FERREIRA, M._AMADO, J. Usos e abusos da história oral Capítulo_p_vi_xxv.rtf

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FERREIRA, Marieta de M.; AMADO, Janaina; (org). Apresentao in Usos e abusos da histria oral. Rio de Janeiro: ed. Fundao Getlio Vargas, 1998, pp vii xxv.

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Apresentao

Janana Amado e Marieta de Moraes Ferreira

A traduo a principal forma de efetuar trocas internacionais no mercado das idias: no campo das cincias sociais, importar traduzir", lembrou L. Boltanski.[Nota:1] Mas por que importar - isto , traduzir e publicar no Brasil, hoje - uma coletnea de textos relativos histria oral, destinada a estudantes, professores, pesquisadores e praticantes dessa metodologia, bem como a todos os que se interessam pelo assunto?

Atualmente, existe uma colossal distncia entre o vertiginoso crescimento da histria oral e a minguada quantidade de livros e artigos sobre o tema disponveis em portugus, produzidos em sua maior parte por pesquisadores brasileiros. Ao lanar textos importantes sobre histria oral de autores reconhecidos por outros pblicos e traduzidos pela primeira vez no pas, acreditamos estar contribuindo para estreitar essa distncia. Os textos foram pesquisados em numerosas publicaes, algumas de difcil acesso; entre os autores, h os de nacionalidade francesa, norte americana, italiana, mexicana, inglesa, canadense, australiana, belga, colombiana, alem, espanhola... Nem todos os artigos inicialmente selecionados puderam ser publicados: alguns no receberam autorizao de suas

Nota 1 pgina vii: Em Notes sur les changes philosophiques intemationaux. Actes de Ia Recherche en Sciences Sociales (5-6), 1975, citado por Grard Mauger no prefcio de Manheim, Karl. Le probleme des gnrations. Paris, Nathan, 1990.

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editoras, enquanto outros tiveram a permisso para a traduo vinculada ao pagamento de somas muito altas, o que encareceria excessivamente este volume, tornando-o invivel. Como lembrou Pierre Bourdieu, "o destino de um texto [...] jamais se reduz quela espcie de interesse desinteressado pela prpria coisa, o nico interesse reconhecido, o interesse puro e puramente cientfico ou esttico..." [Nota:2]

Este livro fruto da concepo de histria oral que partilhamos. Entendida como metodologia, a histria oral remete a uma dimenso tcnica e a uma dimenso terica. Esta ltima evidentemente a transcende e concerne disciplina histrica como um todo. O fato de compreendermos a teoria como campo parte, relacionado histria oral porm dela distinto, nos deu liberdade para selecionarmos certos textos que tradicionalmente no integrariam uma coletnea de histria oral. So ensaios que, embora analisem questes tericas essenciais para os historiadores orais, no partem das experincias das entrevistas. o caso dos artigos de talo Calvino, Giovanni Levi e Pierre Bourdieu. Esses textos, entretanto basta l-Ios, para comprovar -, alm de fontes de prazer intelectual, desvendam com tal maestria um mundo de questes indispensveis aos historiadores orais que s nos resta reverenciar seus autores, aprendendo com eles.

Os artigos aqui reunidos abordam diferentes dimenses da histria oral. Chamam a ateno para as vrias possibilidades dessa metodologia e aprofundam reflexes em torno de pontos cruciais: relaes entre memria e histria, principais conceitos e estilos de investigao em histria oral, organizao de acervos orais, inter-relaes entre histria oral e histria do tempo presente, tipos de entrevistas, formas de narrar trajetrias individuais (biografias, autobiografias, histrias de vida) e ligaes entre tradio oral e escrita so alguns dos temas discutidos no livro. Os textos no apresentam assim unidade terica, metodolgica ou tcnica; alguns expressam pontos de vista opostos. Foram escolhidos, alm de sua qualidade, por representarem diversas tradies historiogrficas e correntes de pensamento, para que estas sejam divulgadas entre o pblico brasileiro, dinamizando o debate. Alguns textos so profundos, requerendo dos leitores familiaridade com o assunto, enquanto outros se dirigem a ini

Nota 2 pgina viii: Em La critique du discours lettr. Actes de Ia Recherche en Sciences Sociales (5-6) :4-8, 1975.

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ciantes na rea. A diversidade da coletnea espelha a variedade de usos, agentes, agendas, finalidades e instituies - em suma, a polifonia que caracteriza o campo da histria oral no mundo, hoje. Antes de prosseguirmos, vejamos em que estado se encontra atualmente este campo no Brasil.

A histria oral no Brasil, hoje

Embora sua introduo no Brasil date dos anos 70, somente no incio dos anos 90 a histria oral experimentou aqui uma expanso mais significativa. A multiplicao de seminrios e a incorporao pelos programas de ps-graduao em histria de cursos voltados para a discusso da histria oral so indicativos importantes da vitalidade e dinamismo da rea. Por outro lado, o estabelecimento e o aprofundamento de contatos com pesquisadores estrangeiros e com programas de reconhecido mrito internacional, propiciados pelos encontros e seminrios, criaram canais importantes para o debate e a troca de experincias.

A criao da Associao Brasileira de Histria Oral, em 1994, e a publicao de seu Boletim tm estimulado a discusso entre pesquisadores e praticantes da histria oral em todo o pas. A divulgao dos programas e grupos de trabalho existentes, a apresentao dos acervos de depoimentos orais j acumulados e das linhas de pesquisa em curso, bem como a listagem das publicaes lanadas nos ltimos dois anos representam uma contribuio da Associao que permite traar um quadro bastante preciso da situao atual da histria oral no cenrio brasileiro.

