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1 Filosofia do Direito Professora Gisele Leite A Filosofia do Direito é parte da Filosofia. Trata-se de filosofia aplicada à ciência do Direito. Essa afirmação é repleta de gravidade, parece não intimidar os doutrinadores que se dedicam ao seu estudo. Devemos compreender a Filosofia do Direito como desdobramento dos saberes filosóficos já estabelecidos, cabendo observar as maiores conquistas, as mesmas técnicas e até os mesmos métodos e seguir cautelosamente os mesmos passos daquela à qual se vincula como matriz inclusive por ser anterior e mais genérica. Para tanto, muito contribuiu a própria história do pensamento, pois até o advento de Hegel, toda a história das ideias sobre o Direito encontrava-se mesclada aos sistemas e pensamentos de filósofos (desde os sofistas até Immanuel Kant 1 ). Kant concluiu a reviravolta fundamental do pensamento ocidental aberto por Descartes (...). Projetou duas linhas de descendência: 1 Immanuel Kant (1724-1804) foi filósofo prussiano, geralmente considerado o último grande filósofo dos princípios da era moderna. Foi professor catedrático da Universidade de Könisgsberg, cidade na qual nasceu e de onde nunca saiu, levando vida metódica e pontual e só dedicada aos estudos filosóficos. Realizou numerosos trabalhos sobre ciência, física e matemática. Também atuou na epistemologia, uma síntese entre o racionalismo continental bem representado por René Descartes e Gottfried Leibniz, onde imperava a forma de raciocínio dedutivo, e a tradição empírica inglesa (bem representada por David Hume, John Locke que valorizavam a indução). Kant se tornou famoso principalmente pela elaboração do chamado idealismo transcendental: todos nós trazemos formas e conceitos a priori (aqueles que não surgem da experiência) para experiência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma, impossíveis de determinar. Kant é historicamente um dos maiores expoentes nas fontes contemporâneas do relativismo conceitual. Também conhecido pela filosofia moral e pela proposta, a primeira moderna, de uma teoria da formação do sistema solar, conhecida como a hipótese de Kant-Laplace. O criticismo kantiano parte da confluência do racionalismo, do empirismo inglês e a ciência física-matemática de Isaac Newton. Seu caminho histórico restou marcado pelo governo de Frederico II, a independência norte-americana e a Revolução Francesa. Em sua dialética transcendental examina as possibilidades dos juízos sintéticos a priori na metafísica. A "coisa em si" (alma, Deus, essência do cosmos). Tratou ainda da paz perpétua que se refere ao direito cosmopolítico de circunscrever-se às condições de hospitalidade universal.

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    Filosofia do Direito

    Professora Gisele Leite

    A Filosofia do Direito parte da Filosofia. Trata-se de filosofia

    aplicada cincia do Direito. Essa afirmao repleta de

    gravidade, parece no intimidar os doutrinadores que se dedicam

    ao seu estudo.

    Devemos compreender a Filosofia do Direito como desdobramento

    dos saberes filosficos j estabelecidos, cabendo observar as

    maiores conquistas, as mesmas tcnicas e at os mesmos mtodos

    e seguir cautelosamente os mesmos passos daquela qual se

    vincula como matriz inclusive por ser anterior e mais genrica.

    Para tanto, muito contribuiu a prpria histria do pensamento, pois

    at o advento de Hegel, toda a histria das ideias sobre o Direito

    encontrava-se mesclada aos sistemas e pensamentos de filsofos

    (desde os sofistas at Immanuel Kant1).

    Kant concluiu a reviravolta fundamental do pensamento ocidental aberto por Descartes (...). Projetou duas linhas de descendncia:

    1 Immanuel Kant (1724-1804) foi filsofo prussiano, geralmente considerado o ltimo grande filsofo dos princpios da era moderna. Foi professor catedrtico da Universidade de Knisgsberg, cidade na qual nasceu e de onde nunca saiu, levando vida metdica e pontual e s dedicada aos estudos filosficos. Realizou numerosos trabalhos sobre cincia, fsica e matemtica. Tambm atuou na epistemologia, uma sntese entre o racionalismo continental bem representado por Ren Descartes e Gottfried Leibniz, onde imperava a forma de raciocnio dedutivo, e a tradio emprica inglesa (bem representada por David Hume, John Locke que valorizavam a induo). Kant se tornou famoso principalmente pela elaborao do chamado idealismo transcendental: todos ns trazemos formas e conceitos a priori (aqueles que no surgem da experincia) para experincia concreta do mundo, os quais seriam de outra forma, impossveis de determinar. Kant historicamente um dos maiores expoentes nas fontes contemporneas do relativismo conceitual. Tambm conhecido pela filosofia moral e pela proposta, a primeira moderna, de uma teoria da formao do sistema solar, conhecida como a hiptese de Kant-Laplace. O criticismo kantiano parte da confluncia do racionalismo, do empirismo ingls e a cincia fsica-matemtica de Isaac Newton. Seu caminho histrico restou marcado pelo governo de Frederico II, a independncia norte-americana e a Revoluo Francesa. Em sua dialtica transcendental examina as possibilidades dos juzos sintticos a priori na metafsica. A "coisa em si" (alma, Deus, essncia do cosmos). Tratou ainda da paz perptua que se refere ao direito cosmopoltico de circunscrever-se s condies de hospitalidade universal.

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    uma que resulta na diminuio ideal de Direito, caracterizando uma vertente axiolgica cuja ideia central a de liberdade, que no direito assume a forma da justia; outra, que arremata o trao positivista do direito, cujo conceito basilar a segurana. Joaquim Carlos Salgado. Prefcio. (In: Gomes, Alexandre Travessoni. O fundamento da validade do direito. Kant e Kelsen. BH: Mandamentos, 2000. p.9).

    Ento, esses eram a um s tempo, pensadores dos problemas

    ticos, sociais, polticos, metafsicos, estticos, lgicos e, tambm

    jurdicos.

    Todavia, a Filosofia do Direito desgarrou-se de sua matriz

    produzindo sua prpria autonomia. De fato, a partir de Hegel

    reconhece-se crescente movimento de investigao exclusivamente

    jurdica o que acentuou a especificidade do pensamento do Direito.

    Pensar o Direito em razo de sua prpria complexidade, dos

    direitos positivos o que demanda da teoria a compreenso

    especfica das injunes, das prticas e das tcnicas jurdicas.

    Desta forma, formou-se toda uma corrente de especialistas na

    Filosofia do Direito que sem serem filsofos de formao

    acadmica, se dedicaram a estudar seu prprio objeto de atuao

    prtico (como o caso de Savigny, Puchta, Ihering, Windscheid,

    Stammler, Hans Kelsen, etc.).

    Reconhece-se plenamente que a Filosofia lance luzes sobre a

    Filosofia do Direito, e vice-versa, mas no se pode afirmar que esta

    esteja atrelada, perdendo sua autonomia Filosofia.

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    O que ocorre a especializao, pois a Filosofia do Direito tornou-

    se historicamente, um conjunto de saberes acumulados sobre o

    Direito (objeto especfico) distanciando-se da Filosofia tanto quanto

    a Semitica se distanciou da Lgica.

    Ressalto que o fato de o saber filosfico continuar ativamente a

    histrica das ideias jusfilosficas como, por exemplo, as filosofias

    do agir comunicativo Jrgen Habermas2 e da arqueologia das

    prticas humanas de Michel Foucault3 tm sido motivo de largo

    impacto intelectual (Vigiar e Punir) e reflexo entre os juristas.

    Salientando que, por vezes, as metodologias jusfilosficas

    (Stammler4 que neokantiano) aperfeioam-se na medida dos

    2 Jrgen Habermas filsofo e socilogo alemo. Licenciou-se em 1954 na Universidade de Bonn, com a

    tese sobre Schelling intitulada "O absoluto e a Histria". Foi assistente de Theodor Adorno no Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt. No incio da dcada de sessenta realizou pesquisa emprica sobre a participao estudantil na poltica alem. At o presente momento continua muito atuante e produtivo e, frequentemente participa de debates e atua em jornais como cronista poltico. 3 Michel Foucault (1926-1984) importante filsofo e professor catedrtico de Histria dos Sistemas de Pensamento no Collge de France de 1970 a 1984. Seu trabalho foi desenvolvido em uma arqueologia do saber filosfico, da experincia literria e da anlise do discurso. Tambm se concentrou sobre a relao entre poder e governamentalidade, e das prticas de subjetivao. Foucault renegou os modos tradicionais de analisar o poder e procurou realizar suas anlises no de forma dedutiva e sim indutiva, por isso passou ater como objeto de anlise no categorias superiores e abstratas de anlise tal como questes do que o poder, e o que o origina e tantos outros elementos tericos, voltando-se para elementos mais perifricos do sistema total, isto, passou-se a interessar-se pelos locais onde a lei efetivada realmente. Segundo Foucault, devemos compreender que a lei uma verdade "construda" de acordo com as necessidades do poder, em suma, do sistema econmico vigente, sistema, atualmente preocupado principalmente com a produo de mais-valia econmica e mais-valia cultural, tal como explicado por Guattari. O poder em qualquer sociedade precisa de uma delimitao formal, regras do direito, surgindo, portanto, os elementos necessrios para a produo, transmisso e oficializao de "verdades". O poder precisa da produo de discursos de verdade, como disse Foucault.

    4 Rudolf Stammler (1856-1938) foi um filsofo do Direito alemo. Inspirado na corrente neokantiana conferiu cincia do Direito e atribuiu-lhe metodologicamente os instrumentos dos fins e dos meios" contrapostos aos de "causa e efeito" das cincias naturais. O mistrio de Stammler reside na sua tentativa de superar o positivismo de sua poca. autor da teoria do chamado Direito Natural de contedo varivel. O neokantismo ou neocriticismo corrente filosfica desenvolvida principalmente na Alemanha, a partir de meados do sculo XIX at 1920. Preconizou o retorno aos princpios de Kant opondo-se ao idealismo objetivo de Hegel, ento predominante, e a todo tipo de metafsica, mas tambm se colocava contra o cienticismo positivista e a sua viso absoluta da cincia. O neokantismo pretendia, portanto recuperar a atividade filosfica como reflexo crtica acerca das condies que tornam vlida a atividade cognitiva - principalmente a Cincia, mas tambm os demais campos do conhecimento -

    da Moral Esttica. Estamos submetidos verdade tambm no sentido em que ela a lei, e produz o discurso da verdade que decide, transmite e reproduz, pelo menos em parte, efeitos de poder.

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    aperfeioamentos dos mtodos independentemente das

    contribuies filosficas.

    o caso, por exemplo, de Chaim Perelman5 com sua nova retrica,

    o exemplo de uma metodologia que, no obstante a matriz

    aristotlica mostrou-se numa projeo inversa, partindo do jurdico

    para o filosfico.

    Pode-se mesmo dizer que do convvio e do dilogo constantes

    que se obtero melhores e mais salutares produtos nessa rea do

    saber humano.

    A filosofia , a princpio, o saber racional, sistemtico, metdico,

    casual e lgico. A Filosofia a cincia das coisas por suas causas

    supremas.

