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Fantasmas Da Sao Paulo Antiga

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Uma campanha de fomento à leitura da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em parceria com a Fundação Editora da Unesp e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

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Comissão Editorial

Carlos Augusto Calil Carlos Roberto Campos de Abreu Sodré

Heloisa Jahn Jézio Hernani Bomfim Gutierre

José de Souza Martins Luciana Veit

Samuel Titan Jr. Sérgio Vaz

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Os fantasmas da São Paulo antiga

(Estudo histórico ‑literário da cidade de São Paulo)

MIGUEL MILANO

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Editora afiliada:

© 2012 Editora Unesp

Fundação Editora da Unesp (FEU) Praça da Sé, 108

01001 ‑900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242 ‑7171 Fax: (0xx11) 3242 ‑7172

www.editoraunesp.com.br www.livrariaunesp.com.br

[email protected]

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921, Mooca 03103 ‑902 – São Paulo – SP

Sac: 0800 ‑0123 ‑401 [email protected]

[email protected] www.imprensaoficial.com.br

CIP — Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M586fMilano, Miguel Os fantasmas da São Paulo antiga: (Estudo histórico‑literário da cidade de São Paulo) / Miguel Milano. – São Paulo: Editora Unesp: Prefeitura Municipal: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012. (De Mão em Mão)

ISBN 978‑85‑393‑0372‑4 (Editora Unesp) ISBN 978‑85‑7060‑929‑8 (Imprensa Oficial)

1. São Paulo (Estado) – História. 2. Literatura e história – São Paulo (Estado). I. São Paulo. Prefeitura. II. São Paulo. Imprensa Oficial. III. Título. IV. Série.

12‑8978. CDD: 981.61 CDU: 94(815.6)

07.12.12 13.12.12 041433

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De Mão Em Mão

Com a distribuição de livros gratuitamente em locais de ampla circulação, este projeto procura incentivar o gos‑to pela leitura.

O leitor poderá levar as publicações, sem necessidade de registro de retirada, com o compromisso de que as obras serão entregues em pontos de devolução e assim partilhadas com futuros leitores. A iniciativa se insere dentro das ações da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo que buscam a efetivação das políticas de leitura e informação, permitindo que todos os cidadãos tenham acesso a atividades culturais.

Conheça os pontos de distribuição dos livros “De Mão Em Mão” no endereço eletrônico da Coleção: http://www.projetodemaoemmao.com.br.

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Sumário

Sobre este livro 11

PARTE I 13

Os fantasmas 15

A louca dos Campos Elíseos 17

O relógio da Academia 25

O saci ‑pererê 31

Malditas incógnitas! 35

A hospedaria da bezerra encantada 41

O fantasma da Luz 47

Brincadeira de mau gosto 51

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Os fogos ‑fátuos 55

O “Rolão” – o lobisomem 61

“Mestre” Chico – o sapateiro 69

A pisadeira 75

“Pepino”, o carvoeiro 81

PARTE II 89

São Paulo (retrospecto) 91

O Largo do Colégio 95

A Ladeira João Alfredo em 1887 99

O Largo do Carmo 101

O Largo da Sé 107

O Largo do Teatro 111

O Largo Sete de Setembro 115

O Largo da Liberdade 117

O Largo de São Francisco 121

O Largo do Piques 125

O Vale do Anhangabaú 131

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O Largo da Misericórdia 135

O Largo do Rosário 137

O Largo de São Bento 141

O Largo dos Curros 145

O Largo da Luz 151

Resenha final 157

Conclusão 161

Notas/Glossário 163

Endereços úteis 167

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Sobre este livro

Este livro convida o leitor a um passeio pelas ruas da São Paulo antiga, ao lado de seus fantasmas. Quem provo‑ca a imaginação é o paulistano Miguel Milano (1885 ‑1971). Versátil, matemático de formação, o autor atuou como professor, redator de livros didáticos, ator, cineasta, escri‑tor, jornalista e historiador.

Os fantasmas da São Paulo antiga registra histó‑rias que o autor ouviu na infância, oriundas do folclore popular da segunda metade do século XIX. Mesclando imaginação e estudo histórico, recupera a configuração urbana, a arquitetura, a paisagem, o modo de vida, os personagens e as crenças da população de uma cidade que foi crescendo, se modificando e perdendo parte de suas lendas.

Com apenas 45 mil habitantes em 1887, São Paulo avan‑çou progressivamente sobre os vales e várzeas que limita‑vam seu perímetro antigo, até atingir os atuais 11 milhões de habitantes. Escrita no final da década de 1940, esta obra faz muitas vezes comparações entre a São Paulo dos casa‑rões coloniais, chácaras e bondinhos puxados a burro e aquela dos arranha ‑céus e automóveis, que o autor via de

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sua janela. De narrativa ingênua, o texto é permeado pela ligação afetiva do escritor com sua cidade.

O livro é dividido em duas partes: histórias de fantas‑mas e relato histórico das transformações urbanas. Nessa edição a ordem original foi invertida, iniciando por “Os fantasmas”, que na publicação de 1949 encerra o livro, com o intuito de melhor corresponder às expectativas criadas pelo título. Na segunda parte, o leitor poderá dar continui‑dade ao passeio pelos largos e ruas da cidade, vislumbrando a história que se esconde por trás dos edifícios atuais e dos logradouros conhecidos.

A edição também apresenta uma nova seleção de foto‑grafias, substituindo e acrescentando imagens à publica‑ção original. Nelas figuram alguns dos lugares citados no livro, registrados entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX por diversos fotógra‑fos, entre eles Militão Augusto de Azevedo e Guilherme Gaensly, dois dos mais importantes profissionais da área na época.

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PARTE I

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Os fantasmas

Os fantasmas pulularam1 na São Paulo antiga, sendo tão numerosos quantos pôde engendrar a fantasia popular.

Sirvam de amostra os que seguem, os mais interessan‑tes de quantos tive notícia quando criança, pois a sua tota‑lidade daria para encher alguns volumes.

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A louca dos Campos Elíseos

Em 1892, embora já estivessem demarcadas numerosas de suas ruas, os bairros da Consolação, Higienópolis, Vila Buarque, Santa Cecília e Campos Elíseos constituíam um vasto campo coberto de tufos de arbustos, entre os quais se encontravam araçazeiros, ingazeiros, guabirobeiras, juru‑tezeiros, cujas frutas saborosas a gurizada procurava avida‑mente aos domingos – únicos dias destinados às aventuras pelas matas, pois os outros eram consagrados aos estudos nas famosas escolas isoladas de mestre Ourique de Carva‑lho e mestre Solano Pereira, a primeira instalada na sala da frente de um velho casarão da Rua da Consolação, esquina da Rua Araújo, hoje substituído por um posto de gasolina, e a segunda em uma das duas salas que formavam a casa‑‑escola plantada no cimo2 do morro da Rua Santo Amaro.

Não alcançava uma dúzia o número de unidades esco‑lares de tal espécie, espalhadas pela capital paulista de então, havendo uma Escola Normal de três anos e um Grupo Escolar anexo – o do Carmo.

A falta de escolas públicas era atenuada por alguns colégios particulares, notadamente italianos, que cobra‑vam 5$000 mensais por aluno, isto é, Cr$ 5,00.

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Excelentes serviços prestaram ao ensino até aquela data, e alguns pelos anos a seguir, o Colégio Fonseca, o Colégio Ipiranga, o Liceu Paulistano, o Ateneu Paulistano, o Colégio da Glória, o Colégio Culto à Ciência, o Ginásio Literário, a Escola Madeirense, o Colégio Santana, a Esco‑la das Abranches, o Colégio de Santa Rosa e os colégios italianos Pedatela, Robertielo e Manzione.

Época da palmatória, da vara de marmelo, dos grãos de milho e das orelhas de burro!… Época do beabá e da tabuada cantada!… Época em que iniciávamos e percor‑ríamos a semana toda apanhando na escola, para encerrá‑‑la em casa, com chave de ouro, ao compasso jazbandesco de tremendíssima sova de rabo ‑de ‑tatu.3

Sim, porque, saindo aos domingos de casa logo depois do café, enveredávamos pelo mato, alimentando ‑nos de araçás, jurutés, guabirobas, ingás, amoras e outras frutas silvestres, e só regressávamos ao escurecer ou mesmo já noite fechada.

Várzea do Carmo em 1890. Foto de autoria desconhecida.

Nem de leve nos perturbava a mente a inquietação de nossos pais, o dia todo com o pensamento voltado para

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a louca dos campos elíseos

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os banhos a que nos arriscávamos no tanque do Bexiga, no Redondo da Saracura, na Várzea do Carmo – ao pé do Gasômetro, para as possíveis picadas de cobras e os assal‑tos dos malfeitores que se entocavam pelas matas!

Essa insignificância só nos ocorria quando o rabo ‑de‑‑tatu começava a trabalhar.

Que de promessas e quantos juramentos formuláva‑mos então…

Dormíamos quentes, como era uso dizer ‑se, mas a sau‑dade dos Campos de Piratininga vencia ‑nos os bons pro‑pósitos e no domingo seguinte lá íamos outra vez.

São Paulo sempre foi adorável!…Foi numa dessas arrojadas incursões que chegamos

certa vez a uma clareira aberta na chácara Mauá, de pro‑priedade dos alemães Frederico Glete e Vítor Notman, na baixada dos Campos Elíseos, entre o atual Largo do Cora‑ção de Jesus e a Rua das Palmeiras (Sebastião Pereira).

No lugar exato onde hoje está a estação de bondes da Light, atual C. M. T. C., na Alameda Glete, então um amplo escavado cheio de detritos e de touceiras de mara‑vilhas e de mamoneiros, despontava, semiescondida a um canto, a vivenda de uma pobre louca que o destino cruel, para maior castigo, pusera sob nossas vistas. Era um míse‑ro casebre feito de latas velhas de todos os tamanhos e fei‑tios, que à infeliz deixara seu companheiro de infortúnio, ao passar para a eternidade, e que a gurizada transformou em alvo das suas pedradas, até arrasá ‑lo completamente, embora não fosse essa a sua intenção.

Pobre louca! Como me arrependo de haver cooperado em tão grande desumanidade!…

Que garoto, porém, resistiria à tentação de despejar umas tantas pedradas na frágil fortaleza, ao ouvir a voz imperiosa do chefe, a ordenar:

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– Saparia!4 À louca! Fogo!?A descarga partia tremenda, apavorante, quer pela

quantidade como pela qualidade e firmeza de pontaria dos balázios.5

A lataria ecoava gemidos roucos nas traves que a susti‑nham, para, em novas e sucessivas descargas, soltar ‑se em pedaços amarfanhados, que voavam a distância.

E a louca?… A cabeleira desprendida ao vento, olhos esgazeados a desferir fagulhas, brandindo furiosamente um respeitável cajado, espumava, praguejando, atrás da molecada sitiante!

Não obstante a nossa reprovável malvadez, nunca, em toda a tremenda batalha, foi a infeliz alcançada por algu‑ma pedra.

Distribuídos por setores, como nos achávamos, enquanto um magote6 era por ela perseguido, os outros atacavam o reduto.

Pobre louca!… Como foi parar ali?Um dia apareceu na Rua Sete de Abril, antiga Rua da

Palha, acompanhada do marido, um meigo velhinho que de um momento para outro, por excesso de confiança, se viu despojado dos bens que possuía nas proximidades de Mogi das Cruzes.

Acolhidos com o maior carinho em casa de uma famí‑lia amiga, não quiseram os velhos abusar da hospitalidade. E um dia, terminado o mísero tugúrio7 que foram levan‑tando na escavação da Alameda Glete, em horas furtadas, com pedaços de madeira e latas velhas que encontravam, para ali se transferiram, apesar de instados a permanecer em casa do protetor.

Corriam céleres os dias para os dois, naquela pobreza extrema que o afeto mútuo transformava em um pedaço de paraíso, quando, uma noite, o velho sentiu que lhe puxavam

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a louca dos campos elíseos

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a perna. Saltou do catre8 num pronto e acendeu a candeia. Não viu ninguém, mas percebeu uma lufada fustigar ‑lhe o rosto e produzir na lataria um ruído esquisito, seguido de uma voz pausada, que ciciou ‑lhe9 meiga ao ouvido:

– Você tem sofrido muito, pobre velho! Venho trazer ‑lhe a riqueza. Confie e… até amanhã.

O coitado ficou perplexo. Olhou para o catre em que dormia tranquilamente a companheira e não quis acordá‑‑la. Assustar ‑se ‑ia, com certeza.

– “Venho trazer ‑lhe a riqueza…” – Se fosse verda‑de!… – monologou intimamente o velho a noite inteira, sem poder dormir.

Ao levantar do dia encaminhou ‑se com a companheira para a casa do benfeitor, a fim de cuidarem dos arranjos domésticos e dos serviços de horta, coisas que faziam dia‑riamente, em sinal de gratidão.

Nessa manhã, o visível estado de abatimento do velho fez que o protetor lhe oferecesse a casa da chácara para sua residência definitiva. Ele, porém, que sempre prefe‑riu o seu tugúrio, então, mais do que nunca, se recusou a abandoná ‑lo.

Na noite desse dia o fato repetiu ‑se sem a lufada, e a voz segredou ‑lhe ao ouvido:

– Revolva o monte de lixo, à esquerda do tugúrio. Há, ali, uma agradável surpresa para você.

O velho estremeceu.– Revolva, e verá! – repetiu a voz.Nesse momento a lataria do tugúrio deu a impressão de

estar sendo fustigada por tremenda tempestade.– Chove?! – perguntou a velha, acordando sobressal‑

tada.– Parece – respondeu ‑lhe o marido. E ia prosseguir na

fala, quando mão invisível, percorrendo rapidamente o

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interior do casebre, escreveu em letras de fogo as palavras “Revolva, e verá!”

E tudo voltou à calma habitual.A velha ficou assombrada com o que acabava de ver.

O marido esperou que lhe passasse o instante de pavor, para pô ‑la a par do acontecido. E conversando de espaço a espaço, arquitetando planos, passaram o resto daquela noite longa como a eternidade.

Ao despontar da aurora já o monte de lixo estava revol‑vido deixando a descoberto uma urna de pedra, cheia de moedas de ouro, prata e de pedras preciosas.

O tesouro deslumbrou ‑os, deixando ‑os atarantados.Que fazer?Lembrou ‑se o velho de comunicar o achado ao protetor

e pedir ‑lhe a guarda e colocação da fortuna, e partiu, reco‑mendando à mulher que não arredasse pé dali.

Bem longe ia ele, quando passaram pelo tugúrio três malfeitores – que já os havia na pequena Piratininga.

A velha procurou esconder o achado, sentando‑‑se sobre a urna; mas o seu estado de agitação denun‑ciou ‑a, ao ver que os malfeitores se encaminhavam para ela.

– Que é isso, minha velha? Tem medo de nós?  – perguntou ‑lhe um deles.

– Medo, não… – respondeu ela, com voz trêmula e gaguejada, num gesto de quem procura defender alguma coisa. Mas agiu tão nervosamente que deixou à vista um dos cantos da urna.

Os três agarraram ‑na sem demora, levaram ‑na para o tugúrio, amarrando ‑a fortemente ao catre, cuidadosa‑mente amordaçada.

Ao voltar o marido com o protetor, já ali não encontrou o tesouro e a mulher não dava acordo de si.

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a louca dos campos elíseos

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Levados para a casa do protetor, pouco sobreviveu o pobre velho ao tremendo abalo, e a infeliz mulher acabou por enlouquecer.

Dizem que, a partir de então, quem passasse alta noite por ali era perseguido por um vulto que lhe embargava os passos, aparecendo e desaparecendo de distância em dis‑tância, a perguntar:

– “Onde está o meu tesouro?”Morto o marido, a velha voltou para o seu tugúrio, do

qual só se afastou quando a nossa maldade o destruiu.Pobre louca!… Para onde teria ido, ao ver arrasado o

pedaço de paraíso que a sorte lhe arrebatou para entregá ‑lo mais tarde à poderosa companhia canadense?

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O relógio da Academia

Até 1934 o Largo de São Francisco era talvez o único trecho da capital paulista onde a sede insofrida10 do pro‑gresso não havia conseguido apagar por completo a lem‑brança do passado.

Reuniam ‑se ali, como agora, intimamente ligadas à vida de São Paulo, formando um bloco indivisível, a Igre‑ja de São Benedito, a Igreja de São Francisco e o antigo casarão da Faculdade de Direito – estabelecimento tradi‑cional e de renome, que forneceu ao Brasil as suas maiores personalidades políticas, jurídicas e literárias.

Em seu derredor, pelas ruas adjacentes, outrora aca‑nhadas e sem luz, os modernos edifícios, elevados e sun‑tuosos, estabeleciam um contraste admirável com os templos da Ciência e da Fé.

Quando passo pelo Largo de São Francisco e não vejo mais a estátua de José Bonifácio – o Moço – nem o vetusto casarão da Faculdade com o relógio engastado na torre antiestética que o adornava, que de recordações me assaltam o cérebro amadurecido na árdua e longa experiência da vida!…

São Paulo! Revejo ‑a toda, a São Paulo da minha irre‑quieta meninice; a São Paulo das ruas estreitas e mal‑

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calçadas, de casinhas e sobrados de largos beirais; a São Paulo dos bondinhos puxados a burros, dos tílburis11, car‑ros e landaus, das garoas cortantes e frias, dos quiosques, das fogueiras e folguedos de Santo Antônio, São João e São Pedro; a São Paulo dos guarda urbanos que tantas vezes ajudei a apedrejar, quando em perigo algum com‑panheiro da famosa saparia do Piques, à qual me achava filiado!…

E de par com as inúmeras peraltices praticadas pelas ruas da cidade que ensaiava derramar ‑se pela Consola‑ção, Vila Buarque, Luz, Avenida Brigadeiro Luís Antônio, Gasômetro e Brás, quantas reminiscências agradáveis, quantos sustos pavorosos, quantas carreiras vertiginosas pelas matas de Piratininga me trazia à lembrança o relógio embutido na pequena torre central da velha Academia!

Aquele relógio – que contava por minutos a vida da ati‑víssima colmeia que a mão de um santo conduz a passos firmes e gigantescos para o seu destino histórico – tinha, como tantas outras coisas da São Paulo antiga, uma histó‑ria horripilante, talvez desconhecida a quantos passaram pelos bancos carcomidos do casarão pertencente ao Mos‑teiro de São Francisco12.

Corria o mês de junho de 1895. Uma garoa finíssima polvilhava a cidade silenciosa, que uns poucos bicos de gás fingiam iluminar, vagalumeando na escuridão da noite.

De espaço a espaço o silvo13 estrídulo14 dos apitos avi‑sava estarem firmes em seus postos os abnegados guarda urbanos que policiavam a cidade.

Viv’alma já não se via no Largo de São Francisco às 23 horas, a não ser o guarda escalado, que o media a passos lentos um sem ‑número de vezes, intermeadas de ligeiros descansos ao pé de um esguio combustor plantado na cal‑çada oposta à da Academia.

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o relógio da academia

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Havia uma hora que o pobre montava guarda, lamen‑tando a falta de um acontecimento qualquer, de uma estu‑dantada capaz de arrancá ‑lo do enfadonho dever, quando o relógio do palácio da Assembleia Legislativa, no Lar‑go da Assembleia (hoje parte integrante da Praça João Mendes) adiantado de um minuto, bateu a primeira pan‑cada da meia ‑noite, logo correspondida pelo relógio da Academia.

Relógio da Academia de Direito, em 1887, no Largo de São Fran‑cisco. Detalhe de foto de Militão Augusto de Azevedo.

O guarda urbano, que então se achava à entrada da Rua de São Bento, perto da estátua de José Bonifácio, movido por um receio natural aprumou ‑se todo e se pôs alerta.

– Meia ‑noite! – pensou. – É a hora dos fantasmas e dos lobisomens!…

Perdida no espaço a última badalada, ia ele recomeçar o passeio interrompido, quando uma voz cavernosa per‑guntou de cima do telhado:

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– Que horas são?Um calafrio percorreu o longo da espinha do pobre

homem, tolhendo ‑lhe os movimentos, travando ‑lhe for‑temente a língua.

– Que horas são? – insistiu a voz. Mas o guarda não lhe deu ouvidos.

Nisso um halo de luz surgiu por trás do relógio, e uma cabeça informe assomou ao telhado da pequenina torre, perguntando imperativa, pela terceira e última vez:

– Que horas são?O guarda, que apesar da noite fria lavava ‑se em suor,

fez um esforço hercúleo15 e partiu em desabalada carreira para o quartel, onde a custo conseguiu narrar o aconteci‑do ao comandante. Este lhe verberou16 o procedimento; e, embora tivesse experimentado valentes arrepios à simples narração do fato, mandou ‑o recolher ao xadrez por cinco dias, por abandono do posto.

A notícia do estranho caso espalhou ‑se rapidamente pelo quartel, produzindo tal efeito que, a partir de então, os escalados para o Largo de São Francisco preferiam ser presos a montar guarda no lugar assombrado.

O comandante começou a inquietar ‑se com tamanha rebeldia, pois não via como justificar a falta de policia‑mento no coração da cidade. Tornar pública a pusilani‑midade17 dos seus homens seria desmoralizar a milícia estadual, composta em sua quase totalidade de estrangei‑ros mercenários. Submeter ‑se à cobardia de seus coman‑dados era declinar da sua autoridade. Todavia, aquele estado de coisas não podia continuar.

Um dia, antes de partirem as rondas, lembrou ‑se de exortar18 os seus componentes, e de prometer umas tantas regalias a quem se prontificasse a fazer o serviço no largo.

Um guarda português aceitou o posto.

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o relógio da academia

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– Berêmos – disse ele – se tanvâim cumigo se diberte o tal fantasma.

E foi resoluto rondar o largo.Na primeira noite e em outras a seguir nenhuma anor‑

malidade foi verificada no Largo de São Francisco, regres‑sando o guarda ao quartel, orgulhoso com o respeito que a sua lusitana figura militar impunha aos fantasmas bra‑sileiros.

Uma noite, porém, de sexta ‑feira, o cenário mudou completamente.

Caminhava o português pelo largo, a enrolar os bas‑tíssimos bigodes, disposto a enfrentar o perigo onde quer que aparecesse.

À meia ‑noite em ponto, ouvindo o dim ‑dom, dim ‑dom do relógio, deu de ombros ao fatal aviso e continuou a bater os tacões pelas pedras assimétricas do desordenado calçamento.

Súbito o relógio emudeceu e a voz fatídica se fez ouvir:– Que horas são?– Hum! Cá stá u hóme. Bámos têre festa! – resmungou

o guarda urbano, levando a mão ao revólver que trazia à cinta. Mas não deteve os passos.

– Que horas são? – reperguntou a voz.O guarda dessa vez parou, destravou o revólver e per‑

correu com os olhos o inteiro largo.– Ningâin! Ora, dá ‑se?! – proferiu, um tanto inquieto.– Que horas são? – renovou a voz.– Pois bíre ‑se e bêja! – berrou furiosamente o portu‑

guês.Nesse instante um vulto branco apareceu por trás do

relógio da Academia. Cresceu… cresceu… cresceu. E, atingindo a altura desejada, ganhou o espaço em auda‑ciosa curva, caindo pesadamente sobre o guarda urbano.

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Este, reanimado por um grupo de estudantes que volta‑vam de uma festa, só teve de vida o tempo necessário para contar ‑lhes o estranho caso.

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O saci ‑pererê

A Rua da Consolação, em 1893, prolongava ‑se até Pinheiros. Não passava de simples carreiro19 malcuidado e lamacento, com umas raras casinhas de taipa perdidas em largos tratos de terrenos baldios, povoados de fantas‑mas, e o modestíssimo e pequeno cemitério que a estupi‑dez humana transformava em sítio de pavor.

Entre a Consolação e o Bexiga estendia ‑se o profun‑do vale sulcado pelo Anhangabaú (Avenida Nove de Julho), vale que se explanava, com ligeiro declive, pouco acima do tanque do Bexiga até o Redondo, para continuar mais ou menos acidentado pela Avenida Paulista e Vila Buarque, vestido de uma vegetação carrasquenha, porém cerrada e cheia de vida.

