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Pessoa e o Fado: um depoimento de 1929

No seu nmero de 14 de Abril de 1929, publicou o Notcias Ilustrado, revista semanal editada pelo Dirio de Notcias e dirigida por Leito de Barros, uma vasta recolha de documentos e depoimentos sobre o fado. Leite de Vasconcellos, Campos Monteiro, Antnio Botto, Augusto de Santa Rita, Teixeira de Pascoaes, Stuart Carvalhaes, e muitos outros (como Almada ou Jorge Barradas que colaboraram com desenhos) vieram alimentar a j acesa polmica que, por essa altura, envolvia o assunto.

Fernando Pessoa apareceu, tambm, com uma deliciosa declarao mensageira que, pairando acima de defensores e de atacantes, pe em prtica a sua habitual argumentao cortante e paradoxal. Ei-la:

Toda a poesia - e a cano uma poesia ajudada - reflecte o que a alma no tem. Por isso a cano dos povos tristes alegre, e a cano dos povos alegres triste.

O Fado, porm, no alegre nem triste. um episdio de intervalo. Formou-o a alma portuguesa quando no existia e desejava tudo sem ter foras para o desejar.

As almas fortes atribuem tudo ao Destino; s os fracos confiam na vontade prpria, porque ela no existe.

O fado o cansao de alma forte, o olhar de desprezo de Portugal ao Deus em que creu e que tambm o abandonou.

No fado os Deuses regressam, legtimos e longnquos. , esse o segundo sentido da figura de El-Rei D. Sebastio.

In JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias. Lisboa, 01 de Maro de 1983.

Pginas de Esttica e de Teoria e Crtica Literrias

Fernando Pessoa

IAforismos e Fragmentos sobre a Arte

1

[ms.] [1914?]

- S a Arte til. Crenas, exrcitos, imprios, atitudes - tudo isso passa. S a arte fica, por isso s a arte v-se, porque dura.

2

[ms.] [1925?]

O valor essencial da arte est em ela ser o indcio da passagem do homem no mundo, o resumo da sua experincia emotiva dele; e, como pela emoo, e pelo pensamento que a emoo provoca, que o homem mais realmente vive na terra, a sua verdadeira experincia, regista-a ele nos fastos das suas emoes e no na crnica do seu pensamento cientifico, ou nas histrias dos seus regentes e dos seus donos [?].

Com a cincia buscamos compreender o mundo que habitamos, mas para nos utilizarmos dele; porque o prazer ou nsia s da compreenso, tendo de ser gerais, levam metafsica, que j uma arte.

Deixamos a nossa arte escrita para guia da experincia dos vindouros, e encaminhamento plausvel das suas emoes. a arte, e no a histria, que a mestra da vida.

3

[ms.] [1909?]

A cincia descreve as coisas como so; a arte descreve-as como so sentidas, como se sente que so.

O essencial na arte exprimir; o que se exprime no interessa.

4

[ms.] [1913?]

A arte a auto-expresso forcejando por ser absoluta.

5

[ms.] [1915?]

O valor de uma obra de arte tanto maior quanto puramente artstico o meio de manifestar a ideia.

6

[ms.] [1910?]

H[istory] of a D[ictatorship] (1) ou Esttica

A arte apenas e simplesmente a expresso de uma emoo. Um grito, uma simples carta pertencem um arte de cantar, literatura a outra, inevitvelmente.

O prprio gesto artstico segundo ou no interpretao de uma emoo. Porque no gesto h o fim do gesto e a expresso desse fim. Uma cousa reporta-se vontade, a outra emoo. Elegncia ou deselegncia de um gesto significam conformidade ou no-conformidade com a emoo que exprime. Assim uma esttua da dor a fixao dos gestos que mostram a dor - e ser tanto mais bela quanto mais justa e exactamente representar por esses gestos a emoo da dor, quanto mais adaptados em tudo forem esses gestos ao mostrar essa emoo.

(1) O titulo refere-se ao projecto duma histria da ditadura de Joo Franco, de que existem alguns fragmentos no esplio do autor.

7

[ms.] [1915?]

Arte - Idealizao

Todo o material da arte repousa sobre uma abstraco: a escultura, p. ex., desdenha o movimento e a cor; a pintura desdenha a 3 dimenso e o movimento portanto; a msica desdenha tudo quanto no seja o som; a poesia baseia-se na palavra, que a abstraco suprema, e por essncia, porque no conserva nada do mundo exterior, porque o som - acessrio da palavra - no tem valor seno associado - por impercebida que seja essa associao.

A arte, portanto, tendo sempre por base uma abstraco da realidade, tenta reaver a realidade idealizando. Na proporo da abstraco do seu material est a proporo em que preciso idealizar. E a arte em que mais preciso idealizar a maior das artes.

8

[ms.] [1930?]

Porque a arte d-nos, no a vida com beleza, que, porque a vida [var.: concreta], passa, mas a beleza com vida, que, como beleza [var.: abstracta], no pode perecer.

A cada conceito da vida cabe no s uma metafsica, mas tambm uma moral. O que o metafsico no faz porque falso, e o moralista no faz porque mau, o esteta no faz porque feio.

9

[ms.] [1913?]

Os desvios ideativos da poesia moderna

Emoo que no seja vaga, pensamento que o seja no prestam. Os modernos poetas franceses tm o contrrio: so ntidos e (...) na emoo e vagos, deplorvelmente vagos na ideia.

Uma obra literria procura sentimentos que tm que ver com: a ideia, a emoo, a imaginao (que vem a ser uma combinao inteira de ideia e emoo). A ideia deve ser ntida, a emoo vaga, a imaginao, como composta essencialmente de ambos, ao mesmo tempo vaga e ntida. - A arte deve dirigir-se a estas 3 faculdades, que no a uma ou duas delas isoladamente.

10

[ms.] [1916?]

Se a obra de arte proviesse da inteno de faz-la, podia ser produto da vontade. Como no provm, s pode ser, essencialmente, produto do instinto; pois que instinto e vontade so as nicas duas qualidades que operam.

A obra de arte , portanto, uma produo do instinto. O drama, sendo primriamente uma obra de arte, -o tambm.

11

[dact.] [1925?]

Introduo Esttica

Exigir de sensibilidades como as nossas, sobre que pesam, por herana, tantos sculos de tantas cousas, que sintam e portanto se exprimam com a limpidez, e a inocncia de sentidos, de Safo ou de Anacreonte, nem legtimo, nem razovel. No no contedo da sensibilidade que est a arte, ou a falta dela: no uso que se faz desse contedo.

Distinguiremos na arte, como em tudo, um elemento material, e um formal. A matria da arte, d-a a sensibilidade, a forma, dirige-a a inteligncia. E na forma h, ainda, duas partes a considerar: a forma concreta ou material, que se prende com a matria mesma da obra, e a forma abstracta ou imaterial, que se prende s com a inteligncia e depende de suas leis imutveis.

Trs so as leis da forma abstracta, e, como so da forma abstracta, aplicam-se a todas as artes e a todas as formas de cada arte. Abdicar delas abdicar da mesma arte. Podemos eleger quebrar tais leis; no podemos, porm, elegendo-o, presumir que fazemos arte, pois a arte consiste, mais que em qualquer outra cousa, na obedincia a essas leis. As trs leis da forma abstracta so: a unidade; a universalidade ou objectividade; e (...).

Por unidade se entende que a obra de arte h-de produzir uma impresso total definida, e que cada seu elemento deve contribuir para a produo dessa impresso; no havendo nela nem elemento que no sirva para esse fim, nem falta de elemento que possa servir para esse fim. uma falha artstica, por exempla, a introduo em um poema de um trecho, por belo que seja, que no tenha relao necessria com o conjunto do poema, como o , mais palpvelmente, a introduo em um drama de uma cena em que, por grande que seja a fora ou a graa prpria, a aco pra ou no progride, ou, o que pior, se atrasa.

Por universalidade, ou objectividade, se entende que a obra de arte h-de ser imediatamente compreensvel a quem tenha o nvel mental necessrio para poder compreend-la.

Quanto mais altamente intelectual for uma obra de arte, maior ser, em princpio, a sua universalidade, pois que a inteligncia abstracta a mesma em todos os tempos e em todos os lugares - dada a espcie humana no nvel de t-la -, enquanto a sensibilidade varia de tempo para tempo e de lugar para lugar.

Cumpre esclarecer este ponto. A obra de arte procede de uma impresso ou emoo do artista que a constri, impresso ou emoo que, como tal, prpria e intransmissvel. Se o valor dessa emoo, para quem a sente, o ser prpria, deve gozar-se simplesmente, e no exprimir-se. Se o valor dela, porm, mais alguma cousa, (...).

Todos ns sentimos a dor e o delrio do Rei Lear de Shakespeare; esse delrio, contudo, , diagnosticvelmente, o da demncia senil, de que no podemos ter experincia, pois quem cai em demncia senil nem pode perceber Shakespeare, nem qualquer outra causa. Porque , ento, que, sendo esse delrio to caracterizadamente o do demente senil, o sentimos tanto ns, que no temos conhecimento desse delrio? Porque Shakespeare ps nesse delrio s aquela parte que nele humano, e afastou a que nele seria, ou particular do indivduo Lear, ou especial do demente senil. Todo o processo mrbido envolve essencialmente ou um excesso, ou um abatimento, de funo; ou uma hipertrofia, ou uma atrofia, de rgo. O desvio, que constitui a doena, est na distncia a que fica o excesso, ou o abatimento, do nvel da funo normal; na dessemelhana que se estabelece entre o rgo hipertrofiado, ou atrofiado, e o rgo so. Assim a doena , ao mesmo tempo, e no mesmo acto, um excesso ou abatimento do normal, e um desvio (ou diferena) desse normal. Se, apresentando um caso de doena mental, o apresentarmos pelo lado em que excesso ou abatimento da funo normal, com isso mesmo o apresentamos como ligao a essa funo, e compreensvel para quem a tenha; se, porm, o apresentarmos pelo lado em que desvio ou diferena, com isso mesmo o apresentamos como desligado ou separado dessa funo, e incompreensvel, portanto, a quem no esteja no mesmo caso mrbido, o que ser pouca gente, seno pouqussima. As duas maneiras so comparveis maneira racional, e dogmtica ou aforstica, de apresentar uma concluso: o raciocinador leva o ouvinte ou lente at concluso por um processo gradual, e ainda que a concluso seja estranha ou paradoxal, torna-se em certo modo aceitvel por se tornar compreensvel como se chegou at ela; o dogmtico pe a concluso sem explicar como chegou a ela, e sucede, como se no v relao entre o ponto de partida e o de chegada, que s quem tenha feito o raciocnio necessrio, ou quem aceite a concluso sem raciocnio, pode convir nessa concluso.

