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CartaCapital - Edição 515

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10 CARTACAPITAL 1º DE OUTUBRO DE 2008

CUSTÓDIA. O caciqueCarlito cumpre prisão domiciliar na aldeia Passo Piraju

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POR RODRIGO MARTINS,DE DOURADOS

Com traje de guerra, um índiodesponta do emaranhado debarracas de lona preta erguidoàs margens da rodovia MS-289, na área rural de Coronel

Sapucaia, Mato Grosso do Sul. O sol abra-sador do meio-dia fustiga o rosto do jo-vem guerreiro, ornamentado com expres-sivas pinceladas de tinta negra. O olharatento às movimentações na entradado acampamento e asmãos atarracadas aoarco e flecha transpa-recem um ar belicoso,estranho à tradição pa-cifista dos indígenasguarani-kaiowá, queocupam a área. Tão lo-go os visitantes são identificados, a ten-são é dissipada. Dá espaço a uma caloro-sa recepção, com direito a dança de boas-vindas animada por chocalhos e apitos.

A desconfiança dos indígenas não é gra-tuita. Deve-se à constante presença depistoleiros nas imediações da aldeia. Lo-calizado na divisa com o Paraguai, Co-ronel Sapucaia detém o título de muni-cípio mais violento do Brasil. Está na li-derança do Mapa da Violência, divulga-do em janeiro deste ano pela Rede de In-formação Tecnológica Latino-America-

na (Ritla), por ostentar a elevadíssimamédia de 107,2 assassinatos para cada100 mil habitantes, índice três vezes su-perior ao da capital, Campo Grande. Acidade fronteiriça está na rota do con-trabando e do tráfico de drogas, um obs-curo ponto do estado onde a vida de umhomem pode custar menos de 150 reais,conforme revelam inquéritos policiaissobre a atuação de matadores de aluguel.

Mas não são os traficantes e contra-bandistas que preocupam os indígenasdo acampamento, montado nos limites

MS A resolução do histórico impassedas terras guaraniesbarra na fronteira do agronegócio. À Funai cabe o papelde mediar o conflitoentre indígenas e produtores rurais

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CONFINAMENTO A aldeia de 1,7 mil hectares, em Coronel Sapucaia, ficoupequena para a população de 2,4 mil kaiowá, hoje sem terra para plantar

INOCENTES?Os kaiowá daaldeia Taquapirydizem-se vítimas de um flagranteforjado de roubo

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entre a aldeia Taquapiry e um vastíssi-mo milharal, que nos meses de chuvaabriga o cultivo da soja. Desde janeirode 2007, um grupo de aproximadamen-te 200 índios protagoniza uma trágicaepopéia envolta em conflitos com fazen-deiros da região. De lá pra cá, os sucessi-vos confrontos resultaram no saldo dedois índios assassinados, quatro balea-dos e três lideranças da aldeia presas.

O grupo reivindica a posse de uma áreade 2 mil hectares, onde hoje está erguidaa Fazenda Madama, na divisa entre os mu-nicípios de Amambaí e Coronel Sapucaia.“Essa terra pertenceu aos nossos avós, queforam expulsos pelos brancos”, afirma olíder kaiowá Roberto Martins, de 38 anos.

A aldeia Taquapiry, argumenta Martins,tornou-se pequena demais para abrigar acrescente população indígena: tem ape-nas 1,7 mil hectares para 2,4 mil índios.“É pouca terra para plantar. A mandioca,o milho... Não dá para todo mundo”, diz.

Aprimeira tentativa de ocupação da fazen-da durou cinco dias. Dezenas de capan-gas, armados de pistolas e escopetas, reti-raram os índios à força. No confronto,uma índia, a mais velha da tribo, XureteLopes, de 75 anos, foi morta. A Polícia Fe-deral abriu um inquérito para investigar ocaso, mas até agora não apresentou o au-tor do crime. Já a Polícia Civil não encon-trou dificuldade para prender três líderes

indígenas, entre eles o cacique FranciscoFernandes, pelo roubo de um trator.