Era ali, naquele enorme trecho hoje tomado por um casario nobre desta soberba São Paulo, que exercia o seu domínio a saparia do Piques, respeitável pelo número, pelo valor e pela qualidade dos seus componentes.

Os caipiras que então percorriam com suas tropas e carros de bois a extensa artéria, para abastecer a cidade de produtos de suas lavouras, não iam além da venda do coronel Quirino, pegado a de meus pais, ou, quando mui‑

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to, faziam ponto no Largo do Piques, em roceira ponte de madeira lançada sobre o pequenino rio, para darem des‑canso aos animais e dessedentá ‑los.

Foi numa dessas tropas de caipiras que eu, sentado jun‑to a eles e ajudando ‑os a devorar saborosa farofa de carne e farinha de mandioca, tive a primeira notícia do endia‑brado saci ‑pererê.

Segundo o testemunho de um velho caipira de bar‑bas longas e ralas, que jurava sobre uma cruz feita com os dedos indicadores ter visto e quase amarrado um deles com o rosário, o saci não passava de um negrinho miúdo e desabusado, cara de macaco, filho de satanás, dotado de uma perna só, com cauda regularmente longa, capaz de desenvolver velocidade superior a de um cavalo.

– O diânho do tizíu não corre, avôa! – contava o caipira, arregalando os olhos pequeninos. E quando amunta num cavalo, o coitado do bicho sente tar peso que não vai nem pra diante nem pra trais. Despois ele fais uma porção de trancinha no rabo do alimar, fais ele corre pra toda parte,

Largo do Riachuelo em 1862, próximo ao Piques, local de pouso das tropas. Foto de Militão Augusto de Azevedo.

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o saci ‑pererê

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sempre amuntado em cima, e só larga o coitado despois de derreado!20

Fez uma breve pausa, desarrolhou um vidro e tomou um trago do seu conteúdo. Estalou os lábios, limpou com a mão ossuda a boca e a barba sujas de farofa, e prosseguiu:

– Mecê já não oviu, de tardinha, ele cantá “saci, saci”? Já? Pois é o demonho do tizíu que anda em precura dos minino que vai caçá passarinho e escangaiá os ninho, pra mor de enfia eles num buraco muito fundo e judiá deles. Quâno ele encontra muié, meu fío, fais um estrago des‑gramado. A muié do nhô Tonico chegô uma veis em casa dela com as ropa tudo estraçaiada e perciso rapá o cabelo, de tanto que ele judiô dela. Eu, otro dia, percisei cortá o rabo da minha russa!

Aqui fez ponto o velho caipira, para ir incorporar ‑se aos companheiros, que se aprestavam para a partida.

Efetivamente, muitas vezes ouvi, quando no campo, os sons misteriosos, cadenciados e admiravelmente claros da ave que tanto gosta de repetir “saci”, e sempre ao cair da tarde. Mas ouvi ‑os indiferente, por desconhecer a existên‑cia do famoso pererê. De modo que, só depois do relato do caipira e de obtida a confirmação dos companheiros mais idosos e experimentados da saparia, o endemoninhado negrinho passou para o rol das minhas cogitações.

– Você ainda não viu o “rodamoinho” que o vento faz, levantando do chão um monte de poeira? – perguntou ‑me o chefe da saparia, quando lhe pedi informações sobre o estranho personagem.

– Vi.– Pois é o saci, furioso, que faz aquilo.– É?!…– Sim. Você há de vê ‑lo um dia, quando ele se zangue

perto de nós.

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– Como?!– De um modo bem simples. Ao formar ‑se o “rodamoi‑

nho”, a gente faz no meio dele uma cruz com um rosário benzido e deixa ‑o ali ficar. O “rodamoinho” para, o pó desce e o saci aparece furioso, a dançar. O rosário prende‑‑o assim durante muitas horas, se ninguém o socorrer. Ele é muito safado: chora, implora que o livrem da armadilha, faz de tudo para comover os que o rodeiam. À meia ‑noite, porém, ajudado pelo demônio – seu pai – ele consegue livrar ‑se e… pobre de quem o prendeu, se algum dia lhe cair às mãos! Tudo deve ser feito com muito cuidado, por‑que, se a pessoa se distrair, será engolida pelo “rodamoi‑nho”, levada pelos ares até grande altura e arremessada ao chão. O caso é sério, como vê.

Essa experiência, muitas vezes arriscada pelos mais corajosos da saparia em presença dos medrosos, que se conservavam a distância, de olhos esbugalhados e res‑piração suspensa, nunca surtiu o efeito desejado. Mas encontrou ‑se sempre um quê de defeituoso em quem a empreendia, razão por que a crença criou raízes tão fun‑das em nossa imaginação, que muitas vezes, na caça aos passarinhos, o campo se nos apresentou pequeníssimo, tal a fúria da nossa carreira, acossada pelo canto da ave misteriosa – Sa ‑cí… sa ‑cí!

Gaiolas, alçapões, laços, visgos, tudo lá ficava no meio do mato, a desafiar a coragem da famosa saparia, que nun‑ca recuou nas lutas com as congêneres ou quando perse‑guida pelos guarda urbanos.

Passaram ‑se tantos anos, e ainda hoje, ao escrever estas linhas, o pausado cantar da ave que só diz sa ‑cí, sa ‑cí corta o espaço ao longe, chega aos meus ouvidos e acende ‑me no coração a doce reminiscência de um passado de encantos, que nunca mais voltará!

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Malditas incógnitas!

Escola Normal Caetano de Campos, na Praça da República, em 1900. Foto de autoria desconhecida.

Augusto foi meu colega no primeiro ano da Escola Nor‑mal da Praça da República, em 1904.

Boêmio inveterado, tendo garantido o seu “pão de cada dia” como funcionário do Correio, nunca soube explicar

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o porquê, detestando o estudo, procurou meter ‑se entre as quatro paredes de uma sala de aulas.

Acresce ainda que era surdo como uma porta – o que o impediria de exercer o magistério – e causava admiração a sua matrícula na Escola.

Somados todos os “contra”, Augusto estava condenado a não concluir o curso, como não concluiu, pois, repro‑vado logo no primeiro ano, abandonou os estudos para dedicar ‑se exclusivamente ao exercício do seu cargo.

Da sua passagem pela Escola Normal, tornaram ‑se inesquecíveis as obtusas respostas dadas aos professores, que lhe desconheciam o mal da surdez, e o desastre do exame semestral, em que foi apanhado a “colar” e engoliu “o corpo de delito”.

Vítima desse contratempo, e certo de ser, dali por dian‑te, submetido a rigorosa fiscalização, Augusto decidiu abrir os livros que jaziam intactos e empoeirados numa pequena estante.

Durante uma semana os companheiros de pagodeiras se viram privados da sua amável companhia, sendo tam‑bém notada a sua ausência na Normal.

Esse breve parêntesis na vida desregrada do devorador de colas foi motivado por um acontecimento inesperado.

Uma chuva torrencial desabou sobre a cidade, na noite de segunda ‑feira, retendo Augusto em casa.

Cansado de apreciar o corre ‑corre dos transeuntes pela estreita Rua de São Bento, onde residia, ele recolheu ‑se ao quarto, sentou ‑se à pesada mesa que dizia haver herdado de seu bisavô e começou a preparar as lições. Leu um pouco dos Lusíadas, uns versos de Castro Alves, algumas regras e exceções da gramática Halbout, e passou para a álgebra – o seu maior pesadelo, pois não podia compreender por que razão os números haviam de ser representados por letras.

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– Já se viu maior estupidez?! – dizia constantemente aos colegas. – As letras foram feitas para serem lidas, e não para cálculos. Não compreendo como é que aquelas bes‑tas puderam antigamente imaginar tamanho absurdo!…

Pouco afeito à ginástica mental, não tardou a espregui‑çar ‑se e a bocejar.

– Qual! Sem “fosfato” isto não vai.E tomou de uma garrafa de pinga que pusera à mesa,

dando ‑lhe amoroso e prolongado “beijo”.

***

Havia duas horas que o sobradão mergulhara no maior silêncio, e, nesse lapso de tempo, “fosfatando ‑se”, como dizia, de quando em quando, não conseguira atinar com as incógnitas de uma equação que devia ser resolvida pelo método de Bézout.

A frouxa luz da vela enterrada no gargalo de uma gar‑rafa dava ao aposento um aspecto um tanto tétrico21 – desses que costumam perseguir as crianças medrosas, quando lhes falta o sono ou ele tarda a chegar: sombras de fantasmas dançando pelas paredes, ao ritmo trepidante da luz de uma lamparina.

A mesa já estava repleta de papéis de todo o tamanho e feitio, contendo tão grande quantidade de números, sinais e letras, que, somados, ultrapassariam algumas vezes os existentes na “amaldiçoada” álgebra de Otoni, colocada no meio daquela barafunda.

O pobre Augusto, lavado em suor, jogava para o lado uma nova folha cheia de cálculos; embrenhava os dedos nervosos pela basta e ondulada cabeleira a Castro Alves; tomava outra dose de “fosfato” e recomeçava a tarefa. Lia a regra, seguia ‑a pacientemente, chegava ao fim, e lá ia um valente murro na mesa:

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– Malditas incógnitas!Fungava de cansaço, revia os cálculos, mas qual… o

resultado não concordava com a solução dada pelo lente, ao ditar o problema.

– Aqui está outra estupidez! Um erro crasso em peda‑gogia!… – resmungava ele. – Onde já se viu dar ‑se o resul‑tado de um problema que se manda resolver?!…

E tinha razão; porque, se assim não fosse, de há muito ele estaria acomodado, pouco se lhe dando receber um doze ou um zero no dia seguinte.

A horas tantas descansou o lápis sobre a folha de papel que tinha diante de si, pôs um cigarro na boca, apoiou o cotovelo à mesa para melhor amparar a já pesada fronte, e assim permaneceu durante algum tempo a soltar grossas baforadas de fumo e a pensar na imbecilidade dos que se arriscam a estudar.

E acabou classificando ‑se o imbecil número um.Depois, como que sentindo a ideia subitamente acla‑

rada, tomou do lápis, bordou apressado o papel de letras, números e sinais, mas chegou à mesma conclusão de sem‑pre: o y estava errado!

Enfurecido com o insucesso das suas buscas, recolheu nervoso a papelada toda, estraçalhando ‑a miudamente. Agarrou o compêndio22, procurando fazer o mesmo.

– Para o inferno o estudo, a Escola, o lente, a álgebra e o seu inventor, e mais o idiota que arranjou um método tão besta como este! – proferiu em voz alta.

Nesse instante, ou porque os espíritos malignos quises‑sem divertir ‑se à sua custa, ou por efeito de um movimen‑to brusco, ao procurar consumir o fruto do seu penoso trabalho, a vela apagou ‑se.

Augusto reacendeu ‑a. E, quando foi pegar a garrafa, para tomar a derradeira dose de “fosfato” que reservara

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para o momento de deitar ‑se, foi impedido de levá ‑la à boca por uma mão invisível, que lhe apertara fortemen‑te o pulso. Quis reagir, mas deteve ‑se, porque um sopro, partindo detrás da sua cabeça, dirigiu ‑se para a chama da vela, alongando ‑a e encurtando ‑a algumas vezes.

Supondo ser gracejo de pessoa da família, ele disse a sorrir:

– Ora… deixe de brincadeira.Nisso, a ronda, na rua, apitou o seu quarto de hora, e o

relógio da sala de jantar soou a meia ‑noite, hora em que as almas do outro mundo costumam fazer as suas peregri‑nações pela Terra.

O sopro adquiriu, então, maior intensidade, alongando desmedidamente a chama.

Um calafrio percorreu o longo da espinha de Augus‑to; os cabelos se lhe eriçaram e seus olhos esbugalhados viram a chama aumentar e diminuir, até extinguir ‑se de todo.

Tomado de pavor, ele procurou levantar ‑se para fugir, mas ficou imóvel, de pé, arrimado à mesa. A um metro de distância, à sua frente, apareceu ‑lhe a figura esbraseada de Satanás, de boca escancarada, a revirar os olhos e a mover a barbicha tal qual um rabo de lagartixa ao ser separado do corpo!

Foi a conta. Augusto caiu desacordado e pesadamente ao chão, arrastando a mesa em sua queda. Do que se pas‑sou daqui por diante ele só teve conhecimento no outro dia, quando se viu rodeado dos carinhos das pessoas da família.

Uma semana, guardou ele o leito.Quando pode sair, foi à Escola despedir ‑se dos cole‑

gas, pois, reprovado como já estava, decidira abandonar os estudos.

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Instado sobre o motivo da prolongada ausência, contou ‑lhes o que está escrito, escondendo com muita habilidade o uso que fizera do “fosfato”.

A impressão causada pela narrativa foi tão forte que, no intervalo das aulas, na sala destinada ao descanso, tornou‑‑se o assunto obrigatório de todas as rodas.

Numa delas, um má língua que conhecia de perto o Augusto deu a última palavra sobre o estranho aconte‑cimento:

– Assombração!… Vocês não conhecem o Augusto. Aquilo foi “pileque”… e dos maiores!…

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A hospedaria da bezerra encantada

Na época a que me reporto, 1887, a Companhia Viação Paulista, de bondinhos puxados a burros, ainda não havia planejado levar as suas linhas tipo Vinhole à Avenida Pau‑lista e esta nem esboçada estava no cérebro que a idealizou e conduziu a termo. De modo que os raros heroicos via‑jantes que demandavam a pequena capital de 7.012 prédios e 45 mil habitantes, via Estrada Velha de Pinheiros, eram obrigados a servir ‑se de cavalgaduras semiaposentadas, se não preferissem fazer o longo e estafante trajeto a pé, com pernoite forçado na casa de pasto Tramontano, situada pouco abaixo do Hospital de Isolamento, então inexis‑tente, à entrada da hoje soberba Avenida Rebouças, junto à Avenida Paulista.

Casa de pasto! Chamemo ‑la assim, se como tal pode e deve ser considerado um horrível casebre de taipa, cober‑to de latas velhas amolgadas, umas poucas telhas cônca‑vas de barro e algumas esteiras, e de chão de terra socada, pelo simples fato de apresentar um arremedo de pratelei‑ra com meia dúzia de garrafas empoeiradas, um balcão patriarcal e um quarto único para hóspedes, cujo mobi‑liário resumia ‑se em uma velha marquesa23, uma enorme

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mala pré ‑histórica, de madeira, e um tripé de ferro com bacia de folha de Flandres, que os nossos avós denomina‑vam lavatório!

Essa casa e seus moradores eu os conheci. Eram o tra‑ço de civilização que mediava o Bairro de Pinheiros e a cidade, pois o mais não passava do matagal imenso que o desenrolar dos anos transformou nos admiráveis cen‑tros residenciais de nossos dias, conhecidos por Jardim Paulista, Jardim América e outros. Matagal que durante muitos anos forneceu a lenha indispensável aos fogões da Pauliceia, em feixes vendidos às carradas24 pelos Tramon‑tano e caipiras de Pinheiros, a particulares e negociantes, indistintamente, ao preço de 250 e 300 réis o feixe, isto é, a 25 e 30 centavos.

Rua Teodoro Sampaio, Bairro de Pinheiros, em 1921. Foto de Domício Pacheco.

Foi na referida hospedaria que se instalou, ao escure‑cer de um dia de calor sufocante, o hílare25 Manuel Lente‑joula, caixeiro ‑viajante de importante casa atacadista de fazendas da Rua de São Bento, hoje ocupada pelas lojas de calçados Rocha e do camiseiro Rodrigues.

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Com um pouco mais de sacrifício e boa vontade, Manuel teria alcançado a cidade. Mas tanto ele como a besta estavam extenuados, e, financeiramente falando, convinha ‑lhe chegar à presença dos patrões no dia seguin‑te à tarde, por causa da diária.

Assim sendo, deixou ‑se lá ficar. Alijou26 a besta da carga que levava – dois enormes baús repletos de amos‑tras, soltou ‑a no pasto e encomendou jantar para dois, devorando ‑o como pessoa atacada de aplestia27.

Finda a refeição, que foi “regada” com respeitável vinho tinto, Lentejoula se pôs à, vontade, entabulando com os hospedeiros um “bate ‑papo” que se prolongou até quase a meia ‑noite. E iriam assim até ao alvorecer, se o hospe‑deiro, cansado de ouvir patranhas28, não desse a ordem de recolher.

Sempre foram os mesmos, os caixeiros ‑viajantes, aqui como em toda a parte: heróis de mil aventuras, que enche‑riam os livros de uma biblioteca! Enquanto houver um mísero mortal disposto a ouvi ‑los, o “papo” não descan‑sa um minuto sequer, impedindo que os interrompam. Dever de ofício…

À parte este pequeno defeito, os caixeiros ‑viajantes são, não há negar, excelentes criaturas, dotadas de amabilidade e prodigalidade inexcedíveis.

***

À voz de recolher, Manuel não teve remédio senão desistir de contar a centésima proeza iniciada e afundar no quarto.

Abriu a madeira da janela, que olhava para o pasto; meteu ‑se em trajes menores, e, encostando ‑se ao batente, lançou o olhar pelo matagal escuro que se perdia ao lon‑ge, sem nada notar de extraordinário. Apenas uns poucos

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vagalumes piscavam as fracas luzes na escuridão da noite, assinalando as respectivas rotas.

O viajante quedou, por algum tempo, a pensar na pátria distante, na família, nos amigos, na menina dos seus sonhos. Estirou ‑se por fim na cama que lhe estava ao lado, com a cabeceira colada à janela, e apagou a candeia, deixando o quarto às escuras. Rememorou as vendas rea‑lizadas, calculou as percentagens auferidas e esboçou um breve passeio à terra, para matar saudades.

Estava quase a pegar no sono, quando sentiu uma bafo‑rada quente varrer ‑lhe o rosto e ouviu um tropel29 descom‑passado perder ‑se ao longe.

Saltou rápido do leito, acendeu a candeia e examinou o quarto. Nada! Saiu ao pasto, pela janela, deu volta à casa toda, e… nada! Um silêncio de morte pairava por toda a parte. Voltou ao quarto e verificou as horas.

– Meia ‑noite e meia! E esta? Já não são horas de anda‑rem por cá as almas do outro mundo!…

Sentou ‑se na cama, a rir gostosamente.– Pesadelo, com certeza. Comi demais. Empanturrei‑

‑me…Tornou a deitar ‑se e não tardou que o fato se reprodu‑

zisse com sopro mais forte, duplo, e carreira mais desa‑balada.

– Ora, dá ‑se!… – resmungou. – Isto, agora, não tem graça. Pesadelo não é… não pode ser… Ou é alma do outro mundo metida a boêmia ou algum gaiato que deseja divertir ‑se comigo!…

E ficou pacientemente à espera, de olhos esbugalhados, disposto a desvendar o mistério.

Decorridos alguns minutos, Manuel ouviu um pisar mansinho que se aproximava da janela. Ergueu os braços. Ao sentir ‑se soprar no rosto, enlaçou ‑os fortemente em

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um corpo cilíndrico, que o levou pelo matagal em pinotes fantásticos!

Os gritos de Lentejoula pedindo socorro puseram em alvoroço a família do hospedeiro, que correu para o mata‑gal.

Só depois de umas duas horas de cuidadosa batida pela mata é que a família Tramontano conseguiu encontrá ‑lo numa clareira, estendido no chão e sem sentidos, tendo ao lado, a farejá ‑lo, a bezerra do hospedeiro, autora incons‑ciente da desagradável brincadeira.

Manuel foi transportado para o quarto, sendo reani‑mado a custo.

A partir de então, juntou mais uma, à vasta série de façanhas praticadas, nas quais figurou sempre como herói ou desempenhou papel preponderante.

– Eu estava a dormir – contava ele, emprestando ao semblante e à voz uma nota de pavor – quando um fantas‑ma, transformado em bezerra, procurou amedrontar ‑me, soprando ‑me fortemente o rosto. Levantei ‑me resoluto, acendi a candeia, procurei pela casa toda, pelo lado de fora, e… nada! Novo sopro, nova carreira, nova busca, e… nada!

Na terceira baforada abracei ‑me firme ao seu pescoço, sendo transportado pelo ar até um vale florido e cuidado‑samente pousado num canteiro de relva fresca e macia.

A bezerra transformou ‑se, então, numa linda jovem, que me declarou haver cessado o seu martírio, graças à coragem com que enfrentei a situação. Não quis revelar‑‑me o nome, mas garantiu ‑me que estaria sempre a meu lado, nas situações difíceis.

A seguir, para que eu não visse o destino que tomava, enlaçou ‑me nos braços e depositou ‑me nos lábios um doce e prolongado beijo!

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Senti uma sensação estranha percorrer ‑me o corpo. Quando consegui recompor as ideias, já ali não estava a virgem dos lábios de mel!…

A versão engendrada pelo viajante teria encontrado muitos crentes, naquela época de fantasmas e aparições de toda a espécie, se os Tramontano, ciosos do bom nome da hospedaria, não tivessem dado à língua, narrando o fato tal qual se passou.

O caso fez furor na pequena São Paulo de casas de bei‑rais, popularizando Manuel Lentejoula e a hospedaria que, a partir dali, ficou conhecida pelo pomposo nome de “Hospedaria da bezerra encantada”.

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O fantasma da Luz

O espetáculo acabou um pouco tarde, no velho Teatro São José, naquela noite inesquecível em que Adelina Patti e o grande tenor Tamagno empolgaram a assistência, no desempenho dos principais personagens da ópera Aida, do imortal Giuseppe Verdi.

Os bondinhos da Viação Paulista, que há muito espe‑ravam os passageiros no Largo da Sé e adjacências, para a sua última viagem, deslizaram repletos para os arrabaldes, e os carros e tílburis, contratados de antemão, desaparece‑ram num ápice, obrigando muita gente a voltar para casa a pé. Dois, dos que sofreram semelhante castigo, foram meu irmão José e sua linda noiva, moradora na Ponte Grande, o que não os inquietou, por estarem já habituados a tão grande azar.

A noite de luar, risonha e límpida, mais convidava a perambular pelas ruas da cidade do que ao encafuo no acanhado e inexpressivo recinto de um quarto de dormir.

Seguiam os dois de braços dados, a arquitetar pla‑nos para o próximo casamento, quando, ao chegarem ao Campo da Luz (Avenida Tiradentes), o céu toldou ‑se30 de repente.

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Avenida Tiradentes, início do século XX. Foto de Guilherme Gaensly.

– José!… – exclamou a moça, assustada, apertando ‑lhe fortemente o braço.

– Que há – perguntou ‑lhe ele, algo apreensivo, esfor‑çando ‑se por aparentar calma absoluta.

– Que escuridão!… Tenho medo.– Medo?! Ora, não seja criança… Medo de quê? Não vê

que é uma nuvem que passa?…– Mas… não havia nuvens no céu!…Nesse instante, do lado oposto, da Casa de Correção,

partiu um barulho aterrador, seguido de fortes uivos. Dir‑‑se ‑ia uma tempestade prestes a desabar!…

– Você está ouvindo, José?!– Estou.– Vamos ter tempestade!…– Paciência. Que venha. Já estamos perto de casa… O

remédio é estugarmos31 os passos.Palavras eram ditas e o céu clareou como dantes. Um

tipinho entroncado, de tez escura, saltou do alto paredão

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da Casa de Correção e, às cambalhotas, foi colocar ‑se diante deles, a bem curta distância.

– José?!… – gritou a moça, escondendo ‑se atrás de meu irmão, que ficou com o chapéu suspenso aos cabelos hir‑tos32, sem poder avançar ou retroceder um passo.

O tipinho escancarou a enorme boca desdentada numa risada louca e começou a bater com força o pé no chão e a agitar no ar um respeitável vergalho33.