Algumas caractersticas bsicas da recente produo ligada histria oral no Brasil j podem ser detectadas. E um valioso ponto de referncia so os trs grandes encontros realizados no pas nos ltimos anos - o II Encontro Nacional de Histria Oral (Rio de Janeiro, 1994), o I Encontro Regional da Regio Sul-Sudeste (So Paulo/Londrina, 1995) e o III Encontro Nacional (Campinas, 1996).

A primeira reunio, em que foram apresentados 60 papers, contou com a participao de 250 pesquisadores, distribudos em sete grupos de trabalho temticos - questes metodolgicas, tradio oral e etnicidade, instituies, elites e militares, gnero, trabalho e trabalhadores, e constituio de acervo. Pde-se constatar uma forte presena da comunidade acadmica nos projetos de histria oral em andamento, sendo pouco

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expressiva a participao de grupos sindicais, associaes de moradores, empresas ou mesmo arquivistas. Entre os participantes do encontro que apresentaram trabalhos, os doutores predominaram amplamente, sendo inexpressiva a presena de graduandos. No que diz respeito formao, diversamente do que se observava na dcada de 80, quando os pesquisadores que trabalhavam com histria oral eram majoritariamente cientistas sociais, verificou-se maioria absoluta de historiadores. Em relao ao contedo temtico dos trabalhos apresentados, embora a pesquisa junto a minorias ou a grupos menos favorecidos constitusse uma tradio no campo da histria oral, no foi registrado predomnio marcante de estudos voltados para as camadas populares. Observou-se, na verdade, uma abertura de espao para temas ainda pouco explorados, como movimentos intelectuais, burocratas, militares e instituies. [Nota:3]

No I Encontro Regional da Regio Sul-Sudeste (49 papers), as tendncias j delineadas no foram substancialmente alteradas: predominncia do meio acadmico e, dentro dele, dos historiadores, e pouca expresso de outros grupos. Do ponto de vista do contedo dos trabalhos, pde-se perceber um maior interesse por questes metodolgicas e por temas ligados cultura popular. [Nota:4]

Examinando-se, finalmente, o conjunto de trabalhos selecionados para apresentao no III Encontro Nacional, detecta-se mais uma vez a participao macia de historiadores ligados academia. importante ressaltar, entretanto, a entrada em cena de pesquisadores vinculados a rgos da administrao pblica e entidades de classe, alm de arquivistas. Nota-se ainda um aumento da participao de doutorandos, mestrandos e at mesmo de graduandos bolsistas de iniciao cientfica, o que representa uma mudana em relao ao encontro do Rio de Janeiro. Diferentemente, tambm, do encontro de 1994, cresceu consideravelmente o nmero de estudos voltados para as camadas populares, sendo retomada assim uma antiga tradio da histria oral. [Nota:5]

Nota 3 pgina x: Ver Ferreira, Marieta de Moraes (org.). Histria oral e multidisciplinaridade. Rio de Janeiro, Diadorim, 1994.

Nota 4 pgina x: Ver Meihy, Jos Carlos Sebe Bom. (Re)introduzindo a histria oral no Brasil. So Paulo, Xam/USP, 1996.

Nota 5 pgina x: Ver II Encontro Nacional de Histria Oral. Livro de resumos. Campinas, Associao Brasileira de Histria Oral, 1996.

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Esses dados desenham um quadro animador para a histria oral no Brasil: trata-se de uma rea de pesquisa que se projeta, ganha novos adeptos, multiplica seus temas. Um ponto, no entanto, motivo de preocupao: o carter ainda limitado da reflexo e da discusso metodolgica. A despeito dos inegveis avanos, a discusso permanece restrita aos tradicionais especialistas da rea que tm acesso aos encontros internacionais e bibliografia estrangeira.

Trabalhar com histria oral no Brasil em geral ainda consiste em gravar entrevistas e editar os depoimentos, sem explor-Ios suficientemente, tendo em vista um aprofundamento terico-metodolgico; tambm comum a utilizao de entrevistas, em associao com fontes escritas, como fornecedoras de informaes para a elaborao de teses ou trabalhos de pesquisa, sem que isso envolva qualquer discusso acerca da natureza das fontes ou de seus problemas.

Este livro pretende ser exatamente um elemento de estmulo reflexo sobre o uso da histria oral, mostrar sua riqueza e suas dificuldades, seus desafios e seus resultados. Mais que isso, pretende contribuir para a reflexo sobre temas e questes ligados histria como um todo. Poucas reas, atualmente, tm esclarecido melhor que a histria oral o quanto a pesquisa emprica de campo e a reflexo terico-metodolgica esto indissociavelmente interligadas, e demonstrado de maneira mais convincente que o objeto histrico sempre resultado de uma elaborao: em resumo, que a histria sempre construo. Temos a certeza de que esta ser uma contribuio de peso para os pesquisadores brasileiros.

O status da histria oral

O livro est dividido em cinco blocos. O primeiro deles, sob o ttulo "Questes", rene textos em que predomina a preocupao metodolgica. Etienne Franois, Jorge Eduardo Aceves Lozano, Jean-Jacques Becker, Danile Voldman e Philippe Joutard apresentam e discutem importantes aspectos da metodologia da histria oral hoje. Uma questo maior, central, projeta-se sobre as outras, perpassando esses artigos e todo o livro; de certa forma, essa questo originou a prpria concepo e organizao do volume: qual o status da histria oral? Difcil orientar-se em campo configurado to recentemente, em meio a diversas concepes que se entrecruzam, algumas pouco claras, disputando com ferocidade espaos e audincias. Um campo cuja prpria denominao posta em xe

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que! [Nota 6]. De forma ainda provisria, tentaremos responder questo, com o objetivo de participar de um debate decerto decisivo (pois que definir os rumos da histria oral nos prximos anos), incentivando sua circulao entre os pesquisadores brasileiros.