Desde então, os índios passaram pordois julgamentos e jamais deixaram a car-ceragem do presídio de Amambaí. Foramcondenados a dezessete anos de prisãopor extorsão, roubo, seqüestro e cárcereprivado. A sentença foi reformada pelojuiz da segunda instância, que baixoua pena a oito anos de cadeia. Todos osacusados garantem ter sido vítimas de umflagrante armado. “O capataz da fazendaemprestou o veículo para que pudéssemosbuscar alimento na aldeia. Logo depois,veio a polícia. Prendeu todos nós, e até umbranco, chamado Rubens Ajala, que só es-tava lá para dirigir o trator”, defende-se o

cacique Fernandes.Na carceragem, o

comportamento do lí-der kaiowá e dos ou-tros dois indígenas pre-sos com ele, Cassimi-ro Batista e AntônioBarrio, é considerado“exemplar” pelo dire-

tor do presídio, Alexandre Ferreira deSouza. De acordo com ele, dos 207 inter-nos, 50 são índios, um quarto do total.De uniforme laranja, eles estão habitua-dos a andar de cabeça baixa e com asmãos para trás, como reza a disciplina lo-cal. Reclamam da faltade colchões e da ausên-cia dos familiares. “Mi-nha mulher não pôdeentrar porque não ti-nha certidão de casa-mento para apresentar.Estou há um ano e novemeses sem visita”, queixa-se Barrio, de43 anos, pai de nove filhos. O sonho devoltar à liberdade só é refreado por umtemor: “Tenho medo de sair e ser assas-sinado por pistoleiros”.

A prisão das lideranças não arrefeceuo anseio dos indígenas de tentar reavera terra que acreditam lhes pertencer. In-vestiram numa nova ocupação, em ju-lho de 2007, desta vez sob a liderançade Ortiz Lopes. Novamente, um grupoarmado se incumbiu de expulsar oskaiowá da fazenda. Dias depois, Ortizfoi assassinado na porta de casa. Crimesem solução para a polícia.

O roteiro do faroeste nativo ganhoumais um capítulo em outubro do ano pas-sado. Outra tentativa de ocupação, agorasob o comando de Elizeu Lopes. Destavez, uma negociação previa a remoçãopacífica das famílias indígenas. Mas odesfecho, uma vez mais, acabou em con-fronto. Quatro indígenas foram baleados.

Na denúncia do Ministério PúblicoEstadual, prevaleceu a versão dos fazen-deiros. Elizeu é acusado de exigir 5 milreais para retirar as famílias indígenasda área ocupada. Também é apontadocomo o autor dos disparos que feriramos próprios companheiros. Os alvos,pontua a Promotoria, seriam o presiden-te do Sindicato Rural de Amambaí, Cris-tiano Bortolotto, e o produtor LucianoZamai, que saíram ilesos do confronto.Com base na denúncia da Promotoria, ojuiz César de Souza Lima, da 1ª Vara deAmambaí, decretou a prisão preventivado líder indígena, atualmente foragido.

A versão dos indígenas parece ter sido ig-norada. “Os índios não têm pistolas, sóflechas e lanças. Quem atirou foram osfazendeiros, o grupo do Cristiano. Elesabriram fogo e me acertaram nas costas”,conta a jovem kaiowá Angélica Barrios,de 20 anos, ao mostrar o corpo crivado debalas. O presidente do sindicato contesta:

DESCASO A morte de duas lideranças indígenas, que reivindicaram a posse de uma fazenda como território dos kaiowá, continua sem solução

CRIME COMUM.O juiz Lima negaque os conflitosem Taquapirytenham a terracomo causa

VÍTIMA. Apesardas cicatrizesexibidas porAngélica, apolícia ignora osautores dos tiros,velhos conhecidos

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“Fomos atacados e tivemos de cor-rer. Eu estava desarmado. Se o Lu-ciano chegou ou não a atirar, não seidizer. Tem de ver no inquérito”.

Ao tomar conhecimento do con-flito, o juiz federal Ricardo Rodri-gues, de Ponta Porã (MS), pediu paraassumir o caso, em dezembro passa-do. Entende tratar-se de um proble-ma fundiário, e não de um crime co-mum. Relacionou o recente confron-to com a prisão dos líderes indígenase com o assassinato de Xurete e Or-tiz. Mas o juiz Lima quer manter oprocesso na esfera estadual, e solici-tou a resolução do impasse ao Supe-rior Tribunal de Justiça. “Para mim,está claro que o roubo do trator nãotem qualquer relação com a questãofundiária. Assim como não vejo o in-teresse da comunidade indígena nes-sa tentativa de extorsão feita pelogrupo de Elizeu”, diz o magistrado.

