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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA RELATÓRIO FINAL DO ALUNO E PARECER DO ORIENTADOR BOLSA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA — 2013/2014 CNPq. ( ) SANTANDER ( ) RUSP (X) FFLCH ( ) Bolsista: Juliano Bonamigo Ferreira de Souza Orientador: Prof. Dr. Eduardo Brandão Departamento: Filosofia Nome do Projeto: Influências budistas no pensamento de Friedrich Nietzsche São Paulo, julho de 2014

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

RELATÓRIO FINAL DO ALUNO E PARECER DO ORIENTADOR

BOLSA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA — 2013/2014

CNPq. ( ) SANTANDER ( ) RUSP (X) FFLCH ( )

Bolsista: Juliano Bonamigo Ferreira de Souza Orientador: Prof. Dr. Eduardo Brandão Departamento: Filosofia Nome do Projeto: Influências budistas no pensamento de Friedrich Nietzsche

São Paulo, julho de 2014

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SUMÁRIO

RELATÓRIO FINAL DO ALUNO

I. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3

II. Metodologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

III. Resultado final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

III.1. Culto ao nada: a recepção do budismo na Europa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8

III.2. Budismo versus cristianismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

III.3. Produção escrita: tradução de Nietzsche et le bouddhisme e apresentação no 21º SIICUSP . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

IV. Análises . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

V. Conclusão final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16

VI. Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

PARECER DO ORIENTADOR

VII. Apreciação do Orientador sobre o desempenho acadêmico do bolsista . . . . . . . . . . . 19

VIII. Apreciação do Orientador sobre a evolução do projeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

IX. Conclusão final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

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RELATÓRIO FINAL DO ALUNO

I. Introdução

Ao longo de toda a obra de Nietzsche perduram figuras que podem parecer estranhas a um

autor alemão do século XIX. Seus textos remetem — desde pelo menos O Nascimento da

Tragédia, de 1872 —, em não raros comentários, à doutrina budista e à figura de Buda,

sobretudo nos trechos em que Nietzsche aborda o cristianismo. O budismo1 — ficou

conhecido no dito ocidente2 — é a doutrina através da qual os ensinamentos de Buda são

interpretados e praticados por seus adeptos. Surgidos em uma Índia massivamente hinduista

no século VI a. C., na pessoa do príncipe Sakyamuni, esses ensinamentos sempre foram

referidos como fazendo parte de uma religião, e suas práticas sofreram uma miríade

inumerável de transformações na medida em que foram sendo conhecidas em outros

territórios, sobretudo em seu avanço pela Ásia, passando pela China e chegando até o Japão.

No ocidente, sabidamente marcado pela tradição filosófica herdada da antiguidade grega

e pela religiosidade judaico-cristã, esses ensinamentos vindos da Índia sempre foram

assimilados de maneira oblíqua e interpretados, nos mais das vezes, a partir de aporias

epistemológicas responsáveis por impedir um entendimento correto de tais doutrinas — seja

devido a contextos culturais completamente diversos, seja por certezas religiosas que, se não

impediam o entendimento do outro, traduziam-no, frequentemente, a partir de suas próprias

crenças. Não obstante a fenda traçada entre ocidente e oriente pela historiografia ocidental —

recurso epistemológico que, na melhor das hipóteses, serviu meramente para marcar uma linha

limítrofe, fabricando um nós e um eles (os outros) —, é preciso haver consciência de que os

atravessamentos culturais sempre foram constantes na história da humanidade. Aquilo que

nossa História das Ideias delimitou como sendo a Grécia Antiga sofreu, sabidamente,

influências culturais de outros povos e, mesmo antes de Diógenes Laércio, temos notícias a

1 O Buda — nomenclatura utilizada para qualificar O Iluminado, O Desperto — é como ficou conhecido o príncipe Gautama Sakyamuni, que na Índia do século VI a. C. abandonou o reino de seu pai para empreender uma busca espiritual. Tendo compreendido a natureza do mundo, dedicou o restante de seus dias ao ensinamento de sua experiência, constituindo aquilo que mais tarde ficou conhecido como budismo. Acerca de uma revisão histórica do budismo e de seu contexto, cf. ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. São Paulo: Palas Athenas, 2002 [1951]. 2 Aceitaremos aqui, por força de método, a divisão esquemática que separa ocidente e oriente. Assim, optamos por não complexificar esta questão de início, mesmo sabendo que a reflexão sobre ela é de extrema importância. Aceitar tal dicotomia torna mais acessível repertoriar e agrupar os textos críticos de comentadores sobre a questão Nietzsche e budismo, uma vez que esses também partilham de tal uso, para o bem ou para o mal.

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respeito das trocas imateriais entre os povos da região, que influenciavam-se mutuamente em

suas cosmovisões e pensamentos que, aqui, chamaremos de filosóficos.

Mais recentemente, na era moderna — ao menos desde o avanço vastamente

documentado de alguns países colonizadores da Europa — sabe-se que os jesuítas

portugueses travaram contato com as doutrinas religiosas e filosóficas do oriente e, segundo a

documentação legada, não as viram senão através de sua perspectiva cristã.3 Os hábitos ditos

ascéticos da Índia antiga, assim, foram vistos através de uma ótica invariavelmente ocidental

e por isso mesmo foram tratados com preconceito e ignorância.

