544
CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMÉRICA PORTUGUESA

Festas- volume II - JANCSO, Istyan; KANTOR, Iris.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMRICA PORTUGUESA

  • FESTACULTURA & SOCIABILIDADE NA AMRICA PORTUGUESA

    V O L U M E II

  • Estante USP - Brasil 500 Anos n 3

    ESP UNIVERSIDADE DE SAO PAULOR eito r Jacques M arcovitch

    V ice-reitor A dolpho Jos Melfi

    | e d u s PEDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO

    Presidente

    Com is so Edi to rial

    D iretora E ditorial

    D iretora Com ercial

    D iretor Adm inistra tivo

    Ed i to r-assisten te

    Plinio M artins Filho (Pro-tempore)

    Plinio M artins Filho (Presidente)

    Jos M indlin

    Laura de M ello e Souza

    M urillo Marx

    O sw aldo Paulo Forattini

    Silvana Biral

    Eliana U rabayashi

    R enato C albucci

    Joo Bandeira

    Im p r e n s a O f ic ia l 3 IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO

    D iretor-P residente D iretor Vice-Presidente

    D iretor Industrial D iretor Financeiro e

    A dm inistra tivo C oordenador Editorial

    Srgio Kobayashi Luiz Carlos Frigerio Carlos Nicolaewsky

    Richard Vainberg Carlos Taufik Haddad

  • I S T V N J A N C S IR I S K A N T O R

    O R Ci A N I /, A I) O R K S

    FESTACULTURA & SOCIABILIDADE NA AMRICA PORTUGUESA

    VOLUME II

    3 |ed usP Imprensa I wmm *ZF A P E SP Oficial

  • D ire i to s de p u b l i c a o r e s e r v a d o s

    E d i to r a H u c i te c L tda .R u a Gil E anes , 71 3 - B ro o k l in 0 4 6 0 1 - 0 4 2 - S o P a u lo - S P -B ra s i l F ax (Oxxl 1) 5 0 9 3 - 5 9 3 S Tel. (O xx l 1) 2 4 0 - 9 3 1 S /5 5 4 3 - 5 S 10 E-m ail : h u c i t e c @ te r r a . c o m . b r \v\v\v. h u c i te c . c o m . br

    E d i t o r a o e l e t r n ic a : O u r p c d c s G a l lene

    C o p y r i g h t O 2 0 0 1 bv I s tv n J a n c s e r is K a n t o r (orgs.)

    D a d o s I n t e r n a c io n a i s de C a t a l o g a o na P u b l i c a o (CIP) ( C m a r a B ras i l e i ra d o L iv ro , SP, Brasil )

    Fes ta : C u l t u r a Sc S o c ia b i l i d a d e n a A m e r i c a P o r t u g u e s a , v o l u m e II / I s t v n J a n c s , r i s K a n t o r (o r g s . ) . - S o P a u lo : H u c i t e c : E d i t o r a da U n i v e r s i d a d e de So P a u lo : F a p c s p : I m p r e n s a O f ic ia l , 2 0 0 1 - ( C o le o E s t a n t e USP - B rasil 5 0 0 A n o s ; v. 3).

    V r io s a u to re s .

    ISBN: S 5 - 3 1 4 -0 6 1 9 - 6 (E dusp)8 5 - 2 7 1 - 0 5 5 5 - 1 (H uc i te c )8 5 - 2 7 1 -0 5 5 7 -S (H u c i te c )

    1. Brasil - H i s t r i a - 1 5 0 0 - 2 0 0 0 2. Brasi l - U sos e c o s tu m e s 3. C u l t u r a - Brasi l 4 . F es tas - B rasil - H i s t r i a I. J a n c s , Is tv n . II. K a n t o r , r is. III. Srie.

    0 1 - 1 9 1 3 C D D - 9 8 1

    n d ice s p a r a c a t lo g o s is te m t ic o :

    1. A m e r ic a P o r tu g u e s a : F es tas : H i s t r i a 9S 1

    2. Brasi l : F e s ta s : H i s t r i a 9S 1

    3. Fes tas : A m r ic a P o r tu g u e s a : H i s t r i a 9S1

    C o -e d i o c o m

    E d u s p - E d i to ra da U n iv e r s id ad e de So P au loAv. Prof . L u c ia n o G u a lb e r to , T r a v e s s a J, 3 746 a n d a r - Ed . d a A n t ig a R e i to r ia - C id a d e U n iv e rs i t r ia0 5 5 0 8 - 9 0 0 - S o P a u lo - SP - BrasilF a x ( O x x l l ) 3 8 1 8 - 4 1 5 1Tel. ( O x x l l ) 3 8 1 8 - 4 0 0 8 / 3 8 1 8 - 4 1 5 0w w w .u s p .b r / e d u s p - e -mail : e d u s p @ e d u .u s p .b r

    Im p r e s s o n o Brasi l 2 0 0 1

    I m p r e n s a O f i c i a l d o E s t a d o

    R u a d a M o o c a , 1921 - M o o c a So P a u lo - SP - C E P 0 3 1 0 3 - 9 0 2 Pa bx : ( O x x l l ) 6 0 9 9 - 9 8 0 0 SA C 0 8 0 0 - 1 2 3 4 0 1E-mail : e d i to r ia l@ im p r e n s a o f i c i a l . c o m .b r w w w . im p r e n s a o f i c i a l . c o m . b r / l i v r a r i a

    Foi feito o d e p s i to legal

  • SUMRIO

    Falando de festasI s t y n J a n c s & I r i s K a n t o r

    A FESTA NA E N C R U Z IL H A D A DAS T E M P O R A L ID A D E S

    Despedidas triunfais celebrao da morte e cultos de memriano sculo XVIIIA n a C r i s t i n a A r a j o

    Teatro em msica no Brasil monrquico L o r e n z o M a m m I

    Veneza, frica, Babel: leituras republicanas, tradies coloniais eimagens do carnaval cariocaM a r i a C l e m e n t i n a P e r e i r a C u n h a

    FESTA BARROCA E CU LTU RA P O L T IC A N O A N T IG O RE G IM E

    Etiqueta e cerimnias pblicas na esfera da Igreja (sculos XVII-XVIII) J o s P e d r o P a i v a

    Entradas solenes: rituais comunitrios e festas polticas, Portugal e Brasil, sculos XVI e XVII P e d r o C a r d i m

  • VIII S II M A K I O

    Entre festas e motins: afirmao do poder rgio bragantino na Amrica portuguesa (1690-1763)R o d r i g o B e n t e s M o n t e i r o

    Uma embaixada africana na Amrica portuguesa S i l v i a H u n o l d L a r a

    Entradas episcopais na capitania de Minas Gerais (1743 e 1748): a transgresso formalizada I RI s K a n t o r

    Festas barrocas e vida cotidiana em Minas Gerais L a u r a d e M e l l o e S o u z a

    A D O C E PERSUASO FESTIVA: EVANGELIZO E RE SISTN C IA

    Festa e inquisio: os mouriscos na cristandade portuguesa dos quinhentosR o g r i o d e O l i v e i r a R i b a s

    Da festa tupinamb ao sab tropical: a catequese pelo avesso R o n a l d o V a i n f a s

    A propsito de cavalhadas M a r l y s e M e y e r

    Histria, mito e identidade nas festas de reis negros no Brasil sculos XVIII e XIXM a r i n a d e M e l l o e S o u z a

    SUBVERSES E INVERSES DA O R D E M FESTIVA

    A revolta uma festa: relaes entre protestos e festas na Amrica portuguesaL u c i a n o F i g u e i r e d o

    A serrao da velha: charivari, morte e festa no mundo luso-brasileiro M a r y D e l P r i o r e

    O enterro satrico de um governador: festa e protesto poltico nas Minas setecentistas A d r i a n a R o m e i r o

    Da festa sedio. Sociabilidades, etnia e controle social na Amrica portuguesa (1776-1814)L u i z G e r a l d o S i l v a

    Batuque negro: represso e permisso na Bahia oitocentista J o o J o s R e i s

    151

    169

    183

    199

    215

    227

    249

    263

    279

    301

    313

    127

    339

  • S U M R I C) IX

    S O L ID A R IE D A D E S FESTIVAS E VIDA CO N FR A R IA L

    Festas e rituais de inverso hierrquica nas irmandades negras de Minas colonialM a r c o s M a g a l h e s d e A g u i a r

    Transitoriedade da vida, eternidade da morte: ritos fnebres de forros e livres nas Minas setecentistas J n i a F e r r e i r a F u r t a d o

    A redeno dos pardos: a festa de So Gonalo Garcia no Recife, em 1745R i t a d e C s s i a B a r b o s a d e A r a j o

    Volume II

    VIDA M ATERIAL E CU LTURA FESTIVA

    Folguedos, feiras e feriados: aspectos socioeconmicos das festasno m undo dos engenhosV e r a L u c i a d o A m a r a l F e r l i n i

    Bebida alcolica e sociedade colonial J U L I T A S C A R A N O

    Os gastos do senado da cmara de Vila Rica com festas: destaque para Corpus Christi (1720-1750)C a m i l a F e r n a n d a G u i m a r e s S a n t i a g o

    Celebrando a alforria: amuletos e prticas culturais entre as mulheres negras e mestias do Brasil E d u a r d o F r a n a P a i v a

    Unidade e diversidade atravs da festa de Corpus Christi B e a t r i z C a t o C r u z S a n t o s

    FESTAS NA C O R T E PO RTU G U ESA

    L itu r g ia real: e n tre a p e rm a n n c ia e o e f m e ro

    I a r a L i s C a r v a l h o S o u z a

    O fim da festa. Msica, gosto e sociedade no tempo de D. Joo VI M a u r c i o M o n t e i r o

    O Tejuco faz a festa. Festejo cvico no arraial do Tejuco em 1815 C a r l a S i m o n e C h a m o n

    361

    397

    419

    449

    467

    487

    505

    521

    545

    569

    587

  • VISES DE VIAJANTES EUROPEUS: EXOTISMO E BARBRIE

    Viajantes em meio ao imprio das festas L i m a M o r i t z S c h w a r o z

    Viajantes vem as festas oitocentistas K a r e n M a c k n o w L i s b o a

    A FESTA DO CU M ENTADA: ASPECTOS H ISTO R IO G R FIC O S

    A escrita da festa: os panfletos das jornadas filipinas a Lisboa de 1581 e 1619A n a P a u l a T o r r e s M e g i a n i

    Revisitando So Lus do Paraitinga. Continuidades e rupturas J a i m e d e A l m e i d a

    Histrias da msica popular brasileira : uma anlise da produo sobre o perodo colonial M arth a A breu

    A FESTA CO M O REPRESENTA O

    Palavras em movimento: as diversas imagens quinhentistas e a universalidade da revelao G u i l h e r m e A m a r a l L u z

    Sermes: o modelo sacramental A l c i r P c o r a

    A categoria representao nas festas coloniais dos sculos XVII e XVIIIJ o o A d o l f o H a n s k n

    Abuso e bom uso: discurso normativo e eventos festivos nas Cartas ChilenasJ o a c i P e r e i r a F u r t a d o

    Expectativa c metamorfose: saudades da Idade de Ouro na AmricaportuguesaS r g i o A l c i d e s

    A M EM R IA G E STU A L E SONORA DA VIDA FESTIVA:O USO DAS F O N T E S

    Msica das festas: a memria perdida J o s R a m o s T i n h o r o

    x S U M R I O

    623

    639

    657

    683

    705

    717

    735

    759

    775

    603

    801

  • A dana na festa colonialM a u i a n n a F k a n g i s c a M a r t i n s M o n t e i r o

    A Procisso do Enterro: uma cerimnia pr-tridentina na AmricaportuguesaP a u l o C a s t a g n a

    A outra festa negra P a u l o D i a s

    A flauta de mutuiii: registro, memria e recriao musical de festas no Brasil nos sculos XVI e XVII A n a M a r i a K i k i -t k r

    FESTAS SING ULA RES

    O festejo dos santos a bordo das embarcaes portuguesas dos sculos XVI e XVII: sociabilizao ou controle social?F b i o P e s t a n a R a m o s

    Catolicismo devocional, festa e sociabilidade: o culto da Virgem de Nazar no Par colonial G e r a l d o M r t i r e s C o e l h o

    O Divino e a Festa do MartrioB e a t r i z R i c a r d i n a d e M a g a l h e s

    Cavalhadas na Amrica portuguesa: morfologia da festa J o s A r t u r T e i x e i r a G o n a l v e s

    A P R O P SIT O DA FESTA

    Festa, trabalho e cotidiano N o r b e r t o L u i z G u a r i n e l l o

    Ideologia, colonizao, sociabilidade: algumas consideraes metodolgicasM a r c o A n t o n i o S i l v e i r a

  • FESTACULTURA & SOCIABILIDADE NA AMRICA PORTUGUESA

    VOLUME II

  • Assentamento no Brasil 1654. leo sobre madeira, 51 x 70 cm. Netherlands Mariti- me Museum, Amsterdam, Holanda. Fundao Bienal de So Paulo. Nelson Aguilar (organizador). Mostra do Redescobrimento: o olhar distante. So Paulo: Associao Brasil 500 Anos, Artes Visuais, 2000, p. 90. Foto Andr Ryoki.