    A Filosofia do Direito deve ocupar-se do justo e do injusto, e esse

    seu objeto. Ser, portanto, como contemplao valorativa do direito,

    a teoria do direito justo (Stammler).

    No entanto, para outros, o justo e o injusto esto foram do alcance

    do jurista, e correspondem ao objeto de estudo da tica (Hans

    Kelsen que aplica ao tema da justia teoria dos valores, a mesma

    metodologia usada ao construir a teoria pura do Direito

    registrando a cientificidade como no-valorao).

    5 Chaim Perelman (1912-1984) foi um filsofo do Direito que durante a maior parte de sua vida viveu na

    Blgica. um dos mais relevantes tericos da retrica no sculo XX. Sua obra principal o Trat de l'argumentation - la nouvelle rhtorique (Tratado da Argumentao) de 1958, escrito junto com Lucie Olbrechts-Tyteca no Brasil. A obra fora traduzida para o portugus pela Editora pela Editora Martins Fontes (1996).

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    Ainda no entendimento de outros pensadores, a Filosofia do Direito

    deve ser estudo combativo sendo inata a sua misso de lutar contra

    a tirania. H propostas que reafirmam a tarefa filosfica da

    escavao conceitual do Direito.

    A Filosofia do Direito abrange, portanto, diversas investigaes (a

    lgica, a fenomenologia e a deontologia). Enfim, representa a

    exposio crtico-valorativa da experincia jurdica, na

    universalidade de seus aspectos mediante a indagao dos

    primeiros princpios que informam os institutos jurdicos, os direitos

    e os sistemas.

    A Filosofia do Direito saber crtico a respeito das construes

    jurdicas erigidas pela Cincia do Direito e pela prpria prxis do

    Direito, buscando os fundamentos do Direito, seja para cientificar-se

    de sua natureza, seja para criticar a base de suas estruturas e do

    raciocnio jurdico, provocando as vezes, fissuras no construdo que

    por sobre as mesmas se ergue.

    No se esgota a reflexo do Direito e se mantem acesa e atenta s

    modificaes cotidianas do Direito principalmente regulando o

    tratamento jurdico que se d a pessoa humana.

    Portanto, sempre atual, de vanguarda e reserva para si o direito-

    dever de estar empregada da preocupao em investigar as

    realizaes jurdicas prticas e tericas.

    A diferena entre a Filosofia do Direito e a Cincia do Direito reside,

    no modo pelo qual cada uma delas considera o Direito: a primeira,

    no seu aspecto universal e, a segunda, em seu aspecto particular

    (Del Vecchio).

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    Resumindo, a Filosofia Jurdica procura estudar sobre a

    conceituao do Direito em si, explicando causas determinantes de

    sua transformao no espao e tempo, em relao aos demais

    elementos sociais.

    Sua finalidade examinar o Direito, em pleno desenvolvimento,

    atravs de leis gerais do movimento. Sua finalidade o prprio

    exerccio do pensamento visando a interpretao da interpretao

    sendo tal exerccio desprovido de pretenses finalistas.

    O caminho da investigao do Direito constitui enfim a ratio essendi

    da filosofia: E tais metas e tarefas que so:

    a) Proceder crtica das prticas, das atividades e atitudes dos

    operadores de Direto6;

    b) Avaliar e questionar a atividade legisferante bem como

    oferecer suporte reflexivo do legislativo;

    c) Proceder avaliao do papel desempenhado pela cincia

    jurdica e o prprio comportamento do jurista ante ela;

    d) Investigar as causas de desestruturao, enfraquecimento do

    sistema jurdico;

    e) Depurar a linguagem jurdica, os conceitos filosficos e

    cientficos do Direito;

    6 O operador do Direito antes de tudo significa o graduado em Direito. Segundo o Dicionrio HOUAISS da Lngua Portuguesa, o vocbulo operador, significa aquele que opera, realiza algo, executa uma ao, dentre outras acepes. E ainda segundo HOUAISS, verifica-se a palavra construtor com o significado, dentre outros, daquele que constri, o que domina o saber de construir. Afinal, h operador ou construtor do Direito? A nosso sentir, em operador do Direito no se pode cogitar, com o devido respeito aos que entendem de forma contrria. Verifica-se que Direito concebido pelo Estado, tal como se conhece hodiernamente, est em crise bem evidenciada, e nem sempre h o que se denomina de justia material. Em muitos casos, prevalece a forma sobre o contedo; aes judiciais so extintas sem que ao menos se adentre ao mrito, em decorrncias de irregularidades que poderiam ser supridas, ou at mesmo por desateno (ou despreparo tcnico mnimo necessrio) do profissional que atua no processo; muitos so os casos em que o direito material est mais do que cristalino, devidamente provado no curso do feito, e diante das manobras processuais (diga-se, recursos de agravo de instrumento, embargos de declarao), da parte contrria, acabam por fulminar qualquer pretenso do prejudicado. Para superar o aforismo criado em torno da expresso "operador do Direito" e isso se faz durante a formao acadmica. A quebra do paradigma fundamental para se obrar na mente do acadmico de Direito a importncia apenas parcial que tem no desenvolvimento sustentvel, o que no impede o exerccio efetivo e empenhado da profisso escolhida. Assim, "operar o Direito" implica na dimenso primeira o modo pelo qual se pode atingir a conscientizao da populao sobre as leis vigentes e prerrogativas nsitas aos sujeitos de direitos (medida profiltica do Direito) e, numa segunda dimenso, a justa satisfao das partes durante o litgio (medida razovel de aplicao da justiado Direito).

  • 7

    f) Investigar a eficcia dos institutos jurdicos, sua atuao social

    e seu compromisso com as questes sociais, seja o que se

    refere aos indivduos, seja quanto aos grupos, a coletividade,

    seja no que tange as preocupaes humanas universais;

    g) Esclarecer e definir a teleologia do Direito, seu aspecto

    valorativo e suas relaes com a sociedade e os anseios

    culturais;

    h) Resgatar as origens e valores fundantes dos processos e

    institutos jurdicos;

    i) Por meio da crtica conceitual institucional, valorativa, poltica,

    procedimental auxiliar o juiz no processo decisrio.

    A filosofia socrtica traduz uma tica teleolgica e sua contribuio

    consiste em identificar na felicidade o fim da ao. Essa tica tem

    como fito a preparao do homem para conhecer-se, uma vez que

    o conhecimento a base do agir tico, s erra quem desconhece,

    de maneira que a ignorncia o maior dos males.

    Conhecer, porm, no fiar-se nas aparncias e nos enganos e

    desenganos humanos e, sim, fiar-se no que h de verdadeiro e

    certo.

    Deve-se erradicar a ignorncia por meio da educao (paideia7) que

    a tarefa do filsofo. E nessa certeza, o filsofo abdica at mesmo

    da prpria vida para reafirmar sua lio e compromisso com a

    divindade. A lio da tica socrtica j uma lio de justia.

    7 Inicialmente, a palavra paideia advm de paidos que significa criana, significava simplesmente "criao de

    meninos". Mas, tal significado inicial dista em muito do elevado sentido que mais tarde adquiriu. O termo significa tambm a prpria cultura construda a partir da educao. Era o ideal que os gregos cultivavam do mundo para si e para sua juventude. Uma vez que o governo prprio era muito valorizado pelos gregos, a Paideia combinava ethos(hbitos) que o fizessem ser signo e bom tanto como governado quanto como governante. O objetivo no era ensinar ofcios, mas sim treinar a liberdade e nobreza. Paideia igualmente pode ser encarada como legado deixado de uma gerao para outra na sociedade. Mortimer Adler (filsofo norte-americano) tenta, com sua produo cientfica, resgatar a paideia hoje, na nossa contemporaneidade. Este destaca a importncia de ler, estudar e apreender as ideias dos grandes pensadores, e a vida toda, lutou por essa causa.

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    Portanto, um misterioso conjunto de elementos bsicos ticos,

    sociais e religiosos permearam os ensinamentos socrticos, que

    permaneceram apesar de no terem sido escritos (o que lhe

    garantiram a eternidade), mas que permitiram principalmente ao

    pensamento platnico e produziu efeitos nas demais escolas que se

    firmaram como doutrina socrtica.

    A filosofia socrtica primou pela submisso uma vez que a tica do

    coletivo est acima da tica do individual e a convico no acerto da

    renncia em prol da Cidade-Estado (polis). Onde est a virtude,

    est a felicidade e inerente ao julgamento humano a respeito.

    A condenao de Scrates alm de questionar com a sua vida a

    justia da polis, trouxe srios efeitos e deixou profunda marca na

    histria. E, Plato como bom discpulo incorporando esse dilema,

    haver de leg-lo com toda sua fora para a posteridade.

    Plato

    Boa parte das premissas socrticas desemboca diretamente no

    pensamento platnico. Foi Plato por meio dos seus dilogos

    Fedro e A Repblica (livros IV e X) que especificamente

    abordam a questo, desenvolveu os pressupostos do pensamento

    socrticos: a virtude conhecimento e o vcio existe em funo da

    ignorncia.

    Ao raciocnio socrtico somam-se as influncias pitagricas e rfica,

    que acabam por torn-lo em pensamento peculiar. De qualquer

    forma, em sua exposio do problema tico ressalta-se, sobretudo,

    o entrelaamento das preocupaes gnosiolgicas, psicolgicas e

    ticas propriamente ditas.

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    Todo o sistema filosfico platnico decorrncia de pressupostos

    transcendentes, quais sejam: a alma, a preexistncia da alma, a

    reminiscncia das ideias, a subsistncia da alma.

    Alis, a relao entre a psicologia e a tica bem exposta em dois

    dilogos: no livro IV da A Repblica e no Mito do Cocheiro8, no

    Fedro9. O corpo humano a carruagem, o homem que a conduz,

    os pensamentos correspondem s rdeas, e os sentimentos so os

    cavalos.

    Plato diferentemente de Scrates se distanciou da poltica e das

    atividades prtico-polticas. Se Scrates ensinava nas ruas da

    cidade, pelo mtodo peripattico. Plato por sua vez decepcionado

    com o golpe desferido pela cidade contra a filosofia, ensinava em

    lugar apartado e recndito onde o pensamento pode vagar com

    tranquilidade, e onde se pode desenvolver um modo de vida ao

    mesmo tempo em que estava preocupado com a cidade, suas

    corrupes, torpezas e problemas era a Academia.

    um paradoxo da Academia um lugar para a reflexo, porm um

    lugar destacado e distante. Para facilitar e purificar a observao.

    8 A natureza da alma (psych) humana descrita no dilogo Fedro de Plato de modo tripartite, atravs do Mito do Cocheiro. Neste, ela composta por um cocheiro e por uma parelha de cavalos alados, um branco e outro negro. Eles se constituem como dois impulsos no inteiro da alma humana: um apolneo e outro dionisaco. Esta teoria ocupa lugar central na filosofia platnica, na medida em que permite trabalhar com a ascenso do mundo sensvel ao inteligvel. Na viso platnica, a alma humana composta por um cavalo branco e um negro. O cavalo branco corresponde ao elemento apolneo da alma, isto o racional, na medida em que o reino da razo e do intelecto o que distingue mais propriamente o homem da besta -, que busca a perfeio, elevao, luminosidade e verdade. Mas o cavalo negro desestrutura a razo apolnea: o impulso dionisaco investe e irrompe avassalador, desmedido e furioso, transgredindo todos os limites.