Assim, diante desse panorama e dentro de um quadro de estudos da História e da

Historiografia das Ideias, parece pertinente perguntar-se de que maneira essas imagens e

doutrinas vindas do oriente marcaram o dito pensamento ocidental. É evidente que, ao longo da

história, esse entrelaçamento cristalizou certas raízes no subterrâneo dos sistemas filosóficos

ocidentais e, desde os textos gregos, as influências do pensamento oriental tiveram um espaço

na discussão das ideias, mesmo que nem sempre fiel à sua estrutura interna original.

Notadamente, foi no pensamento europeu do século XIX que, de maneira explícita, a Índia e o

budismo ganharam contornos mais consistentes e foram tratados não somente como

pensamento religioso, mas também como filosofia. Exemplos notáveis são — para listar apenas

alguns nomes da História da Filosofia — os trabalhos de Hegel4, Schopenhauer5 e Nietzsche,

sendo que este último foi, de maneira declarada, um dos pensadores que mais internalizou e

discutiu a doutrina budista em seus escritos. É sobre essa amálgama de pensamentos que nosso

trabalho pretendeu versar, dedicando-se estritamente à leitura que o pensador alemão Friedrich

Nietzsche fez do budismo ao longo de seus escritos, pensados e produzidos na Europa do final

do século XIX.6

3 VANDERHEYDE, Alphonse. Nietzsche et la pensée bouddhiste. Paris: L’Harmattan, 2007, p. 24. 4 Quanto à leitura que Hegel faz do pensamento oriental, dentro do movimento das ideias, ver: HEGEL, G. W. F., “Introdução à História da Filosofia”, in: coleção Os Pensadores Vol. XXX, São Paulo: Editora Abril, 1974, pp. 323-398. Ainda, sobre como sua leitura marcou outros trabalhos que vieram depois dele, ver: DRAGONETTI, Carmen & TOLA, Fernando. On the Myth of the opposition between Indian Thought and Western Philosophy. Hildesheim: Georg Olms Verlag AG, 2004, pp. 18-19. 5 “Quand il [Schopenhauer] élabore, à Dresde, de 1814 à 1818, Le Monde comme volonté et comme représentation, le mythe de la « renaissance orientale » est en plein essor. L’ouvrage — toute son œuvre, philosophiquement parlant, puisque ses autres livres ne font que le commenter, ou le vulgariser — en porte les traces.” (DROIT, Roger-Pol. L’oubli de l’Inde — Une amnésie philosophique. Paris: Éditions du Seuil, 2004, p. 168). 6 Charles Andler, comentador da vida e obra de Nietzsche, lançava em 1931 o livro Nietzsche, sua vida e seu pensamento. Na busca de influências budistas no pensamento de Nietzsche, o autor escrevera: “Não há crença religiosa que Nietzsche tenha estudado mais apaixonadamente do que o budismo.” (ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée. Tome II. Paris: Gallimard, 1979 [1931], p. 414).

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Este relatório final, aqui apresentado, intenta dar mostras dos caminhos e desvios

tomados por esta pesquisa que, realizada ao longo dos anos de 2013 e 2014 na qualidade de

uma iniciação científica, deteve-se não só na procura das influências budistas presentes no

engendramento do pensamento de Nietzsche, mas também no modo de sua apropriação pelo

autor, exercitando assim uma metodologia que julgamos adequada para o exercício da

História da Filosofia.

II. Metodologia

Uma das dificuldades mais presentes na exegese da obra de Friedrich Nietzsche é a forma

pela qual seu pensamento expressou-se. Rompendo com a escrita filosófica que marcou a

modernidade — de profunda coerência interna —, a obra de Nietzsche aparece em fragmentos

e, tal como a obra de Montaigne ou Pascal, realiza-se em partes separadas, que projetam-se

em muitas direções, passando por reflexões que nem sempre são coerentes entre si. Seus

escritos, como se sabe, apareceram sobretudo sob a forma de aforismos, mas sem que esses

fossem necessariamente desconexos ou isolados. Tal como o filósofo do futuro, que ele

descreve em um de seus trabalhos7, sua obra caracteriza-se por uma liberdade que tenta, a

todo o momento, fugir do dogmatismo, manifestando-se no aspecto experimental de seu

pensamento: um sistema em aforismos, um sentido que busca unidade através de uma miríade

de metamorfoses, nem sempre condizentes e ordenadas.8

Diante de tal obra, portanto, a busca por uma certa estrutura enquanto escolha

epistemológica mostra certo desconforto.9 Esse quadro agrava-se quando a intenção da

pesquisa é desvendar, tal como esta que se apresenta aqui, a genealogia de certos conceitos

dentro da obra de Nietzsche, explicitando o uso estratégico que este autor faz da doutrina

budista. Não obstante, há sempre múltiplas possibilidades de abordagem, tendo sido muitos os

trabalhos que, confrontados com esses universos tão distintos — o pensamento budista do

século VI a. C. e os escritos filosóficos nietzscheanos do século XIX —, optaram por uma

vereda comparativa em suas abordagens.

Estudos que adotam tal método sobre a filosofia nietzscheana são realizados pelo

menos desde 1890 — tendo início no Japão — e tentam traçar as semelhanças entre um

7 NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1886], § 42, p. 44. 8 LÖWITH, Karl. Nietzsche: philosophie de l’éternel retour du même. Paris: Hachette, 1998 [1958], p. 19. 9 BRÉHIER, Émile. La philosophie et son passé. Paris: PUF, 1950 [1940].

