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Fenomenologia e Teoria dos Sistemas: reflexões sobre um encontro improvável * João Carlos Correia Universidade da Beira Interior Índice 1 Introdução ............. 1 2 Parsons e Schutz: um esboço de caracterização ........... 2 2.1 A urgência de um reconhecimento 2 2.2 Alguns elementos sobre a obra de Alfred Schutz ......... 4 2.3 Breve presentação da obra de Talcott Parsons ......... 10 3 As divergências Parsons – Schutz . 14 3.1 Divergências epistemológicas: abordagem subjectiva ...... 15 3.2 Controvérsias sobre a ordem social 18 3.2.1 Parsons: a orientação normativa 18 1 Introdução Em meados do século anterior, com elevada sofisticação intelectual e abundante funda- mentação filosófica, Alfred Schutz e Talcott Parsons deram origem a duas correntes fun- damentais na abordagem da sociabilidade: a Sociologia Fenomenológica e a Teoria dos * O texto integral foi publicado na Revista Filosó- fica de Coimbra (Março de 2003) Sistemas. Reflectindo as influências de Ed- mund Husserl, Bergson e Weber, no caso de Schutz, e de Hegel e Durkheim, no caso de Parsons, as divergências entre os dois autores incluíam diferentes concepções no que res- peita ao sujeito (ou actor social), à acção so- cial e à fundamentação das normas porque a mesma se orienta. Depois de alguns equívocos iniciais mar- cados pela gentileza mútua, o debate entre os dois autores decorreu, de modo mais ex- plícito, através da troca de correspondência, culminando num diálogo de surdos em que ambos reconheciam a existência de diver- gências dificilmente superáveis. Ao longo deste texto, para além da necessária apresen- tação dos pontos considerados fundamen- tais dos respectivos empreendimentos teóri- cos, dá-se conta das divergências entre am- bos, visíveis nalgumas das suas obras mais importantes, e também na correspondência que trocaram. Porém, mais do que a análise da correspondência, onde, por razões evi- dentes, não se chegou a desenhar uma aná- lise sistemática das diferenças e semelhan- ças, interessa-nos sobretudo mostrar como na obra se detectam as marcas de um encon- tro que, logo à partida, estava marcado pela impossibilidade do seu sucesso, ao menos no

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Fenomenologia e Teoria dos Sistemas: reflexões sobreum encontro improvável∗

João Carlos CorreiaUniversidade da Beira Interior

Índice

1 Introdução. . . . . . . . . . . . . 12 Parsons e Schutz: um esboço de

caracterização. . . . . . . . . . . 22.1 A urgência de um reconhecimento22.2 Alguns elementos sobre a obra

de Alfred Schutz. . . . . . . . . 42.3 Breve presentação da obra de

Talcott Parsons . . . . . . . . . 103 As divergências Parsons – Schutz. 143.1 Divergências epistemológicas:

abordagem subjectiva. . . . . . 153.2 Controvérsias sobre a ordem social183.2.1 Parsons: a orientação normativa18

1 Introdução

Em meados do século anterior, com elevadasofisticação intelectual e abundante funda-mentação filosófica, Alfred Schutz e TalcottParsons deram origem a duas correntes fun-damentais na abordagem da sociabilidade: aSociologia Fenomenológica e a Teoria dos

∗O texto integral foi publicado naRevista Filosó-fica de Coimbra(Março de 2003)

Sistemas. Reflectindo as influências de Ed-mund Husserl, Bergson e Weber, no caso deSchutz, e de Hegel e Durkheim, no caso deParsons, as divergências entre os dois autoresincluíam diferentes concepções no que res-peita ao sujeito (ou actor social), à acção so-cial e à fundamentação das normas porque amesma se orienta.

Depois de alguns equívocos iniciais mar-cados pela gentileza mútua, o debate entreos dois autores decorreu, de modo mais ex-plícito, através da troca de correspondência,culminando num diálogo de surdos em queambos reconheciam a existência de diver-gências dificilmente superáveis. Ao longodeste texto, para além da necessária apresen-tação dos pontos considerados fundamen-tais dos respectivos empreendimentos teóri-cos, dá-se conta das divergências entre am-bos, visíveis nalgumas das suas obras maisimportantes, e também na correspondênciaque trocaram. Porém, mais do que a análiseda correspondência, onde, por razões evi-dentes, não se chegou a desenhar uma aná-lise sistemática das diferenças e semelhan-ças, interessa-nos sobretudo mostrar comona obra se detectam as marcas de um encon-tro que, logo à partida, estava marcado pelaimpossibilidade do seu sucesso, ao menos no

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que toca em relação ao consenso ou mesmoà simples complementaridade dos projectos.A correspondência é a fase visível, explícitae notória, das dificuldades que se verificavamnos pontos de vista teóricos dos próprios au-tores. Detrás das observações de Schutz edas recusas de Parsons em tomar nota dasmesmas, há motivos teóricos profundos: di-ferentes concepções sobre a ordem social,sobre a formação dos consensos e sobre asrelações entre os indivíduos e as normas. As-sim, defende-se a existência de uma proble-mática relacionada com a integração social(menos explícita no caso de Alfred Schutz)que pode originar um campo de investigaçãono âmbito da Teoria Social e da Teoria Polí-tica.

2 Parsons e Schutz: um esboçode caracterização

2.1 A urgência de umreconhecimento

Alfred Schutz e Talcott Parsons podemapresentar-se, em meados do século passado,como o verso e o reverso do devir da Teo-ria Social, prosseguindo modos de teorizarque viriam a repercutir-se em diversos se-guidores1. A história do encontro e do de-bate que ocorreu entre ambos, no início dadécada de 40, está marcada por mal enten-didos. Equivocados pelos elogios mútuosiniciais, a apreciação global das principais

1 Cfr. Elizabeth Suzanne Kassab,The Theory ofSocial Action in the Schutz-Parsons Debate, Friburg,Editions Universitaires, 1991. Sobre o mesmo tema,pode ver-se Alfred Schutz, “The social world and thetheory of social action ” in Alfred Schutz, CollectedPapers II: Studies in social theory, The Hague, Marti-nus Nijoff, 1976, pp. 3-19.

obras, lidas agora à luz de um contexto emque se conhecem as consequências teóricasdos pressupostos que defenderam, tornamclara a impossibilidade do entendimento queainda buscaram. Necessariamente, é desejá-vel validar de um outro modo mais atento acontroversa presença destes autores no pano-rama intelectual do século que findou:

a) Desde logo, Schutz sofre de um esque-cimento, a nosso ver, enigmático. Em Portu-gal, além de escassos ensaios, de referênciasem Teses de Doutoramento, ou de algumasteses elaboradas em Faculdades de Filosofia,ainda são poucos os que efectuaram estudossistemáticos sobre este autor. Apesar de setratar de alguém que levou por diante uminteressante projecto de fundamentação fe-nomenológica da sociologia compreensiva,tentando desenvolver uma teoria da acção so-cial, investigar a natureza da intersubjecti-vidade e da construção social do conheci-mento e tendo permitido a fundamentaçãoteórica de correntes tão influentes como a Et-nometodologia de Garfinkel2; opensamentode Goffman e de Giddens3, ou a obra de Pe-ter Berger e de Thomas Luckmann4, a ver-dade é que ainda não vieram a luz do dia in-vestigações aprofundadas nem sequer tradu-ções portuguesas. Será que o percurso inte-lectual heterodoxo daquele que Husserl con-vidou para seu assistente, o coloca numa pá-tria de ecletismo pouco frequentada pelos in-

2 Cfr. H. Garfinkel,Studies in ethnometodology,Cambridge, Polity Press, 1984.

3 Cfr. Anthony Giddens,New rules of sociologicalmethod, London, Hutchinson & Co, 1960; cfr, ErvingGoffman,Frame analisys, Harmondsworth, PenguinBooks, 1975.

4 Peter Berger e Thomas Luckmann,A construçãosocial da realidade, Petrópolis, Vozes, 1973 ( Orig:The social construction of reality, 1966).

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vestigadores das disciplinas que cultivou (Fi-losofia e Ciências Sociais)?5 Será que o ca-rácter fragmentado da sua obra marcada pelaimpossibilidade de um percurso académicoa tempo inteiro ainda condiciona a recepçãoda sua obra?

b) Parsons, por seu turno, parece ser ví-tima de um exorcismo intelectual. Não ape-nas pôde exercer um distinto e influente lu-gar académico como quase controlou a soci-ologia anglo-saxónica, conquistando a hege-monia na comunidade científica. O resultadoé que os exageros levados a efeito no sentidode promover a emancipação dos tiques dofuncionalismo parecem ter conduzido ao es-quecimento do peso intelectual que Parsonsdetém nas obras de influentes contemporâ-neos como Alexander, Luhmann e Haber-mas6. Mais ainda: parece ter-se caído numrelativo desdém por um trabalho que eviden-cia uma patente sofisticação e refinamento

5Como lembra Arvid Brodersen na Nota do Edi-tor introdutória ao segundo volume dosCollected Pa-persde Alfred Schutz, “uma lição que Schutz apren-deu cedo na vida e continuou a ensinar até ao fim foia necessidade de basear qualquer teoria social sobreuma fundamentação filosófica. Desde o princípio eleencontrou a base para a sua própria filosofia em Hus-serl mais do que em qualquer outro, mas também emBergson, William James, Georg Simmel, Max Schelere outros” (Arvird Brodersen, Editor’s Note in AlfredSchutz,Collected Papers II: Studies in social theory,The Hague, Martinus Nijoff, 1976, 18.)

6Sobre a presença que Parsons continua a ter nasobras destes autores ler Richard Münch, “Teoría par-soniana actual: en busca de uma nueva síntesis” inAnthony Giddens, Jonathan Turner e outros,La teoríasocial hoy, Madrid, Alianza Editorial, 1990. Devemtambém consultar-se as obras dos autores citados no-meadamente J. C Alexander,Neofunctionalism, Be-verly Hills, Sage, 1985; Habermas,Théorie du agircommunicationel, Paris, Fayard, 1987 além de diver-sas obras de Luhmann onde as referências a Parsonssão explícitas.

intelectual. De certa forma, os vícios do fun-cionalismo tornaram polémica a referência aesta corrente. Muitos esquecem que Parsonsconstruiu uma Teoria Social elaborada e queo estrutural-funcionalismo é apenas uma dasfacetas do seu percurso.

c) Se os autores parecem conhecer um mo-mento de relativo confinamento à periferiados centros académicos e de reflexão, maisainda tal acontecerá com o debate entre eles.Trata-se, a nosso ver, de um erro. O caráctervisivelmente oponível dos seus pressupostose das consequências teóricas e práticas queestes encerravam constitui uma forma de umiluminar o pensamento de outro. À luz de ume de outro, percebemos o que distingue asTeorias Interpretativas das Ciências Sociaisdas perspectivas mais acentuadamente mar-cadas pela herança de Durkheim e pela tra-dição filosófica em que este se funda, desdeHobbes e Hegel até Comte. Compreendemosas diferentes concepções de Ciência Socialque motivam cada um destes trabalhos ondeainda ressoam as grandes polémicas sobre ométodo verificadas no século XIX alemão,de tal modo que o debate “Parsons – Schutz“é um dos importantes momentos de con-trovérsia sobre a Epistemologia das CiênciasSociais. Compreendemos o papel que a Fe-nomenologia de Husserl desempenha na des-crição do mundo da vida e como a percepçãodas múltiplas realidades sociais é algo que setorna dificilmente conciliável com o estrutu-ral – funcionalismo e a sua enfatização, porvezes excessiva, da ordem e da integração.Compreendemos que em Schutz ainda ecoaa forte dívida para com Husserl e consequen-temente com uma fenomenologia que aindaacredita num homem capaz de coincidir ab-

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solutamente consigo mesmo7. Compreende-mos que a atenção às estruturas subjectivasda consciência como modo de explicação doencontro entre a consciência e o mundo so-cial articulada com a ideia weberiana de ac-ção subjectivamente significativa exige aindauma atenção especial ao sujeito individuale uma concepção de intersubjectividade queimplica a participação activa dos sujeitos naconstrução e actualização da dimensão nor-mativa da sociabilidade. Compreendemosque a mesma atenção conferida por Parsonsatravés da teoria voluntarista da acção e dareferência a Weber conheceu, de forma lentamas que já se vislumbrava nos seus trabalhosiniciais, um percurso de enfatização da com-ponente normativa. Finalmente, compreen-demos que há uma leitura que remete paraa Política e para a Ética que nunca foi de-senvolvida por Schutz e que está muito maisexplicitada em Parsons. Esta leitura pode,no caso de Schutz, ser encontrada nos in-terstícios da sua análise da fragmentação domundo da vida social em múltiplas realida-des e, inclusivamente, permite uma compre-ensão interessante de fenómenos como osdas identidades e de conceitos como o de rei-ficação8. Tal leitura é evidentemente poucocompatível com a preocupação normativista,integradora e consensualista que marca, ape-

7 cfr. Emmanuel Lévinas,Descobrindo a exis-tência com Husserl e com Heidegger, Lisboa, Piaget,1997, p. 61.