    9 No princpio do mito do cocheiro se divide cada alma em trs partes, sendo dois cavalos, e a terceira parte o cocheiro. Assim devemos continuar. Dissemos que um dos cavalos bom e outro no. Quando o cocheiro v algo amvel, essa viso lhe aquece a alma, enchendo-a de pruridos e desejos. O cavalo bom obedece ao guia, como sempre, obedece a si mesmo se refreia. Mas o outro no respeito o freio e nem o chicote do condutor. No Mito do Cocheiro, no dilogo Fedro, Plato compara a alma a uma carruagem puxada por dois cavalos, um branco (irascvel) e um negro (concupiscvel). O corpo humano a carruagem, e o cocheiro (Razo) conduz atravs das rdeas (pensamentos) os cavalos (sentimentos). Cabe ao homem atravs de seus pensamentos saber conduzir seus sentimentos, pois somente assim ele poder se guiar no caminho do bem e da verdade.

  • 10

    Scrates via na prudncia (phrnesis) a virtude de carter

    fundamental para o alcance da harmonia social. A prudncia estava

    incorporada a seu mtodo de ensinar e ditar ideias, com vistas

    realizao de uma educao (paideia) cidad.

    Quando a condenao de Scrates firmou a hostilidade da cidade

    ao filsofo, qual era inerente a poltica do convvio, iniciou-se um

    processo acadmico de distanciamento da cidadania participativa;

    esta era a derrocada do ideal de perfeio democrtica.

    A prudncia socrtica converteu-se em vida terica (bios

    theoreticos) que declarada como a melhor das formas de vida,

    entre as possveis formas de vida humana (filsofo, cavalheiro,

    arteso) e passou a servir de modelo de felicidade humana.

    Tudo isso com base na tripartio da alma: alma logstica

    corresponde parte superior parte superior do corpo humano

    (cabea), qual se liga a figura do filsofo; a alma irascvel,

    correspondendo parte meridiana do corpo humano (peito)

    caracterizada pela coragem como virtude cavalheiresca; alma

    apetitiva, correspondendo parte inferior do corpo humano (baixo

    ventre), qual se liga aos artesos, aos comerciantes e ao povo.

    s potncias da alma (psych) humana vinculam-se, portanto, aos

    modos de vida, de forma que: a) parte logstica da alma passa a

    representar o que diferencia o ser humano dos demais seres; b)

    parte logstica da alma passa a representar a imortalidade do ser. c)

    a parte logstica da alma representa a excelncia humana o que faz

    o homem assemelhar-se aos deuses; d) a alma logstica (logistikn)

    hegemnica em face das demais partes da alma humana; e) a

    alma logstica capaz de reflexo (dianoia), de opinio (doxa) e, de

    imaginao (phantasia); e) a alma logstica capaz de razo (nous)

  • 11

    e que permite ao homem acessar, por meio de contemplao as

    ideias que somente aos deuses so acessveis.

    Em resumo, a alma se divide em logstica (cabea) que se relaciona

    com o filsofo; coragem (peito) que se relaciona com o guerreiro e

    cavalheiro, e apetitiva (baixo ventre) que se relaciona com artesos

    e comerciantes10.

    A no h movimento, no h discurso, no h o pensamento: a

    ideia encontra-se absorvida em sua plenitude de inteligibilidade.

    Dessa forma, o nous intui o logstico pensa e fala sobre einai te kai

    ousian atravs do nous assemelhando-se quilo do que fala e

    pensa (ser e substncia). Das sombras sensveis ao imutvel do

    inteligvel, todo tipo de recurso simblico humano eliminado, para

    que se vislumbre em sua pureza a forma (morph) sem qualquer

    interferncia de elementos da razo mundana.

    A cincia s possvel do que certo, eterno e imutvel, somente

    as ideias, so para Plato, certas, eternas e imutveis, tendo-se em

    vista que tudo o mais que se conhece incerto, perecvel e

    mutvel.

    Do que disse anteriormente, somente a alma logstica capaz de

    cincia, e esta cincia (episteme) qual se se refere Plato, deriva

    da contemplao das ideias perfeitas e imutveis pelo filsofo.

    10 A tripartio da alma crucial para se entende no apenas a psicologia, tica e a poltica platnica, mas tambm a ligao com o restante de sua filosofia. A inovao platnica no se limita apenas sua teoria da reminiscncia. Mas o fato de ter sido o primeiro a cogitar de uma alma tripartite, fonte e explicao de nossos desejos e conflitos, nossas virtudes e vcios, de nosso conhecimento seguro ou falho, de nossa vida em sociedade, seja esta ideal ou deturpada. E a relevncia da teoria da alma tripartite pode encontrar nas grandes semelhanas mesmo com teorias contemporneas bem conhecidas. E podemos mesmo encontrar semelhanas com a Psicanlise (terminologia usada por Freud) ao estabelecer diferentes relaes no interior do indivduo e deste com o mundo exterior nomeia trs elementos da psiqu, a saber: o Id, o ego e o superego.

  • 12

    Virtude e vcio: ordem e desordem

    Cada parte da alma humana exerce uma funo e estas funes

    delimitadas, sincronizadas e direcionadas para seus fins so a

    causa da ordem e da coordenao das atividades humanas.

    As diversas faculdades humanas esto dotadas de aptido para a

    virtude (arete) uma vez que a virtude uma excelncia, ou seja

    uma aperfeioamento de uma capacidade ou faculdade humana

    suscetvel de ser desenvolvida e aprimorada.

    A opinio no cincia, algo entre o ser e o no ser. Assim como

    se opem, tambm, os sujeitos-artificies da doxa e da episteme, ou

    seja, os philodoxos e os philosophos, na perspectiva de que o

    primeiro lana suas observaes com base no conhecimento

    empiricamente captado, enquanto que o segundo constri o saber

    sobre a experincia contemplativa, que se baseia no conhecimento

    daquilo que no contingente.

    O virtuosismo platnico refere-se ao domnio das tendncias

    irascveis e concupiscveis humanas, tudo com vistas na

    supremacia da alma racional.

    Ento, a virtude significa controle, ordem equilbrio,

    proporcionalidade, sendo que as almas irascveis e concupiscentes

    submetem-se aos comandos da alma racional, esta sim

    positivamente soberana. Desse modo, boa ser a conduta que se

    sintonizar com os ditames da razo.

  • 13

    A harmonia surge como consequncia natural permitindo alma

    fruir da bem-aventurana dos prazeres espirituais e intelectuais.

    A tica que deflui da alma racional exatamente a de estabelecer

    este controle e equilbrio entre as partes da alma, de modo que o

    modo que o todo se administre por fora racional e no epitimtica

    ou irascvel.

    O vcio, ao contrrio da virtude reina no caos existente entre as

    partes da alma. O vcio implanta o reino do desgoverno, onde os

    mandamentos so incontrolveis (dio, rancor, inveja, ganncia),

    ora se refere a paixo baixo ventre ( sexualidade, gula, e, etc.).

    Buscar a virtude buscar a excelncia do homem que se inspira

    nas faculdades dos deuses. A alma mundana acaba por destruir a

    corporalidade e possui o peso das carnes humanas e no a leva to

    caracterstica dos deuses.

    Sacrificar-se pela causa da verdade significa abandonar os desejos

    do corpo e fazer da alma o fulcro de conduo em si e por si. Para

    que se fortalea a tica, deve-se aprimorar a alma principalmente

    na parte que mais aproxima o homem dos deuses: a razo.

    A mecnica da justia est a apontar algo para alm da vida e da

    morte. A tica platnica destina-se a elucidar que a tcnica no se

    esgota na simples localizao da ao virtuosa e de seu

    discernimento com relao ao virtuosa.

    A alma deve se orientar e ter sua conduta ditada pela noo de

    bem. Se a natureza da alma humana metafsica tambm

    metafsica a natureza verdadeira e definitiva da justia.

  • 14

    De qualquer forma, a educao paideia da alma tem por fim

    destinar a alma ao pedagogo universal, ao bem absoluto.

    A tarefa de educar as almas para Plato deve ser cumprida pelo

    Estado que monopoliza a vida do cidado. A educao deve ser

    pblica, com vistas no melhor aproveitamento do cidado pelo

    Estado e do Estado pelo cidado.

    Assim, a justia, tica e poltica movimentam-se no sistema

    platnico num s ritmo sob a harmonia nica da ideia primordial do

    bem. Tamanho idealismo gerou condies favorveis para uma

    corrente profundamente emprica o aristotelismo.

    Aristteles - A justia como virtude

    Aristteles fora discpulo de Plato e desenvolveu sobre o tema da

    justia. O fundador do Liceu11 teve sua sede no campo tico, sendo

    cincia definida como cincia prtica.

    A sntese aristotlica permitiu que se congregassem vrios

    elementos doutrinrios reunidos ao longo dos sculos, que se

    disseminaram por diversos campos (justia da cidade, justia

    domstica, justia senhorial).

    11

    Plato fundou a Academia, num retiro distante propcio para a avaliao e observao de forma abstrata do mundo. Ao passo que seu discpulo, Aristteles fundou o Liceu um espao engajado na cidade e preocupado em observar as prticas e comportamento humano.

  • 15

    Os principais conceitos esto na obra Ethica Nicomachea12 (tica

    ao Nicmaco) em particular do Livro V13 dedicado tica.

    Cogitar de justia comprometer-se com outras questes afins,

    quais sejam, as questes sociais, polticas, culturais e retricas. H

    inclusive um dilogo de autenticidade duvidoso intitulado Acerca da

    Justia.

    A obra de Aristteles vasta e abriga vrios domnios do saber e

    engloba trs trabalhos sobre a tica (Ethica Nicomachea, Magna

    Moralia e Ethica eudemia).

    O fato que o mestre do Liceu tratou a justia entendendo-a como

    uma virtude assemelhada a todas as demais tratadas como a

    coragem, a temperana e a benevolncia...

    12 tica a Nicmaco a principal obra de Aristteles sobre tica. E expe sua concepo teleolgica e eudemonista de racionalidade prtica, sua concepo da virtude como mediania e suas consideraes sobre o papel do hbito e da prudncia. Vale ressaltar que a ideia de virtude, na Grcia Antiga, no idntica ao conceito atual, muito influenciado pelo cristianismo. Virtude tinha o sentido da excelncia de cada ao, ou seja, de fazer bem feito, na justa medida, cada pequeno ato (alm disso, os valores da altura e local em que ele escreveu tal obra eram bem diferentes da leitura atual); a palavra bem ou mal, por exemplo, apresenta significados totalmente opostos, como por exemplo, temos a servido e o machismo, que para ele era algo natural e h dcadas so coisas tidas como "ruins" altamente influenciadas por valores ps-cristos.

