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Fazer de Soldadinho Trabalho Dos ACSs

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Agente Comunitário de Saúde, ACS, Programa saúde da família. O texto relata sobre o fazer real desses agentes a partir de pesquisa empírica.

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  • v. 42, n. 1, pp. 41-50, jan./mar. 2011

    PSICOPSICOFazer de soldadinho: as dificuldades no trabalho

    de agentes comunitrios de sade

    Viviane Milan Pupin Crmen Lcia Cardoso

    Universidade de So Paulo Ribeiro Preto, SP, Brasil

    RESUMO

    Este artigo analisa as concepes das dificuldades no trabalho descritas por Agentes Comunitrios de Sade (ACSs), a partir de onze entrevistas abertas realizadas com ACSs trabalhadores de Ncleos de Sade da Famlia da cidade de Ribeiro Preto. Atravs da anlise temtica de contedo quatro temas foram levantados, a saber: relacionamento com os usurios, relacionamento com a equipe, falta de recompensa e residir na rea. Tais temas foram descritos e analisados a partir de tericos da sade coletiva. Ressalta-se que mudanas significativas nas prticas em sade vm sendo conquistadas a partir da insero dos ACSs no Programa Sade da Famlia (PSF), mas faz-se necessrio repensar caractersticas de seu trabalho, buscando potencializar a criatividade e a valorizao do trabalho dos ACSs na equipe de sade.

    Palavras-chave: agentes comunitrios de sade; programa sade da famlia; psicologia da sade.

    ABSTRACT

    A soldiers work: difficulties in the work of community health agents

    This study analyzes the concepts of Community Health Agents (CHAs) concerning the difficulties of their work, through eleven open interviews performed with CHAs working at Family Health Units in the city of Ribeiro Preto. Through thematic content analysis, the following four themes arouse: relationship with users, relationship with the team, lack of rewards, and living in the surrounding area. The themes were described and analyzed based on collective health framework. It is emphasized that significant changes in the health practice have been achieved from the insertion of CHAs in the Family Health Program, but it is necessary to rethink characteristics of their work, with the aim to strengthen creativity and value the CHAs work in the health team.

    Keywords: community health agents; family health program; health psychology.

    RESUMEN

    Hacer de soldadito: las dificultades en el trabajo de agentes comunitarios de salud

    Este artculo analiza las concepciones de las dificultades en el trabajo descritas por Agentes Comunitarios de Salud (ACSs), a partir de once entrevistas abiertas realizadas con ACSs trabajadores de Ncleos de Salud de la Familia de la ciudad de Ribeiro Preto. A travs del anlisis temtico de contenido cuatro temas fueron levantados, a saber: relacin con los usuarios, relacin con el equipo, falta de recompensa y residir en el rea. Tales temas fueron descritos y analizados a partir de tericos de la salud colectiva. Se resalta que cambios significativos en las prcticas en salud vienen siendo conquistados a partir de la insercin de los ACSs en el Programa Salud de la Familia (PSF), pero se hace necesario volver a pensar caractersticas de su trabajo, buscando potenciar la creatividad y la valorizacin del trabajo de los ACSs en el equipo de salud.

    Palabras clave: agentes comunitarios de salud; programa salud de familia; psicologa de la salud.

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    INTRodUo

    o Programa de Agente de Sade teve incio no Cear e foi uma tentativa de fixar profissionais da sade em locais sem recursos econmicos e sociais, atendendo recomendaes da organizao Mundial de Sade de criar opes viveis para amenizar os problemas de sade da populao (Silva, 1997). A expanso da insero do Agente de Sade para todo o pas d-se atravs da criao, em 1991, do Programa Nacional de Agentes Comunitrios de Sade, sendo responsabilidade dos enfermeiros o acompanhamento e profissionalizao do Agente de Sade (Silva, 1997).

    Atualmente o Agente Comunitrio de Sade (ACS) compe juntamente com mdico, enfermeiro e auxiliares de enfermagem a equipe mnima do Programa de Sade da Famlia (PSF), que tem como foco principal oferecer aes de preveno da doena e promoo da sade aos indivduos e famlia, de forma integral e contnua, ao contrrio do modelo tradicional centralizado na doena e no hospital, que privilegia aes curativas e uma medicina de alto custo (Brasil, 2000).

    Segundo o Ministrio da Sade (Brasil, 1998), o Programa de Sade da Famlia tem os seguintes princpios: atuar em carter substitutivo das prticas convencionais de assistncia sade, caracterizando-se como porta de entrada do sistema local de sade e visando integralidade e hierarquizao compondo o primeiro nvel de aes e servios no sistema de sade, garantindo o acesso a outros nveis de maior complexidade e responsabilizando-se pelo acompanhamento dos indivduos e famlias em todo o processo de referncia e contrarreferncia; territorializao e adscrio de clientela, atuando numa rea especfica e, consequentemente, favorecendo o estabelecimento de vnculos com a comunidade e possibilitando o compromisso e a co-responsabilidade tanto da equipe quanto da comunidade. A recomendao de atuao em equipes multiprofissionais, sendo que cada uma deve ficar responsvel por uma rea onde residem entre 600 a 1.000 famlias, com limite mximo de 4.500 habitantes.

