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FEMINICÍDIO: O CONVENCIONALISMO PENAL ÀS AVESSAS Não existe um tresloucado sequer e olhe que em matéria de Direito existe louco para tudo, se tratando de uma exceção que defenda o crime como algo justificável existe, claro, teorias que buscam explicar o delito com uma perspectiva diferente, como no caso da teoria da coautoria ou da teoria da vulnerabilidade, agindo com maior ou menor reprovabilidade e punibilidade da conduta, o que incide na aplicação da pena. É de igual inquestionabilidade que os crimes praticados contra quem quer que seja, mulher, homem, negro, branco, amarelo, vermelho, enfim, traz imensa carga de mácula e ojeriza por parte de todo o corpo social. Estabelecidas essas premissas, seguimos. Ontem, no dia 10 de março de 2015, a presidente da República nossa claudicante República sancionou o projeto do Senado Federal n° 292, de 2013, convertida na Lei 13.104, de 09/03/2015, que alterou o art. 121 do Decreto-Lei 2.848 (Código Penal), para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime hediondo, alterando, também, o art. 1° da Lei 8.072 (Lei de Crimes Hediondos), para incluir o feminicídio no rol dos crimes. Com o perdão do desabafo, mas onde vamos parar? Justifico sem delongas os imensos impropérios, quando não inconstitucionalidade, desta lei. O primeiro equívoco para ser polido está logo na análise do projeto da Senadora do PT-PR, Gleisi Hoffmann investigada pela Operação Lava-Jato, deflagrada para apurar um possível recebimento de verbas ilícitas para financiar sua campanha ao Senado Federal , onde segundo ela, “entendemos ser relevante o projeto, haja vista a necessidade de se qualificar o feminicídio crime cometido contra a mulher, unicamente pelo fato de ser mulher (grifo nosso) e se nominar expressamente as circunstâncias que caracterizam essa forma de violência 1 ... O anseio pelo agravamento da punição penal nessas situações decorre do aumento de homicídios praticados contra mulheres 2 ” Ora, onde é que existe esse dado que diz que os crimes cometidos contra as mulheres o são pela sua condição de gênero ou espécie? É perfunctória a constatação que não, se formos analisar os casos concretos, veremos que as condições e práticas deste tipo de crime estão relacionadas ao relacionamento entre o homem e a mulher, e não à condição existencial de mulher, pois se assim o fosse, todos os crimes praticados contra a mulher seria feminicídio, caso o delito fosse realmente em função do gênero por óbvio, estou trazendo uma visão mais genérica e reflexiva do que o tipo novel, já que o §7° traz as hipóteses de incidência. Mas não, tal condição se limita aos vínculos afetivos entre o 1 http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=147974&tp=1. 2 Mais à frente tratarei dessa possibilidade de agravamento da pena em função do delito praticado contra cônjuge ou companheira.

FEMINICÍDIO

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Convencionalismo Penal às Avessas

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FEMINICÍDIO: O CONVENCIONALISMO PENAL ÀS

AVESSAS

Não existe um tresloucado sequer – e olhe que em matéria de Direito existe louco para

tudo, se tratando de uma exceção – que defenda o crime como algo justificável – existe, claro,

teorias que buscam explicar o delito com uma perspectiva diferente, como no caso da teoria da

coautoria ou da teoria da vulnerabilidade, agindo com maior ou menor reprovabilidade e

punibilidade da conduta, o que incide na aplicação da pena. É de igual inquestionabilidade que

os crimes praticados contra quem quer que seja, mulher, homem, negro, branco, amarelo,

vermelho, enfim, traz imensa carga de mácula e ojeriza por parte de todo o corpo social.

Estabelecidas essas premissas, seguimos.

Ontem, no dia 10 de março de 2015, a presidente da República – nossa claudicante

República – sancionou o projeto do Senado Federal n° 292, de 2013, convertida na Lei 13.104,

de 09/03/2015, que alterou o art. 121 do Decreto-Lei 2.848 (Código Penal), para prever o

feminicídio como circunstância qualificadora do crime hediondo, alterando, também, o art. 1°

da Lei 8.072 (Lei de Crimes Hediondos), para incluir o feminicídio no rol dos crimes. Com o

perdão do desabafo, mas onde vamos parar? Justifico sem delongas os imensos impropérios,

quando não inconstitucionalidade, desta lei.

O primeiro equívoco – para ser polido – está logo na análise do projeto da Senadora do

PT-PR, Gleisi Hoffmann – investigada pela Operação Lava-Jato, deflagrada para apurar um

possível recebimento de verbas ilícitas para financiar sua campanha ao Senado Federal –, onde

segundo ela, “entendemos ser relevante o projeto, haja vista a necessidade de se qualificar o

feminicídio – crime cometido contra a mulher, unicamente pelo fato de ser mulher (grifo

nosso) – e se nominar expressamente as circunstâncias que caracterizam essa forma de

violência1... O anseio pelo agravamento da punição penal nessas situações decorre do aumento

de homicídios praticados contra mulheres2” Ora, onde é que existe esse dado que diz que os

crimes cometidos contra as mulheres o são pela sua condição de gênero ou espécie? É

perfunctória a constatação que não, se formos analisar os casos concretos, veremos que as

condições e práticas deste tipo de crime estão relacionadas ao relacionamento entre o homem e

a mulher, e não à condição existencial de mulher, pois se assim o fosse, todos os crimes

praticados contra a mulher seria feminicídio, caso o delito fosse realmente em função do gênero

– por óbvio, estou trazendo uma visão mais genérica e reflexiva do que o tipo novel, já que o

§7° traz as hipóteses de incidência. Mas não, tal condição se limita aos vínculos afetivos entre o

1 http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=147974&tp=1.