    13 Livro V. Justia.

    V.a. Sua esfera e natreza distinta. De que maneira a justia um meio-termo. V.a.1. O justo como o legal, e o justo como o proporcional e equitativo: o primeiro considerado. V.a.2. O justo como o proporcional e equitativo; distribudo em justia distributiva e justia retificatria. V.a.3. A justia distributiva de acordo com proporo geomtrica. V.a.4. A justia retificatria, de acordo com proporo aritmtica. V.a.5. A justia nas trocas; reciprocidade de acordo com uma proporo. V.a.6. Justa poltica e tipos anlogos de justia. V.a.7. Justia natural e justia legal. V.b. Sobre como a sua natureza intrnseca envolve escolha. V.b.8. A escala gradativa de aes errneas. V.b.9. Pode um homem ser voluntariamente ser tratado de modo injusto? Ser o distribuidor, ou o receptor, o culpado da injustia na distribuio. A justia no to fcil como pode parecer, pois no uma maneira de agir, mas uma disposio interna. V.b.10. Equidade, um corretivo da justia legal. V.b.11. Pode um homem tratar a si mesmo injustamente?

  • 16

    E como virtude, a justia focada no comportamento humano,

    cincia prtica, intitulada tica, cumpre investigar o que justo e o

    injusto, o que temerrio e o que ser corajoso.

    Na Antiguidade pode-se dizer que a legislao enquanto trabalho

    do legislador, no pode ser confundida com o direito enquanto

    resultado de uma ao. Havia concreta diferena entre lex e jus na

    proporo da diferena entre trabalho e ao.

    Desse modo, o que condicionava o jus era a lex, mas o que

    conferia estabilidade ao jus era algo imanente ao: a virtude do

    justo a justia.

    Dentro da filosofia aristotlica que se encontra referncia

    tripartio das cincias em prticas poticas, ou produtivas ou

    teorticas.

    E, de acordo com essa diviso, dos conhecimentos cientficos, a

    investigao tica no se destina especulao ou produo,

    mas prtica.

    O conhecimento tico uma primeira premissa para que a ao se

    converta em uma ao justa ou conforme a Justia. A excelncia do

    estudo tico busca a perquirio em torno do fim da ao humana,

    pois este tambm objeto de investigao poltica, a mais importante

    das cincias prticas, criando as normas necessrias para orientar

    a polis e dos sujeitos que a compem para a realizao do bem

    comum.

    a observao do homem em sua natural instncia de convvio, a

    sociedade que consente a formulao de juzos ticos.

  • 17

    Conclui-se que os princpios ticos no se aplicam a todos a forma

    nica (a coragem no a mesma para todos) assim como a justia

    no a mesma para todos. Estamos condicionados ao exame do

    caso particular, de maneira personalizada e singularizada para que

    se aplique o justo meio (mestes).

    O conceito de justo meio ou mestes no comporta compreenso

    genrica e indiferente s qualidades especficas dos indivduos,

    ao revs, sensvel dimenso individual.

    A justia, em meio as demais virtudes, que se opem a dois

    extremos (um por carncia: temeroso; outro por excesso: o

    destemido) se ope um nico vcio, que a injustia (injusto: por

    carncia da justia; injusto: por excesso de injusto). Assim, o injusto

    ou a injustia ocupa dois polos diversos.

    Frise-se que a ideia de virtude, assim como o vcio, adquire-se pelo

    hbito reiterao das aes em determinado sentido, com o

    conhecimento de causa e com o acrscimo da vontade deliberada.

    A prpria terminologia das virtudes14 chamadas ticas, deve-se ao

    termo hbito (ethos). A primeira noo de justia pela filosofia

    aristotlica consiste na virtude da observncia da lei, no respeito

    quilo que legtimo e que vige para o bem da comunidade.

    O papel relevante para o conceito aristotlico de justia

    desempenhado pelo legislador. E, nesse sentido, a funo do

    legislador diretiva da comunidade poltica e sua atividade

    comparvel do arteso.

    14

    Virtude qualidade moral, a disposio de um indivduo de praticar o bem; e no apenas uma caracterstica, trata-se de uma verdadeira inclinao. Virtudes so todos os hbitos constantes que levam o homem para o caminho do bem. H diferentes usos do termo relacionado fora, a coragem, o poder de agir, a eficcia de um ou a integridade da mente.

  • 18

    O justo total a observncia do que regra social de carter

    vinculativo. O hbito humano de conformar as suas aes ao

    contedo da lei a prpria realizao da justia e nesta acepo

    a justia total. fato que justia e legalidade so uma nica coisa,

    nesta acepo aristotlica do termo.

    O homem justo ao agir na legalidade diz-se que o homem ,

    virtuoso, quando por disposio do carter, orienta-se segundo

    estes mesmos vetores, mesmo sem a necessria presena da lei

    ou conhecimento da mesma.

    A justia distributiva igualdade de carter proporcional, pois

    estabelecida e fixada de acordo com o critrio de estimao dos

    sujeitos analisados.

    Este critrio o mrito de cada qual se diferencia, tornando-os mais

    ou menos merecedores dos benefcios ou nus sociais

    (desigualdades naturais e sociais).

    Assim, a liberdade para o governo democrtico o ponto

    fundamental de organizao do poder (todos acedem ao poder e

    aos cargos pblicos, indistintamente), da mesma forma que para

    oligarquia a riqueza, e, para a aristocracia a virtude (somente os

    virtuosos galgam o poder e os cargos pblicos).

    A igualdade proposta por Aristteles do tipo geomtrico

    observando-se a proporcionalidade da participao de cada qual no

    critrio eleito pela constituio (politeia). A igualdade na distribuio

    visa manter o equilbrio, pois aos iguais devida a mesma

    quantidade de benefcios ou encargos, assim como aos desiguais

  • 19

    so devidas partes diferentes medida que so desiguais e que se

    desigualam.

    Conclui-se que a teoria aristotlica procurar delinear os principais

    traos que comporiam uma noo do que justo (por fora da lei,

    por fora da natureza, na distribuio, na correo na troca, na

    punio) e do que injusto (por fora da lei, da natureza, na

    distribuio, na correo, na troca e na punio).

    As contribuies de Aristteles so inmeras e entendia que a

    justia como virtude, trata-se de aptido tica humana que apela

    para a razo prtica, ou seja, para a capacidade humana de eleger

    comportamentos para realizao de fins.

    Fica claro que a justia ocorre inter homines, ou seja, trata-se de

    uma prtica humana e social bem delimitada e vinculada ao

    medium terminus (mestes).

    Parte Aristteles de reflexo que enfoca o homem como ser

    gregrio, e isto por natureza. O homem alm de gregrio para a

    subsistncia tambm poltico e de natureza racional (ento exerce

    sua racionalidade no convvio poltico).

    No de outra forma a racionalidade humana se exerce, seno em

    sociedade, na polis, e assim por meio do discurso (logos). Tende a

    comunidade organizada, ao bem, realizao da felicidade

    (eudamonia) que corresponde a um benefcio para todos,

    sobretudo, acessvel a todos.

    A polis sim a culminncia das formas de organizao da vida

    humana (famlia, aldeia, tribo, polis). A polis a teia social com

  • 20

    estrutura poltica, o locus de realizao da racionalidade e da

    felicidade humana. Para esta comunidade, assim organizada todo

    homem est por natureza destinado a esta, pois fora desta,

    somente haver um deus ou uma besta.

    Justia no se realiza sem a plena aderncia da vontade do

    praticante do ato justo a sua conduta. Aquele que pratica atos justos

    no necessariamente um homem justo, pode ser um bom

    cidado, porm no ser jamais um homem justo per si.

    A justia total destaca-se sendo virtude de observncia da lei. E,

    complementada pela justia particular, a corretiva presidida pela

    noo de igualdade aritmtica ou distributiva, presidida pela noo

    de igualdade geomtrica.

    A justia tambm ser exercida nas relaes domsticas (para com

    a mulher, os filhos, para os escravos) ou polticas (legal ou natural).

    Cumpre o julgador debruar-se na equanimizao de diferenas

    surgidas das desigualdades; este quem personifica e representa a

    justia. Para alm da lei, porm, da justia e de tudo est a noo

    de amizade e onde h a amizade, em sua pureza conceitual, no

    necessria a justia.

    Numa profunda ordenao csmico-natural se pode encontrar o

    fundamento de toda tica e de todo conceito de justia na teoria de

    Ccero. So leis naturais responsveis pela ordenao do todo, de

    acordo com estas se funda a reta razo, de modo que o direito

    natural passa a representar a nica razo de ordenao da conduta

    na Repblica.

  • 21

    A base da tica de Ccero stoa e, no repouso apenas no

    estoicismo, mas apela pelo sincretismo filosfico que remonta ao

    socratismo, ao platonismo, ao aristotelismo e ao estoicismo.

    As virtudes so estimuladas pela lei natural enquanto que os vcios

    so repreendidos por esta. esta que, primeira, racional, pura,

    absoluta, imperativa... Deve ser a escolta para os atos humanos, e

    no qualquer outro tipo frgil de conveno humana.

    a sociabilidade condio natural humana, de modo que a

    organizao do Estado das leis, da justia so condies para a

    realizao da prpria natureza humana.

    Observando-se a natureza das coisas, a natureza humana dever

    atingir um grau de afinidade e harmonia com as leis que regem o

    todo, de modo a que tudo se governe de acordo com um nico

    princpio, que se resume razo divina.

    O que se tem a tica do dever, com base na lei natural e cuja

    finalidade reside em guiar e governar o todo. Nessa tica h

    observncia de preceitos morais e jurdicos a um s tempo, em face

    da fuso que se apresentam.

    Isso porque a sociabilidade um mister, donde a felicidade decorre

    da prpria harmonia de todos entre todos. Enfim, com a Repblica

    que surge a felicidade humana.

  • 22

    O estoicismo15 lana semente da filosofia crist que dominar a

    cultura ocidental por sculos, se implantando e se desenvolvendo.

    A caracterstica definitiva do estoicismo seu cosmopolitismo:

    todas as pessoas seriam manifestaes do esprito universal nico

    e deveriam, de acordo com os estoicos, em amor fraternal,

    ajudarem-se uns aos outros de maneira eficaz. Defendiam os

    estoicos a clemncia aos escravos.

    Justia Crist

    Imprescindvel assinalar a influncia que as Sagradas Escrituras

    produziram na cultura ocidental. A sublinha doutrina religiosa e

    moral, nascida na Palestina, se difundiu em poucos sculos em

    grande parte do mundo civilizado e provocou profunda

    transformao nas concepes do Direito e do Estado.

    Originalmente, porm a doutrina crist no tinha significado jurdico

    ou poltico, mas to s moral. O princpio cristo do amor,

    fraternidade, no se props a obter reformas polticas e sociais,

    mas sim reformas de conscincias.

