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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
RELATÓRIO FINAL DO ALUNO E PARECER DO ORIENTADOR
BOLSA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA — 2013/2014
CNPq. ( ) SANTANDER ( ) RUSP (X) FFLCH ( )
Bolsista: Juliano Bonamigo Ferreira de Souza Orientador: Prof. Dr. Eduardo Brandão Departamento: Filosofia Nome do Projeto: Influências budistas no pensamento de Friedrich Nietzsche
São Paulo, julho de 2014
2
SUMÁRIO
RELATÓRIO FINAL DO ALUNO
I. Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
II. Metodologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
III. Resultado final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
III.1. Culto ao nada: a recepção do budismo na Europa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
III.2. Budismo versus cristianismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
III.3. Produção escrita: tradução de Nietzsche et le bouddhisme e apresentação no 21º SIICUSP . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
IV. Análises . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
V. Conclusão final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16
VI. Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
PARECER DO ORIENTADOR
VII. Apreciação do Orientador sobre o desempenho acadêmico do bolsista . . . . . . . . . . . 19
VIII. Apreciação do Orientador sobre a evolução do projeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
IX. Conclusão final . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
3
RELATÓRIO FINAL DO ALUNO
I. Introdução
Ao longo de toda a obra de Nietzsche perduram figuras que podem parecer estranhas a um
autor alemão do século XIX. Seus textos remetem — desde pelo menos O Nascimento da
Tragédia, de 1872 —, em não raros comentários, à doutrina budista e à figura de Buda,
sobretudo nos trechos em que Nietzsche aborda o cristianismo. O budismo1 — ficou
conhecido no dito ocidente2 — é a doutrina através da qual os ensinamentos de Buda são
interpretados e praticados por seus adeptos. Surgidos em uma Índia massivamente hinduista
no século VI a. C., na pessoa do príncipe Sakyamuni, esses ensinamentos sempre foram
referidos como fazendo parte de uma religião, e suas práticas sofreram uma miríade
inumerável de transformações na medida em que foram sendo conhecidas em outros
territórios, sobretudo em seu avanço pela Ásia, passando pela China e chegando até o Japão.
No ocidente, sabidamente marcado pela tradição filosófica herdada da antiguidade grega
e pela religiosidade judaico-cristã, esses ensinamentos vindos da Índia sempre foram
assimilados de maneira oblíqua e interpretados, nos mais das vezes, a partir de aporias
epistemológicas responsáveis por impedir um entendimento correto de tais doutrinas — seja
devido a contextos culturais completamente diversos, seja por certezas religiosas que, se não
impediam o entendimento do outro, traduziam-no, frequentemente, a partir de suas próprias
crenças. Não obstante a fenda traçada entre ocidente e oriente pela historiografia ocidental —
recurso epistemológico que, na melhor das hipóteses, serviu meramente para marcar uma linha
limítrofe, fabricando um nós e um eles (os outros) —, é preciso haver consciência de que os
atravessamentos culturais sempre foram constantes na história da humanidade. Aquilo que
nossa História das Ideias delimitou como sendo a Grécia Antiga sofreu, sabidamente,
influências culturais de outros povos e, mesmo antes de Diógenes Laércio, temos notícias a
1 O Buda — nomenclatura utilizada para qualificar O Iluminado, O Desperto — é como ficou conhecido o príncipe Gautama Sakyamuni, que na Índia do século VI a. C. abandonou o reino de seu pai para empreender uma busca espiritual. Tendo compreendido a natureza do mundo, dedicou o restante de seus dias ao ensinamento de sua experiência, constituindo aquilo que mais tarde ficou conhecido como budismo. Acerca de uma revisão histórica do budismo e de seu contexto, cf. ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. São Paulo: Palas Athenas, 2002 [1951]. 2 Aceitaremos aqui, por força de método, a divisão esquemática que separa ocidente e oriente. Assim, optamos por não complexificar esta questão de início, mesmo sabendo que a reflexão sobre ela é de extrema importância. Aceitar tal dicotomia torna mais acessível repertoriar e agrupar os textos críticos de comentadores sobre a questão Nietzsche e budismo, uma vez que esses também partilham de tal uso, para o bem ou para o mal.
4
respeito das trocas imateriais entre os povos da região, que influenciavam-se mutuamente em
suas cosmovisões e pensamentos que, aqui, chamaremos de filosóficos.
Mais recentemente, na era moderna — ao menos desde o avanço vastamente
documentado de alguns países colonizadores da Europa — sabe-se que os jesuítas
portugueses travaram contato com as doutrinas religiosas e filosóficas do oriente e, segundo a
documentação legada, não as viram senão através de sua perspectiva cristã.3 Os hábitos ditos
ascéticos da Índia antiga, assim, foram vistos através de uma ótica invariavelmente ocidental
e por isso mesmo foram tratados com preconceito e ignorância.
Assim, diante desse panorama e dentro de um quadro de estudos da História e da
Historiografia das Ideias, parece pertinente perguntar-se de que maneira essas imagens e
doutrinas vindas do oriente marcaram o dito pensamento ocidental. É evidente que, ao longo da
história, esse entrelaçamento cristalizou certas raízes no subterrâneo dos sistemas filosóficos
ocidentais e, desde os textos gregos, as influências do pensamento oriental tiveram um espaço
na discussão das ideias, mesmo que nem sempre fiel à sua estrutura interna original.