Diferenas secundrias parte, possvel reduzir a trs as principais posturas a respeito do status da histria oral. A primeira advoga ser a histria oral uma tcnica; a segunda, uma disciplina; e a terceira, uma metodologia. Aos defensores da histria oral como tcnica interessam as experincias com gravaes, transcries e conservao de entrevistas, e o aparato que as cerca: tipos de aparelhagem de som, formas de transcrio de fitas, modelos de organizao de acervo etc. Alguns defensores dessa posio so pessoas envolvidas diretamente na constituio e conservao de acervos orais; muitos so cientistas sociais cujos trabalhos se baseiam em outros tipos de fontes (em geral, escritas) e que utilizam as entrevistas de forma eventual, sempre como fontes de informao complementar. Esses nem sempre defendem conscientemente a "postura tcnica"; s vezes, tal opo resultado do tipo de relao que mantm com a histria oral (atendimento a necessidades especficas de pesquisa ou deveres profissionais). A essas pessoas, entretanto, somam-se as que efetivamente concebem a histria oral como uma tcnica, negando-lhe qualquer pretenso metodolgica ou terica: "A chamada 'histria oral' no passa de um conjunto de procedimentos tcnicos para a utilizao do gravador em pesquisa e para a posterior conservao das fitas.

Nota 6 - A denominao "histria oral" ambgua, pois adjetiva a histria, e no as fontes - estas, sim, orais. A designao foi criada numa poca em que as incipientes pesquisas histricas com fontes orais eram alvo de criticas cidas do mundo acadmico, que se recusava a consider-Ias objetos dignos de ateno e, principalmente, a conceder-Ihes status institucional. No embate que se seguiu, pela demarcao e aceitao do novo campo de estudos, o adjetivo "oral", colado ao substantivo "histria", foi sendo divulgado e reforado pelos prprios praticantes da nova metodologia, desejosos de realar-lhe a singularidade, diferenciando-a das outras metodologias em uso, ao mesmo tempo em que lhe afirmavam o carter histrico. Hoje, a designao "histria oral" tomou-se de tal forma difundida e aceita - o "atestado visvel da identidade de seu portador", a que se refere Bourdieu, a propsito de nomes, neste volume - que nos pareceu secundrio reabrir a disputa em tomo dela; outras questes, mais substanciais para o momento, permanecem ainda mergulhadas em confuso.

A respeito da expresso "histria oral", consulta!; neste volume, o texto de Danile Voldman; sobre a histria da histria oral, os artigos de Alistair Thomson, Michael Frisch e Paula Hamilton; e de Ronald J. Grele.

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Querer mais do que isso ingressar no terreno da mais pura fantasia. A histria oral no possui os fundamentos filosficos da teoria, nem os procedimentos que [...] possam ser qualificados como metodolgicos. Ela fruto do cruzamento da tecnologia do sculo XX com a eterna curiosidade do ser humano" [Nota 7].

Os que postulam para a histria oral status de disciplina baseiam-se em argumentos complexos, por vezes contraditrios entre si. Todos, entretanto, parecem partir de uma idia fundamental: a histria oral inaugurou tcnicas especficas de pesquisa, procedimentos metodolgicos singulares e um conjunto prprio de conceitos; este conjunto, por sua vez, norteia as duas outras instncias, conferindo-lhes significado e emprestando unidade ao novo campo do conhecimento: "Pensar a histria oral dissociada da teoria o mesmo que conceber qualquer tipo de histria como um conjunto de tcnicas, incapaz de refletir sobre si mesma [...]. No s a histria oral terica, como constituiu um corpus terico distinto, diretamente relacionado s suas prticas" [Nota 8].

E quais conceitos, idias, caractersticas e direes integrariam a histria oral, permitindo conferir-lhe o status de disciplina, segundo esse grupo de estudiosos? Neste ponto, surgem dificuldades, pois os autores divergem, partindo de pontos de vista diferentes, at opostos, ou simplesmente tergiversam. Ian Mikka, o autor antes citado, que to contundentemente defende um status terico prprio da histria oral, reconhece: "O corpus terico da histria oral precisa [...] ser mais bem delineado; embora constitudo, encontra-se no centro de controvrsias" [Nota 9].

As idias resumidas a seguir so as apresentadas por Mikka, acrescidas de observaes de vrios outros autores. Representam uma tentativa de condensar perspectivas e temas reconhecidos por grande parte

Nota 7 - Roger, William. Notes on oral history. lnternational Journal of Oral History, 7(1):23-8, Feb. 1986.

Nota 8 - Mikka, Ian. What on Earth is oral history? In: Elliot, James K. (ed.). New trails in history. Sydney, Australian Press, 1988. p. 124-36 (grifos nossos).

Nota 9 - Mikka, 1988:127.

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da bibliografia como especficos da histria oral, mesmo por autores que no postulam para esta o status de disciplina autnoma: [Nota 10]

. o testemunho oral representa o ncleo da investigao, nunca sua parte acessria; isso obriga o historiador a levar em conta perspectivas nem sempre presentes em outros trabalhos histricos, como por exemplo as relaes entre escrita e oralidade, memria e histria ou tradio oral e histria;

o uso sistemtico do testemunho oral possibilita histria oral esclarecer trajetrias individuais, eventos ou processos que s vezes no tm como ser entendidos ou elucidados de outra forma: so depoimentos de analfabetos, rebeldes, mulheres, crianas, miserveis, prisioneiros, loucos... So histrias de movimentos sociais populares, de lutas cotidianas encobertas ou esquecidas, de verses menosprezadas; essa caracterstica permitiu inclusive que uma vertente da histria oral se tenha constitudo ligada histria dos excludos;

na histria oral, existe a gerao de documentos (entrevistas) que possuem uma caracterstica singular: so resultado do dilogo entre entrevistador e entrevistado, entre sujeito e objeto de estudo; isso leva o historiador a afastar-se de interpretaes fundadas numa rgida separao entre sujeito e objeto de pesquisa, e a buscar caminhos alternativos de interpretao;

a pesquisa com fontes orais apia-se em pontos de vista individuais, expressos nas entrevistas; estas so legitimadas como fontes (seja por seu valor informativo, seja por seu valor simblico), incorporando assim elementos e perspectivas s vezes ausentes de outras prticas histricas -