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pensamento de origem budista e a obra de Nietzsche.10 No ocidente esse tipo de aproximação

aconteceu somente em 1933, com a publicação do livro Nietzsche und der Buddhismus, do

alemão Max Ladner.11 Partidário de Wagner, Ladner revelava, entretanto, grande animosidade

em relação a Nietzsche e seu projeto teórico. Assim, ele limitava-se em pinçar passagens

desconexas da obra nietzscheana nas abordava-se o budismo, intentando mostrar com tal

método o quanto Nietzsche não havia compreendido os ensinamentos de Buda. Outro trabalho

importante, cujo método de abordagem foi comparativo, é o livro de Freny Mistry (Nietzsche

and Buddhism: Prolegomenon to a Comparative Study, 1981). Na esteira de Ladner, Mistry

tenta ressaltar a proximidade entre os antípodas Nietzsche e Buda, mostrando a importância

de um combate ao niilismo e uma tentativa de ultrapassamento da metafísica que estaria

presente em ambos os pensadores. De toda maneira, o trabalho de Mistry seguia uma linha

comparativa, visando mostrar as semelhanças estruturais em algumas posturas de Nietzsche e

mesmo em seus conceitos.12

Entretanto, verificar as interpretações de Nietzsche, julgando-as mais ou menos

corretas, não foi a linha metodológica que guiou o trabalho aqui relatado. Tomando um

caminho contrário àqueles apresentados acima, o que tentamos aqui foi colocar o pensamento

e a obra de Nietzsche em relação direta com as referências budistas de que ele fez uso,

discutindo assim não a verdade em suas afirmações, mas sim o modo através do qual ele leu

os textos orientais disponíveis na Europa do século XIX, construindo a partir deles uma figura

do budismo que serviu diretamente a um projeto de crítica do cristianismo e da decadência

cultural de seu tempo.

Isto posto, nosso trabalho realizou-se, grosso modo, em três etapas. Num primeiro

momento optamos por uma leitura panorâmica dos comentadores que trataram do tema

Nietzsche e o budismo, realizando assim um levantamento acerca dos comentários já

elaborados nessa área e travando contato com interpretações esclarecedoras, capazes de

apontar, de maneira direta ou não, as influências do budismo dentro do pensamento

nietzscheano e os usos que este faz de tal doutrina. Baseados em tais leituras, pudemos

identificar os trechos no interior da obra de Nietzsche em que há menção ao budismo e a

10 PARKES, Graham. “The Early Reception of Nietzsche’s Philosophy in Japan”, in: PARKES, Graham. Nietzsche and Asian Thought. Chicago: University of Chicago Press, 1991, pp. 177-199. 11 PARKES, Graham. “Nietzsche and Early Buddhism”, in: Philosophy East and West, v. 50, nº 2 (apr., 2000), pp. 254-267. 12 MISTRY, Freny. Nietzsche and Buddhism: Prolegomenon to a Comparative Study. Berlin / New York: W. de Gruyter, 1981.

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maneira pela qual eles são reivindicados. Nesta primeira etapa foram de fundamental

importância autores como Marcel Conche e Roger-Pol Droit. O primeiro deles, Conche, foi

responsável por uma conferência realizada em 1987 no College International de Philosophie,

na qual expõe tanto a visão negativa quanto a visão positiva que Nietzsche lança sobre a

doutrina budista. A tese fundamental de Conche destaca a sabedoria trágica da qual

Nietzsche lançara mão para opor-se à negação da vida, que ele via como centro da doutrina

budista e do cristianismo. Em contraposição a esta postura trágica nietzscheana, as religiões

não seriam mais do que sabedoria eufórica, ou seja, recurso último daqueles que, diante do

sofrimento que constitui a vida, tentariam amenizá-lo reduzindo suas atividades vitais.13 Além

disso Conche explora sobretudo trechos dos fragmentos póstumos da obra nietzscheana,

mostrando-se como uma importante referência na localização dos aforismos em que o autor

trata do budismo em trechos não publicados em vida.

Outro autor importante nessa primeira etapa do projeto foi Roger-Pol Droit.14 Seu

trabalho, ao descrever a história da penetração do pensamento budista na Europa, esclarece

como os filósofos ocidentais compreenderam o budismo e como o aproximaram, sobretudo no

século XIX, a uma religião pessimista, de quietude e negação da vida. Como este autor mostra,

essa foi uma leitura que tanto Schopenhauer quanto Nietzsche adotaram.15 Some-se a esses

importantes comentadores outros que tivemos a oportunidade de consultar e que, de maneira

mais ou menos destoante, partilham uma leitura similar. Esse primeiro contato foi importante

à título de introdução ao tema e propiciou um certo norte para esta pesquisa dentro do vasto

campo dos escritos de Nietzsche.

Num segundo momento, já munidos de algumas indicações esclarecedoras sobre a

localização de passagens pertinentes ao tema do budismo na obra de Nietzsche, pudemos

revisá-las e confrontá-las, sobretudo com alguns fragmentos póstumos do autor,

depreendendo daí pelo menos dois movimentos interessantes que se seguem,

cronologicamente, em seus escritos, a saber, o budismo como uma negação da vida (cf. item

III.1 deste relatório, p. 8), no qual há uma aproximação do budismo ao cristianismo — na

medida em que ambas as doutrinas opunham-se ao projeto de uma atitude trágica diante da

13 CONCHE, Marcel. Nietzsche et le bouddhisme. Paris: Encre marine, 2009 [1987], pp. 23-24. 14 DROIT, Roger-Pol. L’oubli de l’Inde — Une amnésie philosophique. Paris: Éditions du Seuil, 2004 [1989]; Le culte du néant — Les philosophes et le Bouddha. Paris: Éditions du Seuil, 2004 [1997]. 15 No item III.1 deste relatório abordaremos mais detalhadamente a leitura de negação da vida feita por Nietzsche.