8 Tal leitura já se adivinha nalguns “sintomas” :termos conhecimento da existência de trabalhos deautores por todo o mundo que lêem Schutz à luz dasnoções de cidadania multicultural e da crítica ao uni-versalismo abstracto. De conhecimento directo, pode-mos citar a obra de Burke Thomason,Making senseof reification, London, MacMillan Press, 1982 ondese procede, de forma mais ou menos clara, a este tipode leitura.

sar do seu refinamento, o trabalho de TalcottParsons.

Do lado de Alfred Schutz, encontra-se aabertura aos estudos microssociológicos, aenfatização do mundo da vida quotidiano, asinteracções face-a-face, a valorização dessasinteracções na negociação e actualização dasnormas sociais, o desenvolvimento da he-rança de Husserl e de Weber de um modo quedefiniria o estilo e a metodologia das princi-pais correntes da sociologia compreensiva.

Do lado de Parsons, contabiliza-se a“grande teoria”, a atenção às macroestrutu-ras, a insistência na interiorização das nor-mas como um factor de escolha dos fins edos meios que caracterizam a acção racio-nal, a preocupação com a harmonia e a in-tegração societárias, o lento afastamento emrelação à assumida herança weberiana para,em seu lugar, colocar um esquema teórico demuito mais forte cariz durkheimiano em res-posta ao problema hobbesiano.

2.2 Alguns elementos sobre aobra de Alfred Schutz

Entre os contributos fundamentais de Schutz,conta-se a incorporação dos conceitos de“mundo da vida” e de “atitude natural” naTeoria Social com a qual se abre a porta àintrodução das interacções face-a-face comoobjecto privilegiado de estudo. Graças aosdesenvolvimentos introduzidos pela Sociolo-gia de inspiração fenomenológica, a socia-bilidade ganha uma nova configuração, pas-sando a ser entendida como um conjunto derelações interpessoais e de atitudes pesso-ais que, ainda que dependendo de padrõesaprendidos, são pragmaticamente reproduzi-das na vida quotidiana.

Os conceitos de “mundo da vida” e da

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“atitude natural”, nucleares na sociologia deinspiração fenomenológica, têm a sua ori-gem em Husserl e serão objectos de umaexposição sistemática de Alfred Schutz, quepretende aplicá-los como um contributo parauma fundamentação rigorosa de uma CiênciaSocial compreensiva.

Na análise fenomenológica do papel ac-tivo da consciência na constituição de objec-tos da experiência, Husserl insistiu na exis-tência de estruturas subjectivas que não erampassivamente postas em jogo pela experiên-cia sensorial mas, antes, intervinham, decisi-vamente, nos actos de percepção e na elabo-ração do conhecimento. O real só tem sen-tido na consciência9.

No decurso desta aproximação ao domí-nio da constituição subjectiva, Husserl pro-cedeu a uma distinção fundamental entre aatitude natural e a redução fenomenológica.A expressão “atitude natural” foi usada paradesignar os termos e o modo pelo qual per-cebemos, interpretamos e agimos no mundoem que nos encontramos. Orientada por con-siderações de natureza pragmática, a atitudenatural envolve a suspensão da dúvida acercade saber se as coisas são como parecem ouse a experiência passada será ou não umguia válido para o futuro. Na atitude natu-ral, quem percepciona acredita que as coi-sas são como lhe aparecem ou, pelo menos,procede a uma suspensão de qualquer dúvidaque possa ter acerca disso. O sujeito assume,até uma evidência em contrário que não teráde ser de natureza científica, que o seu enten-dimento das circunstâncias é adequado. Oactor, consequentemente, pressupõe que asacções, que foram bem sucedidas em condi-

9 cfr. Lévinas,Descobrindo a existência com Hus-serl e Heidegger,op. cit., p. 63.

ções similares precedentes, continuarão a serbem sucedidas na situação presente.

O reverso da atitude natural é a “dúvidacartesiana”, que, cepticamente, nega a ob-jectividade da percepção, a adequação doconhecimento ou a utilidade da experiênciapassada. Porém, não é este o tipo de dúvidaque tem lugar na redução fenomenológica. Aredução transcendental –epoché– consistena suspensão do juízo sobre o mundo, nãono sentido cartesiano, mas no sentido da ten-tativa de regressar ao carácter prioritário daconsciência, aquém do momento em que omundo se oferece como um pré-dado exis-tente na sua evidência. Na redução fenome-nológica, o investigador limita-se a suspen-der a sua crença, por exemplo, na existên-cia objectiva dos objectos da percepção comvista a examinar como é que eles são expe-rimentados como objectivamente existentes.A tarefa a que Husserl se propõe é a sus-pensão da crença no mundo exterior, quercomo ela é ingenuamente vista por qualquerum na vida quotidiana, quer como ela é in-terpretada por filósofos e cientistas. Graçasà epoché,o sujeito encontra-se livre do seuentrave mais íntimo e secreto: a conside-ração do mundo como um pré-dado, alcan-çando a absoluta autonomia em relação aomundo e à consciência que dele possui. Atra-vés desta operação, em lugar de se regres-sar às coisas, retorna-se à consciência quese tem do mundo, ou seja, a uma correla-ção essencial entre a consciência e as coi-sas10. De um certo modo, há uma reflexãosobre o próprio acto da percepção. Os ob-jectos percebidos são assim encarados como

10 Cfr. Edmund Husserl,La crise des sciences eu-ropéennes et la phénoménologie transcendantal, Pa-ris, Gallimard, 1967, p. 172.

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um produto de uma complexa série opera-ções pré-predicativas, inconscientes e auto-máticas, em que cada percepção de um ob-jecto determinado é referida a uma variedadede experiências prévias de outros objectossemelhantes e dos objectos em geral.

A partir daqui adivinha-se um conjunto dedirecções possíveis que a pesquisa fenome-nológica podia tomar. Uma das direcçõesera o empreendimento husserliano de esta-belecer uma fundação indubitável para todoo conhecimento humano através da análiseda sua constituição pelos actos subjectivosda consciência. Outra via procurava estabe-lecer as relações entre conhecimento cientí-fico e o conhecimento vulgar. Esta via, de-senvolvida pelo próprio Husserl nas suas úl-timas obras, reforçava o ponto de vista se-gundo o qual toda a reflexão humana se ba-seia no Lebenswelt, o mundo da experiên-cia vivida e teve alguns dos seus protagonis-tas mais interessantes nalguns trabalhos deMerleau-Ponty11 e em Aron Gurvisch e Al-fred Schutz.12

Desenvolvendo as intuições de Husserl,Schutz considerou a atitude natural comouma suspensão da dúvida em relação à ob-jectividade do mundo13, aplicando de modominucioso, este tipo de atitude e o modo deconhecer que lhe é próprio em relação à so-

11 O trabalho mais explícito e significativo nestedomínio será “O Filósofo e a Sociologia” in MauriceMerleau Ponty,Signos, São Paulo, Martins Fontes,s/d., pp. 105-121.

12 Evidentemente, podíamos citar uma outra direc-ção, radicalmente nova, que foi abruptamente intro-duzida por Heidegger. Porém, a Hermenêutica Filo-sófica fica fora do âmbito da análise deste trabalho.

13Cfr. Alfred Schutz, “William James’s concept ofthe stream of thought phenomenologically interpre-ted” in Collected papers, vol. III, The Hague, Marti-nus Nijoff, 1975, pp. 5-6.

ciabilidade. Aepochéfenomenológica con-vida a pôr entre parênteses o mundo objec-tivo para atender ao âmbito da consciênciaem que aquele se oferece como vivência dasubjectividade _ ignorando todos os juízosacerca da existência do mundo exterior como fim de alcançar a esfera da evidência abso-luta. A atitude natural, ao contrário, contémuma tese implícita na qual se aceita o mundocomo existente14, tal como ele se dá, na suaevidência.15 Schutz apropria-se da concep-tualização de Husserl para caracterizar espé-cie de naivité constitutiva da possibilidadede percepção do mundo e, em especial, domundo social. “Na atitude natural eu sempreme encontro a mim próprio num mundo quetenho por garantido e evidentemente “real”em si mesmo”16. Ela é “uma postura que re-conhece os factos objectivos, as condiçõespara as acções de acordo com os objectosà volta, a vontade e as intenções dos outroscom quem tem de se cooperar e lidar, as im-posições dos costumes e as proibições da lei,e assim por diante.” Assim, “a atitude naturalé caracterizada menos pelo realismo do quepela ingenuidade do realismo, ou seja, pelofacto que o indivíduo se encontra diante do

14 “Na nossa vida quotidiana (. . . ), aceitamos semquestionar a existência do mundo exterior, o mundode factos que nos cerca. Na verdade, pode ser queduvidemos de qualquerdatumdesse mundo exterior,pode ser até que desconfiemos de tantas experiênciasdesse mundo quantas vezes quisermos; mas a crençaingénua na existência de algum mundo exterior, essa“tese geral do ponto de vista natural” vai subsistir, im-perturbável.”Ibid., p. 5.

15 cfr. Alexandre Morujão,Mundo e intenciona-lidade, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1961, p.43.

16Alfred Schutz e Thomas Luckmann,The structu-res of life-world, Evanston, Northwestern UniversityPress, 1995, 4.

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objecto sem se interrogar sobre o sentido dasua objectividade”17.