Nota 10 - Mikka, 1988 : 132. Foram incorporadas reflexes de vrios textos constantes desta coletnea e mais dos seguintes artigos: Dunaway, David King. The oral biography. Biography, 14 (3):25666, 1991 (sobre as relaes entre histria de vida e histria social); Griffiths, Tom. The debate about oral history. Melbourne Historical Journal (13):16-21, 1981 (sobre a possibilidade de a histria oral ser uma histria dos excludos); Portelli, Alessandro. The peculiarities of oral history. History Workshop Journal, 12:96-107, Autumn 1981 (sobre o carter das fontes orais), e Rioux, Jean-Pierre. L'histoire orale: essors, problemes et enjeux. Cahiers de Clio (75-76):29-48, 1983 (sobre formas peculiares de interpretao geradas pelo carter das fontes orais).

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porque tradicionalmente relacionados apenas a indivduos -, como a subjetividade, as emoes ou o cotidiano;.

. a histria do tempo presente, perspectiva temporal por excelncia da histria oral, legitimada como objeto da pesquisa e da reflexo histricas;

. na histria oral, o objeto de estudo do historiador recuperado e recriado por intermdio da memria dos informantes; a instncia da memria passa, necessariamente, a norte ar as reflexes histricas, acarretando desdobramentos tericos e metodolgicos importantes, conforme o demonstram alguns dos textos deste livro;

o fato de a histria oral ser largamente praticada fora do mundo acadmico, entre grupos e comunidades interessados em recuperar e construir sua prpria memria, tem gerado tenses, pois as perspectivas, os objetivos e os modos de trabalho de acadmicos e no-acadmicos podem diferir muito; essa pluralidade (uma das marcas da histria oral em todo o mundo), quando aceita, pode gerar um rico dilogo, raramente presente em outras reas da histria;

a narrativa, a forma de construo e organizao do discurso (a compreendidos tanto o estilo, na acepo de Peter Gay, quanto aquilo que Paul Veyne chamou de "trama" e Hayden White de "urdidura do enredo") 11 so valorizadas pelo historiador, pois, como lembrou Alessandro Portelli, fontes orais so fontes narrativas; isso tudo chama ateno ao carter ficcional das narrativas histricas, seja as dos entrevistados, seja as do entrevistador, o que pode acarretar mudanas de perspectivas revolucionrias para o trabalho histrico.

Entre os defensores da histria oral como metodologia situamse as autoras desta apresentao e organizadoras do presente livro. Aceitamos como vlido, em linhas gerais, o feixe de idias antes resumido, espcie de territrio comum sobre o qual se erige a histria oral hoje, o que naturalmente a transforma em algo muito mais abrangente e com

Nota 11] - Ver Gay, Peter. O estilo na histria. So Paulo, Companhia das Letras, 1990; Veyne, Paul. Como se escreve a histria. 2 ed. Braslia, UnB, 1992; e White, Hayden. O texto histrico como anefato literrio e As fices da representao factual. In: Tpicos do discurso. So Paulo, Edusp, 1994. p. 97-116 e 137-51.

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plexo do que uma simples tcnica, como querem alguns. A divergncia entre os que pensam como ns e os postulantes da histria oral como disciplina reside em outro ponto: estes reconhecem na histria oral uma rea de estudos com objeto prprio e capacidade (como o fazem todas as disciplinas) de gerar no seu interior solues tericas para as questes surgi das na prtica - no caso especfico, questes como as imbricaes entre histria e memria, entre sujeito e objeto de estudo, entre histria de vida, biografia e autobiografia, entre diversas apropriaes sociais do discurso etc.

Em nosso entender, a histria oral, como todas as metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos de trabalho - tais como os diversos tipos de entrevista e as implicaes de cada um deles para a pesquisa, as vrias possibilidades de transcrio de depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes maneiras de o historiador relacionar-se com seus entrevistados e as influncias disso sobre seu trabalho -, funcionando como ponte entre teoria e prtica [Nota 12]. Esse o terreno da histria oral - o que, a nosso ver, no permite classific-la unicamente como prtica. Mas, na rea terica, a histria oral capaz apenas de suscitar, jamais de solucionar, questes; formula as perguntas, porm no pode oferecer as respostas.

As solues e explicaes devem ser buscadas onde sempre estiveram: na boa e antiga teoria da histria. A se agrupam conceitos capazes de pensar abstratamente os problemas metodolgicos gerados pelo fazer histrico. O entrevistado "se esquece" sempre de um conjunto especfico de acontecimentos que vivenciou? Cada grupo de informantes situa em datas diferentes determinado fato histrico? Sendo uma metodologia, a histria oral consegue enunciar perguntas como essas; mas, exatamente por ser uma metodologia, no dispe de instrumentos capazes de compreender os tipos de comportamento descritos (bastante comuns, alis). Apenas a teoria da histria capaz de faz-lo, pois se dedica, entre outros assuntos, a pensar os conceitos de histria e memria, assim como as complexas relaes entre ambos.

Para tentar esclarecer seu dilema, nosso pesquisador poder ainda lanar mo de contribuies oriundas de outras disciplinas, como a fi

Nota 12 - Um bom exemplo do uso da histria oral como metodologia o texto Arquivos: propostas metodolgicas", de Chantal de Tourtier-Bonazzi, neste livro.

