n d o Go m e s , A C rite do D ire ito , ed. Ma.x Limonad, So Paulo, 1956, pjr*. 67 e aeg*.

  • Realidade Social 73

    em modificaes da sociedade, alterando-lhe o sistema de controle social e, diretamente, a relao de influncias recprocas dos diversos elementos condicionantes da vida grupai. Por outro lado, contribuem indiretamente para a formao de novas manifestaes de consenso, nisso confundidas as funes transformadora e educativa do Direito.

    Este precisa, na verdade, ser bem estudado como agente da mudana social. essa uma importante manifestao da funo transformadora, exercida pelas normas jurdicas, cuja utilizao planejada, visando alte rar determinado contexto sociocultural, comea a. ser objeto de estudos e de primeiras aplicaes No se perca de vista que, no prprio momento em que o iegis Lador edita a norma legal, ou quando o Juiz a aplica ao caso concreto, ou ainda, quando o administrador executa os seus mandamentos, um e outro esto modificando, em alguma parcela, maior ou menor, a realidade social. Esse fato especialmente sensvel e fcil de constatar no primeiro caso, pois a edio da norma legal t, sempre, invariavelmente, um fato de mudana da estrutura social.

    tambm visvel, em um exame simples, essa funo de mudana social, quando os tribunais firmam orientao jurisprudencial em questes de grande repercusso e que envolvam grande nmero de casos concretos, f ixando interpretao nova s normas legais imprecisas, ou quando, tambm interpretando as leis, a administra o adota orientao determinada para a sua execuo. Tais situaes, modificando em alguma coisa a ordem jurdica, se projetam sobre a realidade social nela regu lada, mudando-a. ,

    A propsito, interessante abordar a relao exis tente entre o Direito e a opinio pblica. Ambos os fenmenos, como ocorre em geral na sociedade, so condicionantes e condicionados recprocos, em virtude da interao que opera entre a norma jurdica e a opinio pblica. As reaes desta realidade da ordem jurdica constituem mesmo, na atualidade, um dos campos de pesquisa mais importantes dos socilogos norte americanos e europeus. Entre estes ltimos, Podgorecki e seus assistentes, na Polnia, Vinke e sua equipe, na Holanda, e numeroso grupo italiano, a que faremos re-

  • 74 Sociologia do Direito

    ferncia detalhada era outro capitulo, tm realizado, nos ltimos anos, preciosas indagaes que tendem a assumir o carter de pesquisa coordenada de cunho mundial.

    As regras de Direito moldam, em parte, como alis j ficou demonstrado no desenvolvimento deste traba lho, a opinio dominante em determinada sociedade.O que ficou dito a pouco a respeito de suas funes educativa e transformadora o atesta. A maneira como so encaradas, porm, tais regras pelos componentes da opinio grupai, constitui algo que exige reflexo e pode indicar caminhos legislativos mais apropriados.

  • C a p t u l o V

    0 DIREITO, A SOLUO DE CONFLITOS E A MUDANA SOCIAL 1

    1 O eonflito como processo social. Discusso do cottctito. t Uma tipologia doi meio de acomodao de conflitos. Negociao d ireta , mediao oit concitiau), arbitramento, recurso ao aparelho jud icia l, t As norm a jurd icas e tua influncia not diverso tipo referido. Norm as de outra natureza, i Fatos determinantes da opes quanto aos tipo aludidos. O que efetivamente ocorre e tu a motivaes. S A mudana social e o D ireito. Diferentes maneiras de conceituar a mudana social. Enfoque *(rn

  • Pretendemos examinar aqui, inicialmente, embora1 de maneira sucinta, as relaes entre o processo

    social de conflito e o Direito. elementar na teoria sociolgica a afirmao de que a vida social en volve dois grandes tipos de processos de interao, uns tendentes a aglutind ou acentuar a associao, e outros tendentes a afastar ou reduzir a interao grupai.2 Os mais importantes dos processos dissociativos, ou de afastamento, segundo os autores consagrados, so os processos de competio e de conflito. Aquele, mais geral, presente em carter constante na vida social, impessoal, sem que se identifiquem propriamente os "adversrios . Este se apresenta como um grau agudo daquele', em que se identificam os " adversrios", portanto pessoal, intermitente.

    Em realidade, o processo de conflito observvel em todas as manifestaes da vida social. Est presente nos diversos tipos de sociedade, das mais simples s mais complexas, de modo que possvel afirmar que inexiste sociedade em que ele no aparea. O entrechoque de inte resses, entendidos na sua significao mais simples, manifestando-se numa escala de mera vivncia ou, mais especialmente, em fenmenos de poder, de apropriao de recursos ou de relacionamentos preferenciais, revela situaes em que o conflito se faz atuante.

    O conflito pode ser definido como uma luta a respeito de valores ou pretenses a posies, a poder ou a recursos que no esto ao alcance de todos, em que os objetivos dos oponentes, ou "adversrios", so neutralizar,

    1 Apesar de ser m a uma abordagem corriqueira da teoria dos processos sociais, a seu respeito falemos agora algumas consideraes que permitiro melhor introduzir o tema deste capitulo.

  • 78 Sociologia do Direito

    erir ou eliminar os rivais.1 Em verdade, o conflito sempre consciente e envolve a comunicao direta entre os oponentes. Ele se verifica entre indivduos ou grupos ou organizaes, ou mesmo entre sociedades, umas com as outras, ou de indivduos com grupos e/ou organizaes, de grupos com a sociedade glpljali etc. Sempre que seja possvel identificar um entrechoque de interesses de qualquer espcie entre atores ou agentes, na vida social, es- tar-se- identificando a existncia do processo de conflito, em situaes as mais variadas. O conflito, portanto, consciente, pessoal, intermitente. Ao passo que a competio inconsciente, impessoal e contnua.

    Emlio Willems define o conflito como competio consciente entre indivduos ou entre grupos, que visa sujeio ou destruio do rival. Seu resultado visvel a organizao poltica (intergrupal e intragrupal) e o s tatus que os indivduos e grupos ocupam no interior de tal organizao. O conflito pode revestir formas diversas, como a rivalidade, a discusso, at o litgio, o duelo, a sabotagem, a revoluo, a guerra, compreendidas nele, portanto, todas as formas de lutas abertas ou no."4 O conceito no difere em muito daquele outro antes mencionado. Vale dizer, entretanto, que Coser ter sido mais generalizante, ao mencionar a luta pelo status, pelo poder e pelos recursos escassos. Outra maneira de abordar a conceituao do conflito aquela em que, insistindo na forma de luta de indivduos ou grupos, salienta-se que ele envolve sempre contato, alm de ocorrer ao nvel consciente pessoal e implica violncia ou pelo menos ameaa de violncia. Enquanto a competio determina a posio que um indivduo ocupa na comunidade, isto , sua distribuio espacial, o conflito determina o seu lugar na sociedade, ou seja, o seu stattis no sistema social.5

    * L . A . Coses, The Functu im o f Social ConfHct, The Free P r t , 1068, pg. 8.

    1 E h lu o W i e m s , D ictionna irt de Sociologie, Mareei Riviere et Cie., P*rii, 1960, edio francesa modificada do Dicionrio de Sociologia originalmente publicado em 1950 pela Ed. Globo.

    * S am u e l K oen ig , Elemento* de Sociologia, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1967, pg. 308.

