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CYPHER : do livro de artista ao livro-software. Aproximações possíveis entre o experimento de Eduardo Kac e a poiesis do livro enquanto nova mídia. Elias Bitencourt 1 , Karla Brunet 2 O artigo retoma os vetores culturais que estabeleceram o códice como objeto historicista, reconhecendo o caráter central da escrita-suporte na consolidação de um modelo universal do livro e vetor de resistência à evolução dos modos de apresentação da informação livresca na nova mídia. Fazendo uso do método dedutivo, pesquisa bibliográfica, o texto problematiza a categoria livro de artista, adotando-se a obra Cypher (2009) de Eduardo Kac como metáfora para aproximação entre os conceitos de media species, media evolution do Lev. Manovich (2013) e os caminhos possíveis para uma reflexão acerca da poiesis do livro digital. Palavras-Chave: Livro digital, Livro de artista, Software studies, Cibercultura. 1. Sobre livros, verbos, papéis e algoritmos Diante de telas que simulam papel, interfaces de software que sugerem páginas e algoritmos que implementam novas ferramentas para otimização da leitura, há uma verdade que escapa: o modelo de livro legitimado na cultura ocidental ainda permanece operando enquanto vetor de resistência à evolução dos modos de apresentação da informação livresca – poiesis do livro – em maior consonância com as transformações que o software já promove na ontologia midiática desse objeto. Embora os registros da escrita nem sempre tenham assumido a forma de códice que o cristianismo eternizou, é sabido que a brochura se perpetuou como um modelo de mídia impressa preponderantemente caracterizada através das particularidades da estrutura linear do verbo e sua respectiva fixação no suporte – aspectos esses até hoje visitados e referendados em manifestações frequentes do livro digital –. Assim, a sequência ordenada de páginas e capítulos encadernados reafirmaram o poder de determinação da linearidade da escrita sob a forma do livro, acabando por definir hábitos de leitura, modelos assimétricos entre autores e leitores e, principalmente, os cânones que determinam a construção do objeto livresco. 1 Mestre em cultura e sociedade pelo Instituto de Artes e Humanidades IHAC/UFBA (2014), professor auxiliar em regime de dedicação exclusiva na Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Pesquisador do grupo Comunidades Virtuais – jogos, educação e comunicação – UNEB e Media Lab/UFG. [email protected], 71 99404559. 2 Pós-doutora em Cibercultura Pós-Com/UFBA (2007-2009), professora Adjunta do Instituto de Artes, Humanidades e Ciências e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Coordenadora do Grupo de pesquisa em arte e tecnologia Ecoarte/UFBA. [email protected]

FINAL CYPHER do livro de artista ao livro software · Artes, Humanidades e Ciências e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e ... Em outras palavras, a emergência

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CYPHER : do l ivro de artista ao l ivro-software. Aproximações possíveis entre o experimento de Eduardo Kac e a poiesis do l ivro enquanto nova mídia.

Elias Bitencourt1, Karla Brunet2

O artigo retoma os vetores culturais que estabeleceram o códice como objeto historicista, reconhecendo o caráter central da escrita-suporte na consolidação de um modelo universal do livro e vetor de resistência à evolução dos modos de apresentação da informação livresca na nova mídia. Fazendo uso do método dedutivo, pesquisa bibliográfica, o texto problematiza a categoria livro de artista, adotando-se a obra Cypher (2009) de Eduardo Kac como metáfora para aproximação entre os conceitos de media species, media evolution do Lev. Manovich (2013) e os caminhos possíveis para uma reflexão acerca da poiesis do livro digital. Palavras-Chave: Livro digital, Livro de artista, Software studies, Cibercultura. 1. Sobre l ivros, verbos, papéis e algoritmos Diante de telas que simulam papel, interfaces de software que sugerem páginas e algoritmos que implementam novas ferramentas para otimização da leitura, há uma verdade que escapa: o modelo de livro legitimado na cultura ocidental ainda permanece operando enquanto vetor de resistência à evolução dos modos de apresentação da informação livresca – poiesis do livro – em maior consonância com as transformações que o software já promove na ontologia midiática desse objeto. Embora os registros da escrita nem sempre tenham assumido a forma de códice que o cristianismo eternizou, é sabido que a brochura se perpetuou como um modelo de mídia impressa preponderantemente caracterizada através das particularidades da estrutura linear do verbo e sua respectiva fixação no suporte – aspectos esses até hoje visitados e referendados em manifestações frequentes do livro digital –. Assim, a sequência ordenada de páginas e capítulos encadernados reafirmaram o poder de determinação da linearidade da escrita sob a forma do livro, acabando por definir hábitos de leitura, modelos assimétricos entre autores e leitores e, principalmente, os cânones que determinam a construção do objeto livresco.                                                                                                                1 Mestre em cultura e sociedade pelo Instituto de Artes e Humanidades IHAC/UFBA (2014), professor auxiliar em regime de dedicação exclusiva na Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Pesquisador do grupo Comunidades Virtuais – jogos, educação e comunicação – UNEB e Media Lab/UFG. [email protected], 71 99404559. 2 Pós-doutora em Cibercultura Pós-Com/UFBA (2007-2009), professora Adjunta do Instituto de Artes, Humanidades e Ciências e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia. Coordenadora do Grupo de pesquisa em arte e tecnologia Ecoarte/UFBA. [email protected]