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losofia (os trabalhos de Henri Bergson sobre a memria, por exemplo), a teoria sociolgica (as reflexes de Maurke Halbwachs ou Pierre Bourdieu, entre outros), a teoria psicanaltica (que desde Freud, vem trabalhando conceitualmente a memria, em especial o seu potencial regenerador e transformador). Seja qual for a disciplina a que recorra, porm, o historiador encontrar encaminhamentos e solues para esse tipo de questo na rea da teoria (histrica, sociolgica, psicanaltica etc.), j que esta tem a capacidade de pensar abstratamente questes oriundas da prtica, filtradas pela metodologia, produzindo conceitos que, por sua abrangncia, so aplicados a situaes anlogas, iluminando e transformando a compreenso da prpria prtica - no caso especfico, do exerccio da histria oral. A interdependncia entre prtica, metodologia e teoria produz o conhecimento histrico; mas a teoria que oferece os meios para refletir sobre esse conhecimento, embasando e orientando o trabalho dos historiadores, a includos os que trabalham com fontes orais. Exatamente o mesmo ocorre com outras metodologias: a demografia histrica, por exemplo, est apta a elaborar tabelas e sries relativas s populaes, construir metodologias de trabalho para esse material e formular questes importantes sobre tais dados, mas deve procurar fora dela prpria - na teoria - subsdios para compreender as questes que suscita; o mesmo se passa com a histria econmica, a genealogia, a histria cultural etc.

Afinal, qual a importncia de toda essa discusso? Que diferena poder fazer, para quem trabalha com fontes orais? A nosso ver, pode fazer uma grande, colossal diferena. Nosso ponto de vista que esse debate se encontra bem no centro da definio do que a histria oral, dos seus usos, e dos rumos que poder tomar. Se considerarmos a histria oral uma tcnica, nossa preocupao se concentrar exclusivamente em temas como organizao de acervos, realizaes de entrevistas etc. (temas em si relevantes, mas, como esperamos ter demonstrado, muito aqum das possibilidades da histria oral).

Se concebermos a histria oral como disciplina, h dois caminhos possveis, ambos, a nosso ver, problemticos: "esquecermos" as questes exclusivas da teoria, deixando de abord-las em nossos trabalhos, ou tentarmos encontrar respostas para elas apenas no mbito da histria oral. No primeiro caso, o resultado sero os infelizmente numerosos trabalhos chos, com concluses bvias - porque coladas aos dados das entrevistas, sem possibilidade de elaborao terica -,

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que sempre deixam urna pergunta no ar: "Seria mesmo preciso fazer urna pesquisa para chegar a isso?" So trabalhos que se limitam a reproduzir as palavras dos entrevistados, que exploram urna idia absolutamente comprovada (utilizando trechos de entrevistas para corrobor-la), que no conseguem problematizar qualquer aspecto da pesquisa...

No segundo caso - buscar respostas tericas no mbito da histria oral -, o resultado, em nosso entender, mais danoso: corno impossvel explicar algo sem meios adequados para faz-lo (explicar questes tericas pela via da metodologia), os textos, para tentar contornar o problema, so pontilhados de referncias ligeiras "seletividade da memria", aos "entrelaamentos entre tradio oral e escrita", s "imbricaes entre sujeito e objeto de estudo" etc., confundindo os leitores iniciantes e nada revelando. Estas expresses, em verdade, faziam originariamente parte de discusses tericas, mas, dissociadas de seus contextos originais e repetidas ad infinitum, acabaram por compor um jargo oco, incapaz de explicar, por exemplo, corno e por que um caso especfico de memria seletiva aconteceu, ou quais caminhos fizeram urna determinada tradio escrita entrelaar-se a urna determinada tradio oral, dessa forma no compreendendo seu objeto de estudo nem contribuindo para qualquer avano terico.

Essas posturas, pensamos, empobrecem nossa rea de estudos. hora de pararmos com vitimizaes-. Chega de nos defendermos eternamente dos supostos crticos que, armados dos piores preconceitos, estariam sempre prontos a nos agredir. Passou a poca da marginalizao da histria oral. Hoje ela integra currculos e experincias de muitas comunidades e grupos sociais. o momento de baixarmos as armas, e, com humildade, olharmos para ns mesmos, reconhecendo que nossos crticos tm razo em pelo menos um ponto: falta consistncia terica a parte de nossa produo.

Outras questes

Os artigos reunidos no segundo bloco do livro, intitulado "Memria e tradio", gravitam em tomo de trs assuntos fundamentais: entrelaamentos entre memria e histria, conceito de "gerao" e relaes entre tradio escrita e oral. Henry Rousso discute as dificuldades e possibilidades de urna "histria da memria" mostrando corno, desde Les lieux

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de mmoire, de Pierre Nora [Nota 13], ela se tornou, na Frana e em outros pases, um campo especfico de estudos; Rousso chama a ateno para as singularidades dessa trajetria, mostrando como, freqentemente, a histria da memria se torna uma histria das feridas abertas pela memria [Nota 14]; o autor cria uma polmica acerca da natureza das fontes orais, afirmando, por exemplo, que elas, embora importantes, no possuem mais autoridade que qualquer outro tipo de fonte.

Alessandro Portelli, em torno de um assunto aparentemente "menor", pontual - o massacre de 13 prisioneiros pelas tropas alems num povoado da Toscana, Itlia, em 1944 -, desenvolve uma importante discusso sobre a natureza da memria coletiva. Sustentando que, por ser gerada individualmente, a memria s se torna coletiva no mito, no folclore, nas instituies e por delegao (quando uma histria condensa vrias histrias), Portelli recupera o conceito de "memria dividida". Em geral, afirma, a presso para no esquecer em verdade preserva as lembranas de determinado grupo, materializando o controle social. A memria coletiva, assim, longe da espontaneidade que muitos lhe atribuem, seria mediatizada por ideologias, linguagens, senso comum e instituies, ou seja: seria uma memria dividida [Nota 15].