  • FOLGUEDOS, FEIRAS E FERIADOS: ASPECTOS SOCIOECONMICOS

    DAS FESTAS NO MUNDO DOS ENGENHOS

    V k r a L u c i a A m a k a l F e r l i n i

    N u M s K N r i D o P R o F u N D o, as festas ligam-se ao universo da economia. Tendo suas origens nos ritos que buscavam interferir nos ciclos naturais para o provimento da subsistncia, eram momentos de agradecimento ou de splicas natureza, elos de ligao entre o impondervel, visto como divino, sagrado e o homem impotente. O vnculo com a economia, porm, ainda mais profundo que o dos ritos propiciadores de chuvas, fertilidade, boas colheitas, celebradores da germinao, do sol, do calor. A necessidade de sobrevivncia, de melhor domnio dos recursos naturais, levou os seres humanos vida em grupo. Esta, se bem geradora de melhores condies, implica renncias, tenses, competies e conflitos. As festas, neste caso, constituem importante espao de sociabilidade, com suas alegorias, representaes e elaboraes dos conflitos, uma espcie de vlvula de escape, que torna possvel a vida comunitria. Por meio da fantasia, da criao/re-criao livre, as revan- ches so retrabalhadas em espao ldico, as frustraes e reivindicaes so expressas. E o momento de desarranjo/rearranjo que equilibra a sociedade e torna possvel sua manuteno e reproduo.

    A periodicidade da economia agrria, ligada aos ciclos da natureza, estabeleceu em todas as culturas um calendrio de festividades, em que a comunidade se congregava para celebrar, agradecer ou pedir proteo. Essas formas de culto a divindades protetoras da natureza esto na origem das festas portuguesas, transplantadas mais tarde para a colnia. O combate religiosidade

  • 450 YKRA 1.1'CIA AM ARAI. !'K R I. I N 1

    popular que marca a Igreja da Contra-Rcforma buscou suprimir e sincretizar os cultos agrrios pagos, dando-lhes roupagens crists.1

    No mundo colonial, porem, as festas adquirem sentido mais amplo c mesmo inovador. Em primeiro lugar, para que a explorao/produo de riquezas se concretizasse, uma ampla teia de mediaes fazia-se necessria. Era preciso reiterar os padres de dominao, os vnculos de solidariedade a unir a populao para c transplantada, baseados no poder da Coroa e da Igreja.- As festas permitiam o encontro, a visibilidade, a coeso dentro de comemoraes que recriavam os padres metropolitanos, dando a identidade desejada, trazendo o descanso, os prazeres e a alegria e introjetando valores e normas da vida em grupo, partilhando sentimentos coletivos e conhecimentos comunitrios.'

    Visitando a rea dos engenhos nordestinos, Rugcndas assinalou:

    A monotonia dessa existncia s interrompida, de quando em quando, pelas festividades religiosas; a importncia destas aumenta ainda pelo fato de se tornarem uma oportunidade para a reunio de todos os colonos da regio; eles surgem a fim de terminar seus negcios ou iniciar outros. No h nada mais animado do que um domingo numa aldeia ou vila, que possua uma imagem venerada de santo. As famlias dos colonos chegam de todos os lados. Os homens vm a cavalo, as senhoras igualmente, ou em liteira conduzidas por bestas ou escravos. As grandes festas da Igreja so celebradas com muito aparato: h fogos de artifcio, danas c espetculos, que lembram as primitivas representaes mmicas e nos quais as chalaas grosseiras dos atores satisfazem plenamente os espectadores. Nessas ocasies, no se economizam as bebidas alcolicas; entretanto, se os assistentes nem sempre se mantm dentro dos limites da temperana, os excessos e violncias, que acontecimentos idnticos provocam na maioria das naes europias, so aqui infinitamente mais raros.4

    1 Sobre o tema, consulte-se: Peter Burke. Cultura popular na Idade Moderna. Trad. port. So Paulo: Companhia das Letras. 1989; Roger Charticr. .4 histria cultural entre prticas e representaes. Irad. port. Lisboa: Difel, 1990; Robert M uchembled. Culture populaire et culture des /ites dans Ia France Modeme (X le -XYIIIe sic/ej. Essai. Paris: Flammarion. 1978: Rov Strong. Lesftcs de Ia Renaissancel/ 450-1650). Artetpouvoir. Paris: Solin. 1990; Keith Thomas. Region andtheDeclineofMagic. Londres: Penguin Books, 1976: Andr Varagnac. Ckisation traditionnelle etgenres de fie. Paris, 1948.

    : Sobre o sentido das festas nas colnias, veja-se ris Kantor. Festas pblicas e o Ultramar", in: Pado festivo em Minas colonial. Dissertao de mestrado. So Paulo, F F L C H . 1996. Sobre a relao entre reproduo cultural e explorao econmica, veja-se Florestan Fernandes. A sociedade escravista no Brasil", in: Circuito fechado. So Paulo: Hucitec, 1978.Cf. Mary Del Priorc. Festas e utopias no Brasil colonial. So Paulo: Brasiliense. 1994.

    4 Joo Maurcio Rugcndas. Viagem pitoresca atravs do Brasil (1835). Trad. port. 1S cd. So Paulo-Belo Horizonte: Edusp-ltatiaia. 1976, p. 117.

  • I ' ) 1 , 0 I I-. f > rj S , I I-, I k A S !: [ I-, l< I \ U O S 451

    Assim, principalmente as festas de Natal e da Pscoa constituam m om entos de congraamento das populaes rurais e urbanas nos engenhos, quando se organizavam grandes comemoraes, com muitos convidados, que permaneciam por v rios dias nas propriedades. Desse perodo nos d conta Debret, que observava:

    "tendo o cuidado de convidar poetas sempre dispostos a improvisar lindas quadrinhas e msicos encarregados de deleitar as senhoras com suas mo- dinha/.inhas. Os donos da casa tambm escolhem, por sua vez, alguns amigos distintos, conselheiros acatados do proprietrio na explorao da fazenda que visitam demoradamente com ele, ao passo que, ao contrrio, os jovens convidados, geis e turbulentos, entregam-se a essa louca alegria sempre tolerada no interior. A todos os dias comeam, para os homens, com uma caada, uma pescaria ou um passeio a cavalo; as mulheres ocupam-se de sua toilette para o almoo das dez horas. A uma hora todos se renem e se pem mesa; depois de saborear, durante quatro a cinco horas, com vinhos do Porto, Madeira ou Tenerife, as diferentes espcies de aves, caa, peixes c rpteis da regio, passam aos vinhos mais finos da Europa. Ento o champanha estimula o poeta, anima o msico, e os praze- res da mesa confundem-se com os do esprito, atravs do perfume do caf e dos licores. A reunio prossegue em torno das mesas de jogo; meia- noite serve-se o ch, depois do qual cada um se retira para o seu aposento, onde no raro deparar com mveis, perfeitamente conservados, de fins do sculo de Lus XIV. No dia seguinte, para variar, vai-se visitar um amigo numa propriedade mais afastada; tais cortesias aumentam ainda os pra- zeres dessa semana que sempre parece curta demais. Alguns amigos ntimos, que dispem de seu tempo, ficam com a dona da casa, cuja estada se prolonga durante mais de seis semanas ainda, em geral, depois do que todos tornam a encontrar-se na cidade."

    Na Amrica portuguesa, os engenhos, eixos da produo aucareira, constituam microcosmos, verdadeiras agncias de colonizao, no dizer de Oliveira Frana, condensando populaes e articulando, moda de cidade, funes econmicas, militares, religiosas e administrativas.'' Cada engenho possua uma capela dedicada a um santo, patrono da propriedade. Ao redor dos en genhos, pouco a pouco, estabeleciam-se ainda freguesias, com suas parquias, centralizando e supervisionando as atividades religiosas e constituindo-

    Jean-Baptistc Dcbrct. Viagem pitoresca e histrica ao Brasil < 1834-39). Trad. port. 6. cd. So Paulo-Belo Horizonte: Edusp-Itatiaia, 1975. tomo II. p. 145.Eduardo d Oliveira Frana. "Engenhos, colonizao e cristos novos na Bahia- , in: Anais do IV Simpsio da A XPL H. p. 181 -241, 1967.

  • 452 VKRA 1,1'Cl A AMARAL V K R [, I N I

    se em arraiais. As festas religiosas abriam espao para demonstraes do poder e da autoridade desses senhores e, no sculo XIX, quando da concluso das obras de reparo da matriz de Nossa Senhora da Piedade de Matoim, situada em terras do engenho Freguesia, pertencente ao Baro de Passe, resolveu este fazer uma pomposa festa por ocasio de se ter de benzer a imagem da mesma Senhora, que, como nos conta Wanderley Pinho, tinha mandado novamente encarnar. Nesse intuito deu todas as providncias necessrias para que, segundo o costume, o resultado correspondesse a suas vistas; e ao mesmo tempo convidou para sua casa muitas famlias e pessoas de sua amizade que quisessem assistir festa no arraial, assim como acompanhar a imagem que tinha de partir desta cidade em um de seus barcos, na vspera da festividade. Sendo a povoao de Matoim pouco distante, meia dzia de sujeitos de bom gosto fretaram o vapor Pedro II, contrataram a excelente msica do corpo policial para ir tocando a bordo e convidaram todos os que quisessem dar to agradvel passeio para que se fossem munir dos competentes bilhetes, mediante a conveniente esprtula... A festa esteve esplndida e magnfica e para que fosse considerada uma funo completa nem mesmo faltou o indefectvel e atraente fogo de vistas .7

    Sem essa solidariedade constantemente redefinida pelas cerimnias, pelas festividades, pelo encontro, o elo de ligao entre os que viviam em colnias e o sentido maior da colonizao se perderiam. As festas deveriam reafirmar que essa sociedade buscava, no espao colonial, a glria de Deus c a riqueza e prosperidade do Reino.