Tudo que se passa numa mente humana de algum modo anlogo se passou j em toda outra mente humana. O que compete, pois, ao artista que quer exprimir determinado sentimento, por ex., extrair desse sentimento aquilo que ele tenha de comum com os sentimentos anlogos dos outros homens, e no o que tenha de pessoal, de particular, de diferente desses sentimentos.

A obra de arte, ou qualquer seu elemento, deve produzir uma impresso, e uma s; deve ter um sentido, e s um; seja sugestivo o processo, ou explcito. Isto se v claramente no emprego do epteto em literatura. Muito se tem bradado contra o emprego de adjectivos estranhos, ou juntos a substantivos com os quais no parecem poder ligar-se. No h, porm, adjectivos estranhos, nem possvel construir uma frase a que se no possa atribuir um sentido qualquer. O que necessrio que esse sentido qualquer seja s um, e no possivelmente um de vrios. squilo, numa frase clebre, refere-se ao riso inmero das ondas; o epteto daqueles a que uso chamar ousados, pois que tudo ousado para quem a nada se atreve. Toda a gente, porm, compreende a frase, nem lhe atribuvel mais que um sentido. H, porm, uma poetisa francesa que deu a um seu livro o ttulo, mimado desta frase, de O Corao inmero, frase esta que pode ter vrios sentidos, porm que no certo que tenha este ou aquele. A ousadia do epteto igual no grego e na francesa; uma, porm, a ousadia da inteligncia, a outra a do capricho.

Pode ser, no caso de um epteto desta ltima ordem, que a sensibilidade de vrias pessoas convenha na mesma interpretao, e, ainda, que essa interpretao seja - o que tambm poderia no acontecer - aquela mesma que lhe o autor deu. Como, porm, a sensibilidade passageira e local, local e passageira tambm a interpretao que dela procede.

Estas consideraes tm que ser interpretadas em relao s diversas artes, diversamente para cada uma, conforme sua matria e fim. Aquele trecho musical cuja frescura e alegria me d a mim a impresso de madrugada, pode dar a outro a impresso de Primavera. Como, porm, no funo da msica definir as cousas, seno a emoo que geram, o trecho produziu, em verdade, a mesma impresso em mim e no outro, pois ambos sentimos nele frescura e alegria; o lembrar-me essa frescura a madrugada, e a outro a Primavera, apenas a traduo pessoal que cada um de ns faz da sensao que recebeu, pois a sensao abstracta de alegria e de frescura comum madrugada e Primavera. A um terceiro esse mesmo trecho poderia evocar, por exemplo, certa cena de amor, ou certa paisagem, sem que em alguma cousa sasse do seu fim prprio, logo que a essa cena de amor e a essa paisagem estejam nele ligadas as ideias de frescura e alegria. Do mesmo modo a frase de squilo riso inmero das ondas no diversa em mim e num veneziano por em mim evocar o Atlntico e nele o Adritico.

14

[dact.] [1916?]

Regresso dos Deuses: Esttica (1)

Mas o critrio de perspicuidade no limitar demasiado a arte? No limita, se atendermos a um ponto importante, que que h vrias artes, cada uma das quais corresponde a um gnero de perspicuidade. Certos sentimentos vagos e pensamentos nebulosos, que so naturais a todos os homens, encontram a sua expresso em a msica.

O critrio de perspicuidade , porm, derivado na arte helnica. O grego amava a perspicuidade porque amava a generalidade, a universalidade e a distino das artes. Ora, era difcil que uma ideia vaga pudesse ser geral, universal, e caber na arte literria ou scultural, por muito bem que estivesse em a msica.

Semelhantemente, no a sobriedade um caracterstico essencial na esttica pag, seno tambm um corolrio dela. A arte o aperfeioamento do mundo exterior. Ora este aperfeioamento (da Realidade) pode fazer-se de trs maneiras: pela alterao do mundo exterior, (...).

(1) Nos dois fragmentos seguintes respeitamos traos tpicos da ortografia de Ricardo Ris, autor suposto do ensaio Regresso dos Deuses (cf. Pginas intimas e de auto-interpretao).

15

[dact.] [1916?]

Regresso dos Deuses: Esttica

Objectar-se-, sem dvida, que, havendo sentimentos que so vagos, sentimentos que so confusos, impulsos do nimo (sprito) que, de confundidos com outros, se nos no apresentam claros, abusivo exigir do artista que os delineie como ntidos, como qualquer cousa que eles no so.

A resposta a esta observao st na pergunta, se esses stados do nimo so legitimamente representveis em arte? O artista subjectivo parte do princpio que o fim da sua arte exprimir as suas prprias emoes. Critrio esse que o artista objectivo no aceita, e com razo absoluta o no aceita, porque a arte objectiva que a arte, por isso que uma cousa realizada, que passa para fora do artista, e no fica nele, como a emoo que a produz.

De feito, perguntemos, porque um pensamento confuso, porque um sentimento vago, por que razo no se apresenta ntido um impulso volitivo? Para todos a razo uma: que o pensamento se no ps em contacto com a realidade, que o sentimento se no comparou com a sua realizao, que a vontade se no mediu com o exterior.

Uma obra de arte um objecto exterior; obedece portanto s leis a que sto subordinados os objectos exteriores, no que objectos exteriores.

O artista no exprime as suas emoes. O seu mister no esse. Exprime, das suas emoes, aquelas que so comuns aos outros homens. Falando paradoxalmente, exprime apenas aquelas suas emoes que so dos outros. Com as emoes que lhe so prprias, a humanidade no tem nada. Se um erro da minha viso me faz ver azul a cor das folhas, que interesse h em comunicar isso aos outros? Para que eles vejam azul a cor das folhas? No possvel, porque falso. Para que eles saibam que eu vejo azuis as folhas? No preciso porque no tem importncia nenhuma. O mais que o fenmeno curioso, e o curioso senti-lo; senti-lo sinto-o eu, no os outros. O que h de realmente esttico, pois, nas sensaes estranhas que cada um as guarde para si, gozando-as em silncio, se para tal lhe d o gozo.

Assim, o primeiro princpio da arte a generalidade. A sensao expressa pelo artista deve ser tal que possa ser sentida por todos os homens por quem possa ser compreendida.

O segundo princpio da arte a universalidade. O artista deve exprimir, no s o que de todos os homens, mas tambm o que de todos os tempos. O subjectivismo cristista, alm do erro pessoalista, produziu essoutro erro, a preocupao de interpretar a poca. A frase de Goethe, bastas vezes citada sobre o assunto, de mestre; com efeito, um homem de gnio da sua poca s pelos seus defeitos. A nossa poca deduz-nos da humanidade. Como o artista deve procurar erguer-se acima da sua personalidade, deve procurar levantar-se fora da sua poca.

O terceiro princpio da arte , finalmente, a limitao. Isto , a cada arte. corresponde um modo de expresso, sendo o da msica diferente do da literatura, e o da literatura diverso do da escultura, este do da pintura, e assim com todas as artes. Erro crasso, mas recentemente vulgar, o de confundir os limites das artes., Foi cometido por uma poca to aparentemente ortodoxa como o sculo dezassete dos franceses. Os poetas como Corneille e Racine aplicaram poesia a secura de expresso, a nitidez de raciocnio, que so caractersticas da prosa. Racine, errou como errou Mallarm. Por um errar por fazer da poesia prosa, e outro por fazer da poesia msica, no menor o erro de um do que o de outro.

Para os sentimentos vagos, que no comportam definio, existe uma arte - a msica, cujo fim sugerir sem determinar. Para os sentimentos perfeitamente definidos, de tal modo que difcil a emoo neles, existe a prosa. Para os sentimentos que so harmoniosos e fluidos, existe a poesia. Em uma poca s e robusta, um Verlaine ou um Mallarm escreveriam a msica que nasceram para escrever. No teriam tido nunca a tendncia para dizer em palavras aquilo que a palavra no comporta. Pergunto ao maior entusiasta dos simbolistas franceses se Mallarm os comoveu tanto como uma melodia vulgar, se a inexpresso de Verlaine chegou alguma vez inexpresso legtima de uma valsa simples. No chegou, e se me responderem que preferem para esse fim Verlaine e Mallarm msica, o que me esto dizendo que preferem a literatura como msica msica. Sto-me dizendo uma cousa que no tem sentido fora de lament-los.

IIDa Crtica e da Histria Literria

1

[ms.] [1917?]

[Formas de crtica esttica]

Toda a produo humana se pode analisar sob 3 pontos de vista: o do seu valor, o da sua produo e o da sua significao humana. Teremos pois que qualquer produo do homem se pode apreciar sob os pontos de vista valorista, psicolgico e sociolgico. O que significa perante o que produziu? (crtica psicolgica). O que significa na sociedade? (crtica sociolgica). O que significa perante o ideal? (crtica valorista).

A crtica valorista divide-se evidentemente segundo as 3 formas do ideal (verdade, bem, beleza) em crtica cientfica, crtica moral (ou tica) e crtica esttica.

2

[ms.] [1915?]

Balana de Minerva

Falar o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos. E esse modo imoral e hipcrita de falar a que se chama escrever, mais completamente nos vela aos outros e quela espcie de outros a que a nossa inconscincia chama ns-prprios. Por isso, se escrever, no sentido de escrever para dizer qualquer cousa, acto que tem um cunho de mentira e de vcio, criticar as cousas escritas no deixa de ter um correspondente aspecto de curiosidade mrbida ou de futilidade perversa. E, quando a crtica escrita tambm, requinta-se para repugnante a sua imoralidade essencial. Pega-se-lhe a doena do criticado - o facto de existir escrito.

Prpriamente, o nico crtico de arte ou de letras deve ser o psiquiatra; porque, ainda que os psiquiatras sejam to ignorantes e laterais aos assuntos como todos os outros homens daquilo a que eles chamam cincia, tm ainda assim, perante o que vem a ser um caso de doena mental, aquela competncia que consiste em ns julgarmos que eles a tm. Nenhum edifcio de sabedoria humana pode erguer-se sobre outros alicerces.

5

[ms.] [1915?]

Balana de Minerva

Aferio.

Destina-se esta seco crtica dos maus livros e especialmente crtica daqueles maus livros que toda a gente considera bons. O livro, consagrado por qualidades que no tem, do homem consagrado por qualidades com que outros o pintaram; o livro daquele que, tendo criado fama, se deitou a fingir que dormia; o livro do que entrou no palcio das Musas pela janela ou colheu a ma da sabedoria com o auxlio dum escadote - tudo isto se pesar na Balana de Minerva.

Claro que a razo do ttulo Balana de Minerva a circunstncia de Minerva no ter balana nenhuma. Vagamente absurdo, leva este ttulo em si a definio dum modo-de-ver que escolhe o onde opor-se a todos para ter razo intilmente. A conscincia do esforo intil e do trabalho perdido ainda uma das grandes emoes estticas que restam a quem se preocupa com as cousas que ainda restam.