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    Dessas breves indicaes conceituais a respeito do2 conflito, possvel compreender facilmente a sua

    importncia no estudo do Direito e a relao estreita entre os fenmenos jurdicos e tal processo social O Direito refere-se sempre, direta ou indiretamente, a situaes conflitantes, ou seja, a situaes em que o processo de conflito esteja presente, atual-u potencialmente. que a ordem jurdica se constitui de normas sociais de natureza especial, editadas por instituies especifica- mente destinadas a isto, dentro de uma organizao estatal, cuja destinao precisamente manter e dar todas as conseqUncias necessrias ordem social que a edita. Em essncia, o Direito um sistema de normas que tem por objeto assegurar que os comportamentos sociais se ajustem s expectativas socialmente estabelecidas naquilo que considerado mais importante. Dessa maneira, quando norma constitucional dispe, por exemplo, sobre os poderes do Estado e sobre sua distribuio de competncia, o que se est fazendo prevenir a ecloso de situaes conflitantes e estabelecer, desde logo, as formas de composies das tenses que o processo de conflito pode produzir, acomodando os interesses opostos ou as pretenses contrrias umas s outras. : . >

    Ocorre que a soluo de conflitos que se manifesta na vida da sociedade humana no deixada somente s normas jurdicas. Os costumes, as normas de natureza moral ou religiosa, e outras formas normativas da vida social, conduzem tambm acomodao dos interesses conflitantes, de modo que no universo da interao social muitos mecanismos, ou processos, atuam simultaneamente, compondo, acomodando ou ajustando situaes.7

    * Sobre a problemtica do conflito, h ainda aspectos no-orto- doxos do processo, em que no se identific&ip propriamente atores em conflito, m u tendncias, ou processos conflitantes, de maneira impessoal, dentro da vida social, como, por exemplo, o interao entre auto-imagem que ama sociedade se i a i e * sua efiiva organizao social. Ver a propsito, Robebto Mancabeira Uncer, Law in M odem Society, The Free Press, N. York, 1976., um estimulante esforo de reavaliao dos fenmenos da norma tvld&de em suas diversas manifestaes e implicaes.

    T copiosa a literatura sociolgica sobre acomodao como processo social. Reporte-se o leitor interessado, por exemplo, a P a u lo Dourado GusmAo, Manual de Soeioiopia, Ed. Forense, Rio, 5.* ed.,

  • BO Sociologia do Direito

    Da mesma forma, importante assinalar qe os instrumentos pelos quais se encaminham as solues de conflito no se esgotam no litgio Judicial. Isso elemen tar. Basta que se atente para o fato de que tais situa es de conflito tambm tm solues nas sociedades pr estatais, ou seja, naquelas em que o Estado ainda no se tenha institucionalizado.. Os estudos antropolgicos em todas as sociedades mais simples o demonstram clara mente. Outra situao no poderia existir, sob pena da desintegrao da vida social em tais grupos, que no per sistiriam. Logo, a par com as Instituies que permitem a soluo judicial das situaes conflitantes, outros modos de soluo de conflitos existem e que absorvem, segundo alguns autores, a maioria dos conflitos existentes, resolvendo-os nos termos da acomodao necessria.

    A teoria tem salientado quatro tipos de soluo de conflitos pela acomodao dos interesses dos oponentes: ( 1.) a negociao direta, ( 2.) a mediao ou conciliao, (3.) o arbitramento e (4.) o litgio nos tribunais. No primeiro desses tipos, as partes se entendem diretamente, negociam ou uma delas submete-se pretenso da parte oponente, de maneira que se acomoda a situao de conflito que se havia produzido, fazendo cessar a oposio manifestada. Nas outras trs formas de composio de conflito, fracassada ou no utilizada a negociao direta, existe a interveno de terceiro que atua para a soluo de conflito. Esse terceiro pode ser mero conciliador ou mediador, cuja funo seja buscar no entendimento direto com as partes conflitantes a forma de acomodao que possa ser aceita por ambas, de modo a fa zer cessar ou amainar o conflito. J o arbitramento pres-

    , supe a existncia de um ou mais rbitros, cuja funo , mediante solicitao daqueles que se opem no processo de conflito, dirim ir as divergncias e afirmar qual a frmula que deve revestir a acomodao necessria. H que salientar, entretanto, que ainda no se movimentou a

    1977, pg. 66; Donald PirasON, Teoria e Pet

  • Mudana Social 81

    mquina estatal, ou seja, o aparelho do Judicirio. ver dade que, em face das prticas na sociedade industrial e diante de disposies legais, o arbitramento resolve-se freqentemente numa homologao judicial, mas> esse aspecto no de sua essncia. J o litigio em juizo envolve, necessariamente, o apelo das partes oponentes ao aparelho judicial estatal, reclamando, mediante a prestao juris- dicional, que se resolva o conflito, dispondo sobre os interesses em oposio, o que, do ponto de vista sociolgico, significa a acomodao de tais interesses.

    Os quatro modos de se chegar acomodao que 'resolve" o conflito so, assim, pertencentes a determi nadas categorias distintas. Do ponto de vista dos agentes ou instrumentos da soluo, eles podem ser divididos em dois grupos; o da negociao direta, de um lado, e o que abrange a interveno de terceiros (inclusive a mediao, o arbitramento e o litigio em juzo). A distino importante porque, no primeiro caso, o grau de conflito presumido menos agudo,' tanto qua as partes oponentes no se eximem de negociar diretamente e atravs desse recurso chegam a compor ou acomodar os seus interes ses, enquanto nos demais j se verifica aquela impossibilidade de negociao direta, n indicar um grau mais intenso de conflito, de tal modo que se faz necessria a interveno de terceiros, capazes de mediar, ou arbitrar, ou dirimir em grau definitivo, conflito de interesses j produzido'.

    Outra maneira de distinguir os diversos modos de acomodao de conflitos salienta o fato de que a soluo pela negociao direta e pela mediao no envolvem uma deciso que se Imponha coativamente s partes interessadas, pois. em ambos os casos, o consenso entre eles exigido, seja diretamente alcanado, seja quanto forma oferecida e construda pelo mediador ou conciliador; por outro lado, o arbitramento, embora ainda guarde alguns elementos de no-coero, contm uma fora coativa prpria em determinadas situaes contratuais e previstas em lei e, finalmente, os remdios judiciais envolvem sem pre uma soluo que imposta coativamente s partes interessadas. Quanto, portanto, fora coativa ou ao carter impositivo da forma de acomodao encontrada, de um lado esto a negociao direta e a mediao, sem

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    qualquer trao dessa fora coativa e de outro o arbitramento e o litgio judicial, em que, embora em graus diversos, tal fora coativa se manifesta.

    Quanto aos modos de soluo dos conflitos, segundo a natureza dos agentes que o medeiam ou o acomodam, tambm possvel dizer que eles dividem-se em instrumentos judiciais e em instrumentos extrajudiciais ou no- judiciais (no caso, a negociao direta, a mediao e o arbitramento, na fase anterior ao pedido de homologao que esteja previsto na legislao, o que ocorre, por exemplo, no B rasil).

    Assim temos que, do ponto de vista do agente ou do instrumento de soluo de conflitos e da fora coativa ou da conseqncia direta da frmula encontrada para tal fim, trs so as maneiras de classific-las.*

    H entretanto, um outro aspecto essencial a con-3 siderar em relao a esse ponto. Trata-se do tipo

    de normas que' iftfluem ou podem influir na adoo das solues buscadas. Aqui voltamos, sob outro aspecto, s consideraes inicialmente feitas. que influem ou podem influir, na soluo de conflitos, as normas de direito positivo ou no. Aquelas so todo o elenco de normas legais e as demais so, principalmente, as normas costumeiras, religiosas, morais etc.

    Cabe aprofundar um poucp esta discusso no que se refere : atuao das normas legais ou no-legais como pano de fundo ou quadro pormativo que influencia a soluo de conflitos - evidente que toda acomodao de conflitos se faz por referncia a normas de conduta social. Fora do universo normativo no h como encontrar-se acomodaes adequadas. A prpria deciso de se

    * Existem estudo* numerosos a respeito, nos documentos produzidos por um grupo de trabalho sob a gide do chamado Centro de Viena {Centro Europeu -de Coordenao de Pesquisa e de Documentao em Cincias Sociais, do Conselho Internacional de Cincia* Sociais, rgo da Organizao das Naes Unidas). Vale tambm referir B. M. Blbgyad, P. 0. Bolding e OLE Lando, A rb itm tio n at a Means o f Solving C on flicU , New Social Science Mooographs, Copenhague,-1973; TonsTEN ECKBOFF, "The Mediator, th Judge and the Administrator in Conflct Resolution', n C ontribu tiom to the Socialoffy of Law, Copcnhague, 1966.