    Mas se a festa, na sua origem, celebrava a natureza, como grande provedora da subsistncia humana, a colnia dava a essa subsistncia um novo sentido. A produo no era mera ddiva da natureza, dependia do engenho humano e da atividade disciplinada e controlada de cativos: era fruto do trabalho, da lide penosa dos escravos. Interpunham-se aqui, nessa sociedade e em suas expresses, categorias modificadoras dos valores e que era preciso inserir e redefinir: os escravos e seu trabalho. Este, atividade insofrvel para os brancos, no dizer do cronista, adquiria sentido enquanto purgao, pena, sofrimento para a salvao das almas. E o cativeiro travestia-se em resgate de gentios, para convert-los f crist e possibilitar-lhes a vida eterna. O trabalho escravo assim legitimado, adquiria, ainda, sentido sagrado.

    festa, necessidade de sociabilidade da colnia, interpunha-se pois o trabalho de escravos, pela necessidade de inseri-los nas comemoraes, de har- moniz-las ao ritmo da produo, de normatizar as festividades de acordo com os novos padres; de estabelec-las enquanto parada da produo, espao positivo, interrupo favorvel produo, de firm-las como recreao de trabalhadores, de lazer.

    7 Wanderley Pinho. Histria de um engenho do Recncavo. 2.J cd. So Paulo: Nacional, 1982.

  • FO I, G U K OOS , 1'KIRAS F KHKIADOS 453

    O trabalho, gerador de riquezas, era, ao mesmo tempo, e lem ento de disci- plinarizao, de integrao do cativo pago na sociabilidade crist, elemento de sua salvao. Da a contradio entre a folga, o dia santo, o feriado e o trabalho, por interromper o processo de dominao e disciplinarizao que integrava o escravo. A festa, a folga, seria assim uma quebra do cotidiano, da rotina das obras servis, da produo, que poderia gerar o cio.

    A produo aucareira, no ritmo do comrcio internacional, era atividade impressionante. Moa-se, sem interrupo, de agosto a fim de maio, num cronograma de queimadas, colheitas e transporte que articulava o engenho e seus lavradores de cana. Nesse universo de produo, as atividades de eito empregavam, durante todo o ano, centenas de escravos, cm rotina cuidadosam ente estabelecida.

    M undo do trabalho, mas tambm de poder, de representao dos fundamentos da colonizao, nele as comemoraes desempenhavam importante papel, reveladoras do prestgio e da fora do senhor, mas constituam interrupo perigosa da produo e da dominao sobre os escravos.8 Os feriados, os domingos representavam, de um lado, a reunio da populao livre e se- nhorial, articulada aos engenhos, j que em suas capelas, ou na freguesia que os congregava, poderia representar a interrupo da produo, arranjada em cronograma apertado, para atender s necessidades de lavradores e senhores. Assim, permitir que os escravos parassem aos domingos e feriados poderia desarticular o ritmo da safra, como observava Loreto Couto, em meados do sculo XVIII.'' Como a cana s podia ser cortada e moda efetivamente no vero, argumentava que todo esforo deveria ser feito para que se completasse a colheita antes das chuvas de inverno. Cortada, a cana tinha de ser moda dentro de um dia, caso contrario o lquido azedaria. Se o trabalho parasse aos domingos, a cana cortada no sbado ficaria ameaada, e no haveria cana pronta para ser moda na segunda-feira.1U

    Ao mesmo tempo, a liberao das tarefas abriria tempo para o cio. Da a necessidade de os normatizadores eclesisticos, como Benci, exortarem os senhores sobre a necessidade de observncia do descanso dominical, como momento de doutrinao, de lazer regulado de acordo com os preceitos cris

    K Sobre o perigo das reunies de escravos e a necessidade de controle, veja-se, entre outros, Joo Jos Reis. A morte uma festa. So Paulo: Companhia das Letras, 1991; Joo Jos Reis& Eduardo Silva. Negociao e conflito: a resistncia negra no Brasil escravista. So Paulo: Com panhia das Letras, 1989; Ktia Queiroz Mattoso. Ser escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1982.

    1 Domingos Lorcto do Couto. Desagravos do Brasil e glrias de Pernam buco , in: ABNR,24:1-611, 1902.

    111 Sobre o ritmo de produo dos engenhos, veja-se Vera Lucia Amaral Ferlini. Tetra, trabalho e poder. So Paulo: Brasiliense, 1988; Civilizao do acar. So Paulo: Brasiliense, 1984: Stuart Schvvartz. Segredos internos. Trad. port. So Paulo: Companhia das Letras, 1988.

  • 454 VKRA I.UCIA AM AR Al. FKKI.1NI

    tos. Um dos argumentos mais freqentes para se negar aos escravos o descanso dos domingos e dias santos era que eles aproveitavam esses momentos para beber e danar e no para irem missa. No incio do sculo XVI11, Nuno Marques Pereira contava dos escravos de uma certa fazenda que estavam a trabalhar em um dia santo. O proprietrio justificava a transgresso, dizendo serem

    de tal condio estes escravos, que se os mando ouvir Missa, vo meter-se por outras fazendas, com folguedos semelhantes a esses que ouvistes em casa desse morador, onde estivestes e o repreendestes desses calundus e feitiarias. A segunda causa , porque quando os mando Missa, tomam- se de bebidas e fazem vrias brigas, desaguisados e travessuras, e poucas vezes vm para casa sem que lhes suceda alguma coisa destas. Em cujos termos, resolvo que maior acerto , visto dar-lhes eu o sustento e o vestido, ocup-los. porque tambm certo, que o escravo ocioso ordinariamente cria vcios; e destes resultam maiores ofensas de Deus."

    Slvia Lara observa que nessas falas de escravos e de senhores, o pensamento econmico senhorial justifica a transgresso do preceito de ausncia de trabalho naquele dia. No discurso senhorial haveria, ainda, outra razo que antecede e complementa essa justificativa: a de que os escravos, livres do trabalho e sob pretexto de assistir aos cultos religiosos, reuniam-se para prticas pouco recomendveis e viciosas que podiam pr cm risco a dominao do senhor e a preservao dos prprios escravos (brigas e travessuras podiam resultar em ferimentos e outros nus para o senhor: calundus e feitiarias abriam um espao que no era o do domnio senhorial). H, portanto, uma certa identidade entre os vcios e as prticas ldicas e religiosas que escapassem ao controle senhorial. Ou melhor: escapar ao domnio e controle do senhor eis a o perigo dos vcios advindos do cio .12

    O descanso dominical 011 dos dias santos, os folguedos e as festas, no m undo cristo colonial, deviam ser organizados como folga sagrada, lazer controlado. Nos dias teis, o trabalho era a forma de evitar o cio, forma de garantir a salvao e os dias santos, aos domingos deveriam ser estabelecidos como espao da doutrinao, interrupo positiva do trabalho, no sentido cristo.

    Sobre isso, Benci advertia:

    Diro os senhores que no podem acabar com os escravos a que vo a Missa, a Doutrina, e a Pregao; porque ainda que os mandam, eles se divertem por outra parte e no vo. Mas pergunto: podeis acabar vs com

    11 N uno M. Pereira. Compndio narrativo do peregrino da Amrica (172 ). 6.J cd. 1939, t. II, p. 95.12 Slvia H. Lara. Campos da violncia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

  • !'() I. a U K n o s , l-KIRAS K KElt lADOS 455

    clcs que trabalhem no nos dias dedicados ao servio, mas tam bm nos dedicados a Deus? Pois porque no acabareis com eles que vo antes a ouvir Missa, a Pregao c a Doutrina? No h castigos, no h correntes, no h grilhes cm vossa casa? Pois para quando os guardais? Se assim como faltam a obrigao de Cristos faltassem obrigao do vosso servio, ou do vosso respeito, logo vos no faltariam modos para os reduzir devida sujeio. Porm porque faltando s obrigaes de Cristos no vos ofendem a vs, seno a Deus; por isso no se vos d de apertar com eles para que dem o culto a Deus, ao menos naqueles dias, em que manda o mesmo Senhor que lho demos assim Brancos e livres, como Pretos. 1

    Nas falas coloniais sobre o descanso e o lazer dos escravos percebe-se a constituio de uma tica do trabalho e do trabalhador, de sua disciplinariza- o, de constituio desses momentos e dessas temporalidades, de sua regulamentao. O esforo de subordinao dos folguedos dos escravos tica escravista crist do trabalho parece ter surtido efeito e Rugendas, ao relatar as diverses dos escravos, assinalava:

    Pode-se estranhar encontrar entre os negros do Brasil to poucos traos das idias religiosas e dos costumes de sua ptria; mas nisso, como em muitas outras coisas, tem-se a prova de que para os negros a travessia que os leva para a Amrica uma verdadeira morte. O excesso das violncias que lhes so impostas destri, quase inteiramente, todas as suas idias anteriores, apaga a lembrana de todos os seus interesses: a Amrica para eles um mundo novo; aqui recomeam uma nova vida. A influncia da religio catlica incontestvel desse ponto de vista; a consoladora dos negros; seus sacerdotes lhes aparecem sempre como protetores naturais e o so com efeito. Por outro lado, as formas exteriores desse culto devem produzir uma impresso irresistvel no esprito e na imaginao do africano. Concebe-se, pois, que no Brasil os negros se tornem rapidamente cristos convictos e que todas as recordaes do paganismo se apaguem neles ou lhes paream odiosas. 14

    Se guardados todos os dias santos e domingos, as interrupes, no perodo da safra, eram muitas. Nos registros do engenho Sergipe do Conde, podemos verificar que dos trezentos dias aproximadamente que constituam a safra, houve, em mdia, 35 domingos e 26 festas ou dias santos. Tratando-se de um

    Jorge Benci. Economia crist dos senhores no governo dos escravos (1700). So Paulo: Grijalbo, 1977.

    14 Rugendas. Op. cit., p. 157.

  • 456 VKRA L II c: I A AM AR Al. FKKI. INI

    engenho de jesutas, pode-se considerar esse nmero como o mximo.15 No ms de agosto, havia trs festas: Nossa Senhora das Neves, So Loureno, Assuno e So Bartolomeu. Em setembro, guardavam-se os dias Natividade (Anunciao), So Mateus e So Miguel. Em outubro, comemoravam-se So Simo e So Judas. Todos os Santos, Apresentao de Maria c Santo Andr eram os dias santos de novembro. Dezembro era, sem dvida, o ms mais festivo, pois, alm do Natal, guardavam-se os dias de So Francisco Xavier, da Imaculada Conceio, de Nossa Senhora do O, Santo Toms e So Silvestre. Na continuidade do Natal, em janeiro tnhamos Nom e de Jesus, Epifa- nia (Dia de Reis) e So Sebastio. Eram festas fixas de fevereiro a Purificao (Candelria), Nossa Senhora da Encarnao e So Matias. Em maro e abril, alm das festas mveis da Pscoa, que tomavam mais de uma semana, comemoravam-se Nossa Senhora da Anunciao, So Jos, Nossa Senhora dos Pra- zeres. Maio era o fim da moagem, ms de Nossa Senhora, que em Portugal substitua as festas pags de Afroditc, as maias, mas interrompia-se o trabalho para reverenciar So Filipe, So Tiago e a Santa Cruz."

    Para o Rio, o Tenente-Coronel Couto Reis calculava, no final do sculoXVIII, que os sbados, domingos e dias de preceito somavam 134 dias por ano.17

    A pratica de os escravos trabalharem nos engenhos nos domingos e dias santos foi comum e sempre mencionada nos relatos. As necessidades de moagem impediam a completa paralisao das fbricas e muitos senhores de e n genho, como nos relata Loreto do Couto, buscavam harmonizar os preceitos religiosos e o ritmo da produo, parando vrias partes das operaes em diferentes horas do dia. A moenda cessava meia-noite, mas as caldeiras precisavam continuar at as nove da manh de domingo para completar a fornada. A moagem recomeava as quatro horas da tarde do domingo, c as caldeiras reassumiam as operaes s sete da noite. Assim, uma parte do e n genho trabalhava enquanto a outra descansava. Atendia-se tanto religio quanto necessidade .18

    Os escravos, porm, lutavam por seus momentos de descanso, de lazer e

    11 Cf. Livros dc Contas do Engenho Sergipe do Conde. Cartrio dos Jesutas, A N T E Veja-seainda Stuart Schwartz. Op. cit.Alba Maria Zaluar. Os homens de Deus: um estudo dos santos e das festas no catolicismo popular. Rio dc Janeiro: Zahar, 1983; Emanuel Arajo. 0 teatro dos vcios transgresso e transignciana sociedade urbana colonial. Rio dc Janeiro: Jos Olympio, 1993; Lus da Cmara Cascudo.Dicionrio do folclore brasileiro. Rio dc Janeiro, 1954; Mello Moraes Filho. Festas e tradiespopulares no B rasil So Paulo-Bclo Horizonte: Edusp-Itatiaia, 1979.