    15 Estoicismo foi uma escola da filosofia helenstica fundada em Atenas por Zeno de Ctio no incio do sculo III a.C. Ensinavam os estoicos que as emoes destrutivas resultam de erros de julgamento, e que um sbio, ou pessoa

    com "perfeio moral e intelectual", no sofreria dessas emoes. Afirma o estoicismo que todo o universo

    corpreo e governado por um logos divino (noo que os estoicos tomaram de Herclito e desenvolvem). A alma

    est identificada com este princpio divino como parte de um todo ao qual pertence. Este logos (ou razo universal)

    ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graas a ele o mundo um kosmos (termo em

    grego que significa "harmonia"). O estoicismo prope se viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha

    a indiferena (apathea) em relao a tudo que externo ao ser. O homem sbio obedece lei natural,

    reconhecendo-se como uma pea na grande ordem e propsito do universo, devendo assim, manter a serenidade

    perante tanto as tragdias quanto as coisas boas. Estoicos mais tardios tais como Sneca e Epicteto enfatizaram que

    a virtude suficiente para a felicidade, um sbio era imune aos infortnios. Esta crena semelhante ao significado

    de calma estoica, apesar de essa expresso no incluir as vises ticas radicais estoicas de que apenas um sbio

    pode ser verdadeiramente considerado livre, e que todas as corrupes morais so todas igualmente viciosas.

  • 23

    Cogitar de justia abordar fenmeno multifacetado o que nos

    remete as abordagens diversificadas (faceta metafsica, faceta

    tica, faceta tcnica e faceta religiosa).

    Deve-se desvincular como condio epistemolgica dessa

    pesquisa, a ideia de justia crist instituda no Imprio Romano

    aps a adoo do Imprio por Constantino.

    Refere-se da justia praticada pelos senhores feudais como

    soberanos medievais que retiravam seus poderes de Deus... Ou da

    justia praticada pela Inquisio (Santo Ofcio16) fundada no sculo

    XI, que exercia poderes de julgamento sobre a vida das pessoas

    classificadas como hereges (jus vitae ac mortis).

    No bojo dos Evangelhos a doutrina sobre a justia levando-se em

    conta:

    a) O julgamento de Jesus como um fato humano de grande

    significado, uma vez que provocou verdadeira expanso de

    sua curta pregao (Cristo nunca escreveu nada nem mesmo

    o que pregou aos fiis);

    b) Tambm, a doutrina de Justia que incorpora, numa

    esperana, e num anseio do advento da Justia Divina;

    c) A identificao da Boa Nova, a doutrina de Jesus, com

    ensinamentos nitidamente diversos dos contidos no Antigo

    Testamento.

    16

    A utilizao de fogueiras como maneira de o brao secular aplicar a pena de morte aos condenados que lhes eram entregues pela Inquisio o mtodo mais famoso de aplicao da pena capital, embora existissem outros. Seu significado era basicamente religioso. Em muitos casos tambm queimavam-se em praa pblica os livros avaliados pelos inquisidores como smbolo do pecado: "No fim do auto se leo a sentena dos livros providos e se mandaro queimar trs canastras delles. Maio de 1624."

  • 24

    Devem-se diferir os maus usos da doutrina crist, que se fizeram na

    histria ocidental por algumas ideologias, do que verdadeiramente

    esta encerra em si como doutrina, como ensinamento, como

    preocupao axiolgica.

    O cristianismo alcanou muitas representaes e interpretaes no

    tempo e no espao, muitas das quais fidedignas aos mandamentos

    originrios, outras contraditrias.

    Trata-se aqui de buscar a Palavra dos Evangelhos por meio de

    resgate ou de uma imerso na nica ideologia latente na pregao

    de Jesus: fazei ao outro o que quereis que vos faam. Sem

    maiores pretenses, eis a o objeto desse procedimento de

    pesquisa.

    A Justia Crist promove a ruptura com a lei mosaica que pregava

    olho por olho, dente por dente, de ndole extremamente vingativa.

    Onde imperava a justia como forma de desforra do mal causado.

    Cristo faz residir no perdo e no esquecimento das ofensas e dos

    males causados.

    Ao primitivismo hebraico dominado e escravizado pelos egpcios

    havia um ensinamento rgido, dotado de moral espartana, um

    ensinamento solidamente dogmtico, baseado na imagem religiosa

    de um Deus vingativo e todo poderoso. Foi isso que marcou o

    Antigo Testamento. Ento, o Cristo procurou desfazer ao adentrar

    com seus ensinamentos de um Deus benevolente e que perdoa.

    com o advento do Cristianismo que ficou marcada a principal lio

    da justia, tal qual retratada por essa religio. A vinda exemplar

    de Cristo em sua nobre misso de esclarecimento acerca do justo e

    do injusto.

  • 25

    E, libertados do pecado, fostes feitos servos da justia ou Porque,

    quando reis servos do pecado, estveis e livres da justia.

    Em vrias passagens h aluso justia e numa dessas pode-se

    ressaltar o fato de que o mundo passar, as coisas, as pessoas, as

    civilizaes, os imperadores, as Igrejas, as doutrinas e os sbios ...

    mas a Palavra no passar.

    Noutra passagem, in litteris: mais fcil passar o cu e a terra do

    que cair um til da Lei. (Lucas, cap. XVI, v.17).

    Menciona uma ordem que est para alm dos sentidos humanos,

    naturalmente de carter espiritual, em que a Justia aparece como

    fenmeno imperecvel, e de acordo com a qual julgamento se

    exerce de forma inexorvel; a eternidade e a irrevogabilidade so

    suas caractersticas.

    As leis humanas so leis circunstanciais e se multiplicam

    exatamente em funo da diversidade de caracteres dos povos. As

    leis divinas que presidem a ordem divina das coisas, ou o Universo

    em sua totalidade, no podem estar maculadas pela mesma

    especificidade, perecibilidade e circunstabilidade que so peculiares

    das leis humanas.

    Estar ante a justia divina estar perante uma justia presidida por

    Deus e aplicada por esse mesmo Deus.

    Para alm do legal e do ilegal, encontram-se as fronteiras crists. A

    elasticidade dos horizontes cristos bem maior que a dos

  • 26

    horizontes materiais. Pode se mesmo cogitar a insero humana

    em um mundo bidimensional, ou seja, numa duplicidade de papis,

    um terreno e outro espiritual.

    Outra passagem alude diretamente questo de justia: Nscios,

    infiis nos contratos, sem afeio natural, irreconciliveis, sem

    misericrdia. Ou Os quais, conhecendo a justia de Deus (que so

    dignos de morte os que tais coisas praticam) no somente as

    fazem, mas tambm consentem aos que as fazem. (Paulo, Epstola

    de Paulo aos Romanos, Cap.I, vv. 30 a 32). Consagrando assim a

    culpa por ao e a culpa por omisso.

    O mal e dor no existem porque Deus os ignora mas porque Deus

    os permite operar como formas de redeno da experincia

    humana. Tarefa inglria seria a existncia da alma se seu percurso

    no estivesse marcado por um processo contnuo de aprendizado,

    que s se faz pelo conhecimento do bem e do mal, do justo e do

    injusto.

    A justia dos fariseus tomada como paradigma do que no deve

    ser. Ou seja, amar somente os que nos amam... No basta, o

    sentimento cristo reclama mais do fiel. Eis a, a principal inovao

    de Cristo com relao aos ensinamentos que o precederam (...).

    In litteris: Amai os vossos inimigos, fazei o bem queles que vos

    odeiam e orai por aqueles que vos perseguem e vos caluniam. A

    fim de que sejai os filhos de vosso Pai que est nos cus, que faz

    erguer o Sol sobre os bons e sobre os maus, e faz chover sobre os

    justos e os injustos; porque se amardes seno aqueles que vos

    amam, que recompensa terei disto?.(...).

  • 27

    A regra crist governada por mximas, e requer o que h de mais

    caro pessoa, exige o desprendimento de si mesmo, ou mesmo de

    sua prpria honra pessoal oferecendo-se ao ofensor a outra face.

    (...).

    Pois toda injustia no ser solvida na revolta, na reao, na

    vingana, na devoluo do mal, mas sim no perdo, no

    esquecimento das faltas alheias, na humildade e, sobretudo, no

    julgamento de Deus sobre o ofensor.

    A ateno pelo outro, e portanto, pela exteriorizao da conduta,

    tem que ser ressaltada, e isso medida que considerada fator de

    crescimento da alma no exerccio da virtude.

    Novamente, cumpre nova citao de Mateus, cap. VII, vv 1 e 2:

    No julgueis, a fim de que no sejais julgados; porque vs sereis

    julgados segundo houverdes julgado os outros; e se servir

    convosco da mesma medida da qual servistes para com eles.

    Num universo de imperfeitos, quem ser o juiz das aes de quem?

    Na base do perdo reside a reconciliao e na base desta, est a

    unio. E, mais se afirma que toda lei, toda promessa, todos os

    mandamentos e todos os profetas encontram-se reunidos num s

    preceito: Amai a Deus sobre todas as coisas e ao prximo como a

    vs mesmos.

    Da resulta a regra de ouro: No fala aos outros o que no queres

    que te faam a ti que formulada positivamente traduz o princpio da

    justia: devemos tratar os outros tal como gostaramos de ser

    tratados.

  • 28

    Ademais, a crtica de Kelsen recai sobre o carter abstrato da

    frmula, pois o subjetivismo do desejar aos outros, o que desejaria

    para mim, e no define o que bom e nem o que mau. Revela

    subjetivismo nefasto, sobretudo para definir limites do prprio

    ordenamento jurdico.

    A doutrina de Cristo fora essencialmente apoltica e a passagem a

    seguir refora tal entendimento: No vim para ser servido, mas

    para servir. O meu reino no deste mundo, Dai a Csar o que

    de Csar, a Deus o que de Deus.

    O que nos conduz a concluso de que o Direito Positivo deve ser

    respeitado dando aos homens, e particularmente aos governantes,

    o que dos homens e a Deus, o que de Deus.

    Enfim, a doutrina crstica a dos desvalidos, dos desamparados,

    dos empobrecidos e dos discriminados. E a justia divina a que

    tudo prov, que tudo sabe e que tudo pode. Porque ns pelo

    esprito da f aguardamos a esperana da justia.

    Enfim, a filosofia crist trouxe novas dimenses questo da

    justia. Cunhando uma concepo religiosa de justia, identificando

    ajustia humana como transitria e, por vezes, instrumento de

    usurpao de poder. No na justia divina, na Lei de Deus que

    age de forma absoluta, eterna, fiel e imutvel.

    A lei humana aplicada no julgamento de Cristo que foi feito com

    base na opinio popular dos homens da poca, a justia cega e

    incapaz de penetrar nos arcanos da divindade.

  • 29

    Aponta a justia crist aos valores que rompem com o imediato do

    que carnal. O verbum representa no s a elucidao dos

    profetas, mas a encarnao por sua vida, histria e palavras, das

    lies divinas sobre o que deve ser e o que no deve ser.

    A justia crist veio desmistificando figurar alegricas populares e

    introduzindo novas prticas e novos conceitos e, sobretudo por

    meio de parbolas o que refora a contnua interpretao.