Os conflitos envolvendo os índios da al-deia Taquapiry não são casos isolados. Hávárias comunidades acampadas na beirade estradas ou em fazendas a exigir o re-conhecimento de seus territórios emMato Grosso do Sul. Em Passo Piraju, nomunicípio de Dourados, dois policiais

morreram e um ficou ferido após se en-volver em confronto com os índios.

A área está sob litígio e os indígenasafirmam ter confundido os policiais,sem uniforme nem carro caracterizado,com pistoleiros. “Eu estava no rio e sósoube depois que houve esse confronto.Se os policiais fossem mais prudentes e

pedissem para entraraqui, sem disparartiros nem gritar, issonão teria aconteci-do”, defende-se o ca-cique kaiowá Carlitode Oliveira, acusado de ser o man-dante do crime. “Por perceber a rela-ção indireta do conflito fundiário nodesfecho dessa história, a ministraLaurita Vaz, do Superior Tribunal deJustiça, deslocou a competência doprocesso da Justiça estadual para a fe-deral. É um avanço, porque agora aquestão será discutida num foroapropriado”, comenta Rogério Bata-lha, advogado do Conselho Indige-nista Missionário.

Na raiz desse drama social, encontra-se a delicada situação vivida por maisde 40 mil índios guarani, das etniasnhandeva e kaiowá, que residem no

estado. Eles habitam cerca de 30 áreasisoladas, que perfazem, ao todo, cerca de44 mil hectares. A maior parte dessa po-pulação vive em regiões superlotadas, de-marcadas pelo antigo Serviço de Proteçãoao Índio ainda nos anos 1920. Cerca de21 mil indígenas, metade do total, estãoconcentrados em apenas três territórios:

FAVELA INDÍGENA Quase bairro periférico, a aldeia de Dourados temdensidade populacional sete vezes superior à média de todo o município

MOBILIZAÇÃO.Os fazendeirosreuniram 5 milmanifestantesem Dourados

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Dourados, Amambaí e Caarapó, que so-mam 9,4 mil hectares. Ao todo, são 3 milfamílias que dispõem tão-somente de 3hectares para plantar o que for possível,razão pela qual cerca de 80% dos índiosdo estado dependem de cestas básicas dogoverno federal para sobreviver.

A aldeia de Dourados, por exemplo, pa-rece mais um bairro periférico da cidadede 187 mil habitantes, a segunda mais im-portante do estado, atrás de Campo Gran-de. Trata-se da aldeia com maior densida-de demográfica do País: 12 mil indígenaspara uma área de 3.554 hectares, ou 337,6habitantes por quilômetro quadrado. Oíndice é mais de sete vezes maior que amédia da cidade (44,5) e três vezes supe-rior à da capital do estado (92,29).

O cacique nhandeva Catalino Aquino,de 61 anos, explica que, das 285 famí-lias da etnia, 118 estão sem terra paraplantar. E, aqui, ele se refere apenas aosnhandeva. Há mais de 3 mil famíliaskaiowá na aldeia. “Eu mesmo não tenhoespaço. Meu terreno vai daqui até ali”,gesticula, para mostrar a área de cercade 250 metros quadrados.

Ao bebericar na guampa de tererê(mate gelado) do marido, a nhandevaLuísa Souza, de 53 anos, comenta a mor-te de um sobrinho, vítima da subnutri-ção. “Antes de o governo oferecer a ces-ta básica, muita criança morreu”, diz,com o filho de 4 anos agarrado às suaspernas. “Eu continuo plantando man-dioca, batata, milho. Mas isso não mataa fome de todo mundo, não.”

Essa situação de penúria, comum a tan-tas outras aldeias, levou a Procuradoria daRepública em Dourados a impor, no fimdo ano passado, um Termo de Ajustamen-to de Conduta com a Fundação Nacionaldo Índio (Funai), obrigando a entidade aresolver a situação fundiária dos índiosguarani até 2010. A resposta da presidên-cia da Funai veio em julho deste ano, coma publicação de sete portarias a determi-nar a criação de grupos técnicos de traba-lho, chefiados por antropólogos, paraidentificar terras indígenas que podem,no futuro, ser objeto de demarcação.