    o ACS tem como atribuio o exerccio de atividades de preveno de doenas e promoo da sade, mediante aes domiciliares ou comunitrias, individuais ou coletivas, desenvolvidas em conformidade com as diretrizes do SUS (Brasil, 2006). Uma caracterstica peculiar dos Agentes Comunitrios de Sade (ACSs) o fato de pertencerem comunidade em que trabalham e no terem exigncias de um conhecimento tcnico especfico prvio para o exerccio da profisso. Pertencer comunidade pressuporia familiaridade com

    os problemas da mesma, o que permite realizar aes de educao em sade, identificao de fatores de adoecimento e proposio de estratgias mais eficazes, resultando, consequentemente, numa maior eficincia de aes e conquista de confiana dessa comunidade (Nunes, Trad, Almeida, Homem e Melo, 2002).

    Atualmente so exigncias para tornar-se ACS residir na rea em que ir atuar, ter o Ensino Fundamental Completo e concluir com aproveitamento o curso introdutrio de formao inicial e continuada (Brasil, 2006). o fato dos ACS conviverem com a realidade e as prticas de sade do bairro onde moram e de trabalharem e serem formados a partir de referenciais biomdicos os fazem veculos de contradies e, ao mesmo tempo, permiti-os realizar um diagnstico profundo entre esses dois saberes e prticas. Sendo assim, Nunes et al. (2002) levantam a hiptese do ACS ter um papel hbrido e polifnico, possuindo uma posio estratgica de mediador entre a comunidade e a equipe de sade, servindo, ora como facilitador, ora como empecilho nessa mediao.

    Ainda sobre a atuao do ACS, Silva e dalmaso (2006), identificam duas dimenses principais de atuao dos ACS: uma mais tcnica, relacionada ao atendimento aos indivduos e famlias, relacionada interveno para a preveno dos agravos ou para o monitoramento de grupos ou problemas especficos e outra atuao mais poltica, no apenas de solidariedade populao e da insero da sade no contexto geral da vida, mas tambm no sentido de organizao da comunidade e de transformao das condies de sade.

    Silva e dalmaso (2006) apontam alguns desafios para o saber fazer e saber ser agente comunitrio, den-tre eles: a enorme variedade de contexto, exigindo flexibilizao em sua operao e nos processos e me- todologias de preparao de pessoal; a amplitude das finalidades do Programa, exigindo ora uma vertente mais assistencial e de vigilncia e ora de promoo de sade e qualidade de vida; o desenvolvimento de tecnologia de trabalho adequada s necessidades; o trabalho em equipe; a identidade do agente, compondo dimenses tcnicas e polticas do trabalho e a necessi-dade de uma formao adequada dos profissionais da sade da famlia. o trabalho, assim, pode constituir-se como fonte de desgaste pelas condies de trabalho e por fatores organizacionais, tais como: funo exer-cida, condies hierrquicas, distribuio de respon- sabilidades, relacionamentos interpessoais e a interface trabalho-famlia (Arantes e Vieira, 2002).

    o artigo tem por objetivo analisar as dificuldades apontadas por ACSs em relao ao seu prprio tra- balho.

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    MTodo

    Trata-se de estudo qualitativo de natureza exploratria, aprovado pelo Comit de tica em Pesquisa do Centro de Sade Escola da Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto USP protocolo n 0203/CEP/CSE/FMRP-USP.

    Participaram do estudo onze ACSs que trabalhavam, a pelo menos um ano, em Ncleos de Sade da Famlia vinculados Faculdade de Medicina de Ribeiro Preto USP e que foram selecionados a partir de sorteio aleatrio. os dados foram coletados atravs de entrevistas abertas que tinham como disparador o tpico ser Agente Comunitrio de Sade. Para tanto, utilizou-se o mtodo proposto por Figueiredo (1998). os participantes foram entrevistados no seu local de trabalho e aps lerem e assinarem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

    As entrevistas duraram cerca de trinta minutos, foram gravadas em udio e transcritas ipsis litteris pela pesquisadora. Foi realizada anlise temtica de contedo (Bardin, 1977) e a apresentao dos resultados se deu atravs de fragmentos dos discursos dos ACSs. Atravs de leituras exaustivas e da categorizao dos contedos, quatro temas foram levantados relacionados s dificuldades descritas pelos ACSs na realizao de seu trabalho, a saber: relacionamento com os usurios, relacionamento com a equipe, falta de recompensa e residir na rea. A anlise foi realizada a partir do dilogo com autores da Sade Coletiva tais como: Schraiber e Mendes-Gonalves (1996), Merhy et al. (2007), Gomes, Pinheiro e Guizardi (2005), dentre outros.

    RESULTAdoS E dISCUSSo

    Relacionamento com os usuriosSegundo os ACSs, trabalhar com os usurios

    envolve estar em contato com costumes, crenas e concepes de mundo diferentes das do ACS. Estar em contato direto com os usurios implica estar em contato com diferentes problemas e situaes adversas vividas pela comunidade, sendo o mesmo descrito como difcil pelo grande nmero e pela diversidade de problemas com que o ACS lida e, principalmente, pelo fato de que o ACS tambm tem os seus problemas pessoais que, por vezes, podem ser semelhantes ao que o usurio vivencia.