Notadamente, foi no pensamento europeu do século XIX que, de maneira explícita, a Índia e o
budismo ganharam contornos mais consistentes e foram tratados não somente como
pensamento religioso, mas também como filosofia. Exemplos notáveis são — para listar apenas
alguns nomes da História da Filosofia — os trabalhos de Hegel4, Schopenhauer5 e Nietzsche,
sendo que este último foi, de maneira declarada, um dos pensadores que mais internalizou e
discutiu a doutrina budista em seus escritos. É sobre essa amálgama de pensamentos que nosso
trabalho pretendeu versar, dedicando-se estritamente à leitura que o pensador alemão Friedrich
Nietzsche fez do budismo ao longo de seus escritos, pensados e produzidos na Europa do final
do século XIX.6
3 VANDERHEYDE, Alphonse. Nietzsche et la pensée bouddhiste. Paris: L’Harmattan, 2007, p. 24. 4 Quanto à leitura que Hegel faz do pensamento oriental, dentro do movimento das ideias, ver: HEGEL, G. W. F., “Introdução à História da Filosofia”, in: coleção Os Pensadores Vol. XXX, São Paulo: Editora Abril, 1974, pp. 323-398. Ainda, sobre como sua leitura marcou outros trabalhos que vieram depois dele, ver: DRAGONETTI, Carmen & TOLA, Fernando. On the Myth of the opposition between Indian Thought and Western Philosophy. Hildesheim: Georg Olms Verlag AG, 2004, pp. 18-19. 5 “Quand il [Schopenhauer] élabore, à Dresde, de 1814 à 1818, Le Monde comme volonté et comme représentation, le mythe de la « renaissance orientale » est en plein essor. L’ouvrage — toute son œuvre, philosophiquement parlant, puisque ses autres livres ne font que le commenter, ou le vulgariser — en porte les traces.” (DROIT, Roger-Pol. L’oubli de l’Inde — Une amnésie philosophique. Paris: Éditions du Seuil, 2004, p. 168). 6 Charles Andler, comentador da vida e obra de Nietzsche, lançava em 1931 o livro Nietzsche, sua vida e seu pensamento. Na busca de influências budistas no pensamento de Nietzsche, o autor escrevera: “Não há crença religiosa que Nietzsche tenha estudado mais apaixonadamente do que o budismo.” (ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée. Tome II. Paris: Gallimard, 1979 [1931], p. 414).
5
Este relatório final, aqui apresentado, intenta dar mostras dos caminhos e desvios
tomados por esta pesquisa que, realizada ao longo dos anos de 2013 e 2014 na qualidade de
uma iniciação científica, deteve-se não só na procura das influências budistas presentes no
engendramento do pensamento de Nietzsche, mas também no modo de sua apropriação pelo
autor, exercitando assim uma metodologia que julgamos adequada para o exercício da
História da Filosofia.
II. Metodologia
Uma das dificuldades mais presentes na exegese da obra de Friedrich Nietzsche é a forma
pela qual seu pensamento expressou-se. Rompendo com a escrita filosófica que marcou a
modernidade — de profunda coerência interna —, a obra de Nietzsche aparece em fragmentos
e, tal como a obra de Montaigne ou Pascal, realiza-se em partes separadas, que projetam-se
em muitas direções, passando por reflexões que nem sempre são coerentes entre si. Seus
escritos, como se sabe, apareceram sobretudo sob a forma de aforismos, mas sem que esses
fossem necessariamente desconexos ou isolados. Tal como o filósofo do futuro, que ele
descreve em um de seus trabalhos7, sua obra caracteriza-se por uma liberdade que tenta, a
todo o momento, fugir do dogmatismo, manifestando-se no aspecto experimental de seu
pensamento: um sistema em aforismos, um sentido que busca unidade através de uma miríade
de metamorfoses, nem sempre condizentes e ordenadas.8
Diante de tal obra, portanto, a busca por uma certa estrutura enquanto escolha
epistemológica mostra certo desconforto.9 Esse quadro agrava-se quando a intenção da
pesquisa é desvendar, tal como esta que se apresenta aqui, a genealogia de certos conceitos
dentro da obra de Nietzsche, explicitando o uso estratégico que este autor faz da doutrina
budista. Não obstante, há sempre múltiplas possibilidades de abordagem, tendo sido muitos os
trabalhos que, confrontados com esses universos tão distintos — o pensamento budista do
século VI a. C. e os escritos filosóficos nietzscheanos do século XIX —, optaram por uma
vereda comparativa em suas abordagens.
Estudos que adotam tal método sobre a filosofia nietzscheana são realizados pelo
menos desde 1890 — tendo início no Japão — e tentam traçar as semelhanças entre um
7 NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2005 [1886], § 42, p. 44. 8 LÖWITH, Karl. Nietzsche: philosophie de l’éternel retour du même. Paris: Hachette, 1998 [1958], p. 19. 9 BRÉHIER, Émile. La philosophie et son passé. Paris: PUF, 1950 [1940].