A crtica, de resto, apenas a forma suprema e artstica da maledicncia. prefervel que seja justa, mas no absolutamente necessrio que o seja. A injustia, alis, a justia dos fortes. No fundo isto tudo bondade. Dizer mal dum livro o nico modo de dizer bem dele. Se mau, faz-se justia; se bom pe-o na evidncia que os livros bons merecem. E, no fim de tudo, nada disto tem importncia, porque os livros bons leva-os a Histria ao colo para casa. E quanto aos maus - criticar apenas abrir-lhes a cova e rezar-lhes em cima da ltima descida o latim que falava Juvenal. s vezes com sete ps de elogios que esta justia mortal melhor se sela.

A justificao ltima da crtica assim bem entendida o satisfazer a funo natural de desdenhar - funo to natural como a de comer e que de boa higiene de esprito satisfazer cuidadosamente. Quem sente vontade de desdenhar no deve atar-se cobardia de julgar isso feio, nem vender-se infmia de ir desdenhar o que os outros desdenham, abdicando assim da sua individualidade, gregrio.

As horas passam devagar e pesa em tdio a conscincia delas. Buscar o conforto no desprezo no s o nosso dever para com o desprezo, mas tambm o nosso dever para com ns-prprios. Espetar alfinetes na alma alheia, dispondo esses alfinetes em desenhos que aprazam nossa ateno ftilmente concentrada, para que o nosso tdio se v esvaindo - eis um passatempo deliciosamente de crtico, e ao qual juramos fidelidade.

Traduzindo isto para a metfora que d cor a esta seco, pretendemos dar a entender que o nosso uso da Balana de Minerva limitar-se-, na maioria dos casos, a dar com ela - pesos e tudo - na cabea do criticado. Isso, de resto, no deve preocupar ningum. Quem tiver de ser imortal pode s-lo mesmo com a cabea partida. O ser imortal a nica das preocupaes anti-sociais que no faz mal a ningum. Visto que o futuro raras vezes d por ela, no demais que o presente algumas vezes d nela.

IIIArte e Moral

1

[ms.] (domingo, 13 de Outubro de 1914?]

A arte suprema tem por fim libertar - erguer a alma acima de tudo quanto estreito, acima dos instintos, das preocupaes morais ou imorais.

A arte nada tem com a moral, quanto ao fim; tem, quanto ao contedo.

Toda a arte deve dar prazer - o tipo de prazer que varia. A arte inferior d prazer porque distrai, liberdade porque liberta das preocupaes da vida; a arte superior menor d prazer porque alegra, liberdade porque liberta da imperfeio da vida; a arte superior d prazer porque liberta, liberdade porque liberta da prpria vida.

Um assunto sexual deve ser tratado em arte de modo que no suscite desejo. Para suscitar desejos, serve melhor uma fotografia pornogrfica.

2

[ms.] [1916?]

As artes

As relaes entre a arte e a moral so anlogas s entre a arte e a cincia. No h relao entre a arte e a moral, como a no h entre a arte e a cincia; mas um poema que viola as nossas noes morais impressiona idnticamente o homem so como um poema que viola a nossa noo da verdade.

Um poeta que canta, elogiando, o roubo, no far com isso um bom poema; nem o far um poeta moderno a quem lembre cantar o curso do sol volta da terra, que uma cousa falsa.

Viola a regra do agrado. Agradar a mais gente um poema que, sobre ser belo, seja moral, que um que, sendo belo, seja imoral. As pocas tm mais de comum as suas ideias morais que as suas imoralidades. S nas pocas de decadncia que a moralidade deixou de ser um ideal; e, mesmo nessas, reconhece-se o seu valor ideal.

As relaes so entre o artista e o moralista, no entre a arte e a moral. Como improvvel que um grande artista, por isso mesmo que um grande artista, falseie a verdade, improvvel que falseie a moral. No pertence esse caracterstico aos de um crebro tpico de criador.

O criador de arte para influenciar tem, em geral, como motivo o interesse de influenciar; ao qual falha se cria obra com elementos que tendem a limitar a aco da obra.

A tendncia moral reconhecida pela espcie [?] humana como superior realidade [?] imoral. O poeta imoral corre portanto, na proporo em que imoral, o risco de no influenciar os espritos superiores (quando no da sua poca, porventura decadente), das outras pocas pelo menos.

3

[ms.] [1914?]

A questo da arte moral ou imoral - se a arte deve ser art for art's sake, independentemente da moralidade -, apesar de muito simples de soluo, no tem deixado de ocupar desagradvelmente muito pensador, especialmente dos que desejam provar que a arte deve ser moral.

Em primeiro lugar dmos inteira razo - evidente que a tm - aos estetas; a arte tem, em si, por fim s a criao de beleza, parte consideraes de ser moral ou no. Se isto assim, quem manda pois arte ser moral? A resposta simples: a moral. Manda-o a moral porque a moral deve reger todos os actos da nossa vida e a arte uma forma da nossa vida. Tm errado aqueles que tm querido achar uma razo, dentro da prpria natureza da arte, para a arte ser moral. No existe essa razo onde a procuraram. A arte, qu arte, tem por fim apenas a beleza. A razo que a manda ser moral existe na moral, que exterior esttica; existe na natureza humana.

A arte tem duas feies: a feio puramente artstica e a feio social. A feio artstica criar a beleza - nada mais. Como a beleza uma cousa independente do consenso humano (apesar de julgada por ele), como a beleza em si, digamos, independente de opinies, a arte na sua (...) social nenhum outro fim tem que a criao da beleza, sem outra considerao moral ou intelectual.

Mas a arte tem outra feio. a feio social. O artista um homem e um artista. Puramente artista a sua obra, j o dissemos, tem s por fim criar a beleza, s uma responsabilidade - perante a Esttica. Mas o artista vive em sociedade, publica as suas obras de arte. Vive em sociedade como artista e vive em sociedade como homem. Como artista o seu fim um s: agradar. Como homem o seu fim um s: obter glria. Vemos pois que o artista mostra-se-nos sob 3 feies: como puramente artista (no tendo outro fim que criar a beleza), como ao mesmo tempo artista e homem (querendo ver essa beleza que criou admirada), e finalmente como homem (desejando a glria, no que comum aos outros homens, geralmente a todos). O primeiro sentimento puramente impessoal; o segundo entre pessoal e impessoal - o desejar ver admirada uma obra de arte, conquanto sua, no inteiramente egosta; o terceiro inteiramente pessoal.

Cremos ter dado, nestas palavras, a soluo definitiva do problema.

Ora, segundo estas 3 feies do artista, est ele submetido a diversas leis. Como puramente artista nenhuma outra lei tem que no seguir a esttica. Mas j buscando agradar se tem que submeter a outras leis; a natureza da humanidade uma s, no se divide em esttica, moral, intelectual, etc. S a Esttica personalizada que poderia apreciar uma obra de arte sob o ponto de vista puramente esttico. A humanidade no; o amor da beleza fundamental na sua alma - arte; mas no s isso reside nela, no s com isso critica e aprecia. Outros elementos entram inevitvelmente nessa apreciao. Um grande poema revolucionrio agradar mais a um republicano do que a um conservador, admitindo em ambos, quanto a qualidades crticas, a mesma dose de esttica.

Os homens no apreciam s estticamente, apreciam segundo toda a sua constituio moral. Por isso cousas grosseiras, impuras, lhes desagradam, no na parte esttica neles, mas na parte moral que no podem mandar embora de si.

IVSobre a Poesia

1

[dact.] [1930?]

[Os graus da poesia lrica]

O primeiro grau da poesia lrica aquele em que o poeta, de temperamento intenso e emotivo, exprime espontnea ou reflectidamente esse temperamento e essas emoes. o tipo mais vulgar do poeta lrico; tambm o de menos mrito, como tipo. A intensidade da emoo procede, em geral, da unidade do temperamento; e assim este tipo de poeta lrico em geral monocrdio, e os seus poemas giram em torno de determinado nmero, em geral pequeno, de emoes. Por isso, neste gnero de poetas, vulgar dizer-se, porque com razo se nota, que um um poeta do amar, outro um poeta da saudade, um terceiro um poeta da tristeza.

O segundo grau da poesia lrica aquele em que o poeta, por mais intelectual ou imaginativo, pode ser mesmo que s por mais culto, no tem j a simplicidade de emoes, ou a limitao delas, que distingue o poeta do primeiro grau. Este ser tambm tipicamente um poeta lrico, no sentido vulgar do termo, mas j no ser um poeta monocrdio. Os seus poemas abrangero assuntos diversos, unificando-os todavia o temperamento e o estilo. Sendo variado nos tipos de emoo, no o ser na maneira de sentir. Assim um Swinburne, to monocrdio no temperamento e no estilo, pode contudo escrever com igual relevo um poema de amor, uma elegia mrbida, um poema revolucionrio.

O terceiro grau da poesia lrica aquele em que o poeta, ainda mais intelectual, comea a despersonalizar-se, a sentir, no j porque sente, mas porque pensa que sente; a sentir estados de alma que realmente no tem, simplesmente porque os compreende. Estamos na antecmara da poesia dramtica, na sua essncia ntima. O temperamento do poeta, seja qual for, est dissolvido pela inteligncia. A sua obra ser unificada s pelo estilo, ltimo reduto da sua unidade espiritual, da sua coexistncia consigo mesmo. Assim Tennyson, escrevendo por igual Ulysses e The Lady of Shalott, assim, e mais, Browning, escrevendo o que chamou poemas dramticos, que no so dialogados, mas monlogos revelando almas diversas, com que o poeta no tem identidade, no a pretende ter e muitas vezes no a quer ter.

O quarto grau da poesia lrica aquele, muito mais raro, em que o poeta, mais intelectual ainda mas igualmente imaginativo, entra em plena despersonalizao. No s sente, mas vive, os estados de alma que no tem directamente. Em grande nmero de casos, cair na poesia dramtica, propriamente dita, como fez Shakespeare, poeta substancialmente lrico erguido a dramtico pelo espantoso grau de despersonalizao que atingiu. Num ou outro caso continuar sendo, embora dramticamente, poeta lrico. esse o caso de Browning, etc. (ut supra). Nem j o estilo define a unidade do homem: s o que no estilo h de intelectual a denota. Assim em Shakespeare, em quem o relevo inesperado da frase, a subtileza e a complexidade do dizer, so a nica coisa que aproxima o falar de Hamlet do do Rei Lear, o de Falstaff do de Lady Macbeth. E assim Browning atravs dos Men and Women e dos Dramatic Poems.

Suponhamos, porm, que o poeta, evitando sempre a poesia dramtica, externamente tal, avana ainda um passo na escala da despersonalizao. Certos estados de alma, pensados e no sentidos, sentidos imaginativamente e por isso vividos, tendero a definir para ele uma pessoa fictcia que os sentisse sinceramente (...)

