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História: Questões & Debates, Curitiba, n. 36, p. 329-332, 2002. Editora UFPR FEITIÇO DECENTE Marcos Napolitano * SANDRONI, C. Feitiço decente. Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 247 p. Os estudos sobre a chamada “música popular brasileira”, em todas as suas variáveis estéticas, vêm se consolidando paulatinamente no meio acadêmico, sobretudo a partir de meados dos anos 80. Mas algumas difi- culdades teóricas e metodológicas ainda persistem, além da falta de comu- nicação das diversas áreas que estudam o tema. Uma das dificuldades é que o pesquisador que se aventurar nesta área e quiser fazer um trabalho consequente, deve transitar por várias disciplinas de artes e humanidades, na busca da definição do seu objeto e de sua abordagem. A musicologia, a história, a antropologia, a sociologia, a crítica literária, entre outras, con- vergem para o incremento dos estudos musicais, principalmente aqueles ligados ao universo cancionista urbano e comercial. Poucos pesquisadores, pouquíssimos mesmo, conseguem articular as várias contribuições destas áreas. Essa qualidade sobra em Carlos Sandroni, professor da UFPE, que não fosse um ensaista de mão-cheia, também é músico. O público de espe- cialistas e aficcionados em música popular pode tomar contato com sua tese de doutorado, defendida em 1997, na Universidade de Tours (França), finalmente publicada no Brasil na forma de livro. Sandroni estuda um processo muito comentado, rememorado, dis- cutido, mas pouco estudado, sistematicamente falando. Esse processo, como o subtítulo diz, culminou na formatação do samba urbano carioca, resulta- do de transformações cruciais em sua estrutura metrico-ritmica, bem como nas maneiras de ser executado, entre os anos 10 e 30. A partir de debates e polêmicas que até hoje constituem o rico universo anedótico da música popular brasileira, como as que opuseram Donga e Ismael Silva ou Noel * Departamento de História Universidade Federal do Paraná.

Feitiço decente (Resenha de Marcos Napolitano)

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Resenha do livro feitiço decente

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  • NAPOLITANO, M. Feitio decente 329

    Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 36, p. 329-332, 2002. Editora UFPR

    FEITIO DECENTEMarcos Napolitano*

    SANDRONI, C. Feitio decente. Transformaes do samba noRio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 247 p.

    Os estudos sobre a chamada msica popular brasileira, em todasas suas variveis estticas, vm se consolidando paulatinamente no meioacadmico, sobretudo a partir de meados dos anos 80. Mas algumas difi-culdades tericas e metodolgicas ainda persistem, alm da falta de comu-nicao das diversas reas que estudam o tema. Uma das dificuldades queo pesquisador que se aventurar nesta rea e quiser fazer um trabalhoconsequente, deve transitar por vrias disciplinas de artes e humanidades,na busca da definio do seu objeto e de sua abordagem. A musicologia, ahistria, a antropologia, a sociologia, a crtica literria, entre outras, con-vergem para o incremento dos estudos musicais, principalmente aquelesligados ao universo cancionista urbano e comercial. Poucos pesquisadores,pouqussimos mesmo, conseguem articular as vrias contribuies destasreas. Essa qualidade sobra em Carlos Sandroni, professor da UFPE, queno fosse um ensaista de mo-cheia, tambm msico. O pblico de espe-cialistas e aficcionados em msica popular pode tomar contato com suatese de doutorado, defendida em 1997, na Universidade de Tours (Frana),finalmente publicada no Brasil na forma de livro.

    Sandroni estuda um processo muito comentado, rememorado, dis-cutido, mas pouco estudado, sistematicamente falando. Esse processo, comoo subttulo diz, culminou na formatao do samba urbano carioca, resulta-do de transformaes cruciais em sua estrutura metrico-ritmica, bem comonas maneiras de ser executado, entre os anos 10 e 30. A partir de debates epolmicas que at hoje constituem o rico universo anedtico da msicapopular brasileira, como as que opuseram Donga e Ismael Silva ou Noel

    * Departamento de Histria Universidade Federal do Paran.

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    Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 36, p. 329-332, 2002. Editora UFPR

    Rosa e Wilson Batista, acerca da natureza do samba, o senso comum dosapreciadores da msica popular j consagrou h muito a idia de que osamba do comeo do sculo no seria o mesmo samba dos anos 30. Esteltimo que foi absorvido pelo mercado musical urbano e, em linhas gerais,tem sido a base do reconhecimento do gnero para o grande pblico. Aproposta de Sandroni foi estudar estas transformaes de forma sistemti-ca, articulando a crtica histrica (e historiogrfica), a reflexo antropolgicae anlise musicolgica.

    A tese bsica do livro a de que aquela msica que se chamouprimeiramente de samba (a lendria Pelo Telefone, de 1917, composta porDonga), estaria mais prxima do paradigma do tresillo (figura rtmica pr-xima das msicas ligeiras e danas do sculo XIX, como o lundu, ahabaneira, o tango e o maxixe). J o samba urbano carioca, que invadiu omundo do disco e do rdio a partir dos anos 30, consolidou uma outra figurartmica, bastante original, que Sandroni chamou de paradigma do Estcio(combinao de semicolcheias e colcheias, com mais clulas rtmicas demarcao, totalizando um ciclo de 16 pulsaes), ambas produtos de com-plexas mediaes culturais s possveis na Amrica.