Disso provinha a espécie de tempestade ouvida.– Jesus! – proferiu a jovem, caindo sem sentidos.A esta exclamação o endiabrado tipinho deu formidá‑

vel salto, seguido de algumas cambalhotas, e desapareceu.Refeito do torpor em que caíra, José tomou a noiva des‑

falecida nos braços e levou ‑a para casa, onde permaneceu até vê ‑la tornar a si e livre de perigo.

Desta noite de sustos ao dia do falecimento da linda jovem, motivado por varíola, medearam alguns meses ape‑nas, durante os quais não mais saiu de casa, contentando‑‑se com o noivado insípido submetido aos rigores da vigilância paterna.

***O porquê daquela estranha aparição conheci ‑o depois,

quando molecote destorcido da saparia do Piques.A Casa de Correção ou Cadeia Pública, que continua a

ser o mesmo casarão daquela época, apenas reformado e mais ou menos modernizado, gozava de triste fama, pela maneira selvagem por que eram tratados os detentos.

Um carcereiro houve, o Embira, verdadeira fera huma‑na, a quem estavam afetos os castigos físicos dos encarce‑rados faltosos.

Sujeito agigantado, de má catadura, as suas surras pu‑nham os infelizes mansos como cordeiros. E, não tendo a quem surrar, passava mal a noite inteira.

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Os detentos tremiam só de ouvir ‑lhe o nome.Um dia, enfezando ‑se com um caboclinho que respon‑

dia pelo crime de furto, jurou que havia de surrá ‑lo até fazê ‑lo pedir ‑lhe perdão.

À vista disso, o rapaz tratou de não lhe dar ensejo à vin‑gança, mantendo ‑se com um comportamento exemplar.

A antipatia transformou ‑se então em ódio, e Embira passou a provocá ‑lo. Tantas fez e disse que Pé de cabra, o rapaz, foi obrigado a reagir.

Ciente do ocorrido, o diretor da Cadeia determinou a surra, como era de esperar, porque os detentos nunca tinham razão.

Pé de cabra foi levado ao pátio, no meio do círculo for‑mado pelos companheiros de infortúnio, diante do carce‑reiro, que tinha no semblante um sorriso de vitória.

Ao sinal de campainha, Embira recuou um passo, girou o vergasto no ar e despejou a primeira lambada.

Pé de cabra, porém, desviando ‑se habilmente do golpe, num salto fulminante despejou forte murro na cara do carcereiro, jogando ‑o de comprido ao chão. Tomou ‑lhe, o vergasto, esperou que ele se levantasse e zurziu ‑o34 furio‑samente, animado pela grita infernal dos encarcerados que assistiam à cena. E, a cada investida de Embira, ele batia o pé no chão, saltava e o vergasto lanhava as carnes do carrasco, que emitia urros de dor.

Ao cabo de alguns minutos a luta estava finda, Embira era cadáver e Pé de cabra carregado em triunfo.

Só então é que os guardas da Cadeia deram fé da cena havida e um deles, com certeiro tiro, prostrou Pé de cabra sem vida.

A partir daí, o valente caboclinho começou a assom‑brar os transeuntes pela maneira descrita.

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Brincadeira de mau gosto

Devido ao cemitério que durante longos anos funcio‑nou contíguo ao convento dos franciscanos, o Largo de São Francisco e seus arredores, em matéria de fantas‑mas, deixavam a perder de vista todos os outros pontos da capital, em que os de além ‑túmulo costumavam apa‑recer. Mas, ao lado dos fantasmas verdadeiros, surgiam também os de carne e ossos, a pôr em polvorosa a pacata população.

À vista disso, confesso que muitas vezes, em pleno dia, obrigado a passar pelo largo regurgitante35 de estudantes, fí ‑lo quase a correr, com a respiração suspensa e o coração em susto, lembrando ‑me das histórias apavorantes que me haviam contado.

Uma casa térrea, situada no Largo do Ouvidor – esqui‑na da Ladeira de São Francisco, fronteira à estátua de José Bonifácio, o Moço – muitas vezes me obrigou a passar pela calçada oposta, antes de conhecer a realidade dos fatos que a ela se prendiam.

Contava ‑se em voz misteriosa, como a temer uma vin‑gança do fantasma, que à meia ‑noite em ponto as portas e janelas daquela casa se abriam e fechavam fragorosamente

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doze vezes, findo o que saía à rua um alto vulto embuça‑do36 num manto branco e começava a rolar ladeira abaixo, emitindo dolorosos ais!

O fato repetia ‑se invariavelmente todas as noites, pon‑do notívagos e guardas em desabalada carreira até suas casas, onde chegavam derreados e sem fala.

Alguns encafuavam ‑se37 debaixo das cobertas, calça‑dos e vestidos, tal o pavor de que ficavam possuídos.

Os moradores circunvizinhos escoravam as portas dos fundos com trancas e pesados móveis, certos de que, assim procedendo, o fantasma não lhes entraria em casa. Às nove horas (21 horas), o mais tardar, recolhiam ‑se aos aposentos, forcejando por adormecer.

A notícia da aparição espalhou ‑se logo, avultou com detalhes centuplicados, e em pouco ninguém mais passava pelo largo, ao aproximar ‑se a hora fatal.

Um caso sério o tal fantasma, e bem no coração da cidade!Decorrido algum tempo, calhou aproximar ‑se da casa

assombrada o mulato Piúva, no momento em que o reló‑gio da Academia soava os quartos de hora para depois bater as doze badaladas.

Piúva, sujeito valente, bem servido de músculos e não chumaços de algodão, estava meio alcoolizado e dirigia ‑se para sua casa, à Rua de Santo Amaro. Absolutamente não ligou ao forte bater de portas e janelas, e começou a descer a Ladeira de São Francisco, arrastando a bengala de piúva que lhe dera o apelido.

Súbito, porém, ouviu gemidos atrás de si. Parou, voltou‑‑se, e, equilibrando ‑se o mais possível, apoiado à benga‑la, abriu quanto pode os pequeninos olhos injetados de álcool. Sorriu, lembrando ‑se do que corria de boca em boca sobre aquela aparição, e monologou:

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brincadeira de mau gosto

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Ladeira de São Francisco em 1862. Foto de Militão Augusto de Azevedo.

– Coitado do fantasma!… Que lhe terá acontecido para gemer assim? Vamos ver.

Admirado de tanta coragem, ao tê ‑lo quase ao alcance das mãos, o fantasma tratou de levantar ‑se e fugir. Mas foi tarde, porque valente bengalada de Piúva alcançou ‑lhe a cabeça, estendendo ‑o ao chão.

As bengaladas choveram então, ouvindo ‑se numerosos e verdadeiros ais!, que o mulato repetia como eco, admi‑rado de que a assombração preferisse apanhar daquela maneira a desaparecer.

De repente o fantasma ajoelhou ‑se e exclamou, de mãos postas, em sua meia língua:

– Piedade! Senhor… não me mate.Piúva suspendeu a pancadaria. Retirou ‑lhe o lençol que

o envolvia, já manchado de sangue, e deu de cara com o francês Forster, morador do prédio do Largo do Ouvidor, que tomara a empreitada de amedrontar os pobres tran‑seuntes que por ali passavam.

A brincadeira de mau gosto custou ao senhor Forster muitos dias de cama e respeitável despesa com médico e botica, e a cidade de São Paulo perdeu, para sempre, um dos seus fantasmas mais temidos.

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Os fogos ‑fátuos

O Cemitério Público, construído no alto da Consola‑ção, era o ponto terminal da rua de igual nome, que dele se desviava à esquerda por um simples trilho e assim pros‑seguia até alcançar a Estrada Velha de Pinheiros (Avenida Rebouças).

Cemitério da Consolação em 1887. Foto de Militão Augusto de Azevedo.

Com a abertura da Avenida Paulista, inteiramente ocu‑pada pelas famílias mais evidentes e ricas de São Paulo,

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tratou ‑se de comunicá ‑la com o centro da cidade por meio do prolongamento e retificação da Rua da Consolação, o que determinou o recuo do cemitério para o ponto em que se acha, bem como a mudança da entrada principal para esta rua.

Feita a exumação dos cadáveres do trecho desapropria‑do, com exceção dos das valas comuns, o terreno foi nive‑lado e entregue ao trânsito público.

Desse modo, na estação quente, não era raro ver ‑se, na escuridão da noite, desprenderem ‑se do solo exalações fosfóricas – fogos ‑fátuos – cujas chamas perdiam ‑se no ar, numa dança macabra.

O povo, supersticioso ao extremo, atribuía ‑as à saída de espíritos pecadores, obrigados a errar no espaço até paga‑rem as suas culpas terrenas!…

E, sempre que alguém comentava o aparecimento de tais chamas, vinham à baila os maus atos praticados em vida por defuntos conhecidos, aos quais se atribuíam cha‑mas mais ou menos longas, mais ou menos brilhantes, de maior ou menor duração, conforme a gravidade das faltas.

Como corolário38, os pobres defuntos viam ‑se trans‑formados em fantasmas, que apareciam em determinados pontos, assombrando a população.

As rezas sucediam ‑se então amiudadas, isoladas e em conjunto, em favor das almas sofredoras, formando ‑se verdadeiras novenas, às quais se associavam crianças e adultos de ambos os sexos e de diferentes idades.

Para tais supersticiosos, passar à noite, diante do cemi‑tério, era um verdadeiro arrojo; morar ‑lhe ao lado ou nas imediações constituía temeridade inaudita. Hoje, entre‑tanto, os cemitérios emergem do casario compacto, nos bairros em que foram construídos, sem infundirem o menor receio a quem quer que seja. Os mortos, os nossos

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os fogos ‑fátuos

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queridos mortos descansam para sempre em seus túmulos, sob os olhares respeitosos e compassivos dos que ainda são obrigados a carregar por aqui o pesado fardo da existência.

Como os tempos mudaram!…

***

Ângelo, um dos primeiros colonos imigrados para o Brasil, era talvez o único temerário que ousava passar a desoras diante do Campo Santo. Mas fazia ‑o de ânimo desprevenido, sem a mais leve intenção de desafiar os mortos, a seu ver mais inofensivos que os vivos.

Havia seis meses que se transferira com a família para São Paulo, indo ocupar um grande terreno que arrendara por 120$000 anuais na Estrada Velha de Pinheiros e no qual levantara uma casinha bastante rústica.

Perito chacareiro, nesse lapso de tempo, auxiliado por mulher e filhos, conseguiu transformar o terreno inculto numa linda chácara, cujos legumes e hortaliças, sempre frescos e viçosos, passaram a ser muito disputados pelas donas de casa.

Iniciando a sua venda com uma simples cesta, em bre‑ve precisou fazer uso de duas e, com o crescente aumento da freguesia, teve necessidade de comprar um carrinho de mão.

Ângelo não escondia a satisfação que tal fato lhe cau‑sava e abençoava a hora em que decidira trocar a vida de colono pela de chacareiro, embora fosse obrigado a madrugar para chegar à cidade antes de qualquer dos seus concorrentes.

A inveja não tardou a entrar em ação e, na falta de melhores meios, os invejosos lançaram mão dos fogos‑‑fátuos, dos maus espíritos e do perigo da sua passagem pelo cemitério, para intimidá ‑lo.

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Ângelo percebeu o alcance daqueles cuidados com a sua pessoa e deixou ‑os extravasar à vontade o inteiro repertório das superstições.

Certa madrugada, porém, muito quente e escura, ao alcançar o cemitério, estacou de repente, boquiaberto, de olhos esbugalhados, com as mãos firmemente grudadas nos braços do carrinho.

– Os fogos ‑fátuos!… – Fora avisado… Razão tinham os seus rivais!…

Com efeito, eles lá estavam, a alguns metros de dis‑tância, desprendendo ‑se do solo e sumindo no espaço!… Eram espíritos que partiam para as suas penas!…

Num relance assomaram ‑lhe ao pensamento mil extra‑vagâncias a respeito de fantasmas. Os cabelos se lhe eriça‑ram de pavor, turvaram ‑se ‑lhe os olhos e, tomado de forte mal ‑estar, bambeou as pernas e caiu desfalecido.

A horas tantas a família de Ângelo foi despertada por fortes batidas de palmas e gritos de:

– Oh! De casa!… Oh! De casa!…Atendendo ao chamado, mulher e filhos do chacareiro

só viram, diante do portãozinho da chácara, o seu che‑fe estendido no carrinho, sobre o monte de verduras que levara para vender.

Recolheram ‑no ao leito, ministrando ‑lhe os primeiros cuidados.

– Que teria acontecido?!… – perguntavam ‑se todos. – Quem o teria levado para casa naquele estado? Mistério!…

Depois de algumas horas, de cuidados e aflições, Ânge‑lo recobrou os sentidos e explicou:

– Como de costume, cheio o carrinho parti para a cidade. Ao chegar ao cemitério, vi, a pequena distância, umas luzes esquisitas, cujas chamas perdiam ‑se no espa‑ço. Parei, a fim de ver bem o que era aquilo. Avancei um

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os fogos ‑fátuos

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passo e as chamas se recuaram! Retrocedi e fui persegui‑do por numerosos diabinhos que saíram de sob o solo, a vomitar chamas sobre mim!… Neste momento caí sem sentidos e não sei como cheguei até aqui.

– Mas sei eu – ajuntou nhô Tonico Sucupira, o curan‑deiro chamado para socorrê ‑lo, muito versado em coisas do outro mundo. – Os ispirto, despois de judiá de vossun‑cê, punharo vossuncê no carrinho e truchero vossuncê inté aqui. Batêro parma, gritaro “oh! di casa” e sumiro. Aí está.

Fora dita a última palavra sobre o caso. Ninguém con‑testou e o fato passou para os anais da… história, bastante melhorado e fortemente aumentado.

Quando pode recomeçar a lida, Ângelo, por prudência, desistiu de madrugar.

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O “Rolão” – o lobisomem

Lobisomem, segundo a crença popular, é todo indiví‑duo que, às sextas ‑feiras, à meia ‑noite, se transforma em lobo ou qualquer outro animal e percorre os galinheiros, matando a criação e comendo ‑lhe os excrementos; entra pelas casas, maltratando as crianças; e erra pelas ruas, a assustar os transeuntes, atacando ‑os algumas vezes.

Entre nós essa transformação sempre se fez sob a forma de um enorme cão, embora a palavra signifique homem‑‑lobo.

Divergem as opiniões quanto à origem deste estranho personagem, atribuindo ‑a alguns a casais com sete filhos, todos homens; outros a casais com treze filhos; e outros ainda com filhos nascidos na sexta ‑feira da Paixão, à meia‑‑noite.

Se forem sete os filhos, todos homens, o sétimo será o lobisomem; se forem treze, seis mulheres e sete homens, o sétimo destes, o menor, passará pela transformação; o nascido na sexta ‑feira da Paixão, à meia ‑noite, sofrerá a mesma pena.

Verifiquem os que me leem se não estão num dos três casos!…

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O lobisomem, dizem os entendidos, não enxerga na cla‑ridade, bastando a simples luz de uma vela para desviá ‑lo do ponto em que a gente está.

Isso mesmo afirmaram ‑me alguns frequentadores da venda de meus pais, que já haviam sido perseguidos no Largo de São Francisco, sem, contudo, sofrer o menor dano. Pressentido o canzarrão, todos tiveram o cuidado de correr para os portais iluminados das igrejas de São Benedito e de São Francisco e de ali permanecer até vê ‑lo desaparecer.

A aproximação do lobisomem é sempre anunciada por um uivo forte e prolongado.

Há quem diga que, cortando ‑se ‑lhe uma pata, ele se transforma prontamente em homem e nunca mais read‑quire a humilhante forma de irracional.

Vai muito exagero nesta afirmação, pois, para que tal aconteça, basta sangrá ‑lo com um instrumento perfuran‑te, um canivete, um prego, um espeto.

Readquirida a sua forma humana, ele agradece ao agressor e pede ‑lhe um instantinho de espera, pois faz questão de pagar ‑lhe o grande benefício recebido com uma lembrança qualquer. Parte e volta sem demora com um revólver, que descarrega sobre a pessoa, se esta cometer a imprudência de esperá ‑lo.

Feito este amável presente; a família lobisômica fica desfalcada de mais um elemento.

Como e onde consegue ele obter tão rapidamente o revólver, ainda ninguém soube explicar.

***

“Rolão”, o lobisomem, eu o conheci. Alto, elegante, qua‑se bonito, de muito boa prosa, mas um verdadeiro desastre quando cantava… A sua voz grossa e desafinada semelha‑

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o “rolão” – o lobisomem

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va uma sucessão de pedras a rolar, de onde o apelido que lhe deram – “Rolão”.

Era o último dos sete irmãos da família, razão por que lhe coube a triste sina. Regularmente inteligente e pos‑suidor de bela caligrafia – o que na época era atestado de capacidade, foi ‑lhe fácil acomodar ‑se como escrivão de paz do juizado da Consolação e mais fácil ainda con‑seguir as boas graças da filha do juiz, com a qual se casou.

Morando com o sogro, viúvo, numa casa em que havia só gente grande, bem se pode calcular como foi ali recebida a notícia do nascimento do primeiro filho do casal. Ambiente mais propício não teria ele encontrado em parte alguma.

Já se haviam escoado vinte e um meses de casados, na maior harmonia, quando um fato estranho pôs em sobres‑salto a casa toda. Belinha, a esposa, seguindo o hábito ita‑liano, todas as noites, ao deitar, mudava as fraldas do filho, enfaixando ‑o do peito aos pés. Num sábado pela manhã, ao levantar, notou com grande espanto estar a criança desenfaixada e as faixas e fraldas estraçalhadas no chão!

Desse mesmo espanto participou o marido, fazendo mil conjecturas.

Duas noites quase não se dormiu naquela casa, procu‑rando desvendar o mistério. Depois, tudo caiu no esque‑cimento.

No sábado seguinte verificou ‑se a mesma coisa, com a agravante de apresentar a criança umas manchas roxas pelo corpo.

Belinha desesperou. Foi ter com a madrinha, a quem contou o caso.

– Ah! Minha filha! Isso é arte de lobisomem – disse ‑lhe a experimentada senhora.

A afilhada esbugalhou os olhos:– Lobisomem?!… Que vem a ser isso?

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A madrinha explicou ‑lhe o caso dos sete filhos, todos homens, o que arrancou de Belinha a exclamação:

– Jesus!– Que há?!– Nesse caso… meu marido…– Seu marido…– É lobisomem?!– Como assim?– É o sétimo filho…– Então é lobisomem.Belinha desandou a chorar.– Meu Deus! E é ele quem judia de seu próprio filho!…– Ele não o faz por querer, minha filha. É sua sina. Mas

não se desespere, porque tudo isso vai acabar – observou‑‑lhe a madrinha, procurando tranquilizá ‑la.

Quando a viu mais calma, passou a elucidá ‑la.– Está em suas mãos fazer que seu marido deixe para

sempre de ser lobisomem.– Em minhas mãos?– Sim.– Explique ‑se.– Você tem coragem?– Tenho.– Ouça, então. Todas as sextas ‑feiras, à meia ‑noite, os

indivíduos como seu marido transformam ‑se em cães ou outros quaisquer animais e partem para os seus pena‑res, voltando altas horas da madrugada e readquirindo sua forma humana. Observe seu marido esta sexta ‑feira e verá que não me engano, pois é ele o autor do que foi fei‑to a seu filho. Quando ele sair, vá buscar um canivete ou qualquer instrumento perfurante e espere pelo seu regres‑so, fingindo ‑se a dormir. Logo que ele comece a mexer com o pequeno fira ‑o sem dó, até tirar ‑lhe sangue. O feri‑

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o “rolão” – o lobisomem

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mento fa ‑lo ‑á transformar ‑se em homem, sendo certo que ele lhe agradeça e termine por pedir ‑lhe que o espere um momento, pois irá buscar um lindo presente para lhe dar, em paga do benefício recebido. Não seja tola, porém. Assim que ele se ausente, meta os travesseiros por baixo dos cobertores, fingindo serem a sua pessoa, e retire ‑se do quarto com o pequeno. O que ele vai buscar não é presen‑te, e sim um revólver para matá ‑la.

Belinha estremeceu, apavorada, e apertou fortemen‑te o filhinho contra o peito, como a defendê ‑lo de uma agressão.

– Logo que ele tenha despejado toda a carga do revól‑ver, você pode entrar no quarto sem receio, porque tudo estará acabado.

Aqui a madrinha encerrou o assunto e cumulou a afi‑lhada de gentilezas e de atenções. Na despedida, porém, relembrou ‑lhe o que dissera, e acrescentou:

– Coragem e sangue frio. Hoje é sábado e até quinta‑‑feira você pode dormir sossegada, que nada acontecerá. Sexta ‑feira…

– Farei o que me disse.

***

Belinha voltou para casa quase cambaleante e contou tudo a seu pai e seus irmãos. O ambiente, a partir daí, tornou ‑se pesado, esquisito, e “Rolão” percebeu que o olhavam com desconfiança. Mas não se atreveu a pergun‑tar o porquê de tão rápida mudança.

Os dias foram ‑se escoando lentamente, contando ‑se por horas, naquela casa, os minutos que passavam!…

Chegou, afinal, a ansiosamente esperada sexta ‑feira.Às 22 horas, como de costume, já todos se achavam

recolhidos em seus leitos e a casa mergulhada em com‑

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pleta escuridão. Apenas no quarto de “Rolão”, por causa do pequeno, esboçava ‑se uma débil claridade, produzida pela chama de uma lamparina.

Exceção feita de “Rolão”, que pronto adormecera, os mais estavam alertas e com a respiração suspensa, contan‑do uma a uma as batidas do grande relógio da sala de jantar.

Súbito, apertou ‑se ‑lhes o coração. Meia ‑noite!…– É agora!… – foi o pensamento geral.E foi mesmo.Quando o relógio deu a última pancada, Belinha viu,

assombrada, o marido saltar do leito, transformar ‑se num canzarrão e desaparecer como por encanto.

Sem perda de tempo deu o alarme, tirou da gaveta da cômoda um punhalzinho que comprara para o fim em vista e voltou para o leito à espera da volta do lobisomem.

Dos irmãos, os mais medrosos encolheram ‑se a tremer, cobrindo até a cabeça e tapando os ouvidos com as mãos. Os outros e o velho juiz de paz, pelo contrário, sentados nas respectivas camas, deixaram abertas as portas dos quartos e muniram ‑se de fósforos e velas, para poderem atender sem demora a qualquer chamado.

Às 2 horas regressou o lobisomem. Deu uma volta pelo quarto e foi diretamente ao pequeno, assentando ‑lhe ao peito as patas dianteiras.

Foi o bastante. Belinha enterrou ‑lhe o punhal no corpo, retirando ‑o logo, tinto de sangue.

O marido readquiriu a forma humana, agradeceu ‑lhe o benefício e fez ‑lhe o pedido já sabido.

Ela, porém, procedeu conforme a recomendação da madrinha e correu para junto dos seus, carregando con‑sigo o filho.

Decorridos alguns minutos, ouviram ‑se no quarto seis detonações.

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o “rolão” – o lobisomem

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Correram todos de velas acesas e deram ali com “Rolão”, a olhar fixo para leito e a apontar para o monte de traves‑seiros o revólver ainda fumegante.

À vista do sogro, cunhados, esposa e filho, o coitado olhou ‑os bestificado e examinou ‑se, sem poder com‑preender o que se passava. Tinha certeza de se haver dei‑tado!… Como é que ali se achava, completamente vestido, rodeado por todos e de revólver em punho?!…

Vergado ao peso do mistério, “Rolão” deixou de traba‑lhar, de comer, e mal dormia. Até que, vendo ‑o definhar, a esposa resolveu contar ‑lhe tudo.

– Lobisomem?! – exclamou ele, muito admirado. – Esquisito!… E eu sem saber!…

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“Mestre” Chico – o sapateiro

“Mestre” Chico, o sapateiro, era um pobre remendão inofensivo, bastante conhecido nas rodas frequentadoras de vendas e quiosques, pela prodigalidade com que pagava cachaça e mata ‑bichos39 a quem quisesse beber.