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vida —, e um segundo movimento, no qual o budismo é relativamente dissociado do cristianismo

pelo fato de aquele não resulta em ressentimento (cf. item III.2 deste relatório, p. 11).

Por fim, tal como afirmávamos no Relatório Parcial do Aluno, entregue em março de

2014 (cf. Relatório Parcial do Aluno, item II.3, p. 10), pretendíamos, como fase posterior e

final, uma leitura extendida da obra de Nietzsche que pudesse cobri-la por inteiro e, assim,

desdobrar chaves de leituras que ultrapassassem as duas já citadas acima. Entretanto, dada a

amplitude de seus escritos e as variadas possibilidades interpretativas possibilitadas por sua

obra, preferimos, por fim, limitar a pesquisa a um recorte bastante específico, que aborda

principalmente as obras Genealogia da Moral (1887) e O Anticristo (escrito em 1888 e

publicado somente em 1895), além de algumas notas biográficas em Ecce Homo (escrito em

1888 e publicado em 1908) e de fragmentos póstumos que possibilitam uma análise mais

aprofundada das duas possibilidades de leitura nietzscheana acerca do budismo, tal como

citado anteriormente. Portanto, foi esse o pequeno universo circunscrito nesta pesquisa, cujo

método maior foi explorar sobretudo o texto nietzscheano e os modos pelos quais ele

engendra uma leitura do budismo relativa à epoca de seus escritos, optando assim por um

recorte metodológico que, em lugar de privilegiar uma vastidão de temas — tal como a

extensa obra de Nietzsche poderia demandar —, debruçou-se sobre um campo específico, mas

nem por isso menos vasto e esclarecedor.

III. Resultado final

Abordaremos aqui as duas chaves de leitura possíveis citadas no item anterior (cf. item II, p.

7). No primeiro item trataremos da recepção do budismo na Europa e da maneira através da

qual Nietzsche toma-o como doutrina da vontade de nada, que tende a enfraquecer a vontade

de potência e, por isso mesmo, é criticada pelo autor. No segundo item, abordaremos a

mudança que a leitura anterior sofre, mostrando a inflexão a partir da qual o budismo passa a

ser desenhado positivamente por seu caráter fisiológico e não punitivo do corpo, sempre em

relação ao cristianismo. Por fim, informaremos sobre algumas produções escritas realizadas

graças a esta pesquisa.

III.1. Culto ao nada: a recepção do budismo na Europa

Para Nietzsche, o budismo era um culto ao nada, uma vontade de nada que levava

somente à aniquilação. Reconstruir os argumentos dessa tese, entretanto, requer uma

9

compreensão tanto do entorno intelectual de Nietzsche quanto da tradição envolvida na

compreensão dos textos budistas na Europa do século XIX. Um dos responsáveis por essa

descrição do budismo como “culto ao nada” foi Eugène Burnouf, professor no College de

France desde 1832 e responsável pela primeira cadeira de sânscrito jamais criada na Europa.

Profundo conhecedor também do pali16, Burnouf publicara em 1844 um importante ensaio da

exegese sobre o budismo na Europa entitulado Introdução à história do Budismo indiano.17

Nessas páginas, ao definir o nirvana budista como um “aniquilamento completo”, no qual

ocorre “a destruição definitiva do corpo e da alma”, Burnouf marcou de forma crônica o

orientalismo europeu, que desde então não conseguiu ver no budismo senão um “culto ao

nada”.18 Paralelamente, também o filósofo Hegel via o nada [Nichts] como característica

principal da doutrina budista, e escrevia em suas Lições sobre a filosofia da religião, de 1827,

que “o homem deve fazer-se nada” e num aniquilamento [Vernichtung] constante de si, deve

voltar a um nada imóvel de onde tudo provém e para o qual tudo se dirige.19

Na esteira dessas leituras, Nietzsche reproduz em seus textos a tese de que o budismo

é uma vontade de nada, e desde os primeiros escritos a ideia de uma quietude e debilidade da

doutrina oriental já estavam presentes. É o caso, por exemplo, d’O Nascimento da Tragédia,

em que o budismo aparecia nos termos de uma negação do querer para servir como

contraposição à tragédia. Esta, por sua vez, seria uma atitude diante da vida que, segundo

Nietzsche, o homem grego teria colocado em marcha ao optar pela arte.20

16 O pali era a língua corrente nos tempos de Siddharta Gautama, príncipe que mais tarde atingira o estado de Buda. 17 BURNOUF, Eugène. Introduction à l’histoire du Buddhisme indien. Paris: Impr. royale, 1844 (utilizamos, para a análise de algumas passagens, a segunda edição de sua obra, publicada em 1876, também em Paris, pela Maisonneuve et Cie). 18 “[...] celui qui pratique pendant cette vie les devoirs de la morale et s’efforce d’arriver à la science peut un jour parvenir à l’état suprême de Buddha. Puis quand il a ainsi enseigné la loi, il entre dans le Nirvâna, c’est-à-dire dans l’anéantissement complet, où a lieu [...] la destruction définitive du corps et de l’âme.” (BURNOUF, Eugène. Introduction à l’histoire du Buddhisme indien. 2e éd. Paris: Maisonneuve et Cie, 1876, p. 97, grifo nosso). 19 “Der Mensch hat aus sich Nichts zu machen”; “Aus Nichts, heiszt es, sei alles hervorgangen, in Nichts gehe alles zurück” (Ambos os trechos encontram-se citados em DROIT, Roger-Pol. Le culte du néant — Les philosophes et le Bouddha. Paris: Éditions du Seuil, 2004 [1997], p. 94, grifo nosso. Da mesma forma, ambos foram retirados de HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Religion, éd. Walter Jaeschke, t. 2a. Hambourg: Felix Meiner, 1985, pp. 461-463). 20 “[...] o homem civilizado grego sente-se suspenso em presença do coro satírico; e o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza. [...] É nesse coro que se reconforta o heleno com o seu profundo sentido das coisas, tão singularmente apto ao mais terno e ao mais pesado sofrimento, ele que mirou com olhar cortante bem no meio da terrível ação destrutiva da assim chamada história universal, assim como da crueldade da natureza, e que corre o perigo de ansiar por uma negação budista do querer. Ele é salvo pela arte, e através da arte salva-se nele — a vida.” (NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [1872], §7, p. 52).