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    encontrar uma soluo para o conflito envolve em si um comando, ou norma de comportamento social em que as partes convencionam, tcita ou expressamente, buscar acomodao e, qualquer que seja a forma encontrada, tem ela alguma natureza normativa e, em si mesma, inclui normas sociais preexistentes.

    Ora, uma considerao se impe aqui. que tudo est a indicar que as normas de Direito formafri grande parte do pano de fundo sobre o qual se projetam os modos pelos quais se procura obter soluo pra os conflitos. Em outras palavras, h indicaes de que o Direito influente em todos os tipos ou maneiras de soluo de conflitos que mencionamos, atuando tanto quanto as outras normas de convivncia humana, que so, entretanto, em muito maior nmero do que as normas jurdicas. Essa presena da regra de Direito em escala maior do que seria razovel esperar por sua simples participao proporcional no conjunto das normas atuantes na vida social, e agora no caso especial da soluo de conflitos, Importante. Se no so majoritrias tais normas, h de ser porque tm elas maior fora coativa que as demais, alm de corresponderem mais nitidamente a uma opinio social quanto sua necessidade e quanto sua exigibilidade. Essas consideraes, de natureza terica, devem merecei; especial ateno dos pesquisadores, especialmente daqueles que se dedicam Sociologia do Direito. No nos de- teremos nelas, entretanto, aqui e agora, bastando referir tais possibilidades de estudo. i

    At qe ponto, entretanto, ser efetiva essa grande participao do mundo normativo jurdico, entendido como o conjunto de normas do Direito positivo, na soluo de conflitos sociais? Por outro lado, em que escala se poder dizer que as normas costumeiras intervm no mesmo quadro, principalmente quando "sacrallzadas" pela lei? No sero as demais normas de comportamento social, sobretudo as costumeiras em geral, e muito especialmente as que se vinculam aos mo rs, to importantes na soluo de conflitos sociais quanto as normas jurdicas? F aw indagaes merecem unia explorao apropriada. No nos parece que se possa continuar no terreno estritamente especulativo, no que concerne verificao da realidade. A matria est a exigir investigao cien

  • 84 Sociologia do Direito

    tfica da realidade concreta, em que se procure verificai como efetivamente so enfrentados esses conflitos na sociedade contempornea, especialmente na sociedade brasileira.

    Por enquanto, vale acrescentar que as normas de Direito positivo dominam as solues de conflito no litigio judicial. Elas influem dominantemente no arbitramento; atuam, com menor incidncia, na mediao; e freqentemente esto presentes na maneira pela qual as partes compem os seus interesses na negociao direta. comum que essa composio se faa, tendo em vista o que o Direito dispe sobre a matria. Por outro lado. as normas no legais, ou melhor, aquelas que no perten cem esfera do Direito positivo so utilizadas tambm, com freqncia, no arbitramento, especialmente normas de carter tcnico; na mediao ou conciliao, principalmente nas de natureza costumeira, moral ou religiosa; e na negociao direta, com nfase nos mesmos tipos, enquanto no litgio judicial as normas no-legais tm uma import&ncia muito menor. Claro est que o prprio sistema de Direito acolhe as normas costumeiras e alguns princpios de uso comum na vida social como bssola para indicar o rumo de certas solues, porm o simples fato de a prpria lei assim determinar faz com que tais normas passem a ser, em face da ordem jurdica, "sacraliza- das", pois nela so acolhidas e inseridas.

    O quadro acima descrito de mecanismos de solu-4 o de conflitos revela alternativas ou opes que

    as pessoas, ou grupos, oU instituies, escolhem quando se produzem as situaes litigiosas. Essa escolha pode decorrer de fatores ideolgicos e o de fatores scio-

    < culturais dominantes; de influncias histricas e tradicionais; da realidade scio-econmica, financeira, poltica, religiosa, moral; de motivaes estritamente prticas, e outras. importante procurar identificar o tipo de fatores dominantes nas escolhas, inclusive para a preferncia individual das alternativas no-judciais qus parecem, a uma primeira reflexo, majoritrias no dia a-dia da vida social. Bi comum a suposio de que os caminhos no- judiciais podem ser mais rpidos e menos onerosos do que o apelo ao aparelho estatal de realizao da justia.

  • Mudana Social 85

    Essas motivaes pragmticas so, entretanto, vinculadas a valores e a condicionamentos ideolgicos e scio-cultu- rais, cuja identificao muito importante.

    Por outro lado, cabe indagar quem escolhe o qu. Ou, melhor dizendo, que tipos de pessoas, ou grupos, ou instituies, preferem este ou aquele caminho para a soluo dos conflitos existentes. Em verdade, sabe-se que o arbitramento usado principalmente pelas grandes organizaes privadas, empresas com elevados interesses, o que poderia contrariar o argumento de que essa maneira de solucionar conflitos seria menos dispendiosa. At que ponto existem essas preferncias, e quais as vinculaes que tm com a questo anteriormente colocada, constitui uma indagao relevante do ponto de vista sociolgico e de poltica Jurdica.

    A esses aspectos deve ser acrescentado outro, de interessantes implicaes. Trata-se da eficcia das solues buscadas e obtidas, ou seja, do grau de sua adequao aos objetivos pretendidos, da satisfao que os interessados obtm, no propsito de dirimir os seus conflitos, mediante a escolha dos diversos tipos j referidos. O exame desse elemento adquire uma conotao especialmente valiosa, sobretudo porque a maior eficcia pode funcionar como um fator de realimentao dos processos mencionados.

    Cabem agora algumas reflexes tericas, adicio-5 nais s J feitas em vrios trechos deste trabalho,

    sobre um conceito sociolgico de uso corrente, na aparncia elementar cuja compreenso, porm, imprecisa, contraditria e sofre de influncias que lhe tiram a nitidez. Trata-se do conceito de mudana social que, como alguns outros conceitos sociolgicos, tem importncia cada vez mnis reconhecida no estudo do fenmeno Jurdico, sobretudo porque os problemas do desenvolvimento colocam a questo das transformaes da vida social no primeiro plano das cogitaes de cientistas e homens de ao, pesquisadores e administradores.

    J se tem salientado essa importncia. O conceito de mudana social particularmente significativo no estudo do Direito porque este reflete sempre a ordem social que o produz e o sustenta, como realidade scio-cultural, s-

    1

  • 86 Sociologia do Direito

    co-econmica e poltica. Todas as modificaes nessa realidade social, subjacente ao Direito e que o envolve e o contm, tm conseqncias na ordem Jurdica. Esta subsiste ma do sistema social mais amplo e o representa em suas caractersticas fundamentais. Ela corresponde influncia que os processos e as formaes estruturais da sociedade global exercem, conformando todos os aspectos da convivncia humana.

    Em que relevante a mudana social para as transformaes do Direito? A partir de que ponto se manifestam essas influncias? Que aspectos, Ou tipos, de mudana social resultam em modificaes efetivas da ordem Jurdica? Tais problemas, de Sociologia do Direito, so fundamentais.

    A respeito do conceito de mudana social, os autores divldem-se, grosso modo, em dois grupos. Uns s reconhecem a- sua ocorrncia quando se modificam as estruturas sociais de modo significativo"; outros admitem que ocorre mudana sem que as estruturas sejam necessariamente afetadas.