Habitava a parte mais alta do porão de um prédio da Ladeira Tabatinguera, esquina da Rua da Boa Morte, denominando “Sapataria Invidiata” (Sapataria Invejada) aquele misto de dormitório e tenda de trabalho, onde se viam uma cama de vento40, uma prateleira rústica com meia dúzia de formas, dois bancos compridos, a banqueta com os petrechos e uma cadeirinha pré ‑histórica.

Rua da Boa Morte, em 1862. Foto de Militão Augusto de Azevedo.

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Trabalhava com afinco de manhã à noite, de terça ‑feira a domingo, inclusive, mas não havia o que o retivesse às segundas ‑feiras, consagradas a São Crispim, de descanso absoluto e bebedeira certa.

Se ele não existisse, seria preciso fazê ‑lo, pois represen‑tava uma quase necessidade, na São Paulo antiga, para os que não podiam frequentar teatros, touradas e circos de cavalinhos.

Mesmo aferrado ao trabalho, falava pelos cotovelos, e as suas bravatas divertiam imenso os frequentadores da “lnvidiata”, pela originalidade dos acontecimentos em que se fazia herói, pelo imprevisto das situações e absurdo das conclusões, e de modo especial pelo pitoresco das narra‑ções, feitas numa linguagem excessivamente macarrônica.

“Mestre” Chico, além do mais, era assim uma espécie de sei tudo e faço tudo. Nada havia o que não soubesse ou não fizesse. Por isso, mal lhe perguntavam se sabia ou havia feito tal coisa, respondia erguendo os ombros e com um sorrisozinho de pouco caso:

– Se sei!… Se fiz!…E despejava logo uma catadupa41 de asneiras, para pro‑

var os seus inesgotáveis conhecimentos enciclopédicos.Os ouvintes gozavam com isso e provocavam ‑no a

falar.O “raio” do remendão era um admirável desopilante

do fígado!…Certa vez, falando das campanhas garibaldinas em que

tomara parte, declarou que o próprio Garibaldi nunca o excedeu em atos de heroísmo e em concepções de planos estratégicos! Quantas vezes, para poder safar ‑se das situa‑ções difíceis em que caíra, precisou o grande cabo de guer‑ra recorrer às suas luzes!…

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“mestre” chico – o sapateiro

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– Não é para me gabar… Apesar de simples lambe ‑sola, em coisas de guerra eu sabia mais do que ele! Disse ‑me um “espiritista” que eu tenho o espírito de Napoleão!…

Forte gargalhada abafou estas últimas palavras, sem fazer mossa42 a “Mestre” Chico, que continuou a meter tachas na meia ‑sola do sapato de um freguês que ali se achava à espera, com uma resignação de santo.

Houve um breve silêncio.De repente um dos presentes perguntou ‑lhe:– E fantasmas, “Mestre” Chico… você já os viu?– Chiiii… se os vi! Os maiores do mundo… lá na Itália.

Cada “fantasmão” mais alto que o Canudo da Luz.– E nunca teve medo?– Medo… eu? Se nem o “diávolo” pode comigo…– Isso, agora, “Mestre” Chico… tire o cavalo da chuva –

disse um outro, para provocá ‑lo. – O diabo é o diabo…“Mestre” Chico sentiu ‑se ofendido. Jogou o sapato e o

martelo sobre a banqueta e desembuchou:– Quer ver? Um dia eu estava trabalhando na minha

“loja”, em Roma, quando me entrou pela porta adentro um diabinho do tamanho de um gêmo.

E mostrou a distância compreendida entre as extremi‑dades dos dedos polegar e indicador distendidos.

– Era vermelhinho como uma brasa.Pensando que eu não o tivesse visto, o diabo do diabi‑

nho começou a revolver ‑me a “loja” toda. Perdi a paciên‑cia e levantei ‑me para agarrá ‑lo. Ele percebeu a minha intenção e fugiu para a porta, fazendo ‑me uma porção de caretas.

“Vá embora!” – “Não vou. – “Vá embora!” – Não vou”. – Atirei ‑lhe o martelo com tal firmeza que ele fugiu man‑quitolando e a gritar.

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– “Mestre” Chico… – proferiram os ouvintes a uma voz. – Tenha paciência… o diabo a fazer ‑se alcançar pelo martelo!…

– Por que não? Quando ele vem à Terra, sujeita ‑se a tudo. Mas ouçam o fim. Mal havia eu recomeçado o tra‑balho, vejo, de pé, na porta da “loja”, um homenzarrão de uns dois metros de altura, que me olhava carrancudo.

– Deseja alguma coisa? – perguntei ‑lhe.– Uma satisfação.– E quem é o senhor, para tal exigir?– O diabo.– Isso é lorota – interrompeu o freguês, já enfarado43

com a demora do sapato. – Como é que pode haver diabos em Roma, sede do Vaticano, com o papa, cardeais, bispos, padres e mais agentes da religião?!…

– Eu lhe explico. O diabo era um anjo que, por ser mui‑to mau, foi expulso do Paraíso. Não se conformando com o castigo, ele vive escondido em Roma, transformado em gente, à espera do momento de poder apropriar ‑se do Vaticano e vingar ‑se dos que o expulsaram. Aparece algumas vezes às pessoas, para ficar sabendo quais as suas amigas e quais as inimigas.

O freguês nada objetou e o sapateiro prosseguiu no assunto interrompido.

– O senhor, então, é o diabo, pois não?!… E vem por causa do que fiz ao diabinho, com certeza…

– É isso mesmo.– Pois não lhe hei de dar satisfações. E… ponha ‑se ao

fresco!O diabo quis avançar. Levantei ‑me com a faca na mão,

esbugalhei os olhos, rangi os dentes e ordenei imperativa‑mente: – “Vai ‑te, satanás, ou te mato como a um cabrito e trinco ‑te nos dentes como um pedaço de pão!”

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Ele bem sabia que um calabrês não falta ao que promete e desapareceu para nunca mais voltar.

– Bem se vê que era diabo italiano – sentenciou o fre‑guês. – Se fosse dos nossos…

– Que faria? – quis saber o remendão.– Você seria frito e comido.– Eu?! Ah! ah! ah! Gostaria de ter pela frente não um,

mas cinquenta diabos brasileiros.–Disse – e ergueu o martelo, para continuar a pregar

a meia ‑sola.Ao desferir a pancada, o martelo escapou ‑lhe da mão,

indo parar no meio da rua,Um dos presentes foi buscá ‑lo.Mais quatro vezes o martelo seguiu o mesmo caminho,

o que irritou sobremaneira “Mestre” Chico.– Porca miséria! – resmungou. – Se me aparecesse aqui

um diabo, vocês haviam de ver de que farinha fui feito…Nisso, martelo, sapatos, banqueta e formas voaram,

sem se saber como, pela porta fora, e “Mestre” Chico foi suspenso diversas vezes e jogado ao solo, com cadeira e tudo, diante dos olhares bestificados dos que com ele esta‑vam a palestrar.

Quis gritar, mover ‑se, mas não pode, o mesmo aconte‑cendo aos demais.

De repente ouviu ‑se estrondosa gargalhada, seguida de uma voz cavernosa, que repetiu três vezes: – “Não seja bobo! Não seja bobo! Não seja bobo!”

Um sopro fortíssimo lambeu o rosto de quantos lá estavam; a figura de satanás mostrou ‑se acavalada44 aos ombros do sapateiro e desapareceu num pronto, deixando no recinto um forte cheiro de enxofre queimado.

Na “Invidiata” só ficou, imóvel, a “invencível” figura de “Mestre” Chico.

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Coitado! Quando recuperou os sentidos, bem a contra‑gosto precisou tomar o décimo banho de toda a sua vida.

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A pisadeira

Na antiga Rua Marechal Deodoro, em velho sobradão já desaparecido, havia uma pensão só para rapazes, a qual, em virtude de sua proximidade da Academia de Direito e do centro da cidade, achava ‑se inteiramente tomada por estudantes e empregados no comércio.

Naquela vida em comum, sob as vistas atentas e res‑peitáveis dos donos da pensão, estudantes e caixeiros confundiam ‑se num bloco único, sendo encontrados sem‑pre juntos nos folguedos e festas, alegres, joviais, dentro dos limites da boa educação.

O almoço diário, devorado às pressas, obrigava ‑os a só abrirem a boca para comer, decorrendo silencioso e sem graça, dando a impressão de serem todos desconhecidos ou inimigos. O jantar, porém, era ruidoso, entrecortado de pilhérias, de ditos chistosos45 e de histórias alegres, prolongando ‑se até as 21 horas, quando se recolhiam para dormir.

Divergindo as funções de cada um, o sono era ‑lhes regulado pelos deveres que tinham a cumprir. Razão por que os estudantes mantinham ‑se, em regra, acordados até as 24 horas e mais, ao passo que os caixeiros, coita‑

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dos, estafados da azáfama46 diária e com o pensamento no horário, forcejavam por adormecer o mais depressa pos‑sível. Sobravam ‑lhes motivos para isso, porque não havia então, como hoje, uma hora certa e cômoda para a abertu‑ra e fechamento do comércio, e cada patrão determinava o horário que mais convinha aos seus interesses.

Jantando tarde da noite e deitando ‑se quase a seguir, acontecia serem os rapazes algumas vezes acometidos de for‑tes pesadelos que punham em polvorosa a “confraria” toda.

Serenado o ambiente, recolhiam ‑se de novo aos apo‑sentos, deixando para o dia seguinte os comentários e troças sobre o acontecido, o que a vítima era obrigada a suportar com grande dose de bom humor, para não se transformar num eterno “judas” dos companheiros.

***

Numa terça ‑feira, à meia ‑noite, achavam ‑se alguns estudantes a discutir as lições no quarto de um colega, quando foram interrompidos por um gemido prolongado e aflito que partia do aposento número 13.

– Silêncio! – pediu um deles.– Que há?– Pareceu ‑me ouvir gemidos.Puseram ‑se à escuta. Com efeito, os gemidos fizeram‑

‑se ouvir com maior nitidez, seguidos de fortes ofegos e de movimentos apressados de quem busca desvencilhar ‑se de alguma coisa bastante pesada que o oprime.

– O caso, hoje, parece mais sério do que os das outras noites, não acham?

– E bem mais sério!… – concordaram todos.– Vamos ver quem é e socorrê ‑lo.Ao saírem do quarto, encontraram a turma inteira

diante do aposento do Manuel das Dúzias, esforçando ‑se

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a pisadeira

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por abrir a porta que o diabo do alfacinha, contrariando uma combinação feita, fechara a chave, deixando esta na fechadura.

Aumentando cada vez mais a af lição do caixeiro, o dono da pensão ordenou o arrombamento da porta, o que foi feito, penetrando todos no quarto como uma ava‑lanche.

A cama estava reduzida à simples armação. Lençóis, colcha, travesseiro, colchão achavam ‑se espalhados pelo chão, e Manuel das Dúzias, estirado a um canto, de bar‑riga para o ar, olhos congestionados, pernas encolhidas, mãos crispadas como quem segura um corpo, e suando às bicas, gritava:

– Segurem ‑na… afastem ‑na… a velha… pisa ‑me… estrangula ‑me!… Ai!… ui!… Aqui!… ai!… Ei ‑la!… –

E contorcia ‑se, debatia ‑se, gemia!…Um dos estudantes, “médico” de pesadelos, desamarrou‑

‑lhe o cordão das ceroulas e começou a friccionar ‑lhe valen‑temente o estômago com álcool, enquanto os outros davam arrumação ao leito, no qual foi reposto o pobre alfacinha.

Afinal, cansado de esfregar, e não obtendo o resulta‑do esperado, o “médico”, como último recurso, tratou de provocar ‑lhe o vômito.

– Este diabo empanturrou ‑se e aí está o resultado – dis‑se. – Não há remédio… precisa “destripar o mico”.

E tanto fez que Manuel das Dúzias jogou fora o bolo que o estômago se recusara digerir.

***

Eram 2 horas, quando a “confraria” pôde recolher ‑se aos leitos, deixando o doente livre de tormentos.

No dia seguinte e durante uma semana a fio, Manuel foi o bode expiatório dos companheiros de pensão. Não

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comentaram o fato, nem procuraram conhecer a causa daquele mal ‑estar, cingindo ‑se unicamente a reproduzir as exclamações ouvidas.

Na mesa e onde estivessem com o Manuel era certo um deles gritar “Ai! ui!” e os outros concluírem “Aqui… ai!… Ei ‑la!… A velha… segura ‑me… pisa ‑me… afastem ‑na… estrangula ‑me…”

O das Dúzias esboçava um sorriso amarelo, sendo cer‑to que a sua vontade era arremessar o prato à cara de quem iniciava a troça.

Percebendo o agastamento do pensionista e querendo prevenir males maiores, o dono da pensão provocou ‑o a falar, com o que teve fim o seu calvário.

– Deitei ‑me muito bem disposto – referiu ele – e não tardei a pegar no sono.

Já havia dormido um bom pedaço, quando alguma coi‑sa começou a pesar ‑me no corpo. Entreabri os olhos sono‑lentos e vi, apavorado, uma velha horrível, desdentada, a pisar ‑me o corpo! Quis erguer ‑me e não pude, porque ela vergou ‑se sobre mim, mandando ‑me as mãos encarqui‑lhadas47 ao pescoço, disposta a estrangular ‑me!… Senti‑‑lhe as unhas longas e afiadas penetrarem ‑me nas carnes, e daí a luta furiosa que sustentei com ela, até perder os sentidos!

Os companheiros quiseram desandar ‑lhe uma tremen‑da vaia, no que foram impedidos pelo dono da pensão, que confirmou a existência de semelhante personagem na família dos fantasmas.

– Essa velha existe, meninos, tal qual a descreveu o senhor Manuel. É horrenda, nojenta, veste ‑se de preto e tem a mão direita furada. Aparece às terças ‑feiras à meia‑‑noite, a pisar o corpo das suas vítimas. Chama ‑se, por isso, “Pisadeira da mão furada”. Agora que conhecem a

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a pisadeira

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sua existência, escusam de procurar afastá ‑la pela força, quando atacados por ela, o que é contraproducente, como viram. Pressentida a sua presença, repitam mentalmen‑te, três vezes seguidas, as seguintes palavras, e rezem um Padre ‑Nosso e uma Ave ‑Maria, que ela os deixará em paz: “Pisadeira da mão furada e unha encoscorada, percorre 150 vezes o mar e volta quando lá vejas ou ouças um galo cantar”. Sendo o mar imenso e impossível a existência de galos em seu seio, a pisadeira acaba imergindo nele, para nunca mais aparecer.

Os rapazes sorriram intimamente, mas, na época de crendices em que viviam, não deixaram de gravar no pen‑samento as palavras benfazejas, para repeti ‑las quando se lhes oferecesse a oportunidade.

Graças a isso, Manuel das Dúzias ficou livre das suas zombarias.

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“Pepino”, o carvoeiro

“Pepino”, o carvoeiro, há muito residia na capital, num cortiço da travessa da Palha (Rua Bráulio Gomes), quase na esquina da Rua do Paredão (Rua Xavier de Toledo), exclusivamente habitado por italianos do sul da Itália.

Homens, mulheres e crianças viviam ali como se fos‑sem uma grande família, estimando ‑se e auxiliando ‑se mutuamente.

Paredão do Piques em 1862. No alto, a Rua do Paredão. Foto de Militão Augusto de Azevedo.

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Patrício que chegasse da terra era por eles prontamente arrebanhado e socorrido, permanecendo no cortiço até morrer.

Não havia segredos naquele meio e o que sobejava48 a uns era logo fornecido em empréstimo aos menos favo‑recidos, sem documentos ou testemunhas, pois sabiam que o dinheiro lhes seria religiosamente devolvido, mais cedo ou mais tarde, sem quebra de um vintém.

Os juros eram representados pela simples gratidão, vis‑to considerarem ofensa gravíssima o querer um patrício recompensar com dinheiro o que eles tinham na conta de dever.

“Pepino” foi um desses arrebanhados e chegou ao corti‑ço com apenas a roupa do corpo e alguns patacos que não chegavam a dez mil réis.

Aboletaram ‑no sem demora num quarto de solteiro, dotado de uma cama rústica, uma mesinha, uma mala e uma cadeira; forneceram ‑lhe alimentos e roupas até ambientá ‑lo no meio desconhecido em que devia agir; e, quando o viram preparado para a luta, forneceram ‑lhe o dinheiro preciso para enfrentar a situação.

O recém ‑chegado era analfabeto e não tinha ofício. De modo que só viu um caminho a seguir: fez ‑se car‑voeiro, do que não se arrependeu, porque, compran‑do e vendendo saquinhos de carvão, em pouco tempo conseguiu saldar todos os seus compromissos e ajun‑tar algumas centenas de mil réis, que trocou em libras esterlinas.

Afável e brincalhão, soube captar as simpatias de todos, principalmente das crianças, e adquirir uma freguesia invejável.

Gostava de vinho e de cachaça, mas nunca ninguém o viu embriagado.

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“pepino”, o carvoeiro

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Bondoso ao extremo, irritava ‑se de tal modo, quando via baterem nas crianças, que diversas vezes precisaram socorrê ‑lo de ataques. No último que o acometeu ficou em estado cataléptico49, pondo em sobressalto o cortiço todo.

Diante da gravidade do caso, foi chamado um médico que, sem qualquer exame e na maior precipitação, deu ‑o por morto e passou ‑lhe o atestado de óbito.

Gritos, lágrimas, correrias encheram o recinto. E, enquanto as carpideiras, seguindo a tradição da terra de origem, lamuriavam, descabelando ‑se sobre o “cadáver”, os homens partiam aos grupos a avisar amigos, a con‑tratar caixão mortuário, a registrar o óbito e a tudo pro‑videnciar para o saimento fúnebre, que se realizou a pé, com grande acompanhamento, às 17 horas daquele mesmo dia, rumo ao cemitério da Consolação. Nem lhe faltou a infalível banda de música dos “Bersaglieri”, com sua farda característica, a choramingar uma dolorosa marcha fúne‑bre durante todo o longo trajeto.

Às 17h50 já o caixão mortuário descansava sobre um dos estrados do necrotério, rodeado por todos os que o acompanharam.

– O “morto” não baixará hoje à sepultura, pois ainda não decorreram as 24 horas de prazo, exigidas por lei – disse ‑lhes o ajudante do administrador. – Só amanhã, às 6 horas, é que será feito o sepultamento. Se algum dos senhores desejar assisti ‑lhe, esteja aqui a tempo.

O pasmo foi geral. Mas, como a lei é lei, despediram ‑se todos do “cadáver” e retiraram ‑se a tecer comentários os mais disparatados sobre o caso.

– Pobre “Pepino!” – suspiraram alguns, bastante deso‑lados. – Até para ser enterrado obrigam ‑no a esperar!… Coitado! Deus o tenha em sua Santa companhia, porque bem o merece.

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No cortiço, devido à intromissão das “comadres” e das “carpideiras”, os comentários centuplicaram em estupi‑dez, prolongando ‑se até à hora de dormir.

***

Seriam 21h30 quando “Pepino” se libertou do estado letárgico em que caíra. Sentou ‑se atordoado no caixão deixado aberto, esfregou os olhos ainda pesados de sono e olhou em derredor, procurando adivinhar o que se pas‑sara com a sua pessoa.

A princípio pasmou de ver ‑se naquela altura, num cômodo tão espaçoso, iluminado pela frouxa luz de uma lamparina. Depois, à medida que os olhos e o pensa‑mento foram se aclarando, viu, de um e outro lado, dois cadáveres estendidos nos respectivos caixões. Estreme‑ceu. Examinou ‑se e, horrorizado, deu com a mortalha que o envolvia e o caixão mortuário em que se achava metido!…

– Que negócio é este?! Como é que me encontro aqui?!… Isto é o cemitério… Por que me vestiram assim?!… Terei de fato morrido?!… – monologava “Pepino”.

Saltou do caixão, observou atentamente o local, os cadáveres, e compreendeu tudo: fora acometido de ata‑que, julgaram ‑no morto e…

Não esperou mais. Ali é que ele não permaneceria nem mais um minuto. Abriu a porta do necrotério, carregan‑do instintivamente o caixão; saltou o muro do cemitério e rumou para o cortiço, sem se preocupar com as conse‑quências do seu ato.

Vendo aquele frade a carregar o caixão mortuário, os notívagos encontrados pelo caminho tomaram ‑no por fantasma e partiram em desabalada carreira para casa, apavorados e sem fala.

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Imerso em pensamentos como ia, “Pepino” nem sequer os vira.

Minutos depois da meia ‑noite chegava ele ao cortiço, cujo portão de entrada se conservava sempre aberto.

Não se ouvia o menor ruído. Todos dormiam a bom dormir.

“Pepino” entrou e foi direitinho para o seu quarto, que havia sido esvaziado e conservava a porta aberta. Sem res‑mungar palavra, pousou o caixão no chão e estendeu ‑se dentro, custando a adormecer.

Pela manhã bem cedo, as primeiras pessoas saídas de seus quartos estranharam achar ‑se fechado o que fora ocupado pelo “defunto Pepino”. Aproximaram ‑se caute‑losas e forçaram a porta, que se abriu, deixando à vista o quadro tétrico.

Duas mulheres desmaiaram, um de três homens ficou sem fala e os outros dois fizeram tal berreiro que o pátio do cortiço ficou repleto de gente, a indagar o que havia acontecido.

– Ali… ali… “Pepino”… o defunto voltou!…Quando todos os olhares se achavam esbugalhados

para o ponto indicado, “Pepino”, que acordara com a gritaria, ergueu ‑se do caixão, encaminhando ‑se para os patrícios, que se amassaram a um canto do pátio.

– Então, que é isso? Por que se assustam? – perguntou‑‑lhes a rir. – Não veem que estou vivo? Já viram algum morto aparecer em pleno dia, a rir, a andar e a falar? Ora, vamos… não sejam crianças… cheguem ‑se… abracem ‑me.

Obtida a certeza de estar ele vivo, pulularam os comen‑tários no cortiço, cada qual mais extravagante e pitoresco. E, como sempre acontece, os mais poltrões50 se transfor‑maram em super ‑homem, prontos a enfrentar não um, mas todos os fantasmas que lhes aparecessem.

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A “fuga do morto” foi comunicada à polícia pela admi‑nistração do cemitério, e, das pesquisas realizadas, resul‑tou ser o médico responsabilizado por deslize profissional. Não fossem os fortes empenhos postos em jogo, ele teria pago bem caro a sua leviandade.

***

Durante muito tempo o ressuscitado “Pepino” esteve na ordem do dia; e, mal havia caído no esquecimento, cir‑culou de novo, na cidade, a notícia do seu falecimento.

O médico chamado para examiná ‑lo, após exagerado exame deu como causa mortis um colapso cardíaco. Não querendo, porém, assumir a inteira responsabilidade, exi‑giu a presença de um médico da polícia, que confirmou o óbito.

Desta vez o pobre “Pepino” não teve “carpideiras”, gri‑tos lancinantes, lágrimas, nem banda dos “Bersaglieri” e o formidável acompanhamento da sua primeira “mor‑te”. Meteram ‑no no caixão e quando muito uma dúzia de patrícios levaram ‑no ao cemitério, assistindo ao seu sepultamento.

Não fosse ele pregar ‑lhes uma outra peça!Cumprido o piedoso dever, o cortiço todo ficou à espera

da sua volta durante dias, semanas, meses. Mas “Pepino” não voltou, ficou a desfazer ‑se nos sete palmos de terra.

Coitado do “Pepino!” Chorá ‑lo, tão tarde, seria um contrassenso…

– Que a terra lhe seja leve… – suspirou certa noite, numa reunião, uma das mulheres do cortiço. Ao que todos responderam:

– Amém!

***

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Correram os anos.Já ninguém mais se lembrava do carvoeiro, quando

correu pelo cortiço uma notícia alarmante: um dos mora‑dores, ao regressar à casa tarde da noite, dera com “Pepi‑no” no portão, carregando o caixão à cabeça. Parou para certificar ‑se do que os seus olhos viam, e, quando quis agarrá ‑lo, “Pepino” falou ‑lhe: – “Aqui estou de volta” – e desapareceu.