    Afinal Cristo veio semear a Boa Nova, no sentido de colher o joio

    separando-o do trigo, o que ser feito no futuro apocalptico por

    meio do julgamento final.

    O sentimento cristo identifica o mal a uma doena, de maneira a

    dispor-se a seu tratamento e no faz precipitado julgamento e, sim

    reintegra pelo perdo, pela doao de sim e por aguardar

    pacientemente a reforma do outro corao.

    Onde reside a vingana (vindita) no reside uma mxima crist, e

    nem mesmo se pode entender como legtima uma guerra religiosa

    ainda que travestida de luta e combate aos infiis, ou de

    disseminao de uma doutrina espiritual. No existe guerra santa,

    existe sim guerra desumana e cruel.

    Traduz a doutrina segundo a qual aquele que age por suas aes

    ser medido; ao justo a justia; ao injusto, a injustia. Todo

    entendimento e lgica crist devem pautar por esta praecepta,

    devem espelhar como reflexo, o comportamento de Cristo. E essa

    substncia filosfica ir perdurar por todo perodo medieval.

  • 30

    Santo Agostinho A Justia de dar a cada um o que seu.

    A maior contribuio para o pensamento medieval no foi romana,

    mas grega. Realmente, foi a sntese conciliatria dos postulados

    religiosos com os filosficos gregos que propulsionaram vrias

    correntes do pensamento medieval.

    Exemplificando, observamos que Aurlio Agostinho (sculos IV e V)

    produziu a fuso do platonismo17 com o cristianismo e, Santo

    Toms de Aquino (sculo XIII) pela escolstica, por sua vez,

    perpetrou a fuso do aristotelismo com o cristianismo. O marco

    histrico a palavra revelada que cristalizou novos ideais

    construindo novos modelos de devoo e f e que conduziram a

    filosofia servir de recurso teolgico de ascenso espiritual.

    Nesse contexto, deixou de ocupar relevante papel anteriormente

    desempenhado, perdendo parte de sua autonomia racional e se

    tornou a ancilla theologie.

    A interpretao mstica conferida s palavras de Jesus passou a

    constituir paradigma de vida interior, o que resultou num primeiro

    estgio para a vida monstica que se perpetuou pelos veculos

    medievais.

    17 Platonismo corrente filosfica lastreada no pensamento de Plato. E, tambm de sua escola que se situa entre o sculo IV ao sculo I a.C. Aps um sculo depois da morte de Plato, em 349 a.C., a Escola enveredou para o ceticismo. De maneira geral, os elementos centrais do pensamento platnico so: a doutrina das ideias, onde os objetos do conhecimento se distinguem das coisas naturais; b) a superioridade da sabedoria sobre o saber, uma espcie de objetivo poltico para a filosofia; c) a Dialtica enquanto procedimento cientfico. O platonismo dividido em trs perodos: Platonismo antigo propriamente dito, mdio platonismo que remonta aos sculos I-II d.C.; e Neoplatonismo, desenvolvido no final da Antiguidade mais que um perodo do platonismo, considerado por muitos como uma verdadeira corrente filosfica propriamente dita. Todos sejam o mdio ou os neoplatnicos embora ampliassem e modificassem o significado originrio do pensamento de Plato, pretendiam estar em continuidade com a doutrina do mestre. Consideravam-se ser exegetas, mais do que inovadores. Na verdade, se viam mais na tarefa de interpretao e de reelaborao da filosofia de Plato.

  • 31

    Diversos fatores histricos deram moldura tais como a

    desestruturao paulatina da vida citadina, a queda dos ideais

    cvicos romanos, o fortalecimento do culto cristo e a ascenso do

    poder eclesistico organizado, o incio do assdio brbaro, a

    diluio da sociedade organizada pela difuso dos conflitos e

    confrontos humanos, entre outros fatores ideolgicos que se

    desenvolveram pela difuso de novos princpios de vida e de nova

    literatura religiosa.

    Suas razes longas se infiltraram to profundamente que a vida se

    governava pelos ditames dogmatizados pela religio. O clero viria

    solidificar-se, efetivando-se definitiva na Idade Mdia, colocando-se

    como instituio reinante, poderosa e rica, perodo em que se

    estruturou e se desenvolveu vindo organizar a vida universitria nos

    sculos XII e XIII, e perdendo foras somente com a Revoluo

    Francesa (sculo XVIII).

    O ideal da vida monstica trouxe a valorizao de ascentismo18,

    anacoretismo e eremitismo que se instituram como nicos meios

    de ascenso espiritual para os devotos das novas tendncias; o

    deserto (eremos) era o local perfeito para a sublimao espiritual,

    aliada macerao fsica, bem como para a descoberta da

    iluminao interior.

    18

    Ascentismo ou ascenticismo filosofia de vida na qual so refreados os prazeres mundanos, onde se

    propem a austeridade. Aquelas que praticam um estilo de vida austero definem suas prticas como virtuosa e perseguem o objetivo de adquirir grande espiritualidade. A maioria dos ascticos acredita que a purificao do corpo ajuda a purificao da alma, e encontrar a compreenso da divindade ou encontrar a paz interior. O substantivo ascentismo deriva do grego askesis que significa prtica, treinamento ou exerccio. Anacoreta palavra que advm do latim medieval anchoreta, e este do grego que significa aposentar. A definio do termo pode ter vrios tons embora inter-relacionar: o que vive isolado da comunidade ou para aqueles que se recusam a se referir a bens materiais, e algum que se retira para um lugar deserto para entrar em orao e penitncia. O anacoretismo tipo de vida que vem como resultado do poder espiritual da Igreja de Crista na quarta espiritualidade monstica do incio do sculo. Este movimento espiritual buscando a pureza de corao que a obteno pelo derramamento de toda criao (separao do mundo) e a prtica de caridade. A pureza de corao a exigncia de posse do Reino de Deus, e obtida pela contemplao divina e cristalizada em uma forma de vida contemplativa.

  • 32

    O eremita ou ermito um indivduo que usualmente por

    penitncia, religiosidade, misantropia ou simplesmente amor

    natureza, vive em lugar deserto e isolado. O local de sua morada

    designado eremitrio. Na histria da Igreja Catlica h importante

    captulo sobre os eremitas e o desenvolvimento da vida monstica

    com destaque para Santo Anto do Deserto.

    Segundo Elisabeth da Silva Passos, O eremitismo dos sculos XII

    e XIII foi permeado pelo retorno s fontes, o ideal da vida apostlica

    e da Igreja Primitiva. Ou seja, os eremitas desejavam imitar

    rigorosamente os preceitos espirituais presentes no projeto de vida

    religiosa de Jesus (...).

    No sculo XII, o eremitismo teria se desenvolvido em trs principais

    vertentes: a primeira consistia na prtica da ascese antecedendo a

    pregao, geralmente dirigida aos grupos mais necessitados

    espiritualmente, como os leprosos e as mulheres, ressaltando a

    questo da pobreza; a segunda propunha que os eremitas

    estabelecessem vnculos com um mosteiro, e a derradeira, seria

    exemplificada atravs da Ordem dos Cartuxos, que requeria uma

    vida de penitncia e isolamento rigoroso.

    Bruno de Colnia, o seu fundador procurou combinar o ideal

    eremtico, expresso na busca de Deus atravs da contemplao,

    com o cenobitismo, ressaltando, a busca pessoal de Deus. Por

    causa da ausncia de desertos na Europa Ocidental, os eremitas

    buscariam refgios em locais remotos e desabitados, como cimos

    de montanhas e florestas.

    A descrio da aparncia dos eremitas era terrvel assim, como as

    suas habitaes. Vestiam-se muito pobres, as pernas apareciam

    semi-descobertas, usavam barba comprida, ps descalos, e

  • 33

    levavam consigo o cilcio19. A austeridade de suas habitaes pode

    ser constatada atravs da escolha dos locais, pois em geral viviam

    em covas, gargantas, ilhas selvagens, bosques funestos e terras

    no desbravadas.

    O eremitismo era um fenmeno religioso marcado essencialmente

    pela contemplao, ou seja, as oraes em retiro, a penitncia, a

    busca pelo isolamento e a mortificao da carne, a fim de buscarem

    o contato com Deus.

    O monastrio integraliza vivncias a servio da divindade, o que

    requer grande esforo de autoesquecimento, distanciamento da

    vida pblica e o exerccio espiritual da orao. Assim, firmado o

    ideal eclesistico passa a religio ocupar o primeiro locus na ordem

    e na escala de valores sociais.

    Ocupou-se de prescrever um quadro de atividades humanas

    louvveis a ao poltica (via activa) invertendo-se o modelo de

    educao (paideia) cidad construdo pelos gregos e pelos

    romanos.

    Concentrando especificamente todos os rumos do saber para a

    problemtica contemplativa (vista contemplativa). Enquanto a vida

    ativa por meio da poltica era fundamental o papel de cidado, para

    os cristos o que importa o contrato mstico com a divindade.

    19 Cilcio era uma tnica, cinto ou cordo de crina, que se trazia sobre a pela para mortificao ou penitncia. O termo deriva do latim cilicinus que significa pelo de cabra, ou cilicium que significa tecido spero ou grosseiro ou de pelo de cabra ou vestido de gente pobre. conhecido como forma de mortificao voluntria ao lado do jejum e abstinncia dentre outras formas. Thomas More, por debaixo da camisa de seda com que comparecia corte de Henrique VIII, usava habitualmente outra de tecido grotesco, a ttulo de cilcio, como forma de sacrifcio voluntrio. O Papa Paulo VI, Madre Teresa de Calcut e a irm Lcia de Ftima praticaram a mortificao corporal dentre muitos outros religiosos e leigos.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Papa_Paulo_VIhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Madre_Teresa_de_Calcut%C3%A1http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%BAcia_de_F%C3%A1timahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Mortifica%C3%A7%C3%A3o

  • 34

    A poltica perde importncia no cenrio medieval. A eternidade da

    alma, a crena no poder da f, regeneradora e conversiva, a

    verdade revelada, o medo dos castigos e penas eternas so todos

    dogmas que presidem o comportamento das almas.

    O paradigma da vista contemplativa particularmente os intelectuais,

    passa a prevalecer o modelo de vida monstica. interessante

    ressaltar que Umberto Eco contesta qualquer tentativa de

    tratamento homogneo dos longos sculos que foram a chamada

    Idade Mdia. E, adverte o leitor de que os apontamentos traados

    em seu texto so apenas linhas gerais e tpicas de algumas

    questes.

    A tradio formou-se em torno do neoplatonismo do pensamento

    patrstico e dos ensinamentos paleocristos que vieram a delinear a

    lgica medieval. Ganhou a filosofia um recurso racional auxiliado

    pelo pensamento teolgico que se centrou na interpretao da

    bblia.

    Primaram pela transcendncia, conduzindo a prpria noo

    esttica, sem prescindir do belo exterior ou negligenciar a aparncia

    material das coisas, para a mstica e a metafsica intelectual.

    Bonum et pulchrum (o belo ao lado do bom) ganhou estatuto

    ontolgico no pensamento medieval, reconduzindo a unidade da

    ideia da Suma Potncia Divina.