6
pensamento de origem budista e a obra de Nietzsche.10 No ocidente esse tipo de aproximação
aconteceu somente em 1933, com a publicação do livro Nietzsche und der Buddhismus, do
alemão Max Ladner.11 Partidário de Wagner, Ladner revelava, entretanto, grande animosidade
em relação a Nietzsche e seu projeto teórico. Assim, ele limitava-se em pinçar passagens
desconexas da obra nietzscheana nas abordava-se o budismo, intentando mostrar com tal
método o quanto Nietzsche não havia compreendido os ensinamentos de Buda. Outro trabalho
importante, cujo método de abordagem foi comparativo, é o livro de Freny Mistry (Nietzsche
and Buddhism: Prolegomenon to a Comparative Study, 1981). Na esteira de Ladner, Mistry
tenta ressaltar a proximidade entre os antípodas Nietzsche e Buda, mostrando a importância
de um combate ao niilismo e uma tentativa de ultrapassamento da metafísica que estaria
presente em ambos os pensadores. De toda maneira, o trabalho de Mistry seguia uma linha
comparativa, visando mostrar as semelhanças estruturais em algumas posturas de Nietzsche e
mesmo em seus conceitos.12
Entretanto, verificar as interpretações de Nietzsche, julgando-as mais ou menos
corretas, não foi a linha metodológica que guiou o trabalho aqui relatado. Tomando um
caminho contrário àqueles apresentados acima, o que tentamos aqui foi colocar o pensamento
e a obra de Nietzsche em relação direta com as referências budistas de que ele fez uso,
discutindo assim não a verdade em suas afirmações, mas sim o modo através do qual ele leu
os textos orientais disponíveis na Europa do século XIX, construindo a partir deles uma figura
do budismo que serviu diretamente a um projeto de crítica do cristianismo e da decadência
cultural de seu tempo.
Isto posto, nosso trabalho realizou-se, grosso modo, em três etapas. Num primeiro
momento optamos por uma leitura panorâmica dos comentadores que trataram do tema
Nietzsche e o budismo, realizando assim um levantamento acerca dos comentários já
elaborados nessa área e travando contato com interpretações esclarecedoras, capazes de
apontar, de maneira direta ou não, as influências do budismo dentro do pensamento
nietzscheano e os usos que este faz de tal doutrina. Baseados em tais leituras, pudemos
identificar os trechos no interior da obra de Nietzsche em que há menção ao budismo e a
10 PARKES, Graham. “The Early Reception of Nietzsche’s Philosophy in Japan”, in: PARKES, Graham. Nietzsche and Asian Thought. Chicago: University of Chicago Press, 1991, pp. 177-199. 11 PARKES, Graham. “Nietzsche and Early Buddhism”, in: Philosophy East and West, v. 50, nº 2 (apr., 2000), pp. 254-267. 12 MISTRY, Freny. Nietzsche and Buddhism: Prolegomenon to a Comparative Study. Berlin / New York: W. de Gruyter, 1981.
7
maneira pela qual eles são reivindicados. Nesta primeira etapa foram de fundamental
importância autores como Marcel Conche e Roger-Pol Droit. O primeiro deles, Conche, foi
responsável por uma conferência realizada em 1987 no College International de Philosophie,
na qual expõe tanto a visão negativa quanto a visão positiva que Nietzsche lança sobre a
doutrina budista. A tese fundamental de Conche destaca a sabedoria trágica da qual
Nietzsche lançara mão para opor-se à negação da vida, que ele via como centro da doutrina
budista e do cristianismo. Em contraposição a esta postura trágica nietzscheana, as religiões
não seriam mais do que sabedoria eufórica, ou seja, recurso último daqueles que, diante do
sofrimento que constitui a vida, tentariam amenizá-lo reduzindo suas atividades vitais.13 Além
disso Conche explora sobretudo trechos dos fragmentos póstumos da obra nietzscheana,
mostrando-se como uma importante referência na localização dos aforismos em que o autor
trata do budismo em trechos não publicados em vida.
Outro autor importante nessa primeira etapa do projeto foi Roger-Pol Droit.14 Seu
trabalho, ao descrever a história da penetração do pensamento budista na Europa, esclarece
como os filósofos ocidentais compreenderam o budismo e como o aproximaram, sobretudo no
século XIX, a uma religião pessimista, de quietude e negação da vida. Como este autor mostra,
essa foi uma leitura que tanto Schopenhauer quanto Nietzsche adotaram.15 Some-se a esses
importantes comentadores outros que tivemos a oportunidade de consultar e que, de maneira
mais ou menos destoante, partilham uma leitura similar. Esse primeiro contato foi importante
à título de introdução ao tema e propiciou um certo norte para esta pesquisa dentro do vasto
campo dos escritos de Nietzsche.
Num segundo momento, já munidos de algumas indicações esclarecedoras sobre a
localização de passagens pertinentes ao tema do budismo na obra de Nietzsche, pudemos
revisá-las e confrontá-las, sobretudo com alguns fragmentos póstumos do autor,
depreendendo daí pelo menos dois movimentos interessantes que se seguem,
cronologicamente, em seus escritos, a saber, o budismo como uma negação da vida (cf. item
III.1 deste relatório, p. 8), no qual há uma aproximação do budismo ao cristianismo — na
medida em que ambas as doutrinas opunham-se ao projeto de uma atitude trágica diante da
13 CONCHE, Marcel. Nietzsche et le bouddhisme. Paris: Encre marine, 2009 [1987], pp. 23-24. 14 DROIT, Roger-Pol. L’oubli de l’Inde — Une amnésie philosophique. Paris: Éditions du Seuil, 2004 [1989]; Le culte du néant — Les philosophes et le Bouddha. Paris: Éditions du Seuil, 2004 [1997]. 15 No item III.1 deste relatório abordaremos mais detalhadamente a leitura de negação da vida feita por Nietzsche.