2 Mais à frente tratarei dessa possibilidade de agravamento da pena em função do delito praticado contra

cônjuge ou companheira.

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homem e a mulher. Para completar, numa crise de autojustificação, diz “a tipificação do

feminicídio ainda visa impedir o surgimento de interpretações jurídicas anacrônicas e

inaceitáveis, tais como as que reconhecem a violência contra a mulher como ‘crime

passional3’”.

Consoante lição de Ferrajoli:

O primeiro destes elementos é o convencionalismo penal, tal como resulta

do princípio da legalidade estrita, na determinação abstrata do que é punível.

Este princípio exige duas condições: o caráter formal ou legal do critério de

definição do desvio e o caráter empírico ou fático das hipóteses de desvio

legalmente definidas. O desvio punível, segundo a primeira condição, não é o

que, por características intrínsecas ou ontológicas, é reconhecido em cada

ocasião como imoral, como naturalmente anormal, como socialmente lesivo

ou coisa semelhante. É aquele formalmente indicado pela lei como

pressuposto necessário para a aplicação de uma pena, segundo a clássica

fórmula nulla poena et nullum crimen sine lege. Por outra parte, conforme a

segunda condição, a definição legal do desvio deve ser produzida não com

referência a figuras subjetivas de status ou de autor, mas somente a figuras

empíricas e objetivas de comportamento, segundo a outra máxima clássica:

nulla poena sine crimine et sine culpa. O princípio da legalidade estrita é

proposto como uma técnica legislativa específica, dirigida a excluir,

conquanto arbitrárias e discriminatórias, as convenções penais referidas não a

fatos, mas diretamente a pessoas e, portanto, com caráter ‘constitutivo’ e não

‘regulamentar’ daquilo que é punível: como as normas que, em terríveis

ordenamentos passados, perseguiam as bruxas, os hereges, os judeus, os

subversivos e os inimigos do povo; como as que ainda existem em nosso

ordenamento, que perseguem os ‘desocupados’ e os ‘vagabundos’, os

"propensos a delinqüir", os "dedicados a tráficos ilícitos", os ‘socialmente

perigosos’ e outros semelhantes4.

Não há dúvida sobre a reprovabilidade da conduta “matar alguém”, este é o tipo, mas

certamente é uma afronta ao princípio da legalidade estrita, que tem do outro lado da moeda a

vinculação do legislador a esse preceito, gritantemente inobservado nessa nova lei. Na forma,

tipificou-se agente, onde, com precisão e presteza, Ferrajoli diz que “o desvio punível... não é o

que, por características intrínsecas ou ontológicas, é reconhecido em cada ocasião como imoral,

naturalmente anormal, como socialmente lesivo ou semelhante.” De fato. Eis que exsurge o que

já se tinha – parece pleonasmo mas não é –, “matar alguém”, crime previsto no caput do art.

121, C.P., tem como circunstâncias agravantes na aplicação da pena, art. 61, alínea “e” e “f”,

praticá-lo contra o cônjuge ou com violência contra a mulher na forma da legislação específica

3 http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=147974&tp=1. Ainda segundo a análise, “o

verdadeiro passional não mata. O amor é, por natureza e por finalidade, criador, fecundo, solidário,

generoso. Ele é cliente das pretorias, das maternidades, dos lares e não dos necrotérios, dos cemitérios,

dos manicômios. O amor, o amor mesmo, jamais desceu ao banco dos réus. Para os fins de

responsabilidade, a lei considera apenas o momento do crime. E nele o que atua é o ódio. O amor não

figura nas cifras da mortalidade e sim nas da natalidade; não tira, põe gente no mundo. Está nos berços e

não nos túmulos. (2014, p. 3 apud LYRA, 1975, p. 97) Eu concordo com visão, mas qual a correlação

entre a reprovabilidade da conduta e a prática do delito como sendo ínsita à condição de mulher? Eis o

convencionalismo penal às avessas. 4 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo penal. 3ª Edição. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2002. Pags. 30-31.

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– vide, neste, lei 11.340, também conhecida como Maria da Penha, nela, também há importante

e divergente discussão sobre a inconstitucionalidade do Art. 16. “Nas ações penais públicas

condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à

representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do

recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.”; onde o ministro aposentado, senhor

Cezar Peluso, na ADI 4424, foi voto vencido, julgando pela improcedência do pedido do PGR e

o caráter incondicionado da ação penal. No voto, “Ao analisar os efeitos práticos da decisão, o

presidente do STF afirmou que é preciso respeitar o direito das mulheres que optam por não

apresentar queixas contra seus companheiros quando sofrem algum tipo de agressão. ‘Isso

significa o exercício do núcleo substancial da dignidade da pessoa humana, que é a

responsabilidade do ser humano pelo seu destino. O cidadão é o sujeito de sua história, é dele a

capacidade de se decidir por um caminho, e isso me parece que transpareceu nessa norma agora

contestada’, salientou. O ministro citou como exemplo a circunstância em que a ação penal

tenha se iniciado e o casal, depois de feitas as pazes, seja surpreendido por uma condenação

penal.5”.

É uma linha muito tênue e uma figura sui generis, o que poderia dar ensejo a outras

figuras de igual teratologia, todos os fundamentos apresentados são duvidosos, de modo que

quando o sustentáculo argumentativo e legitimador da lei são capengas, eis essa que não deveria

existir. Não se trata de desumanidade, é uma ignomínia haver crimes como esse, o enfoque não

é a reprovabilidade da conduta, mas a previsão abstrata do tipo. Nesta linha, deveríamos

inventar o negricídio, galicídio, dentre outros “ídios” e seus correlatos, nosso legislativo brinca

com a seriedade da legitimidade que a eles imputamos.

5 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199853.