O texto de Alistair Thomson, Michael Frisch e Paula Hamilton analisa as relaes memria/histria por outro ngulo: o das tenses geradas entre prticas acadmicas e no-acadmicas da histria oral, na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Austrlia. Alm do minucioso inventrio da questo, o texto pe em relevo um problema particularmente impor-

Nota 13 - A obra, organizada por Nora e lanada pela Gallimard, teve a seguinte cronologia de publicao: I. La Rpublique, 1984; II. La Nation, 1986. 3v.; III. Les Frances, 1993. 3v.

Nota 14 - Michael Kammen, autor citado no texto, tambm se referiu a essa questo: "Nos Estados Unidos, foram as diversas chagas do presente - Watergate e sobretudo .a Guerra do Vietn - que tomaram necessria uma construo instrumental da memria do passado". Ver Kammen, Michael. Mystic chords of memory. The transformation of tradition in American culture. New York, Alfred Knopf, 1991. p. 12.

Nota 15 - Textos que tratam de questes semelhantes: Cohen, David W. The combing of history. Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1994; Daston, Lorraine. Marvelous facts and miraculous evidence in early modem Europe; Vidal-Naquet, Pierre. Atlantis and the nations. In: Chandler, James Ced.). Questions of evidence: proof, practice, and persuasion across the disciplines. Chicago, University of Chicago Press, 1994. p. 243-74 e 325-51; Portelli, Alessandro. The death of Luigi Trastulli. In: The death of Luigi Trastulli and other stories. New York, State University of New York Press, 1991. p. 1-26.

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tante: como conciliar as excitantes e recentes descobertas tericas, elaboradas nas academias, com os numerosos projetos de histria oral desenvolvidos por grupos da sociedade, muitos deles populares, relacionados a compromissos polticos e ideolgicos imediatos? Os autores recusam solues fceis, do tipo identificar a histria oral como a "histria vinda de baixo" ou como "a verdadeira histria dos excludos" - concepo que j predominou no Brasil, e em outros pases -, para examinar caminhos e solues mais complexos e criativos, sem descuidar dos compromissos polticos. Em assunto to espinhoso, uma questo subjaz a todo o texto: a tica [Nota 16].

Nada como um grande escritor para apresentar um grande tema; talo Calvino, em um texto no-acadmico extremamente sensvel e inteligente, transmite a complexa idia de uma dupla dimenso do real: a do mundo concreto e a do mundo dos textos. Ao apresentar o dos textos como o seu mundo, aquele que compreende e no qual se sente vontade, Calvino inverte nossa percepo habitual do assunto, provocando-nos o estranhamento que buscam os antroplogos, e levandonos a refletir, entre outras coisas, sobre as relaes entre escrita e oralidade.

O texto de Julie Cruikshank, extrado de The Canadian Historical Review, chama a ateno para a mais recente tendncia de historiadores e antroplogos que trabalham com populaes inseridas em sociedades letradas, mas para as quais a escrita no a principal forma de transmisso de conhecimentos: investigar tanto as fontes orais quanto as escritas, mesmo que isso gere a inquietante questo que David Henige, um historiador da frica, j se havia colocado alguns anos antes: "[...] o historiador pode ficar perplexo pela percepo inconfundvel de que a tradio oral nem

Nota 16 - No bloco "Pensar o tempo presente", deste livro, h textos que se referem dimenso tica da histria oral e da histria contempornea. A respeito, ver tambm, com diferentes perspectivas: Alcoff, Linda. The problem of speaking for other. Cultural Critique. 1991-92. p. 5-32; Gugelberger, George & Kearney, Michael. Voices for the voiceless: testimonial literature in Latin America. Latin American Perspectives, 18 (3):3-15, 1970; Grele, Ronald J. Useful discoveries: oral history, public history, and the dialectic of narrative. The Public Historian, 13 (1); McBryde, Isabel (ed.). Who owns the past? Melbourne, Oxford University Press, 1985; e Patai, Daphne. Ethical problems of personal narratives, or, Who should eat the last piece of cake? lnternational Journal of Oral History, 8 (1):5-27, Feb. 1987.

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sempre apenas oral" [Nota 17]. O artigo chama tambm a ateno para outro aspecto nem sempre explorado nos estudos da tradio oral: narrativas orais referem-se tanto ao passado quanto ao presente, organizando-os e unificando-os, e ao mesmo tempo apontam para o futuro [Nota 18]. Finalmente, o texto mostra como o estudo da tradio oral, relacionado de forma to ntima ao da histria oral, desafia as concepes tradicionais de "lugar" e de "evento".

Ligado s pesquisas sobre memria e tradio, outro tema vem ganhando espao e importncia: o tema gerao. O texto de Jean-Franois Sirinelli, autor de vrias obras sobre o assunto, destaca os limites e possibilidades do uso. da "gerao" como instrumento de anlise do historiador e como objeto da histria. Antes visto com reservas pelos historiadores (especialmente os vinculados escola dos Annales, pois em geral "gerao" associada ao tempo curto), o tema hoje saltou diretamente das ruas para a academia. A imprensa refere-se "gerao cara-pintada", a poltica menciona uma "gerao ps-guerra", a publicidade anuncia uma nova "gerao de mveis", jovens rebelam-se contra a "antiga gerao", fa

Nota 17 - A citao completa na qual a frase est inserida : "Os materiais que o informante consulta podem variar da Bblia a livros em geral ou histria local, a publicaes governamentais, a recortes de jornais e mesmo a dissertaes ou publicaes de um predecessor recente. No incio, o historiador pode ficar perplexo pela percepo inconfundvel de que a tradio oral nem sempre apenas oral. Entretanto, essa situao est se tomando cada vez mais freqente, medida que a proliferao do trabalho nas sociedades orais se combina com o aumento dos ndices de alfabetizao". Henige, David. Oral historiography. London, Longman, 1982. p. 57.