    A experincia da beleza inteligvel constitua, antes de tudo, uma

    realidade moral e psicolgica do homem medieval e a cultura da

    poca no permaneceria suficientemente iluminada se

    descuidssemos deste fator. Os medievais elaboravam, ao mesmo

    tempo, por analogia, por paralelos explcitos e implcitos, uma srie

  • 35

    de opinies sobre o belo sensvel, da beleza das coisas da natureza

    e da arte.

    A beleza espiritual e a contemplao da perfeio divina so

    intensamente valorizadas e se difundir como valor e ideologia

    preponderantes.

    O valor estigmatizado pela dualidade soma/psych (corpore/anima)

    exige o culto interior, a afeio ao abstrato e ao isolamento reflexivo

    e que batizou o estilo monstico de vida como ideal contemplativo

    de dedicao divindade. No plano medieval no h espao para a

    vida pblica e nem para a agremiao.

    Os signos da f estavam por toda parte principalmente na ascese

    disciplinar da vida monstica. A intuio era a fora centrfuga do

    pensamento enquanto a f era a fora centrpeta de descoberta.

    O pensamento teologizante, por mistificar todo o real com base na

    interpretao das Escrituras. Deus est em tudo, e conhece toda a

    alma humana. Em tudo h fragmento de divindade, o homem se

    encontra sob esse jugo, conflitando com suas paixes, vcios e

    imperfeies.

    Vita theologica

    A preocupao de Santo Agostinho com o transcendental no se

    deu apenas por sua converso ao cristianismo mas em razo de

    sua formao cultural helnica, principalmente sob o eco do

    platonismo nos sculos III e IV da era crist. Sua obra transpareceu

    o estremecimento que experimentou quando de sua converso

  • 36

    busca de si e a busca de Deus, dotando o mundo do sentido e de

    verdade.

    Sua converso representou uma verdadeira adeso filosofia, e

    sua profisso de f se tornou sacerdcio da palavra divina por meio

    de sua filosofia. Tornando-se Agostinho o pai da igreja e grande

    teorizador cristo.

    E foi justamente o bom conhecimento da doutrina crist e a pag

    que permitiu o Bispo de Hipona galgou o status de pater ecclesiae,

    solidificando assim, a doutrina platnica com os ensinamentos

    catlicos.

    A concepo agostiniana acerca do justo e do injusto concebe

    transcendncia que se materializa na dicotomia havida entre a

    Cidade de Deus (lex aeterna) e a Cidade dos Homens (lex

    temporalem).

    E nos remete discusso da relao existente entre a lei humana e

    a lei divina (perpassando pela justia poltica, justia distributiva,

    justia comutativa e justia corretiva). E se identifica com a

    oposio divina versus humana.

    Onde se percebe claramente o dualismo platonismo (corpo-alma,

    terreno-divino, mutvel-imutvel, transitrio-perene, imperfeito-

    perfeito, relativo-absoluto, sensvel e inteligvel) assim a justia

    agostiniana corporifica a radical concepo entre o que e o que

    deve ser.

    A justia humana inter homines e se opera por deciso humana

    em sociedade. Sua fonte basilar que a lei humana pretende

  • 37

    comandar o comportamento humano. E realiza o controle das

    relaes sociais. No regula o que preexiste ao comportamento

    social.

    A tarefa divina no controle do todo, o que aos olhos humanos

    irrealizvel. Pois a ilimitao de poderes de Deus permite tudo

    conhecer, saber e coordenar. Por outro lado a limitao humana

    que torna a abrangncia da lei humana tambm restrita.

    A justia divina aquela que a tudo governa e preside dos

    anteplanos celestes; sua origem conforme j apregoava o

    platonismo a ordem natural das coisas.

    Esta se baseia na lei divina que no sujeita ao relativismo

    sociocultural e nem as diferenas legislativas existentes entre

    povos, civilizaes, continentes e culturas diversas. Assim, a lei

    divina alm de absoluta, imutvel, perfeita e infalvel e

    infinitamente boa e justa. a justia tambm que se desdobra na

    prpria justia divina.

    Assim a lei que Deus produziu no homem assim, a lei humana

    tambm divina, de certa forma, medida que dada por Deus.

    Afirmar que Deus essentia por excelncia ou que

    supremamente ser, ou que a imutabilidade , pois, afirmar a

    mesma coisa.

    A lei eterna inspira a lei humana da mesma forma que a natureza

    divina inspira a natureza humana. Prima a justia divina em ter

    oniscincia e onipresena. perfeita, pois traduz o julgamento

    perfeito.

  • 38

    A lei humana corrupta bem como seu julgamento e ordenaes.

    viciada ab origine. A justia dentro dessa dimenso vem

    compreendida como algo profundamente marcado pelos prprios

    defeitos humanos.

    A lei eterna comanda a alma para aproximao de Deus,

    promovendo gradativo desprendimento e ordena purificar o amor e

    seu rastro alcanar a perfeio.

    A lei humana temporal se preocupa com o delito no com bens

    materiais. Preocupa-se apenas em ordenar a conduta social. Deve

    a lei humana recriminar os crimes de forma suficiente para

    promover a paz social.

    As paixes que a lei humana exclui de sua regulamentao e tutela

    e desde que no se concretizem em atos ilegais, a lei divina

    condena (tais como inveja, dio, concupiscncia20), Agostinho

    sublinhou que a lei divina , portanto, mais severa por penetrar na

    prpria alma humana.

    A lei temporal tem na lei escrita um recurso auxiliar na organizao

    social. Apontou ainda que s possa haver mesmo Direito, quando

    seus mandamentos coincidem (a lei divina e a lei humana).

    Conceber o Direito dissociado da justia conceber conjunto de

    atividades institucionais humanas que se encontram dissociadas

    dos anseios da justia. Mais que isso: Suprimida a justia que

    sero os grandes reinos seno vastos latrocnios?.

    20

    O significado de concupiscncia engloba a inclinao de gozar de bens terrestres e, particularmente dos prazeres sensuais. a ganncia por propriedades materiais. Aspirao por satisfaes sexuais. o anseio humano pelos domnios naturais ou sobrenaturais. Teologicamente tem acepo pejorativa significando o desejo dos homens por bens materiais cuja existncia justifica-se atravs do pecado original. Deriva do latim conscupiscentia.

  • 39

    Invocou o conceito de repblica de Ccero (res publica) ao lado da

    doutrina de Varro o que se faz com o direito, se faz com justia; e

    o que se faz sem justia, no se pode fazer com Direito.

    A coisa pblica deve ser administrada no s com Direito, mas,

    sobretudo com a justia. Portanto, ainda que em meio a

    transitoriedade dos interesses humanos, andando de mos dadas.

    A noo de justia em Santo Agostinho marcada pela acepo

    romana e a de Ccero de que o governo de direito o governo justo,

    em que a justia dar a cada um o que seu ( suum cuirque

    tribuere).

    No h repblica sem ordem, no h ordem sem direito, e no h

    direito sem justia. Quebrar essa ordem estabelecida significa

    romper com a ordem de Deus.

    A justia, portanto tem haver com a ordem, da razo sobre as

    paixes, das virtudes sobre os vcios, de Deus sobre o homem. A

    justia divina exerce-se, para Agostinho, em funo do livre arbtrio

    que pode atuar contra ou a favor do que prescreve a lei eterna.

    O livre-arbtrio o que permite que o homem atue segundo a sua

    vontade e, pode ser a favor ou contra a lei divina. A vontade

    governa o homem, e h o apelo prudentia que nos remete

    noo de equilbrio na atuao da vida prtica.

    Cogita Agostinho de um atuar secundum legem ou contra legem, a

    ideia do livre-arbtrio a chave para compreenso do julgamento

    divino das obras humanas.

  • 40

    Ser livre poder deliberar com autonomia sendo iluminado pelo

    esprito divino que busca a interiorizao, o caminho na direo de

    Deus.

    Aborda Santo Agostinho que a alma pode ser corrompida pelo

    corpo e, nesses casos a virtude desempenha papel fundamental na

    conteno das paixes ou no combate dos vcios.

    Onde o livre arbtrio permite a possibilidade de escolha e, em face

    dessa escolha que cada qual ser julgado.

    O supremo julgamento ou juzo final figura como crucial momento

    de distino entre aqueles que souberam utilizar o livre-arbtrio de

    acordo ou contra a lei divina. Aos bons lhe ser dado o bem

    supremo e aos maus, o mal supremo. Ser o momento de

    exaltao dos bons e de ranger os dentes para os outros.

    O livre arbtrio deve permitir conhecer-se e conhecer a Deus, o que

    nos remetem ao estudo unificado do mistrio da criao. Sabedoria

    o conhecimento das verdades, mas tambm da verdade maior, ou

    seja, de Deus.

    S sbio quem conhece a perenidade do bem absoluto. O

    autoconhecimento propicia a aproximao de Deus e vencer a

    natureza corrupta do homem.

    Ser feliz e ser sbio so a mesma coisa, ou seja, possuir a

    sabedoria de Deus. Essa sabedoria medida do equilbrio cristo

  • 41

    em Deus (que diverso do equilbrio estoico) que previne contra o

    excesso e a intemperana.

    A revelao e a graa so instrumentos para o conhecimento da

    verdade, e o intelecto ganha sua existncia com a interveno da

    divindade, por meio do verbum.

    A posse da sabedoria corresponde aposse contemplativa de Deus,

    pelo que a tarefa filosfica se constitui de sua natureza como

    itinerrio da mente para Deus.

    Tendo a poltica humana esse compromisso com o divino, o Estado

    passa a ser, portanto, o meio para realizao da lei eterna. Deve a

    politica ter anseio de perseguir a juno eterna das almas com

    Deus, da o compromisso teocrtico do Estado na viso de Santo

    Agostinho.

    A Cidade dos Homens caracterizada desde sua origem pelo

    pecado original, onde a corrupo invadiu o esprito humano,

    distanciando-o de sua fonte de vida, de Deus. Mas h indelegvel

    misso terrena de se conquistar a pax social.

    A teoria de Agostinho denuncia a misria da Cidade dos Homens

    que antagoniza com a beleza da Cidade de Deus. E condena os

    malefcios das penas e crtico mordaz da tortura e da pena de

    morte, pois tudo que humano (sistema de governo e justia)

    ofusca-se diante do que imutvel e perfeito (Justia, Ordem e Bem).

    Apesar dessa base dicotmica, a cidade de Deus diante da Cidade

    dos Homens, pode-se identificar dois amores: amor de si, e o

    desprezo de Deus que deu origem a cidade terrestre; um segundo

  • 42

    amor seria o amor de Deus e o desprezo de si, presente na cidade

    celeste.

    A Cidade dos Homens possui histria, sendo anterior cidade de

    Deus que somente surgiu com o advento do verbum encarnado.

    Mas as cidades, os dois amores, as duas histrias e dois espritos

    diversos fazem diferir profundamente ambas as cidades.

    Assim, a justia pode ser definida por ser divina e humana. A lei

    humana se destina a realizao da paz social (secular e temporal).