“O grande problema é que isso não foidiscutido previamente com o governo doestado e com os produtores rurais, que en-

camparam uma forte oposição à medida.Foi um erro estratégico”, diz Margarida deFátima Nicoletti, administradora regionalda Funai no sul do estado. A falta de diplo-macia para propor a demarcação de terrasindígenas acabou colocando a entidadeem rota de colisão com os agricultores.

Os 26 municípios-alvo dos estudosantropológicos são densamente ocupa-dos por propriedades rurais. A região éresponsável por 60,9% da produção desoja do estado, 70,1% da produção de mi-lho safrinha (plantado nos intervalos docultivo de soja) e possui mais de 3,8 mi-lhões de cabeças de gado (22,2% do to-tal), segundo a Agência de Desenvolvi-mento Agrário e Extensão Rural (Agraer),ligada ao governo estadual.

Não por acaso, antes mesmo que osgrupos de trabalho da Funai iniciassemas operações, em agosto, já havia deze-nas de faixas, cartazes e outdoors contraa demarcação espalhados pelas princi-pais cidades da região. “O prejuízo, na

verdade, já começou”, afirma Ademar Sil-va Júnior, presidente da Federação deAgricultura e Pecuária de Mato Grosso doSul (Famasul). “O mercado de compra evenda de terras está parado. Se, antes, ha-via ao menos cinco negócios sendo fecha-dos por dia na região, hoje não há nada.Ninguém se arrisca a colocar dinheironuma propriedade que pode ser expro-priada pelo governo a qualquer momen-to.” Um raciocínio que faz todo o sentido.

O pecuarista Gino José Ferreira, presi-dente licenciado do Sindicato Rural deDourados e candidato a vereador pelo ex-PFL, é mais catastrófico na previsão: “Osíndios estão sendo usados como massade manobra pela Funai e por ONGs es-trangeiras que, na verdade, querem aca-bar com a economia do estado”. Na ava-liação dele, o problema dos índios não éfalta de terras. “De que adianta dar ter-ra, se eles não têm como produzir? Vaidar terra para eles produzirem o quê?

IMPACTO Os 26 municípios-alvo dos estudos antropológicos são responsáveispor 60% da produção de soja de Mato Grosso do Sul e 70% do cultivo de milho

FOME. A nhandeva Luísa Souza viu o sobrinho morrer desubnutrição na aldeia

FOME. A nhandeva Luísa Souza viu o sobrinho morrer desubnutrição na aldeia

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Coordenador de um dos grupos de tra-balho constituídos pela Funai pararever a dimensão das terras indíge-

nas em Mato Grosso do Sul, o antropólogoRubem Thomaz de Almeida tem evitadofalar com jornalistas há semanas. O reco-lhimento, justifica, deve-se à forte campa-nha movida por proprietários rurais contrao processo de demarca-ção, razão pela qual soli-citou à CartaCapital quenão divulgasse seu re-trato. “O clima é de inti-midação. Os carros dasequipes responsáveis poresse levantamento chegaram a ser perse-guidos nas estradas por picapes de fazen-deiros”, conta. Dedicado ao estudo dos ín-dios guarani há 35 anos, Almeida concor-dou em conceder esta entrevista para“desfazer alguns dos equívocos”que, acre-dita, deram o tom do debate até agora.

CartaCapital: Os índios precisam de mais terras?Rubem Thomaz de Almeida: Do fim do séculoXIXpara cá,os colonizadores ocuparam pra-ticamente todo o território que antes per-tencia aos guarani. Nesse processo de ocu-pação, os indígenas foram sendo restringi-dos a áreas muito pequenas. Hoje, temos 40mil índios que vivem em cerca de 44 mil hec-tares. Eles estão praticamente sem terra. Naaldeia de Dourados, a situação é dramática:há apenas 3,5 mil hectares para 12 mil índios.Eles não têm condições de desenvolver a suaagricultura de subsistência. Dependem dacesta básica dada pelo governo.

CC: Os conflitos entre indígenas, dentro das al-deias, têm relação com a questão fundiária?RTA: Sim, graças à convivência forçada entrefamílias que jamais se aproximariam deforma espontânea.Alguns contornam o pro-blema por meio do casamento ou de alian-ças políticas. Mas há muitas brigas, que, porvezes, resultam em homicídios. No passado,quando uma família brigava com outra, ge-ralmente uma delas se mudava para outraregião, onde também tinha vínculos familia-res. Havia espaços disponíveis. Hoje, não.