    17 Plano que fez o Tenente-Coronel Manuel Martins do Couto Reis.. . pelo qual mostrava os avultados interesses que se podiam tirar da Real Fazenda dc Santa Cruz, ANRJ, citado por Slvia Lara. Campos da violncia, op. cit., p. 230.

    ,H Domingos Loreto do Couto. Desagravos do Brasil c glrias dc Pernam buco , in: ABNR, 24:188-6, 1902.

  • !' O I, G II K [) O S , T ]: I R A S K ! F. R I A 1)0 S 457

    de sociabilidade, negados em funo da produo, do temor da ociosidade e da congregao potencialmente subversiva que permitiria recompor laos de solidariedade e formas de organizao; dentre as reivindicaes apresentadas pelos escravos revoltados, no final do sculo XVIII, no engenho Santana de Ilhus, o Tratado apresentado pelos rebeldes a seu senhor, Manuel da Silva Ferreira, destacava, ao final: Podemos brincar, folgar e cantar em todos os tempos que quisermos sem que nos impea e nem seja preciso licena.v>

    O impedimento aos folguedos, danas e festas dos escravos era comum nos engenhos baianos, no incio do sculo XVIII, e Antonil advertia:

    Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que so o nico alvio do seu cativeiro, quer-los desconsolados e melanclicos, de pouca vida e sade. Portanto, no lhes estranhem os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente tarde depois de terem feito pela manh suas festas de Nossa Senhora do Rosrio, de So Benedito e do orago da capela do engenho, sem gasto dos escravos, acudindo o senhor com sua liberalidade aos juizes e dando-lhes algum prmio do seu continuado trabalho. Porque se os juizes e juzas da festa houverem de gastar do seu, ser causa de muitos inconvenientes e ofensas a Deus, por serem poucos os que o podem licitamente ajuntar.

    O que se h de evitar nos engenhos o emborracharem-se com garapa azeda, ou gua ardente, bastando conceder-lhes a garapa doce, que lhes no faz dano, e com ela fazem seus resgates com os que a troco lhes do farinha, feijes, aipins e batatas.20

    Sobre a festa do Rosrio, a mais tradicional dentre as festas dos negros, deixou-nos Koster importante relato:

    No ms de maio, os negros celebraram a festa de Nossa Senhora do Rosrio. E nesta ocasio, que tm por costume eleger o Rei do Congo, o que acontece quando aquele que estava revestido dessa dignidade morreu durante o ano, quando um motivo qualquer o obrigou a demitir-se, ou ainda, o que ocorre s vezes, quando foi destronado pelos seus sditos. Permitem aos negros do Congo eleger um rei e uma rainha de sua nao, e essa escolha tanto pode recair num escravo como num negro livre. Esse prncipe tem,

    19 Tratado proposto a Manuel da Silva Ferreira pelos seus escravos durante o tem po em que se conservaro levantados , apud: Stuart Schwartz. Resistance and accommodation in E igh tccn th Ccntury Brazil: T h e slaves view of slaverv , in: HAHR , 57(1):69-81, fev. 1979.

    211 Andr Joo Antonil. Cultura e opulncia Ho Brasil, p o r suas drogas e minas (1711). Paris, 1965.

  • 458 VI'. R A Ll lCIA AMARAL ! K R I, 1 N I

    sobre seus sditos, uma espcie de poder que os brancos ridicularizam e que se manifesta principalmente nas festas religiosas dos negros, como, por exemplo, na da sua padroeira Nossa Senhora do Rosrio. () negro que ocupava essa posio no distrito de Itamarac (cada distrito tem seu rei), desejava abdicar por causa de sua idade e, por essa razo se elegera um novo rei, um velho escravo da fazenda Amparo; mas a velha rainha no tinha inteno de abdicar e se conservou de posse de sua dignidade.

    O negro, que devia ser coroado durante o dia, veio de manh cedo casa do proco para apresentar-lhe a homenagem da sua venerao. Muito bem senhor, respondeu em tom de brincadeira, serei pois, hoje, vossoesmoler. As onze horas fui Igreja com o capelo c no demorou muito vimos chegar uma multido de negros, bandeiras despregadas, ao som dos tambores. Homens e mulheres usavam vestimentas das mais vivas cores que haviam en contrado. Quando se aproximaram, distinguimos o Rei, a Rainha e o Ministro de Estado. Os primeiros usavam coroas de papelo, recobertas de papel dourado. O Rei tinha uma casaca verde, um colete vermelho, calas amarelas; tudo talhado moda mais antiquada. Na mo carregavam um cetro de madeira dourada. A Rainha vestia um vestido de cerimnia de seda azul. Quanto ao pobre Ministro de Estado, podia vangloriar-se de brilhar com tantas cores quanto o seu senhor, mas no fora to feliz na escolha das roupas: a cala era demasiado estreita e curta, e o colete comprido demais. As despesas da cerimnia deviam ser pagas pelos negros, por isso haviam colocado na Igreja uma pequena mesa qual estavam sentados o tesoureiro e outros membros da Irmandade Negra do Rosrio, os quais recebiam os donativos dos assistentes dentro de uma espcie de cofre. Mas, as oferendas eram parcas e raras, demasiado raras, na opinio do proco, pois a hora de seu jantar j havia soado. Por isso adiantou-se com impacincia para o tesoureiro e avisou-o de que no procederia realizao da cerimnia antes de serem cobertas as despesas; e logo depois, apostrofou os negros que o cercavam, censurando-lhes o pouco zelo que mostravam em contribuir para a solenidade. Apenas deixou ele o grupo, os negros que o acompanhavam se expandiram em discusses e altercaes, acompanhadas de gestos e de expresses muito cmicas mas em desacordo absoluto com a santidade do lugar. Finalmente, chegou-se a um entendimento. Suas Majestades negras se ajoelharam diante do altar e o servio divino comeou. Terminada a missa, o Rei devia ser solenemente investido nas suas funes, mas o proco estava com fome e sem escrpulo encurtou a cerimnia agora, Senhor Rei, vai-te em bora. Disse-o, e imediatamente correu para a sua casa. Os negros partiram com gritos de alegria e foram ter fazenda Amparo, onde passaram o dia e a noite entregues aos prazeres da bebida e da dana.21

    21 Henry Kostcr. Viagem ao Nordeste do Brasil ( 1816). So Paulo: Nacional, 1942.

  • K O L G U K n O S , F K I R A S K l ' E R I A I ) ( ) S 459

    Mesmo controlado, proibido, motivo de escndalo para muitos, os folguedos escravos eram constantes e, aps os trabalhos do dia, os negros buscavam diverso, cantando e danando. Para muitos, era surpreendente terem eles ainda energia para seus batuques, aps um dia de trabalho:

    mais bulhentos prazeres produzem sobre o negro o mesmo efeito que o repouso. A noite, raro encontrarem-se escravos reunidos que no es tejam animados por cantos e danas; dificilmente se acredita que tenham executado, durante o dia, os mais duros trabalhos, e no conseguimos nos persuadir de que so escravos que temos diante dos olhos.

    Importante notar como o trabalho de escravos, relacionado nessa sociedade a sofrimento, a purgao para salvao, era entendido como incompatvel com a alegria, com a diverso e a alegria dos escravos, em seus batuques, era vista como expresso de sua lascvia, de sua barbrie, que muitas vezes contagiava os brancos, como nos relatam muitos viajantes.

    A dana habitual do negro o batuque. Apenas se renem alguns negros e logo se ouve a batida cadenciada das mos; o sinal de chamada e de provocao dana. O batuque dirigido por um figurante; consiste em certos movimentos do corpo que talvez paream demasiado expressivos; so principalmente as ancas que se agitam; enquanto o danarino faz estalar a lngua e os dedos, acompanhando um canto montono, os outros fazem crculo em volta dele e repetem o refro. Outra dana negra muito conhecida o lundu, tambm danada pelos portugueses, ao som do violo, por um ou mais pares. Talvez o fandango, ou o bolero, dos espanhis, no passem de uma imitao aperfeioada dessa dana.

    Acontece muitas vezes que os negros danam sem parar noites inteiras, escolhendo, por isso, de preferncia, os sbados e as vsperas dos dias santos.

    E preciso mencionar, tambm, uma espcie de dana militar: dois grupos armados de paus colocam-se um em frente do outro e o talento consiste em evitar os golpes da ponta do adversrio. Os negros tm ainda um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a capoeira: dois campees se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabea no peito do adversrio que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hbeis; mas, lanando-se um contra o outro mais 011 menos como bodes, acontece-lhes chocarem-se fortemente cabea contra cabea, o que faz com que a brincadeira no raro degenere em briga e que as facas entram em jogo ensangentando-se [...].

    R ugendas. Op. cit., p. 154.

    I

  • 460 YKUA 1.1'OIA AMARAL FKRI. INI

    Na vida rural da Amrica portuguesa podia-se observar o rico e curioso sincerssimo das comemoraes tradicionais camponesas europias, travcsti- das pelo cristianismo c adaptadas aos costumes dos cativos. O carnaval, antigo rito, transformado em perodo de catarse, antes do recolhimento da quaresma, era um espetculo de manifestaes de negros, com suas brincadeiras e danas:

    Para o brasileiro, portanto, o Carnaval se reduz aos trs dias gordos, que se iniciam no domingo s cinco horas da manh, entre as alegres manifestaes dos negros j espalhados [...]. Vemo-los a, cheios de alegria e de sade, mas donos de pouco dinheiro, satisfazerem sua loucura inocente com a gua gratuita e o polvilho barato que lhes custa cinco ris. Com gua e polvilho, o negro, nesse dia, exerce im punemente nas negras que encontra toda a tirania de suas grosseiras faccias; algumas laranjas de cera roubadas aos senhores constituem um acrscimo de munies de Carnaval para o resto do dia.

    Mas os prazercs do Carnaval no so menos vivos entre um tero pelo menos da populao branca brasileira; quero referir-me gerao dc meia- idade, ansiosa por abusar alegremente, nessas circunstncias, de suas foras e sua habilidade, consumindo a enorme quantidade de limes-de-chei- ro disponveis. ,

    O dia de So Jos, 19 de maro, em plena Quaresma, marcava, no Nordeste, o incio das guas, to esperadas c confundia-se com as splicas por boas safras.

    Ao final da Quaresma, uma nova forma dc catarse era permitida, na malha- o do Judas, de variada simbologia nessa sociedade colonial, marcada pelas normatizaes da Contra-Reforma. Dela nos d conta Debrct:

    E ao primeiro som de sino da Capela Imperial, anunciando a ressurreio do Cristo e ordenando o enforcamento do Judas, que esse duplo motivo de alegria se exprime a um tempo pelas detonaes do fogo de artifcio, as salvas da artilharia da marinha e dos fortes, os entusisticos clamores do povo e o carrilho de todas as igrejas da cidade. E preciso confessar que essa oportunidade de um contraste to marcado, tirado de um mesmo objeto e que, terminando devotadamente a quaresma, apaga no espao de dez minutos, de um modo igualmente engenhoso, a austeridade de suas formas, constitui o triunfo da imaginao num povo vivo e infinitamente impressionvel. Passando aos preparativos da cena, vemos a classe indi-

    r Debret. Op. cit., p. 220.