    Santo Toms de Aquino: Justia e sindrese21

    Exps tambm uma filosofia comprometida com os Sagrados

    Escritos e com o pensamento aristotlico. No deixando de albergar

    outras propostas, como a sntese do pensamento filosfico at o

    sculo XIII como as ideias de Dionsio, Bcio, Albergo Magno,

    Santo Agostinho, entre outros.

    As lies do aristotelismo traaram nos ensinamentos tomistas

    peculiar clarividncia. Tudo racional e concatenado e

    metodicamente exposto. A justia encontra lugar especial

    recebendo extensivo tratamento na Summa Theologica.

    O estudo dos conceitos de Direito (iure) e de justia (iustitia) faz-se

    como parte de um estudo que se volta para o conjunto de

    interesses dos homens; esta pesquisa deixa de possuir qualquer

    21

    As origens histricas do termo sindrese forjaram-se no seio da filosofia crist, particularmente a partir do sculo XI, encontrando em Toms de Aquino um de seus maiores intrpretes. a unidade da razo terica com a razo prtica. E, tal unidade representa um dos cruciais momentos da tica realista. Com efeito, a bem entrelaada cadeia pela qual o bem se une ao real compe-se destas peas: realidade objetiva, razo terica, razo prtica e atuao moral.

  • 43

    remisso mais aprofundada das discusses sobre a justia

    metafsica, como o a discusso sobre a justia dos atos de Deus

    e, outras implicaes correlatas ao tema.

    Tanto a influncia do aristotelismo e a jurisprudncia romana s

    favoreceram ao desenvolvimento ao conceito de justia de Santo

    Toms de Aquino. Focalizando como problema ligado ao

    humana, prxis, virtude que sabe atribuir a cada um, o que

    seu.

    Conforme aponta Miguel Reale o estudo de justia sob a tica

    tomista consolida-se e nos faz debruar-se sobre as trs acepes

    do termo lex: uma, no sentido humano, outra no sentido natural e,

    outra no sentido divino.

    Assim, em Santo Toms de Aquino o homem composto de corpo

    (corpus) e alma (anima), sendo que o primeiro corresponde a

    matria que colabora para aperfeioamento da alma, esta criada

    por Deus.

    Como expe Santo Toms, como a potncia est no ato, a alma

    est para o corpo; a alma incorruptvel imaterial e imortal,

    enquanto que o corpo corruptvel, material e mortal.

    Alis, a alma no componente s do homem, tambm a possuem

    os animais e vegetais que existe em graus diferenciados e com

    potncias e faculdades diferenciadas (o que permite que se

    diferenciem entre si na escala natural).

    A alma intelectual inerente ao animal racional (homem) que

    capaz, alm de sobreviver, de executar atividades, e apreender a

    forma e o fim de suas aes.

  • 44

    Enfim, o conhecimento das causas dos meios e dos fins que

    distingue a categoria das almas (a racional) na escala natural. O

    homem acumula trs faculdades anmicas22: a vegetativa, a

    sensitiva e a intelectual. E, essa ltima o capacita conhecer o fim de

    suas aes. Dessa forma, a faculdade intelectual que particulariza

    o homem em meio aos outros seres dotados de alma.

    A liberdade consiste exatamente na possibilidade humana de

    escolha entre inmeros valores que se apresentam como aptos

    realizao de um bem;

    A possibilidade de escolha, por sua vez, deita-se sobre a verdade

    real (aquilo que realmente um bem) ou em uma verdade aparente

    (aquilo que parece ser bem) o que comprova a existncia do livre

    arbtrio, ou seja, da capacidade de julgar o que certo ou errado, o

    que justo ou injusto.

    A atividade tica consiste exatamente, por meio da razo prtica o

    saber discernir o mal do bem e executar o escolhido mediante a

    vontade, destinando-se atos e comportamentos para determinado

    fim, o que bem (o tlos23 da filosofia aristotlica).

    O ato moral de escolha do bem, e de repdio do mal, consiste em

    atividade racional medida que os melhores meios que se

    22

    Aristteles distinguiu no livro da tica a Nicmaco os conceitos de sophia e de techne. O primeiro diz respeito a tudo aquilo que no pode ser diferente daquilo que , a saber, a cincia; o segundo diz respeito produo das coisas contingentes segundo um determinado saber e capacidade, ou seja, a arte. E, separou estas noes de outras como phrnesis ou sabedoria, synesis ou sensatez e gnome ou capacidade de discernimento que so verdades da deliberao enlaadas s coisas particulares. Da deliberao no h cincia, porque no se procura aquilo que j se sabe. Deste modo, a sabedoria contrape-se ao intelecto, pois deriva da deliberao da qual no h cincia, mas sensao. 23

    Telos - termo grego que significa finalidade. A noo era especialmente importante para a filosofia aristotlica que entendia que todas as coisas tinham uma finalidade natural. Este tipo de pensamento finalista implausvel em fsica, mas mais adequado na biologia e na tica.

  • 45

    escolhem pela experincia haurida, direcionando-se para realizao

    do bem vislumbrado tambm pela razo.

    A tica fruto da razo prtica e deve presidir o convvio social. E

    assim o Doutor Anglico segue os passos bem de perto do

    pensamento aristotlico no que concerne tica do coletivo.

    J se disse que sobre o agir (individual, familiar, social), ou seja,

    sobre a razo prtica que a tica incide. Na filosofia tomista, esse

    conceito corresponde a sindrese (sinderesis) que o conjunto de

    conhecimentos conquistados a partir da experincia habitual; da

    onde se podem cunhar os conceitos acerca do que bom e do que

    mau, do que justo ou injusto.

    Nas estreitas palavras aristotlicas presentes em Ethica

    Nicomachea que preceituam uma doutrina que faz do agir tico

    um agir pendular entre o vcio e a virtude, lastreia-se na escolha

    entre a dor e o prazer.

    Atua a sindrese estabelecendo um fim da razo prtica, ou seja, o

    Bem. E relembrando Aristteles o bem o que a todos agrada. A

    realizao do Sumo Bem simples, e deve-se buscar o autntico

    bem e, no o bem aparente.

    Todo o conjunto de experincias siderticas, ou seja, experincias

    hauridas pela prtica da ao, capaz de formar princpios, conceitos

    que permitem a deciso por hbitos (bons, maus, justos ou

    injustos).

    Assim, os hbitos no so inatos e sim conquistados pela

    experincia (e esta a base das operaes da razo prtica). O

  • 46

    primeiro princpio atua de modo que o bem evite o mal. Esses

    princpios dever governar a teoria tomista de justia.

    O conceito tomista de justia emerge de conceitos ticos: ethos, em

    grego, significa hbito, reiterao de atos voluntrios que se

    destinam a realizao de fins (a justia uma virtude). E repete: a

    justia uma vontade perene de dar a cada um, o que seu,

    segundo a razo geomtrica.

    Trata-se de igualdade proporcional. E, pode-se dizer, ento que

    razo (ratio) e experincia (habitus) caminham de mos dadas, tudo

    no sentido de dizer a justia, em particular, consiste em dar a cada

    um, o que seu, nem a mais e nem a menos do que devido.

    A justia no tem haver com um exerccio do intelecto especulativo,

    puramente reflexivo. A justia um hbito, portanto, uma prtica,

    que atribuiu a cada um, o que seu, medida que cada um possui.

    Tambm no tem a justia haver com as paixes interiores que so

    objetos de outras virtudes; a justia fundamentalmente, um hbito

    medida que pressupe exterioridade do comportamento.

    A elaborao ecltica do conceito tomista de justia no perde

    noo de realidade e da imperiosa necessidade de efetivao da

    justia. Sendo funo cardeal.

    O Direito objeto da justia. Em meio s demais virtudes, a

    justia que cuida da conduta exterior do homem; e tambm a

    temperana e a prudncia. A justia implica numa certa igualdade.

  • 47

    Tanto a justia como o justo interessam ao estudo do Direito. O

    direito no a justia considerada a maior das virtudes. o iuris

    no se reduz a lex, e algo mais que advm razo divina e da razo

    natural.

    A justia se encontra presente como meio de equilbrio na inteno,

    estabelecendo a igualdade entre aqueles que se relacionam. O

    objeto da justia o Direito. O ato da justia o ato de julgar.

    A tese tomista por tratar da justia in genere definindo-a, como se

    fez at o presente momento como uma virtude, lanando-lhe

    caractersticas e suas relaes com o Direito, suas espcies.

    A grande contribuio tomista em seu jusnaturalismo, sendo que

    admite a lex naturalis mutvel. Ademais, sua concepo transcende

    a lei divina, da qual faz derivar tudo que foi gerado.

    Nesse sentido, todas aas disposies do direito positivo deve se

    adequar s prescries do direito natural que lhe so superiores e

    fontes de inspirao. Assim o ius transcende a lex scripta; a lei

    posta pela autoridade no exaure o Direito.

    O modelo utopiano de organizao social, poltica e econmica e

    jurdica refunda a realidade em novas bases. Destaca-se ateno

    pelo sistema comunal de produo e pela diviso de trabalho de

    acordo com a aptido de cada membro de corpo social.

    Entre as condies geogrficas, as mais favorveis, a Utopia

    oferece a seus habitantes a ordem, abundncia de alimentos,

    sistema jurdico organizado, sistema poltico organizado, integrao

    povo-poder, e diviso de tarefas na construo de ideais sociais.

  • 48

    Na cidade utpica inexistem burocracia excessiva e inoperabilidade

    do sistema jurdico devido excessiva quantidade de normas, leis e

    regulamentos, bem como a grande distncia entre o povo e a ordem

    jurdica, sendo esta inteligvel e manusevel unicamente por seus

    tcnicos, sendo pouco democrtica.

    A Utopia alm de ser devaneio intelectual serviu de ferramenta

    crtica e terica enfocando a justia necessria para o meio social,

    sendo importante referncia para a modernidade.

    Jusnaturalismo

    A escolstica exaltava a lei divina e sua perfeio e imutabilidade.

    Tal influncia facilmente perceptvel nas concepes de Santo

    Agostinho e So Toms de Aquino.

    De fato, a Cidade de Deus era o lugar regido pela lei divina que

    contrastava com a cidade dos homens, regida pela lei humana. A

    tarefa de incorporar a lei divina no mbito da lei humana do

    direito. Sublinhe-se que uma rdua tarefa.

    Dentro da concepo tomista existe: a lei natural, a lei eterna e uma

    lei humana. A lei eterna rege toda ordem csmica (o cu, estrelas e

    constelaes), enquanto que a lei natural decorrente desta lei

    eterna.

  • 49

    Resta evidenciada a hierarquia onde a lei superior a divina para

    Santo Agostinho e para So Toms de Aquino24 a lei que emana

    de Deus. Ento surge o direito natural conforme definiu Grcio, in

    verbis: O mandamento da reta razo que indica lealdade moral ou

    a necessidade moral inerente a uma ao qualquer, mediante

    acordo ou desacordo com a natureza racional.

    Essa virada coprnica registra a sada das concepes mtico-

    religiosas, para buscar seu fundamento da razo. Basicamente o