Juraram haver acontecido a mesma coisa mais três pes‑soas, que nada disseram, para não alarmarem as mulheres e crianças.

A partir daí, o portão do cortiço passou a ser fechado às 22 horas em ponto, para vedar a entrada do fantasma!…

A notícia da aparição caiu no domínio público tão exa‑gerada que, ao passarem a desoras pelas imediações do lugar assombrado, os notívagos faziam ‑no a correr, só parando nas portas de suas casas, a dançar as chaves nas fechaduras, cujos buracos custavam a encontrar.

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PARTE II

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São Paulo (retrospecto)

Quem observa a soberba metrópole bandeirante e não a conheceu cinquenta ou sessenta anos atrás, extasia ‑se diante da majestade do panorama que se desenrola à sua vista, mas bem longe está de experimentar a sensação e o orgulho dos que lhe acompanharam, comovidos, a verti‑ginosa escalada do progresso.

Nascida de uma simples choupana construída por José de Anchieta no alto da colina interposta ao Tamanduateí (tributário do Tietê) e o seu pequeno afluente Anhanga‑baú, a 25 de janeiro de 1554 não passava de uma insigni‑ficante povoação de 133 habitantes, compreendendo 13 jesuítas e 120 selvagens chefiados por Tibiriçá e Caiubí.

A sua situação privilegiada e o Colégio abnegadamente construído e dirigido pelos jesuítas não tardaram a atrair os componentes de outros núcleos coloniais, que afluíram para ela em tão grande número que em 1560 provocaram a sua elevação à categoria de vila e a 11 de julho de 1711 fizeram ‑na galgar ao posto de cidade.

A fuga de D. João VI para o Brasil tornou ‑a capital da província de São Paulo a 16 de dezembro de 1815 e o

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advento da República a Quinze de Novembro de 1889 conservou ‑a como capital do Estado de São Paulo.

Trinta e dois anos depois da nossa Independência, pro‑clamada em seu seio, a minúscula cidade apresentava a configuração característica da zona comercial de nossos dias, conforme no ‑lo demonstra a planta levantada em 1854.

Os prédios, que não chegavam a 2 mil, espalhavam ‑se pelas ruas do Ouvidor (atual José Bonifácio), do Príncipe (Quintino Bocaiuva), do Jogo da Bola (Senador Feijó), da Freira (Riachuelo), das Sete Casas (Benjamim Cons‑tant), do Rosário (Quinze de Novembro), da Constitui‑ção (Florêncio de Abreu), descida do Acú (Avenida São João), de São Bento, Direita, Largo de São Francisco, de São Gonçalo (Marechal Deodoro, hoje parte integrante da Praça da Sé), da Boa Vista e da Quitanda (Álvares Penteado).

Vastos campos a perderem ‑se de vista e a extensa vár‑zea do Carmo, hoje transformada no lindo Parque D. Pedro II, rematavam o serpenteio das ruas mal traçadas.

Como edifícios notáveis despontavam: a Sé (Catedral), a Igreja de São Bento, o Palácio do Governo, a Igreja e o Convento do Colégio, a Igreja da Misericórdia, a Cadeia e o Teatro.

A partir daquela data a cidade desceu lentamente a colina, transpôs as várzeas e os vales e, tal como um pol‑vo de tentáculos distendidos, esparramou ‑se em direção à Consolação, Vila Buarque, Santa Cecília, Barra Funda, Bom Retiro, Ponte Grande, Brás, Mooca, Cambuci, São Joaquim e Bexiga.

Evoluindo sem cessar, em 1887 São Paulo já era uma cidade de 45 mil habitantes, com um total de 7.012 pré‑dios, sendo 6.306 térreos, 213 assobradados, 479 de dois pavimentos e 14 de três.

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são paulo (retrospecto)

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Tais prédios, geralmente bastante confortáveis, eram todos de estilo colonial e dotados de largos beirais. Com‑pactos no cimo da colina e nas encostas, distanciavam ‑se cada vez mais em ruas de abertura recente e mesmo nas simplesmente projetadas, perdendo ‑se alguns em largos trechos de terrenos baldios ou nas enormes chácaras que circundavam a capital: a do Chá, que se estendia do Vale Anhangabaú (Parque Anhangabaú) ao Largo dos Curros (Praça da República); a das Palmeiras, no bairro de San‑ta Cecília; a de D. Veridiana, na Vila Buarque; a do Car‑mo e a dos Ingleses, pelos lados do Largo de São Paulo e Cambuci; a do Bexiga, no bairro de igual nome; a de “seu” Constantino, meu pai, na Rua Paím, aquém do tan‑que do Bexiga; a do Martinico e a do Barão de Ramalho, na Consolação; além de outras.

Das vias públicas, o triângulo central e ruas adjacentes eram calçadas a paralelepípedos de pedra bastante irre‑gulares, havendo 291 iluminadas por 1.307 bicos de gás – melhoramento inaugurado em 1872.

A antiga descida do Acú passou a denominar ‑se Rua de São João; a do Rosário recebeu o nome de Rua da Impera‑triz; a de São Gonçalo, Rua do Imperador; a da Quitanda chamou ‑se Rua do Comércio; a do Ouvidor ficou sendo José Bonifácio, e a ladeira que hoje a continua até o Piques ou Praça da Bandeira recebeu o nome de Ladeira do Ouvi‑dor; a do Jogo da Bola foi substituída por Senador Feijó, e a da Freira passou para Riachuelo.

Isso com relação ao perímetro central, pois seria longo, fastidioso e sem qualquer proveito enumerar as mudanças por que passaram as demais.

Assimétricas e estreitas, traçadas sem as preocupa‑ções urbanísticas de nossos dias, tais ruas desembo‑cavam51 ou nasciam, em sua maior parte, nos largos do

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Colégio, do Carmo, da Sé, do Teatro (Praça João Mendes), Sete de Setembro, da Forca (Liberdade), de São Francisco, do Piques, da Misericórdia, do Rosário, de São Bento, dos Curros, do Arouche, general Osório, da Luz, do Paissan‑du e da Concórdia.

Ninguém previa e muito menos acreditava que a cidade pudesse chegar um dia ao que é. Tanto assim que terrenos localizados na Vila Buarque, Consolação, Santa Cecília, Campos Elíseos e arredores – os bairros mais promisso‑res da época – eram recusados ao preço de 25 centavos o metro quadrado!…

Sou testemunha disso. Lembro ‑me da resposta dada por meu pai ao seu velho amigo, Martinico Prado, quando este insistiu em oferecer ‑lhe aquele preço terrenos situa‑dos pouco além do Largo dos Curros:

– Ora, “seu” Martinico… Quando é que São Paulo há de chegar até lá!?…

A morte encarregou ‑se de mantê ‑lo na falsa suposição.

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O Largo do Colégio

Pátio do Colégio em 1862. Foto de Militão Augusto de Azevedo.

O Largo do Colégio, não há muito Largo do Palácio e hoje Pátio do Colégio, era, como ainda agora, o ponto de convergência direta ou indireta da Travessa do Colé‑gio, mais tarde Rua do Palácio (Rua Anchieta); da Rua do Tesouro, depois Largo do Correio (Largo do Tesouro); da Ladeira Municipal, a seguir João Alfredo (General Car‑neiro); da Rua da Fundição (Floriano Peixoto); e da Rua do Carmo.

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Seu edifício mais importante era o Palácio do Governo, atualmente ocupado pela Secretaria da Educação.

Até 1765, quando governava a capitania D. Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão – morgado de Mateus, este edi‑fício constituiu o corpo principal do convento do Colégio.

Transformado, então, em palácio governamental, de 1815 a 1877 nele também funcionaram a Secretaria do Governo e a Assembleia Provincial.

Ao lado direito do antigo casarão de taipa, na ala per‑pendicular ao corpo principal, até 1877 estiveram instala‑dos o Correio Geral e as repartições fiscais da Província de São Paulo.

Florêncio Carlos de Abreu e Silva, presidente da pro‑víncia, em 1881 fez arrasar a ala perpendicular e remodelar o corpo principal do convento, mantendo intacta a igreja, conforme se vê na gravura.

Em 1886 o presidente João Alfredo Correia mandou ajardinar o largo, transformando ‑o em dependência do palácio.

O pequeno jardim, cercado de muro e gradil52, aos domingos era franqueado ao público, que se compri‑mia nas estreitas aleias, atraído pelos saudosos concertos (retretas) das bandas de música do Corpo de Bombeiros e da Polícia Permanente.

O coreto, bastante amplo e aberto em concha, emergia do meio de árvores frondosas existentes na rampa do jar‑dim, à esquerda, escondendo os telhados escuros e os fun‑dos dos prédios da Ladeira João Alfredo, que ainda hoje confinam com o Palácio do Governo, mas não tardarão a desaparecer, pois já foi decretada pela prefeitura Munici‑pal a sua desapropriação.

Pouco antes da entrada do jardim, no ângulo formado pelo Largo do Tesouro e o início da ladeira, um artístico

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o largo do colégio

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chafariz completava o conjunto, amenizando com sua escadaria o pronunciado declive do local.

Palácio do Governo, ao lado da Igreja do Colégio, em 1886. Foto de autoria desconhecida.

O Viaduto da Boa Vista e a necessidade de ampliação do Largo do Palácio fizeram desaparecer aquelas lembran‑ças do passado.

A Ladeira João Alfredo (Rua General Carneiro), aberta ao pé da rampa, caracterizou ‑se sempre pelo comércio de calçados, fazendas e ferragens, indo terminar, como ago‑ra, na Rua 25 de Março.

No fim desta, à direita de quem desce, funcionou até 1933 o Mercado Velho, ano em que foi transferido para o Mercado Municipal, edifício de grandes proporções, construído no Parque D. Pedro lI, condizente com o pro‑gresso da nossa capital.

No local por ele dantes ocupado, a prefeitura fez um belíssimo jardim.

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A Ladeira João Alfredo em 1887

Rua João Alfredo, entre 1901 e 1910. Foto de Guilherme Gaensly.

Até 1890 puderam os fiéis ouvir missa todos os domin‑gos, ao meio ‑dia, no histórico templo de Anchieta.

A 13 de março de 1896, tendo desabado a cimalha53, o governo do Estado mandou arrasá ‑lo e aproveitou o espa‑ço, aumentando as dependências do palácio.

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O Correio Geral, transferido em 1877 para um velho prédio da Rua do Carmo, esquina da Rua da Fundição, instalou ‑se mais tarde em um vasto sobrado de dois anda‑res, existente no lugar em que hoje se ergue o palácio da Bolsa de São Paulo, na esquina do Largo do Tesouro.

Ali permaneceu até ser alojado no prédio atual, manda‑do construir pelo Dr. Epitácio Pessoa, quando presidente da República.

Completavam o perímetro do largo diversos sobrados de um e dois andares, todos em estilo colonial, tendo os pavimentos térreos ocupados por algumas lojas de fazen‑das, barbearias, restaurantes e alfaiatarias.

Alguns exemplares desses sobrados ainda podem ser vistos na Rua Anchieta, onde funciona a Agência da São Paulo Railway, hoje E. F. Santos a Jundiaí; na Rua do Car‑mo, onde está instalada a Companhia de Gás; no ângulo formado pela Rua José Bonifácio e Ladeira de São Fran‑cisco, na propriedade do falecido padre Pasqual Gazineu, personagem inconfundível na São Paulo antiga.

Ao lado do palácio passava a linha de bondes a tração animal, da Companhia Viação Paulista, que fazia o iti‑nerário Carmo ‑Estação da Luz e foi inaugurada a 2 de outubro de 1872.

A Companhia Viação Paulista tinha sua sede na Rua da Estação, hoje Rua Mauá.

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O Largo do Carmo

Da esquerda para a direita, o Convento do Carmo, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo e a Igreja da Ordem Terceira do Mon‑

te Carmo. Foto de Militão Augusto de Azevedo (1862).

O Largo do Carmo, hoje desaparecido em razão das obras que estão sendo executadas para a edificação da Secretaria da Fazenda e do Tesouro do Estado, apresentou até 1940 a mesma feição característica de antanho54: uma vasta explanada arrimada55 a um paredão, semelhando

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uma fortaleza muito antiga, no fundo da qual se viam a Igreja e o Convento de Nossa Senhora do Carmo, ambos arrasados, e a Igreja da Venerável Ordem Terceira de Nos‑sa Senhora do Monte do Carmo, ainda de pé; na rampa ao lado, em toda a sua extensão, a Ladeira do Carmo, quase despovoada, atravessando a várzea em demanda da Rua do Brás; no sopé do morro a Rua do Hospício (Frederico Alvarenga), na qual se achava o Hospício de Alienados, hoje transformado em quartel de forças do Exército.

A velha Ponte do Carmo, lançada sobre o Tamandua‑teí, comunicava a ladeira com a várzea, pois o rio passava por trás do Hospício, aproximava ‑se bem junto do morro, percorria a Rua 25 de Março, roçando quase o Mercado, e, chegando ao ponto das Sete Voltas, na rampa da Rua da Constituição (Florêncio de Abreu), tomava a direção do Hospital dos Lázaros, na Rua João Teodoro.

A várzea, semeada de tufos de ervas e quase sempre alagada pelo transbordamento das águas do rio, era o pesadelo das autoridades públicas, quer quanto à higiene social, quer quanto à segurança individual, visto ser foco de miasmas56 de toda a espécie e covil57 de malfeitores.

Desejando pôr um paradeiro a tal estado de coisas, os sucessivos presidentes da província, a partir de 16 de outu‑bro de 1848, fizeram do saneamento da várzea o seu pro‑grama de governo.

O Dr. Vicente Pires da Mota iniciou o recuo do leito do rio para o lugar em que se acha, no trecho correspondente à primitiva Rua 25 de Março, isto é, do Mercado Velho à Rua João Teodoro.

O Dr. João Teodoro Xavier substituiu os terrenos palu‑dosos58 e miasmáticos contíguos ao Mercado por um adorável passeio público – a Ilha dos Amores; reformou e embelezou as antigas muralhas do Morro do Carmo;

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o largo do carmo

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abriu a Rua do Hospício até à Ponte da Mooca; afastou do Hospício de Alienados o curso do rio, que tornava o edi‑fício bastante úmido e prejudicial aos infelizes dementes; abriu a Rua Conde d’ Eu (Rua Glicério); e procedeu ao Aterro do Gasômetro, pondo ‑o em comunicação com o centro da cidade.

O conselheiro João Alfredo Correia de Oliveira com‑pletou a obra de aterro e saneamento dos seus anteces‑sores, e os seus sucessores canalizaram o Tamanduateí, retificando ‑o, e transformaram a horrível várzea no for‑moso Parque D. Pedro II.

A igreja e o convento de Nossa Senhora do Carmo foram fundados em 1594 por frei Antônio de São Paulo, da Ordem dos Carmelitas, no alto do Morro do Carmo, então coberto de palmeiras e bosques seculares, quase impenetráveis.

De 1831 a1906 uma parte do pavimento térreo do con‑vento foi transformada em quartel do Corpo da Polícia Permanente.

O convento recebia estudantes como pensionistas externos, facilitando ‑lhes a permanência em São Paulo, e encarregava ‑se da educação gratuita de doze deles, dando‑‑lhes pouso e alimentação. A sua ação, nesse sentido, foi sempre digna dos maiores elogios. Também hospedava gratuitamente bom número de sacerdotes e de recomen‑dados de outras Ordens.

A igreja da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, concluída em 1775, era seguida de um vasto edifício que serviu, primeiro, de hospital da Ordem e mais tarde de hospital do Corpo da Polícia Permanente.

Neste edifício, hoje remodelado, funciona desde 1898 o Ginásio do Carmo, que tão bons serviços tem prestado à causa do ensino em nossa terra.

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A igreja, condenada a desaparecer, devido aos melhora‑mentos urbanos que estão sendo executados na explanada do Carmo, ainda se conserva de pé.

Com tais melhoramentos, a ladeira e o largo já consti‑tuem um prolongamento da Avenida Rangel Pestana, que vai desembocar na Praça da Sé.

O traço de união entre o Largo do Palácio (Pátio do Colégio), Largo do Carmo e Rua da Boa Morte (que desem‑boca na ladeira ou Rua Tabatinguera, aberta na chácara homônima, de propriedade de Dona Ana Machado), era e é a Rua do Carmo.

Na Rua da Boa Morte, que ainda ostenta o grandioso templo que lhe dá o nome, funcionou durante algum tem‑po, num amplo sobrado, a Escola Normal de São Paulo, com o curso de dois anos.

Criado o terceiro ano, transferiu ‑se a Escola para um sobrado da Travessa do Tesouro, de onde passou para o edifício atual.

A Rua Tabatinguera tinha como edifício importante o do Grande Oriente de São Paulo, sede dos chefes da maço‑naria paulista.

Além do casarão situado na esquina da Rua de San‑ta Teresa com a do Carmo, no qual funcionou durante muitos anos o Grupo Escolar do Carmo, a Rua do Carmo apresentava na esquina oposta o Convento de Santa Tere‑sa, fundado pelo ano de 1700 por Pedro Taques de Almei‑da, alcaide ‑mor59 da capitania de São Paulo, e seu irmão Lourenço Castanho Taques.

Durante dilatados anos, o convento socorreu a pobre‑za e forneceu água à população de São Paulo, fazendo ‑a correr para o reservatório construído na Rua do Príncipe (Quintino Bocaiuva).

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o largo do carmo

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O bairro do Calmo era completado pela Rua das Flores, paralela à do Carmo; pela Rua do Quartel (11 de Agosto), onde se achava o Quartel de Linha; e pela Rua do Trem (Anita Garibaldi), com a Casa do Trem, isto é, o Quartel do Corpo de Bombeiros.

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O Largo da Sé

O Largo da Sé (Praça da Sé), a quarta parte da pra‑ça de hoje, abrangia o acanhado espaço calçado a para‑lelepípedos, limitado pelo correr de sobrados que vão da Rua Quinze de Novembro à Rua Floriano Peixoto, edifício Rolim e Caixa Econômica Federal, o primeiro ponto de estacionamento de automóveis e o prédio em que funcio‑nou a drogaria Baruel.

Igreja e Largo da Sé, em 1862, vistos a partir da Rua Direita. Foto de Militão Augusto de Azevedo.

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A velha Sé (Catedral) ocupava a face oposta aos sobra‑dos, estendendo os braços em cruz para as ruas do Impe‑rador (Marechal Deodoro) e da Esperança (Capitão Salomão). Os fundos iam ter à Rua de Santa Teresa, maior parte da qual fundiu ‑se com a Praça da Sé.

As ruas do Imperador e da Esperança desembocavam no Largo do Teatro ou da Assembleia (Praça João Men‑des), recebendo a primeira as ruas da Princesa (Benjamim Constant) e do Jogo da Bola (Senador Feijó), parte da qual fundiu ‑se com a Praça da Sé.

Na segunda, iam até a Rua de Santa Teresa – atual pro‑longamento da Avenida Rangel Pestana, e a Travessa da Esperança ou Beco dos Mosquitos (Rua Felipe de Olivei‑ra), que reunia a ralé do meretrício de São Paulo.

Contrastando com a Rua do Imperador, toda tomada pelo comércio, mesmo no período republicano a Rua da Esperan‑ça continuou sendo o ninho dos cafés baratos e de nomes sujos, das prostitutas e dos arremedos de cafés ‑concerto.

O Clube Ginástico Português, fundado em 10 de março de 1878, funcionou durante muitos anos, em prédio pró‑prio, na Rua do Imperador.

Os edifícios mais notáveis do Largo da Sé eram a Sé (Catedral) e a Igreja de São Pedro. A Sé, construída em 1555 e reconstruída em 1745 e 1764, por ameaçar ruir, ocupava o espaço correspondente ao primeiro estacionamento de automóveis.

O vasto templo, cujo corpo central formava dois ângu‑los retos com os braços, era servido por espaçosa escadaria de pedra. No amplo espaço do ângulo direito, destina‑do ao estacionamento de tílburis e carros de praça, havia um quiosque e um bebedouro para animais. No ângulo esquerdo, igualmente reservado para estacionamento de carruagens, existia um mictório.

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o largo da sé

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Igreja de São Pedro dos Clérigos, em 1862, demolida assim como a antiga Igreja da Sé, para dar lugar à Praça da Sé.

Foto de Militão Augusto de Azevedo.

Em edifício contíguo à Catedral, funcionaram, duran‑te muitos anos, as aulas de latim, de teologia dogmática e de teologia moral, regidas, respectivamente, pelo cône‑go60 José Custódio de Siqueira Bueno, cônego chantre61 Dr. Ildefonso Xavier Ferreira e cônego arcipreste Joaquim Anselmo de Oliveira.

No mesmo prédio funcionou também, à tarde, a Escola Normal criada em 16 de março de 1846 e instalada em 9 de novembro do mesmo ano; tendo como primeiro professor e diretor o Dr. Manuel José Chaves.

Em 10 de julho de 1867, as aulas de latim, teologia e da Escola Normal foram suprimidas, sendo jubilados os respectivos professores, de acordo com o seu tempo de exercício.

Em meados de 1884 a Sé (Catedral) foi reformada, adquirindo a disposição já descrita.

Em 27 de outubro de 1911, estabelecido o acordo entre a Cúria62 e a prefeitura, esta cedeu àquela o espaço do antigo Teatro São José e demoliu a catedral, cuja área era indis‑pensável ao alargamento do Pátio da Sé.

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A demolição da histórica igreja foi iniciada em dezem‑bro daquele ano, com sacrifício do belíssimo quadro Con‑versão de São Paulo, que Almeida Júnior pintou em seu teto em 1888.

A Igreja de São Pedro, edificada em 1740 pelos padres paulistas Ângelo de Siqueira e Francisco Calheiros, ocu‑pava o espaço hoje tomado pelo edifício Rolim e parte da Caixa Econômica Federal. Foi demolida em 1911. O terre‑no foi vendido e o seu produto empregado na construção da nova Catedral.

A necessidade de desafogar o centro da cidade, de acor‑do com o plano urbanístico da prefeitura, determinou não só o arrasamento das duas igrejas como o dos quartei‑rões que se prolongavam até o Largo do Teatro (Praça João Mendes).

Com a derrubada, desapareceram as ruas e, da São Paulo antiga, ficou apenas a denominação Sé da praça a acender nos corações dos velhos um mundo de recorda‑ções.

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O Largo do Teatro

O Largo do Teatro (Praça João Mendes), que também se chamou Largo de São Gonçalo, Municipal e da Assem‑bleia, além de comunicar ‑se com o Largo da Sé pelas ruas do Imperador e da Esperança, beijava o Largo Sete de Setembro e recebia a Rua do Teatro (Irmã Simpliciana), a Rua da Liberdade e as ruas da Assembleia, Riachuelo e do Príncipe (Quintino Bocaiuva), que confluíam junto do Palácio da Assembleia, hoje arrasado.

O largo apresentava, desde 1879, um bem cuidado jar‑dim, cercado de mureta e gradil, cujos portões se conser‑vavam diariamente abertos ao público. No ponto em que até há pouco se erguia a herma do Dr. João Mendes, ou seja, no centro da atual praça, havia um coreto, no qual a banda de música, do Corpo de Bombeiros, dava magnífi‑cos concertos às quintas ‑feiras e domingos.

Dos seus antigos edifícios, dignos de referência, apenas lá se encontra a Igreja de São Gonçalo.

Faltam ‑lhe o palácio da Assembleia ou do Congresso, a igreja dos Remédios e o Teatro São José, este de enor‑mes proporções, pelo qual passaram as companhias líri‑cas e dramáticas de maior renome na época, pois o seu

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rival – Teatro Apolo, depois Boa Vista e, finalmente, San‑tana – situado no Beco da Boa Vista (Rua Três de Dezem‑bro), hoje desaparecido, não comportava grandes elencos.