Para uma discusso sobre as relaes entre escrita e oralidade, consultar; entre outros: Goody, Ack. The inteiface between the written and the oral. London, Cambridge University Press, 1987; e Ong, Walter J. Orality and literacy. 2 ed. London, Methuen, 1986.

Nota 18 - Outros autores, citados em nota no texto, tambm expressaram o mesmo ponto de vista. David William Cohen, por exemplo, escreveu: U(...) o conhecimento do passado, para o povo busoga, que vive entre o Nilo e o leste de Uganda, no so os mortos ou os sobreviventes moribundos de uma cultura oral passada, reproduzida por meio dos estreitos circuitos do passado, de gerao em gerao. O conhecimento do passado em Busoga envolve a inteligncia cotidiana, crtica e viva que circunda o status, as atividades, os gestos e a fala dos indivduos em Busoga. Escritrios, ttulos de terra, heranas, crena e ritual, clientelismo, dvidas, casamentos - tudo isso fica como um desdobramento criativo do conhecimento detalhado do passado". Ver The undefining of oral tradition. Ethnohistory, 36 (1):9-18, 1989.

Outro autor que analisa esse tema em profundidade Richard Price, em First-time: the historical vision of an Afro-american people. Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1983; Outro livro de Price tambm extremamente esclarecedor sobre o assunto: Alabi's world. Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1989.

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la-se em "conflito de geraes", uma "terceira idade" foi depressa inventada... Os estudiosos retomaram o clssico O problema das geraes, de Karl Manheim, partindo da para desenvolver o assunto em vrias direes, inclusive a da histria oral, j que "gerao" um conceito muito utilizado no senso comum para marcar a passagem do tempo e dar-lhe significados pessoais [Nota 19].

O terceiro bloco de artigos - "Trajetria" - est voltado para o papel do sujeito na histria e coloca em pauta questes relativas a biografias, autobiografias, histrias de vida. O uso desses relatos como fontes de investigao tem provocado grandes debates metodolgicos no campo das cincias sociais, e so inmeros os problemas levantados. Especialmente ao longo dos anos 60 e 70, predominou na historiografia a tendncia de valorizar as anlises das estruturas, os processos de longa durao, e, em contrapartida, de desvalorizar os estudos sobre a conjuntura poltica ou cultural, o fato histrico singular e seu protagonista individual. Nesse movimento, o uso de fontes seriais e de tcnicas de quantificao assumiu importncia fundamental, enquanto o recurso a relatos pessoais, histrias de vida, biografias passou a ser visto como extremamente problemtico. Condenava-se sua subjetividade, duvidava-se das vises distorcidas apresentadas, enfatizava-se a dificuldade de se obter relatos fidedignos. Alegava-se tambm que os depoimentos pessoais no podiam ser considerados representativos de uma poca ou de um grupo. A experincia individual produzia uma viso particular e no permitia generalizaes.

A virada dos anos 70 para os anos 80 trouxe, entretanto, transformaes expressivas nos diferentes campos da pesquisa histrica, revalorizando a anlise qualitativa, resgatando a importncia das experincias individuais, promovendo um renascimento do estudo do poltico e dando impulso histria cultural. Nesse novo cenrio, os depoimentos, os relatos pessoais e a biografia tambm foram revalorizados, e muitos dos seus defeitos, relativizados. Argumentou-se, em defesa da abordagem biogrfica,

Nota 19 - Entre os bons estudos sobre gerao esto: Attias-Donfut, C. Sociologie des gnrations. L'empreinte du temps. Paris, PUF, 1988; Le Wita, Batrix. L'nigme des trois gnrations. In: Segalen, Manine (dir.). Jeux de familles. Paris, Presses du CNRS, 1991. p. 209-21; Manheim, Karl. Les problemes des gnrations. Paris, Nathan, 1990 (excelentes tambm a introduo e o posfcio de G. Mauger); Sirinelli, Jean-Franois (dir.). Gnrations intelectuelles. Les Cahiers de l'Institut d'Histoire du Temps Prsent (6), 1987.

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que o relato pessoal pode assegurar a transmisso de uma experincia coletiva e constituir-se numa representao que espelha uma viso de mundo. Como afirma Giovanni Levi no artigo includo neste bloco, "nenhum sistema normativo suficientemente estruturado para eliminar qualquer possibilidade de escolha consciente, de manipulao ou de interpretao de regras de negociao. A meu ver, a biografia por isso mesmo o campo ideal para se verificar [...] a liberdade de que as pessoas dispem e para se observar como funcionam concretamente os sistemas normativos".

O texto de Pierre Bourdieu, por outro lado, levanta problemas e questes acerca das biografias e histrias de vida. Nossa proposta exatamente suscitar o debate, cujos desdobramentos s serviro para o enriquecimento da histria oral.