    Mesmo que como no meu caso, que sou agente comunitria no meio vamos dizer , de pessoas que so excludas do normal da sociedade. So pessoas, como eu trabalho apenas no interior da favela.

    Ento, isso tem n impedimentos. desde a falta de informao, at a opresso social, n, opresso at dos responsveis que no encontram sada pra esses problemas difceis e que vo se tornando cada vez maiores, n. (ACS6)

    Voc t lidando com emoes, voc ta lidando com problemas, coisas que as pessoas dizem podem at estar acontecendo com voc, ou j terem acontecido. Ento, muito difcil voc ter essa distncia tima. Mas tem que pelejar pra manter isso a, seno vira baguna. (ACS10)

    o contato com aspectos ntimos da vida do usurio faz com que o ACS vivencie as dificuldades e problemas dos usurios se posicionando enquanto um membro da sua famlia, ressaltando, novamente, a complexidade de se estabelecer a referida distncia tima (sic).

    E tem muitos problemas que s vezes a gente vai, a gente at fica triste, preocupada de t resolvendo esses problemas. E muitas vezes difcil porque a gente tem um, nem tudo pode ser resolvido assim momentaneamente [...]. J tive casos de um senhor que tomava mais de um litro de pinga por dia e agora j t fazendo dois meses, ele no t tomando [...]. Eu fico contente, t com cabelinho cortado, fez a barba dou um abrao, um beijinho nele. E as meninas menos! Menos!. Falei no, mas a verdade, o que acontece. E pra mim como se eu tivesse, ai, se fosse um parente meu, se fosse algum meu. (ACS3)

    Alm disso, o ACS envolve-se nas dificuldades vivenciadas pelas famlias usurias do servio a ponto disso refletir em suas prprias vivncias familiares causando um impacto na rotina familiar pessoal.

    Tem dia, que dependendo da visita que voc faz, voc sai daqui bastante carregada mesmo. Voc t ali s vezes almoando e jantando, sabendo que aquela famlia tem criana pequena e no tem o que comer. Ento, isso muito, na hora voc lembra e voc at perde o apetite. Ento, tem dia que a gente sai daqui bem sobrecarregada [...]. E, e a, cada vez que a gente v que eles conseguiram uma cesta, ou conseguiram um emprego, alguma coisa, isso que gratificante. A gente fica, se fortalece um pouco, n. Mas tem dia que no fcil no. A gente se frustra. Porque dependendo do trabalho, dependendo do que a pessoa, do que a famlia t precisando, a gente no sabe como, como, onde recorrer, no depende s do PSF. depende de outras pessoas,

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    que s vezes o negcio meio devagar. Ento, a gente fica meio assim, nossa, no consegui fazer nada por aquela famlia, n. Mas eu acho que s da gente ir l conversar, tentar ajudar, junto com eles pensar numa soluo, isso j t sendo de uma grande ajuda pra eles, n. (ACS7)

    Schraiber e Mendes-Gonalves (1996) apontam que pelo fato dos profissionais da sade lidarem com o sofrimento humano um distanciamento torna-se necessrio para evitar reaes de pnico ou o imobilismo diante da dor do outro. Tendo em vista a complexidade da questo do envolvimento na relao ACS-usurio, acredita-se ser necessrio que o ACS tenha suporte para que possa lidar com os envolvimentos emocionais inevitveis ao relacionamento humano, de tal forma que possam ser elaboradas as prprias angstias e recuperada a capacidade de ajuda ao outro. Faz-se necessrio, assim, estabelecer espaos de reflexo, onde se construa um novo fazer pautado pela responsabilizao, implicao e a possibilidade de seguir junto na adversidade e no sofrimento.

    A proximidade com o usurio, propiciada principalmente nos momentos de visita domiciliar, faz com que o ACS se envolva com as dificuldades dos usurios e se sinta o responsvel por resolv-las. Porm, as necessidades dos usurios podem fugir do mbito de atuao do ACS e envolver, inclusive, aes intersetoriais, causando no ACS um sentimento de impotncia e o desejo de se ter um arsenal tcnico especializado aqui entendido como ter capacidade de realizar intervenes pautadas pelo conhecimento biomdico e, assim, poder solucionar os problemas dos usurios.

    Entretanto, estar imbudo do arsenal tcnico pode gerar expectativas de possuir o saber intervir em situaes angustiantes atravs de um protocolo o que pode amenizar o sentimento de impotncia diante do imprevisvel e, ao mesmo tempo, ter a certeza de fazer o que se recomenda para cada situao. Nesse sentido, cabe refletir quo angustiante e complexo considerar-se desprovido de tecnologias leve-duras e duras (Merhy et al., 2007) e deixar emergir o espao relacional usurio-trabalhador e acompanhar o outro nas suas vivncias, estando receptivo para acolher o seu sofrimento. Sendo assim, o estabelecimento de vnculo por meio do convvio do ACS com a comunidade apesar de muito valorizado pelas consequncias favorveis que produz, por outro lado pode gerar sentimentos de impotncia, de cansao, sofrimento e desgaste nos ACSs, o que corrobora os estudos de Azambuja et al. (2007), oliveira e Spiri (2006) e Trap e Soares (2007).

    outra dificuldade descrita a partir do relacionamento com o usurio implica em lidar com resistncias por parte do usurio quanto ao acesso a seu mundo privado resultando diferenas de receptividade aos ACSs no momento das visitas domiciliares.