    De um determinado ponto de vista, o problema abordada focalizando situaes modificadas que hajam sido identificadas, em contraposio a outro enfoque, que se refere ao processo que produz tais situaes. Assim, Tom Bums * afirma que, de um lado, mudana social denota uma diferena observada em relao a estados anteriores de estruturas, instituies, hbitos ou equipamento de uma sociedade, na medida em que constitui: (a ) o resultado de medidas legislativas ou outras com o lm de controlar a conduta; ou (b ) o produto de modificao, seja numa subestrutura especificada, ou num setor dominante da vida social, ou no ambiente fsico ou social; ou ainda, (c ) o efeito conseqente de aes perseguidas em conformidade com maneiras sistematicamente relacionadas de preencher necessidades e atender expectativas que prevalecem em determinada sociedade. De outro lado, para ele o termo tambm significa o processo atravs do qual tais diferenas ocorrem.

    * Tom BuRNS, tit A. Dictionary of (Ae Social Sciencet, T*vistock Public* tion, Londrei, 1064, pg. 647.

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    Em realidade, a idia de mudana social j foi por algum tempo identificada com a de progresso, ou de evoluo, com o que teria uma conotao quase neutra, segundo von Wiese, 10 em contraposio outra, que envolve uso estatstico a fazer da mudana social uma concepo unicamente quantitativa. . .

    A confuso dos conceitos de mudana, evoluo, desenvolvimento e progresso examinada por Bottomore, 11 por exemplo, salientando que a locuo "mudana social" mais neutra, e seu uso foi estimulado sobretudo por Ogbum de maneira que pode. at certo ponto, ser aproximada abordagem de Mane.

    Ora, a teoria marxista tende a salientar o desenvolvimento de uma tecnologia da produo e as relaes entre as classes sociais, reconhecendo mudana quando as transformaes da primeira resultam na modificao do modo de produo e, por conseqncia, alteram as ela- es das classes sociais. Trata-se de uma viso estrutural do conceito, embora dele no esteja ausente, de algum modo, o reconhecimento da existncia de' um processo social. 12

    Ginsberg tambm (embora de outra vertente), exige mudana estrutural para se configurar a mudana social. Esta , a seu ver, modificao na estrutura social, ou seja, no tamanho de uma sociedade, na composio ou no equilbrio de suas partes, ou no tipo de organizao, embora admita que modificaes artsticas ou lingsticas possam incluir-se no conceito.

    Exemplo oposto, de conceito amplo e, de certo modo, impreciso, o de DonaldPierson, que entende ser a mudana social qualquer alterao de forma de vida social, afirmando que ela se processa, na sua forma mais eficiente", atravs de movimentos sociais,, como de multides, ressurgimentos religiosos e lingsticos, moda, reforma, revoluo, reproduzindo ainal novas instituies.13 Uma viso funcionalista est a presente, a toda evidncia.

    10 Loc. c il., pg. 647. i T . B. Bo tto m o r e , Introduo Sociologia, Zahar Editores,

    Rio de Janeiro, 1967, pgs. 227 e sega.11 Loc. e i f .i * D o n a l d P i e r s o n , Teoria t> P ttu in a e m Sociologia, E d . M e

    lhoramentos, S. Paulo, 11,* ed., 1968, pg. 328.

  • 80 Sociologia do Direito

    Este quadro de contrastes e divergncias bem salientado por Eva Maria Lakatos, em excelente resumo da matria, 14 Nele oportuna a invocao do conceito segundo Guy Rocher, que identifica mudana social em toda transformao observvel no tempo e que afeta, de maneira que no seja provisria ou efmera, a estrutura ou funcionamento da organizao social de dada coletividade e modifica curso de sua histria. " ", diz ele, a mudana de estrutura resultante da ao histrica de certos fatores ou de certos grupos no seio de dada coletividade." 15 Tal conceito ambiguo. De um lado, Incluem-se nele os estruturas modificadas e a dinmica dessa modificao, ou seja, o processo; de outro, refere-se apenas mudana de estrutura.

    Essa ambigidade se apresenta com grande freqncia nos conceitos de diversos autores. Assim, entre mudana social como processo, em contraposio identificao de estruturas diferenciadas; e a que se conceitua pelas transformaes "significativas" das estruturas em contraste com as modificaes em quaisquer situaes na "vida social", oscilam as maneiras de'conceltu-la, entre os autores consagrados.

    A matria comporta algumas observaes relevan*6 tcs. A primeira delas que inaceitvel limitar o

    conceito a certos tipos de modificaes que pode sofrer a vida social; a segunda que a exigncia de modificao significativa^, para reconhecer a ocorrncia de mudana social, inclui um elemento fortemente subjetivo no conceito; a terceira que, entretanto, nem tudo que se altera na vida humana em sociedade de ser entendido como mudana social. Examinemos brevemente cada uma dessas observaes.

    A nosso ver, necessrio um mnimo de objetividade e realismo no estudo de qualquer fenmeno social (alis, de qualquer fenmeno, social ou no). Quando se pensa a respeito de mudana social, cogita-se de mudana

    E v * M a r ia L akato s , Sociologia. Geral, Ed. Atlas, S. Paulo,1976, pffs. 249 e segs.

  • Mudana Social 89

    (transformao, modificao, alterao); e de mudana da vida social. No h bom fundamento cientfico no entender que s h mudana quando se modificam as estruturas, o que significa entender que outros aspectos de modificao da vida social seriam irrelevantes. Muito pelo contrrio. Qualquer modificao da vida social mudana social. Assim, mesmo que as chamadas estruturas sociais no tenham sido revolucionadas (condio exigida por certos cientistas sociais), pode haver mudana e, na verdade, essas ocorrem em todas as sociedades, todo o tempo, em algum grau (embora de maneira desigual em ritmo e andamento, em profundidade e amplitude). Disso decorre a afirmao, que nada tem de simplria, mas no deve surpreender pessoa alguma, de que a mudana social um universal da sociedade, ocorre sempre; no existe sociedade esttica, sem mudana. O conceito de imobilismo social relativo e mero rtulo para indicar baxo ndice de mudana Essa a razo pela qual a afirmao de que estamos vivendo poca de transio no tem qualquer significado real; todas as pocas so de transio-

    O subjetivismo domina a idia de que para existir mudana social necessrio que ocorram transformaes "significativas" da vida social. Significativas para quem? A partir de que ponto ou momento uma transformao passa a ser "significativa"? bvio, ao mais elementar exame crtico, o elevado grau de subjetivismo nessa orientao. Isso contraria o rumo da objetividade cientfica necessria (nos limites em que ela possvel), buscada em todo estudo cientifico. O que se pode exigir que a modificao seja da vida social, e no apenas na vida social. Em outras palavras, que a vida da sociedade se altere. No basta que dentro dela haja aspectos diferenciados, mas preciso que a prpria vida social seja modificada. Em vez de modificao "significativa", melhor ser exigir que ela seja perceptvel" ao cientista, mediante sua observao comum. possvel dizer ento que h mudana social nas modificaes perceptveis da vida da sociedade.

    Finalmente, vale iisistir em que nem tudo que muda na vida social mudana social. Modificaes no-dur-

  • 90 Sociologia do Direito

    veis de comportamentos individuais ou mesmo coletivos, modismos, pequenas alteraes setoriais e estruturais, sem repercusses que se possam perceber na vida da sociedade, so o mero fluir dessa vida, o normal desenrolar das coisas que. em verdade, nada mudam, e ao fim do que, tudo se mantm como antes, processos sociais e estruturas deles resultantes.

    Em verdade, o conceito de que cuidamos abrange7 as alteraes dinmicas e estruturais da sociedade,

    em grau perceptvel, alcanando as macromudan- as e as micromudanas. acientfico limitar-se o conceito s macromudanas. Convm, isto sim, distinguir os dois tipos de escala, embora a Unha limtrofe entre eles seja muito difcil de identificar.

    Esse entendimento do que seja mudana pode ser atacado como simplista. Talvez lhe falte (certamente lhe falta) a sofisticao e a complexidade de vocabulrio to do agrado de numerosos cientistas sociais que o acusaro, decerto, de no ter rigor cientfico porque, afinal, seu contedo seria to abrangente que acabaria por no identificar com preciso fenmeno algum.