  • gente, que se presta faeilmente s iluses, armar um Judas enchendo de palha uma roupa de homem a que se acrescenta uma mscara com um bon de formar a cabea; algumas bombas colocadas nas coxas, nos braos c na cabea servem para deslocar o boneco no momento oportuno; uma rvore nova trazida da floresta faz, as vezes de uma forca econmica, e o povo do bairro sente-se satisfeito. Observe se que de rigor fazerem-se esses preparativos durante a noite, a fim de estar tudo pronto pela manh. Nos bairros comerciais a iluso mais completa mas tambm mais d ispendiosa. Os empregados se cotizam para mandar executar, pelo costureiro e fogueteiro reunidos, uma cena composta de vrias peas grotescas, aum entando consideravelmente o divertimento sempre terminado com o enforcamento do Judas pelo Diabo que serve de carrasco; nec plus ultra da fico potica e da imitao dos movimentos do grupo das duas figuras, cujos balanos c oscilaes so provocados e variados pelo arrebentar dos foguetes que os consomem finalmente, excitando a ltima bomba o mais ruidoso entusiasmo. Quanto ao detalhe, as peas de que se compe o fogo de artifcio so pequenos grupos de figuras grotescas, engenhosam ente fabricadas com simples folhas de papel coladas e coloridas, sempre fixadas a um pequeno tabuleiro girando horizontalmente. A figura indispensvel, capital a do Judas, de blusa branca (pequeno domin branco de capuz, usado pelos condenados); suspenso pelo pescoo a uma rvore e segurando uma bolsa suposta cheia de dinheiro, tem no peito um cartaz quase sempre concebido nestes termos: eis o retrato de um miservel, supliciado por ter abandonado seu pais e trado seu senhor. Um Diabo negro, o mais feio possvel, a cavalo sobre os ombros da vtima, faz as vezes de carrasco e parece apertar com o peso de seu corpo o lao que estrangula o desgraado. Mais engenhoso ainda o Diabo amarrado pela cintura, de modo a escorregar pela corda do Judas, e suspenso trs ou quatro ps acima da cabea do boneco por meio de uma outra corda que se distende repentinam ente .-4

    Por ocasio de Pentecostes, realizava-se a festa do Divino Esprito Santo que dava aos negros a oportunidade de recriao de hierarquias simblicas, com o imperador, eleito para a ocasio. Debret, que observou as festividades no Rio de Janeiro, nos d sua descrio, para o incio do XIX:

    Chama-se no Rio de Janeiro folia do Imperador do Esprito Santo, um grupo de jovens folgazes, tocadores de violo, de pandeiros e de ferrinhos precedidos de um tambor; o grupo alegre escolta um porta-bandeira, cujo

    ]'O 1,0 l! K n o s , KKIKAS V. K KKIADOS 461

    4 Ib idcm , p. 191-2.

  • 462 VKRA I. C'. 1 A AM ARAI. !' K R I, I N I

    chapu ricamente enfeitado de flores e de fitas se assemelha ao dos d e mais membros mais modestos da bandinha. Percorrem os rapazes as ruas da cidade cantando quadrinhas ajustadas ao motivo religioso para os fiis que sustentam o trono do Imperador do Esprito Santo (menino de oito a doze anos). Este os segue gravemente a alguns passos de distncia, dando a mo a um dos dois irmos da confraria, que o acompanham. E durante a semana anterior festa de Petencostes que se realiza essa coleta aparatosa, destinada a estimular a generosidade dos fiis caridosos. O pequeno imperador veste a casaca vermelha, calo da mesma cor e colete branco bordado a cores. Usa chapu armado e de plumas debaixo do brao, espada cinta, meias de seda branca, sapatos de fivela de ouro; tem a cabea em- poada e carrega uma sacola. Traz como condecorao um crach e, pendente do pescoo, uma espcie de custdia dourada no centro da qual des- taca-se uma pomba prateada. Vrios irmos pedintes precedem e seguem o cortejo.-7'

    A vida urbana, sem duvida, permitia maior proximidade e congraamento das populaes, mas, no mbito rural, com a expanso da produo e a criao de freguesias, com suas matrizes e arraiais, gradativamente, nos domingos c dias santos, a reunio religiosa implicava a possibilidade de comrcio, de feiras, provedoras de gneros, trocados por roceiros e escravos.

    Se temos os resqucios desses espaos de trocas, de festividades, faltam- nos ainda maiores dados concretos sobre as feiras, exceo das ligadas ao comrcio de gado. Abre-se aqui uma perspectiva interessante de investigaes que poderia se valer dos registros das cmaras municipais (que possivelmente regulamentavam os eventos), dos registros judiciais (sobre querelas na ocasio). Nesses espaos, com o passar do tempo, realizavam-se as grandes festas, principalmente as do ms de junho, que marcavam o final da safra, e que deram origem a umas das mais poderosas tradies festivas do Nordeste, a festa do interior.

    V e r a L u c i a A m a r a l F k r l i n i , doutora em Histria Econmica, professora do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, da Universidade de So Paulo, e autora de A Civilizao do Acar e Terra, Trabalho e Poder.

    R k s u m o . Reproduzindo, na Colnia, ritos e festas do calendrio cristo europeu, domingos e feriados santos propiciavam momentos de encontro, sociabilidade, tro

    25 Ib idem , p. 215.

  • F o \. a u !: n o s , f f i r a s f f v. r i a d o s 463

    cas e neg c io s . Para a p o p u la o cscrava, p o r m , o d e scan so , n e s s e s dias, n o era a s s e g u ra d o . P re s s io n a d o s p e lo r i tm o das safras c das frotas, os s e n h o r e s t e n d i a m a m a n t e r os e sc ravos no e i to e nas fbricas, im p e d in d o - o s d e u s u f ru r e m d o e sp a o das fes tas . D a as c o n s t a n te s a d v e r t n c ia s dos religiosos para q u e fosse r e s p e i t a d o o d e s c a n so sag rado , t a m b m para os escravos, c q u e se lh es p e rm it is s e , e m d a tas e sp ec ia is , rea l iz a rem se u s fo lg u e d o s e danas . A lm do e n g e n h o , nos v ilare jos q u e , p o u c o a p o u c o , c re s c e ra m c m se u e n to rn o , as fes tas d a v am e n se jo a g ra n d e s feiras, a m p l ia n d o

    a c o n o ta o social e s im b l ic a das co m e m o ra e s .

  • Jean-Baptiste Debret. Asesta (parte da obra O jantar a sesta), 1834-1839. Litografia colorida mo, 49 x 34 cm. Coleo particular. Fundao Bienal de So Paulo. Nelson Aguilar (organizador). Mostra do Redescobrimento: negro de corpo e alma. So Paulo: Associao Brasil 500 Anos, 2000, p. 125. Foto Andr Ryoki.

  • BEBIDA ALCOLICA E SOCIEDADE COLONIAL

    J U L I T A S C A R A N O

    O M o D o D E !: N c a r a r a bebida alcolica na Amrica portuguesa, e em especial no sculo XVIII, apresenta caractersticas prprias, traz uma viso mais clara e especfica da maneira como determinadas questes da vida cotidiana eram valorizadas ou desclassificadas e nos mostra certas peculiaridades dessa sociedade. Em nossos dias, questes relativas alimentao, incluindo ou no a bebida alcolica, vm suscitando interesse dos estudiosos que buscam compreender e mostrar o quanto tais aspectos refletiram e influenciaram a vida social em diferentes perodos. Hbitos alimentares, comidas utilizadas e proibidas, bebidas de vrios tipos condicionaram e foram divulgadas em funo de peculiaridades e de caractersticas das vrias sociedades e as marcaram profundamente. Assinalam tambm as diferenas sociais, as questes de solidariedade e as de divergncias.

    No dizem respeito apenas ao alimento em si, isto , o que visa a m anuteno, a conservao da vida, mas tambm fruio, ao prazer gustativo e que constitui um aspecto significativo da vida social, cultural e mesmo poltica de diferentes perodos histricos.

    A questo do lcool, por exemplo, da bebida alcolica, vai salientar, no Brasil, as diferenas entre as maneiras como a Colnia e a Metrpole, os diversos estratos da populao, encaravam aspectos que poderiam ser vistos como secundrios, mas que tinham implicaes mais profundas do que aparentavam.

    Note-se que tais implicaes eram pressentidas pelos governantes metropolitanos e no somente o preconceito, que existia, e, sem dvida, norteava

  • 468 J l l . l TA SC AR ANO

    leis c costumes, mas a noo, mesmo vaga, de que aspectos subjacentes no deixavam de ter significado, os levava a olhar questes de produo, consumo e distribuio de bebidas alcolicas com desconfiana.

    A 15 1-: B I O A C O M O V A L O R

    O vinho ocupa significativo papel dentre as bebidas alcolicas e seu uso c valorizao vm desde tempos imemoriais. Na mais remota antigidade j se nota a utilizao de bebida produzida pela uva e na Grcia e em Roma, jun tamente com o po e os produtos da oliveira, o leo e a azeitona, formam a grande trindade alimentar imprescindvel. Gomo regra quase geral, os povos da bacia do Mediterrneo basearam sua alimentao em produtos oriundos da oliva, do trigo e tambm da bebida fabricada pela uva. A idia de que esses produtos so capazes de trazer sade e longevidade a seus consumidores tem remota origem e ainda no perdeu validade. Alm do grande papel que tiveram e ainda tm no consumo alimentar, tambm sempre manifestam importantes aspectos correlatos, de grande influncia na vida econmica e tambm social daqueles povos.

    E o vinho que Cristo transforma em seu sangue na Santa Ceia, ele vem sendo consagrado nas missas no decorrer desses vinte sculos c essa consagrao do po e do vinho constitui a cerimnia central do catolicismo. Bastariam esses aspectos para dar ao vinho grande sacralidade. Assim, toda a cultura de origem crist, bem como as referncias e a importncia do vinho na Antiguidade clssica, na Grcia e em Roma, explicam por que foi e continua a ser to valorizado. Mesmo o fato de haver esporadicamente crtica ao excesso de seu consumo, como na Bblia em se tratando da embriaguez de No, por exemplo, esses aspectos no afetam a viso positiva que o vinho vem tendo desde tanto tempo. E o vinho constitui, desse modo, a mais significativa e divulgada bebida nas terras portuguesas e cm suas colnias.

    Outras bebidas de origem europia so muito populares cm nossos dias. A cerveja, por exemplo, que alis tinha pouco significado no Brasil portugus, foi por muito tempo considerada, no apenas em nossa terra, como mais prpria para consumo dos brbaros, no sentido greco-romano do termo. Nesta terra tornou-se valorizada em pocas posteriores ao perodo em estudo.

    Quanto bebida destilada, ela passa a ter popularidade maior a partir do sculo XVI e foi mais bem difundida sobretudo em pocas posteriores. Logo tambm se tornou popular no Brasil. Alm disso, em cada pas e regio surgiu um outro tipo de bebida alcolica, algumas similares ao vinho, produzidas com o emprego de outros frutos, preparadas de diferentes maneiras. Logo a bebida destilada tornou-se sempre mais apreciada e divulgada e encontrou grande aceitao. Em Portugal, ao lado do vinho, no como seu substituto, passou a ser consumida regularmente. Nesse pas e em outras terras h in

  • B F. li I D A A L C O L I C A F S O C l F. I ) A l ) F C O L O N I A L 469

    meros tipos dc aguardente, obtidas por meio de frutas variadas c preparadas de modo tpico a cada diferente cultura.