    Porque, assim, tem todos os tipos de receptividade. Tem aqueles que te recebe muito bem, quer que a gente entra, quer que conversa, quer que demora. E j tem aqueles que despacha rapidinho. Ento, assim, tem famlias receptivas e aquelas no. A, muitas vezes eu pergunto: voc no obrigado a t me recebendo. Se voc no quiser, eu posso t te trazendo um papel pra depois.. No. Eu quero que voc continua a t vindo aqui. S que hoje, por exemplo, eu t com pressa. Ento, assim, tem essas coisas tambm que a gente, que a gente enfrenta. (ACS3)

    Estar em contato com a diferena implica respeitar o limite do outro quanto sua abertura para o contato interpessoal. Porm, por ser o estabelecimento do vnculo com o usurio um dos objetivos do trabalho do ACS, no entrar na casa do usurio significado pelo ACS como uma barreira proximidade entre ACS e usurio e transpor essa barreira visto como indcio de que o vnculo entre usurio e ACS est sendo estabelecido e, portanto, o ACS est cumprindo um dos objetivos do seu trabalho.

    Ao mesmo tempo em que entrar no universo privado indcio de que um vnculo foi estabelecido, tambm descrito como gerador de angstias na medida em que o ACS no sabe o que pode encontrar durante a visita, ou seja, o trabalho de realizar visitas domiciliares permeado pela imprevisibilidade.

    o fato dele ir na casa da pessoa ele j t se expondo. Porque, voc sabe, tem todo tipo de gente. E voc tem que ir. Entendeu? s vezes voc chega e encontra, assim n, um momento no muito agradvel. E voc chegou e no tem como sair. Voc tem que ficar, sei l, so vrios, onde eu te falo da flexibilidade. onde a gente at, s vezes a gente at, j aconteceu comigo, eu, a minha presena provocar um conflito. (ACS4)

    Mendes (1995) aponta que o trabalho em sade marcado pela imprevisibilidade quanto presena do agravo e aos resultados que podem ser obtidos. Tal conceito de imprevisibilidade estende-se para o mbito das relaes, ou seja, na realizao de visitas domiciliares os ACSs lidam com o imprevisvel, no sabem o que iro encontrar em cada visita realizada.

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    Sendo assim, cabe refletir sobre o quanto o atendimento no setting dos servios de sade constitui-se num espao diferenciado do universo privado do usurio, ou seja, quando o usurio vai at o servio de sade pode deixar em casa boa parte das vivncias pessoais que considera no pertinentes de serem reveladas no espao da clnica, como, por exemplo, conflitos e angstias. J o espao de trabalho do ACS a residncia do usurio exatamente o lugar onde essas vivncias pessoais ficam resguardadas, ou seja, o ACS pode ter contato com experincias que no so levadas pelo usurio no atendimento em sade na Unidade de Sade. Estar em contato com as vivncias dos usurios que no se manifestam no espao clnico podem ser de extrema relevncia para o trabalho da equipe de Sade da Famlia ao possibilitar um olhar ampliado para o usurio, mas cabe ressaltar que entrar em contato com essas vivncias pode ser extremamente angustiante ao ACS por no saber como lidar com essas situaes.

    Reitera-se, assim, a necessidade de espaos de reflexo e discusso que levem em considerao essas diferentes situaes, instrumentalizando o ACS para o enfrentamento das dificuldades encontradas no trabalho. Tais espaos teriam como foco as dificuldades enfrentadas pelos agentes no lidar com as famlias e no as questes biomdicas ou psicossociais especficas vivenciadas pelas famlias visitadas, como usualmente acontece.

    Relacionamento com a equipeA Sade da Famlia tem como pressuposto que o

    trabalho se desenvolva em equipes multiprofissionais. Um dos espaos efetivos de atuao em equipe so as reunies multiprofissionais nas quais discute-se casos de famlias adscritas rea de abrangncia da equipe. Em tais reunies o ACS compartilha informaes obtidas nas visitas domiciliares e a equipe como um todo deve levantar as necessidades em sade de tais famlias, pensar formas de satisfaz-las e constituir-se enquanto apoio ao trabalho do ACS. o trabalho em equipe, portanto, um dos pilares do PSF.

    Entretanto, algumas descries dos ACSs apontam para falta de apoio da equipe de sade ao trabalho realizado por ele. dificuldades na atuao enquanto equipe so apontadas como empecilhos para a realizao de um trabalho conjunto, permeado pela confiabilidade, transparncia e ajuda mtua.