8
vida —, e um segundo movimento, no qual o budismo é relativamente dissociado do cristianismo
pelo fato de aquele não resulta em ressentimento (cf. item III.2 deste relatório, p. 11).
Por fim, tal como afirmávamos no Relatório Parcial do Aluno, entregue em março de
2014 (cf. Relatório Parcial do Aluno, item II.3, p. 10), pretendíamos, como fase posterior e
final, uma leitura extendida da obra de Nietzsche que pudesse cobri-la por inteiro e, assim,
desdobrar chaves de leituras que ultrapassassem as duas já citadas acima. Entretanto, dada a
amplitude de seus escritos e as variadas possibilidades interpretativas possibilitadas por sua
obra, preferimos, por fim, limitar a pesquisa a um recorte bastante específico, que aborda
principalmente as obras Genealogia da Moral (1887) e O Anticristo (escrito em 1888 e
publicado somente em 1895), além de algumas notas biográficas em Ecce Homo (escrito em
1888 e publicado em 1908) e de fragmentos póstumos que possibilitam uma análise mais
aprofundada das duas possibilidades de leitura nietzscheana acerca do budismo, tal como
citado anteriormente. Portanto, foi esse o pequeno universo circunscrito nesta pesquisa, cujo
método maior foi explorar sobretudo o texto nietzscheano e os modos pelos quais ele
engendra uma leitura do budismo relativa à epoca de seus escritos, optando assim por um
recorte metodológico que, em lugar de privilegiar uma vastidão de temas — tal como a
extensa obra de Nietzsche poderia demandar —, debruçou-se sobre um campo específico, mas
nem por isso menos vasto e esclarecedor.
III. Resultado final
Abordaremos aqui as duas chaves de leitura possíveis citadas no item anterior (cf. item II, p.
7). No primeiro item trataremos da recepção do budismo na Europa e da maneira através da
qual Nietzsche toma-o como doutrina da vontade de nada, que tende a enfraquecer a vontade
de potência e, por isso mesmo, é criticada pelo autor. No segundo item, abordaremos a
mudança que a leitura anterior sofre, mostrando a inflexão a partir da qual o budismo passa a
ser desenhado positivamente por seu caráter fisiológico e não punitivo do corpo, sempre em
relação ao cristianismo. Por fim, informaremos sobre algumas produções escritas realizadas
graças a esta pesquisa.
III.1. Culto ao nada: a recepção do budismo na Europa
Para Nietzsche, o budismo era um culto ao nada, uma vontade de nada que levava
somente à aniquilação. Reconstruir os argumentos dessa tese, entretanto, requer uma
9
compreensão tanto do entorno intelectual de Nietzsche quanto da tradição envolvida na
compreensão dos textos budistas na Europa do século XIX. Um dos responsáveis por essa
descrição do budismo como “culto ao nada” foi Eugène Burnouf, professor no College de
France desde 1832 e responsável pela primeira cadeira de sânscrito jamais criada na Europa.
Profundo conhecedor também do pali16, Burnouf publicara em 1844 um importante ensaio da
exegese sobre o budismo na Europa entitulado Introdução à história do Budismo indiano.17
Nessas páginas, ao definir o nirvana budista como um “aniquilamento completo”, no qual
ocorre “a destruição definitiva do corpo e da alma”, Burnouf marcou de forma crônica o
orientalismo europeu, que desde então não conseguiu ver no budismo senão um “culto ao
nada”.18 Paralelamente, também o filósofo Hegel via o nada [Nichts] como característica
principal da doutrina budista, e escrevia em suas Lições sobre a filosofia da religião, de 1827,
que “o homem deve fazer-se nada” e num aniquilamento [Vernichtung] constante de si, deve
voltar a um nada imóvel de onde tudo provém e para o qual tudo se dirige.19
Na esteira dessas leituras, Nietzsche reproduz em seus textos a tese de que o budismo
é uma vontade de nada, e desde os primeiros escritos a ideia de uma quietude e debilidade da
doutrina oriental já estavam presentes. É o caso, por exemplo, d’O Nascimento da Tragédia,
em que o budismo aparecia nos termos de uma negação do querer para servir como
contraposição à tragédia. Esta, por sua vez, seria uma atitude diante da vida que, segundo
Nietzsche, o homem grego teria colocado em marcha ao optar pela arte.20
16 O pali era a língua corrente nos tempos de Siddharta Gautama, príncipe que mais tarde atingira o estado de Buda. 17 BURNOUF, Eugène. Introduction à l’histoire du Buddhisme indien. Paris: Impr. royale, 1844 (utilizamos, para a análise de algumas passagens, a segunda edição de sua obra, publicada em 1876, também em Paris, pela Maisonneuve et Cie). 18 “[...] celui qui pratique pendant cette vie les devoirs de la morale et s’efforce d’arriver à la science peut un jour parvenir à l’état suprême de Buddha. Puis quand il a ainsi enseigné la loi, il entre dans le Nirvâna, c’est-à-dire dans l’anéantissement complet, où a lieu [...] la destruction définitive du corps et de l’âme.” (BURNOUF, Eugène. Introduction à l’histoire du Buddhisme indien. 2e éd. Paris: Maisonneuve et Cie, 1876, p. 97, grifo nosso). 19 “Der Mensch hat aus sich Nichts zu machen”; “Aus Nichts, heiszt es, sei alles hervorgangen, in Nichts gehe alles zurück” (Ambos os trechos encontram-se citados em DROIT, Roger-Pol. Le culte du néant — Les philosophes et le Bouddha. Paris: Éditions du Seuil, 2004 [1997], p. 94, grifo nosso. Da mesma forma, ambos foram retirados de HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Religion, éd. Walter Jaeschke, t. 2a. Hambourg: Felix Meiner, 1985, pp. 461-463). 20 “[...] o homem civilizado grego sente-se suspenso em presença do coro satírico; e o efeito mais imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a sociedade, sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento de unidade que reconduz ao coração da natureza. [...] É nesse coro que se reconforta o heleno com o seu profundo sentido das coisas, tão singularmente apto ao mais terno e ao mais pesado sofrimento, ele que mirou com olhar cortante bem no meio da terrível ação destrutiva da assim chamada história universal, assim como da crueldade da natureza, e que corre o perigo de ansiar por uma negação budista do querer. Ele é salvo pela arte, e através da arte salva-se nele — a vida.” (NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [1872], §7, p. 52).