Teatro São José, no Largo da Assembleia, em 1862. Foto de Militão Augusto de Azevedo.

O Teatro São José, construído na esquina da Rua do Imperador, foi inaugurado em 4 de setembro de 1864. Destruído por violento incêndio na madrugada de 15 de fevereiro de 1898, a prefeitura mandou arrasá ‑lo e cedeu o terreno à Cúria, em paga do que era ocupado pela Cate‑dral. É o local em que se ergueu a nova e suntuosa Catedral de São Paulo.

A Igreja de São Gonçalo foi construída em 1757 pelos devotos da imagem de São Gonçalo Garcia, no então Lar‑go da Cadeia (Praça João Mendes), a expensas63 dos pró‑prios devotos.

Foi reformada em 1858, por achar ‑se em ruína, e em 1881, concluindo ‑se as obras de remodelação em 1892, por meio de uma subscrição entre os fiéis, a qual alcançou a respeitável soma de trinta mil cruzeiros.

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o largo do teatro

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A Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, desaparecida em virtude das obras de ampliação da Praça João Mendes, originou ‑se da antiga capela de São Vicente, instituída em 1727 por Sebastião Fernandes do Rego. Dela fez Antônio Bento a sede dos abolicionistas dos escravos em São Paulo, transformando ‑a em um verdadeiro museu de objetos de tortura dos infelizes africanos.

Havendo necessidade de estabelecer comunicação entre o Largo de São Gongalo (Praça João Mendes) e o Largo do Pelourinho (Sete de Setembro), em 24 de agosto de 1874, a Câmara Municipal desapropriou o velho casa‑rão térreo de janelas de rótula, contíguo à igreja, perten‑cente ao cônego Claro Francisco de Vasconcelos.

Nas dependências do fundo da igreja, com entrada pelo Largo do Pelourinho, funcionou durante muitos anos o Liceu de Artes e Ofícios, do qual fui aluno, antes de ser transferido para o atual prédio da Rua José Paulino, na Estação da Luz.

Palácio da Assembleia em 1867, local transformado anos depois na Praça Dr. João Mendes. Foto de Militão Augusto de Azevedo.

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No velho edifício do Congresso, antigo Palácio da Assembleia, demolido em fins de 1944, funcionaram antes a Cadeia e a Câmara Municipal, que deram origem às deno‑minações Largo da Cadeia e Largo Municipal por que foi conhecida a atual Praça João Mendes.

Após a revolução paulista de 1932, funcionou ali a Dire‑toria Geral do Ensino.

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O Largo Sete de Setembro

O Largo Sete de Setembro, verdadeira antessala da Pra‑ça João Mendes, no triste tempo da escravidão chamou ‑se Largo do Pelourinho, por existir ali este elemento de tor‑tura dos pobres cativos.

O pelourinho era uma coluna de pedra firmemente cimentada em um patamar construído sobre o nível da rua, erguido no meio do largo, entre a Rua da Glória e a Rua da Forca (Rua da Liberdade).

Rua da Glória, em direção ao Cambuci, em 1887. À direita, o Largo Sete de Setembro.

Foto de Militão Augusto de Azevedo.

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Ornavam ‑no duas grandes e grossas argolas de ferro, firmemente presas à coluna e dela pendentes, apresentan‑do na base não poucas correntes a ondular como cobras sobre o patamar.

Amarrada a vítima à coluna, o algoz zurzia ‑a com o azorrague64, animado pelos aplausos da assistência estú‑pida e cruel, até arrancar ‑lhe borrifos de sangue!

O pelourinho e os fundos da Igreja dos Remédios, em cujo lado se erguia uma grande paineira, eram as únicas coisas dignas de nota no Largo Sete de Setembro.

No começo da Rua da Glória desembocava a travessa de igual nome, em grande prédio da qual começou a funcio‑nar o Ginásio do Estado nos primeiros anos da República e que cursei até meio.

Na mesma rua, antes de chegar ao Largo de São Pau‑lo, onde está instalado o Externato São José, funcionou a Santa Casa de Misericórdia, que depois cedeu o lugar ao Asilo de Mendicidade.

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O Largo da Liberdade

O Largo da Liberdade, que durante muito tempo cha‑mou ‑se Largo da Forca, comunicava ‑se com o Largo do Pelourinho pela Rua da Forca.

O horrível nome primitivo foi ‑lhe dado por causa do patíbulo65 que ali existiu durante muitos anos, inaugura‑do em 1821 com o enforcamento de soldados do primeiro batalhão de caçadores, destacados em Santos.

Como não recebessem o pagamento de seus soldos no respeitável período de cinco anos, os soldados cansaram de esperar e revoltaram ‑se na madrugada de 27 para 28 de junho de 1821.

Subjugados e presos, foram levados a julgamento perante a Junta de Justiça de São Paulo, que condenou à morte Francisco José das Chagas – o Chaguinhas – e Joa‑quim José Cotintiba, considerados chefes do movimento.

Não havendo forca em São Paulo para a execução da sentença, em 23 de julho daquele mesmo ano o governo ordenou o levantamento de uma no local que tomou o nome de Campo da Forca (Largo da Liberdade), por ser o mais público da cidade e ficar bem perto do cemitério da Rua da Glória, pertencente à Mitra66.

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Pronto o cadafalso67 e marcado o dia da execução, em 20 de setembro de 1821 os réus fizeram retiro espiritual e foram levados para o Campo repleto de espectadores de todas as classes sociais.

Cotintiba foi o primeiro a passar pelo baraço68 do car‑rasco. Ouviu a sentença de morte, as enternecedoras e caridosas palavras do capuchinho, e entregou o pescoço ao carrasco que, em poucos segundos, tornou ‑o um corpo inanimado, pronto para baixar à sepultura.

Chegou a vez de Chaguinhas, olhado com simpatia, pois todos o consideravam inocente do crime que lhe era imputado.

O carrasco enlaçou ‑lhe o pescoço, suspendeu ‑o com força a boa altura e, diante do o assombro de todos, o cor‑po voltou ao chão, por ter ‑se rebentado a grossa corda!

Novo baraço, nova elevação e, como da primeira vez, a corda rebentou.

A multidão clama pelo perdão do réu, não sendo aten‑dida.

Vem uma nova corda, que ainda não consegue o resul‑tado desejado.

O povo explode em gritos, em imprecações:– Está inocente!… É inocente!… Libertem ‑no!…

Perdoem ‑no!…O carrasco, porém, espumando raiva, toma de uma

quarta corda, arma ‑lhe o laço ao pescoço e não tarda a sorrir cinicamente para a multidão indignada.

Chaguinhas era cadáver.Consumado o bárbaro crime, os dois corpos foram

sepultados no cemitério da Rua da Glória, mais tarde Cemitério dos Aflitos, que a Mitra retalhou em lotes, vendendo ‑os para residências particulares.

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o largo da liberdade

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São Paulo de 1887 não conheceu o patíbulo, que há muito havia sido eliminado do nosso Código Penal. Mas recebeu como legado a Capelinha dos Enforcados, ergui‑da pela piedade cristã à memória dos pobres enforcados e que o alargamento da rua fez desaparecer do Largo da Liberdade, tragando também este.

Começou por uma simples cruz de madeira plantada no lugar do suplício de Chaguinhas, num morro situa‑do na entrada da atual Rua da Liberdade, tendo ao lado uma mesa em que se acendiam velas de cera, inapagáveis mesmo sob a ação dos ventos mais fortes e das tempes‑tades mais violentas, segundo reza a tradição popular.

A cruz, objeto de veneração popular, foi mudando de lugar à medida que o morro foi sendo arrasado, até ficar definitivamente no ponto em que a encontrou a picareta do progresso.

O número de devotos cresceu com o tempo, conservan‑do ‑se a capela em sua simplicidade primitiva, com apenas a cruz – símbolo vivo de martírio e de Fé.

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O Largo de São Francisco

O Largo de São Francisco apresentava um aspecto bem diferente do atual, embora ainda conserve a melhor por‑ção da parte interessante da cidade antiga.

Domínio absoluto dos acadêmicos de Direito, nunca se prestou à expansão comercial, devido às algazarras, trotes e outras diabruras que os estudantes diariamente faziam por ali, antes e depois das aulas.

Era também o seu ponto de reunião para as grandes manifestações de caráter social e político, toda vez que desejavam defender os seus ideais ou protestar contra os desmandos das autoridades públicas.

Na face principal, olhando para o pequenino Largo do Ouvidor, prolongamento da Rua de São Bento, reuniam‑‑se, como hoje, num bloco indivisível intimamente ligado à vida de São Paulo, as igrejas de São Benedito e São Fran‑cisco e a velha Academia de Direito.

Na face oposta, uns poucos sobrados de um andar e casas assobradadas de largos beirais contrastavam com os templos da Fé e da Ciência.

À esquerda, onde se ergue a Escola de Comércio Álva‑res Penteado, casarões assobradados fechavam o largo por

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aquele lado, e à direita, partindo da Igreja de São Bene‑dito, um outro casarão avançava para a Ladeira de São Francisco, tendo à sua frente uma esplanada69 arrimada a um muro, que se estendia diante das duas igrejas, até confundir ‑se com o largo propriamente dito.

Largo de São Francisco em 1862. Ao lado da Igreja, o Convento de São Francisco, mais tarde ocupado pela Academia de Direito.

Foto de Militão Augusto de Azevedo.

No fim da esplanada, fronteira à Igreja de São Francis‑co, cercada por um gradil, erguia ‑se a estátua de José Boni‑fácio – o Moço – de pé sobre pesado pedestal de bronze.

Com os melhoramentos por que passou o Largo de São Francisco, a esplanada foi arrasada e o casarão demolido, para dar ‑se novo alinhamento à ladeira. A estátua foi dali retirada e colocada, sem o pedestal, no átrio da Faculdade de Direito.

Para o Largo de São Francisco convergiam as ruas da Princesa (Benjamim Constant), Senador Feijó, Traves‑sa da Academia (Cristóvão Colombo) e a Ladeira de São Francisco – que formava um cotovelo, ao alcançar a espla‑nada, e subia acompanhando o muro de arrimo.

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o largo de são francisco

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O Larguinho do Ouvidor era o laço de união entre a Rua de São Bento e o Largo de São Francisco.

A Rua do Riachuelo não chegava, como agora, à Bai‑xada do Piques, sendo cercada no alto pelo muro do anti‑go cemitério do convento. O trecho que ia ter ao largo do Teatro ainda era conhecido por alguns como Rua da Casa Santa e por outros, como Rua do Fórum.

É que os franciscanos possuíam ali um sobrado onde forneciam comida aos pobres e que estes chamavam de “Casa Santa”. Essa denominação desapareceu quando o prédio foi ocupado pelo Fórum Criminal.

Incendiado na Revolução de 1924, o sobrado foi demo‑lido e o terreno aproveitado, para a construção do edifício da Secretaria da Viação e Obras Públicas.

A Avenida Brigadeiro Luís Antônio não passava de simples projeto.

O Convento e a Igreja de São Francisco, iniciados em 1639 por frei Manuel de Santa Maria e religiosos francisca‑nos que ele fora buscar na Bahia, só foram terminados em 1644, depois de cessada a perseguição aos padres da com‑panhia de Jesus, que chegaram a ser expulsos do Brasil.

Muito mais tarde, em 1772, construíram os francisca‑nos a Igreja de São Bento, contígua à de São Francisco.

Criada a Academia de Direito em 11 de agosto de 1827, foi ela instalada nas vastas salas do velho edifício do con‑vento, de onde nunca mais saiu.

Em 16 de fevereiro de 1880, um pavoroso incêndio devorou a parte do edifício ocupada pela Academia, destruindo ‑lhe quase todo o arquivo e a capela ‑mor da Igreja de São Francisco.

A reconstrução da primeira foi feita pelo governo impe‑rial, e a restauração da segunda, por meio de uma subs‑crição aberta entre os lentes70 e os alunos da Academia.

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Largo de São Francisco, em 1919. Foto de autoria desconhecida.

Acompanhando o incessante progresso da capital, em 1934 a direção da hoje Faculdade de Direito mandou demolir o velho edifício que abrigou as maiores mentali‑dades jurídicas, literárias e políticas do país, levantando o que atualmente se vê no largo, em puro estilo colonial.

O Convento de São Francisco abrigou durante mui‑tos anos frei Francisco de Monte Alverne, considerado o maior dos nossos oradores sacros.

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O Largo do Piques

Largo do Piques, visto a partir da atual Rua Xavier de Toledo, em 1862. Foto de Militão Augusto de Azevedo.

A Baixada do Piques, que hoje constitui a Praça da Ban‑deira, sempre constou de duas partes muito distintas: o Largo do Bexiga (mais tarde do Riachuelo) e o Largo do Piques a acalentar o pequenino Largo da Memória.

Ao primeiro iam ter as ruas do Bexiga (Santo Antônio) e Santo Amaro, bem como a travessa deste nome (Rua do Ouvidor), que levava à Rua Nova São José (Líbero Badaró),

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não estando ainda abertas as ruas do Riachuelo e Asdrú‑bal do Nascimento.

Confluíam para o segundo as ladeiras de São Francis‑co e o do Ouvidor (Rua José Bonifácio), a Rua de Santo Antônio (Dr. Falcão Filho), a Rua Formosa, a Ladeira da Memória e a Ladeira do Piques (Quirino de Andrade).

Esse aranhol71 de ruas quase totalmente habitadas por italianos era um dos pontos mais movimentados da capi‑tal e importante centro de comércio de fazendas, calçados e couros.

O casario que o cobria não diferia do comum dos outros pontos da cidade, e a porção correspondente ao Largo do Bexiga só apresentava digno de nota os fundos do extinto Cemitério do Convento de São Francisco, os derradeiros vestígios do Matadouro Municipal que existiu no morro de Santo Amaro e que havia sido transportado para a Rua Humaitá, na Liberdade, devido ao mau cheiro que exala‑va, e a Rua do Bexiga, por ser a única via de comunicação entre o Bairro do Bexiga e o centro da cidade.

A meia distância dos extremos da Rua do Bexiga, na altura da Rua Major Quedinho, no topo do morro coberto de “barba ‑de ‑bode”, a Santa Cruz do Bexiga anualmente atraía milhares de pessoas, com suas festas obrigadas a bandas de música, jogos, quermesses e fogos de artifício.

O Largo do Piques diferia imenso do seu vizinho. Atravessava ‑o a “céu aberto” o Anhangabaú, separando‑‑o do Largo da Memória.

Nele faziam “piques”, isto é, estacionavam as tropas de caipiras provenientes de Santo Amaro e de Pinhei‑ros, quando demandavam a cidade para mercadejar. Preferiam ‑no por ficar muito próximo do centro; pela faci‑lidade de dessedentarem os animais no tanque formado pelo riacho nos fundos da Padaria da Memória, ao pé do

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o largo do piques

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sobrado ocupado pela loja de fazendas do Bahia; pelos tra‑gos de boa pinga que tomavam nos quiosques de dois boju‑dos portugueses de bigodes fartos e retorcidos.

Como templo da Fé, lá estava a Santa Cruz do Piques, antiquíssima capelinha piedosamente erguida por Manuel José da Ponte, nos fundos de um cortiço de sua proprie‑dade.

A sua origem datava de março de 1828, sendo provoca‑da por uma censurável troça de estudantes.

Entre as ruas Senador Feijó e Riachuelo, assinalando a Rua da Cruz Preta, que depois passou a denominar ‑se Rua do Príncipe (Quintino Bocaiuva), existia uma grande cruz de madeira, pintada de preto, que o povo aprendera a venerar.

Numa noite de pagodeira grossa, os estudantes tive‑ram a má lembrança de arrancá ‑la do lugar e ir jogá ‑la no Anhangabaú, no Largo do Bexiga.

Morando no começo da Ladeira do Piques, Manuel José da Ponte achou ‑se a passar por ali, viu ‑a, recolheu ‑a, e, levando ‑a para casa, tratou de erigir a capelinha, que franqueou ao público.

Integrando a Baixada do Piques surgia o Largo da Memória, com o seu obelisco histórico – a pirâmide que marca o início da arrancada progressista de São Paulo: um jardim triangular, cercado de muro e gradil, lateralmente limitado pelas ladeiras da Memória e do Piques, tendo o vértice no encontro destas, cortado por um chafariz, e a base na Rua do Paredão (Xavier de Toledo), ornada por meia dúzia de grossas e esguias paineiras.

No ângulo esquerdo da base, uma escada de tijolos, assentada no cotovelo da Ladeira do Piques, dava acesso ao Paredão.

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O obelisco, executado de pedra de cantaria pelo mestre ‑pedreiro Vicente Gomes Pereira, sob a direção do marechal Daniel Pedro Müller, foi inaugurado em 1814.

A conservação do obelisco histórico e o embelezamen‑to do local em que ele se acha se dão em razão do zelo do Dr. Washington Luís.

Do Riachuelo, Piques e Paredão já nada mais existe, Arrasou ‑os a mão de um Mago – o Dr. Prestes Maia, que pouco a pouco os transformou no recanto mais lindo des‑ta formidável Pauliceia! O que não impede que o nome Piques se transmita de geração a geração pelos séculos além e acompanhe em todos os seus passos a incontida grandeza de São Paulo.

***

Piques! Piques, por quê? Quem ou o que terá dado ori‑gem a essa palavra que tão fundo se radicou no coração dos paulistas?

Divergem as opiniões dos pesquisadores e os poucos que se animaram a tratar do assunto apresentam razões de todo infundadas, insubsistentes e até absurdas.

Há os que lhe atribuem a denominação aos “despiques” dos compradores de escravos, nos leilões que se efetuavam ao pé do jardim do Largo da Memória, ou ao fato de anda‑ram eles sempre de “piques”, isto é, de ponta, desavindos. Há os que se inclinam para os “piques” das lavadeiras no pequeno tanque formado pelo Anhangabaú ao lado da loja do Bahia e até ao brinquedo de igual nome, usado pela célebre “saparia” ali existente. Há os que sustentam ter ‑se o nome originado das ladeiras a pique que convergiam para o largo, e, ultimamente, no Correio Paulistano, L. Amaral Gurgel declarou que a Ladeira do Piques – e con‑seguintemente a baixada toda – “era assim denominada,

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o largo do piques

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porque ali residiu, em fins do século XVIII, um cidadão português de nome Antônio Ferreira Piques”.

Fiquei assombrado com a descoberta!… Sim, porque a declaração é categórica e feita por quem – se me não trai a memória – residiu durante alguns anos na Ladeira do Piques.

Como autêntico piquense, participante da “saparia” que tanto fez falar de si, e tendo já escalado a casa dos 60 anos de idade, posso garantir que nunca, em toda a minha vida, ouvi falar em tal cidadão, o mesmo podendo afirmar os meus irmãos mais velhos, acrescendo ainda a circuns‑tância de termos todos nascido e residido por largos anos na Ladeira do Piques, onde meu pai era negociante e um dos seus maiores proprietários.

A denominação Piques, conforme aprendi quando criança, originou ‑se do estacionamento das tropas de cai‑piras junto ao pequeno tanque existente no largo, formado pelo espraiamento do Anhangabaú.

Piques, para os caipiras e os paulistas de antanho, sem‑pre significou ponto de parada. E como este ficava no lar‑go, o nome se lhe apendeu72.

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O Vale do Anhangabaú

Vale do Anhangabaú no final do século XIX. No centro, o viaduto do Chá sobre o Rio Anhangabaú.

Detalhe de foto de Guilherme Gaensly.

O extenso Vale do Anhangabaú achava ‑se dividido pelo Largo do Piques em duas porções de aspectos diferen‑tes: uma correspondente à atual Avenida Nove de Julho, e a outra, ao Parque e Avenida Anhangabaú.

A primeira tinha início na Saracura Grande, lugar semideserto, espécie de Favela do Rio de Janeiro.

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Matas mais ou menos espessas ladeavam o vale até encontrar a Rua Paím, no Bexiga, onde começava o ser‑penteio de casas da antiga Rua do Bexiga, que ia terminar no largo homônimo. No lado oposto a chácara de meus pais (Praça Olavo Bilac), a do Martinico e a do barão de Ramalho, e mais a Rua Nova (Álvaro de Carvalho).

Essa primeira porção terminava na fábrica de chapéus “João Adolfo”, que a atravessava em toda a extensão da atual Rua João Adolfo, obstando o livre acesso ao Largo do Piques.

A segunda ia do Largo do Piques à encosta das Sete Vol‑tas, mais ou menos na ponte da Rua Florêncio de Abreu, região em que o Tamanduateí fazia sete curvas e recebia o Anhangabaú.

O vale, ali, era limitado pelo Largo do Piques, Rua San‑to Antônio (Dr. Falcão Filho), Rua Nova São José (Líbero Badaró), Rua São João e Rua Formosa, esta última aberta nos terrenos da antiga Chácara do Chá, pertencente ao barão de Itapetininga.

O casario dessas ruas emoldurava a chácara do conde de Prates, isto é, o inteiro Parque Anhangabaú de nossos dias.

Exceção feita da ala esquerda da Rua Nova São José, ocupada pelo meretrício, as demais artérias eram tomadas pelo comércio e residências familiares.

O sobradão da baronesa de Tatuí erguia ‑se pouco aquém do ponto em que se achava a drogaria Ipiranga.

O prédio da Recebedoria de Rendas Federais, hoje demolido, na Avenida São João, construído pela Compa‑nhia Cinematográfica Brasileira para o funcionamento do “Cinema Central”, elevava ‑se no local em que existiram o “El ‑Dorado” e o “Teatro Politeama”, dois barracões enor‑mes, externamente forrados com folhas de zinco.

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o vale do anhangabaú

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O “EI ‑Dorado” começou a funcionar explorando o jogo de bolas denominado boliche e acabou como casino. O “Politeama” tinha a forma circular, pois foi construído especialmente para companhias de cavalinhos ou circos de primeira ordem, como a “Frank Brown”, da qual fazia parte a célebre artista Rosita de Ia Plata, sendo mais tar‑de transformado em ótimo teatro, conservando a forma primitiva. Em sua frente, no lado oposto, onde esteve a estátua de Giuseppe Verdi, em outro barracão de zinco, achava ‑se instalado o Mercadinho de São João, mais tar‑de transferido para baixo do Viaduto de Santa Ifigênia.

Vale do Anhangabaú em 1911. À esquerda o antigo Teatro São José e, no fundo, à direita, o Teatro Municipal, pouco antes de

sua inauguração. Foto de autoria desconhecida.

Todo o extenso vale era sulcado pelo Rio Anhangabaú, que lhe deu o nome, e que, segundo Martins e outros, sig‑nifica “rio onde habita o mau espírito”.

Para o Dr. João Mendes de Almeida, profundo conhe‑cedor da língua tupi, a sua significação exata é “quase nenhuma correnteza”.

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De fato: as águas do pequeno rio deslizavam tão man‑samente, que pareciam paradas.

Esse rio, que a canalização escondeu à nossa vista em 1906, durante muitos anos serviu de manancial à popula‑ção paulistana, tendo a sua nascente nos tanques Reuno (o Redondo, como o chamávamos) e do Bexiga.

O Viaduto do Chá, que grandes aborrecimentos causou à baronesa de Tatuí, viúva do barão de Itapetininga, em razão de desapropriação do prédio de sua residência, não passava, então, de simples projeto.

Ideado e construído pelo cidadão francês Jules Martin, em 6 de novembro de 1892 procedeu ‑se à sua inauguração, cobrando ‑se três vinténs de cada transeunte que o quises‑se atravessar.

Em 30 de setembro de 1896, a Municipalidade encam‑pou ‑o por 750 contos de réis, sendo a partir daí franquea‑do ao público.

Acompanhando a evolução da cidade, a prefeitura substituiu ‑o pelo atual, de cimento armado, que foi inau‑gurado em 1936.

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O Largo da Misericórdia

Igreja da Misericórdia (cerca de 1870). Foto de Militão Augusto de Azevedo.