    Partindo do norte e do leste da Europa, a aguardente passou a ser difundida notadamente do sculo XVI em diante e j tinha papel significativo no sculo XVIII. Vista tambm como energizante e capaz de dar foras para quem tivesse de em preender trabalhos pesados, alm dc outras vantagens para a sade, ela foi consumida por europeus e tambm enviada para a Am rica. A aguardente vinda de Portugal era fabricada com produtos vistos como nobres, ou seja, uva, como o vinho, ou frutos originrios e com um ente consumidos na Europa. A outra era produto subsidirio da cana, considerada espria, apesar do valor atribudo ao acar. H, nesse caso, como em inmeros outros, a valorizao do produto europeu, em nosso pas, sobretudo o portugus, considerado bom; o local desconsiderado.

    A crena de que um pequeno copo de bebida alcolica tomado pela manh torna as pessoas mais aptas e propcias ao trabalho bastante antiga. Tam bm se julga que tal bebida possa ter bom efeito, at mesmo curativo. Nos sculos XVII e XVIII, a literatura e as fontes manuscritas e impressas, tanto europias como americanas, nos mostram o lcool bastante valorizado como meio de cura, um energizante que deveria ser fornecido quando da realizao de um trabalho difcil. Brillat-Savarin, que viveu na segunda metade do sculo XVIII e nos incios do XIX e escreveu um livro clssico a respeito da comida, P/iisiologie du Got,x diz que ele traz conforto e efeito benfico quase instantneo e narra que um soldado quase morto, isto , aparentem ente morto, tornou a viver quando o fizeram beber um elixir alcolico. Alis, esse autor comenta em outra passagem que a uma pessoa fatigada, dando-se um copo de vinho ou de eau-de-vie, 1instant mme il se trouve mieux et vous le voyez renatre . Essa crena vem de pocas muito anteriores, e Brillat-Savarin afirma que todos os povos, mesmo os mais selvagens e originrios de lugares remotos, inventaram um meio de fermentar frutos ou outras substncias a fim de produzir bebida alcolica. No caso dos primitivos habitantes de nosso pas sabemos que preparavam uma bebida acidulada e fermentada, de milho ou de aipim, que usavam em determinadas ocasies. Interessante notar que no misturavam comida com esse tipo de bebida. Ou comiam ou be- biam. Outros povos de outras regies tambm tinham o mesmo hbito.

    Estudos mais recentes mostram a veracidade da afirmao emprica emitida pelo escritor francs de que h vantagem em se consumir m oderadamente algum lcool. Ao menos o vinho por alguns considerado fator de sade e o

    1 Anthelmc Brillat-Savarin. Phisiologie du got. Paris: Flammarion, 1982. Em Histria da alimentao: balizas historiogrfieas dc UlpianoT. Bezerra de M enezes & H enrique Carneiro, in: Anais do Museu Paulista, Histria c Cultura Material, vol. 5, jan.-dez. 1997 encontramos expressiva bibliografia sobre o assunto alimentao e bebida.

  • 470 J U I . I T A S O A R A N O

    fato de os povos da bacia mediterrnea o consumirem diariamente tambm c encarado como algo positivo.

    A convico de que se deve fornecer aguardente para os que pretendem realizar um trabalho visto como difcil, foi comum a vrios perodos. Como um exemplo prtico do sculo XVIII, entre outros que poderiam ser citados, na Frana, na regio do Auvergne, isso fazia parte do ritual corriqueiro. M uitos camponeses, como um outro exemplo, os da Siclia, tinham o hbito de beber vinho antes dos trabalhos mais penosos. Como o vinho era considerado um poderoso energizante, esse costume foi bastante divulgado desde o fim da Idade Mdia c, em certas reas, se mantm at nossos dias.

    No Brasil, uma vez que trabalhos penosos eram realizados por escravos, a eles se fornecia bebida, geralmente aguardente, antes de uma tarefa dessa categoria. Em Minas Gerais, com clima mais frio e o trabalho muitas vezes dentro de rios, como acontece na minerao, se estabeleceu tal hbito, considerado necessrio para produzir energia e para evitar doenas pulmonares. Quando se buscava salitre em Bom Sucesso, Minas Gerais,J bem como na procura de ouro e de diamantes, se recomenda dar aos escravos aguardente do Reino a fim dc evitar doenas.

    Alis, na Medicina de Gabriel Dellon, escrita cm 1685, se preconiza o uso do lcool para vrios fins, tratando o vinho como um medicinal, de resto crena comum a vrios povos. Alis, o vinho ocupa o primeiro lugar entre as bebidas consideradas vantajosas, superando largamente todas as demais.

    A alimentao constitua um dos meios de se cuidar dos enfermos e era usual lhes fornecer o que se considerava bom para ajudar na cura de doenas,3 e desse modo natural que o lcool, o vinho em primeiro lugar, fosse encarado como um medicinal, ao menos como coadjuvante nos tratamentos. No perodo, tambm o fumo era visto como uma vantagem. Manda-se fornecer bebida e fumo para os escravos que deveriam trabalhar nas catas,4 bem como para os doentes. Buscava-se um modo de compensar os possveis males trazidos por lugares vistos como mefticos por razes de clima, umidade e outras, ou tarefas consideradas trabalhosas. De certo modo era tambm como um consolo prvio que se dava, quase um prmio antecipado.

    O fumo to criticado, com efeitos nocivos mais conhecidos em nossos dias, era visto como valioso coadjuvante nos tratamentos e derivativo para os feridos at praticamente o decorrer da segunda guerra mundial. E comum, nos filmes realizados na poca, ver soldados oferecendo cigarro como um consolo, uma quase compensao, aos companheiros feridos. E um exemplo entre outros de como se transforma a viso de determinados produtos que foram

    2 Lisboa, Arquivo Histrico Ultramarino, MG, c. 42 (antiga), ms. Julita Scarano. Cotidiano esolidariedade. So Paulo: Brasilicnsc, 1994.4 Lisboa, AHU, MG, ibidem, ms.

  • encarados como curativos ou encrgizantes em alguns momentos, s vezes no muito distantes.

    Em certas reas e em diversos pases se mantm o costume de se tomar uma poro de bebida alcolica nos momentos de tenso e em nossa terra, cm alguns lugares, ainda se toma um clicc de cachaa ou similar pela manh, com a finalidade de dar foras. Trata-se de costumes bastante arraigados e ainda seguidos por muitos.

    Por outro lado, o lcool tambm servia para outros fins; alm de sua ingesto, era aplicado para curar a sarna, por exemplo, e possivelmente outras doenas de pele. Nesse caso tambm tinha utilizao medicinal, ao lado de outras funes prticas. Essas funes aumentavam seu valor.

    O aspecto curativo e energizante, alm de preventivo, to vulgarizado no Brasil do sculo XVIII, entra em contradio com outro modo de ver a questo, no relacionada com a sade, mas enfatizando o perigo que a bebida oferecia. Por inmeras razes julgava-se que o perigo era maior em se tratando de pessoas de determinados grupos, mormente os escravos e os desfavorecidos. Alm desse aspecto contraditrio em si, que ser explicitado a seu tempo, h tambm uma questo francamente discriminatria.

    H uma vertente etnocntrica no fato de se julgar vantajosa e boa a aguardente vinda do Reino, que, depois do vinho, ser recomendada como energizante e curativa, da qual a local seria apenas mero e pobre substituto. Uma vez que os portugueses e tambm os grupos dominantes consideravam sem pre melhores as coisas vindas da Europa, natural que isso acontecesse, mas outros fatores acentuam essa importncia.

    A B E B I D A E X T R A D A D A C A N A

    Julgavam-se significativos e valiosos os produtos desta terra que se pudesse exportar e principalmente quando cumprissem o seu fim determinado, e fossem valiosos e sem similar na Europa. O acar era o grande produto da terra, ainda muito valioso na poca na qual a minerao tinha primazia, e o lcool da cana constitua apenas um subproduto da grande riqueza de exportao. Alis, como se privilegiava apenas o que podia ser mandado para o exterior, esse lcool, fabricado para consumo local, muitas vezes de modo clandestino, no podia ser visto como alguma coisa que merecesse cuidados.5

    Assim, a produo do acar, baseada geralmente em grandes propriedades e tendo como ponto central o engenho para seu fabrico, era, ao lado de outros produtos em menores propores, a grande riqueza do litoral brasilei

    H - K M D A A L C O L I C A K S O C I K D A I ) lv C O L O N I A L 4 7 1

    H obras que tratam da cachaa como a de Cmara Cascudo. Preldio da cachaa. Rio de Janeiro: Instituto do Acar c do lcool, 1986 c a de Francisco Julio. Cachaa. Recife: Ed. Nordeste, 1921 c outras.

  • 472 JIU.1TA SC AR ANO

    ro. Algumas pequenas fazendas gravitavam cm torno dos engenhos e para ele forneciam as canas, complementando a cultivada na grande propriedade. C) cultivo da cana em reas aucareiras com a finalidade dc produzir cachaa era considerado um mal. Segundo as autoridades locais e mesmo as metropolitanas, isso derivava os agricultores do cultivo dc plantas teis, necessrias subsistncia, tambm dos escravos, tais como a mandioca, o milho e outras, ocupando as terras de maneira pouco significativa.

    Como regra geral, o cultivo da cana para a produo do lcool tinha lugar apenas nas pequenas propriedades, ou, quando nas maiores, de maneira marginal e quase clandestina 011 muitas vezes apenas para consumo local. A mo-de- obra escrava tinha alto preo e seria contraproducente empreg-la em trabalho de pouco valor, com escasso lucro. Alis, mesmo para a subsistncia havia restries dos senhores de engenho em empregar mo-de-obra em outra cultura diferente da cana 011 na atividade de produo do acar. Desse modo, no ponto de vista da produo, o fabrico de bebida ocupava posio extremamente secundria. Ela constitua o meio dc vida do meeiro, do pequeno proprietrio, tendo assim, em relao fabricao e ocupao das terras, papel pouco valorizado, margem da grande produo. Constitua tambm uma cultura e uma elaborao muito til aos quilombolas, que podiam com relativa facilidade vender seu produto aos negros, sobretudo. Nas Minas Gerais, por exemplo, Cunha Matos afirma em 1837/ que havia grande quantidade de engenhos de moer cana que tinham sido plantados com a finalidade dc fabricar aguardente e rapadura. Conforme se pode ver, no havia em determinadas regies vantagem em fabricar acar uma vez que faltava interesse econmico para a sua exportao. Eram reas margem da grande produo agrcola.

    Quanto aos locais onde o acar no era a principal riqueza, como acontece nas terras de minerao, as reas ocupadas pela cana destinada ao fabrico da aguardente se localizavam ao redor das terras onde se processava a valiosa produo de ouro ou cata de diamantes, ocupando suas fmbrias. Apesar dc que se deveria obter licena para um estabelecimento de um engenho, isso nem sempre acontecia. Dificilmente essas pequenas reas de plantio chegavam a ser detectadas, pois muitas delas se escondiam pelos matos e apenas com uma mais difundida ocupao da terra se passou a ter maior notcia de sua localizao. Pequenos proprietrios, plantadores clandestinos e tambm quilombolas, ocupavam suas terras com 0 cultivo de cana para fabrico de be bida. Apesar da proibio, as autoridades locais, ao escreverem a seus superiores, assinalam que pequenos engenhos e engenhocas existem por toda a parte e mantm ativo comrcio regional. Alis, mesmo em Minas Gerais, onde havia mais fiscalizao, desde os incios do Setecentos se reclama da manu-

    h Francisco Jos da Cunha Mattos. Corografia histrica r/a provncia He Minas Gerais, vol I. Belo Horizonte: Arquivo Pblico Mineiro, 1979.

  • tcno dc engenhos e engenhocas. Nessa rea, em 1734, se condena a existncia dc terras ocupadas com quantidade de engenhos para fabrico de bebida, pois, naqueles momentos, se preconizava apenas o uso de aguardente do Reino, uma das fontes de lucro para o governo, e se julgava prejudicial para o Fisco a concorrncia do produto local, alm de outras desvantagens.