O quarto conjunto de textos - "Pensar o tempo presente" prope-se discutir o status da chamada histria do tempo presente e suas relaes com a histria oral. O paradigma estruturalista dominante na histria nos anos 60-70 tambm via com desconfiana o estudo dos perodos recentes. Ancorada em princpios que sustentavam a necessidade do distanciamento temporal do pesquisador frente ao seu objeto, ou seja, da viso retrospectiva sobre processos histricos cujo desfecho j se conhece, a histria criava limitaes para o trabalho com a proximidade temporal, por temer que a objetividade da pesquisa pudesse ficar comprometida. Mesmo reconhecendo, como o faz Vidal-Naquet [Nota 20], que seus livros de histria antiga traziam a marca de seus posicionamentos polticos, que o trabalho do historiador sempre engajado, a maioria dos historiadores acreditava que o distanciamento do objeto era o meio mais seguro de evitar as paixes polticas atuais. Tambm Eric Hobsbawm [Nota 21] explicava suas dificuldades de trabalhar com os objetos contemporneos, pois certamente teria de se insurgir contra certas orientaes do Partido Comunista, ao qual estava vinculado... Um outro fator certamente intimidava os historiadores: a histria do tempo presente tem de lidar com testemunhas vivas, presentes no momento do desenrolar dos fatos, que podem vigiar ou contestar o pesquisador.

Nota 20 - Em L'engagement de l'historien. In: crire l'histoire du temps prsent. Paris, CNRS, 1992. p. 383.

Nota 21 - Em L'historien et son temps prsent. In: crire l'histoire du temps prsent. Paris, CNRS, 1992. p. 95.

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Nos anos 80, mais uma vez o quadro mudou. O aprofundamento das discusses acerca das relaes entre passado e presente na histria e o rompimento com a idia que identificava o objeto histrico ao passado abriram novas possibilidades para o estudo da histria do sculo xx. Roger Chartier sustenta em seu artigo que, na histria do tempo presente, o pesquisador contemporneo de seu objeto e divide com os que fazem a histria, seus atores, as mesmas categorias e referncias. Assim a falta de distncia, ao invs de um inconveniente, pode ser um instrumento de auxlio importante para um melhor entendimento da realidade estudada, de maneira a superar a descontinuidade fundamental que ordinariamente separa o instrumental intelectual, afetivo e psquico do historiador e aqueles que fazem a histria.

A histria do tempo presente contribui particularmente para o entendimento das relaes entre a ao voluntria, a conscincia dos homens e os constrangimentos desconhecidos que a encerram e a limitam. Melhor dizendo, ela permite perceber com maior clareza a articulao entre, de um lado, as percepes e as representaes dos atores, e, de outro, as determinaes e interdependncias que tecem os laos sociais. Trata-se, portanto, de um lugar privilegiado para uma reflexo sobre as modalidades e os mecanismos de incorporao do social pelos indivduos de mesma formao social. E nos parece bvia a contribuio da histria oral para atingir esses objetivos.

O ltimo conjunto de textos, finalmente - "Entrevistas e acervo" - chama a ateno para questes relativas realizao de entrevistas e a polticas de acervo. O ponto central que defendemos a especificidade da entrevista de histria oral que, distintamente de outras formas de coleta de depoimentos, deve estar sempre inserida num projeto de pesquisa e ser precedida de uma investigao aprofundada, baseando-se em um roteiro cuidadosamente elaborado. Ainda que esta recomendao seja antiga e consensual entre os especialistas em histria oral, nunca demais relembr-la. crescente hoje o interesse por livros de memrias, construdos a partir da tomada de depoimentos orais, por escritores ou jornalistas que no dispem de conhecimento especfico sobre os temas ou os indivduos pesquisados. Muitos desses empreendimentos inegavelmente alcanaram bons resultados, mas muitos outros nada mais so que iniciativas comerciais, estimuladas por um mercado vido por absorver memrias e biografias de figuras pblicas da atualidade. Nada disso tem a ver com a metodologia da histria oral.

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Um segundo aspecto diretamente relacionado realizao de entrevistas a constituio de acervos. A despeito dos esforos que vm sendo realizados com vistas a estimular a formao e a organizao de acervos de histria oral, ainda so grandes os problemas nesta rea, tanto nas instituies pblicas como nas instituies privadas. Para comear, no existe a preocupao por parte dos pesquisadores de realizar entrevistas com a perspectiva de convert-las em fonte para outros pesquisadores no futuro, o que implicaria, necessariamente, a obedincia a determinados critrios de organizao do depoimento e a observncia de certos padres tcnicos de gravao. Existe, por outro lado, uma carncia de programas de histria oral capazes de receber material de pesquisadores individuais ou de organizar as fontes arquivadas e tom-las acessveis a um pblico mais amplo. Se o ofcio do historiador se caracteriza pelo trabalho com fontes primrias, o fato de as entrevistas permanecerem "ocultas", sem que sua consulta seja facultada aos demais interessados, impede-as de se tomar fontes plenamente legitimadas.

O texto de Ronald J. Grele extremamente importante por nos alertar para esses problemas. Tomando como referncia o caso norte-americano, o autor chama a ateno para o fato de que entrevistar apenas o primeiro passo. necessrio processar e tomar disponveis os depoimentos atravs da organizao e da catalogao, e por fim avaliar a qualidade e o interesse dos acervos produzidos. No seu entender, esses seriam procedimentos fundamentais para garantir a maioridade da histria oral.

Recentemente o Jornal do Brasil publicou uma grande matria denunciando a destruio dos arquivos visuais do pas. Poderamos aproveitar a oportunidade para chamar a ateno para a necessidade de preservar a memria oral do Brasil. importante que os arquivos pblicos revejam sua estratgia de dar ateno quase exclusiva s fontes escritas e definam polticas de captao e preservao de fontes orais. No preciso dizer que s teremos a ganhar com isso.

A montagem desta coletnea contou com o apoio de inmeras pessoas e instituies que nos ajudaram a liberar os textos para publicao. A todos, e especialmente a Mercedes Vilanova, editora da revista Historia y Fuente Oral, a Michel Trebitsch, do Institut d'Histoire du Temps Prsent, e a Jean Leblond, nossos sinceros agradecimentos.

Maio de 1996