Diferentemente da fixação informacional que o verbo produz no suporte da brochura – e demais propriedades já citadas –, os algoritmos e as estruturas de dados que presentificam o livro digital para o usuário operam ao sabor da representação numérica, da modularidade, da automação, da variabilidade e da transcodificação – princípios básicos da new media (MANOVICH, 2002). Sendo essas propriedades deveras distintas das orientações promovidas pela escrita, há de se compreender os motivos pelos quais a transformação ontológica da mídia livro, anunciada pelo livro digital, encontra tamanha resistência em se apresentar através de uma poiesis que não seja diretamente referendada nos modelos já legitimados pela cultura livresca. Dito de outro modo, se a cultura do livro se vale de uma centralidade/autoridade legitimada pela religião (ou pela ciência) e, de um certo tradicionalismo/reverência ao clássico/original, os novos dispositivos de leitura e os livros mediados por software sinalizam para transformações ontológicas na estrutura da mídia que permitem a diversidade, a expansão e a evolução constante de formas de apresentação da informação. Fatores estes que põem em questão os processos de produção/distribuição, acesso e construção do livro para além das transposições e remediações (BOLTER; GRUSIN, 2002) orientadas pela mídia impressa. Neste interim, o presente trabalho problematiza acerca das transformações que ocorrem no livro mediado pelo software, questionando os modelos de abordagem do livro digital baseados na mídia tradicional. Para tal, fazendo uso do método lógico dedutivo, da pesquisa bibliográfica, o texto recupera o movimento de livro de artista enquanto espaço de crítica e experimentação do objeto editorial, elegendo a obra Cypher do Eduardo Kac como metáfora para uma aproximação entre o conceito de media espécies e media evolution (MANOVICH, 2002, 2013) e uma poética possível para o livro softwarizado. 3. Media evolution e media species : o ecossistema plural do l ivro mediado por software. Se o advento da prensa móvel de Gutemberg não implicou, no primeiro século após sua popularização, numa mudança substancial no modelo formal da mídia – até o século XVI um livro impresso e um códice caligrafado se apresentavam de maneira muito similar – as poucas décadas posteriores à chegada do código de programação e dos algoritmos computacionais já foram suficientes para provocar desdobramentos, resistências, atualizações e experimentações para o objeto livresco. Quando as propriedades físicas e técnicas passaram a ser simuladas por meio de algoritmos e estruturas de dados, teve-se não apenas a possibilidade de combinação compatível entre técnicas antes restritas aos meios apartados da cultura livresca – jogos eletrônicos, cinema, web etc. – como também a potência para o surgimento de novos procedimentos relativos ao meio digital. Tais questões repercutem em uma ampliação substancial no número de variedades de espécies de mídia resultantes dessas análises combinatórias entre atributos, ferramentas e técnicas que operam sobre uma base comum: o dado (MANOVICH, 2013; 2002).