10
Essa visão do budismo como um “quietismo”21 acompanhou Nietzsche desde então,
sendo no mais das vezes aproximada ao cristianismo devido a um adoecimento da vontade
partilhado por ambas as religiões. É em A Gaia Ciência (1882) que o alvo desse ataque ganha
nome próprio, e desde então toda a fraqueza decorrente dos ideais ascéticos dessas religiões
não cessa de ser uma característica comum, tanto do budismo quanto do cristianismo, contra a
qual o autor desfere seu verbo.22 O mesmo ocorre na Genealogia da Moral (1887): ali tratava-
se de denunciar os hábitos hostis partilhados pelas castas sacerdotais e suas respectivas
debilidades que, em ambas as religiões, propunham uma vontade de nada maléfica à toda a
vontade de vida. Assim, Nietzsche desvela o valor daquilo que ambas propõem como cura:
[...] mas o que foi por eles [sacerdotes] mesmos inventado como remédio para essa debilidade — não é preciso dizer que afinal demonstrou ser mil vezes mais perigoso, em seus efeitos ulteriores, do que a doença de que deveria curar? A própria humanidade sofre ainda os efeitos dessas veleidades de cura sacerdotais! Lembremos [...] por fim o muito compreensível enfado geral com a sua cura radical — o nada (ou Deus — o anseio de unio mystica com Deus é o anseio budista pelo Nada, pelo Nirvana — e nada mais!).23
Ora, na visão do autor, um anseio pelo nada é, no mínimo, um engodo perpetrado
pelas doutrinas ascéticas com vias a escapar do sofrimento do mundo. Ocorre, entretanto, que
dentro do projeto filosófico de Nietzsche, ansiar por um nada representa uma forma “radical
de extinção do querer, de diminuição de necessidades e declínio dos afetos.”24 Para Nietzsche,
como se sabe, o corpo assume um importante lugar dentro da filosofia e da atitude trágica
diante da vida, e o resultado prático disto é que toda a abstenção dos prazeres proporcionados
pelos sentidos é uma falta contra a vida. Assim, o autor acusa o budismo de considerar o
21 “Ao budismo falta a arte, daí o quietismo.” Fragments Postumes, vol. I, 1870-1871, 5[44], p. 233 (Doravante as referências aos fragmentos póstumos serão grafadas como F.P., seguidas do número do volume, fragmento e página, referindo-se sempre à edição Œuvres philosophiques complètes, em tradução francesa publicada pela Editora Gallimard). 22 “[...] o instinto de fraqueza que, é verdade, não cria religiões, metafísicas, convicções de todo tipo — mas as conserva. O fato é que de todos esses sistemas positivistas desprendem-se os vapores de um certo abatimento pessimista, algo de cansaço, fatalismo, decepção, temor de nova decepção — ou então [...] o que mais houver de sintomas ou mascaradas do sentimento de fraqueza. [...] A fé sempre é mais desejada, mais urgentemente necessitada, quando falta a vontade: pois a vontade é, enquanto afeto de comando, o decisivo emblema da soberania e da força. [...] De onde se concluiria, talvez, que as duas religiões mundiais, o budismo e o cristianismo, podem dever sua origem, e mais ainda a súbita propagação, a um enorme adoecimento da vontade. E assim foi na verdade: ambas as religiões depararam com a exigência de um “tu deves”, alçada até o absurdo pelo adoecimento da vontade e indo até o desespero.” (NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1882], Livro V, §347, pp. 240-241). 23 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 [1887], Primeira dissertação, §6, pp. 21-22. 24 WOTLING, Patrick. Nietzsche e o problema da civilização, p. 355.
11
mundo dos prazeres como uma ilusão, na medida em que — segundo a leitura nietzscheana
— o budismo responde ao sofrimento do mundo com uma tentativa total de aniquilação e
apaziguamento dos sentidos. Toda doutrina que não vê nenhuma felicidade na ilusão é
fundamentalmente oposta à filosofia de Nietzsche, para a qual ilusão é necessária na tragédia
grega: a perspectiva nietzscheana, ao ver a tragédia como uma alegria de viver (o sofrimento
não é mais visto como uma abominação), acaba por relegar à doutrina de Buda a alcunha de
“aspiração do nada”: uma recusa do prazer e do sofrimento.