    [com a equipe] tem suas barreiras. s vezes voc consegue falar muito bem com um da equipe, com o outro voc no consegue. s vezes o que voc pensa, as ideias no batem. Mas, assim, com isso a gente vai aprendendo, n. E vai tentando, se no

    der de um jeito, a gente tenta de outro. Com, igual, em qualquer lugar, s vezes no trabalho, voc consegue trabalhar com umas pessoas e com as outras no, n. (ACS2)

    Quando voc procura voc encontra, mas no que t disponvel, que eu quero, sabe, assim, quando, s vezes quando eu t muito angustiada eu sento com [cita o nome de um membro da equipe], me abro, falo, choro, brigo, e falo! Mas assim, no que tem esse canal. Eu consigo isso, mas as outras meninas j no conseguem, entendeu? Ento, e o fato, assim, nem todo mundo a gente confia, n, pra t falando, expondo. (ACS2)

    A equipe descrita pelos ACSs como um conjunto de pessoas que possuem afinidades entre si, ou seja, no se aponta a interdisciplinariedade como fator constitutivo de um bom trabalho em equipe, mas sim a afinidade e a amizade entre seus membros. Sendo assim, questes pessoais interferem no trabalho em equipe podendo, inclusive, impedir tal trabalho. A ajuda ao enfrentamento de situaes complexas no cotidiano do trabalho do ACS no se constitui uma ao coletiva, mas deve ser uma busca pessoal por colegas de trabalho pelos quais o ACS sente confiana. Sendo assim, uma fragmentao da equipe ocorre, na medida em que se elegem membros confiveis e outros que no so. Considera-se que para alm de afinidades e amizades entre os profissionais da equipe, o cuidado ao usurio deve ser o foco do trabalho, viabilizando, independentemente de afinidades, um trabalho conjunto em prol do usurio.

    Gomes et al. (2005) usam a metfora da orquestra para pensar o trabalho em equipe, ou seja, consideram que o agir dos profissionais de sade de uma equipe, assim como o dos msicos de uma boa orquestra que trabalham em harmonia, deve ser um agir em concerto. Sendo assim, apontam a necessidade de superar a fragmentao atual presente no trabalho em equipe no atravs da homogeneizao de prticas e saberes, mas garantindo a presena das especificidades relativas aos campos de saber profissionais a favor de um objetivo comum o usurio. o trabalho - sinfonia s ocorre com a presena de todos, mesmo que em alguns momentos determinados instrumentos se sobressairo.

    A partir dos relatos dos ACSs infere-se que o trabalho em equipe um grande problema no PSF, dificultando a realizao de um trabalho usurio-centrado. A articulao das aes e interaes dos profissionais baseadas na tica e no respeito, construindo um trabalho-sinfonia parece s ser possvel atravs de amizade e afinidades entre os profissionais, j que

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    aspectos pessoais acabam penetrando e impedindo a realizao de tal trabalho, uma vez que as interaes pautadas pela confiana, pelo respeito e pela tica no ocorreriam entre todos os profissionais, mas entre aqueles que possuem afinidades entre si.

    Como o trabalho em equipe e a possibilidade de ajuda mtua so marcados por falhas, descreve-se a necessidade do apoio de outros profissionais que no os que compem a equipe de Sade da Famlia.

    Fora que a gente tem que ter uma retaguarda, n, vamos dizer, psicolgica pra tudo isso que a gente enfrenta. Porque, embora os outros profissionais da equipe , tambm sejam responsveis e visitem famlias e os atendam aqui no ncleo, e tem tambm o seu grande, a sua grande dose de boa vontade, de idealismo e de querer construir tambm, mas o contato no to estreito como o nosso. Que alm de ter contato da comunidade por morarmos aqui, tambm da visita da gente nas casas. (ACS6)

    Ento, eu acharia que a gente tinha que ter uma superviso. Uma psicloga com a gente pra bater um papo. Porque na discusso de famlia, por mais que voc fala, parece que no te alivia. Voc vem com o peso. (ACS8)

    E, assim, eu acho que tambm tem que ter um suporte pra gente, no fato assim... de ensinamento mesmo, sabe, assim, de ter cursos pra gente t se especializando... ... um psiclogo pra dar um suporte pra gente, porque difcil, bem complicado. Porque eu at consigo assim, separar... assim, os problemas daqui com os problemas de l, da eu no costumo levar muitos problemas daqui pra minha casa. Porque n... a gente tem que tentar fazer isso, mas s vezes voc leva. Um ou outro voc acaba levando. Ento a gente acha... acho que devia ter algum pra dar um suporte pra gente. (ACS2)

    Pelo contato ntimo entre ACSs e usurios atravs das visitas domiciliares, os ACSs apontam ser necessrio um suporte emocional, no contemplado nas reunies de equipe. A superviso externa, portanto, aparece descrita como forma de auxiliar o ACS no enfrentamento de situaes vivenciadas na realizao do seu trabalho. Alm do suporte psquico, um suporte mais tcnico tambm descrito como necessrio cursos visando uma especializao do ACS.

    Cabe ressaltar que o ACS enfrenta no seu trabalho situaes que o colocam diante de um no saber que angustia, fazendo com que os mesmos descrevam a

    necessidade de especializao profissional como forma de tornar seu trabalho mais resolutivo. o ACS d ao saber o poder de resolver os problemas. Acredita-se que a especializao do ACS, por sua vez, descaracterizaria o ACS enquanto um membro da comunidade, tornando-o mais um profissional da sade especializado e, consequentemente, perdendo o seu potencial de agente poltico junto sua prpria comunidade ao deixar de realizar o que Silva e dalmaso (2006) descrevem como sendo o trabalho de mobilizao da comunidade no sentido de se organizarem enquanto tal e lutarem por transformaes das suas condies de sade.