    Entretanto, mais tarde, dada a grande quantidade de escravos e a distribuio de bebida para os trabalhos difceis, tornou-se atraente para os p e quenos proprietrios o plantio de cana a fim de fabricar cachaa. Quando o produto mais lucrativo de uma rea tinha sua produo diminuda, caso dos minerais, ou sofria concorrncia, como acontece com o acar do Nordeste, aumentava grandemente o fabrico de aguardente. Alis ela tornou-se lucrativa, um meio de vida para os pequenos proprietrios que, muitas vezes, no tinham outras possibilidades dc subsistncia.

    A produo era geralmente para consumo local, mas esta muitas vezes no bastava e assim havia reas especializadas que a vendiam para outros pontos do pas para suprir as necessidades. Por isso muitos engenhos e engenhocas se espalham por toda a parte, apesar de que certos locais se tornam mais caractersticos desse mister agrcola e na fabricao de bebidas, como o caso de Parati, por exemplo. Dada a grande quantidade de pessoas que se dirigiam para esse porto para o comrcio do ouro, a bebida de Parati se difundiu por toda a parte.

    Mesmo assim, h documentao assinalando, criticando e afirmando que o cultivo com o especfico fim de fabricar bebida se espalha por todo o pas, no se restringe apenas a algumas reas. A possibilidade de aumentar o consumo de forma barata aparecia como um problema bastante srio para os governantes. Mas para os proprietrios de escravos, por exemplo, era um meio pouco dispendioso de fornecer bebida a seus trabalhadores e, ao mesmo tempo, um perigo, dada a sua fcil divulgao.

    Em Minas Gerais, foram inmeras as proibies, o que mostra que elas no eram obedecidas e por isso se viam periodicamente reiteradas. Apesar de uma repetio dessa proibio em 1789, um alferes possua terras onde cultivava cana e fabricava cachaa ainda em 1799. Conforme se v, at mesmo as pessoas que participavam do governo no seguiam as leis. Essa, portanto, foi mais uma das leis no seguidas e cumpridas, com a conivncia das autoridades locais que tinham interesse nisso.

    Entretanto, em So Paulo, j nos incios do sculo XIX se pensava na produo de acar, no apenas na de cachaa; alis, desde 1805, se julgava importante a cultura da cana na vila de Itu e se procurava incentiv-la em outras vilas.7 Tam bm nos arredores do Rio j se encontram, por essa poca, fazen

    11 K II I D A Al .COl. lCA F. SOCIKDADK COLONI AL 473

    7 Documentos interessantespara a histria e costumes de So Paulo, vo\. 95. So Paulo: Ed. Unesp- Secretaria do Estado da Cultura, Arquivo do Estado de So Paulo, 1990.

  • 474 J li 1, I T A S C A R A N O

    das produzindo acar. A partir desse perodo c que a produo do acar no Sudeste vai substituir e ocupar o lugar da da cachaa e nesse momento o cultivo da cana deixa de ser marginal e acaba, bem mais tarde, entretanto, por competir com o Nordeste no cultivo da planta e na produo aucarcira. O utros engenhos, de maior porte e importncia, passam a competir com as e n genhocas produtoras de bebida, e algumas se voltam para o fabrico do acar.

    possvel estabelecer-se uma linha imaginria que situa a produo e o fabrico do acar como prerrogativa dos habitantes de elevada categoria social e econmica e os fabricantes de cachaa como proprietrios de pequenas glebas e engenhos, pertencentes a um outro estrato populacional, mas no destitudo de bens, obrigatoriamente. Portanto h uma distino econmica e sobretudo social entre o produtor de acar c o de bebida.

    A D I S T R I 1? U I O D A B l B I D A

    Quanto ao distribuidor de bebida alcolica, o importador, ou seja, o que vende o produto vindo de Portugal, ocupa categoria mais elevada, exercendo significativo papel na economia, ao menos regional, isso sem mencionar os grandes importadores. Esses importadores cm geral no se atm venda e distribuio de bebida, mas se dedicam tambm a outros ramos, exercendo muitas vezes um comrcio em grande escala, o que os torna pessoas gradas, econmica e socialmente. Bem diferente a situao do distribuidor do produto local, especialmente de cachaa. Este se situa em outra categoria, quase sempre participa dos grupos marginalizados.

    No Brasil portugus, a distribuio de produtos, notadamente os locais, mas mesmo os vindos de fora, mesmo os mais baratos, era feito por meio de lojas que vendiam alimentos, sejam eles comestveis ou bebida. A maior parte das lojas de porta aberta que vendiam tais produtos comerciavam com tecidos, ferragens, variados objetos, produtos de toda a sorte, e poucas eram especializadas. So classificadas geralmente como lojas grandes , ao menos nas Minas Gerais. O comrcio em escala mida era realizado por meio das que eram chamadas de pequenas lojas, assim classificadas tambm para o Fisco. Eram bastante numerosas nas Minas Gerais, por exemplo, mesmo em vilas e arraiais e algumas autoridades as consideravam mesmo excessivas e as olhavam com desconfiana. Outro tipo de distribuio e venda era realizada nas ruas, feitas em geral pelas negras de tabuleiro. Esse comrcio ambulante era em grande parte exercido por essas mulheres que, quer por conta prpria, quer a mando de seus donos, especialmente de suas donas, iam vendendo vrios produtos midos pelas ruas de vilas e arraiais, chegando mesmo a invadir as catas, nas terras onde havia minerao. A bebida era um dos produtos mais procurados e vendidos. Apenas com a chegada da imigrao nos ltimos decnios do sculo XIX que pessoas de outros grupos passaram a realizar

  • II K I I I H A A L C O L I C A K S O C I K D A D K C O L O N I A L 475

    tal comrcio, ncssc caso partindo do litoral ou dc alguma cidadc dc maior porte. Os mascates tomaram o papel das negras dc tabuleiro, com a diferena dc irem para lugares bem mais distantes. Mas isso sucede notadamente em pocas mais prximas. No sculo XVIII, sobretudo, esse comrcio ambulante era realizado por alguns homens, mas principalmente pelas assim chamadas negras de tabuleiro.

    As negras de tabuleiro mantinham comrcio basicamente local e, sc as lojas mais importantes vendiam produtos vindos de outras reas e mesmo da Europa, as pequenas, especialmente, faziam um comrcio dedicado aos produtos da regio, com algumas excees. Muitas vezes comrcio clandestino, conforme as autoridades timbram cm afirmar. Nas vendolas, a cachaa era um dos produtos de grande procura, alm do fumo e de alguns outros. Tam bm se afirmava que nas terras de minerao havia trocas dc metais c diamantes por tais produtos. E sempre se julga que h muito de oculto e dc clandestino nas transaes realizadas sobretudo pelas lojas menores que poderiam passar mais despercebidas. No caso da troca de comestveis, bebidas e outros por ouro 011 diamantes, os vendedores eram geralmente pessoas vindas de fora com o especfico fim de realizar tal comrcio. Consta que os que vendiam cachaa davam tiros para o ar para assinalar sua presena e realizar seu mister ilegal. Atraam assim os compradores de bebidas alcolicas e muitas vezes as vendas se faziam em troca de ouro e pedras, conforme se afirma reiteradamente nas cartas e nos informes s autoridades. Elas julgam ser a bebida uma grande impulsionadora do contrabando.

    Alis, na Biblioteca Nacional de Lisboa,8 encontram-se inmeros documentos assinalando que a cachaa uma das causas do extravio de diamantes e para consegui-la que os escravos os roubam. Afirma-se tam bm que as lojas ficam abertas at tarde da noite e que nelas se processa ativo comrcio clandestino, no qual essa bebida ocupa privilegiada posio. Para coibir tal comrcio era comum a expulso de pessoas que se dedicavam a transportar cachaa,9 no apenas dos que se encontravam envolvidos com o contrabando. Mas, apesar da freqncia das crticas, nunca se chegou a resolver essas questes, que eram vistas como grave problema pela administrao.

    Alm de atacar os donos das lojas, indiscriminadamente, afirma-se que muitos deles so pretos ou mulatos e alis, mesmo em meados do sculoXIX, considera-se que os mulatos constituem o maior contingente de vendedores de bebidas. E possvel que isso fosse real, uma vez que muitos mestios se dedicavam a um pequeno comrcio e tinham dificuldade em conse

    " Lisboa, Biblioteca Nacional; a encontramos abundante documentao que trata do assunto, sobretudo na Coleo Pombalina. Alis, esse c um tema comum na correspondncia com Portugal.

    (> Lisboa, Biblioteca Nacional, Coleo Pombalina, doc. N. 697, 1775, ms.

  • 476 J U I . I T A S C A K A N O

    guir outros produtos para tal. Dc resto, o comrcio de bebidas era lucrativo, relativamente, e mais interessante para os pequenos proprietrios do que o de produtos mais corriqueiros. Por outro lado, sempre houve o hbito de se acusarem pretos e mulatos de todas as malfeitorias, buscando assim livrar as pessoas gradas do local de perseguies e de problemas. Como as cartas eram escritas pelas autoridades 011 por quem ocupava significativo papel na sociedade local, todas essas pessoas se eximem de culpa e sempre acusam algum das categorias mais desfavorecidas de tudo o que se faz de malfeito e poderia ser suscetvel de castigos.

    Entretanto, algumas pessoas desses grupos perseguidos, reclamando por meio de suas irmandades religiosas que tinham tambm a finalidade dc d e fender e proteger seus membros, 011 por outros meios, escrevem para a Corte tentando mostrar que isso no verdadeiro 011 real e chegam a acusar pessoas de elevada categoria como autores de desmandos e causadores de problemas. Algumas vezes, sobretudo quando se tratava de questes relativas a contrabando e roubo de metais e pedras, tais acusaes foram levadas a srio. Mas isso no foi usual. Negros e mulatos, bem como brancos pobres, tinham poucas oportunidades de se defender. As autoridades locais mantinham interesses similares ao das pessoas mais ativas economicamente e as portuguesas sc encontravam muito distantes para agir efetivamente.

    Malefcios e problemas trazidos pela bebida destinada aos brancos 011 a pessoas dos grupos mais abonados so geralmente esquecidos na docum entao. No encontramos crticas a tal respeito. Evidentemente, esse um aspecto que no interfere com a vida diria, ao menos no setor pblico, no merecendo que se cuidasse do assunto. Isso nos mostra o quanto havia outras implicaes na questo referente s bebidas alcolicas, no se procurando sanar ou diminuir um mal particular ou de sade. H, por parte de autoridades governamentais, mesmo as locais, uma preocupao que abarca apenas o perigo de deixar que pessoas descontentes com sua sorte se em bebedem e passem a praticar excessos. Ou ento esboar movimentos perigosos e fazer arruaas capazes de pr em perigo o sossego das gentes , conforme costumavam dizer.

    Entretanto, na Medicina Teolgica de Francisco de Melo Franco" escrita em 1794, se nota maior preocupao, e 0 captulo XX dedicado bebedi- ce . Tem o seguinte ttulo: A bebedice uma grande enfermidade que nun ca se cura com remdios morais e dificilmente com os fsicos , o que mostra que esta no deixava de constituir um problema, mesmo no sendo especificamente tratada nos documentos oficiais. A preocupao destes documentos diz respeito aos escravos ou a outras pessoas desfavorecidas porque a intem-

    10 Francisco dc Melo Franco. Mediana teolgica. So Paulo: Kditora Giordano, 1994.

  • MI-MIOA ALCOLICA K SOC I K I) A I) K COLONIAL 477

    perana dos outros no interferia diretamente com a vida local, no constituindo problema para os governantes. Apesar de essa obra afirmar enfaticamente que o uso moderado do vinho constitui grande remdio c que ele contribuiu para a grandeza dos povos, como aconteceu com os gregos, conforme assinala, seu abuso causa numerosas enfermidades. Considera quase impossvel tratar o mal do abuso de bebida alcolica, seja a cachaa, seja outra qualquer, e pe nessa mesma categoria aguardente e demais licores e vai citando as doenas que surgem como conseqncia dessa bcbedice . No deixa de sugerir alguns remdios capazes de minorar esse mal.