Desta forma, parece haver uma continuidade por parte de Nietzsche em relação à sua
maneira de ler a doutrina budista, que já se encontrava anunciada desde os escritos
contemporâneos de Nascimento da Tragédia, na qual Nietzsche opunha o budismo como uma
ameaça e antítese à vida trágica: “A tragédia deve nos salvar do budismo.”, dizia ele então.25
Essa oposição estratégica reforçava a necessidade da força e do conflito, da ação em vez da
quietude, da guerra em lugar da paz anestesiante.26 Nietzsche fez a escolha da tragédia face ao
budismo e à sua apavorante aniquilação do querer, uma escolha em privilegiar até o fim de
seus escritos uma vontade de potência, de vida, em lugar de uma aspiração ao nada.27
III.2. Budismo versus cristianismo
Tal como pudemos constatar, o enfraquecimento da vontade é uma das causas
constantes do ataque que Nietzsche faz ao budismo e ao cristianismo. De todo modo, há uma
nuance interessante em seus textos finais que poderia ser descrita como uma certa inflexão, na
qual a aproximação imediata entre budismo e cristianismo é revista. Assim, segundo o
comentador Marcel Conche, ao indagar a obra de Nietzsche e sua leitura do budismo
constata-se um câmbio de perspectiva por parte do autor, que oscila de acordo com aquilo que
lhe convém, de modo que haveria assim duas possibilidades de interpretação da doutrina
oriental: a primeira, dita direta, lança sobre o budismo um veredito negativo, vendo-o como
um “niilismo, um sintoma da fadiga de viver”; a segunda, que se poderia nomear oblíqua,
realiza-se “por reflexão ao cristianismo”, movimento através do qual o budismo seria um
“bom” cristianismo.28
25 F.P. I, printemps-automne 1871, 13 [2], p. 439. 26 “Vers Rome ou vers l’Inde.” (F.P. I, printemps-automne 1871, 13 [2], p. 441). 27 F.P. XIV, printemps 1888, 14 [123], p. 93. 28 CONCHE, Marcel. Nietzsche et le bouddhisme. Paris: Encre marine, 2009 [1987], pp. 27-28 (Realizamos a tradução integral desta pequena obra, como já informado no Relatório Parcial do Aluno, item III.1, redigido em março de 2014. Nossa espectativa é a de que ela possa ser publicizada tão logo tenhamos uma autorização da
12
Uma vez mais, é o aspecto niilista que permite tal oscilação, e essa variação de leitura
é justamente decorrente de uma pluralidade de definições do conceito de niilismo dentro da
obra do próprio Nietzsche: se as religiões engendram um mecanismo niilista diante da vida,
negando-a, elas têm, entretanto, maneiras diferentes de fazê-lo, e é nesse ponto que se pode
detectar uma mudança na abordagem nietzscheana do budismo. De maneira geral, tal como
definira Nietzsche em 1887, o niilismo significa uma desvalorização dos valores superiores29,
mesmo que tal desvalorização e enfraquecimento dos valores possa conter em si formas e
procedimentos distintos. Assim, haveria um niilismo ativo (que caberia ao cristianismo), mas
também um niilismo passivo (próprio ao budismo) que, ainda segundo Nietzsche, “já não
ataca”. Mas aonde esta distinção poderia levar, se ambas as religiões seguem, sob a ótica de
Nietzsche, como religiões do niilismo? É justamente o caráter ativo ou passivo de uma ou de
outra que, sob esta nova perspectiva, as faz tão diferentes. Esse movimento dissociativo pode
ser claramente visto em O Anticristo (composto em 1888, mas publicado somente em 1895),
obra na qual tratava-se de marcar bem a distinção entre ambas as religiões da décadence.30
Neste livro o budismo não deixa de ser um exemplo de niilismo, mas torna-se uma espécie de
aliado estratégico que Nietzsche engendra para contrapor ao cristianismo. A tese proposta era
a de que o budismo seria uma religião realista: ela aceita o sofrimento do mundo e prefere
combatê-lo a combater o pecado, tal como faz o cristianismo.
A construção argumentativa que Nietzsche sustenta em O Anticristo é a de que o
budismo tem como princípio dois dados do campo estritamente fisiológico: os budistas crêem,
segundo ele, não somente em uma enorme excitabilidade [eine übergrosse Reizbarkeit] —
responsável por uma refinada suscetibilidade à dor — e uma hiper-cerebralidade, responsável
por manter os budistas tão às voltas com processos lógicos e abstratos, que isso os levou a
uma impessoalidade. Assim, a crença nestas duas naturezas fisiológicas, que são a
particularidade mesma do budismo, deflagariam a depressão decorrente de tais condições dos
editora francesa para tanto, uma vez que a discussão nela contida pode contribuir para o debate sobre Nietzsche em língua portuguesa). 29 “O que significa o niilismo? Que os valores superiores se desvalorizam.” (KSA 13, 9 [35], outono de 1887). 30 “Com minha condenação do cristianismo não quero ser injusto com uma religião a ele aparentada [...]: o budismo. As duas são próximas por serem religiões niilistas — religiões de décadence —, mas as duas se diferenciam de modo bastante notável. [...] O budismo é mil vezes mais realista do que o cristianismo — ele carrega a herança da colocação fria e objetiva dos problemas, ele vem após séculos de contínuo movimento filosófico, o conceito de “deus” já foi abolido quando ele surge. O budismo é a única religião realmente positivista que a história tem a nos mostrar, até mesmo em sua teoria do conhecimento (um rigoroso fenomenalismo), ele já não fala em “combater o pecado”, mas sim, fazendo inteira justiça à realidade, em
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homens. Sua principal diferença em relação ao cristianismo, entretanto, não repousa aí, mas
na conduta adotada pelo budismo diante de tais fatos: este age de maneira higiênica.31 Isso
quer dizer, em outras palavras, que sua postura frente ao sofrimento é a antítese mesma do
ressentimento cristão: se por um lado o budismo procura apaziguar o sofrimento a partir da
compreensão da irritabilidade e da sensibilidade, propondo uma ação voltada para o próprio
corpo, por outro lado o hábito do cristianismo, o ressentimento, age pela vingança, pela
aversão contra aqueles que pensam diferentemente, negando a vida e a auto-afirmação e
mostrando-se, assim, como antítese mesma de uma moral nobre.32 Colocado em outros
termos, o budismo propõe uma volta aos indivíduos, numa tomada de hábitos higienistas que
visam apenas a si, a cada indivído, ao passo que o cristianismo lança o julgamento e a culpa
para todos os demais à sua volta.