2

[dact.] [Junho de 1930]

[Carta a Adolfo Rocha]

Meu prezado camarada:

Recebi a sua carta que agradeo, e vou procurar expor em frases sem imagens o sentido daquilo que lhe havia escrito. Devo explicar, antes de mais nada, que, tendo tardado j uns dias em agradecer o seu livro, escrevi uma carta rpida, para no demorar mais. Sucede que, quando escrevo rpidamente, isto , sem ter tempo de desdobrar em razes o que digo, e concisamente, por escrever rpidamente, o que escrevo assume naturalmente uma forma metafrica, e no lgica. Isto lhe explicar a confuso, ou a obscuridade, que necessriamente existiria na minha carta. O que no havia nela era o dogmatismo que parece supor que continha. Nunca sou dogmtico, porque o no pode ser quem de dia para dia muda de opinio, e , por temperamento, instvel e flutuante. Vamos, que consigo o caso no foi grave: j me sucedeu pior, com um poeta espanhol - ainda que porventura um pouco por imperfeito conhecimento da lngua - o ser o conciso tomado por seco, e o metafrico por irnico.

Em substncia, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe expus o seguinte:

1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;

2) A sensibilidade pessoal e intransmissvel;

3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensao, rejeitando nela o que puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, todavia susceptvel de generalidade, portanto, compreensvel, no direi j pela inteligncia, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.

4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualizao directa e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissvel ( isto que vulgarmente se chama inspirao, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensao frase intelectual (prim. verso: tirem da sensao o que no pode ser sensvel aos outros e ao mesmo tempo, para compensar, reforam o que lhes pode ser sensvel); b) a reflexo crtica sobre essa intelectualizao, que sujeita o produto artstico elaborado pela inspirao a um processo inteiramente objectivo - construo, ou ordem lgica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.

5) No h arte intelectual, a no ser, claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualizao, em cuja operao consiste a obra de arte como coisa, no s pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontneo, em quem o reflexo crtico fraco ou nulo, o que no quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e critico, que elabora, por necessidade orgnica, o j elaborado.

Dir-lhe-ei, e estou certo que concordar comigo, que nada h mais raro neste mundo que um artista espontneo - isto , um homem que intelectualiza a sua sensibilidade s o bastante para ela ser aceitvel pela sensibilidade alheia; que no critica o que faz, que no submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de maneira, no de ser, mas de dever ser.

Na sua aplicao ao seu livro, estas consideraes tomam para mim a forma seguinte: 1) a sua sensibilidade boa, e, por natureza, de tipo intelectual; 2) pode, portanto, ser um poeta espontneo, sem ter que sobreintelectualizar demais ou recorrer a uma atitude reflexiva ou crtica; 3) para isso, porm, convinha-lhe (a meu ver, bem entendido-mas era a minha opinio, que no a de outrem, que lhe dava), ou a) focar num ponto ntido e universalmente transmissvel a intelectualizao da sensao, ou b) distribuir mais igualmente a intelectualizao pela extenso da sensao.

Isto no , talvez, muito claro; no sei, porm, como o diga melhor. Servir-me-ei de exemplos. Um homem que era, e suponho (embora nada publique, nem talvez escreva) ainda , o mais curioso esprito crtico portugus, Manuel Antnio de Almeida, escreveu, em 1912, no Inqurito Literrio de Boavida Portugal, esta definio da arte moderna: Uma representao central ntida, em torno da qual bia todo um nimbo de coisas evocadas. Isto representa muito bem o que quero indicar como o primeiro processo que lhe sugeri. O segundo seria, servindo-me de uma expresso de igual tipo, uma representao central vaga, em torno da qual brilham, ntidas, e para lhe destacar o vago, todas as representaes secundrias.

este, meu Camarada, o desenvolvimento mais claro que, de momento, e para no tardar em responder-lhe, posso fazer do que na minha primeira carta lhe disse translatamente. Peo-lhe que creia no verdadeiro apreo de...

3

[dact.] [1928?]

Esttica

A composio de um poema lrico deve ser feita no no momento da emoo, mas no momento da recordao dela. Um poema um produto intelectual, e uma emoo, para ser intelectual, tem, evidentemente, porque no , de si, intelectual, que existir intelectualmente. Ora a existncia intelectual de uma emoo a sua existncia na inteligncia - isto , na recordao, nica parte da inteligncia, prpriamente tal, que pode conservar uma emoo.

4

[dact.] [1924?]

s trs subespcies da poesia lrica - a herica, a elegaca e a lrica prpriamente dita - atribuam os antigos a proteco de trs musas, Calope para a primeira, rato para a segunda, e para a terceira Polmnia.

Chama-se poesia lrica, em boa razo esttica, a toda aquela que no dramtica nem narrativa, e na espcie da poesia chamada narrativa h por certo que incluir a didctica. A poesia lrica pode exprimir directamente os sentimentos e as emoes do poeta, sem deles querer tirar concluses gerais, ou lhes atribuir maior sentido que o de serem simples emoes e sentimentos: esta a poesia prpriamente, ou simplesmente, lrica. A esta que Polmnia rege. Pode tambm a poesia lrica exprimir no sentimentos ou emoes do poeta, seno o conceito que forma desses sentimentos, ou dos alheios: esta, prpriamente, a poesia elegaca, que no h mister que seja triste, como o uso vulgar do nome ordinriamente indica. Desta poesia rato a musa. Pode, por fim, a poesia lrica dedicar-se a exaltar ou a deprimir a pessoa ou os feitos de outrem, no tanto os comentando, quanto os elevando ou diminuindo: esta, em seus dois ramos, a poesia herica e a satrica. A estas legitimamente rege Calope, se bem que lhe no dessem os antigos a regncia da stira.

5

[ms.] [1913?]

[Poesia e Msica]

A poesia a emoo expressa em ritmo atravs do pensamento, como a msica essa mesma expresso, mas directa, sem o intermdio da ideia.

Musicar um poema acentuar-lhe a emoo, reforando-lhe o ritmo.

6

[ms.] [1915?]

Esttica

[Poesia e Msica]

Poesia lrica primeiro msica+poesia, poesia cantada. Depois a poesia tomou para si o ritmo. A msica passou a expressar sentimentos por si, e a poesia lrica a ter msica em si (Cf. as poesias de Shelley e a sua m musicabilidade). A stira, o epigrama so duros, mas porque a msica do satirizar a aspereza e a [...]

Toda a poesia lrica tem, ou deve ter, uma msica prpria (como Tennyson tem). - A arte que poetas lricos, s vezes instintivos de todo, tm, uma composio musical.

Uma poesia (lrica ou outra) exige intrprete, como uma partitura (trecho musical); s que na poesia a interpretao mais restritamente inindividualizvel por causa do elemento fixador.

VIISobre as Escolas Literrias

1

[ms.] [1915?]

Classicismo

O movimento da ode grega - estrofe, antstrofe, epodo - no representa uma inveno dos Gregos, mas uma descoberta sua. No um postulado da inteligncia grega; um axioma da inteligncia humana, que aos Gregos foi dado encontrar. A sua constatao no a duma teoria artstica, a de um facto cientfico, de uma lei da inteligncia.

Este triplo movimento no s a lei da ode, o fundamento eterno [var.: perene] da poesia lrica; , mais, a lei orgnica da disciplina mental, o regulamento eterno da criao psquica. a constatao superior do facto simples de que todas as cousas tm um princpio, um meio e um fim, de que o princpio conteria j em si o fim, e a indicao do meio; e de que o meio o modo como o princpio se torna fim.

A tal ponto esta descoberta psicolgica dos Gregos - mais importante, por certo, que a subverso por Galilei da astronomia Ptolemaica - uma lei do esprito, que a vemos reaparecer vrias vezes, e sempre com o mesmo carcter de eterna, na histria do pensamento. Outra cousa no o triplo movimento - tese, anttese, sntese - da dialctica de Plato. Outra cousa no o pensamento substancial de Hegel - em que o ser em si (Sein) se torna outro-ser (Dasein) e volta a si (fr sich Sein). Outra base no tem, no seu exterior filosfico, a doutrina crist da Trindade divina, que representa Deus como sendo aquele de quem tudo procede, como Pai, por quem tudo existe, como Filho, e para quem tudo existe, como Esprito Santo; havendo assim, no entender da filosofia crist, j uma previso da doutrina rgida de Hegel na doutrina fluida de S. Paulo.

Perderemos [var.: Erraremos] por completo o sentido do classicismo se no nos obrigamos a estud-lo como deve ser estudado - na Grcia, onde nasceu, e segundo a lei do pensamento. Da Grcia para c no tem havido seno aplicaes tortuosas e incertas da Disciplina helnica.

H, depois, que distinguir no classicismo [var.: na arte grega], como em tudo mais, entre a matria e a forma. A matria d-a a sensibilidade, o temperamento especial, a viso individual [?] do artista; a forma supe a inteligncia. Geral na sua natureza, como a cincia, seu produto mximamente caracterstico, antiparticular de sua ndole.

O pseudoclassicismo francs - Boileau, Corneille, Racine - foi na cultura europeia o pior inimigo da tradio clssica, porque foi o seu desvirtuador, e, como disse Tennyson, a mentira que meia verdade a pior das mentiras. O classicismo francs um classicismo de duas dimenses, um classicismo de silhueta ou [var.: e] de papel cortado. A disciplina helnica aplicada, mas no h sensibilidade a que aplic-la. O grego aceitava, a mos plenas, a experincia integral da vida da emoo; e a essa experincia plena impunha a disciplina da sua inteligncia (abstracta). O francs

castra, limita, arredonda primeiro a experincia da vida, depois que disciplina essa sensibilidade que castrou. O classicismo que resulta to natural como a castidade num eunuco. como o escolar que, tendo que fazer uma soma de parcelas compostas de nmeros inteiros e de quebrados, comeasse, para chegar a uma soma perfeita, por apagar do quadro os quebrados. O francs no tem fora mental para aceitar a experincia total da vida; tem que ter dieta na sensibilidade para a poder digerir com a inteligncia.

Quando, como no Romantismo, adquiriu a sensibilidade plena, o esprito francs revelou imediatamente a sua debilidade; perdeu o poder da disciplina, produziu as monstruosidades construtivas que so os poemas de Hugo, de Musset e de Lamartine. S, e em alguns poemas, a alma triste de Vigny conseguiu filiar-se, em estilo Chnier, na velha, na grande tradio da Beleza. O esprito francs a apoteose do secundrio.

S em Flaubert [...]. Mais uma prova da secundariedade intelectual da Frana. S atingiu o ideal clssico num gnero secundrio - no romance. Nem na poesia pica, nem na dramtica...

2

[ms.] [1915?]

O Sentido do Classicismo

Entre as tendncias recentes do esprito crtico europeu h uma que acima de todas avulta quer pelo (...) como est espalhada, quer pela coeso inteira dos vrios pontos que representam a essncia da sua doutrina. Essa tendncia - representada pelo movimento conservador em poltica - aflora na crtica literria sob a forma do chamado neoclassicismo.