    Falta de recompensao ACS, conforme j mencionado, pertence

    comunidade em que trabalha e precisa ter, no mnimo, concludo o Ensino Fundamental. Sua insero no Nordeste significou, inclusive, uma oportunidade de emprego e gerao de renda para inmeras pessoas (Silva, 1997). Atualmente o ACS recebe um salrio mnimo por quarenta horas de trabalho semanais, podendo contar, em alguns municpios, com benefcios e gratificaes.

    o ACS descreve uma desvalorizao do seu trabalho atravs da remunerao, ou seja, a valorizao do seu trabalho contemplaria uma remunerao maior do que a que recebem.

    E assim, eu acho que tambm, assim... a gente se sente... ... mal remunerado, porque muito pouco, a gente v pessoas na... dentro da nossa rea ganhando muito, sendo que a gente tem um servio pesado, entendeu? E a a gente muito mal remunerado. Isso tudo eu acho que tem que ser visto. (ACS2)

    A gente no to bem remunerado, como eu acho que pela, pelas responsabilidades que ns temos. Cuidar de hipertenso, cuidar de diabtico, correr atrs de criana, de, de inmeras tarefas que ns temos. Ento, eu acho que a remunerao nossa no de acordo [...]. Que s vezes a gente no fica, no tem estmulo pra trabalhar. Isso eu acho que prejudica um pouco o servio. (ACS5)

    o nosso salrio, por exemplo, uma coisa que no condizente com o nosso trabalho e nem com os desgastes que a gente tem, n, ento, por exemplo, no vai exigir hoje, que um mdico contratado aqui, n, que ele v querer ter o sonho de ser um mdico de sade da famlia a vida toda, n, ele pode querer melhorar, at se ele melhorar normal e a gente entende, n? Ento eu acho que essas coisas

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    que tornam difcil. Que o nosso salrio realmente desestimulante, n, vamos dizer. Por exemplo, as pessoas at ficariam agentes, desde que o salrio compensasse, n. Ns no podemos esperar que um jovem, n, que esteja ainda se formando, construindo uma carreira, v se contentar com um salrio que dez por cento do salrio da enfermeira, por exemplo. (ACS6)

    Avaliando a discrepncia entre trabalho e salrio, o ACS compara o seu salrio com os de outros profissionais da rea da sade e recorre ao discurso biomdico, ou seja, cita como suas responsabilidades o cuidado ao hipertenso, ao diabtico e s crianas para dizer da importncia do seu trabalho. A falta de uma remunerao condizente com o trabalho realizado descrita como desestimuladora, justificando, portanto, o desinteresse dos profissionais da sade por continuar trabalhando no Programa Sade da Famlia. Sendo assim, o PSF caracteriza-se tambm como porta de entrada para o trabalho na rea da sade e para jovens profissionais no seria uma proposta de vida, sendo que sair do PSF descrito pelos ACSs como querer ascender na carreira. Nesse sentido, deve-se repensar o vnculo preconizado entre profissional da sade e usurio, ou seja, naturalizando a rotatividade de profissionais da sade no PSF, tal vnculo acaba sendo rompido, devendo ser re-estabelecido com cada novo profissional no servio, criando um crculo infindvel vnculo rompimento novo vnculo.

    H tambm uma desvalorizao do trabalho do ACS pela ausncia de perspectivas futuras para progresso na carreira. Nesse sentido, o trabalho de ACS constituiria primeira via de acesso ao trabalho em sade.

    At um tempo atrs a gente no tinha ticket. E as meninas s tinham salrio. Eu entrei aqui depois que o ticket veio, n. Ento, a gente t assim, indo atrs, porque o agente comunitrio uma figura muito importante, entendeu? No s o salrio. A gente t querendo curso, a gente t querendo subir. Subir assim, em aspas. Curso pra, pro, como que eu vou dizer, pra agente mesmo. Pra um aprendizado a mais pra gente. Porque a gente vai ser comunitrio o resto da vida? um aprendizado da gente, entendeu? (ACS8)

    A questo salarial parece discrepante dentro da equipe e tal discrepncia pode gerar sentimentos de competio e revolta que podem dificultar ainda mais a realizao de um trabalho em equipe. Cabe refletir se a necessidade por parte dos ACSs de um saber mais

    tcnico no est pautada no fato dos profissionais com melhores remuneraes terem tais saberes. Sendo assim, possuir um saber tcnico alm de garantir uma melhor remunerao ampliaria a valorizao do trabalho do ACS para alm do seu carter assistencial.

    os ACSs apontam uma contradio entre o que se fala sobre o trabalho e a importncia do ACS e sobre sua participao nos resultados do trabalho. Tais resultados so valorizados e exibidos enquanto forma de divulgar a capacidade do PSF, mas ao se fazer isso no se explicita a parcela de trabalho do ACS responsvel pela ajuda na conquista desses resultados.