CC: Qual é a área necessária?RTA: Os grupos de trabalho foram criados

para fazer esse levantamento, para que seconheça, com alguma precisão, a real de-manda dos índios. Hoje, há muita especula-ção. A imprensa chegou a anunciar que aárea seria de 12 milhões de hectares. Isso éum disparate, representa um terço do esta-do, a área total de 26 municípios, incluindoos centros urbanos. Admitir isso seria tão

absurdo quanto propor a demarcação deterras indígenas em Copacabana, no Rio, ouno Vale do Anhangabaú, em São Paulo.

CC: É possível estimar a área a ser demarcada?RTA: É preciso aguardar os estudos. Certavez, a um jornal local, deixei claro que nãofaz sentido falar em 12 milhões de hecta-res se a área sob investiga-ção ocupa, no máximo, 3 mi-lhões de hectares. O núme-ro foi divulgado como a áreada demarcação. Nada disso.Dentro desse território, ain-da serão feitos os levanta-mentos antropológicos parasaber quais as terras pre-tendidas e se elas são tradicionalmenteocupadas por índios.

CC: O que será avaliado nos estudos?RTA: A composição das famílias, as relaçõesde parentesco, a história deles em relaçãoà terra, a ocorrência de determinados indi-cadores que comprovem a presença delespor ali, como casas abandonadas, resquí-cios de objetos, cemitérios indígenas etc.

CC: Os índios podem viver em outra região?RTA: Nós, brancos, temos a concepção deque a terra é um título de propriedade. Paraos guarani, é o contrário. As terras não per-tencem aos índios. Estes é que pertencem auma terra. Por isso, eles se recusam a acei-tar terras que não são suas, que não foramocupadas pelos seus antepassados. No fim

dos anos 70,a Funai tentou assentar um gru-po de guaranis na aldeia Bodoquena, dos ín-dios kadiwéu,um pouco mais ao norte do es-tado. Ela tem 575 mil hectares para uma po-pulação muito pequena, entre 1,5 mil e 2 milíndios. Não deu certo. Os guarani insistirampara voltar. Como a Funai não mobilizoutransporte para trazê-los de volta, eles ini-

ciaram uma marcha a pé demais de 700 quilômetros.

CC: A demarcação será em áreacontínua?RTA: Em Roraima, a RaposaSerra do Sol tem 1,7 milhãode hectares para 18 mil índiosem área contínua. Mas pen-

sar numa situação similar em Mato Grossodo Sul é irreal. O estado tem colonizaçãoconsolidada e economia estabelecida. O pla-no operacional prevê a presença dos pro-prietários rurais na região. Estuda-se, sim, apossibilidade de se criar conexões entre asaldeias por meio de corredores ecológicos, oque permitiria a circulação dos guarani.Semprejuízos, já que os corredores passariampela área de reserva legal das fazendas.

É impossívelrepetir RaposaSerra do Solpor aqui entreos guarani

REPARANDO EQUÍVOCOS Responsável por um dos grupos de trabalho da Funai, o antropólogo Rubem de Almeida desfaz mitos sobre a demarcação

CAMPANHA.Nos outdoors,o recado dos produtores e pecuaristas

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A melhor solução é abrir as portas dasaldeias para que nós, brancos, possamosajudá-los. Eu gostaria até de poder ado-tar uma família indígena”.

A idéia de tutelar os índios dessa for-ma desperta profunda irritação no antro-pólogo Rubem Thomaz de Almeida,coordenador de um dos grupos de traba-lho da Funai envolvidos na identificaçãode terras guaranis no estado (entrevista àpág. 15). “A sociedade precisa entenderque os índios não querem se transformarem brancos, se quisessem já teriam feito.Eles não precisam abrir grandes lavou-ras, produzir, virar capitalista. Eles têm asua cultura de subsistência e isso precisaser respeitado. Índio não é vagabundo,só trabalha de forma diferente.”