A atitude natural desenvolve-se por parteda generalidade dos actores sociais que ac-tuam no mundo da vida (Lebenswelt). Esteé outro dos conceitos que constituíram a pe-dra de toque do impulso fenomenológico de-tectado no campo da sociologia. O con-ceito surge inicialmente na obra de Hus-serl, referindo-se ao mundo da evidênciae da experiência quotidianas por oposiçãoao mundo quantificado da ciência moderna.Husserl refere-se-lhe como “aquele que nosé verdadeiramente dado como perceptível, omundo da experiência real ou possível”.18

Constitui-se como integrando um tipo deverdades situadas, “prático-quotidianas.”19

Nesse mundo, os actores são “consideradosna certeza da experiência, anteriormente aqualquer constatação científica, seja ela psi-cológica, sociológica ou outra”20. ’É apre-sentado como o “mundo das evidências ori-ginais”, entendidas enquanto diversas da evi-dência objectiva e lógica, relacionada aoponto de vista teórico da ciência da naturezacientífico-positiva21.

Alfred Schutz compreendeu bem o al-cance da caracterização husserliana, e o in-teresse da mesma para a sua formulação daTeoria Social. “O mundo da vida é simples-mente toda a esfera das experiências quotidi-anas, direcções e acções através das quais osindivíduos lidam com seus interesses e ne-gócios, manipulando objectos, tratando com

17 Emmanuel Lévinas,Descobrindo a existênciacom Husserl e Heidegger,op. cit., p. 36.

18 Edmund Husserl,La crise. . ., op. cit. p.. 5719Ibid, p.15020 Ibid., p. 119.21Cfr. Ibid., pp. 145-146.

pessoas, concebendo e realizando planos”22.Trata-se de “um mundo intersubjectivo co-mum a todos nós, no qual não temos um in-teresse teórico mas um interesse eminente-mente prático”23. Este é o mundo “em quenos encontramos em cada momento da nossavida, tomado exactamente como se apresentaa nós na nossa experiência quotidiana.”24 Ouainda de um outro modo mais explícito, queterá consequências claras para a discussãoepistemológica nas Ciências Sociais: “pelomundo da vida quotidiano deve ser entendidaaquela província da realidade que o simplesadulto normal toma por garantida na atitudedo senso comum.”

A atitude natural que os actores soci-ais empreendem no mundo da vida temum estilo cognitivo próprio. Desde logo,caracteriza-se pela máxima atenção à vidano sentido em que o Sujeito evita mergulharno fluir interior da consciência. Ao invés deum tempo interior, próprio da consciência,a temporalização no mundo da vida quoti-diana implica que o fluxo das experiênciasvividas se organize a partir de um “aqui eagora”, perfeitamente delimitado, em direc-ção ao passado e ao futuro, como uma cor-rente de unidades intencionais. Nesse sen-tido, Schutz foi um estudioso da experiênciado tempo: adurée, ou tempo interior da ex-periência subjectiva, um conceito analisado

22Helmut Wagner, “Introdução” in Helmut Wagner(ed.),Fenomenologia e relações sociais – Colectâneade textos de Alfred Schutz, Rio de Janeiro, Zahar Edi-tora, p. 16.

23Alfred Schutz, “O mundo da atitude natural” inHelmut Wagner (ed.),Fenomenologia e relações so-ciais, op cit, p. 73.

24 Aron Gurwitsch, “Introduction” in A. Schutz,Collected papers, Vol. III, Haya, Martinus Nijhoff,1975, p. xi. Alfred Schutz e Thomas Luckmann,Thestructures of life-word, op. cit., p.3.

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por Bergson e que William James tambémdesenvolveu através de uma ideia de correntede consciência em oposição ao tempo exte-rior ou “tempo cósmico” medido pelos reló-gios25. No mundo quotidiano, na atitude na-tural, à medida que vamos vivendo nas nos-sas experiências, vamo-nos esquecendo daprópria subjectividade, avançando cada vezpara mais longe da possível reflexão26. Ouseja, “a atenção à vida(attention à la vie)impede-o de mergulhar na intuição da dura-ção pura”27. Schutz recupera a distinção queBergson28 faz “entre viver dentro da correntede consciência e viver dentro do mundo doespaço e do tempo (. . . ) Na vida quotidiana,enquanto age e pensa, o Ego vive ao nívelda consciência do mundo do tempo e do es-paço”29. Podem-se, assim, imaginar diversosgraus de tensão da consciência em funçãodos interesses da nossa vida, representandoa acção o nosso interesse maior, o grau má-ximo de atenção , e o sono a nossa total faltade interesse30.

Neste mundo de evidências a atitude natu-25 Cfr. Helmut. Wagner, “A abordagem fenome-

nológica da sociologia” in Helmut Wagner (ed.),Fe-nomenologia e relações sociais, op. cit., p. 16. eA. Schutz, “William James: concept of the stream ofthought phenomenologically interpreted” op. cit., pp.2-4 .

26 Cfr. Ibid., p.5.27 Alfred Schutz, “Bases da fenomenologia”, in

Helmut Wagner (ed.),Fenomenologia e Relações So-ciais, op. cit., p. 61.

28 Bergson teve igualmente uma importância rele-vante em Schutz, havendo autores como Burke Tho-mason que lhe atribuem mesmo uma importância su-perior à obra de Husserl no conjunto das suas influên-cias. Cfr. Burke Thomason,Making sense of reifica-tion, op. cit., pp.17-18.

29 Alfred Schutz, “Bases da fenomenologia”, op.cit., p. 61.

30 Cfr. Ibid., p.68.

ral evoca uma forma de espontaneidade quese traduz na acção em e sobre o mundo exte-rior e num interesse por este de natureza emi-nentemente prática. Com efeito, “ o actor nomundo social experimenta-o primeiro comoum campo de actuais e possíveis e só secun-dariamente como objecto de pensamento”31.

Finalmente, a intersubjectividade oferece-se como um pré-requisito para toda a ex-periência humana imediata no mundo davida32. Para Schutz, a intersubjectividadesignifica que estamos envolvidos uns paraoutros não como objectos mas como sujei-tos. Encontramo-nos a agir e a falar uns comos outros num contexto similar de comuni-cação. A sociologia não pode separar osfactos da sua natureza intersubjectiva. “Eutomo simplesmente por adquirido que ou-tros homens além de mim, existem no meumundo (. . . ) o meu mundo da vida não éprivado mas intersubjectivo; a principal es-trutura da sua realidade é ser partilhado (. . . )Da mesma forma que é evidente para mim,dentro da atitude natural, que eu posso atécerto ponto obter conhecimento acerca dasexperiências vividas pelos meus semelhantes– por exemplo os motivos dos seus actos –também eu assumo que o mesmo se passa re-ciprocamente com eles em relação a mim”33.Nesta perspectiva, a realidade só se pode en-tender estabilizada na sua identidade graçasà “reciprocidade de expectativas”, de acordocom a qual os actores chegam a um enten-

31Alfred Schutz, “The Stranger: an essay in socialpsychology” inCollected Papers II, The Hague, Mar-tinus Nijjoff, 1976, p. 92.

32Cfr. Alfred Schutz, “The problems of transcen-dental intersubjectivity in Husserl”, inCollected pa-pers, vol. III, op. cit., p. 82.

33Alfred Schutz e Thomas Luckmann,The structu-res of life-world, op. cit., p.4.

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dimento intersubjectivo em que colocam en-tre parênteses as suas diferenças de experi-ências para as considerarem como idênticas.Cada uma das pessoas envolvidas lida coma característica de uma dada situação racio-cinando como se, no caso de estar no lugarde outrem, vivesse a situação comum a partirda sua perspectiva . De modo mais ou me-nos ingénuo, acredita-se que aquilo que fazsentido para cada um de nós faz sentido paratodos os outros. De modo idêntico, parte-sedo princípio que os meus actos dirigidos aosrestantes serão entendidos do mesmo modoque os actos dos restantes dirigidos a mim34.

O esforço de Schutz no sentido da obten-ção de um impulso fenomenológico para asCiências Sociais só pode finalmente ser en-tendido no âmbito de um frutífero diálogocom Max Weber. Schutz forma grande partedos seus pressupostos teóricos que man-terá com admirável coerência numa EuropaCentral onde ecoam de forma vincada asdisputas epistemológicas sobre as CiênciasSociais. Dilthey, Rickert ou Max Weberconfrontavam-se com o aparecimento de no-vas ciências – as Ciências do Espírito (Geis-teswisenchaften) – nas quais se tornava cadavez mais difícil defender a pura e simplesaplicação dos métodos das Ciências Natu-rais. Os métodos de estudo empregues co-meçavam a deixar de ser os de tipo empí-ricos ou causais porque se percebia que eranecessário compreender as totalidades espi-rituais em que determinados eventos se ve-rificavam. O ponto de vista assumido porSchutz torna-se claro quando nos confronta-mos com os grandes dilemas fundadores dasociologia. De um lado, tem-se uma posi-

34 Cfr. Alfred Schutz, “Social world and social ac-tion” in Collected papers, vol. II, op. cit., p. 15.

ção subscrita por Durkheim, numa linha queremonta a Comte , a qual pretende explicare descrever como é que os indivíduos es-tão associados independentemente das suasconcepções e necessidades, e, do outro, en-contramos uma outra posição assumida porWeber e Simmel segundo a qual é precisoperceber a intersubjectividade, os significa-dos mutuamente atribuídos às diferentes ac-ções dos indivíduos para que possamos com-preender as dinâmicas sociais. Este últimocaminho enfatiza a noção deverstehen, gra-ças à qual procuramos compreender o sen-tido atribuído pelo outro às suas acções, emdetrimento doercklärenque procura estabe-lecer leis regulares que, à semelhança das ci-ências exactas, expliquem os fenómenos hu-manos. Em Weber, não basta que uma ac-ção possa ser interpretada por um agente emtermos de motivo cujo sentido possa ser co-municado a outrem. É ainda preciso que anoção de cada agente tenha em considera-ção a do outro quer para se opor a ela, querpara entrar em composição com ela: “A ac-ção social (. . . ) é uma acção em que o sen-tido visado pelo sujeito ou sujeitos está refe-rida à conduta de outros, orientando-se porela no seu desenvolvimento.”35 Ao invés deDurkheim, que explicitamente defende a co-ercibilidade e exterioridade dos factos soci-ais – os quais devem ser tratados como coi-sas – Weber enfatiza a ideia de acção sub-jectivamente significativas. Schutz abraçaráesta concepção de Sociologia compreensiva,procurando aprofundá-la através da investi-gação de Husserl relativa as estruturas sig-nificativas da consciência. Nesse sentido, oseu esforço é a conciliação da objectividade

35Max Weber, Economía y sociedad, México,Fondo de Cultura Económica, 1964, p. 5.

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da ciência social com a subjectividade da ex-periência humana.

Pode-se adequadamente conceber a socio-logia de Weber como individualista e subjec-tivista. O seu individualismo pode afirmar-se não porque negue o carácter colectivo deconceitos como o de “Estado” mas porqueentendia que este tipo de conceitos era sus-ceptível de ser reduzido às acções compre-ensivas dos indivíduos. Nos seus trabalhossempre enfatizará o significado subjectivodas acções sociais. Isto não invalida a possi-bilidade de uma ciência da sociedade, para oqual contribui com o conceito de “tipos ide-ais” entendidos como constructos delineadospara atender a propósitos investigativos leva-dos a efeito à luz de problemas específicose bem delimitados. Estes elementos indivi-dualistas e subjectivistas interessaram prin-cipalmente a Alfred Schutz, o qual pretendiadefinir o mundo social como uma realidadeconstruída pelos homens no decurso da suaactividade prática.