    Que o leitor no se espante com a linguagem tcnica da anlisemusicolgica. O prprio autor toma o cuidado de reunir as passagens maistcnicas na parte que ele intitula premissas musicais, na qual ele discute osentido da sncopa e da contrametricidade (deslocamento do tempo forte docompasso) na msica ocidental de origem africana e sugere ao leitor maisleigo que pule, sem culpa, estas passagens. De resto um livro de fcil esaborosa leitura, cujas partes I (do Lundu ao Samba) e II (De um sambaa outro) ocupam a maior parte do corpo textual. Na primeira, Sandronianalisa o ciclo longo de mutaes estticas e culturais da msica brasilei-ra, cujas origens remontam ao sculo XVIII e XIX, que convergiram para oprimeiro momento do samba carioca, tal qual praticado sobretudo nas festascaseiras organizadas pelas tias baianas (1917-1921). Na segunda parte, oenfoque para o ciclo curto de transformaes, operadas entre 1927 e1933). Neste ltimo ciclo, o samba ganhou sua feio mais atual, adquirindouma nova identidade rtmica (voltada sobretudo para a evoluo das esco-las de samba no desfile de carnaval), cultural (se consolidando na culturaurbana carioca, penetrando em vrias classes e grupos sociais) e comercial(adquirindo sua feio fonogrfica e radiofnica, portanto, tornando-se umproduto cultural consumvel em larga escala).

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    Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 36, p. 329-332, 2002. Editora UFPR

    Sandroni demonstra uma grande desenvoltura no apenas no tex-to, bastante fluido, mas tambm no trato com as fontes. Ao contrrio damaioria dos musiclogos, Sandroni no cultua as fontes escritas de nota-o musical (neste caso, a partitura), mas deixa claro que impossvelanalisar a esttica e a histria da msica popular sem a anlise do resultadofonogrfico da performance musical, tomada como um tipo de fonte comidentidade e natureza prprias, diferente das partituras escritas pelos compo-sitores ou da transcrio de prticas musicais por etnomusiclogos. MasSandroni, no se restringe s fontes musicais (impressas e gravadas) paradesenvolver o seu estudo. Coerente com o seu objetivo de mapear noapenas as mudanas estritamente musicolgicas do samba, mas o comple-xo cultural que determinou, no perodo em questo, o reconhecimento dosouvintes em relao ao gnero, bem como o lugar social que ele ocupou navida brasileira, Sandroni incorpora a literatura (romances, crnicas e con-tos), corpo documental riqussimo em referncias sobre o universo da m-sica popular. No faltam tambm momentos instigantes de crticahistoriogrfica, revisando autores acadmicos e historiadores-jornalistas,que constituem boa parte da historiografia da msica popular brasileira.Outro dado importante sobre as fontes que Sandroni no se contenta coma generalizao de inferncias apoiadas em um corpo documental restrito.Ao contrrio, mergulhou no rico acervo de partituras da Biblioteca Nacio-nal do Rio de Janeiro (para a anlise das msicas do sculo XIX) e numaampla e quase completa lista de sambas gravados em disco (todos os sam-bas gravados por Francisco Alves, 60% dos sambas gravados pela CasaEdison entre 1917 e 1921 e 60 canes de Sinh (re-editadas em CD peloselo curitibano Revivendo).

    Tendo em vista um livro to bem construido e instigante, quaseum preciosismo crtico apontar para lacunas significativas. Mas duas ob-servaes podem ser feitas, neste sentido. A primeira a ausncia de umdebate com trabalhos no-publicados (teses e dissertaes), provavelmen-te em funo das mudanas editoriais da tese original para o livro. Assim,fica faltando um posicionamento de Sandroni em relao, por exemplo,ao trabalho similar de Jorge Caldeira (Voz Macia , dissertao de Mestradoem Sociologia, FFLCH / USP, 1987) ou em relao aos inmeros (e nemsempre bem resolvidos) trabalhos acadmicos sobre a malandragem. Asegunda observao, numa perspectiva mais estrutural do texto, uma

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    Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 36, p. 329-332, 2002. Editora UFPR

    certa dicotomia entre as partes tcnico-musicolgicas e histrico-sociol-gicas que, alis, um problema que aflige a todo aquele que quer escreversobre msica e ser lido, alm das fronteiras dos departamentos especializados.

    Estas so observaes que pouco fazem restrio a um trabalhobem feito, escrito de maneira simples e competente. O trabalho de Sandroni obrigatrio no apenas para aqueles que estudam o samba das primeirastrs dcadas do sculo XX, mas tambm para todos os pesquisadores demsica popular, na medida em que consegue superar o senso comum (mes-mo partindo de um senso comum da historiografia da msica brasileira),manter um distanciamento crtico (o que no significa falta de paixo peloobjeto) e conciliar conhecimento tcnico com sensibilidade analticainterdisciplinar. Alm disso, ele consegue superar a dicotomia entre msi-ca popular e msica erudita, perspectiva perseguida pela nova hist-ria da msica. Enfim, uma contribuio sria num campo de estudos aindamuito diletante, um passo a mais no processo de consolidao acadmicade um tema, at h poucos anos atrs, considerado excntrico e menor narea das Cincias Humanas.

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    A revista Histria: Questes & Debates uma publicao da AssociaoParanaense de Histria (APAH) e do Programa de Ps-Graduao em Histria(PGHIS) da Universidade Federal do Paran. Trata-se de uma publicao voltadapara a Histria enquanto conhecimento, pesquisa e instrumento de educao. Arevista preocupa-se tambm com as relaes da Histria com as demais cincias ecom o valor que a sociedade lhe atribui. organizada a partir de dossis temticos esesses de tema livre no campo da Histria, Historiografia e afins e aceita trabalhossob a forma de artigos, entrevistas, resenhas de livros e transcries de fontes co-mentadas.

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