    Iluso. A sofisticao conceituai no uma condio de validade cientfica dos conceitos. Prefervel a simplicidade conceituai que corresponda ao realismo cientifico. Pouco importa que um conceito seja abrangente, amplo, se ele se refere a um fenmeno ou tipo de fenmenos, que se observa em grande nmero de situaes e larga variedade, mas guardando elementos caractersticos comuns. O conceito de vida ambm muito amplo, abrangente, c no por esse motivo que lhe h de faltar validade cientifica. A prpria largueza de sua constatao , pelo contrrio, cientificamente significativa.

    Essas reflexes, como j se disse, so importantes do ponto de vista da Sociologia do Direito, pois as transformaes da sociedade resultam, cedo ou tarde, nas modificaes da ordem jurdica, modificaes essas de evidente natureza estrutural (mais precisamente superestru- tural). Como foi dito acima, a utilizao de conceitos sociolgicos no estudo do Direito se impe cada vez mais, a fim de permitir exata avaliao da ordem jurdica, do

  • Mudana Social 91

    ponto de vista terico e prtico. A mudana sempre mudana normativo-social, j o frisou Cludio Souto.16

    Da mesma forma que os conceitos de "controle social, de "papel e de anomia", o de mudana social relevante, dadas as funes que o Direito tem, do ponto de vista sociolgico, de instrumento de controle social, por vezes agindo como fator de conservao, ou de educao, mas tambm,-em outras oportunidades, como fator de transformao.

    Nesta ltima funo, o Direito atua freqentemente como agente de mudana social, embora sempre dentro dos limites de autopreservao da ordem soejai que o edita, Como fato estrutural, ele pode ser usado para modificar a sociedade, embora sem destruir as: estruturas bsicas que o validam e o garantem. 17

    Em resumo, neste captulo foi examinada a din-8 mica da relao entre o Direito e dois processos

    sociais de grande importncia para o estudo dos problemas que nos ocupam: o conflito e a mudana social.

    funo do Direito na soluo dos conflitos sociais foi especialmente salientada, dentro do quadro amplo da atuao dos diversos tipos de normas sociais. Cabe, entretanto, chamar a ateno dos estudiosos do. assunto parao fato de que, embora apenas parte pequena das situaes conflitantes seja submetida ao aparelho judicial estatal, as normas jurdicas desempenham sua funo soluciona- dora de conflitos com grande influncia, nos demais caminhos escolhidos para superar tais situaes.

    Essa constatao, que a experincia corrente evidencia, min que est a -merecer investigao cientfica rigorosa, significativa, porque indica a grande fora condicionante dos comportamentos sociais que tem . o Direito, influindo no dia-a-dia das condutas individuais e grupais e servindo de pano de fundo e parmetro para a negociao direta, a mediao ou conciliao e o arbitramento, neste ltimo caso em grau maior. a sua funo educativa, formadora de opinio, que se manifesta ento.

    '* Cljudio Souto, Teoria Sociolgica Geral, Etl. Globo, Porto A legre, 1973, pgs. 86 e segrs.

    17 Ver os captulos antecedente e seguinte.

  • . . 'tMhS fc$r - v> 192 Sociologia do D ireito

    anlise dos modos de soluo de conflitos que foi feita nestas pginas, alm de indicar essa presena das normas jurdicas fora dos quadros estritos do litgio Judicial, permitiu explorar algumas outras questes tericas, que se ligam intensidade do conflito, interveno de terceiros, e quais sejam esses terceiros, assim como fora coativa da acomodao alcanada que, combinadas em anlise adequada, podem propor linhas de pesquisa de grande interesse.

    As motivaes das escolhas dos diversos caminhos para a soluo dos conflitos so importantes porque, em tais opes, elementos scio-culturais diversos atuam no mundo dcs valores, da ideologia, das crenas e ds costumes. O poder social se manifesta, assim, de maneira difusa e informal, na maioria dos casos.

    Por outro lado, o processo de mudana social, cuja natureza constante e universal no demais acentuar, tem especial significado, em face do Direito, particularmente pela funo transformadora, ou seja, de agente de mudana social, que pode ter a ordem jurdica.

    Cabe, porm, liberar o conceito de mudana social da enorme carga de confuso, em parte sob a presso de posies dogmticas e doutrinrias, que o tm obscure- cido. Mudana h sempre que elementos scio-culturais importantes se transformam de modo perceptvel e relativamente durvel. O subjetivismo que domina a idia de mudana que s se reconhece quando "significativa", ou quando estrutural, responde por boa parte das dificuldades conceituais apontadas e refoge k realidade.

    A relevncia do estudo da mudana social, como de outros conceitos sociolgicos, para a compreenso dos fenmenos jurdicos e, em ltima anlise, das realidades do poder, foi aqui lembrada, pois o Direito o caminho normativo mais utilizado e mais eficaz para que o poder social, especialmente o poder do Estado, se realize.

  • C a p tu lo VI

    DIREITO E ANOMIA

    i A importncia dos conceitos sociolgicos paru o estudo do D ire ito . A no(o de "pa-peV ; outro* conceito* significa* tivot. t A noo de anomia; ambiffidadf e impritcUo. Significados habituais. Durkheim e 0 estudo da anotr.ia quanto diviso do trabalho social ao suicidio. 3 A teoria gera l da anomia formulada por Merttm. Tipologia doe comportamentot anmicos ou de d envio. Objees. J, O D ire ito como resposta aos comportamentos de dcsvin. Os muitos nveis dessa relao. 5 Concluso.

  • A Sociologia, como qualquer ramo do conheci-1 mento cientfico, desenvolveu e est sempre de

    senvolvendo um certo nmero de conceitos, como conseqncia dos estudos tericos. Esses conceitos so assim elaborados do ponto.de vista da respectiva cin- cia e, como bvio, a Sociologia segue o mesmo caminho que as demais disciplinas cientficas. comum verificar que certas palavras so representativas de um conceito determinado numa cincia e de um conceito diverso em outra.

    necessrio, dentro do mbito deste trabalho, sublinhar a utilidade da incorporao de certos conceitos e determinadas noes e idias do campo sociolgico s especulaes intelectuais, e aos estudos tericos ou empricos do Direito, como cihcia dogmtico-normativa. Isso est rigorosamente ajeitado ao conjunto do que se diz e se exemplifica nestas pginas. No possvel fazer Sociologia do Direito sem utilizar mtodos e tcnicas da Sociologia. Nada mais claro. O que resulta da afirmao da utilidade dos conceitos sociolgicos para a Cincia do Direito, porm, algo mais. O estudo do Direito poder ser fecundado, revolucionado e dinamizado, se a lg u n s conceitos e certas noes, desenvolvidos uns e outras na Sociologia, forem adequadamente utilizados em suas cogitaes.

    Um exemplo do que estamos afirmando o do emprego da noo de papel" no mundo conceptual e prtico da Cincia do Direito. Ele foi objeto de anlise feita por Madeleine G r a w i t z , 1 que se baseia nos trs

    , * *%* . - v . - *.,

    i M a d e le in e Gr a w it z , De ru tiliution en Droit de Notidiu Sociologiqua, em V A m U e Sociologiqut, voL 17, 1966, pgs. 415 e seg. - ; V-

  • rgg Sociologia do Direito

    aspectos essenciais de tal noo: o aspecto sociolgico (que implica a referncia ao "m odelo", considerado como valor cultural ou norma e. em contrapartida, o acordo, ou consenso, da coletividade que suscitou o modelo);o aspecto psicossociolgico (que se prende, sobretudo, maneira como o papel" prescrito inspira a ao concreta, isto , o papel efetivamente desempenhado que, por seu lado, pode influenciar o modelo); e o aspecto individual, psicolgico (pois a personalidade se forma ao contato com os papis que ela interioriza e, medida que os desempenha, os exterioriza e muitas vezes os refora).