2.3 Breve presentação da obra deTalcott Parsons

Talcott Parsons introduziu, de modo muitoconsistente e conceptualmente fundamen-tado, um conjunto de novos problemas soci-ais com o seu livroThe Structure of SocialAction. A obra era, preponderantemente,uma apresentação das teorias de quatro gran-des referências das Ciências Sociais (Weber,Durkheim, Pareto e o economista Marshall)com as quais o público americano estava es-cassamente familiarizado36. Da leitura des-

36 Talcott Parsons, “Introduction to the paperbackedition”, in Talcott Parsons,The structure of socialaction, New York, The Free Press, 1968, VIII.

tes autores, empreendida com grande sofis-ticação intelectual, resultavam duas ideiasfundamentais que coincidem também comas áreas de reflexão em que será mais visí-vel a sua incompatibilidade com a obra deSchutz. Por um lado, entendia-se que ne-nhuma ciência pode ser construída com baseem puros dados empíricos, postulando, destemodo, um novo ênfase na reflexão teórica37.Assim, afirmava-se contra um empirismo in-génuo, solidamente enraizado, que conside-rava o progresso científico como uma sim-ples acumulação de descobertas de factos,afirmando que uma teoria científica era umavariável independente no desenvolvimentoda ciência38. Por outro lado, considerava-se que, ao longo da obra dos autores estu-dados, se encontrava um leque de proble-mas que confluíam naquilo que ele conside-rava ser a teoria voluntarista da acção. As-sim, a conclusão central para que convergia aobra destes cientistas sociais consistia no es-tabelecimento da orientação normativa comouma estrutura indispensável e constitutiva daacção social.

Ao longo do seu livro, Parsons considerouque as unidades básicas do sistema de acçãosocial eram os actos, tal como as partículaseram as unidades do sistema mecânico clás-sico39. Um acto era logicamente compostopor um actor, o seu agente; um fim, ou seja,um futuro estado de coisas que se pretendiaatingir com esse mesmo acto; a situação emque o actor age, e que difere nalguns tra-ços básicos do estado de coisas para o quala acção é orientada, o fim40. Procurava-se,deste modo, construir um quadro de referên-

37 Talcott Parsons, “Introduction”,ibid., p. IX.38 Cfr. Talcott Parsons,Ibid. op. cit., p. 7.39 Cfr. Talcott Parsons,Ibid.op. cit, p. 43.40 Cfr. Talcott Parsons,Ibid. op. cit., p. 44.

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cia que remetia, de forma analógica, para ascategorias do espaço e do tempo, com basenas quais Kant formulava a fundamentaçãobásica da possibilidade da mecânica newto-niana.

Duas consequências provinham destaforma de pensamento: em primeiro lugar, re-sultava daqui que a acção implicava um de-terminado esforço, uma vez que um fim ésempre um estado de coisas futuro relativoà situação actual o qual só pode ser realizadograças à ultrapassagem de determinados obs-táculos supervenientes. Por outro lado, umaacção assim considerada parecia só poder re-sultar, primordialmente, do ponto de vistasubjectivo do autor. Trata-se de uma parti-cularíssima análise do ponto de vista subjec-tivo que jaz no próprio coração da teoria vo-luntarista parsoniana. A verdade, porém, éque. conforme se viria a verificar, a impor-tância conferida à norma matizava a impor-tância dada ao actor.

Com efeito, para Parsons, entre os elemen-tos constituintes dos actos estabelecia-se umcerto modo de relação, segundo a qual, naescolha de meios alternativos para um fim,desde que a situação permita alternativas, háuma orientação normativa da acção41.

Insurgindo-se contra a concepçãopositivista-utilitarista, em que a acção évista como uma adaptação ao meio ambi-ente, Parsons defende a acção como umesforço que implica uma tensão entre osplanos normativo e condicional, isto é, umacerta avaliação normativa que não esquecea necessidade de adequação dos meios comvista a fins, às condições em que o actorse encontra. Enfatizando-se um ponto devista puramente positivista, a acção seria

41 Cfr.Talcott Parsons,Ibid. op. cit. p., 44.

completamente determinada pelas condiçõesinerentes à situação, pelo que a distinçãoentre meios, dependentes do actor, e condi-ções, independentes do autor e intrínsecasà situação em que este se encontra, fica, decerto modo, sem sentido, já que a acçãoacaba por se reduzir à adaptação racionalàs condições. O papel activo do actor érestringido à compreensão da situação eà previsão do curso do seu devir. ParaParsons, torna-se, mesmo do ponto de vistaestritamente positivista, imaginar como épossível ao actor errar se não existe outradeterminante além das condições. Qualquerfalha na aplicação da norma racional sópode, assim, ser explicada através de duaspossíveis palavras: “ignorância” ou “erro”42.Quanto ao ponto de vista idealista, traduzir-se-ia no esquecimento das condições e naenfatização do que se considera ser a normacorrecta. No idealismo, não há nada nascondições da acção que seja considerado emtermos de prevenir o cientista ou o teóricocontra o cometimento de um erro. Na me-dida em que as relações causais subsistissementre elementos da situação, o actor estácondicionado já que a realização do fimdepende do tomar em conta estas relações.Porém, no idealismo há lugar apenas pararelações com o ideal para o qual a acção éorientada43. “Enquanto o tipo de teoria vo-luntarista envolve um processo de interacçãoentre elementos normativos e condicionais,no pólo idealista o papel dos elementoscondicionais desaparece, da mesma formaque, em correspondência, no pólo positivistadesaparece o elemento normativo”44 Neste

42 Cfr. Talcott Parsons,Ibid. op. cit., pp. 64-66.43 Cfr. Talcott Parsons,Ibid. op. cit., p. 483.44 Talcott Parsons,Ibid. op. cit., p. 82.

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sentido, Parsons entende que a sua teoriavoluntarista da acção permite uma tensãoentre a dimensão normativa e a dimensãocondicional oferecendo uma ponte entreestas duas tradições irreconciliáveis45.

Assim, nesta linha, a normatividade ganhauma certa preponderância mitigada pelo re-conhecimento das condições de acção. Aonível da escolha dos fins, a teoria volunta-rista considera que o fim da acção é produtode um sistema de valores. Ao nível da es-colha dos meios, considera que os padrõesnormativos, mais do que outros expressos naaplicação racional do conhecimento cientifi-camente válido, podem constituir a base emque o curso da acção é escolhido.

Resulta daqui uma ideia que conduziriaParsons no sentido da atenção particular queconferiria, ao longo da sua obra, à integra-ção normativa. De Durkheim, Parsons ex-trai a ideia de que a integração social re-sulta da subscrição de normas e de valorescomuns, os quais podem ser interiorizadosde modo a tornarem-se constitutivos na for-mação dos objectos desejados. É, de certaforma, por aqui, que entra a importantíssimareferência a Hobbes, ao nível da descriçãodas condições últimas da vida social. EmHobbes, como o Homem é guiado acimade tudo pela pluralidade das suas paixões,o bem identifica-se com aquilo que ele de-seja. 46 Os desejos humanos são aleatórios,pelo que na ausência de qualquer controlorestritivo o Homem adoptará ao seu fim maisimediato os meios que considerar mais efica-zes. Com efeito, a escassez de determinadosbens conduz a que dois ou mais homens pos-sam desejar aquilo que não podem ambos ter.

45 Cfr. Talcott Parsons,Ibid .op. cit., p. 486.46 Cfr. Talcott Parsons,Ibid. op. cit., p. 89.

Em face da pluralidade de desejos humanose de uma “igualdade de esperança” – ou sejaem face do facto de que todos podem sen-tir iguais expectativas na obtenção dos mes-mos fins, emerge um problema: trata-se da-quilo a que Parsons chama de “problema daordem” ou seja, da necessidade de uma ori-entação normativa relativa ao grau de atendi-bilidade dos vários fins desejados47. Comopara levar por diante os fins desejados, o Ho-mem carece do reconhecimento e do serviçode outros homens, terá de recorrer à força eà fraude, não se vislumbrando na concepçãoestritamente utilitarista o que quer que sejaque possa obstar à utilização destes meios48.A conclusão de Parsons, em face da perspi-caz descrição de Hobbes, passa pela entendi-mento de que uma solução para o problemada ordem jamais será encontrada num planoestritamente utilitário: uma sociedade pura-mente utilitária é caótica e instável, porquena ausência de limitações no uso dos meios,particularmente a força e a fraude, tenderápara uma luta ilimitada pelo poder. Na ver-dade, Hobbes limita-se a ser, na perspectivade Parsons, um bom exemplo para a carac-terização das consequências da visão utilita-rista do mundo.

O olhar de Parsons pela obra de Marshall,Durkheim, Weber e Pareto tende para umamesma ideia fundamental: trata-se de for-mular uma concepção que passa pela intro-dução de atitudes valorativas e por um sis-tema de valores comuns. Implica, por isso,através de percursos intelectuais vários, umaultrapassagem de uma enfatização pura e ex-clusiva da norma de racionalidade. Em Pa-reto, valoriza-se a fixação de um fim último

47 Cfr. Talcott Parsons,Ibid. op. cit., p. 93.48 Cfr. Talcott Parsons,Ibid. op. cit., p. p. 2.

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que não é logicamente dedutível através deuma norma de racionalidade intrínseca; emDurkheim detecta-se um passo importantepara uma posição conforme à teoria volun-tarista da acção e que implica a constitui-ção de um sentido de obrigação moral quepassa pela interiorização de valores; em We-ber, saúda-se a existência de uma tipologiadupla da racionalidade, que abre as portasà consideração da eficiência mas também dalegitimidade49.

A enfatização do problema da ordem nor-mativa, que emerge deThe structure of so-cial action e nas obras seguintes, conduz aum certo afastamento de Weber Aceitando aas influências provenientes da Biologia e daAntropologia (nomeadamente da leitura queRadcliff-Brown faz de Durkheim), o con-ceito de acção tornar-se-á, segundo o próprioParsons, cada vez mais durkheimiano e me-nos weberiano50. No fundo, para Parsons, oque permite a resolução do problema hobbe-siano passa pela interiorização das normas –um processo em que intervém, claramente,as influências tutelares de Durkheim e Freud.A ideia hobbesiana, segundo a qual as pai-xões humanas resultariam claramente numconflito social endémico, leva Parsons a en-tender que a resposta a este problema não ésolucionável no quadro da mera coordenaçãodos interesses dos indivíduos. A solução im-plica a interiorização das normas. Atravésdeste processo, é possível aos actores soci-ais adoptar valores padrão que limitariam odomínio dos fins a que poderiam aspirar edos meios que poderiam empregar para atin-gir esses fins. Para definir os padrões de va-

49 Cfr. Talcott Parsons,Ibid. op. cit., pp. 178-301 ;pp. 301 ; 451 ;

50 Cfr. Talcott Parsons, “Introduction”, op. cit., p.XI.

lor Parsons começa com uma situação idea-lizada:

a) os actores partilham expectativas co-muns quanto ao desempenho de papéis;

b) estas expectativas estão integradas numsistema de valores mais vasto que também épartilhado;

c) quer as expectativas quer os valores sãointeriorizados.

Neste contexto, os agentes cooperarão en-tre si num padrão coordenado de actividadepor três razões básicas: a) encontram-secomprometidos com o curso de acção espe-rado ou prescrito, porque cada um de per si ointeriorizou como mais adequado ou apropri-ado; b) interiorizaram outros valores relaci-onados, que podem ser ameaçados se existiruma falha em levar por diante as exigênciasque a situação apresenta e c), têm receio queoutros os punam por não agirem adequada-mente, frustrando expectativas ou perdendoestima, amor e aprovação. Nesse sentido,postula-se um teorema da acção institucio-nalizada, graças ao qual qualquer padrão deactividade tenderá a cristalizar ao longo dotempo, até porque qualquer tentativa de des-vio em relação às expectativas padronizadasoriginará consequências desvantajosas. Esteteorema providenciará no sentido de o actorficar positivamente motivado para cooperarcom outros, agindo de acordo com as neces-sidades institucionais. É, pois, através da in-teriorização de valores comuns que um sis-tema de interacções sociais pode ser estabili-zado.