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Essa visão do budismo como um “quietismo”21 acompanhou Nietzsche desde então,

sendo no mais das vezes aproximada ao cristianismo devido a um adoecimento da vontade

partilhado por ambas as religiões. É em A Gaia Ciência (1882) que o alvo desse ataque ganha

nome próprio, e desde então toda a fraqueza decorrente dos ideais ascéticos dessas religiões

não cessa de ser uma característica comum, tanto do budismo quanto do cristianismo, contra a

qual o autor desfere seu verbo.22 O mesmo ocorre na Genealogia da Moral (1887): ali tratava-

se de denunciar os hábitos hostis partilhados pelas castas sacerdotais e suas respectivas

debilidades que, em ambas as religiões, propunham uma vontade de nada maléfica à toda a

vontade de vida. Assim, Nietzsche desvela o valor daquilo que ambas propõem como cura:

[...] mas o que foi por eles [sacerdotes] mesmos inventado como remédio para essa debilidade — não é preciso dizer que afinal demonstrou ser mil vezes mais perigoso, em seus efeitos ulteriores, do que a doença de que deveria curar? A própria humanidade sofre ainda os efeitos dessas veleidades de cura sacerdotais! Lembremos [...] por fim o muito compreensível enfado geral com a sua cura radical — o nada (ou Deus — o anseio de unio mystica com Deus é o anseio budista pelo Nada, pelo Nirvana — e nada mais!).23

Ora, na visão do autor, um anseio pelo nada é, no mínimo, um engodo perpetrado

pelas doutrinas ascéticas com vias a escapar do sofrimento do mundo. Ocorre, entretanto, que

dentro do projeto filosófico de Nietzsche, ansiar por um nada representa uma forma “radical

de extinção do querer, de diminuição de necessidades e declínio dos afetos.”24 Para Nietzsche,

como se sabe, o corpo assume um importante lugar dentro da filosofia e da atitude trágica

diante da vida, e o resultado prático disto é que toda a abstenção dos prazeres proporcionados

pelos sentidos é uma falta contra a vida. Assim, o autor acusa o budismo de considerar o

21 “Ao budismo falta a arte, daí o quietismo.” Fragments Postumes, vol. I, 1870-1871, 5[44], p. 233 (Doravante as referências aos fragmentos póstumos serão grafadas como F.P., seguidas do número do volume, fragmento e página, referindo-se sempre à edição Œuvres philosophiques complètes, em tradução francesa publicada pela Editora Gallimard). 22 “[...] o instinto de fraqueza que, é verdade, não cria religiões, metafísicas, convicções de todo tipo — mas as conserva. O fato é que de todos esses sistemas positivistas desprendem-se os vapores de um certo abatimento pessimista, algo de cansaço, fatalismo, decepção, temor de nova decepção — ou então [...] o que mais houver de sintomas ou mascaradas do sentimento de fraqueza. [...] A fé sempre é mais desejada, mais urgentemente necessitada, quando falta a vontade: pois a vontade é, enquanto afeto de comando, o decisivo emblema da soberania e da força. [...] De onde se concluiria, talvez, que as duas religiões mundiais, o budismo e o cristianismo, podem dever sua origem, e mais ainda a súbita propagação, a um enorme adoecimento da vontade. E assim foi na verdade: ambas as religiões depararam com a exigência de um “tu deves”, alçada até o absurdo pelo adoecimento da vontade e indo até o desespero.” (NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1882], Livro V, §347, pp. 240-241). 23 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 [1887], Primeira dissertação, §6, pp. 21-22. 24 WOTLING, Patrick. Nietzsche e o problema da civilização, p. 355.

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mundo dos prazeres como uma ilusão, na medida em que — segundo a leitura nietzscheana

— o budismo responde ao sofrimento do mundo com uma tentativa total de aniquilação e

apaziguamento dos sentidos. Toda doutrina que não vê nenhuma felicidade na ilusão é

fundamentalmente oposta à filosofia de Nietzsche, para a qual ilusão é necessária na tragédia

grega: a perspectiva nietzscheana, ao ver a tragédia como uma alegria de viver (o sofrimento

não é mais visto como uma abominação), acaba por relegar à doutrina de Buda a alcunha de

“aspiração do nada”: uma recusa do prazer e do sofrimento.