    Conforme chega e que voc vai lapidando, lapidando, n, a situao, quer dizer, ele que trouxe o grosso l. Um lapida, um lapida e outro lapida s que no final o agente j sumiu. os resultados aqui [mostra com as mos uma parte mais elevada e outra mais baixa. Nesse momento aponta o aqui dito na parte elevada] excelentes, bom, refinados, bonitinhos. Mas, cad o agente? [aponta para a mo que estava numa posio mais baixa]. A, eu me sinto assim, pequenininha, desvalorizada. Sendo que voc gastou, se empenhou. sua vida, sua dedicao. Porque eu acho que a gente trabalha muito em cima disso, entendeu? [...]. Eu acho que no valorizado. Mesmo dizendo todos: no, porque o agente... tudo com a minha agente. S que no fundo voc percebe que o agente s um agente, entendeu? Eu falo, um soldadinho que tem que ir pro campo, chova ou faa sol, e nada mais que isso. Sabe? trabalho mesmo a que, vamos supor, mo de obra que voc sabe que no isso da. uma coisa muito delicada que voc lida. (ACS4)

    Nesse sentido, o ACS descreve-se enquanto um trabalhador responsvel pelo trabalho bruto de lapidar, ou seja, ele que entra em contato com o que est no universo privado do outro e traz para a equipe o lapidado, isto , sem as sujeiras aqui entendidas como os choros, os sentimentos, os sofrimentos apenas o produto final e de interesse como resultado para a sade entendida de forma biomdica. Nesse processo de lapidao o trabalhador braal desaparece junto com o que descartado. o soldadinho (sic) aparece a como quem deve estar frente da batalha, lutar e arriscar sua vida para um superior ser condecorado pelos resultados.

    Residir na reaConforme j descrito, a peculiaridade do ACS

    reside no fato do mesmo ter que ser membro da

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    comunidade para a qual ir trabalhar, ou seja, o ACS deve ser morador da rea de abrangncia do PSF. Tal exigncia facilitaria o reconhecimento das necessidades da comunidade pelo ACS, facilitaria a conquista de confiana dessa comunidade e permitiria ao ACS lutar por direitos e necessidades as quais ele compartilha (Nunes et al., 2002).

    Morar na rea em que atuam descrito como problema na medida em que no h uma separao entre o ACS enquanto trabalhador durante seu horrio de trabalho e o ACS enquanto morador e fora do horrio de trabalho.

    Ao mesmo tempo que isso bom pro seu trabalho, , pra sua vida pessoal atrapalha. Porque voc sai na rua, ou algum sabe aonde voc mora, vrias pessoas j foram na minha casa me procurar, ou me ligaram, acharam o meu telefone na lista e me ligaram [...]. E chorava no telefone e eu no sabia o que fazer com a pessoa. Falar assim olha, me liga segunda-feira no meu horrio de servio? Eu no posso fazer isso. Eu t trabalhando vnculo com essa pessoa e ento eu no posso ser rspida desse jeito [...]. Porque muito complicado [...]. Se acontece alguma coisa desagradvel na sua casa, ou at mesmo na casa de algum, eles vem te contar. ou vem te visitar. Que nem um evento, que minha irm faleceu e veio, foi um monte l em casa. At interessante porque as pessoas me consideram uma amiga, n, a ponto de t indo na minha casa. Mas ao mesmo tempo, voc no obrigada, n, porque os amigos a gente pode escolher, n. No a mesma coisa que o trabalho, que a gente tem que fazer aquilo e acabou. (ACS10)

    Morar na rea descrito como forma de conhecer a comunidade e estabelecer um vnculo com ela. A questo poltica do ACS ser membro da comunidade em que trabalha e ter a possibilidade de lutar por direitos e necessidades que, muitas vezes, so compartilhados pelo mesmo no apontada. Residir na rea em que atua considerado uma exposio ruim, ou seja, uma perda de seu espao e tempo privado na medida em que difcil para o ACS ter um tempo livre dentro da sua comunidade j que sempre visto como ACS, mesmo em situaes fora do contexto do trabalho. Alm disso, por ter a necessidade de estabelecer um vnculo com a comunidade, ele se sente na obrigao de acolher as demandas do usurio no tempo livre e de aceitar amizades no escolhidas.

    Alm do fato de perder a privacidade, os ACSs apontam tambm como adversidades por morarem na rea, as dificuldades em encontrar residncias na

    delimitao da rea de atuao, justificando, para tanto, as especificidades do bairro e o aumento do preo do aluguel aps a cobertura da rea pelo Programa Sade da Famlia.

    , eu acho importante conhecer. Eu moro faz dezessete anos. Quando eu entrei no servio, eu era solteira. Agora eu t casada. Eu moro no fundo da minha me. A t, eu conheo a rea? Eu conheo. Faz um ano que eu t nesse servio, mas faz dezessete que eu moro [...]. eu no sei o meu dia de amanh, entendeu? Se eu vou ter condies de pagar um aluguel. depois que o ncleo veio pra c, os aluguel aqui subiu absurdamente [...]. Se um dia eu precisar mudar, porque? Porque eu quero construir famlia. Eu casei, eu quero ter filhos, eu quero ir pra frente [...]. Se eu sair fora da rea, eu vou perder o meu emprego? A meu ponto de interrogao. Ento, assim, a gente tem que conhecer, voc entendeu? Mas e do outro lado?[...]. Eu acharia assim, no atrapalhando o horrio de entrar no servio da gente, entendeu? Acho que no atrapalhando isso, acho que importante a gente conhecer. A gente morar bastante tempo pra gente conhecer. Mas a fica difcil, n. (ACS8)