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3 As divergências Parsons –Schutz

Desde 1937 até 1940, Alfred Schutz, queelaborara um texto de recensão crítica do tra-balho de Parsons, dirigiu-se-lhe várias vezesno sentido de se encontrarem. O encontrorealizou-se, mas correu da pior forma, poisParsons via no texto de Schutz uma críticaao seu trabalho. Schutz, por seu turno, diziaque apenas pretendia clarificar algumas dassuas dificuldades no entendimento do traba-lho de Parsons51.

Os desencontros entre Parsons e Schutzsão muito frutíferos no que respeita aosdesenvolvimentos posteriores dos trabalhosdos dois autores e dos seus seguidores.Schutz insistirá várias vezes em que jamais,como suspeitou Parsons, pretendia proce-der a uma revisão do seu trabalho chegandomesmo a dizer que estava de acordo comgrande parte da obra e lamentava se, por al-guma vez, ou por alguma razão ou outra, oseu interlocutor se sentiu induzido a modi-ficar os alicerces básicos do seu sistema.52

Apesar desta gentileza, na mesma correspon-dência encontram-se interpelações directassobre pontos de discordância evidentes.

Podem-se aduzir algumas hipóteses paraexplicar a diferença de percepção entreSchutz, os seus seguidores e o próprio Par-sons sobre a magnitude das divergências.

Uma explicação geralmente aceite diriarespeito à vontade de Schutz de encontrar uminterlocutor intelectual na Sociologia ameri-cana. Parsons seria relativamente óbvio pela

51 Richard Grathoff,The theory of social action, ;the correspondence of Alfred Schutz and Talcott Par-sons, Indiana University Press, Bloomington, 1978 p.98.

52 Richard Grathoff,Ibid. op. cit., pp. 97-98.

sua profunda ligação com a tradição euro-peia e por ser, de certo modo, o represen-tante mais proeminente de uma orientaçãoinvestigativa que se reclamava de inspira-ção weberiana. Com efeito depois do en-cerramento do diálogo com Parsons, Schutzabordou meios intelectuais americanos atra-vés, sobretudo, dos círculos fenomenológi-cos, designadamente na Revista Philosophyand Phenomenological Research, de MarvinFarber. A maior parte do seu trabalho ga-nharia uma decisiva inspiração na recepçãocrítica da Fenomenologia e, só passados al-guns anos, com o conhecimento crescente dasociologia americana, em especial do Prag-matismo, começaria a ser conhecido entre asCiências Sociais53.

Uma segunda explicação, aduzida porThomason, seria o facto de Schutz ocuparum terreno intermédio entre a objectividadee o rigor lógico dos esquemas e procedimen-tos científicos e o mundo do senso comumem grande parte subjectivamente fundado eapenas intuitivamente apreensível. Parece-nos que esta posição de Burke Thomasonnão está devidamente fundada. Para alémde nem toda a correspondência indicar nestesentido – já que existem interpelações direc-tas entre os dois autores em que se revelamdivergências claras nesta matéria – ,constata-se, na obra de ambos os autores, substânciapara uma vastíssima fonte de discrepâncias.Aliás, se Schutz ocupasse um terreno inter-médio – o que é de todo bastante imprová-vel – o mesmo não se poderia dizer de Par-sons. Schutz pretende estabelecer uma re-lação activa entre a percepção intersubjec-tiva do mundo quotidiano e as ciências soci-

53 Cfr. Burke Thomason,Making sense of reifica-tion, op. cit., p. 30-31.

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ais. Isto traduz-se, em relação ao seu opo-nente/interlocutor, em substanciais diferen-ças de metodologia científica que não são fa-cilmente compatíveis com ecletismo cientí-fico.

Nesse sentido, parece mais legítimo acei-tar a explicação de Wagner, segundo a qualSchutz terá lido de forma incorrecta as in-tenções de Parsons, vislumbrando neste umatentativa de correcção de Weber que passavapor uma abordagem onde a psicologia sociale a fenomenologia desempenhariam um pa-pel importante54.

Na verdade, uma leitura de muitos dosensaios schutzianos e da vasta obra de Par-sons evidenciam uma mais do que provávelfricção profunda entre o pensamento da so-ciologia de inspiração fenomenológica e ateoria parsoniana da acção. Referimo-nos,em primeiro lugar, a orientações metodoló-gicas completamente divergentes sobre as re-lações entre a Ciência Social e o mundo doconhecimento vulgar e, em segundo lugar,às consequências que estas orientações com-portam para a concepção de integração so-cial e de relações entre os agentes e as nor-mas. Ora estas duas áreas revelaram-se fun-damentais nas discussões que atravessaram oséculo passado entre as duas teorias e os seusseguidores.

54 Helmut Wagner citado por Fred Kernstin, “Edi-tor’s Preface” in Alfred Schutz “The Problem of Raci-onality in the social world”,Collected Papers IV, Dro-drecht, Boston and London, Kluwer Academic Pu-blishers, 1996. O quarto volume dosCollected Pa-persfoi editado após a morte de Helmut Wagner, im-portante estudioso de Schutz, ao qual Ilse Schutz en-tregara um conjunto de inéditos com este objectivo,cerca de vinte anos depois da publicação dos três pri-meiros volumes. Wagner ainda surge como editor.

3.1 Divergênciasepistemológicas: abordagemsubjectiva

Parsons nunca estendeu a sua rejeição do po-sitivismo na análise social aos métodos dasciências positivas, considerando mesmo emThe structure of social action,que existe umnúcleo metodológico comum a todas as ciên-cias empíricas, qualquer que seja o seu ob-jecto de estudo. O conhecimento racionalé um todo orgânico55. Nesse sentido, to-das as ciências merecedoras desse nome pro-cedem à integração das observações empí-ricas discretas em conceitos teoréticos dota-dos de abstracção, expressando-se através deleis gerais analíticas. Por exemplo, a mecâ-nica newtoniana tinha como ponto de partidaa observação de corpos em queda ou de bo-las rolando em planos inclinados. Estas ob-servações jamais poderiam ter fornecido asbases para a elaboração das leis sobre a gra-vitação universal, a não ser que se expressas-sem em termos de conceitos abstractos e ana-líticos como sejam “massa”, “aceleração”,etc. Ou seja, a abstracção conceptual em re-lação ao concreto é uma condição teoréticaessencial para a formulação de leis científi-cas. Embora as ciências sociais analisem fe-nómenos subjectivos, não se podem excluirdeste padrão geral de desenvolvimento cien-tífico. Deste modo, para Parsons não há co-nhecimento empírico que não seja concep-tualmente formado. Toda a referência a da-dos puros dos sentidos, experiência pura oua corrente de consciência, não é apenas des-critiva da experiência em si mas uma ques-tão de abstracção metodológica, legítima e

55 Cfr.Talcott Parsons,The structure of social ac-tion, op. cit, p. 21; p .28.

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importante para certos fins, mas de todos osmodos, abstracção56. Para se expressar comouma ciência, capaz de formular resultadosatravés de leis dotadas de generalidade, a so-ciologia tem de passar pela fase crucial dedesenvolvimento conceptual em que os ele-mentos analíticos sejam desenvolvidos comoos meios de exprimir os resultados da obser-vação sociológica.

Na investigação sociológica, apenas se ob-terão, em primeira instância, colecções deobservações discretas semelhantes às expe-riências isoladas que o físico vai anotandono seu diário. Com o fim de dar origem aleis gerais científicas, é preciso decompor es-sas unidades discretas em componentes queas integram ou seja em elementos analíticos.Da mesma forma em que um corpo físico édescrito como tendo uma certa massa, velo-cidade, etc., um acto deve ser descrito comotendo um certo grau de racionalidade, de-sinteresse, etc. “É a estes atributos geraisde um fenómeno concreto relevantes dentrodo enquadramento de um determinado qua-dro de referência descritivo, e a certas com-binações deles, que se aplicará o termo ele-mentos analíticos”57. Verificar-se-á que cadaobservação compreenderá uma combinaçãoespecífica dos valores de um ou mais ele-mentos analíticos. Estes elementos analíti-cos não deixam de ser uma abstracção, umavez que se referem a uma propriedade geral:a massa de um corpo, tal como a raciona-lidade de um acto, nunca podem ser obser-vados empiricamente como tais58. Por seulado, é uma experiência universal da ciên-cia que estes elementos analíticos, uma vez

56 Cfr. Talcott Parsons,Ibid. op. cit., p. 28.57 Talcott Parsons,Ibid. op. cit., p. 34.58 Cfr. Talcott Parsons,Ibid. op. cit., p. 35.

claramente definidos, apresentarão determi-nados modos uniformes de relação, os quaisserão chamados “leis analíticas”59. A obser-vação é fundamental mas a ciência socioló-gica só emerge quando as observações con-sideradas deper si forem decompostas emelementos constitutivos susceptíveis de in-tegrarem leis universais. Este predomínioda concepção objectivista da ciência socialnão impedirá Parsons de apresentar uma lei-tura relativamente acolhedora do conceito deverstehen(compreensão) através do qual eletenta introduzir na teoria da acção um ele-mento normativo. Porém, a dimensão sub-jectiva fica largamente reduzida à interiori-zação das normas.

A abordagem à Teoria Social formuladapor Schutz, tinha tido lugar na sequência dosgrandes debates levados a efeito durante oSéculo XIX, na Alemanha, sobre a naturezae a metodologia das Ciências Sociais. Oseu primeiro estudo –Der Sinnhafte Aufbauder sozialen Welt, publicado em Viena em193260 – já constituía uma leitura sobre ospressupostos metodológicos de Weber feitaà luz de uma conceptualização fenomenoló-gica. Neste trabalho, como aliás em toda asua obra, Schutz insistiu em que o mundo so-cial era susceptível de ser interpretado pelosseus membros como significativo e inteligí-vel em termos de categorias sociais, o queabria a porta à possibilidade de uma relaçãoentre a Ciência Social e o conhecimento vul-gar dos agentes sociais

Para fundamentar este ponto de vistaSchutz, em “Concept and Theory Formation

59 Cfr. Talcott Parsons,Ibid. op. cit., p.36.60 Utiliza-se neste artigo a tradução de 1967. Al-

fred Schutz, Phenomenology of social world, Evans-ton, Illinois, Northwestern University Press, 1967(Trad: George Walsh e Fr. Lehnert).

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in the social sciences” insistiu em três pon-tos fundamentais. Em primeiro lugar, defen-deu a distinção entre ciências naturais e ci-ências sociais com base no facto de que assegundas lidam com acontecimentos e rela-ções pré-interpetadas e, como tal, significa-tivas para os actores evolvidos. Em segundolugar, argumentou que os processos compre-ensivos são procedimentos centrais para queos actores sociais possam interpretar signifi-cativamente o mundo. Finalmente, defendeuo método da compreensão enquanto abor-dagem da subjectividade do actor como ummétodo indispensável para as ciências soci-ais. Com efeito, “o mundo da natureza, talcomo é explorado pelos cientistas naturaisnão significa nada para as moléculas, áto-mos e electrões. Mas o campo de obser-vação do cientista social – a realidade so-cial – tem um significado especial e uma es-trutura relevante para os seres vivos, agindoe vivendo nele. Através de constructos dosenso comum eles pré-seleccionaram e pré-interpretaram este mundo que eles experi-mentam como a realidade do seu dia a dia.É isto que determina o seu comportamentomotivando-o”61.