No nome da doutrina vai j a sua explicao. Ela inclui uma contraposio aos princpios romnticos ou ps-romnticos - considerados quer como literriamente falsos (Matthew Arnold), quer como a forma literria de princpios politicos dissolventes - dos princpios por que ostensivamente se regia a literatura pr-revolucionria.

Como, porm, os expositores deste sistema no primem pela originalidade (cf. Maurras), sucede que, na elaborao dessa doutrina, caem em trs erros (...).

Os 3 erros so: 1) errar o ponto de partida desses princpios clssicos; 2) confundir o contedo da obra de arte com o seu (...), a sua esttica com a sua dinmica; 3) fazer crtica literria sem referncia a condies mdias (?).

O primeiro erro dos conservadores franceses, e, de a, dos que eles influenciam. Consiste em confundir a essncia dos princpios clssicos com a sua aplicao em determinada poca. Assim, quando defendem os princpios clssicos, defendem, em geral, apenas os princpios do sculo dezassete, e, o que pior, do sculo XVII em Frana. No reparam, porm, que a mentalidade francesa difere muito da mentalidade grega. O grego aceita as sensaes e a vida e subordina-as a uma disciplina intelectual. O francs, incapaz de criar uma disciplina superior, trunca e restringe a vida e o sentimento para os poder disciplinar. como um escolar que, tendo que somar parcelas (...) (1).

O papel da inteligncia, no romantismo, apenas representativo; serve apenas para exprimir a emoo que inspirou o poema. Nos pseudoclssicos dos sculos anteriores, o papel da inteligncia outro - criar a emoo; no criar nenhuma, claro, porque esse papel anti-humano, ao passo que o dos romnticos apenas inferiormente humano.

(1) Cf. o fragmento anterior.

3

[ms.] [1914?]

[Neoclassicismo e Romantismo]

O que a nossa poca sente um desejo de inteligncia. O que a desgosta no romantismo a escassez dos elementos intelectuais, quer directamente pela escassez, quer pela subordinao deles aos elementos emotivos. O nico elemento intelectual notvel no romantismo o da especulao, da reflexo, aparecido naturalmente pela runa progressiva das influncias religiosas. Nisto o romantismo forte, porque est na grande tradio civilizacional europeia, que a tradio helnica, do individualismo racionalista.

Por outra parte o romantismo o aboutissement de outra tradio, a crist; isso pelo seu emotivismo e subjectivismo. De novo, o que o romantismo trouxe foi o sentimento, propriamente tal, da Natureza. (A renovao da metfora e da imagem.)

O classicismo decadente, a que o romantismo se seguiu e se ops, no tinha pensamento, no tinha emoo, no tinha alma. Custa-nos hoje a crer num Delille, nos rcades. Como, salvo alguns versos, pesam hoje sobre ns tedientamente The Traveller, The Deserted Village, Retaliation!

O fim do classicismo teve talento s na stira, na poesia social, no gnero de que os vers de socit so uma espcie.

Quanto maior a subjectividade da Arte, maior tem que ser a sua objectividade, para que haja equilbrio, sem o qual no h vida, nem, portanto, vida ou durao da mesma arte. Como o romantismo tinha mais emoo, tinha que ter mais pensamento; como tinha mais subjectividade, tinha que ter mais objectividade.

[Ao alto deste fragmento, a lpis, escreveu F. Pessoa, para confronto: A. de Campos: A nossa poca est farta de inteligncia. A inteligncia infecunda [...] As filosofias irracionalistas.]

4

[dact.] [1917?]

[O perigo do Romantismo]

O verdadeiro perigo do romantismo que os princpios, por que se rege ou diz reger, so de natureza a que os possa invocar qualquer, para conferir a si-prprio a categoria de artista. Tomar a nsia de uma felicidade inatingvel, a angstia dos sonhos irrealizados, a inapetncia ante a aco e a vida, como critrio definidor do gnio ou do talento, imediatamente facilita a todo o indivduo que sente aquela nsia, sofre daquela angstia, e presa daquela inapetncia, o convencimento de que uma individualidade interessante, que o Destino, fadando-a para aquelas nsias, aqueles sofrimentos, e aquelas impossibilidades, implicitamente fadou para a grandeza intelectual.

Na teoria clssica no era assim. O discpulo dos antigos apoiava a sua crena em que era poeta em faculdades de construo e de coordenao, em uma disciplina interior que no to fcil a qualquer presumir, para si mesmo, que possui. No to fcil, em relao s pretenses que so a base do romantismo, do sentimento romntico. H basta gente que pode crer-se, falsamente, dotada de qualidades construtivas em arte; mas toda a agente, e no alguma, pode julgar-se artista, quando as qualidades fundamentais exigidas so um sentimento de vcuo nos desejos, um sofrimento sem causa, e uma falta de vontade para trabalhar - caractersticos que mais ou menos todos possuem, e que nos degenerados e nos doentes do esprito assumem um relevo especial.

No no estmulo que d ao individualismo que o perigo romntico consiste; consiste, sim, no estmulo que d a um falso individualismo. O individualismo no necessriamente falso; quando muito, uma teoria moral e poltica. Mas h uma certa forma do individualismo - como h uma certa forma do classicismo - que com certeza falsa. a que permite que o primeiro histrico ou o mais reles dos neurastnicos se arrogue o direito de ser poeta pelas razes que, de per si, s lhe do o direito de se considerar histrico ou neurastnico.

Quando um poeta romntico canta, lamentando-se, a eterna imperdurabilidade das coisas, faz uso legtimo de um sentimento bem humano. Quando, do fundo da sua dor, sofrendo pelo contacto com a humanidade, apela para a grande Natureza e para o seu constelado repouso, faz uso legtimo de uma emoo que, sendo velha como a humanidade, nem sempre serviu de tema potico.

A runa de uma vida simples, ou de uma vida reles, to trgica como a runa de uma vida grande, ou de uma vida nobre; mas isso vistas de fora, no de dentro. A runa de uma alma reles no pode ser grande para a alma reles, porque ela uma alma reles.

5

[dact.] [1918?]

[Sobre o Romantismo]

O movimento literrio, a que ordinriamente se chama romantismo, contraps-se de trs maneiras ao classicismo que o precedera. estreiteza e secura dos processos clssicos substituiu o uso da imaginao, liberta, quanto possvel, de outras leis, que no as suas prprias. mesquinhez especulativa da arte clssica, onde a inteligncia aparece apenas como elemento formativo, e nunca como elemento substancial, substituiu a literatura feita com ideias. clssica subordinao da emoo inteligncia, substituiu, invertendo-a, a subordinao da inteligncia emoo, e do geral ao particular. Os dois primeiros processos representaram uma inovao, e uma vigorao da arte; o terceiro puramente mrbido.

Segundo aquele movimento cclico, que parece ser o de toda a civilizao, o romantismo, nos seus dois processos verdadeiramente inovadores, no fez mais que reeditar o helenismo, contra a frmula clssica, mais latina que grega. Nestes dois pontos, de resto, ele o continuador daquilo que a Renascena trouxe de novo - mas tambm de helnico - literatura da Europa. No que teve de prprio, a substituio da ordem da inteligncia e da emoo, o romantismo foi um simples fenmeno de decadncia; e foi porque a Renascena no mostrou este terceiro caracterstico que ela pde atingir um nvel potico mais alto, pois que no romantismo no h Dante nem Milton, tal a falncia construtiva de que o novo sistema vinha inquinado.

No seu desenvolvimento, o romantismo, que nasceu mrbido, esfacelou-se. Desintegrou-se nos seus trs elementos componentes, e cada um destes passou a ter uma vida prpria, a formar uma corrente separada das outras. Da substituio da imaginao ao escrpulo imitativo nasceu toda a literatura da Natureza que distinguiu o sculo passado. Da introduo da especulao na substncia da arte nasceu toda a literatura realista. Da inverso das posies mentais da inteligncia e da emoo nasceu todo o movimento decadente, simbolista, e os seguintes.

claro que estes elementos, embora criassem correntes que podem dizer-se separadas, no esto separados; e a maioria dos cultores das literaturas nascidas dos dois primeiros esto viciados pelo preconceito personalista que a base mrbida do terceiro.

O sculo vinte encontrou diante de si, herdado do sculo que o precedeu, um problema fundamental - o da conciliao da Ordem, que intelectual e impessoal, com as aquisies emotivas e imaginativas dos tempos recentes.

impossvel resolver este problema, como querem os integralistas franceses, pela supresso de um dos seus termos. igualmente impossvel resolv-lo aceitando a predominncia da emoo sobre a razo, porque, aceite esta predominncia, desaparece a ordem, e o problema est por resolver. Evidentemente que h s uma soluo: o levar a personalidade do artista ao abstracto, para que contenha em si mesma a disciplina e a ordem. Assim a ordem ser subjectiva e no objectiva.

Tornar a imaginao abstracta, tornar a emoo abstracta, o caminho.

[ms.]

Dramatizao da emoo. Os homens da Renascena j a tinham; a sua poesia da emoo impessoal e humanamente universal.

Emoo do abstracto.

A literatura de fantasia, que irrompeu com os transcendentalistas alemes e seguidamente nos 2 grandes poemas de Goleridge. Este elemento de origem medieval.

Por dramatizao da emoo entendo o despir a emoo de tudo quanto acidental e pessoal, tornando-a abstracta - humana.

In Fernando Pessoa, Pginas de Esttica e de Teoria e Crtica Literrias, ed. Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Lisboa, Edies tica, 2. ed, 1973.

Pginas ntimas e de Auto-Interpretao

Fernando Pessoa

INotas Autobiogrficas e de Autognose

1

Jamais houve alma mais amante ou terna do que a minha, alma mais repleta de bondade, de compaixo, de tudo o que ternura e amor. Contudo, nenhuma alma h to solitria como a minha solitria, note-se, no merc de circunstncias exteriores, mas sim de circunstncias interiores. O que quero dizer : a par da minha grande ternura e bondade, entrou no meu carcter um elemento de natureza inteiramente oposta, um elemento de tristeza, egocentrismo, portanto de egosmo, produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o desenvolvimento e a plena aco interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, deprimindo a vontade, a sua plena aco externa, a sua manifestao. Hei-de analisar isto; um dia hei-de examinar melhor, destrinar, os elementos que constituem o meu carcter, pois a minha curiosidade acerca de tudo, aliada minha curiosidade por mim prprio e pelo meu carcter, conduz a uma tentativa para compreender a minha personalidade.

*

Foi por causa destas caractersticas que eu escrevi acerca de mim prprio, em The Writers Day(1):

Algum como Rousseau,

Misantrpico amante da humanidade.

De facto, tenho muitas, demasiadas, afinidades com Rousseau. Em certas coisas, idntico o nosso carcter. O caloroso, intenso, inexprimvel amor da humanidade e a dose de egosmo que o contrapesa eis uma caracterstica fundamental do seu carcter, e tambm do meu.