Assim, ao aceitar a natureza dolorosa da vida, o budismo não cria para si demônios
capazes de justifiar o sofrimento ou o pecado, criando assim um atrás-do-mundo. Ao
contrário: ela age sobre o corpo doente, sem construir-lhes um falso sentido para a origem de
seu sofrimento. A natureza nobre que esta perspectiva adotada por Nietzsche deu ao budismo
é confirmada em Ecce homo (1888), obra a partir da qual é possível concluir que a inflexão de
que estamos tratando aqui acompanhou o pensamento do autor até seus últimos escritos. Lá o
autor dizia: [...] nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido — para os exaustos é esta certamente a forma mais nociva de reação: produz um rápido consumo de energia nervosa, um aumento doentio de secreções prejudiciais, de bílis no estômago, por exemplo. O ressentimento é o proibido em si para o doente — seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação. — Isso compreendeu aquele profundo fisiólogo que foi Buda. Sua “religião”, que se poderia designar mais corretamente como uma higiene, para não confundi-la com coisas lastimáveis
‘combater o sofrimento’.” (NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [1888], §20, p. 24-25). 31 “A partir dessas condições fisiológicas surge uma depressão, contra a qual Buda procede higienicamente. [...] nenhuma preocupação, consigo ou com outras pessoas. [...] não solicita que se combata os que pensam diferentemente; não há nada a que sua doutrina mais se oponha do que ao sentimento de vingança, de aversão, de ressentiment [...].” (Idem). 32 “No cristianismo, os instintos dos sujeitados e oprimidos vêm ao primeiro plano [...]. Nele a casuística do pecado, a autocrítica, a inquisição da consciência é praticada como ocupação, como remédio para o tédio; nele o afeto em relação a um poderoso, chamado “Deus”, é continuamente sustentado (mediante a oração); [...] Nele o corpo é desprezado, a higiene é repudiada como sensualidade; [...] É cristão um determinado senso de crueldade, contra si mesmo e os outros; o ódio aos que pensam diferentemente; a vontade de perseguir.” (Ibidem, §21, p. 26).
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como o cristianismo, fazia depender sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar a alma dele — primeiro passo para a convalescença.33
A diferença fundamental entre ambos os niilismos, portanto, está em sua relação com
o corpo. O budismo evita toda a reação, toda a vingança — daí sua recusa da ação.34 Mas se
esta perspectiva fica clara nos últimos escritos de Nietzsche, tambouco ela se cristaliza como
a única via interpretativa: a possibilidade de vê-lo como enfraquecimento da vontade,
apresentada no item anterior, segue como fatual e paralela. O paradoxal é constatar, com
Nietzsche, que se por um lado o budismo é responsável, sim, por tal enfraquecimento da
vontade de potência, por outro, tal como relatamos nesta segunda parte, ele também é capaz,
dentro da interpretação nietzscheana, de realizar-se enquanto terapia, hábito corporal que
evita, por sua vez, o declínio das forças.
III.3. Produção escrita: tradução de Nietzsche et le bouddhisme e apresentação no 21º SIICUSP
Uma das primeiras atividades à qual nos dedicamos, quando do início desta pesquisa,
foi a aquisição e tradução do seminário de Marcel Conche, apresentado em 1987 e que mais
tarde seria publicado sob o título de Nietzsche et le bouddhisme.35 Tratava-se de uma
conferência dada no mesmo ano no College International de Philosophie em que Conche
aborda, com vasto uso de referências, ligações possíveis entre a doutrina budista e os escritos
de Nietzsche. Realizada a tradução, cogitamos atualmente a possibilidade de torná-la pública
assim que uma adequada autorização de sua editora de origem for lograda.
Além da tradução de Marcel Conche, o andamento desta pesquisa nos permitiu
realizar uma apresentação no 21º Seminário Internacional de Iniciação Científica da USP, em
outrubro de 2013, com um trabalho cujo nome é o mesmo deste projeto e que descrevia, em
linhas gerais, seu andamento e alguns resultados obtidos até então.