Aplicando este raciocínio à observação ci-entífica, Schutz concluía mesmo que esta ac-tividade está permeada por relações de com-preensão entre os agentes, antecipando-se àsconclusões que Karl Otto Apel, 20 anos maistarde, elaboraria sobre está matéria: “o pos-tulado que explica e descreve o comporta-mento humano em termos de uma observa-ção empírica controlável revela-se curto pe-rante a descrição e explanação do processo

61 Alfred Schutz, “Concept and theory formation inthe social sciences” in Alfred Schutz,Collected Pa-pers, Vol. I, The Hague, Martinus Nijjoff, 1962, p.59.

pelo qual o cientista B controla e verifica aspesquisas e conclusões do cientista A. Parafazer isso, B tem que saber o que A obser-vou qual era o objectivo da sua investigação,porque ele pensou o facto observado comodigno de ser observado, isto é relevante parao problema científico em causa, etc. Este co-nhecimento é vulgarmente chamado de com-preensão”62.

Assim, para Schutz a compreensão (vers-tehen) é fundamental, seja na vida quotidi-ana quando interpretamos as acções uns dosoutros, seja na ciência social, quando ondeo nosso objectivo é chegar a uma compreen-são significativa da realidade social que, si-multaneamente, tenha algum significado aosolhos do conhecimento partilhado no mundoda vida. Se o mundo social surge como umamatriz de actividade interpretada pelos parti-cipantes com recurso a constructos intersub-jectivamente válidos, Schutz opina que a suainfluência na acção social não pode ser ig-norada pelos cientistas sociais. Estes podemcriar constructos de segunda ordem, que ori-ginam modelos tipificados de estudo da ac-ção social.

Nesse sentido, na sua apreciação da obrade Parsons no decurso da fracassada corres-pondência entre ambos, Schutz arguiria queParsons se esquiva a demonstrar a razão pelaqual a referência ao ponto de vista subjec-tivo é um pré-requisito para a teoria da ac-ção63. Schutz irá mais longe. Dirá que Par-sons tem uma intuição correcta segundo aqual uma teoria da acção ficaria sem signi-ficado sem a apreciação do ponto de vistasubjectivo. Porém, acusa Parsons de não se-

62Alfred Schutz, “Concept and theory formation inthe social sciences”, op. cit., p. 53

63Richard Grathoff,Theory of social action, op.cit., p. 36

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guir esse ponto de vista até às suas últimasconsequências. Nesse sentido, argumentaque Parsons substitui os eventos na mentedo actor por uma observação apenas aces-sível ao observador, confundindo a observa-ção objectiva dos fenómenos objectivos comos próprios fenómenos objectivos64. Na res-posta, Parsons não podia ser mais claro: “osfenómenos científicos só podem ser descri-tos quando descritos e analisados por um ob-servador”65 Nesse sentido, o ponto de vistasubjectivo ganha, em Parsons, uma dimen-são puramente lógica.

3.2 Controvérsias sobre a ordemsocial

3.2.1 Parsons: a orientação normativa

O uso parsoniano da interiorização social ea sua insistência no papel motivacional dasnormas e dos valores, constituía um modode solução do problema hobbesiano e umatentativa firme de resposta às questões relaci-onadas com a possibilidade de coordenaçãosocial dos projectos individuais dos agentes.Como viria a ser substancialmente assina-lado, partindo de um enquadramento teóricoque começava com uma certa consideraçãodo ponto de vista subjectivo do actor, Par-sons acabava por chegar a uma análise com-pletamente externa das normas e dos valoresencaradas como determinantes da conduta.

Em Parsons, a dimensão subjectiva da ac-ção fica reduzida à mera interiorização doenquadramento normativo. A forma comoa sua conceptualização evolui, indicia, ape-sar da referência enfática ao papel de Weber,

64 Ibid., op. cit. p. 36.65 Talcott Parsons,Structure of social action, op.

cit., p. 88.

que a resposta da teoria voluntarista da acçãoe, em especial do estrutural-funcionalismo,ao problema da diversidade, se manifestaatravés da formulação de uma ideia de in-tegração social e de formação de consensofundada especialmente nas formulações deDurkheim.

As concepções que apontam para um es-tado de anarquia e de “guerra de todos con-tra todos” (que será superado, para em, seulugar, se instaurarem o equilíbrio e o con-senso social), remontam a Hobbes e à suaasserção segundo a qual “é um preceito ouregra geral de toda a razão que o homem sedeve esforçar pela paz”. Detecta-se, ao longoda obra de Hobbes, um rigor lógico que ocoloca ao mesmo tempo nas correntes con-traditórias designadas por jusnaturalismo oudo direito natural, e por positivismo jurídico.Preceitua-se que acção justa no estado civil éaquela conforme a lei que deriva da vontadedo soberano, o que remete para uma concep-ção formal de direito na base da qual a jus-tiça consiste na observância da ordem jurí-dica positiva, qualquer que seja o seu con-teúdo. Prescreve-se a existência de um Es-tado Absoluto assente na monopolização daprodução do Direito pela eliminação de to-das as fontes que não sejam a lei. Por ou-tro lado, considera-se a existência de uma leinatural como ditame da razão. Como é queé possível o carácter absoluto do Estado sea vontade do soberano deve obedecer à leinatural? Na opinião de Bobbio, a explicaçãodo paradoxo reside na especificidade do con-ceito hobbesiano da razão. A razão, em Hob-bes, não é a faculdade com a qual aprende-mos a verdade evidente dos primeiros princí-pios. Tem um conteúdo utilitário e finalista:serve para distinguir o que é conveniente einconveniente para alcançar a paz, concebida

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como fim supremo pela lei natural. A lei na-tural é aquele ditame da razão que sugere aohomem que se quer a paz , deve obedecerem tudo à lei positiva. Ao contrário da mai-oria dos jusnaturalistas, o fundamento con-tratualista do Estado, em Hobbes, serve paragarantir a ausência de limites ao seu poder.Ou seja, enquanto para os outros jusnatura-listas anaturalis ratioourecta ratioé o bem,para Hobbes a lei natural prescreve a procurada paz. Desta lei fundamental, consideradacomo primeiro princípio da razão prática, de-rivam as restantes leis. Fundamenta-se esteponto de vista numa concepção fortementepessimista sobre o estado original que pre-cede o contrato: “os homens não retiram pra-zer algum da companhia de outros homens(e, sim, pelo contrário, um enorme despra-zer) quando não existe um poder capaz de osmanter a todos em respeito.”66 A justiça sóé passível de ser realizada no Estado Civil,pois “onde não há poder comum e não há lei,não há injustiça. Na guerra [de todos contratodos que é típica do estado natural], a forçae a fraude são as virtudes cardeais. A jus-tiça e a injustiça não fazem parte das facul-dades do corpo ou do espírito”67. Pelo con-trário, após a realização do pacto intersubjec-tivo entre os homens, é um preceito ou regrageral da razão que todo o homem se deve es-forçar pela paz. A integração social ganhauma força coactiva em que a vontade dos su-jeitos se reduz à obtenção da paz. O homemconcorda em desistir da sua liberdade natu-ral em favor da autoridade soberana que, emtroca, garante a sua segurança.

Este percurso é fundamental para uma

66 Thomas Hobbes,Leviatã, Lisboa, Imprensa Na-cional Casa da Moeda, 1995, p. 111.

67 Ibid., p. 113.

certa linha da sociologia. Em Durkheim,(uma das principais influências que Parsonscita quanto à fase do seu percurso que classi-fica como “estrutural-funcionalista”) a pos-sibilidade de realização da felicidade hu-mana é olhada, prioritariamente, sob o pontode vista da integração social e da forma-ção de um consenso68. Encontra-se emDurkheim, principalmente quando aborda osuicídio e a divisão do trabalho, uma ques-tão de acentuado recorte hobbesiano: quaisos mecanismos que permitem aos indivíduosintegrarem-se na sociedade? Ou seja, comoé que sociedades, que prezam tanto o indivi-dualismo, se podem proteger contra as pre-tensões egoísticas dos seus membros e alcan-çar um mínimo de consenso? Ou, de outromodo, como é que a autonomia do indiví-duo é compatível com a existência social?Para este autor, a ausência da acção mode-radora da norma conduz a um estado de ano-mia ao qual devem ser atribuídos “(...) osconflitos incessantemente renovados e as de-sordens de toda a espécie de que o mundoeconómico nos dá um triste espectáculo.”69Aintervenção da consciência colectiva, enten-dida como “conjunto de crenças e de sen-timentos comuns à média dos membros deuma mesma sociedade (....) independentedas condições particulares em que os indiví-duos se encontram”70, entendida como pos-suindo uma natureza “diferente dos estadosde consciência individual”71, constitui umdos contributos fundamentais de uma pers-pectiva que privilegia uma visãopacificante,

68 cfr. Émile Durkheim,A divisão do trabalho so-cial, vol. 2, Lisboa, Presença, 1977, pp. 9-34.

69 Ibid., p. 9.70 Ibid., p. 99.71 Émile Durkheim,As regras do método socioló-

gico, Lisboa, Editorial Presença, 1987, p. 17.

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na qual as partes só têm sentido quando en-tendidas em simultâneo com o todo orgâ-nico72. A consciência colectiva é distintadas consciências individuais. Com efeito,ao agregarem-se, as almas individuais dãoorigem a uma individualidade psíquica denovo género.73 Como observa Luhmann,“em Durkheim, moralidade e solidariedadesão gémeas”74.

Encontramo-nos perante uma visão queconcebe a sociedade como um todo, mais doque em termos de uma pluralidade ou de umconflito entre diferentes grupos e forças so-ciais. Perspectiva-se a defesa de uma soci-edade onde o indivíduo participará na ener-gia colectiva pela realização da sua função:“o imperativo categórico da consciência mo-ral está em vias de tomar a forma seguinte:põe-te em estado de desempenhar utilmenteuma função determinada”75. Nessa medida,defende-se uma articulação entre o todo eas partes, pela qual a liberdade é, ela pró-pria, produto de uma regulamentação: “Nãoposso ser livre senão na medida em que ou-trem é impedido de beneficiar da superiori-dade física, económica ou outra de que dis-põe para sujeitar a minha liberdade. “76 Coe-rente com a tentativa de encontrar uma formalógica de descrever a interpenetração entreindivíduo e sociedade, o seu modelo com-preende uma dinâmica dos factos sociais queenaltece o sujeito apenas como plenamente

72 Nesse sentido, Durkheim torna claro que os mo-tivos do seu trabalho se relacionam com a questão das“relações entre a personalidade individual e a solida-riedade social.” Émile. Durkheim,A divisão do tra-balho social., vol. 1, p. 49.

73Cfr Ibid., pp. 102-103.74 Niklas Luhmann,The differentiation of society,

New York, Columbia University Press, 1982. p. 7.75 Ibid., p. 56.76 Ibid., p. 10.

realizável no todo. Deste modo, o indivíduosó pode conseguir a sua realização, aceitandoo seu papel e a sua função no interior do sis-tema da divisão de trabalho.