    A exigncia de residir na rea parece ser imposta sem um espao para discusso e acaba no sendo significada pelos ACSs da mesma forma que foi proposta. Perde-se o carter poltico do trabalho do ACS uma vez que o residir na rea apontado como necessrio para conhecer a comunidade e cumprir os horrios de entrada e sada do trabalho. Tal exigncia perde seu carter de viabilizar o compartilhar as necessidades da comunidade, reconhecer suas potencialidades e estimular a luta pelos seus direitos.

    o ACS o profissional da sade descrito como elo entre a comunidade usuria do servio e a equipe de sade. o fato de residir na rea de abrangncia do PSF e de estabelecer um vnculo com os usurios muitas vezes apontado positivamente pela literatura. Concorda-se que tais estratgias so responsveis por importantes mudanas nas prticas em sade, mas acredita-se que residir na rea de abrangncia exige uma atuao direta com as diversas vivncias dos usurios que mobiliza o ACS e torna-se fonte de dificuldades na realizao do seu trabalho.

    CoNSIdERAES FINAIS

    dizer do ser Agente Comunitrio de Sade envolveu apontar as dificuldades que ACSs encontram na realizao do seu trabalho. Por tratar-se de um

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    profissional de insero recente, considera-se relevante o olhar para as diversas questes que podem dificultar a realizao desse trabalho e constituir fonte de desgaste para o profissional.

    Considera-se necessrio a construo de espaos de apoio efetivos visando a possibilidade de, em equipe, explicitar as dificuldades encontradas na realizao do trabalho no apenas do ACS, mas de toda a equipe, e pensar formas em que todos os profissionais da mesma pudessem se constituir enquanto fonte de apoio para essas dificuldades. Pensar o respaldo para a atuao profissional do ACS pensar na formao de uma equipe que acolha as angstias dos ACSs e, consequentemente, uma equipe facilitadora do trabalho de ajuda ao usurio. Nesse sentido, a construo de espaos de reflexo acerca das dificuldades enfrentadas pelos ACSs no cotidiano do trabalho, para alm dos espaos j institudos de reflexo acerca das famlias por eles visitadas, pode instrumentalizar o ACS na realizao de seu trabalho. Alm disso, o respaldo tambm envolve o repensar as prticas em sade, buscando a valorizao de todas as tecnologias em sade, desde as tecnologias relacionais at as intervenes tcnicas.

    Na medida em que o ACS aponta dificuldades na relao com a equipe, considera-se de ajuda um olhar externo, ou seja, de um profissional que no seja membro da equipe, mas que pode observar o funcionamento da mesma e apontar fatores que dificultem um relacionamento equipe-ACS consti- tudo por relaes de ajuda mtua. Alm disso, tal profissional pode ajudar na constituio de espaos reflexivos a respeito de alternativas que auxiliem na construo de um trabalho em equipe usurio-centrado, ou seja, um trabalho em que as relaes interpessoais entre os membros da equipe priorizem o cuidado ao usurio. Nesse sentido, considera-se que a criao pelo Ministrio da Sade dos Ncleos de Apoio Sade da Famlia (NASF) (Brasil, 2008) com o objetivo de atuar em parceria com os profissionais da Sade da Famlia pode ter o potencial de ajuda na reflexo de tais dificuldades. Ressalta-se, porm, a necessidade de estudos que possam investigar de forma sistemtica a relao estabelecida entre os NASF e o PSF visando potencializar essa parceria.

    Percebe-se, tambm, que a valorizao financeira atravs de uma remunerao considerada condizente com o trabalho que realizam ainda uma questo no resolvida. A valorizao do trabalho tambm perpassa a visibilidade do mesmo, ou seja, o ACS descreve seu trabalho como invisvel, comparando-o a de um soldado que enfrenta adversidades, lapida o que encontra no campo de batalha e leva para a equipe a pedra preciosa. Repensar as prticas do ACS e de toda a equipe do

    PSF, portanto, tambm perpassa a transformao de soldadinhos em profissionais visveis e valorizados pelo trabalho que realizam.

    Faz-se necessrio tambm a realizao de novos estudos que objetivem lanar um olhar para o trabalho do ACS a partir das concepes que usurios e profissionais tem a respeito desse trabalho. Alm disso, considera-se relevante uma anlise do trabalho do ACS a partir de observaes participantes de situaes do seu cotidiano no trabalho e acredita-se que a mesma possa complementar e enriquecer a anlise efetuada a partir das entrevistas.

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    Recebido em: 05/11/2009. Aceito em: 23/11/2010.

    Dados das Autoras:Viviane Milan Pupin doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Psicologia do departamento de Psicologia e Educao da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo FFCLRP/USP.Crmen Lcia Cardoso Professora doutora do departamento de Psicologia e Educao da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo FFCLRP/USP.

    Enviar correspondncia para:Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras FFCLRP/USP departamento de Psicologia e EducaoAv. Bandeirantes, 3900 Bloco 5 Sala 33-ACEP 14040-901, Ribeiro Preto, SP, BrasilE-mail: [email protected] [email protected]