O Largo da Misericórdia, ponto de reunião diária dos professores aposentados que constituem a “mumioteca” do ensino e de “múmios” pertencentes a outras reparti‑ções públicas, nunca passou do minúsculo espaço aberto na Rua Direita pelo encontro das ruas do Comércio (Álva‑res Penteado) e do Príncipe (Quintino Bocaiuva).

Ornavam ‑no: a Igreja da Misericórdia, já existente em 1703, em cujas escadarias de pedra estacionavam à noi‑

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te numerosas quitandeiras com seus tabuleiros, a apre‑goar em altas vozes a venda de doces, pastéis, empadas, pinhões, cuscuz, peixes fritos, paçoca, amendoim torra‑do, pés de moleques; e, bem no centro, um grande cha‑fariz de pedra, construído em 1792, que, em 1886, foi transferido para o Largo de Santa Cecília e demolido em 1903, por ordem da prefeitura.

Desejando dar novo alinhamento e maior largura à Rua Quintino Bocaiuva, a prefeitura desapropriou alguns prédios desta, da Rua Direita, da Rua da Quitanda, da Rua José Bonifácio e terrenos existentes no largo, não poupan‑do a igreja, que foi demolida em 1888, sendo o respectivo terreno vendido pela Irmandade da Santa Casa de Miseri‑córdia a dois capitalistas, que mandaram construir alguns sobrados de dois andares. Em um deles, onde esteve ins‑talada a “Tecelagem Sedanil”, pegado à “Casa Henrique”, alojou ‑se a “Casa Alemã”, que alguns anos depois foi devorada por um pavoroso incêndio.

O povo, em sua alta sabedoria, atribuiu o acontecido a um castigo de Deus.

Largo da Misericórdia no início do século XX. Foto de Aurélio Becherini.

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O Largo do Rosário

Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na década de 1860, vista a partir da Rua Quinze de Novembro.

Foto de Militão Augusto de Azevedo.

A Praça Antônio Prado corresponde ao antigo Largo do Rosário, aberto pela Câmara Municipal de São Paulo em 1872, com a desapropriação e demolição de pequenos prédios térreos e do cemitério contíguo à igreja do Rosá‑rio, pertencente à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.

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Tais prédios não passavam de acanhadas quitandas e residências de ex ‑escravos africanos que mercadejavam com doces, geleias, empadas, pastéis e gulodices, em geral, e que se davam ao luxo de ter como escravas algumas crioulas ou mulatas, às quais infligiam severos castigos.

Transformado em largo o pequeno e tortuoso beco encravado entre a descida do Acú e a Rua do Rosário ou da Imperatriz (Quinze de Novembro), a Câmara Munici‑pal mandou calçá ‑lo a paralelepípedos de pedra, dotando‑‑o de um chafariz, que foi solenemente inaugurado em 7 de setembro de 1874.

A Igreja de Nossa Senhora do Rosário, fundada em 1725 pelo ermitão Domingos de MeIo Tavares, só foi por ele con‑cluída em 1746, com esmolas arrecadadas em Minas Gerais.

Mantida e frequentada quase exclusivamente por gen‑te de cor, as solenidades ali realizadas em honra da Santa caracterizavam ‑se por cantos, músicas e danças de origem africana, atraindo para o largo enorme massa popular.

O dia todo, bandos e bandos de negros africanos, garridamente73 vestidos, af luíam à igreja, para tribu‑tarem as homenagens devidas à Santa de sua devoção. Acompanhavam ‑nos até os filhos de tenra idade, sus‑pensos ao colo das mães ou arrochados às berrantes saias enrodilhadas, muito bem postos, com o pescoço enfeitado por um rosário de contas vermelhas e de ouro, cheio de penduricalhos extravagantes, como dentes de animais ferozes, olho de cabra, pacová74, figas de Guiné e outros, para livrá ‑los de quebranto, quiçaca, maturimbimbe, picuanga e outras feitiçarias.

A horas tantas, originalíssima banda de música rom‑pia um convidativo tambaque75 – espécie do nosso “Zé Pereira” – e o enorme bando de pretos e pretas sacudia as banhas, cantando e requebrando calorosamente.

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o largo do rosário

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Terminada a festa da igreja, o rei, a rainha e toda a corte encaminhavam ‑se para casa ao som do tambaque, onde ofereciam aos titulares e suas damas um excelente jantar.

Brindes sem conta, “béstias”76 sensacionais, bebidas a rodo e berreiro descomunal rematavam aquela parte do programa, voltando todos à igreja, para tomar parte na solene procissão de Nossa Senhora do Rosário.

A necessidade de ampliar aquele largo fez que a Câma‑ra Municipal desapropriasse a igreja e alguns prédios contíguos, em 1903, indenizando a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário em 250 contos de réis e fornecendo‑‑lhe a área indispensável à construção de um novo templo no Largo do Paiçandu.

É digno de nota o fato de se prestarem os operários pretos a erguer gratuitamente a sua igreja, que foi solene‑mente inaugurada em 15 de abril de 1906.

Largo do Rosário, no início do século XX. Foto de Guilherme Gaensly.

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O Largo de São Bento

Largo de São Bento em 1887. No centro, a Rua São Bento e, à esquerda, a Rua Boa Vista.

Foto de Militão Augusto de Azevedo.

O Largo de São Bento, centro de irradiação das ruas da Constituição (Florêncio de Abreu), Nova São José (Líbero Badaró), de São Bento e da Boa Vista, era um dos pontos mais agradáveis e simpáticos da antiga capital paulista.

Contribuía para isso o jardim cercado de gradil que a Câmara Municipal mandou fazer em 1886, inaugurando‑‑o no ano seguinte, jardim que, como os mais, era fran‑

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queado ao público pela manhã e fechado ao escurecer. Dava ‑lhe maior encanto um chafariz monumental.

A Rua Florêncio de Abreu, calçada havia pouco, osten‑tava o antigo Mosteiro de São Bento no mesmo ponto em que hoje se encontra.

Aos lados do jardim estacionavam carros e tílburis de aluguel.

Por volta de 1904, a prefeitura desmanchou o jardim, demoliu o chafariz e reformou completamente o largo.

O largo era confinado por casas térreas residenciais e de comércio e pelo magnífico sobrado da Companhia Paulis‑ta de Vias Férreas e Fluviais, situado no fim da Rua Nova São José, ao pé do Viaduto de Santa Ifigênia, então inexis‑tente. Demolido o prédio, o terreno ainda continua baldio.

O Mosteiro de São Bento, nascido de uma pequena ermida levantada em 1598 pelo governador ‑geral do Bra‑sil – D. Francisco de Sousa – e frei Mauro Teixeira, man‑dado para tal fim da Bahia, pelo Provincial da Ordem Beneditina, só em 1600 conseguiu chegar ao ponto idea‑do, graças aos esforços daquele governador e dos frades Mateus da Ascensão e Bento da Purificação.

Atendendo aos desejos de D. Francisco de Sousa, igreja e mosteiro receberam o nome de Mosteiro da Santíssima Virgem de Monserrate.

Trinta anos depois, os frades fizeram construir uma igreja nova, encarregando deste trabalho o paulista capitão ‑mor Fernão Dias Pais Leme, grande benfeitor do Mosteiro.

No local onde se ergue o atual Mosteiro de São Ben‑to estabeleceu ‑se, em 1554, o chefe indígena Tibiriçá, ao ser convidado por Anchieta a passar com sua gente para a aldeia de Piratininga, hoje capital do Estado de São Paulo.

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o largo de são bento

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No Mosteiro de São Bento refugiou ‑se em 1o de abril de 1641 Amador Bueno da Ribeira, quando, a viva força, o povo de São Paulo quis fazê ‑lo rei do Brasil, em oposição a D. João IV de Portugal.

Como elemento de destaque da Ordem Beneditina no Brasil, surge a figura de frei Gaspar da Madre de Deus, nascido em São Vicente no ano de 1714, que escreveu as “Memórias para a História da Capitania de São Vicente”.

Em 1900, o Mosteiro de São Bento passou para a dire‑ção do abade D. Miguel Kruse, que lhe deu o aspecto atual e fundou o ginásio anexo, um dos melhores do Estado.

Largo de São Bento, em cartão postal de 1892. Ao centro, a antiga Igreja de São Bento, demolida em 1910.

Foto de autoria desconhecida.

As sucessivas reformas por que tem passado o Largo de São Bento reduziram ‑no ao que hoje se vê.

A Rua de São Bento, sua principal artéria, formava, em seu cruzamento com a Rua Direita, os conhecidos Quatro Cantos, sem dúvida, o ponto mais concorrido do centro da cidade. Instalavam ‑se aí o Grande Hotel de França, em dois sobrados que formavam os cantos de entrada da Rua

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Direita, o Café Acadêmico e a Chapelaria de João Adolfo Schritzmayer.

A atual Praça do Patriarca surgiu da derrubada de velhos prédios que completavam o perímetro das ruas Nova São José, Direita e São Bento.

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O Largo dos Curros

Praça da República, antes conhecida por Largo dos Curros, na década de 1890. Ao centro, a esquina da Rua Vieira de Carvalho.

Foto de autoria desconhecida.

O Largo ou Campo dos Curros (Praça da República), que a prefeitura mandava roçar de quando em quando, chamou ‑se durante muito tempo Largo Sete de Abril.

Vasto campo, de forma e dimensões da atual praça, centro de convergência e divergência das ruas Ipiranga,

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Vinte e Quatro de Maio, Barão de Itapetininga, da Palha (Sete de Abril), do Arouche e do Pocinho (Vieira de Car‑valho), a sua escuridão, à noite, era tal, que nós, garotos, o apelidamos Campo Escuro.

Nele armavam suas tendas os circos de cavalinhos que nos visitavam, erguiam ‑se enormes Montanhas russas e algumas vezes apareciam Redondéis77 para Corridas de touros ou Touradas, que faziam a delícia da população.

O Largo em si poucas casas tinha, o mesmo aconte‑cendo com as ruas abertas em direção à Vila Buarque e Santa Cecília. O seu panorama continuou o mesmo até a chegada da República, só se modificando radicalmente quando o governo do Estado resolveu construir o monu‑mental edifício da Escola Normal, que foi inaugurado em 2 de agosto de 1894.

Uma capelinha quase invisível – a Santa Cruz do Poci‑nho – , levantada a meia distância do Largo dos Curros e do Largo do Arouche, à esquerda da Rua do Pocinho, punha o largo a transbordar de gente todos os anos, no mês de maio, com as suas festas estupendas, cheias de luzes, de leilões de prendas, de música e de fogos de arti‑fício.

Como surgiu ali a pequenina ermida, contaram ‑me, quando criança, velhos frequentadores da venda ou negó‑cio de secos e molhados de meus pais.

Contratado para proceder à limpeza do poço ali exis‑tente, o poceiro, como de costume, enlaçou a corda à cin‑tura e iniciou a descida, controlada no alto pelo ajudante, que cuidadosamente fazia girar o tambor sobre os man‑cais.

Imprevidentes que foram, não se deram ao trabalho de examinar o estado da corda, de modo que, muito antes de chegar ao fim, ela rebentou e o pobre poceiro foi ao fundo.

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– Jesus! – foi o grito que partiu de ambos os peitos no fatal momento.

Refeito do estupor em que caíra, o ajudante comunicou o acontecido ao dono do poço, que, sem demora, provi‑denciou sobre o possível salvamento do infeliz e deu parte à polícia.

Durante o resto do dia e a noite inteira foram envidados os maiores esforços para salvá ‑lo, resultando inúteis todos os meios postos em prática.

O poço, muito estreito e profundo – razão por que o denominaram pocinho – não, permitia senão a descida de cordas, e estas não faltaram no lugar.

Ia alta a madrugada quando uma das cordas chegou às mãos do infeliz, que se agarrou firmemente a ela.

Um lampejo de esperança brilhou em todos os olhares e até lágrimas de satisfação foram derramadas…

Mas, ai!; o estado de fraqueza do desgraçado não lhe permitiu manter ‑se agarrado à corda até o fim… e lá tor‑nou ele ao fundo, perecendo afogado!

Entulhado o poço, sobre ele ergueram a piedosa capeli‑nha que um arranha ‑céu expulsou para sempre do lugar.

Com ela desapareceram as festas do Pocinho, tornadas tradicionais, e o Largo dos Curros, que a prefeitura trans‑formou em um dos mais lindos recantos da Metrópole paulista.

Verdade ou lenda, o fato aqui fica tal como me foi con‑tado.

***

Os que, proposital ou acidentalmente, se tem referido à encantadora Praça da República, vivem a apregoar que a denominação Campo ou Largo dos Curros lhe foi atri‑buída em razão dos Circos de cavalinhos e das Corridas

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de touros que amiudadamente ali realizavam as suas fun‑ções. E há até quem procure apadrinhador de tal absurdo na pessoa do escritor francês Augusto de Saint ‑Hilaire, que por aqui andou entre os anos de 1849 e 1850 e, em 1851, publicou as suas impressões de viagem.

Não há a menor correlação entre o termo em questão e aqueles divertimentos públicos, e o simples bom senso está em dizer que seria mais razoável então darem ao lar‑go o nome de Largo dos Cavalinhos, Largo dos Circos ou Largo das Touradas.

Curro, em português de Portugal, que sempre foi por nós falado, corresponde ao nosso termo manga ou man‑gueira, isto é, lugar em que se guarda, se encurrala o gado para transporte ou para a matança

Praça da República no início do século XX. Entre os dois casarões à esquerda, a Rua Vieira de Carvalho.

Foto de Guilherme Gaensly.

Quem conhece a história de São Paulo deve saber que, desde priscas78 eras, existiu no alto da Rua de Santo Amaro um Matadouro Público, cujo tanque despejava suas águas

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poluídas no Rio Anhangabaú, na altura do Largo do Bexi‑ga (Riachuelo), e percorriam todo o vale até alcançar o Tamanduateí, na encosta das Sete Voltas, exalando em certas horas do dia um mau cheiro insuportável.

Não comportando o local a construção de grandes cur‑ros para o descanso e estacionamento do gado vindo do interior e do apanhado solto pelas ruas da cidade e logra‑douros públicos, a Municipalidade estabeleceu ‑os no campo que lhes tomou a denominação, em virtude de sua proximidade do Matadouro e à facilidade de condução das manadas para a matança: Rua da Palha (Sete de Abril), Rua Bráulio Gomes, Ladeira e Largo do Piques, Largo do Bexiga, Rua de Santo Amaro e Matadouro.

Com o gado ali à mão, era natural que os empresários de Touradas armassem os Redondéis ao pé dos curros.

Isso leva a crer que, em seu passeio por São Paulo, Saint ‑Hilaire tomasse os curros como parte integrante dos Redondéis e nestes visse, erradamente, a origem da denominação do largo.

Em 1879, atendendo ao clamor público contra a fedenti‑na provocada pelas águas do Matadouro, a Câmara Muni‑cipal transferiu ‑o para um novo, que mandou construir na Vila Mariana, inaugurado em 5 de janeiro de 1887, embora muito antes estivesse a funcionar.

Matadouro e curros foram demolidos, mas a denomi‑nação largo ainda se conservou durante vários anos.

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O Largo da Luz

Estação da Luz no início do século XX. À direita, o edifício do Liceu de Artes e Ofícios. Foto de Guilherme Gaensly.

Dos outros largos, apenas o da Luz apresentava algu‑ma coisa digna de referência. Não era propriamente um largo, mas um campo imenso, desigualmente repartido, limitado pela Rua da Estação (Rua Mauá), Campo da Luz (Avenida Tiradentes) e as chácaras do Bom Retiro.

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A Rua da Estação não diferia da Mauá atual na parte comercial, e alguns de seus prédios ainda lá existem.

O nome primitivo originou ‑se da Estação da Compa‑nhia Inglesa (S. P. R.) – um modesto sobrado de um andar, construído logo à entrada da rua, tendo como comple‑mento um grande galpão, lugar de embarque e desembar‑que de passageiros que demandavam os pontos servidos pela Estrada ou deles vinham à capital. Do galpão ao fim da rua o trânsito era impedido por uma grade de ferro. O nome atual da rua é uma justa homenagem ao barão de Mauá, fundador da companhia e executor da Estrada.

À entrada do Campo da Luz, à direita, via ‑se o gran‑dioso edifício do Seminário Episcopal, hoje totalmente reformado, ostentando no centro a sua linda igreja.

Mais abaixo, na Rua João Teodoro, surgia o Hospital de Lázaros e logo adiante o Recolhimento da Luz, que ainda lá existe.

No lado oposto, no trecho, denominado Rua do Comér‑cio da Luz (Avenida Tiradentes), a atenção era atraída pelo grande e luxuoso prédio do marquês de Três Rios – Joa‑quim Egídio de Sousa Aranha, que o governo adquiriu em 1893 para a Escola Politécnica, instalando ‑a em 15 de feve‑reiro de 1894. Esse prédio foi demolido, erguendo ‑se em seu lugar as escolas Paula Sousa, mantidas pelo Grêmio Politécnico, gratuitamente, em benefício dos que desejam aprender.

A Casa da Correção, situada no quarteirão anterior, foi iniciada em 1838 e inaugurada em 7 de maio de 1852, sob o regime penitenciário, embora as obras não estivessem completamente concluídas.

Em 9 de maio de 1877 foram para ela transferidos todos os presos da Cadeia do largo homônimo, passando aquele edifício ao uso da Assembleia Provincial.

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o largo da luz

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Além de uma escola de primeiras letras para a alfa‑betização dos detentos, havia na Casa de Correção, para o aprendizado deles, oficinas de serralheiros, funileiros, alfaiates, sapateiros, marceneiros, encadernadores e tran‑çadores de palha para chapéus.

***

O Jardim da Luz, que as novas gerações se habituaram a olhar com indiferença, como uma enorme praça ajar‑dinada, constituiu outrora o maior centro de atração da população paulista, que para ele acorria aos domingos e dias feriados, dando ‑lhe um aspecto festivo. Não tinha o tamanho atual e não se chamava Jardim da Luz. Era o Jar‑dim Público. Teria a quarta parte do que é hoje, mas apre‑sentava um encanto especial, pela quantidade e variedade de animais expostos à curiosidade pública e peIo carinho com que era tratado. Preguiças, macacos, veados, zebras, jaburus79, garças, marrecos, pavões, girafas, esquilos, ouriços, tamanduás, onças, peixes e outras espécies ani‑mais faziam o encanto da gurizada e de seus pais, que gas‑tavam horas e horas a admirá ‑los e a gozar os magníficos concertos das bandas de música oficiais.

Jardim da Luz no início do século XX. Foto de Guilherme Gaensly.

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Cercava ‑o pela frente e lateralmente um muro de regu‑lar altura, interrompido por mureta e gradil na entrada principal, em cujo centro se erguia um alto, pesado e largo portão de ferro.

Cerrada alameda de bambus, com alguns claros late‑rais, limitavam ‑no ao fundo com terrenos baldios, mais tarde adquiridos para lhe darem a área atual e serem aber‑tas as ruas Alegre da Luz (Rua Prates) e Ribeiro de Lima.

Pelo lado direito, em decorrência dos terrenos doados ao Liceu de Artes e Ofícios e ao Grupo Escolar “Prudente de Morais” – destruído e demolido no movimento revo‑lucionário de 1932, o Jardim Público sempre possuiu a mesma nesga80 de terreno engastado entre os dois estabe‑lecimentos de ensino, cercado de mureta, gradil e portão de ferro, que lhe dá acesso para a Avenida Tiradentes.

Abertas aquelas ruas, a Casa de Correção ficou situada na esquina oposta à do Grupo Escolar.

Esse jardim, iniciado em 1799 pelo capitão ‑general da capitania, Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça, com o nome de Jardim Botânico, só foi concluído e entre‑gue ao público em 29 de outubro de 1825, no governo de Lucas Antônio Monteiro de Barros, visconde de Congo‑nhas do Campo.

Substituído o nome primitivo pelo de Jardim Público, o logradouro, que vivia transformado em pasto de gado solto pertencente a particulares, por lei de 1838 passou a merecer as atenções dos poderes públicos, que o manda‑ram cercar e aformosear.

Em 1874, o Dr. João Teodoro Xavier, presidente da Província, abasteceu ‑o de água por meio de um chafariz alimentado pelo tanque Reúno (o Redondo) do Bexiga; ornamentou ‑lhe o lago central com estátuas de mármore encomendadas no Rio de Janeiro, representando a deusa

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Vênus e as quatro estações; transplantou para ali mudas de árvores e de flores da capital do país, aclimatando ‑as convenientemente; fez construir na entrada do Jardim, à direita, um observatório meteorológico.

Em 1880, o presidente Dr. Laurindo Abelardo de Brito fez construir a gruta que ainda lá está e, no ano seguin‑te, Florêncio Carlos de Abreu e Silva, o então presiden‑te de São Paulo, aumentou ‑lhe a área e mandou murá ‑la, dotando ‑a de gradil e portão de ferro.

Em 1886, achando ‑se na presidência João Alfredo Cor‑reia de Oliveira, propôs ele à Assembleia Provincial a cria‑ção de uma repartição de estudos meteorológicos, que devia ser instalada no observatório do Jardim. Mas, não sendo este utilizado para o fim proposto, foi transformado em mirante, pois do seu último andar avistava ‑se o pano‑rama inteiro da cidade.

O “Canudo”, como o apelidamos, era uma torre cilín‑drica, de altura aproximada à da Estação da Sorocabana. Pagava ‑se de 200 a 500 réis para visitá ‑lo, conforme se tratasse de pessoa só ou acompanhada.

Determinação oficial ou mera especulação do guarda do jardim, o certo é que se pagava.

Quantas vertigens e quantos vômitos provocou, nos curiosos que procuravam ganhar o último andar, aquele primeiro arranha ‑céu construído em São Paulo!

Todos atribuíam tais incômodos à formidável altura, deixando à margem a verdadeira causa – a estreita escada em espiral, que comunicava os diferentes andares.

Em seu bojo desenrolaram ‑se não poucos idílios81 amo‑rosos da São Paulo antiga, antes que o abatesse, em 1900, a picareta do progresso.

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Resenha final

Concluindo o breve relato, da São Paulo antiga, devo lembrar aos aficionados de corridas de cavalos que estas, até 1876, foram realizadas no Campo da Luz e no Campo Redondo, (Praça Princesa Isabel, ex ‑Largo dos Guaiana‑zes), e só a partir de 29 de outubro de 1876, com o afora‑mento feito pela Câmara Municipal, ao Clube de Corridas, de um quilômetro quadrado de terrenos do seu patrimô‑nio na Várzea da Mooca, é que passaram a ser efetuadas no Hipódromo Paulistano.

O Campo Redondo foi ajardinado em 1897.A Estrada de Ferro do Norte (Estrada de Ferro Central

do Brasil), inaugurada em 2 de julho de 1876 até Jacareí, em 1887 já ligava a capital da Província à capital do Impé‑rio. Passando pela Freguesia da Penha, poupou aos romei‑ros da milagrosa Nossa Senhora da Penha, nas festas que em seu louvor ali se realizavam nos dias 7 e 8 de setembro, o sacrifício das longas caminhadas a pé ou no dorso de cavalgaduras e as incômodas viagens em carros, tílburis, carroças, diligências e carros de bois.

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A Estação, construída no Largo do Norte ou da Con‑córdia, foi completamente reformada nesses últimos anos, apresentando um aspecto moderno.

Além da Companhia Viação Paulista, que fazia o transporte urbano do centro da cidade para a Liberdade, Mooca, Brás, Marco de Meia Légua, Luz, Santa Cecília, Consolação, Bom Retiro, Santana e Higienópolis, havia uma linha de bondes a vapor para o Ipiranga e Cambuci, e uma pequena estrada de ferro para Santo Amaro.

Numerosos tílburis e carros de praça completavam esses meios de transporte, havendo ainda carros de luxo (landaus, vitórias e caleches) para passeios, casamentos, batizados e grandes solenidades oficiais.

O serviço funerário era feito pela Empresa Rodovalho.