*

O meu intenso sofrimento patritico, o meu intenso desejo de melhorar o estado de Portugal, provocam em mim como exprimir com que ardor, com que intensidade, com que sinceridade! mil projectos que, mesmo se realizveis por um s homem, exigiriam dele uma caracterstica puramente negativa em mim fora de vontade. Mas sofro at aos limites da loucura, juro-o como se tudo eu pudesse fazer sem, no entanto, o poder realizar, por deficincia da vontade. um sofrimento horrvel que, afirmo-o, me mantm constantemente nos limites da loucura.

E, depois, incompreendido. Ningum suspeita do meu amor patritico, mais intenso do que o de todos aqueles a quem encontro ou conheo. No o traio; como sei, ento, que no o possuem? Como posso dizer que a sua preocupao no iguala a minha? Porque, nalguns casos na maior parte, at o seu temperamento inteiramente diferente; porque, nos outros casos, a sua maneira de falar revela a ausncia de, ao menos, um patriotismo nominal.

O fervor, a intensidade terna, revoltada e ardente do meu, jamais os exprimirei, [...]

Alm dos meus projectos patriticos escrever Repblica de Portugal, provocar aqui uma revoluo, escrever panfletos portugueses, dirigir a publicao de obras literrias nacionais mais antigas, fundar um peridico, uma revista cientfica, etc. outros planos em que me consumo na necessidade de serem em breve postos em prtica [...] conjugam-se para produzir um impulso excessivo que me paralisa a vontade. O sofrimento que isto produz no sei se poder ser definido como situado aqum da loucura.

A tudo isto acrescentem-se ainda outros motivos de sofrimento, alguns fsicos, mentais outros, a susceptibilidade a toda a coisa comezinha que possa ser dolorosa (ou que o no seria, at, para um homem normal), acrescentem-se ainda outras coisas, complicaes, dificuldades de dinheiro - junte-se isto tudo ao meu temperamento fundamentalmente desequilibrado e talvez se possa suspeitar qual a intensidade do meu sofrimento.

30.10.08

Uma das minhas complicaes mentais mais horrvel do que as palavras podem exprimir o medo da loucura, o qual, em si, j loucura. Encontro-me em parte no estado que Rollinat denuncia como seu no poema inicial (segundo creio) das suas Nvroses. Impulsos, alguns deles criminosos, loucos outros, que chegam, por entre o meu sofrimento excruciante, a uma tendncia horrvel para a aco, uma terrvel muscularidade, sentida nos msculos, quero eu dizer eis coisas frequentes em mim, e o seu horror e intensidade agora maiores do que nunca em nmero como em intensidade so indescritveis.

2

Tenho pensamentos que, pudesse eu traz-los luz e dar-lhes vida, emprestariam nova leveza s estrelas, nova beleza ao mundo, e maior amor ao corao dos homens.

3

Compromisso entre Alexandre Busca, residente no Inferno, Nenhures, e Jacob Satans, senhor, embora no rei, do mesmo lugar:

1. Nunca esmorecer nem recuar no propsito de fazer bem humanidade.

2. Nunca escrever coisas sensuais, ou ms a qualquer outro respeito, que possam lesar e prejudicar quem as ler.

3. Nunca esquecer, ao atacar a religio em nome da verdade, que a religio dificilmente pode ser substituda e que o pobre ser humano chora nas trevas.

4. Nunca esquecer o sofrimento e o padecimento dos homens.

A marca de Satans.

2 de Outubro de 1907 Alexandre Busca

4

A primeira nutrio literria da minha meninice foi a que se encontrava em numerosos romances de mistrio e de aventuras horrveis. Pouco me interessavam os livros ditos para rapazes e que relatam vivncias emocionantes. No me atraa a vida saudvel e natural. Anelava, no pelo provvel, mas pelo incrvel, nem sequer pelo impossvel em grau, mas sim pelo impossvel por natureza.

A minha infncia decorreu serena (...), recebi uma boa educao. Mas, desde que tenho conscincia de mim mesmo, apercebi-me de uma tendncia nata em mim para a mistificao, para a mentira artstica. Junte-se a isto um grande amor pelo espiritual, pelo misterioso, pelo obscuro, que, ao fim e ao cabo, no era seno uma forma e uma variante daquela outra minha caracterstica, e a minha personalidade ser completa para a intuio.

5

[ms.][1910?]

Eu era um poeta impulsionado pela filosofia, no um filsofo dotado de faculdades poticas. Adorava admirar a beleza das coisas, descortinar no imperceptvel, atravs do que diminuto, a alma potica do universo.

A poesia da terra nunca morre. possvel dizermos que as eras transactas foram mais poticas, mas podemos dizer (...)

H poesia em tudo - na terra e no mar, nos lagos e nas margens dos rios. H-a tambm na cidade - no o neguemos - facto evidente para mim enquanto aqui estou sentado: h poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; h poesia na trepidao dos carros nas ruas; em cada movimento nfimo, vulgar, ridculo, de um operrio que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta de um talho.

O meu sentido interior de tal modo predomina sobre os meus cinco sentidos que estou convencido vejo as coisas desta vida de modo diferente do dos outros homens. Existe para mim existia um tesouro de significado numa coisa to ridcula como uma chave, um prego na parede, os bigodes de um gato. Encontro toda uma plenitude de sugesto espiritual no espectculo de uma ave domstica com os seus pintainhos que, com ar pimpo, atravessam a rua. Encontro um significado mais profundo do que as lgrimas humanas no aroma do sndalo, nas latas velhas jazendo numa montureira, numa caixa de fsforos cada na valeta, em dois papis sujos que, num dia ventoso, rolam e se perseguem rua abaixo. que poesia espanto, admirao, como de um ser tombado dos cus em plena conscincia da sua queda, atnito com as coisas. Como de algum que conhecesse a alma das coisas e se esforasse por rememorar esse conhecimento, lembrando-se de que no era assim que as conhecia, no com estas formas e nestas condies, mas de nada mais se recordando.

6

[dact.][1910?]

Cumpre-me agora dizer que espcie de homem sou. No importa o meu nome, nem quaisquer outros pormenores externos que me digam respeito. acerca do meu carcter que se impe dizer algo.

Toda a constituio do meu esprito de hesitao e dvida. Para mim, nada nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim prprio. Tudo para mim incoerncia e mutao. Tudo mistrio, e tudo prenhe de significado. Todas as coisas so desconhecidas, smbolos do Desconhecido. O resultado horror, mistrio, um medo por de mais inteligente.

Pelas minhas tendncias naturais, pelas circunstncias que rodearam o alvor da minha vida, pela influncia dos estudos feitos sob o seu impulso (estas mesmas tendncias) por tudo isto o meu carcter do gnero interior, autocntrico, mudo, no auto-suficiente mas perdido em si prprio. Toda a minha vida tem sido de passividade e sonho. Todo o meu carcter consiste no dio, no horror da e na incapacidade que impregna tudo aquilo que sou, fsica e mentalmente, para actos decisivos, para pensamentos definidos. Jamais tive uma deciso nascida do autodomnio, jamais tra externamente uma vontade consciente. Os meus escritos, todos eles ficaram por acabar; sempre se interpunham novos pensamentos, extraordinrias, inexpulsveis associaes de ideias cujo termo era o infinito. No posso evitar o dio que os meus pensamentos tm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil interassociaes, e no tenho fora de vontade para os eliminar ou deter, nem para os reunir num s pensamento central em que se percam os pormenores sem importncia mas a eles associados. Perpassam dentro de mim; no so pensamentos meus, mas sim pensamentos que passam atravs de mim. No pondero, sonho; no estou inspirado, deliro. Sei pintar mas nunca pintei, sei compor msica, mas nunca compus. Estranhas concepes em trs artes, belos voos de imaginao acariciam-me o crebro; mas deixo-os ali dormitar at que morrem, pois falta-me poder para lhes dar corpo, para os converter em coisas do mundo externo.

O meu carcter tal que detesto o comeo e o fim das coisas, pois so pontos definidos. Aflige-me a ideia de se encontrar uma soluo para os mais altos, mais nobres, problemas da cincia, da filosofia; a ideia que algo possa ser determinado por Deus ou pelo mundo enche-me de horror. Que as coisas mais momentosas se concretizem, que um dia os homens venham todos a ser felizes, que se encontre uma soluo para os males da sociedade, mesmo na sua concepo enfurece-me. E, contudo, no sou mau nem cruel; sou louco, e isso duma forma difcil de conceber.

Embora tenha sido leitor voraz e ardente, no me lembro de qualquer livro que haja lido, em tal grau eram as minhas leituras estados do meu prprio esprito, sonhos meus mais, provocaes de sonhos. A minha prpria recordao de acontecimentos, de coisas externas, vaga, mais do que incoerente. Estremeo ao pensar quo pouco resta no meu esprito do que foi a minha vida passada. Eu, um homem convicto de que hoje um sonho, sou menos do que uma coisa de hoje.

7

Apontamentos pessoais

[ms.][1910?]

Deixei para trs o hbito de ler. J nada leio a no ser um ou outro jornal, literatura ligeira e ocasionalmente livros tcnicos relacionados com o que porventura estudo e em que o simples raciocnio possa ser insuficiente.

O gnero definido de literatura quase o abandonei. Poderia l-lo para aprender ou por gosto. Mas nada tenho a aprender, e o prazer que se obtm dos livros do gnero que pode ser substitudo com proveito pelo que me pode proporcionar directamente o contacto com a natureza e a observao da vida.

Encontro-me agora em plena posse das leis fundamentais da arte literria. Shakespeare j no me pode ensinar a ser subtil, nem Milton a ser completo. O meu intelecto atingiu uma flexibilidade e um alcance tais que me permitem assumir qualquer emoo que deseje e penetrar vontade em qualquer estado de esprito. Quanto quilo por que sempre se luta com esforo e angstia, ser-se completo, no h livro que valha.

Isto no significa que eu tenha sacudido a tirania da arte literria. Aceito-a apenas sujeita a mim prprio.

H um livro de que ando sempre acompanhadoAs Aventuras de Pickwick(2). Li vrias vezes os livros de Mr. W. W. Jacobs. O declnio do romance policial fechou para sempre uma das minhas portas de acesso literatura moderna.

Deixei de me interessar por pessoas que so apenas inteligentes Wells, Chesterton, Shaw. As ideias desta gente so das que ocorrem a muitos que no so escritores; a construo das suas obras inteiramente um valor negativo.

Tempo houve em que eu lia apenas pela utilidade da leitura, mas agora compreendo que h pouqussimos livros teis, mesmo os que versam assuntos tcnicos que me possam interessar.

A sociologia [...]; quem pode tolerar tal escolstica na Bizncio de hoje?

Todos os meus livros so de consulta. Leio Shakespeare apenas em relao com o Problema de Shakespeare; o resto j o sei.

Descobri que a leitura uma forma servil de sonhar. Se tenho de sonhar, porque no sonhar os meus prprios sonhos? [...]