    Tal asseverao, cm um livro que trata de doenas e aconselha aos confessores maneiras dc lidar com cias, nos mostra que o assunto era do interesse de alguns elementos da populao, interesse relativo, pois a preocupao de autoridades c dc governantes dizia respeito s conseqncias polticas, sociais e do sossego pblico , perturbado pelo abuso do lcool.

    Pouco tempo depois, alguns viajantes que estiveram no Brasil trataram da questo da bebida em relao aos homens brancos e aos proprietrios. Bur- meister," por exemplo, falando da alimentao no interior, conta que se regavam as refeies com gua ou um pouco de aguardente e no menciona nada relacionado a abuso alcolico. Outros afirmam que, apesar de a comida brasileira ser muito pesada, isso no afeta grandemente a sade uma vez que nas refeies se bebe um pouco de vinho e de aguardente, o que ajuda a digesto.

    Walsh,12 por sua vez, comenta que os brasileiros no se entregam a bebedeiras aos domingos, o que comum ent acontecia com os ingleses, seus compatriotas, ou europeus de outras nacionalidades. Ao que parece no havia hbito difundido e enraizado de se embriagar, ao menos em pblico, pois essa questo no se v tratada com grande freqncia nos documentos que pudemos compulsar. Mesmo memrias de paulistas do sculo XIX, que, e n tretanto, fazem tambm referncias ao sculo anterior, no tratam especificamente de abusos do lcool; alis o assunto no merece a ateno dessas pessoas de elevada categoria social, que, narrando a vida na capital paulistana ou nas fazendas, no julgam que a questo da embriaguez merea especiais consideraes.1 O assunto quase sempre ignorado. O que acontece em relao aos escravos que, em falta de outros derivativos, muitos bebiam e causavam apreenso e temor a seus donos, sobretudo porque em determinadas pocas, como o sculo XVIII em geral, quando a populao de pretos e mulatos, conforme os clculos realizados, ultrapassava muito a do brancos, em certas

    11 H erm ann Burmeister. Viagem ao Brasil.12 R. Walsh. Notcias do Brasil. Belo Horizonte-So Paulo: Itatiaia-Edusp, 1985.13 Na obra Vida cotidiana em So Paulo no sculo XIX , organizada por Carlos Eugnio Marcondes

    dc Moura, Atelier Editorial, 1999, podemos notar essa ausncia.

  • 478 J U I . 1T A S C A R A N O

    reas com grande diferena numrica. Nesse caso, o combate bebida alcolica seria um modo de controlar os cativos c os desfavorecidos, mais do que uma averso embriaguez propriamente dita.

    Alis, os capites-do-mato que no gozavam de boa fama por inmeros motivos eram considerados, no perodo, os maiores bebcrres. Mesmo as autoridades que os empregavam c se utilizavam de seus servios, os julgam negativamente, no apenas pelo elevado consumo de lcool, mas por no os considerarem dignos de confiana. Tendo uma vida de certo modo desligada da do grosso da populao e se internando pelos matos, eles deveriam buscar derivativo no alto consumo de lcool.

    Assim, se nota que a bebida alcolica, no caso a cachaa, se via criticada e seus vendedores perseguidos, ao menos teoricamente, por motivos outros que no os trazidos pelos habituais males das bebidas, mas sobretudo por razes polticas c de controle econmico. Julgava-se que, alm de serem motivo de roubos e de contrabando, traziam perigo pblico, pois a gente dc cor, conforme se dizia no perodo e nos transmitido pela documentao, bebendo nas festas e comemoraes, promovia arruaas capazes de trazer enorme perigo. Esse aspecto tambm bastante reiterado nas cartas e demais documentos que encontramos nos arquivos portugueses e brasileiros. O temor desses perigos faz com que se procure organizar e estabelecer controle nas festas, onde o consumo de bebida era mais comum c fcil. De modo geral, as festas que proporcionavam real oportunidade para as pessoas desfavorecidas poderem beber com certa liberdade e com afrouxamento de controle.

    A bebida, ao lado da comida, fazia parte integrante das festas, tanto religiosas quanto profanas, das comemoraes, das reunies. No havia festa sem seu consumo. Mesmo a embriaguez parecia natural e permitida nessas ocasies,14 se houvesse uma boa inteno, como o desejo dc homenagear os santos e os valorizar. Ao menos essa era uma crena bastante divulgada. A bebida servia como uma real homenagem e mesmo alguns excessos pareciam dignos de perdo. Esse era o costume difundido, sem, entretanto, o beneplcito da Igreja. Nas Constituies do Arcebispado da Bahia,IS por exemplo, se condenam os clrigos que abusam do vinho, criticam-se os que com isso perdem o juzo ou sejam destemperados. Portanto, se percebe que nas tabernas havia excessos, no apenas dos clrigos, mas tambm dos demais freqentadores. E n tretanto, talvez as autoridades no eclesisticas que no lidavam com questes relativas a pecados, no se incomodassem muito com bebedeiras portas adentro.

    Nos velrios, por exemplo, a bebida tambm se faz presente e no deixa

    14 Mary dcl Priorc. Festas e utopias no Brasil colonial. So Paulo: Brasiliensc, 1994.Sebastio Monteiro da Vide. Constituies primeiras Ho ArcelnspaHo Ha Bahia. Snodo de 1707. So Paulo: Typographia 2 de Dezembro, 1853.

  • dc ser um modo dc homenagear os mortos, ao menos era encarada dessa maneira. Com a distribuio dc bebidas, o velrio se transforma quase em uma festa, uma homenagem ao defunto. O quento, ainda comum em determinadas reas de nosso interior, usual nos velrios, alm de outras bebidas. Assim, mais uma vez se nota a contradio entre dois diferentes valores, duas divergentes maneiras dc ver uma questo.

    A C R T I C A B A A M B I G I I ) A D l

    Um outro aspecto em relao bebida alcolica no pode ser esquecido ou minimizado. Trata-se da possibilidade dc convvio entre iguais e da compreenso dc que a bebida propicia alegria c companheirismo. At mesmo na Europa havia divulgao desse modo de ver e muitas sociedades bquicas se criaram, tendo o vinho como ponto central. A mesma valorizao acontece em nosso pas, certamente de outra maneira, sem a organizao de sociedades especiais, e isso no suscitava um especial desfavor.

    Entretanto, no Brasil, alm desse difuso companheirismo, o lcool proporcionava uma solidariedade entre os escravos e as pessoas menos favorecidas, e esse aspecto desagradava as autoridades. A bebida permitia tam bm convivncia com pessoas de diferentes categorias, impossvel em outras circunstncias. Tende a criar encontros que eram vistos como indesejveis. Assim, se nota que o que se tentava evitar era acima de tudo o que sairia das regras que consideravam boas e vlidas.

    Falando da alimentao dos escravos que trabalhavam nas minas de ouro, Eschwege16 nos conta que os conterrneos ou amigos se assentavam juntos, comiam da mesma gamela e comenta que os que possuem algo melhor ou conseguem bebida a dividem com os companheiros. Constitua assim um poderoso fator de solidariedade, um meio de unir grupos de uma mesma etnia ou mesmo de outras, que, trabalhando em comum e participando da mesma triste sorte, podiam encontrar pontos de unio.

    Por outro lado, as festas tinham no lcool um motor capaz de dar mais vigor s danas e aos cnticos, estreitar, mesmo que temporariamente, as amizades e fazer com que as pessoas tivessem alguma oportunidade de dar vazo a seus sentimentos, participar do mundo circundante, mostrar enfim sua humanidade. Tam bm constitua oportunidade de manifestar sentim entos muitas vezes mantidos secretos, isto , combinar levantes 011 preparar fugas. Todos esses aspectos eram temidos pela populao das vilas e dos arraiais, das fazendas e das catas, e isso o que causa apreenso, temor nas autoridades e nos habitantes brancos.

    l iKHIDA AI.COOI. ICA K SOC I K [) A I) K COLONIAL 479

    Ifl W. L. von Eschwegc. Pinto brasiliensis, 2 vols. So Paulo: Nacional, Coleo Brasiliana, 1944.

  • 480 J U I . I T A S C A R A N O

    O fato de haver uma simbiose conhecida, mas nem sempre detectada e conseqentem ente punida, entre os contrabandistas de ouro c de pedras e o comrcio de bebida alcolica era outro fator de preocupao. Dizia-se, sem conseguir muitas vezes prov-lo, que tais vendedores sc dirigiam s terras minerais com esse determinado fim, e esse aspecto parecia c era extremamente grave para o Fisco, conforme mencionado. Em terras onde no havia minerao tambm se falava em contrabando, mas eram questes que se julgavam menos preocupantes, mas mesmo assim srias. Tam bm a acusao de que escravos e libertos, bem como pessoas de outros grupos desfavorecidos, praticavam roubos com o fim de trocar seu produto por fumo e especialmente por bebidas levava a uma perseguio c vigilncia, nem sempre com bom resultado.

    O curioso a duplicidade das questes relativas ao lcool, pois os donos dc escravos muitas vezes forneciam bebidas para as comemoraes e depois alguns se queixavam de arruaas ou de embriaguez. Os escravos, tambm por sua vez, tinham meios de comprar bebidas, quando conseguiam obter algum dinheiro, o que no era extremamente raro, ou de troc-las por produtos dc seu engenho 011 mesmo por contrabando c roubo. Assim se compreende que elas constituam parte integrante das festas e das comemoraes, fossem estas religiosas 011 de outra origem.

    Portanto, a bebida ser um fator de solidariedade, seja grupai, isto , reunindo pessoas da mesma etnia para seu consumo, seja acentuando os liames entre companheiros de trabalho ou de situao social; as autoridades locais se mostram incapazes de tomar medidas eficazes, conforme assinalado,1' para impedir essa distribuio informal. Constitua assim um poderoso fator de convvio e de solidariedade, at mesmo 011 sobretudo entre os grupos marginalizados. Esse tam bm era um aspecto temido; as reunies, sob que pretexto fosse, constituam fontes de problemas para os proprietrios e as autoridades, mas, muitas vezes, na prtica, no se levava em conta aspectos teoricamente vistos como perigosos.

    Chama a ateno de quem analisa a bebida alcolica no Brasil dos primeiros sculos a ambigidade de costumes, de leis e de pareceres, isto , de um lado se considerava o lcool bom, curativo, lucrativo, valioso presente para pagar favores ou trabalhos recebidos, e de outro, viam-se apenas os malefcios produzidos. Esses malefcios, entretanto, no diziam respeito aos males trazidos para o indivduo em si, ou seja, sade, por exemplo, mas para a sociedade constituda e sobretudo para a vida poltica. Nesse sentido, o lcool era considerado um produto que j em si, pelo seu cultivo e distribuio, escapava do controle de Lisboa, sendo muitas vezes trabalho de marginais, de qui-

    17 Julita Scarano. Cotidiano e solidariedade. So Paulo: Brasiliense, 1994.

  • HlMIOA ALCOLICA ]'. S O C I K D A I) K COLONIAL 481

    lombolas c dc clandestinos. Por outro lado, fazendo com que as pessoas agissem fora das normas estabelecidas c das relaes Colnia/Metrpole, abria cunhas para cscapes dc vrias ordens, uma vez que a primeira existia e deveria trabalhar em prol da segunda e o lcool cortava o fio que deveria manter pessoas e coisas cm lugares determinados pela Coroa. Tambm possibilitava que se tornasse manifesta a discrepncia entre os interesses das autoridades loc