33 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011 [1888], Por que sou tão sábio, §6, p. 28. 34 WOTLING, Patrick. Op. cit., p. 363. 35 Trata-se de uma conferência realizada por Marcel Conche no College International de Philosophie em Paris, no dia 29 de abril de 1987, nos seminários de Roger-Pol Droit, cujo título era Silence et paroles bouddhiques [Silêncios e palavras búdicas]. Foi originalmente publicado em Cahiers du Collège de Philosophie, n˚ 4, Paris, Éditions Osiries, novembro de 1987. A versão por nós traduzida, entretanto, foi retirada de Nietzsche et le Bouddhisme. Paris: Éditions Les Belles Lettres, collection « encre marine », 2009.
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IV. Análises
Nesta pesquisa pensamos ter podido traçar, com um mínimo de clareza, um recorte ao longo
da vasta obra de Nietzsche. O corpo de textos nietzscheanos encontra-se hoje disponível à
exegese em edições minuciosamente coligidas que, em sua ordem, talvez não representem a
fundo as intenções do autor ao escrevê-las. Isso significa que, para uma interpretação
contemporânea da obra de Nietzsche, é preciso ler excertos publicados e resíduos de textos
não publicados ou catalogados post mortem, implicando assim uma abordagem que
reconfigura, em alguma medida, a intenção primeira do autor, ou uma certa ideia de intenção
que o autor pudesse ter quando da produção de seus próprios escritos.
É sempre aporética, portanto, a proposta de reconstruir, em exercício interpretativo, as
razões originais de um autor, que neste caso se trata de Nietzsche. Mesmo diante de tais
dificuldades, foi possível redesenhar um caminho que já se encontrava presente nos textos
publicados de Nietzsche e que tornou-se, mais claro, na medida em que seus comentadores
puderam ter acesso a outros escritos até então desconhecidos.
A abordagem que Nietzsche faz do budismo é, certamente, uma abordagem possível a
um europeu do século XIX. Qualquer outra leitura, mais fiel, só seria possível a partir do seio
mesmo daquela cultura, em sua língua e fundamentada em suas categorias. Isso quer dizer, no
limite, que a condição epistemológica na qual um autor como Nietzsche encontrava-se
encerrado era aquela que os avanços de sua época podiam proporcionar-lhe, com todos os
desvios e erros que isso possa incluir. Assim, seu conhecimento da doutrina budista é possível
somente porque antes dele houve uma série de avanços no campo da tradição e dos estudos
orientalistas. O próprio Nietzsche fora amigo de Paul Deussen, que anos após sua juventude
torara-se um importante indólogo no meio acadêmico alemão.
Portanto, seria impossível exigir de nosso autor que fugisse aos enganos que uma
leitura intercultural traz em seu bojo. Ainda: seu objetivo não era esse. Pensamos ter ficado
claro, ao longo dessa pesquisa, que a intenção de Nietzsche sempre foi fazer uso de um
pensamento budista, não necessariamente comentá-lo com a fidelidade e certeza que só seria
possível a um estudioso direto da linhagem de estudos budistas, com profundos
conhecimentos não só da língua pali e do sânscrito, mas do universo cultural indiano. A
intenção de Nietzsche, nos parece, era estratégica: fora preciso lançar mão de uma outra
crítica cultural — na medida em que o budismo revolucionara o século VI a. C. na Índia, com
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sua completa transvaloração frente ao hinduísmo — para construir sua própria crítica em
relação aos valores da cultura do século XIX, sobretudo européia.
Com a intenção, tomada de antemão, de nos reter sobre o texto nietzscheano,
acreditamos que essa impossibilidade tradutiva entre culturas não tenha sido um problema:
não tratava-se de julgar os erros ou acertos do autor frente a uma tradição religiosa de muitos
séculos e de muitas escolas. Tratava-se sim, durante toda essa pesquisa, de reconstruir os
argumentos de um pensador cuja importância para a História da Filosofia é inegável.
V. Conclusão final
Procuramos recontar neste relatório o percurso desafiante de nossa pesquisa do último
ano. Intencionávamos, como já foi mencionado, compreender o estatuto do budismo dentro
dos escritos filosóficos de Nietzsche, buscando saber de que forma o autor utilizava os
preceitos de tal doutrina para pensar sua própria cultura e a religião que, em grande medida, a
conduzia e a vem conduzindo.
O antagonismo em relação ao corpo e à vida que, segundo Nietzsche, acompanha tanto
o budismo quanto o cristianismo, é abordado através de suas discussão do niilismo,
atravessando toda a sua obra. Essa pesquisa possibilitou e exigiu, assim, um confronto
prolongado com os textos e o exercício de interpretação do filósofo, destacando de suas
proposições aspectos que, se de um lado lançavam severas críticas quanto ao enfraquecimento
da vontade imposto pelas maiores religiões do mundo, por outro sabiam ver o que em uma
delas era salutar não só em relação à outra — o tão atacado cristianismo de Paulo —, mas
para a própria ideia de revalorização de Nietzsche.
Assim, propusêmo-nos em retraçar por quais vias Nietzsche construiu um pensamento
ousado, penetrando os meandros da história para explicar seu presente e formulando, a partir
de elementos externos, tais como o budismo, uma filosofia instigante e profícua, mesmo
extemporânea, que ajudou e tem ajudado na compreensão da formação e da cristalização de
nossa cultura. Acreditamos que a possibilidade em dedicarmo-nos a esse período de pesquisa
foi edificante para nossa formação em História da Filosofia, não somente pelo contato direto
que nos proporcionou com a matéria textual de nosso fazer cotidiano, mas sobretudo porque
nos permitiu a oportunidade de ensaiar um pensamento especulativo e crítico.
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