Desta forma, parece haver uma continuidade por parte de Nietzsche em relação à sua

maneira de ler a doutrina budista, que já se encontrava anunciada desde os escritos

contemporâneos de Nascimento da Tragédia, na qual Nietzsche opunha o budismo como uma

ameaça e antítese à vida trágica: “A tragédia deve nos salvar do budismo.”, dizia ele então.25

Essa oposição estratégica reforçava a necessidade da força e do conflito, da ação em vez da

quietude, da guerra em lugar da paz anestesiante.26 Nietzsche fez a escolha da tragédia face ao

budismo e à sua apavorante aniquilação do querer, uma escolha em privilegiar até o fim de

seus escritos uma vontade de potência, de vida, em lugar de uma aspiração ao nada.27

III.2. Budismo versus cristianismo

Tal como pudemos constatar, o enfraquecimento da vontade é uma das causas

constantes do ataque que Nietzsche faz ao budismo e ao cristianismo. De todo modo, há uma

nuance interessante em seus textos finais que poderia ser descrita como uma certa inflexão, na

qual a aproximação imediata entre budismo e cristianismo é revista. Assim, segundo o

comentador Marcel Conche, ao indagar a obra de Nietzsche e sua leitura do budismo

constata-se um câmbio de perspectiva por parte do autor, que oscila de acordo com aquilo que

lhe convém, de modo que haveria assim duas possibilidades de interpretação da doutrina

oriental: a primeira, dita direta, lança sobre o budismo um veredito negativo, vendo-o como

um “niilismo, um sintoma da fadiga de viver”; a segunda, que se poderia nomear oblíqua,

realiza-se “por reflexão ao cristianismo”, movimento através do qual o budismo seria um

“bom” cristianismo.28

25 F.P. I, printemps-automne 1871, 13 [2], p. 439. 26 “Vers Rome ou vers l’Inde.” (F.P. I, printemps-automne 1871, 13 [2], p. 441). 27 F.P. XIV, printemps 1888, 14 [123], p. 93. 28 CONCHE, Marcel. Nietzsche et le bouddhisme. Paris: Encre marine, 2009 [1987], pp. 27-28 (Realizamos a tradução integral desta pequena obra, como já informado no Relatório Parcial do Aluno, item III.1, redigido em março de 2014. Nossa espectativa é a de que ela possa ser publicizada tão logo tenhamos uma autorização da

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Uma vez mais, é o aspecto niilista que permite tal oscilação, e essa variação de leitura

é justamente decorrente de uma pluralidade de definições do conceito de niilismo dentro da

obra do próprio Nietzsche: se as religiões engendram um mecanismo niilista diante da vida,

negando-a, elas têm, entretanto, maneiras diferentes de fazê-lo, e é nesse ponto que se pode

detectar uma mudança na abordagem nietzscheana do budismo. De maneira geral, tal como

definira Nietzsche em 1887, o niilismo significa uma desvalorização dos valores superiores29,

mesmo que tal desvalorização e enfraquecimento dos valores possa conter em si formas e

procedimentos distintos. Assim, haveria um niilismo ativo (que caberia ao cristianismo), mas

também um niilismo passivo (próprio ao budismo) que, ainda segundo Nietzsche, “já não

ataca”. Mas aonde esta distinção poderia levar, se ambas as religiões seguem, sob a ótica de

Nietzsche, como religiões do niilismo? É justamente o caráter ativo ou passivo de uma ou de

outra que, sob esta nova perspectiva, as faz tão diferentes. Esse movimento dissociativo pode

ser claramente visto em O Anticristo (composto em 1888, mas publicado somente em 1895),

obra na qual tratava-se de marcar bem a distinção entre ambas as religiões da décadence.30

Neste livro o budismo não deixa de ser um exemplo de niilismo, mas torna-se uma espécie de

aliado estratégico que Nietzsche engendra para contrapor ao cristianismo. A tese proposta era

a de que o budismo seria uma religião realista: ela aceita o sofrimento do mundo e prefere

combatê-lo a combater o pecado, tal como faz o cristianismo.

A construção argumentativa que Nietzsche sustenta em O Anticristo é a de que o

budismo tem como princípio dois dados do campo estritamente fisiológico: os budistas crêem,

segundo ele, não somente em uma enorme excitabilidade [eine übergrosse Reizbarkeit] —

responsável por uma refinada suscetibilidade à dor — e uma hiper-cerebralidade, responsável

por manter os budistas tão às voltas com processos lógicos e abstratos, que isso os levou a

uma impessoalidade. Assim, a crença nestas duas naturezas fisiológicas, que são a

particularidade mesma do budismo, deflagariam a depressão decorrente de tais condições dos

editora francesa para tanto, uma vez que a discussão nela contida pode contribuir para o debate sobre Nietzsche em língua portuguesa). 29 “O que significa o niilismo? Que os valores superiores se desvalorizam.” (KSA 13, 9 [35], outono de 1887). 30 “Com minha condenação do cristianismo não quero ser injusto com uma religião a ele aparentada [...]: o budismo. As duas são próximas por serem religiões niilistas — religiões de décadence —, mas as duas se diferenciam de modo bastante notável. [...] O budismo é mil vezes mais realista do que o cristianismo — ele carrega a herança da colocação fria e objetiva dos problemas, ele vem após séculos de contínuo movimento filosófico, o conceito de “deus” já foi abolido quando ele surge. O budismo é a única religião realmente positivista que a história tem a nos mostrar, até mesmo em sua teoria do conhecimento (um rigoroso fenomenalismo), ele já não fala em “combater o pecado”, mas sim, fazendo inteira justiça à realidade, em