O consenso social imaginado por estas re-flexões de linhagem hobbesiana privilegia aordem como um ponto de partida, pressen-tindo no conflito e na dissidência uma fontede desprazer e de sofrimento que ameaçam aprópria possibilidade de relações sociais es-táveis. A hiperbolização da sociedade, comoalgo que vive em si, dotada de uma facti-cidade e uma exterioridade incontornáveis,transformam a força coactiva do consensosocial numa minimização do papel transfor-mador e activo do agente social.

O pensamento de Parsons, uma das facesmais visíveis deste ponto de vista que tende aenfatizar o consenso, dedica a maior parte doseu esforço analítico à exploração das razõesque podem justificar a estabilidade e a dura-bilidade das estruturas sociais. Norbert Eliascomenta, a propósito dos excessos do funci-onalismo: “temos que imaginar o rio comoestático antes de dizermos que ele corre”77.Mais uma vez à maneira de Hobbes, o pro-blema que persegue Parsons é o da forma decoordenar a pluralidade de fins perseguidospelos diversos sujeitos, continuando a man-ter a ordem social, sem que surja a guerrade todos contra todos. A grande questão, in-tuída emThe structure of social action,é,

77 Norbert. Elias,Introdução à sociologia, Lisboa,Edições 70, 1980, p. 125. Elias acrescenta: “Foi-setão longe na direcção oposta (à da conceptualizaçãoda mudança) que líderes teóricos da sociologia, comopor exemplo Talcott Parsons, consideram a estabili-dade ou a imutabilidade como características normaisde um sistema social, e a mudança apenas como con-sequência de perturbações do estado normal de equi-líbrio das sociedades.”

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mais uma vez, a de como é possível a ordemquando o homem é basicamente destrutivo ecompetitivo. Nessa medida, desdeThe struc-ture of social action, só a orientação norma-tiva pode garantir a Parsons o mínimo de or-dem e de harmonia requerida para a manu-tenção da sociedade como uma colectividadee para sustentar a possibilidade de evitar ocaos. Assim, a institucionalização de normase de valores comuns e a sua interiorizaçãopelos indivíduos membros de uma dada soci-edade é a chave que se tornará determinanteao longo do seu trabalho para a compreen-são da ordem social. O esforço teórico deParsons traduz-se, em larga medida, na re-dução da acção social a um processo no in-terior do qual é garantido que as interacçõestendem a restabelecer a harmonia e o con-senso, proporcionando a integração no sis-tema78. O problema da legitimidade é espe-cialmente reduzido à transformação das ex-pectativas sociais em exigências legítimas àluz dos padrões normativos vigentes. Umsistema “tem de ter uma aprovação suficientedos seus actores adequadamente motivadospara agir de acordo com as exigências dosseus papéis, positivamente na realização dassuas expectativas e, negativamente, quantoà abstenção de comportamentos demasiado

78 Não será por acaso que Talcott Parsons começaa introdução ao primeiro capítulo de O sistema dassociedades modernas com uma espécie de declaraçãode filiação: “Este livro tem muitas raízes intelectuais.Talvez a mais influente seja o idealismo alemão quevai de Hegel a Marx e Weber. Embora hoje estejaem moda ridicularizar a glorificação que Hegel fez doEstado Prussiano, na verdade desenvolveu uma teoriacomplexa da evolução societária geral e a sua culmi-nação no Ocidente moderno(...)” Talcott Parsons,Osistema das sociedades modernas, São Paulo, Livra-ria Pioneira Editora, 1974, p. 11.

disruptivos, isto é, desviantes”79. Devem-seevitar os compromissos com padrões cultu-rais normativos que “não assegurem um mí-nimo de ordem” ou que dêem origem “ a exi-gências impossíveis por parte das pessoas,que gerem desvio e conflito a um nível in-compatível com um mínimo de condiçõesde estabilidade e de desenvolvimento orde-nado.”80 Toda a mudança, nesse sentido, érapidamente catalogada como desvio. To-das as reclamações particulares são olhadascomo uma ameaça clara à capacidade inte-gradora do sistema. Talcott Parsons não he-sita em classificar de fundamentalistas as po-sições teóricas que expressam uma “resistên-cia à generalização de valores”81. A falta deadequação dos indivíduos às normas moraisintegradoras, designada por anomia, é classi-ficada como a antítese polar da instituciona-lização plena ou mesmo como “o colapso daordem normativa”82. Com base numa des-confiança em relação aos movimentos soci-ais, qualquer criticismo imanente surge, naverdade, como reprovável. A comunidadesocietária “é considerada como um corpocorporativo de cidadãos que empreendem re-lações consensuais com a sua ordem norma-tiva”83. A abordagem conceptual de Parsonsem relação à comunidade societária centra-se na ideia de integração, promovendo a par-tilha de um sistema de crenças comuns entreos participantes da interacção84. Assim, “a

79 Talcott Parsons,The social system, New York,The Free Press, 1964, p. 27.

80 Ibid., pp. 26-27.81 Talcott. Parsons,O sistema das sociedades mo-

dernas, op.cit., p. 122.82 Ibid., p. 81.83 Ibid., p. 24.84 Cfr .Talcott Parsons,The social system, op.cit.,

pp. 325-332.

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ordem normativa ao nível societário contémuma solução para o problema de Hobbes –isto é, impedir que todas as relações huma-nas degenerem até ao ponto de uma guerrade todos contra todos.”85 Nesse sentido, “afunção primária desse subsistema integradoré definir as obrigações de lealdade à comu-nidade societária, tanto para os participan-tes como um todo, como para as diferentescategorias destatuse papéis diferenciadosno interior da sociedade”86. Considera-se,pois, que a teoria individualista tem enfati-zado exageradamente “o interesse pessoal”pelo que o problema mais imediato para amaioria dos indivíduos no caso de conflito “éo ajustamento das obrigações entre lealdadescompetitivas”87Virando as costas às possibi-lidades normativas que resultavam dos mo-vimentos sociais, vislumbrando em todos omesmo “delírio fundamentalista”, esta teoriaacaba por conduzir à ideia de que só a gera-ção de novas formas de influência pode levara um consenso normativo que provenha re-cursos capazes de integrarem a comunidadesocietária.

Este trabalho seria dificilmente compatí-vel com o de Schutz sobretudo pela suaimensa oposição a uma concepção subjecti-vista e individualista. Com efeito, as diferen-ças de concepção ao nível da Teoria Social eda Metodologia das Ciências Sociais impli-cavam juízos sobre o papel do actor socialque no caso de Schutz, possibilitavam umaaproximação à contingência e à entropia in-suportáveis para uma visão funcionalista.

A questionação moral, ética ou polí-tica parece arredada do universo teórico de

85 Talcott Parsons,O sistema das sociedades mo-dernas, op.cit., p. 23.

86 Ibid., p. 24.87 Idem Ibidem.

Schutz. Com efeito, este não pretende fazerqualquer apologia desta ou daquela formade estar no mundo mas apenas descrevê-la.São relativamente escassas as referências deSchutz dos quais se possam inferir a existên-cia de um posicionamento explícito ao nívelde questões com repercussão napraxis.

A insistência na atitude natural podemesmo induzir em erro e parecer a apolo-gia de um certo espírito despido de inten-ções críticas. O assunto pode ser abordadode vários modos. A verdade é que em toda aabordagem do mundo da vida está implícitauma certa ideia de crítica que alguns já con-sideravam remontar a Husserl.88 A críticaao cientismo generalizou-se de um modo queestaria presente durante quase todo o séculoXX através de Weber, de Luckács e da Es-cola de Frankfurt. Com Habermas, o mundoda vida seria mesmo objecto de uma abor-dagem essencialista na qual se diagnostica aexistência de dois domínios sociais – “sis-tema” e “mundo da vida” - que se diferen-ciam consoante a racionalidade que predo-mine em cada um deles seja comunicacio-nal ou instrumental89. Do ponto de vista

88 Segundo Bragança de Miranda, trata-se de umatradição que, de certo modo, remonta ao próprio Hus-serl. O mundo da vida seria a instância dos valores poroposição ao universo da ciência, ou melhor do reduci-onismo cientista degradado transformado em projectode dominação do mundo. (José Augusto Bragançade Miranda,Analítica da actualidade, Lisboa, Vega,1994, pp. 54-55).

89 Com efeito, em Habermas estabelece-se, uma di-ferença entre: “1) o enquadramento institucional deuma sociedade ou mundo vital sócio-cultural, e 2) ossubsistemas de acção racional relativa a fins que se in-crustam nesse enquadramento. Na medida em que asacções são determinadas pelo marco institucional sãoao mesmo tempo dirigidas e exigidas mediante expec-tativas de comportamento, sancionadas e recíprocas.Na medida em que são determinadas pelos subsis-

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do mundo da vida, focam-se os elementosda razão prática, enquanto o ponto de vistado sistema enfatizam-se os elementos rela-cionados com a acção teleológica e a razãoinstrumental. No mundo da vida prevalecemmecanismos de intercompreensão e de con-senso, enquanto no sistema prevalecem osmecanismos de troca e de poder.

Porém, como Lévinas já intuíra numa ob-servação dirigida a Heidegger90, o própriomundo da vida pode ser um lugar de reifica-ção. Ora, a verdade é que Schutz, sem nuncater feito uma extensa abordagem ética ou po-lítica, deixou um percurso aberto à reflexi-vidade no seio desse mundo, abrindo portas

temas de acção racional-teleológica, regulam-se pormodelos de acção instrumental ou estratégica.” (Jür-gen. Habermas,Ciência e técnica como ideologia,Lisboa, Presença, 1987, p. 60) Urge, assim, detec-tar as instâncias de resistência, as esferas aonde existeuma outra lógica em nome da qual seja possível de-fender a utopia de uma sociedade sem restrições à co-municação. A resistência à penetração dos universossistémicos desloca-se para o horizonte de interacção epara o mundo da vida sócio-cultural: a racionalizaçãoao nível do mundo da vida sócio-cultural implicariaa extensão da comunicação isenta, enquanto ao níveldos sistemas de acção racional implicaria o aumentodas forças produtivas e a extensão do poder de dispo-sição da técnica.

90 Lembramo-nos, por associação de ideias, destapassagem de Lévinas em que este nos alerta para ofacto de que a reificação não é apenas o primado datécnica como Heidegger ( e com ele, todo o marxismoromântico, primordialmente de Marcuse), parece pen-sar: “quando Heidegger deplora a orientação da inte-ligência para a técnica mantém um regime de podermais desumano que o maquinismo e que talvez nãotenha a mesma origem que ele. (Heidegger não tem acerteza de que o nacional-socialismo provém da reifi-cação mecanicista dos homens e que não assente numenraizamento grosseiro e numa adoração feudal doshomens subjugados pelos senhores e mestres que oscomandam”). V. Lévinas,Descobrindo a existênciacom Husserl e Heidegger, op. cit., p. 167.

que Parsons fechava. O individualismo me-todológico e a sua abertura à subjectividadee à pluralidade de modos de conhecer noseio do mundo da vida tinham consequênciasnoutros planos. Geravam uma concepção deacção social que era incompatível com o de-terminismo normativo.