Mas o temor de que a demarcação possatrazer prejuízos econômicos para a re-gião conquistou boa parte da populaçãolocal. No dia 6 de setembro, às vésperasdo feriado da independência, o Sindica-to Rural de Dourados conseguiu reunir5 mil manifestantes contrários à demar-cação. À medida que os manifestantespassavam, os comerciantes baixavam asportas das lojas em solidariedade. Umdeles foi Sérgio Miranda, proprietáriode uma revenda de defensivos agrícolas.“Nessa região, não temos problema comgrilagem de terrenos ou terras devolu-

tas. Muitos títulos de propriedade re-montam ao fim do século XIX ou à pri-meira metade do século passado”, diz,em defesa dos clientes.

Mais equilibrada, a jornaleira ZildaMaria Leal busca uma solução concilia-tória: “Tem de ser justo para os dois la-dos, os índios também têm direito às ter-ras”. Já o bispo de Dourados, dom Redo-vino Rizzardo, chegou a engrossar as fi-leiras dos encontros promovidos porprodutores rurais. “Não se pode corrigiruma injustiça com outra. Demarcar semindenizar os proprietários é punir quemadquiriu a terra legalmente”.

Boa parte do temor da população re-side na área que a demarcação poderiaabranger. Pelas rodovias de acesso às ci-dades de Dourados e Amambai, é possí-vel ver o enorme outdoor patrocinadopela Famasul contra a demarcação, comum terço do território estadual seccio-nado como a provável área de demarca-ção. É o terreno total dos 26 municípiosque são alvo dos estudos antropológicos:12 milhões de hectares.

O número foi divulgado pela imprensalocal como o território oficial da demar-cação. “Não tem fundamento, isso inclui-ria centros urbanos. Somente os estudosvão revelar a área passível de demarca-ção, mas a toda hora tiram um númeroesdrúxulo da cabeça. Eram 12 milhões dehectares, agora são 3 milhões”, esbravejaMárcio Meira, presidente da Funai.

Na tentativa de apaziguar os ânimoscom os proprietários rurais, Meira selouum acordo com o governador André Puc-cinelli (PMDB). “Aceitamos o compro-misso de publicar uma instrução norma-tiva para explicar a forma de atuação dosgrupos de trabalho, além de abrir a pos-sibilidade de o governo estadual contri-buir nesses estudos e fomentar um diá-logo sobre as indenizações. Por lei, aUnião só deve ressarcir as benfeitorias,mas podemos encontrar um caminho ju-rídico para indenizá-los também pelasterras, via governo do estado.”

Os grupos de estudo seguem fazendoos levantamentos antropológicos nas al-deias, antes de iniciar as visitas em fazen-das e concluir os relatórios. “Até lá, se oclima não melhorar, será necessário mo-bilizar escolta armada para as equipes,

que já são alvos de perseguição por pica-pes de fazendeiros”, conta Margarida Ni-coletti. Ela própria se inscreveu no pro-grama de proteção da Secretaria Especialde Direitos Humanos da Presidência daRepública. “Já recebi muitas ameaças.Muitos fazendeiros não têm pudores deintimidar quem quer que seja.”

Quem sentiu parte dessa tensão foi Ja-mes Anaya, relator especial da Organi-zação das Nações Unidas para os Direi-tos e Liberdade dos Povos Indígenas. Emvisita a Dourados, onde foi verificar de-núncias de assassinatos e suicídios, nofim de agosto, Anaya viu-se forçado amodificar a agenda para receber os pro-dutores rurais numa audiência. Isso por-que 500 fazendeiros cercaram o auditó-rio onde ele se reunia com lideranças in-dígenas e ameaçaram invadir a sala. APolícia Federal teve de pedir reforçospara garantir a segurança do diplomata.

A despeito dos exageros, é legítima apreocupação dos produtores rurais como processo de demarcação das terras in-dígenas e as conseqüentes desapropria-ções. Mas, talvez, a busca de uma solu-ção definitiva para esses problemas fun-diários possa trazer ao Mato Grosso doSul a tão sonhada estabilidade jurídicaque os proprietários reivindicam há aomenos três décadas. ■

INTIMIDAÇÃO Funcionários da Funai e antropólogos dos grupos de trabalhosentem-se ameaçados com as picapes de fazendeiros que os perseguem

TUTELA. “Adoraria adotar uma família indígena”

JUSTIÇA. “Não é correto punir os produtores”

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