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homens. Sua principal diferença em relação ao cristianismo, entretanto, não repousa aí, mas

na conduta adotada pelo budismo diante de tais fatos: este age de maneira higiênica.31 Isso

quer dizer, em outras palavras, que sua postura frente ao sofrimento é a antítese mesma do

ressentimento cristão: se por um lado o budismo procura apaziguar o sofrimento a partir da

compreensão da irritabilidade e da sensibilidade, propondo uma ação voltada para o próprio

corpo, por outro lado o hábito do cristianismo, o ressentimento, age pela vingança, pela

aversão contra aqueles que pensam diferentemente, negando a vida e a auto-afirmação e

mostrando-se, assim, como antítese mesma de uma moral nobre.32 Colocado em outros

termos, o budismo propõe uma volta aos indivíduos, numa tomada de hábitos higienistas que

visam apenas a si, a cada indivído, ao passo que o cristianismo lança o julgamento e a culpa

para todos os demais à sua volta.

Assim, ao aceitar a natureza dolorosa da vida, o budismo não cria para si demônios

capazes de justifiar o sofrimento ou o pecado, criando assim um atrás-do-mundo. Ao

contrário: ela age sobre o corpo doente, sem construir-lhes um falso sentido para a origem de

seu sofrimento. A natureza nobre que esta perspectiva adotada por Nietzsche deu ao budismo

é confirmada em Ecce homo (1888), obra a partir da qual é possível concluir que a inflexão de

que estamos tratando aqui acompanhou o pensamento do autor até seus últimos escritos. Lá o

autor dizia: [...] nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido — para os exaustos é esta certamente a forma mais nociva de reação: produz um rápido consumo de energia nervosa, um aumento doentio de secreções prejudiciais, de bílis no estômago, por exemplo. O ressentimento é o proibido em si para o doente — seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação. — Isso compreendeu aquele profundo fisiólogo que foi Buda. Sua “religião”, que se poderia designar mais corretamente como uma higiene, para não confundi-la com coisas lastimáveis

‘combater o sofrimento’.” (NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [1888], §20, p. 24-25). 31 “A partir dessas condições fisiológicas surge uma depressão, contra a qual Buda procede higienicamente. [...] nenhuma preocupação, consigo ou com outras pessoas. [...] não solicita que se combata os que pensam diferentemente; não há nada a que sua doutrina mais se oponha do que ao sentimento de vingança, de aversão, de ressentiment [...].” (Idem). 32 “No cristianismo, os instintos dos sujeitados e oprimidos vêm ao primeiro plano [...]. Nele a casuística do pecado, a autocrítica, a inquisição da consciência é praticada como ocupação, como remédio para o tédio; nele o afeto em relação a um poderoso, chamado “Deus”, é continuamente sustentado (mediante a oração); [...] Nele o corpo é desprezado, a higiene é repudiada como sensualidade; [...] É cristão um determinado senso de crueldade, contra si mesmo e os outros; o ódio aos que pensam diferentemente; a vontade de perseguir.” (Ibidem, §21, p. 26).

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como o cristianismo, fazia depender sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar a alma dele — primeiro passo para a convalescença.33

A diferença fundamental entre ambos os niilismos, portanto, está em sua relação com

o corpo. O budismo evita toda a reação, toda a vingança — daí sua recusa da ação.34 Mas se

esta perspectiva fica clara nos últimos escritos de Nietzsche, tambouco ela se cristaliza como

a única via interpretativa: a possibilidade de vê-lo como enfraquecimento da vontade,

apresentada no item anterior, segue como fatual e paralela. O paradoxal é constatar, com

Nietzsche, que se por um lado o budismo é responsável, sim, por tal enfraquecimento da

vontade de potência, por outro, tal como relatamos nesta segunda parte, ele também é capaz,

dentro da interpretação nietzscheana, de realizar-se enquanto terapia, hábito corporal que

evita, por sua vez, o declínio das forças.

III.3. Produção escrita: tradução de Nietzsche et le bouddhisme e apresentação no 21º SIICUSP

Uma das primeiras atividades à qual nos dedicamos, quando do início desta pesquisa,

foi a aquisição e tradução do seminário de Marcel Conche, apresentado em 1987 e que mais

tarde seria publicado sob o título de Nietzsche et le bouddhisme.35 Tratava-se de uma

conferência dada no mesmo ano no College International de Philosophie em que Conche

aborda, com vasto uso de referências, ligações possíveis entre a doutrina budista e os escritos

de Nietzsche. Realizada a tradução, cogitamos atualmente a possibilidade de torná-la pública

assim que uma adequada autorização de sua editora de origem for lograda.

Além da tradução de Marcel Conche, o andamento desta pesquisa nos permitiu

realizar uma apresentação no 21º Seminário Internacional de Iniciação Científica da USP, em

outrubro de 2013, com um trabalho cujo nome é o mesmo deste projeto e que descrevia, em

linhas gerais, seu andamento e alguns resultados obtidos até então.

33 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011 [1888], Por que sou tão sábio, §6, p. 28. 34 WOTLING, Patrick. Op. cit., p. 363. 35 Trata-se de uma conferência realizada por Marcel Conche no College International de Philosophie em Paris, no dia 29 de abril de 1987, nos seminários de Roger-Pol Droit, cujo título era Silence et paroles bouddhiques [Silêncios e palavras búdicas]. Foi originalmente publicado em Cahiers du Collège de Philosophie, n˚ 4, Paris, Éditions Osiries, novembro de 1987. A versão por nós traduzida, entretanto, foi retirada de Nietzsche et le Bouddhisme. Paris: Éditions Les Belles Lettres, collection « encre marine », 2009.