Com efeito, a sociologia de inspiração fe-nomenológica abordou de frente a questãoda particularidade, reconhecendo, de modoexplícito, a existência do fenómeno que hojeentendemos como pluralização dos mundosda vida. “Cada um percebe o mundo e ascoisas dentro do mundo desde o particularponto de vista em que está colocado em cadamomento, e também desde determinados as-pectos e perspectivas que variam na depen-dência do ponto de vista.”91 O conhecimentopróprio da atitude natural na quotidianeidade“traz a sua evidência em si próprio – ou emvez disso, é tido como pressuposto na faltade evidência em sentido contrário. É um co-nhecimento de receitas certas para interpre-tar o mundo social e para lidar com pessoase coisas, de forma a obter em cada situa-ção, os melhores resultados possíveis com omínimo esforço, evitando consequências in-desejáveis”92. Com efeito, a atitude naturaltem uma premissa de confiança na perma-nência das estruturas do mundo que ganhaespecial sentido quando pensada em relaçãoà sociabilidade: “eu confio que o mundo talcomo tem sido conhecido por mim perma-necerá e que consequentemente o acervo deconhecimentos obtidos dos meus sucessorese formado pelas minhas próprias experiên-

91 Aron Gurwitsch, “Introduction”,op. cit., p. xiii;p. xv.

92 Alfred Schutz, “O cenário cognitivo do mundoda vida”, in Helmut Wagner, (org.),Fenomenologia erelações sociais, op, cit., p. 83.

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cias continuará a preservar a sua validadefundamental”93. Neste sentido, é admissí-vel concluir pela existência na atitude natu-ral – pragmática, realista e carente de refle-xividade – de uma certa forma de conheci-mento que implica uma aceitação que é sus-ceptível de ser equacionado à luz daquilo queuma certa tradição do pensamento conside-rou como sendo a reificação94. A atitude na-tural e o conhecimento do senso comum im-plicam que “o processo constitutivo é intei-ramente ignorado, enquanto que a objectivi-dade constituída é perfeitamente tida por ad-quirida”95. Embora Schutz nunca tenha uti-lizado o termo “reificação”, é legítimo sus-tentar que a atitude cognitiva analisada nomundo da vida o conduz a identificar a ob-

93 Alfred Schutz e Thomas Luckmann,Structuresof life-world, op. cit., p. 7.

94 Segundo Frédéric Vandenberghe que historiouo conceito, apesar da palavrareificatio não aparecerem qualquer dicionário latino, deriva da contracçãodos termos“res” e “facere” e pode ser definida pelatransformação física ou mental de algo numa“coisa” ,que originalmente não era, ou seja, a tendência a ob-jectificar o que é dinâmico. Em suma, pode referir-se a “um tornar-se coisa” de algo que não é, por di-reito, uma coisa. Ou seja, a reificação consiste ematribuir ilegitimamente uma facticidade, uma fixidez,uma externalidade, uma objectividade, uma imper-sonalidade, uma naturalidade, em suma, uma “coisi-dade” ontológica julgada inapropriada. (Cfr. FrédéricVandenberghe,Une histoire critique de la sociologieallemande, Paris, La Découverte/Mauss, 1996 pp. 25-28), Nesse sentido, a reificação social tem a ver com ofuncionamento relativamente autónomo dos sistemasda cultura e da sociedade modernas, e com a sua trans-formação em verdadeiros cosmos fechados, funcio-nando independentemente da vontade dos indivíduos.cfr..Ibid., p. 38. Na medida em que a reificação signi-fica a determinação do indivíduo pelo exterior, pelasmacroestruturas da ordem material, significa, pois, asabotagem da liberdade individual. cfr..Ibid., p. 220.

95 Alfred Schutz,Phenomenology of social world,op. cit., p. 82.

jectividade como “constituída” e como taldependente de processos subjectivos. Simul-taneamente, conduz à ideia de que as pessoasreificam sempre que ignoram essa constitui-ção, tomando a objectividade por garantida.Há uma espécie de “congelamento” do qualdepende o esquecimento do papel activo dasconsciências dos agentes sociais. Esta aná-lise não implica, tal como acontece na tra-dição marxista, uma condenação, a adopçãode uma atitude crítica em relação aos proces-sos de reificação tal como sucede na obra deLuckács ou de Adorno. Pelo contrário, estáimplícita a ideia que, de certo modo, este es-quecimento dos processos activos de consti-tuição é indispensável para uma integraçãosocial bem sucedida. Sem esta dose de inter-pretação, que implica um certo grau de rei-ficação e até de inautenticidade, os actoressociais perderiam o contacto com um mundopartilhado de significados que tornam possí-vel a sociabilidade. De certa forma, comoconstituintes, os actores sociais são potenci-almente intérpretes. Porém, sem a partilhade significados comuns, o mundo social ga-nharia um estado de devir permanente e adiversidade da vida seria uma porta abertapara uma entropia dificilmente suportável.Com efeito, toda a actividade da consciênciaé uma actividade tipificadora na qual cadaexperiência do actor ocorre dentro dum ho-rizonte de familiaridade e pré-conhecimento.A percepção própria do senso comum é efec-tuada com base em tipos. “Estruturamos omundo de acordo com tipos e relações típi-cas entre tipos.”96

Porém, da mesma forma que Schutz

96 Alfred Schutz, “Type and edos in Husserl’s latephilosophy” inCollected papers, vol. III, op. cit., pp.94-95.

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chama a atenção para este aspecto passivodo estilo cognitivo do mundo da vida e daatitude natural, também destacou a dimen-são subjectiva da constituição. Ora, ao fazê-lo introduz uma larga margem para abrir asportas à contingência social.

Com efeito, Schutz reconheceu que omundo da vida traz, em si, mais do quea realidade quotidiana e recorreria a Wil-liam James e ao seu conceito de “sub-universos” para se referir às províncias designificado finito, a cada uma das quais cor-responde um particular estilo cognitivo97.Com o termo “províncias de significado fi-nito”, Schutz está a definir horizontes designificação plurais, onde determinadas pro-posições são aceites enquanto não entraremem conflito com outros pensadas ao mesmotempo. Entre estas contam-se o sono, a ex-periência estética, a fantasia, o mundo da ci-ência, o mundo da arte e o mundo das cren-ças religiosas. A atenção de Alfred Schutzà multiplicidade de realidades, a consciên-cia da existência de grupos diversificados, aatenção dedicada ao papel do outro, do es-trangeiro e do marginal são elementos cen-trais do seu pensamento, contribuindo para apossibilidade de compreensão reflexiva dosmecanismos de formação do estilo cognitivointerior de cada grupo98. A multiplicação

97 Alfred Schutz e Thomas Luckmann,Structuresof life-world, op. cit., p. 21-22.

98 Desde logo, devem referir-se nesta matéria tex-tos fundamentais de Schutz como “The homecomer”(Collected papers, vol. II, pp. 106-119) aonde seprocede à descrição da estranheza da situação sentidaquando do regresso a casa vindo da frente de guerra;“On multiple realities” (Collected papers, vol. I, op.cit., pp. 207-259); “Don Quijote and the problem ofreality” onde o problema das realidades múltiplas éretomado (Collected Papers, vol. II) ; e até “The wellinformed citizen” (Collected Papers, vol. II, op. cit.,

de experiências, bem como a possibilidadede as observar de uma outra perspectiva de-monstra que os consensos sobre a realidadesocial estabelecidos em cada grupo internosão, cada um por si, afinal um entre outrospossíveis. Com o faz questão de precisarThomason, mesmo no universo da fantasiaou da demência (o caso de Don Quijote),Schutz abstém-se de formular qualquer ar-gumento ontológico sustentando o mundo darealidade quotidiana como o mundo autenti-camente real99.

O reconhecimento explícito de uma certacontingência inerente aos mundos da vidadeixa em aberto o caminho da reflexividadecomo um elemento essencial de superaçãodo seu carácter coercivo. É nessa medidaque Schutz não hesitará mesmo em afirmarque “o que está para além de qualquer ques-tionamento até agora pode ser sempre postoem questão”100. Com efeito, “o que é tidopor garantido não forma uma província fe-chada, articulada inequivocamente e clara-mente arranjada. O que é tido por garantidodentro da situação predominante no mundoda vida está rodeado de incerteza”101Os ac-tores sociais agem com base nos saberes ad-quiridos nas suas histórias efectivas, ou seja,de acordo com as suas situações biográficasdeterminadas. Estas sempre enfatizam de-terminadas possibilidades de acção em de-trimento de outras, tornando os actores e os

pp. 120-134), onde o carácter fluído e susceptível deser sobreposto e alterado do sistema de relevâncias édemonstrado.

99 Burke Thomason,Making sense of reification,op. cit., p. 110.

100Alfred Schutz, “Type and edos in Husserl’s latephilosophy” inCollected papers, vol. III, op. cit., p.231.

101 Alfred Schutz e Thomas Luckmann,The struc-tures of life –world, op. cit., p. 9.

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intérpretes cegos para outros possíveis quepodiam preencher as suas vidas. Porém, sea realidade é como é, não é porque tem deser assim - porque dispõe de uma qualquerpropriedade ontológica – mas sim graças aum consenso que se estabelece na vida quo-tidiana. Isto será claramente assumido porSchutz num dos seus textos mais marcantes,a propósito de uma experiência tão radicalcomo a loucura: “ o que é a loucura o que éo juízo num universo que é a soma de todosos nossos sub-universos?”102 Nem o sensocomum de Sancho nem a loucura de Quijotemerecem condenação. Se existem processossubjectivos de construção da realidade so-cial, então ela reside sempre num consensocontingente que pode sempre ser substituídopor outro possível103.

Evidentemente, pode-se dizer que se estáperante um estilo intelectual, um método euma atitude. Porém, dificilmente se pode ig-norar que resultam possibilidades para pen-sar a contingência e a reflexividade da expe-riência do sujeito moderno, de um modo emque a constante erosão que se verifica con-temporaneamente na estabilidade e na per-manência dos mundos da vida e das provín-

102 Alfred Schutz, “Dom Quijote and the problem ofreality” in Collected Papers, II, op. cit., pp. 157-158.

103 .Nesse sentido, apontam os esforços desenvol-vidos num notabilíssimo texto por Peter Berger paraestabelecer as semelhanças entre Musil – O Homemsem Qualidades – e Schutz, à luz do seu texto “OnMultiple realities”. Nessas semelhanças, Berger en-contra dois traços fundamentais: uma abertura essen-cial a todos os modos possíveis de experiência e umareflexividade persistente na observação do mundo.Peter Berger, “The problem of multiple realities: Al-fred Schutz and Robert Musil” in Maurice Natanson(Ed.) ,Phenomenology and social reality: essays onmemory of Alfred Schutz, The Hague, Martinus Nij-joff, 1970, pp. 213-233.

cias finitas de significado pode ser compre-endida de forma incompatível com a con-sensualidade apriorística definida pelo fun-cionalismo.

Ao longo deste texto, fomos, pois delimi-tando duas áreas em que se verifica a ausên-cia de concordância e a existência de duaslinhas dificilmente conciliáveis.

Em primeiro lugar, a dívida de AlfredSchutz com Husserl e Weber tornava incom-patível uma fenomenologia que sublinhavao carácter intersubjectivo e interpretativo dasociabilidade com uma Teoria dos Sistemasque afirmava o predomínio da normatividadesocial sobre o indivíduo.

Em segundo lugar, a dívida teórica deSchutz conduz à dificuldade em compatibi-lizar a permanência de um certo individua-lismo com a concepção que Parsons tinha dacomunidade societária. Esta segunda linhaexplica a existência de uma política por de-trás deste movimento fenomenológico a qualé incompatível com a concepção sistémicacentrada numa espécie de harmonia subli-nhada e enfatizada à partida.

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