8

Plano de Vida

[dact.][1913?]

Um plano geral para a vida deve implicar, antes de mais, alcanar-se qualquer forma de estabilidade financeira. Marquei como limite para essa coisa humilde a que chamo estabilidade financeira cerca de sessenta dlares - quarenta para o necessrio, e vinte para as coisas suprfluas da vida. A forma de o alcanar adicionar aos trinta e um dlares dos dois escritrios (P & FF) vinte e nove dlares de provenincia a determinar. Em rigor, para viver apenas, cinquenta dlares bastariam, pois, tomando trinta e cinco como base necessria, quinze j davam para o resto.

*

A coisa essencial que vem logo a seguir residir numa casa com bastante espao, espao quanto a divises e divises com os requisitos necessrios, para arrumar todos os meus papis e livros na devida ordem; e tudo isto sem grande possibilidade de me mudar dentro de pouco tempo. Parece que o mais fcil seria alugar eu prprio uma casa base de, suponhamos, oito ou, quando muito, nove dlares e viver l vontade, combinando que me levassem o jantar (e o pequeno-almoo) todos os dias, ou coisa parecida. Mas seria este sistema absolutamente conveniente?

Substituir, no tocante ordem dos papis, a minha caixa grande por caixas mais pequenas contendo os papis por ordem de importncia. Na caixa grande e na outra em A. S. ficariam s os jornais e revistas que guardo.

*

Alugada uma casa, qual o mobilirio? No seria melhor combinar de novo as coisas com S? De modo a alcanar isto de que preciso, mudando-nos ns, se necessrio, para tanto?

*

Seja como o Destino quiser.

9

[ms.] [1914?]

Cada vez estou mais s, mais abandonado. Pouco a pouco quebram-se-me todos os laos. Em breve ficarei sozinho.

*

O meu pior mal que no consigo nunca esquecer a minha presena metafsica na vida. De a a timidez transcendental que me atemoriza todos os gestos, que tira a todas as minhas frases o sangue da simplicidade, da emoo directa.

10

[ms.] [1915?]

H entre mim e o mundo uma nvoa que impede que eu veja as cousas como verdadeiramente so como so para os outros.

Sinto isto.

11

Prefcio (aproveitar para o Shakespeare?) (3)

No encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligncia masculina. A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e nisso que consistem o temperamento e a sua expresso, so de mulher. As minhas faculdades de relao a inteligncia, e a vontade, que a inteligncia do impulso - so de homem.

Quanto sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de amar, tenho dito tudo. Magoava-me sempre o ser obrigado, por um dever de vulgar reciprocidade uma lealdade do esprito a corresponder. Agradava-me a passividade. De actividade, s me aprazia o bastante para estimular, para no deixar esquecer-me, a actividade em amar daquele que me amava.

Reconheo sem iluso a natureza do fenmeno. uma inverso sexual fruste. Pra no esprito. Sempre, porm, nos momentos de meditao sobre mim, me inquietou, no tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposio do temperamento no pudesse um dia descer-me ao corpo. No digo que praticasse ento a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar. Somos vrios desta espcie, pela histria abaixo - pela histria artstica sobretudo. Shakespeare e Rousseau so dos exemplos, ou exemplares, mais ilustres. E o meu receio da descida ao corpo dessa inverso do esprito - radica-mo a contemplao de como nesses dois desceu - completamente no primeiro, e em pederastia; incertamente no segundo, num vago masoquismo.

12

[Carta a Mrio Beiro] (4)

Lisboa, 1 de Fevereiro de 1913.

Meu querido Mrio Beiro:

Deu-me um grande prazer a sua carta de 25, que h dias recebi. Tinha muita pena, certo, que v. no me tivesse escrito ainda, mas, como eu tambm lhe no tinha escrito, no me cabia o direito objectivo de ter essa pena. O pior para mim que eu, por certo, sinto mais a falta de correspondncia que v. Estou, quanto a companhia espiritual e imediata, quase s, se no s em absoluto... No sou das pessoas menos acompanhveis por si prprias, mas ainda assim e de vez em quando aborreo-me de no andar seno comigo.

Por isto a sua carta, ainda que breve, me causou uma grande alegria.

Estou actualmente atravessando uma daquelas crises a que, quando se do na agricultura, se costuma chamar crises de abundncia.

Tenho a alma num estado de rapidez ideativa to intenso que preciso fazer da minha ateno um caderno de apontamentos, e, ainda assim, tantas so as folhas que tenho a encher, que algumas se perdem, por elas serem tantas, e outras se no podem ler depois, por com mais que muita pressa escritas. As ideias que perco causam-me uma tortura imensa, sobrevivem-se nessa tortura, escuramente outras. V. dificilmente imaginar que Rua do Arsenal, em matria de movimento, tem sido a minha pobre cabea. Versos ingleses, portugueses, raciocnios, temas, projectos, fragmentos de coisas que no sei o que so, cartas que no sei como comeam ou acabam, relmpagos de crticas, murmrios de metafsicas... Toda uma literatura, meu caro Mrio, que vai da bruma para a bruma pela bruma...

Destaco de coisas psquicas de que tenho sido o lugar, o seguinte fenmeno que julgo curioso. V. sabe, creio, que de vrias fobias que tive guardo unicamente a assaz infantil mas terrivelmente torturadora fobia das trovoadas. O outro dia o cu ameaava chuva e eu ia a caminho de casa e por tarde no havia carros. Afinal no houve trovoada, mas esteve iminente e comeou a chover - aqueles pingos graves, quentes e espaados ia eu ainda a meio do caminho entre a Baixa e minha casa. Atirei-me para casa com o andar mais prximo do correr que pude achar, com a tortura mental que v. calcula, perturbadssimo, confrangido eu todo. E neste estado de esprito encontro-me a compor um soneto acabei-o uns passos antes de chegar ao porto de minha casa , a compor um soneto de uma tristeza suave, calma, que parece escrito por um crepsculo de cu limpo. E o soneto no s calmo, mas tambm mais ligado e conexo que algumas coisas que eu tenho escrito. O fenmeno curioso do desdobramento coisa que habitualmente tenho, mas nunca o tinha sentido neste grau de intensidade. Como prova do gnero calmo do soneto, aqui lho transcrevo:

ABDICAO

Toma-me, Noite Eterna, nos teus braos E chama-me teu filho... Eu sou um Rei Que voluntriamente abandonei O meu trono de sonhos e cansaos.

Minha espada, pesada a braos lassos, Em mos viris e calmas entreguei, E meu ceptro e coroa - eu os deixei Na antecmara, feitos em pedaos.

Minha cota de malha, to intil, Minhas esporas dum tinir to ftil Deixei-as pela fria escadaria.

Despi a Realeza, corpo e alma, E regressei Noite antiga e calma Como a paisagem ao morrer do dia.

D saudades minhas ao Vila-Moura e escreva-me breve e o mais extensamente que puder.

Um grande abrao do seu dedicadssimo

FERNANDO PESSOA

Rua Passos Manuel, 24, 3. E.

14

[ms.] [1915?]

Ficarei o Inferno de ser Eu, a Limitao Absoluta, Expulso-Ser do Universo longnquo! Ficarei nem Deus, nem homem, nem mundo, mero vcuo-pessoa, infinito de Nada consciente, pavor sem nome, exilado do prprio mistrio, da prpria Vida. Habitarei eternamente o deserto morto de mim, erro abstracto da criao que me deixou atrs. Arder em mim eternamente, inutilmente, a nsia (estril) do regresso a ser.

No poderei sentir porque no terei matria com que sinta, no poderei respirar [?] alegria, ou dio, ou horror, porque no tenho nem a faculdade com que o sinta, conscincia abstracta no inferno do no conter nada, no-Contedo Absoluto, [Sufocao] absoluta e eterna! Oco de Deus, sem universo, (...).

15

[Prece]

[ms.] [1912?]

Senhor, que s o cu e a terra, que s a vida e a morte! O sol s tu e a lua s tu e o vento s tu! Tu s os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor s tu tambm. Onde nada est tu habitas e onde tudo est (o teu templo) eis o teu corpo.

D-me alma para te servir e alma para te amar. D-me vista para te ver sempre no cu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a gua e alto como o cu. Que no haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propsitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmos e servir-te como a um pai.

[... ]

Minha vida seja digna da tua presena. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me. D-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.

16

[ms.] [1914?]

Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade a leitura de romances policiais. Entre o nmero areo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto por do melhor ano aquelas em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison me pega na conscincia ao colo.

Um volume de um destes autores, um cigarro de 45 ao pacote, a ideia de uma chvena de caf-trindade cujo ser-uma o conjugar a felicidade para mim resume-se nisto a minha felicidade. Seria pouco para muitos, a verdade que no pode aspirar a muito mais uma criatura com sentimentos intelectuais e estticos no meio europeu actual.

Talvez seja para os senhores como que causa de pasmo, no o eu ter estes por meus autores predilectos - e de quarto de cama, mas o eu confessar que nesta conta pessoal assim os tenho.

17

Esttica da abdicao

[dact.] [1913?]

Conformar-se submeter-se e vencer conformar-se, ser vencido. Por isso toda a vitria uma grosseria. Os vencedores perdem sempre todas as qualidades de desalento com o presente que os levaram luta que lhes deu a vitria. Ficam satisfeitos, e satisfeito s pode estar aquele que se conforma, que no tem a mentalidade do vencedor. Vence s quem nunca consegue. S forte quem desanima sempre. O melhor e o mais prpura abdicar. O imprio supremo o do Imperador que abdica de toda a vida normal, dos outros homens, em quem o cuidado da supremacia no pesa como um fardo de jias.

18

[ms.] 21.11.1914

Hoje, ao tomar de vez a deciso de ser Eu, de viver altura do meu mister, e, por isso, de desprezar a ideia do reclame, e plebeia sociabilizao de mim, do Interseccionismo, reentrei de vez, de volta da minha viagem de impresses pelos outros, na posse plena do meu Gnio e na divina conscincia da minha Misso. Hoje s me quero tal qual meu carcter nato quer que eu seja; e meu Gnio, com ele nascido, me impe que eu no deixe de ser.

Atitude por atitude, melhor a mais nobre, a mais alta e a mais calma. Pose por pose, a pose de ser o que sou.

Nada de desafios plebe, nada de girndolas para o risa ou a raiva dos inferiores. A superioridade no se mascara de palhao; de renncia e de silncio que se veste.

O ltimo rasto de influncia dos outros no meu carcter cessou com isto. Reconheci ao sentir que podia e ia dominar o desejo intenso e infantil de lanar o Interseccionismo a tranquila posse de mim.

Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.

19

[ms.] [1914?]