    Apreciando a utilidade da noo do "papel" no in terior dos mecanismos jurdicos, e se referindo ausncia de recurso explicito a essa noo, necessidade desse recurso explicito c ao emprego da mesma noo alm dos mecanismos jurdicos, Madeleine Grawitz lembrou que os numerosos problemas que feriu em sua anlise dizem respeito no somente aos diferentes ramos do Direito, mas tambm Cincia Poltica, Sociologia, e pertencem Sociologia jurdica; e que no podem ser bem formuladas as suas solues sem o recurso noo de "papel .

    "Ser desejvel estimular o Direito a sair de sua zona de certeza tradicional, para utilizar noes de contornos mal definidos? perguntou a autora, para responder: "Parece que a Sociologia jurdica no pode progredir seno assumindo riscos, isto , saindo do regime garantidor do Direito para abordar uma realidade ainda mal explorada: de um lado, o que inspira o Direito, que lhe anterior, que ele ordena e institucionliza e, de outro lado, o que reage ao Direito, as conseqncias de

    . sua regulamentao sobre a vida. 1

    . O conceito de interao social, como desenvolvido pela Sociologia e pela Antropologia Cultural, tambm importantssimo para o Direito, pois toda relao jurdica , em essncia, o produto de uma interao social, como relao social que . Mais que isto, pois ela o resultado estrutural, ou como estrutura, de um processo sociojurdico que a interao social com aspectos re-

    2 , oe. cit.

    21

  • Direito e Anom ia 97

    jlevantes para o Direito. A ordem jurdica, portanto, (reflete essa interao.

    Os fenmenos da mudana, com todas as suas implicaes no campo normativo, podem tambm ser profundamente vivificadores dentro do e..tudo do Direito, se apropriadamente examinados em todas as suas implicaes e sobretudo diante do fato de que o seu entendi mento pode mudar em muito o modo de ver tradicio nal da ordem jurdica, como coisa estvel e tendente prpria conservao. A noo de que a mudana social a regra geral, de que ela se opera sempre, desigual mente embora, ao penetrar nos estudos jurdicos e ali se instalar verdadeiramente, representar revoluo na queles conceitos tradicionais voltados para o imobilismo

    Outras noes de grande importncia para o estudo do Direito so, por exemplo, as dos diversos processos sociais simples, como os de competio, ajustamento, conflito, acomodao, socializao, aculturao etc. A eles se podem somar os referentes mobilidade social e estratificao, todo o campo compreendido pelo controle social, assim como outros conceitos especialmente desenvolvidos pela Sociologia.

    A, idia de anomia corresponde a um desses con-2 ceitos. A palavra tem origem grega. Vem de

    anomos ( a representa ausncia, inexistncia, privao de; e nomos, lei, norma)/ Em sua estrita significao etimolgica, portanto, anomia significa falta de lei, ou falta de norma de conduta. Foi com esse entendimento que Durkheim usou a palavra pela primeira vez, ligada a uma tentativa de explicao de certos fenmenos sociais, em seu famoso estudo sobre a diviso do trabalho social.8 Depois dele, diversos autores tm abordado o conceito, com variaes quanto a seu exato entendimento de um ponto de vista rigorosamente cientfico e sociolgico.

    A ambigidade e a impreciso com que o conceito de anomia se vestiu atravs de tais utizaes, inclusive como se ver, pelo prprio Durkheim, contriburam para o seu menor uso em estudos tericos sistemticos

    3 E m ile D u rk h e im , De la divigion du travail social, Presses Usiivcrsitaires de France, 8. edio, Paris, 1967.

  • *. s.. ijj. maX -no* n*. iuwr\pJ-.^ ^ tlA "Yl AC SULqjiO, ft. KJLiU iffl. A t- I 1 *A+V'""

    98 Sociologia do Direito

    e para um tratamento qualificado pela timidez e, at mesmo, por um certo temor da parte de diversos autores de enfrentar os problemas de sua exata concei- tuao. ,* '

    f Segundo lobert Bierstedt, * o termo tem trs sign- ficados diferentes, embora relacionados: o primeiror~d "desorganizao pessoal do tipo que resulta em um indivduo desorientado ou fora da lei, com reduzida vin- culao rigidez da estrutura social ou natureza de suas normas"; o segundo, refere:se s "situaes sociais

    , em que as normas esto, elas prprias, em conflito, e v o indivduo encontra dificuldades em seus esforos para .

    se conformar s exigncias contraditrias"; e o terceiro / y o de "uma situao social que, em seus casos lim-'^ trofes, no contm normas e que , em conseqncia, o contrrio de sociedade', como anarquia o contrrio de governo'." O mesmo autor entende que as razes gramaticais da palavra favorecem de certo modo a

    ' adoo do terceiro significado, de preferncia aos outros dois, mas salienta que o uso acabar por ditr o significado dominante.

    Em qualquer dos trs significados habituais, ou me-i lhor, das trs variaes do significado de anomia, est \ presente a idia da falta, ou do abandono, das normas1 sociais de comportamento. No primeiro deles, cuida-se

    da pequena vinculao do indivduo natureza das normas sociais, como resultado de uma desorganizao

    / pessoal; no segundo, o conflito entre as prpriasJ normas, como comandos sociais destinados a orientar

    o comportamento, que ocupa o centro das cogitaes, conflito esse que provoca as dificuldades do indivduo de se ajustar s exigncias contraditrias; no terceiro, trata-se precisamente de uma situao social em queno existam ou no operem as normas.

    Emile Durkheim, ao examinar a diviso do trabalho na sociedade, depois de assinalar essa diviso como um fenmeno normal, salientou que, como todos os fatos sociais, ela apresenta formas patolgicas que merecem anlise .5 Tal anlise ele a fez sob o ttulo de diviso do trabalho anmico". A propsito, ento, dessa diviso

    * RobxJit B ekstedt, verbete A n om y , em A D ictionary o f the Soeiai Sciences, Tvistock Pubcatoas, Londres, 1964.

    * Loc. eit., p ig . 343.

  • Lw\Lu .o

    Direito e Anom ia 9 9

    do trabalho anmico, o eminente socilogo francs afir mou que desde que diviso do trabalho sociaj supera um certo grau de desenvolvimento, o indivduo, debruado sobre suas tarefas, se isola em sua atividade especial. Ele no sente mais a presena dos colaboradores que trabalham a seu lado na mesma obra, e no tem mesmo, at, a partir de um certo ponto, a ideia dessa obra comum. A diviso do trabalho, segundo Durkheim, no poderia ento ser levada miiito longe sem se tomar numa fonte de desintegrao. Dyrkheim invocou palavras de Comte no sentido de que as separaes das funes sociais tendem espontaneamente, ao lado de um desenvolvimento favorvel do esprito de mincia, no sentido de abafar o esprito de-conjunto, ou pelo menos de entravar seriamente o seu desenvolvimento. Tambm citou Espinas, quando esse autor afirmou, com simplicidade, que a diviso significa disperso. *

    O pensamento durkheimiano, como exposto po estudo sobre a diviso do trabalho annimo, de que a diviso do trabalho, por fora de sua prpria natureza, exerceria uma influncia dissolvente que seria sobretudo sensvel onde as funes so mais especializadas. Todo o raciocnio construdo com base em tais consideraes tende a mostrar que, ao lado das inegveis. Vantagens que a diviso do trabalho representa, como recurso imposto pela prpria complexidade crescente,, da vida social, tal diviso, ao provocar como conseqncia as especializaes dos indivduos, ou mesmo de grupos de indivduos em determinados grupos de trabalho, tende a faz-los perder a viso de conjunto da atividade social,

    i, vjju. Com essa perda de viso da obra comum e do seu sen-tido, tambm vai o esmaecimento das normas que re- fletem a solidariedade grupai. Normas sociais deixam

    ^ de vigorar em virtude do isolamento dos diversos seto-res do trabalho na sociedade. O que ocorre, ento, que da coordenao imperfeita dos elementos em causa decorre um resultado de enfraquecimento da interao

    ^ ' Kem termos de intensidade e continuidade, de modo aimpedir o progressivo desenvolvimento de um sistema de regras comuns e de um consenso. Em suma, o con-

    Loe, eit., pgs. 348-346.