***

Até 1858 podiam ‑se contar na cidade de São Paulo tan‑tos cemitérios quantas eram as igrejas existentes, católi‑cas e protestantes, porque cada uma tinha, anexo, o seu.

Essa prática abusiva e perniciosa de enterramentos de cadáveres nas igrejas constituía verdadeiro tormento para os moradores dos arredores, obrigados a suportar a noite inteira o socar da terra, feito por escravos, que lamuria‑vam cada descida da grossa e pesada mão de pilão:

– Zoio que tanto vê… Zí boca que tanta fala… Zi boca que tanto zí comeu e zí bebeu… Zí cropo que tanto tra‑baiô… Zí perna que tanto ando… Zí pé que tanto zí piso… Zí oreia que tanto escuito…

Para acabar com isso, e atendendo a uma determina‑ção do governo, em 1855 a Câmara Municipal resolveu estabelecer um cemitério no Campo Redondo, desistin‑do, porém, de tal intento, diante das judiciosas pondera‑ções do Dr. Carlos Frederico Rath, que apontou o alto da

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resenha final

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Consolação como lugar mais adequado, em virtude de sua distância do centro povoado.

Aceita a indicação, o cemitério público foi ali construí‑do, começando a funcionar em 3 de julho de 1858, por oca‑sião da epidemia de varíola que grassou82 na capital.

Sem uma razão justificável – pois a morte não estabe‑lece distinções, o cemitério foi dividido em três partes: a geral, a da Ordem Terceira do Carmo e a dos Protestantes.

***

Era assim a pequena capital de 1887.Abolida a escravidão, estabelecida a imigração oficial e

proclamada a República, em 1913, ou seja, no breve período de 26 anos, São Paulo acusou um total de 43.940 prédios e uma população de 460.261 habitantes, colocando ‑se em terceiro lugar entre as cidades mais populosas e ricas da América do Sul e superando Washington, Bordéus, Haia, Dublim, Estocolmo, Turim, Gênova, Lisboa e outras.

A partir daí, a cidade ascendeu rapidamente como um sonho. Agricultura, indústria, comércio, ciências, letras e artes evoluíram de maneira assombrosa!… Liberta das amarras que a prendiam a um sentimentalismo piegas, meteu a picareta no passado, metamorfoseou ‑se por com‑pleto, e ei ‑la, presente aos nossos olhos deslumbrados, com 1,5 milhão de habitantes e 140 mil prédios crivados de cha‑minés de fábricas e de soberbos arranha ‑céus, demons‑trando que razão teve o Dr. Washington Luís, quando seu governador, em dar ao município o escudo de armas com a legenda “NON DUCOR, DUCO”, isto é, “NÃO SOU GUIADO, GUIO”.

São Paulo!… Qual te vi e qual te vejo!… Conheci ‑te velhinha, quando eu era criança, e vejo ‑te completamen‑te rejuvenescida, agora que sou velho! Duro contraste…

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Seguimos caminhos diametralmente opostos: tu para a vida e eu, para a morte…

Quão diferente da vida dos homens é a vida das cida‑des!…

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Conclusão

Penso, meu caro ledor, haver ‑lhe proporcionado uma leitura útil, bem diferente de tudo o que lhe tem passado sob os olhos e que enche as prateleiras das nossas livrarias.

Fiz ‑lhe conhecer a São Paulo de antanho, se é que não a conheceu, pelada de arranha ‑céus e de chaminés de fábri‑cas, de parques e de jardins, de avenidas e de logradouros públicos, e forneci ‑lhe elementos para um juízo seguro a respeito da sua vertiginosa evolução nestes últimos ses‑senta anos.

Não sei que ideia terá feito do punhado de fantasmas que lhe apresentei, mas acredito que os tenha considera‑do um produto da fantasia popular, próprio do atraso da época.

Respeito ‑lhe a opinião, porque sou pouco versado em coisas do outro mundo. Mas não vá além, porque não teme contradita a fidelidade da descrição da São Paulo que eu conheci e me serviu de berço, onde me criei e envelheci, amando ‑a no que foi e no que é, e vaticinando ‑lhe, em futuro não distante, o primeiro lugar entre todas as cidades do continente americano.

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Notas/Glossário

1. Pulularam: brotaram, multiplicaram‑se rapidamente. 2. Cimo: alto, topo. 3. Rabo‑de‑tatu: planta da família das orquidáceas também

conhecida como sumaré. 4. Saparia: grupo de indivíduos grosseiros, de má índole;

corja, cambada. 5. Balázio: grande bala; balaço. 6. Magote: ajuntamento de pessoas ou de coisas; amontoado,

porção. 7. Tugúrio: habitação pequena e pobre. 8. Catre: cama rústica e pobre. 9. Ciciou‑lhe: murmurejou. 10. Insofrida: que não consegue conter‑se; arrebatada. 11. Tílburi: veículo de duas rodas e dois assentos, sem boleia,

com capota e conduzido por um só animal. 12. Carcomido: roído e corroído. 13. Silvo: Assobio, zumbido. 14. Estrídulo: som agudo, ruidoso, penetrante. 15. Hercúleo: excepcional; fenomenal; extraordinário.16. Verberou: Expressou enérgica censura a alguém. 17. Pusilanimidade: medo; covardia.

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notas/glossário

18. Exortar: dar estímulo; animar. 19. Carreiro: caminho estreito; atalho. 20. Derreado: extenuado; fatigado; descadeirado. 21. Tétrico: fúnebre; severo; medonho. 22. Compêndio: livro escolar com resumo de uma teoria ou

matéria. 23. Marquesa: espécie de sofá sem encosto e com assento largo

de palhinha. 24. Hílare: alegre; contente. 25. Carrada: carga que um carro transporta ou pode transpor‑

tar de uma só vez. 26. Alijou: tornou menos pesado; aliviou. 27. Aplestia: bulimia. 28. Patranhas: histórias mentirosas. 29. Tropel: desordem barulhenta; confusão, balbúrdia; ruído

causado pelo andar de animais.30. Toldou‑se: tornou‑se nublado. 31. Estugarmos: caminharmos rapidamente. 32. Hirtos: completamente imóveis; duros; tesos. 33. Vergalho: chicote feito com o membro genital de boi ou

cavalo. 34. Zurzio: chicoteou. 35. Regurgitante: transbordante. 36. Embuçado: com o rosto coberto; disfarçado. 37. Encafuavam‑se: esconderam‑se; enfurnaram‑se. 38. Corolário: verdade que decorre de outra, que é sua conse‑

quência necessária ou continuação natural. 39. Mata‑bichos: aguardente de cana. 40. Cama de vento: cama portátil que se pode armar e desar‑

mar com muita facilidade. 41. Catadupa: jorro; derramamento. 42. Mossa: perturbação. 43. Enfarado: enfastiado; entediado.

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notas/glossário

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44. Acavalada: que se superpõe a outra coisa; amontoado, empilhado, sobreposto.

45. Chistoso: engraçado; jocoso. 46. Azáfama: grande pressa e ardor na execução de um

serviço. 47. Encarquilhada: enrugada; sem viço; murcha; ressequida. 48. Sobejava: sobrava, excedia os limites do necessário ou do

preciso. 49. Cataléptico: aquele que sofre de catalepsia, síndrome

nervosa caracterizada pela suspensão dos movimentos e extrema rigidez muscular.

50. Poltrões: aqueles que não têm coragem; medrosos; covardes.

51. Desembocavam: iam de um lugar a outro; afluíam. 52. Gradil: grade baixa; cerca. 53. Cimalha: moldura saliente que remata a parte superior da

fachada de um edifício, ocultando o telhado e impedindo que as águas escorram pela parede.

54. Antanho: em épocas passadas; outrora. 55. Arrimada: amparada; sustentada. 56. Miasmas: emanação a que se atribuía, antes das descober‑

tas da microbiologia, a contaminação das doenças infec‑ciosas e epidêmicas.

57. Covil: lugar frequentado por bandidos. 58. Paludosos: pantanosos. 59. Alcaide‑mor: antigo governador da comarca ou província. 60. Cônego arcipestre: mais antigo, idoso, que assistia e acon‑

selhava o governo da diocese. 61. Chantre: membro da igreja que exercia a função de cantor. 62. Cúria: referência à Cúria Metropolitana de São Paulo, ins‑

tância de coordenação de diversos organismos da Arqui‑diocese de São Paulo.

63. Expensas: despesas, custos.

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notas/glossário

64. Azorrague: açoite.65. Patíbulo: forca, quando montada num palanque ou

estábulo. 66. Mitra: referência à Mitra Arquidiocesana de São Paulo,

órgão da Igreja Católica responsável pelo patrimônio e pela administração das paróquias da arquidiocese.

67. Cadafalso: construção usada para condenar criminosos; forca.

68. Baraço: corda ou laço usado em enforcamentos. 69. Esplanada: terreno plano, largo e extenso, construído

frente a um edifício importante. 70. Lentes: professores, especialmente aqueles do ensino

superior.71. Aranhol: local com teias de aranhas; emaranhado. 72. Apendeu: juntou. 73. Garridamente: elegantemente. 74. Pacová: espécie de banana também conhecida como

banana‑da‑terra. 75. Tambaque: batuque das festas de Nossa Senhora do Rosá‑

rio, em 7 de outubro. 76. Béstias: discursos despropositados. 77. Redondéis: arenas das praças de touros. 78. Priscas: que pertence a tempos idos; antigo, velho. 79. Jaburu: ave de grande porte, encontrada em grandes rios,

lagoas e pantanais. 80. Nesga: pedaço, fenda.81. Idílio: amor terno e delicado. 82. Grassou: propagou‑se, espalhou‑se.

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Endereços úteis

Além dos pontos de distribuição da Coleção De Mão Em Mão, conheça também as unidades do Sistema Muni‑cipal de Bibliotecas, onde é possível consultar e emprestar livros e outros materiais, bem como usufruir de ampla programação cultural.

Para efetuar empréstimo em uma das unidades, basta se inscrever e obter seu cartão de leitor, levando documen‑to de identidade e comprovante de residência. Seu cartão de leitor valerá para todas as bibliotecas do Sistema. Con‑fira o regulamento de empréstimo no site ou em uma das unidades.

Para consultar o acervo disponível em cada biblioteca, a programação cultural e outras informações, acesse o site www.bibliotecas.sp.gov.br.

Toda a programação do Sistema Municipal de Biblio‑tecas é gratuita.

A seguir estão listados endereços de unidades vincula‑das à Secretaria Municipal de Cultura.

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endereços úteis

Bibliotecas públicas descentralizadas

Ao todo, são 52 bibliotecas espalhadas pelos bairros da cidade. Onze delas fazem parte do projeto Bibliotecas Temáticas, que oferece acervo e atividades específicas nas suas áreas de atuação.

Adelpha FigueiredoPça. Ilo Ottani, 146, Canindé, tel.: 2292‑3439Afonso TaunayR. Taquari, 549, Mooca, tel.: 2292‑5126Afonso SchmidtAv. Elisio Teixeira Leite, 1470, Cruz das Almas, tel.: 3975‑2305Alceu Amoroso Lima – Temática em poesiaAv. Henrique Schaumann, 777, Pinheiros, tels.: 3082‑5023 / 3081‑6092Álvares de AzevedoPça. Joaquim José da Nova, s/n, V. Maria, tel.: 2954‑2813Álvaro GuerraAv. Pedroso de Moraes, 1919, Pinheiros, tel.: 3031‑7784Amadeu AmaralR. José C. Castro, s/n, Jd. da Saúde, tel.: 5061‑3320Anne FrankR. Cojuba, 45, Itaim Bibi, tel.: 3078‑6352Arnaldo Magalhães Giácomo, Prof.R. Restinga, 136, Tatuapé, tel.: 2295‑0785Aureliano LeiteR. Otto Schubart, 196, Pq. São Lucas, tel.: 2211‑7716Belmonte – Temática em cultura popularR. Paulo Eiró, 525, Santo Amaro, tels.: 5687‑0408 / 5691‑0433Brito BrocaAv. Mutinga, 1425, Pirituba, tels.: 3904‑1444 / 3904‑2476

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endereços úteis

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Camila Cerqueira CésarR. Waldemar Sanches, 41, Butantã, tel.: 3731‑5210Cassiano Ricardo – Temática em músicaAv. Celso Garcia, 4200, Tatuapé, tel.: 2092‑4570Castro AlvesR. Abrahão Mussa, s/n, Jd. Patente, tel.: 2946‑4562Clarice LispectorR. Jaricunas, 458, Siciliano, tel.: 3672‑1423Cora CoralinaR. Otelo Augusto Ribeiro, 113, Guaianases, tel.: 2557‑8004Érico VeríssimoR. Diógenes Dourado, 101, Parada de Taipas, tel.: 3972‑0450Gilberto FreyreR. José Joaquim, 290, Sapopemba, tel.: 2143‑1811Hans Christian Andersen – Temática em contos de fadasAv. Celso Garcia, 4142, Tatuapé, tel.: 2295‑3447Helena SilveiraR. João Batista Reimão, 146, Campo Limpo, tel.: 5841‑1259Jamil Almansur HaddadR. Andes, 491‑A, Guaianases, tel.: 2557‑0067José de Anchieta, Pe.R. Antonio Maia, 651, Perus, tel.: 3917‑0751José Mauro de VasconcelosPça. Com. Eduardo Oliveira, 100, Pq. Edu Chaves, tels.: 2242‑8196 / 2242‑1072José Paulo PaesLgo. do Rosário, 20, Penha, tels.: 2295‑9624 / 2295‑0401Jovina Rocha Álvares PessoaAv. Pe. Francisco de Toledo, 331, Itaquera, tels.: 2741‑7371 / 2741‑0371Lenira FraccaroliPça. Haroldo Daltro, 451, Vila Manchester, tel.: 2295‑2295

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endereços úteis

Malba TahanR. Brás Pires Meira, 100, Veleiros, tel.: 5523‑4556Marcos ReyAv. Anacê, 92, Jardim Umarizal, tel.: 5845‑2572Mário Schenberg – Temática em ciênciasR. Catão, 611, Lapa, tel.: 3672‑0456Menotti Del PicchiaR. São Romualdo, 382, Limão, tels.: 3966‑4814 / 3956‑5070Milton SantosAv. Aricanduva, 5777, Jardim Aricanduva, tel.: 2726‑4882Narbal FontesR. Cons. Moreira de Barros, 170, Santana, tel.: 2973‑4461Nuto Sant’AnnaPça. Tenório Aguiar, 32, Santana, tel.: 2973‑0072Paulo Duarte – Temática em cultura negraR. Arsênio Tavollieri, 45, Jabaquara, tels.: 5011‑8819 / 5011‑7445Paulo Sérgio MillietPça. Ituzaingó, s/n, Tatuapé, tel.: 2671‑4974Paulo Setúbal – Temática em literatura policialAv. Renata, 163, Vila Formosa, tels.: 2211‑1508 / 2211‑1507Pedro NavaAv. Eng. Caetano Álvares, 5903, Mandaqui, tels.: 2973‑7293 / 2950‑3598Prestes Maia, Pref. – Temática em arquitetura e urbanismo Av. João Dias, 822, Santo Amaro, tel.: 5687‑0513Raimundo de MenezesAv. Nordestina, 780, São Miguel Paulista, tel.: 2297‑4053Raul Bopp – Temática em meio ambienteR. Muniz de Sousa, 1155, Aclimação, tel.: 3208‑1895Ricardo RamosPça. Centenário de Vila Prudente, 25, Vila Prudente, tel.: 2273‑4860

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endereços úteis

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Roberto Santos – Temática em cinemaR. Cisplatina, 505, Ipiranga, tels.: 2273‑2390 / 2063‑0901Rubens Borba de MoraesR. Sampei Sato, 440, Ermelino Matarazzo, tel.: 2943‑5255Sérgio Buarque de HolandaR. Augusto C. Baumman, 564, Itaquera, tel.: 2205‑7406Sylvia OrthofAv. Tucuruvi, 808, Tucuruvi, tels.: 2981‑6264 / 2981‑6263Thales Castanho de AndradeR. Dr. Artur Fajardo, 447, Freguesia do Ó, tel.: 3975‑7439Vicente de CarvalhoR. Guilherme Valência, 210, Itaquera, tel.: 2521‑0553Vicente Paulo GuimarãesR. Jaguar, 225, V. Curuçá, tels.: 2035‑5322 / 2034‑0646Vinicius de MoraesAv. Jardim Tamoio, 1119, Itaquera, tel.: 2521‑6914Viriato Corrêa – Temática em literatura fantásticaR. Sena Madureira, 298, V. Mariana, tels.: 5573‑4017 / 5574‑0389

Bibliotecas centrais

Tradicional instituição do país, a Biblioteca Mário de Andrade possui acervo expressivo com destaque para as coleções de artes, mapas, periódicos, obras raras e acervo da ONU.

Já a Biblioteca Infanto‑Juvenil Monteiro Lobato reú‑ne significativo acervo de literatura brasileira, infantil e juvenil, acervo bibliográfico e museológico sobre Montei‑ro Lobato de textos teatrais.

Mário de AndradeAv. São Luis, 235, República, tel. 3256‑5270

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endereços úteis

Monteiro LobatoR. Gal. Jardim, 485, V. Buarque, tel.: 3256‑4038

Bibliotecas do Centro Cultural São Paulo

Abrigam um dos mais significativos patrimônios bibliográficos do país.

Na Biblioteca Sérgio Milliet destacam‑se obras nas áreas de literatura latino‑americana, filosofia, religião, ciências sociais e história. Possui seções especializadas em artes, hemeroteca, recursos audiovisuais e banco de peças teatrais.

A Biblioteca Louis Braille, planejada e equipada para atender a pessoas com deficiência visual, possui acervo em braile e áudio.

A Gibiteca Henfil tem mais de 8 mil títulos entre qua‑drinhos, fanzines, periódicos e livros sobre histórias em quadrinhos.

A Discoteca Oneyda Alvarenga possui acervo especia‑lizado em música erudita e popular, nacional e estrangei‑ra, constituído por livros, partituras, discos de 33 e 78rpm e CDs.

Centro Cultural São PauloR. Vergueiro, 1000, ParaísoBiblioteca Sérgio Milliet – tels.: 3397‑4003 / 3397‑4074 / 3397‑4075Biblioteca Louis Braille – tel.: 3397‑4088Gibiteca Henfil – tel.: 3397‑4090Discoteca Oneyda Alvarenga – tels.: 3397‑4071 / 3397‑4072

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endereços úteis

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Biblioteca do Centro Cultural da Juventude

A Biblioteca Jayme Cortez possui um acervo com mais de 10 mil exemplares entre livros, álbuns de HQ, mangás, periódicos e material audiovisual. Conta também com um Laboratório de Idiomas.

Biblioteca Jayme CortezAv. Deputado Emílio Carlos, 3641, Cachoeirinha, tel.: 3984‑2466, ramal 24

Pontos de leitura

Espaços criados em bairros desprovidos de equipamen‑tos culturais ou de difícil acesso a Bibliotecas Públicas.

André VitalAv. dos Metalúrgicos, 2255, Cidade Tiradentes, tel.: 2282‑2562ButantãAv. Junta Mizumoto, 13, Jardim Peri Peri – Butantã, tels.: 3742‑6218 / 3744‑4369Carolina Maria de JesusR. Teresinha do Prado Oliveira, 119, Parelheiros, tel.: 5921‑3665Graciliano RamosR. Prof. Oscar Barreto Filho, 252 (Calçadão Cultural do Grajaú), Parque América – Grajaú, tel.: 5924‑9135Jardim LapennaR. Serra da Juruoca, s/n (Galpão da Cultura e Cidadania), Jar‑dim Lapenna, tel.: 2297‑3532Juscelino KubitschekAv. Inácio Monteiro, 55, Cidade Tiradentes, tel.: 2556‑3036

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endereços úteis

OlidoAv. São João, 473, Centro, tel.: 3397‑0176Parque do PiqueriR. Tuiuti, 515, Tatuapé, tel.: 2092‑6524Parque do RodeioR. Igarapé da Bela Aurora, s/n, Cidade Tiradentes, tel.: 2555‑4276Praça do BambuzalR. da Colônia Nova, s/n (Praça Nativo Rosa de Oliveira – Praça do Bambuzal), Jardim Ângela, tel.: 5833‑3567São MateusR. Fortaleza de Itapema, 268, Jardim Vera Cruz – São Mateus, tel.: 2019‑1718Severino do RamoR. Barão de Alagoas, 340, Itaim Paulista, tels.: 2963‑2742 / 2568‑3329Tide SetubalRua Mário Dalari, 170 (Clube da Comunidade Tide Setubal), Jardim São Vicente – São Miguel, tel.: 2297‑5969União dos Moradores do Parque AnhangueraR. Amadeu Caego Monteiro, 209, Parque Anhanguera, tel.: 3911‑3394Vila MaraR. Conceição de Almeida, 170, São Miguel Paulista, tel.: 2586‑2526

Bosques de leitura

Ambientes culturais alternativos em parques da cidade. Abrem aos domingos e, em alguns endereços, também aos sábados. Confira os dias e horários de funcionamento no site www.bibliotecas.sp.gov.br ou pelo telefone 3675‑8096.

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endereços úteis

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AnhangueraAv. Fortunata Tadiello Natucci, 1000, PerusCarmoAv. Afonso de Sampaio Souza, 951, Itaquera

Cidade de TorontoAv. Cardeal Motta, 84, PiritubaEsportivo dos TrabalhadoresR. Canuto Abreu, s/n, TatuapéIbirapueraAv. República do Líbano, 1151, Portão 7A, MoemaJardim da LuzR. Ribeiro de Lima, 99, LuzLajeadoR. Antonio Thadeo, 74, LajeadoLions Clube TucuruviR. Alcindo Bueno de Assis, 500, TucuruviParque GuarapirangaAv. Guarapiranga, 575, Jardim São LuisRaposo TavaresR. Telmo Coelho Filho, 200, Vila Albano – ButantãRodrigo de GásperiAv. Miguel de Castro, 321, Vila Zatt – PiritubaSanto DiasR. Jasmim da Beirada, 71, Capão RedondoTroteR. Nadir Dias de Figueiredo, s/nº, Vila Guilherme

Ônibus‑biblioteca

Os ônibus‑biblioteca levam livros, jornais, revistas, gibis e programação cultural às comunidades de bairros

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endereços úteis

periféricos da cidade. Conta com paradas predetermina‑das para cada dia da semana. Confira os roteiros da sua região no site www.bibliotecas.sp.gov.br ou pelo telefone 2291‑5763.

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Títulos da coleção De Mão em Mão

1 ‑ Missa do galo e outros contosMachado de Assis

2 ‑ Contos PaulistanosAntônio de Alcântara Machado

3 ‑ A nova Califórnia e outros contosLima Barreto

4 ‑ São Paulo! comoção de minha vida…Mário de Andrade

5 ‑ Histórias de horrorVários autores

6 ‑ Ninguém morre duas vezesLuiz Lopes Coelho

7 ‑ São Paulo em guerra – 1924Guazzelli

8 ‑ Os fantasmas da São Paulo antigaMiguel Milano

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SOBRE O LIVRO

Formato: 12 x 21 cm Mancha: 18 x 37 paicas

Tipologia: Minion Pro 10/13,5 Papel: Lagenda 80 g/m² (miolo) Cartão triplex 250 g/m² (capa)

1ª edição: 2012

CTP, Impressão e Acabamento Imprensa Oficial do Estado de São Paulo

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Imagens Todas as imagens pertencem ao Acervo Iconográfico da Casa da Ima‑gem de São Paulo / SMC, com exceção da foto da pág. 42, pertencente

ao Acervo Fotográfico do Arquivo Histórico de São Paulo/SMC

Editoração Eletrônica Estúdio Bogari

Capa Estúdio Bogari

Imagem de capa Rua Florêncio de Abreu em 1887.

Detalhe de fotografia de Militão Augusto de Azevedo.

Coordenação De Mão Em Mão Ananda Stücker (Secretaria Municipal de Cultura)

Oscar D’Ambrosio (Editora Unesp)

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