Perteno a uma gerao que ainda est por vir, cuja alma no conhece j, realmente, a sinceridade e os sentimentos sociais. Por isso no compreendo como que uma criatura fica desqualificada, nem como que ela o sente. oca de sentido, para mim, toda essa (...) das convenincias sociais. No sinto o que honra, vergonha, dignidade. So para mim, como para os do meu alto nvel nervoso, palavras de uma lngua estrangeira, como um som annimo apenas.

Ao dizerem que me desqualificaram, eu no percebo seno que se fala de mim, mas o sentido da frase escapa-me. Assisto ao que me acontece, de longe, desprendidamente, sorrindo ligeiramente das cousas que acontecem na vida. Hoje, ainda ningum sente isto; mas um dia vir quem o possa perceber.

Procurei sempre ser espectador da vida, sem me misturar nela. Assim, a isto que se passa comigo, eu assisto como um estranho; salvo que tiro dos pobres acontecimentos que me cercam a volpia suave (5) de (...).

No tenho rancor nenhum a quem provocou isto. Eu no tenho rancores nem dios. Esses sentimentos pertencem queles que tm uma opinio, ou uma profisso ou um objectivo na vida. Eu no tenho nada dessas cousas. Tenho na vida o interesse de um decifrador de charadas.

Mas eu no tenho princpios. Hoje defendo uma cousa, amanh outra. Mas no creio no que defendo hoje, nem amanh terei f no que defenderei. Brincar com as ideias e com os sentimentos pareceu-me sempre o destino supremamente belo. Tento realiz-lo quanto posso.

Nunca me tinha sentido desqualificado. Como lhe agradecer ter-me ministrado esse prazer! Ele uma volpia suave, como que longnqua...

No nos entendem, bem sei...

... Assim como criador de anarquias me pareceu sempre o papel digno de um intelectual (dado que a inteligncia desintegra e a anlise estiola).

20

Crnica da vida que passa (6)

[dact.]

As vezes, quando penso nos homens clebres, sinto por eles toda a tristeza da celebridade.

A celebridade um plebesmo. Por isso deve ferir uma alma delicada. um plebesmo porque estar em evidncia, ser olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensao de parentesco exterior com as criaturas que armam escndalo nas ruas, que gesticulam e falam alto nas praas. O homem que se torna clebre fica sem vida ntima: tornam-se de vidro as paredes da sua vida domstica; sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mnimas aces ridiculamente humanas s vezes que ele quereria invisveis, coa-as a lente da celebridade para espectaculosas pequenezes, com cuja evidncia a sua alma se estraga ou se enfastia. preciso ser muito grosseiro para se poder ser clebre vontade.

Depois, alm dum plebesmo, a celebridade uma contradio. Parecendo que d valor e fora s criaturas, apenas as desvaloriza e as enfraquece. Um homem de gnio desconhecido pode gozar a volpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu gnio; e pode, pensando que seria clebre se quisesse, medir o seu valor com a sua melhor medida, que ele-prprio. Mas, uma vez conhecido, no est mais na sua mo reverter obscuridade. A celebridade irreparvel. Dela como do tempo, ningum torna atrs ou se desdiz.

E por isto que a celebridade uma fraqueza tambm. Todo o homem que merece ser clebre sabe que no vale a pena s-lo. Deixar-se ser clebre uma fraqueza, uma concesso ao baixo-instinto, feminino ou selvagem, de querer dar nas vistas e nos ouvidos.

Penso s vezes nisto coloridamente. E aquela frase de que homem de gnio desconhecido o mais belo de todos os destinos, torna-se-me inegvel; parece-me que esse no s o mais belo, mas o maior dos destinos.

Diz-se que os hermticos da Rosa-Cruz, seita esotrica e magista, descobriram, desde o incio dos tempos, o segredo da vida-eterna, o elixir da vida; que, nunca morrendo, passam de poca em poca, atravs dos ciclos e das civilizaes, despercebidos, nenhuns e, contudo, pela grandeza da cousa transcendental que criaram, maiores do que os gnios todos da evidncia humana. Da sua seita o preceito, que cumprem, de se no darem nunca a conhecer. A sua presena eterna, que vive margem da nossa transincia, vive tambm fora da nossa pequenez.

Vo-se-me os olhos da alma nessas figuras supostas e quem sabe a que ponto reais? que, verdadeiramente, realizam o supremo destino do homem: o mximo do poder no mnimo da exibio; o mnimo da exibio por certo, por terem o mximo do poder. O sentido das suas vidas divino e longnquo. Apraz-me crer que eles existam para que possa pensar nobremente da humanidade.

21

[dact.] [Janeiro de 1917?]

Por mim, o meu egosmo a superfcie da minha dedicao. O meu esprito vive constantemente no estudo e no cuidado da Verdade, e no escrpulo de deixar, quando eu despir a veste que me liga a este mundo, uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade. Reconheo que o sentido intelectual que esse Servio da Humanidade toma em mim, em virtude do meu temperamento, me afasta, muitas vezes, das pequenas manifestaes que em geral revelam o esprito humanitrio. Os actos de caridade, a dedicao por assim dizer quotidiana so cousas que raras vezes aparecem em mim, embora nada haja em mim que represente a negao delas.

Em todo o caso, reconheo, em justia para comigo prprio, que no sou mais egosta que a maioria dos indivduos, e muito menos o sou que a maioria dos meus colegas nas artes e nas letras. Pareo egosta queles que, por um egosmo absorvente, exigem a dedicao dos outros como um tributo.

25

[ms.] [1934?]

No que no publique porque no quero: no publico porque no posso. No se entendam estas palavras como dirigidas contra a Comisso de Censura; ningum tem menos razo de queixa do que eu dessa Comisso. A Censura obedece, porm, a directrizes que lhe so superiormente impostas; e todos ns sabemos quais so, mais ou menos, essas directrizes.

Ora sucede que a maioria das coisas que eu pudesse escrever no poderia ser passada pela Censura. Posso no poder coibir o impulso de escrev-las: domino fcilmente, porque no o tenho, o impulso de as publicar nem vou importunar os Censores com matria cuja publicao eles teriam forosamente que proibir.

Sendo assim para qu publicar? Privado de poder publicar o que deveras interessar o pblico, que empenho tenho eu em levar a um jornal qualquer o que, por ilegvel, lhe no serve, ou que (...)

Posso, certo, dissertar livremente (e, ainda assim, s at certo ponto e em certos meios) sobre a filosofia de Kant (...)

IIIPara a Explicao da Heteronmia

1

[ms.] [1915?]

No sei quem sou, que alma tenho.

Quando falo com sinceridade no sei com que sinceridade falo. Sou vriamente outro do que um eu que no sei se existe (se esses outros).

Sinto crenas que no tenho. Enlevam-me nsias que repudio. A minha perptua ateno sobre mim perptuamente me ponta traies de alma a um carcter que talvez eu no tenha, nem ela julga que eu tenho.

Sinto-me mltiplo. Sou como um quarto com inmeros espelhos fantsticos que torcem para reflexes falsas uma nica anterior realidade que no est em nenhuma e est em todas.

Como o pantesta se sente rvore [?] e at a flor, eu sinto-me vrios seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de no-eus sintetizados num eu postio.

2

[ms.] [s. d.]

S plural como o universo!

3

[dact.] [s. d]

Sendo ns portugueses, convm saber o que que somos.

a) adaptabilidade, que no mental d a instabilidade, e portanto a diversificao do indivduo dentro de si mesmo. O bom portugus vrias pessoas.

b) a predominncia da emoo sobre a paixo. Somos ternos e pouco intensos, ao contrrio dos espanhis - nossos absolutos contrrios - que so apaixonados e frios.

Nunca me sinto to portugusmente eu como quando me sinto diferente de mim Alberto Caeiro, Ricardo Reis, lvaro de Campos, Fernando Pessoa, e quantos mais haja havidos ou por haver.

4

[dact.] [1930?]

Aspectos [Prefcio para a edio projectada das suas obras]

A obra complexa, cujo primeiro volume este, de substncia dramtica, embora de forma vria aqui de trechos em prosa, em outros livros de poemas ou de filosofias.

, no sei se um privilgio se uma doena, a constituio mental que a produz. O certo, porm, que o autor destas linhas no sei bem se o autor destes livros nunca teve uma s personalidade, nem pensou nunca, nem sentiu, seno dramticamente, isto , numa pessoa, ou personalidade, suposta, que mais prpriamente do que ele prprio pudesse ter esses sentimentos.

H autores que escrevem dramas e novelas; e nesses dramas e nessas novelas atribuem sentimentos e ideias s figuras, que as povoam, que muitas vezes se indignam que sejam tomados por sentimentos seus, ou ideias suas. Aqui a substncia a mesma, embora a forma seja diversa.

A cada personalidade mais demorada, que o autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele deu uma ndole expressiva, e fez dessa personalidade um autor, com um livro, ou livros, com as ideias, as emoes, e a arte dos quais, ele, o autor real (ou porventura aparente, porque no sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o ter sido, no escrev-las, o mdium de figuras que ele prprio criou.

Nem esta obra, nem as que se lhe seguiro tm nada que ver com quem as escreve. Ele nem concorda com o que nelas vai escrito, nem discorda. Como se lhe fosse ditado, escreve; e, como se lhe fosse ditado por quem fosse amigo, e portanto com razo lhe pedisse para que escrevesse o que ditava, acha interessante porventura s por amizade o que, ditado, vai escrevendo.

O autor humano destes livros no conhece em si prprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo v que um ente diferente do que ele , embora parecido; filho mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas as diferenas de ser outrem.

Que esta qualidade no escritor seja uma forma da histeria, ou da chamada dissociao da personalidade, o autor destes livros nem o contesta, nem o apoia. De nada lhe serviriam, escravo como da multiplicidade de si prprio, que concordasse com esta, ou com aquela, teoria, sobre os resultados escritos dessa multiplicidade.

Que este processo de fazer arte cause estranheza, no admira; o que admira que haja cousa alguma que no cause estranheza.

Algumas teorias, que o autor presentemente tem, foram-lhe inspiradas por uma ou outra destas personalidades que, um momento, uma hora, uns tempos, passaram consubstancialmente pela sua prpria personalidade, se que esta existe.

Afirmar que estes homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, no existem - no pode faz-lo o autor destes livros; porque no sabe o que existir, nem qual Hamlet ou Shakespeare, que mais real, ou real na verdade.

Estes livros sero os seguintes, por enquanto: Primeiro, este volume, Livro do Desassossego, escrito por quem diz, de si prprio chamar-se Vicente Guedes; depois O Guardador de Rebanhos e outros poemas e fragmentos do (tambm, e do mesmo modo, falecido) Alberto Caeiro, que nasceu prximo de Lisboa em 1889 e morreu onde nascera em 1915. Se me disserem que absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que tambm no tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer cousa quer que seja.

Este Alberto Caeiro teve dois discpulos e um continuador filosfico. Os dois discpulos, Ricardo Reis e lvaro de Campos, seguiram caminhos diferentes; tendo o primeiro intensificado e tornado artisticamente ortodoxo o paganis