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IV. Análises

Nesta pesquisa pensamos ter podido traçar, com um mínimo de clareza, um recorte ao longo

da vasta obra de Nietzsche. O corpo de textos nietzscheanos encontra-se hoje disponível à

exegese em edições minuciosamente coligidas que, em sua ordem, talvez não representem a

fundo as intenções do autor ao escrevê-las. Isso significa que, para uma interpretação

contemporânea da obra de Nietzsche, é preciso ler excertos publicados e resíduos de textos

não publicados ou catalogados post mortem, implicando assim uma abordagem que

reconfigura, em alguma medida, a intenção primeira do autor, ou uma certa ideia de intenção

que o autor pudesse ter quando da produção de seus próprios escritos.

É sempre aporética, portanto, a proposta de reconstruir, em exercício interpretativo, as

razões originais de um autor, que neste caso se trata de Nietzsche. Mesmo diante de tais

dificuldades, foi possível redesenhar um caminho que já se encontrava presente nos textos

publicados de Nietzsche e que tornou-se, mais claro, na medida em que seus comentadores

puderam ter acesso a outros escritos até então desconhecidos.

A abordagem que Nietzsche faz do budismo é, certamente, uma abordagem possível a

um europeu do século XIX. Qualquer outra leitura, mais fiel, só seria possível a partir do seio

mesmo daquela cultura, em sua língua e fundamentada em suas categorias. Isso quer dizer, no

limite, que a condição epistemológica na qual um autor como Nietzsche encontrava-se

encerrado era aquela que os avanços de sua época podiam proporcionar-lhe, com todos os

desvios e erros que isso possa incluir. Assim, seu conhecimento da doutrina budista é possível

somente porque antes dele houve uma série de avanços no campo da tradição e dos estudos

orientalistas. O próprio Nietzsche fora amigo de Paul Deussen, que anos após sua juventude

torara-se um importante indólogo no meio acadêmico alemão.

Portanto, seria impossível exigir de nosso autor que fugisse aos enganos que uma

leitura intercultural traz em seu bojo. Ainda: seu objetivo não era esse. Pensamos ter ficado

claro, ao longo dessa pesquisa, que a intenção de Nietzsche sempre foi fazer uso de um

pensamento budista, não necessariamente comentá-lo com a fidelidade e certeza que só seria

possível a um estudioso direto da linhagem de estudos budistas, com profundos

conhecimentos não só da língua pali e do sânscrito, mas do universo cultural indiano. A

intenção de Nietzsche, nos parece, era estratégica: fora preciso lançar mão de uma outra

crítica cultural — na medida em que o budismo revolucionara o século VI a. C. na Índia, com

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sua completa transvaloração frente ao hinduísmo — para construir sua própria crítica em

relação aos valores da cultura do século XIX, sobretudo européia.

Com a intenção, tomada de antemão, de nos reter sobre o texto nietzscheano,

acreditamos que essa impossibilidade tradutiva entre culturas não tenha sido um problema:

não tratava-se de julgar os erros ou acertos do autor frente a uma tradição religiosa de muitos

séculos e de muitas escolas. Tratava-se sim, durante toda essa pesquisa, de reconstruir os

argumentos de um pensador cuja importância para a História da Filosofia é inegável.

V. Conclusão final

Procuramos recontar neste relatório o percurso desafiante de nossa pesquisa do último

ano. Intencionávamos, como já foi mencionado, compreender o estatuto do budismo dentro

dos escritos filosóficos de Nietzsche, buscando saber de que forma o autor utilizava os

preceitos de tal doutrina para pensar sua própria cultura e a religião que, em grande medida, a

conduzia e a vem conduzindo.

O antagonismo em relação ao corpo e à vida que, segundo Nietzsche, acompanha tanto

o budismo quanto o cristianismo, é abordado através de suas discussão do niilismo,

atravessando toda a sua obra. Essa pesquisa possibilitou e exigiu, assim, um confronto

prolongado com os textos e o exercício de interpretação do filósofo, destacando de suas

proposições aspectos que, se de um lado lançavam severas críticas quanto ao enfraquecimento

da vontade imposto pelas maiores religiões do mundo, por outro sabiam ver o que em uma

delas era salutar não só em relação à outra — o tão atacado cristianismo de Paulo —, mas

para a própria ideia de revalorização de Nietzsche.

Assim, propusêmo-nos em retraçar por quais vias Nietzsche construiu um pensamento

ousado, penetrando os meandros da história para explicar seu presente e formulando, a partir

de elementos externos, tais como o budismo, uma filosofia instigante e profícua, mesmo

extemporânea, que ajudou e tem ajudado na compreensão da formação e da cristalização de

nossa cultura. Acreditamos que a possibilidade em dedicarmo-nos a esse período de pesquisa

foi edificante para nossa formação em História da Filosofia, não somente pelo contato direto

que nos proporcionou com a matéria textual de nosso fazer cotidiano, mas sobretudo porque

nos permitiu a oportunidade de ensaiar um pensamento especulativo e crítico.

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VI. Referências

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ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. 5ª edição. São Paulo: Palas Athena, 2002 [1951].

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PARECER DO ORIENTADOR

VII. Apreciação do Orientador sobre o desempenho acadêmico do bolsista

VIII. Apreciação do Orientador sobre a evolução do Projeto

IX. Conclusão final

São Paulo, 25 de julho de 2014

Nome do Orientador: Eduardo Brandão

Nome do Aluno: Juliano Bonamigo Ferreira de Souza