  • 100Sociologia do Direito

    Junto de normas comuns que constitui o principal mecanismo para a regulao das relaes entre os componentes de um sistema social se desmorona. Durkheim qualificou tal situao de anomia, no sentido de ausncia de normas.

    No seu estudo sobre o suicdio e ao indicar os res pectivos tipos, Durkheim deu a um deles o nome de "suicdio anmico". Dois quadros diferentes e aparentemente contraditrios de suicidio anmico foram exa- minados no referido estudo.T Um deles aquele preso ao aumento dos suicdios nos perodos de depresso econmica; o outro, o do acrscimo dos atos atentatrios prpria vida nos perodos de prosperidade em crescimento acelerado.

    No primeiro quadro, a falta de sucesso no atingir os nveis de vida considerados e a legtima recompensa do trabalho de cada um, explicaria claramente a conduta evidentemente patolgica. Tal fracasso, para muitos, significa vergonha, desespero, futilidade da vida que no parece valer a pena ser vivida. J o segundo quadro apresenta aspectos mais difceis de compreender primeira vista. Para Durkheim, a explicao ^portamento surpreendente estaria no fato d

    um limite natural" s pretenses humanas, iuuuu vJ,r p^ que, proporo que efes atingem objetivos na sua vit

    atingir tais objetivos de vida e o fato de que atinge alguns, efetivamente todos os objetivos que tinham, ] tira a esses alvos os atrativos de valores pelos quais lutaram. Todas as pretenses passam a valerv pouco e uma espcie de desencanto penetra no modo de ver as .coisas, conduzindo a um comportamento de autodestrui- o. Seria, portanto, ainda aqui, o desaparecimento das normas de conduta, preso perda dos alvos culturalmente prescritos e individualmente entendidos e buscados, a raiz da conduta anmica referida.

    Em verdade, como salienta Parsons, * Durkheim eleva a anomia ao mesmo nvel de influncia que ele

    7 E M IW Durkheim, Le Suicide, Prease* Un iverita ires de France (nove edio), Paria, 1960.

    8 TJ/OOTT PAR90N8, The S tru e tu rt o f Social A clion , The Free Presa, Nova York, 1968, pg. 834.

    homens tm desejos em princpio ilimitados.

    alargam os limites de seus desejos. A possibilidade

  • D ireilo e Anomia 101

    aponta para o egosmo e o altrusmo, em relao s prticas suicidas. No exame dos dois quadros j mencionados, possvel realar um elemento importante e mesmo dominante, que a influncia das circunstn cias econmicas sobre o aumento das taxa'. '!*: v ii"d io A pobreza, a depresso econmica, de um lado, e a ri queza, o sucesso econmico, de outro, apresentavam pelos dados examinados pelo socilogo francs igual fora motivadora do aumento de atos atentatrios prpria vida. Como salienta ainda Parsons, Durkheim teve uma viso bastante aguda da importncia que os alvos socioculturalmente prescritos possuem na vida social. Essa compreenso ele a mostrou especialmente ao examinar o aumento dos suicdios como reao a uma prosperidade no-usual. Disse que o sentido dR segurana e do progresso em busca dos objetivos da vida depende no apenas de um domnio apropriado sobre os meios que a sociedade proporciona para atingir aqueles alvos, mas tambm de uma clara definio de tais objetivos, eles prprios. Em conseqncia, quan do grande nmero de pessoas atinge as metas sociocul- turais (os objetivos de vida cultivados na sociedade), tais pessoas tendem a considerar tudo possvel e abandonam as normas de comportamento socialmente pres critas, de corto ponto em diante consideradas inteis. De todo esse quadro resulta um desequilbrio pessoal que desemboca em diversas formas de ruptura dos esquemas de vida, figurando os suicdios nos casos ex tremos.

    Os desenvolvimentos que se seguiram no acres-3 centaram muito conccituao de anomia adota

    da por Durkheim com dois diferentes ngulos de observao. Coube a Robert K. Merton, em um artigo famoso, o mrito de ter estabelecido as fundaes de uma teoria geral da anomia. Esse trabalho, que Albert Cohen denominou de "um curto artigo de dez pginas fecundas", foi publicado inicialmente em 1938 e, depois revisto e aumentado, transformou-se em parte da obra

    * A lbert Co h e n , La

  • 102 Sociologia do Direito

    clssica do socilogo norte-americano sobre a teoria e a estrutura sociais. 10

    Merton salientou, partindo de uma anlise da sociedade norte-americana, 11 que todo contexto sociocultural desenvolve metas culturais que se identificam ou representam os valores socioculturais que norteiam a vida dos indivduos e, paralelamente a tais metas, as sociedades em que elas so desenvolvidas estabelecem os meios institucionalizados para se atingir aquelas metas. De um lado, portanto, metas socioculturais; de outro, meios socialmente prescritos para atingi-las, aos quais aderem normas de comportamento. Na sociedade norte- americana, Merton fo i buscar a meta cultural mais importante, o sucesso na vida, englobando riqueza e prestgio, na formao de um status em que o elemento econmico se apresenta fundamental. Observou ele, entretanto, que ao mesmo tempo em que tal meta sociocultural foi erigida em objetivo da vida de todos, sem exceo, pelo menos no plano terico, dependendo do esforo de cada um atingi-la ou no, a sociedade ficou estruturada de maneira a que os meios e as normas, socialmente admitidos aqueles e prescritas estas, no permitem a todos, nem mesmo maioria das pessoas, alcanar a meta formulada explcita e implicitamente pelo contexto cultural. Disto resulta um desajustamen- to entre os fins sugeridos a todos (e insistentemente estimulados os cidados a alcan-los), de um lado, e os recursos oferecidos pel sociedade para que se alcance aqueles objetivos, de outro. Como resultado, surgem os comportamentos individuais e mesmo de grupos, a encontrar outros meios para atingir as metas, mesmo que contrrios s normas estabelecidas pela sociedade como vlidos para Isso. Examinando a dissociao entre as aspiraes culturalmente prescritas e o caminho socialmente estruturado para atingi-las, Merton classificou os comportamenos socialmente relevantes como de cinco tipos diferentes, dependendo da maneira como se com-

    o Robeet EL MnrroN, T to r ia y e ttruetura tociaU t, Fond de Cultura Econmica, Mxico, 1964, por ns consultada, trftdoo em espanhol de Social Tkeory and Social S tructu re, 1 * edio em 1949, por The Free Presa o Glencoe.

    11 Loc. cit., pgs. 140 201.

  • Direito e Anom ia 103

    binam a permanncia das metas culturais, como primeira varivel, e o respeito aos meios institucionalizados para atingi-las, como segunda varivel. Assim, props uma classificao esquemtica usando os smbolos de positivo ( + ) e negativo ( ) para indicar aceitao ou rejeio, respectivamente; e a combinao dos dois sm bolos ( ) como significando rejeio total com substituio de valores e meios para atingi-lps. ! este o esquema: , - u-1

    MODOS DE ADAPTAO

    METASCULTURAIS

    MEIOSin s t it u c io n a l iz a d o s

    1. Conformidade + +

    2. Inovao +

    3. Ritualismo +

    4. Evaso

    5. Rebelio ( ) ( * )

    O primeiro modo de adaptao, a conformidade, no tem importncia para o exame da anomia. a conduta conformista seguida pela grande maioria das pessoas na maior parte do tempo. No h, portanto, desvio de comportamento. Busca-se as metas culturalmente prescritas atravs dos meios institucionalizados para atingi- las e com respeito habitual s normas fixadas pela sociedade para isso. o tipo modal de comportamento. Os outros quatro tipos ou modos de adaptao, entretanto, so os comportamentos no-modais, contrrios de algum modo aos padres de metas culturais e de meios institucionalizados para atingi-las. So os comportamentos de desvio, de grande relevncia para o estudo da Patologia Social e que, na tipologia mertoniana, desempenham papel importantssimo para a elaborao de sua teoria de anomia.

    Em verdade, Merton salientou um fenmeno muito significativo para a compreenso da conduta anmica. Observou que, de certo modo, ao estabelecer como alvo

  • 104 Sociologia do Direito

    geral para todos os componentes da sociedade norte- americana a meta de sucesso pessoal que envolve riqueza e prestigio; e ao deixar de proporcionar, com a mesma generalidade, os instrumentos prescritos ou admitidos para atingir aquelas metas, a referida sociedade criou condies especficas para estimular o abandono ou a burla das normas socialmente fixadas para se atingir as metas culturalmente estabelecidas. Dessa maneira, a conduta divergente se torna, no pensamento mer- toniano, na realidade uma reao normal a uma situao social definida e determinada. Os meios institucionalizados, ou normas, para atingir as metas culturais estabelecidas podem ser de diversos tipos. Abrangem nor mas imperativas (faa-se isso ou aquilo), normas preferenciais (que estabelecem critrios de precedncia ou alternativas de comportamento), normas permissivas (que conferem a faculdade de agir ou no-agir) e normas proibitivas (no se faa isso ou aquilo). Todas essas normas podem ser observadas tranqilamente mas tambm podem ser contornadas, ignoradas, rejeitadas ou apenas transformadas em ritual, o que tambm comportamento divergente.

    Assim, o insucesso na busca da meta cultural, diante da insuficincia dos meios institucionalizados da sociedade para atingir aquela, como foi dito, produz o que se pode chamar de uma tendncia para a anomia. Trata- se de um comportamento em que as normas so abandonadas, ou contornadas. o chamado comportamento de desvio, pelo qual superando-se os obstculos institucionais ou instrumentais, procura-se atingir os alvos culturalmente estimulados por todo o sistema. Nesse desvio de comportamento esto retratadas, como evidente, a criminalidade e todas as formas de delinqncia. Tambm nele se revelam as faltas disciplinares, a inobservncia das regras de conduta social e outros tipos. Tudo isso configura o segundo tipo de adaptao da tipologia mertoniana, rotulado de inovao".

    Duas observaes se impem a esta altura: a primeira que se deve compreender que as divergncias que visam criar novos meios institucionalizados, mais eficientes para a realizao dos objetivos sociais ligados ao alcance das metas culturais, no so, em si mesmas, exemplos de comportamento "movacionista. Essas di

  • Direito e Anom ia 10b

    ferentes maneiras de pensar e de agir, geralmente en- entrosadas em fenmenos de mudana social, no so uma conduta de desvio, A segunda observao de qu*1 a conduta divergente no necessariamente contrria a tica que existe no grupo social e que constitui, dessa maneira* elemento objetivo que permite se aa a dis tino entre as condutas divergentes criadoras e as con dutas divergentes anti-sociais. Comportamento divergente, assim, no sempre expresso de disfuno social.

    A propsito das outras formas de adaptao examinadas por Merton, j tivemos oportunidade de escrever brevemente quando da preparao da segunda edio de nosso Patologia Social. Assim e que salientamos que o segundo tipo de comportamento, rotulado de "ritua- lismo" pelo autor norte-americano, se caracteriza pelo fato de que enquanto na conduta inovacionist.a se busca o sucesso ( a vitria a qualquer preo") sob a regra de que os fins justificam os meios, na conduta ritualista os fins perdem sua importncia e o ritual institucionalizado de comportamento sobe ao primeiro plano. O fracasso efetivo, j produzido, ou em potencial, o medo ao insucesso provvel ou muito possvel, dadas aquelas circunstncias de desajuste entre os processos socialmente aprovados para alcanar as metas culturais, e estas mesmas produzem desencanto e desestmulo. O comportamento conseqente, muitas vezes, o do abandono das metas culturais e dos valores que a elas aderem e as sustentam, com a paralela reteno dos rituais. Embora na aparncia seja esse um comportamento conformista, porque ajustado aos tipos de conduta socialmente recomendados ou aprovados, ocorre no caso inconfor- mismo quanto manuteno dos alvos socialmente prescritos. O indivduo abandona e virtualmente rejeita esses alvos, porque os entende inatingveis.

    A conduta ritualista passa a ser, ento, um valor em si mesmo. Melhor dizendo, o cumprimento dos ritos estabelecidos pelos processos institucionalizantes que adquire a dimenso e a importncia de valor sociocul furai. Cumprir de qualquer maneira os regulamentos ou as ordens recebidas, sem indagar da sua adequao queles valores e qUelas metas, assim a conduta observada. Para isso contribui o intenso condicionamento social, em especial nos grupos familiar e profis

  • 106 Sociologia do Direito

    sional, principalmente em servios nos quais se exige a mais rigorosa disciplina.

    Os verdadeiros estranhos, em relao aos modos socialmente estabelecidos de comportamento e adeso s metas culturais, so os que se enquadram no terceiro tipo de adaptao inconormista da classificao de Merton, ou seja, a evaso", ou retraimento. Como acentuou o socilogo norte-americano, tais indivduos esto na sociedade mas no so dela. Ou, dizendo de outra maneira, vivem no meio social mas a ele no aderem, ou dele retiram a adeso antes dada. A apatia e a renncia participao poltica, liberdade, autonomia moral; a recUsa de submisso a qualquer disciplina externa, configuram tais casos, de particular importncia recente com a proliferao das maneiras de viver ao acaso, os fenmenos ligados aos chamados hippies e outros tipos de comportamentos assemelhados. Ocorre ento a rejeio das metas culturais e dos valores que as sustentam, considerados todos irrelevantes ou incapazes de realizar o bem-estar humano, passo a passo com a recusa de conformidade aos comportamentos socialmente estabelecidos. Prevalece, quanto s metas culturais, a atitude de que elas no valem a pena de coisa alguma; e quanto aos comportamentos sociais aprovados, a de que, despidos daquela motivao, no merecem observncia.

    O quarto tipo de adaptao inconormista sob estudo o de "rebelio". Como no comportamento conformista e no de evaso, aqui existe atitude igual no que se refere s metas institucionalizadas e aos meios para atingi-las. O conformista apresenta em relao a umas e outras atitude positiva: aprova; quem segue o comportamento de "evaso , rejeita ambos os parametros sociocuiturais; o rebelde, rejeitando-os, pretende contudo substitui-los de maneira total, revolucionria.

    conveniente no confundir esse propsito transformado em ao com aqueles casos de divergncias que tendem a criar melhores instrumentos sociais para a realizao dos valores e metas culturais. O compor tamento de rebelio no se limita a aperfeioar instrumentos; ele tem como objetivo a substituio total de metas e meios, ins e processos para atingi-los, com a recusa absoluta dos j existentes. Observe-se que o

  • Direito e Anoinra 107

    rebelde est na sociedade e parte dela, embora pre* tendendo mu-la completamente.

    O arcabouo terico assim construdo por Merton passou a ter grande importncia para o moderno estudo dos comportamentos de desvio, precisamente porque km tai arcaboujo pessive 1 identificar' 2c departida para uma anlise e uma interprto dos variados modos de adaptao individual s normas so- cioculturais (e entre elas todas as normas jurdicas) e aos prprios valores e metas que a sociedade estabelece. Sem. ser definitiva, o que teoria alguma , aquela formulada por Merton a respeito do comportamento an- mico estabelece bases para um desenvolvimento cientfico que pode modificar, como conseqncia das verifi caes empricas e resultantes formulaes tericas, as concluses a que ele che