Em outras palavras, a emergência da new media (MANOVICH, 2002, 2013; SCOLARI 2009, 2013) foi suficiente para provocar algum nível de tensionamento no ecossistema midiático, levando, no caso do Livro, ao surgimento de múltiplas espécies resultantes das tentativas de demarcação de espaço do objeto livresco no cenário digital emergente. Para Carlos Scolari (2013) ao se deparar com a surgimento de uma nova mídia, as anteriores tendem a se transformar – seja através de movimentos de atualização ou resistência – produzindo novas variações. “When a new medium emerges, other media are going trough their hegemonic phase and old media are trying to adapt themselves to survive.”3 (SCOLARI, 2013, p. 1433). Essas novas espécies tendem a se manifestar com modalidades de interação, manipulação e produção de conteúdo diversificadas, constantemente susceptíveis a novos desdobramentos provindos de atualizações de sistema, implementações de funções ou lançamento de novas versões. Para Scolari (2013), as citadas media species (MANOVICH, 2002, 2013) convivem entre si, em diferentes estágios evolutivos – emergência, dominância, sobrevivência e extinção–, compondo um ecossistema midiático propenso a contaminações frequentes entre as espécies, implicando em modificações e diversificações constantes nas narrativas, nos modos de produção e consumo de informação. O que implica em compreender que um livro impresso pode gerar uma nova espécie midiática– incorporando recursos de internet das coisas4– como forma de resistir à extinção tensionada pelos livros mediados inteiramente por software – enquanto outras tantas variáveis de livros digitais podem emergir, sincronicamente, como resultado de cruzamento entre linguagens, mídias tradicionais ou mediante aperfeiçoamentos nos códigos de programação. Tais questões, portanto, permitem vislumbrar a problemática em se tentar abordar o livro digital através de modelos teóricos ou conceitos que tomem como ponto de partida a ontologia tradicional que compõe o livro impresso. Estando acomodado sobre a base variável e expansível do código computacional, o livro mediado por software pode sofrer transformações estruturais constantes na forma de acesso e apresentação, ampliando continuamente as propriedades do objeto e atualizando regularmente as experiências e definições de leitura. O e-book em ASCII do projeto Gutemberg5, o appbook (FLEXOR, 2012) para iPad, o aplicativo de leitura Kindle para um sistema operacional móvel ou o hardware de leitura Kobo Glo podem até compartilhar de um mesmo media content (MANOVICH 2002, 2013), uma base digital comum ou responder genericamente pelo rótulo de livro digital, entretanto, são reconhecidamente espécies midiáticas distintas. Produto de combinações entre espécies e vetores ontológicos também diferenciados que apontam para um cenário diverso dos contextos historicistas nos quais se forjou o modelo de livro internalizado culturalmente. Fatos estes que demandam reflexões acerca de possibilidades para uma poiesis do livro digital mais coerente com as demandas midiáticas que o referido objeto já apresenta.

2. Cypher: l ivro de artista como espaço para reflexão de uma poiesis do l ivro orientada à new media . A história da arte e a história da mídia caminham juntas (GRAU, 2003; MANOVICH, 2013). O exercício de reconhecimento dos limites e propriedades dos materiais, suportes e técnicas envolvidos na representação contribuiu de forma substancial para a melhor compreensão da natureza estética e dos processos de poiesis que circundam a representação ao longo do tempo. Particularmente, as vanguardas modernistas permitiram um espaço fértil para experimentação e reflexão a respeito do papel da mídia e das técnicas na construção do discurso artístico. Na literatura, por meio das diferentes expressões já consagradas do simbolismo de Guillaume Apollinaire, do dadaísmo de Mallarmé e dos escritos futuristas (Fig. 1), o posicionamento vanguardista inevitavelmente trouxe à tona o livro como uma base para arte. Ao fazê-lo, expôs seu binômio ontológico (escrita/suporte) a uma série de experimentações que ficaram conhecidas como a categoria de livros de artista6. Ao tomar o livro como suporte em um contexto experimental cujas relações entre os materiais e as técnicas de representação configuravam-se como o próprio objeto da arte, os livros de artista também se apresentaram como um espaço para experimentação do binômio ontológico que o compõe, fazendo-se dignos de menção neste contexto de reflexões e análises.

Figura 1 – Da esquerda para direita, Mallarmé, un coup de dés jamais nábolira le hasard, 1897 e Marcel Duchamp, unhappy readymade, 1919.

Fonte: http://www.artextbooks.com/images/a17122b.jpg e http://www.newyorker.com/online/blogs/books/national-readin, respectivamente. acesso em 14/02/2013 Para Silveira (2008) a poiesis dos livros de artista é resultado frequente de gestos criativos de injúria e/ou ternura7 à escrita/suporte da brochura. Segundo o mesmo autor, os experimentos editoriais realizados na referida categoria

permitem inferir que, mesmo em contextos de subversão e crítica, a brochura é tomada a partir dessa díade de elementos clássicos que a consagraram como mídia impressa/escrita. De outro maneira, independentemente da natureza das intervenções dirigidas ao seu binômio ontológico – afirmativas ou negativas –, o que se verifica é uma consolidação dos seus elementos estruturais8 (ARAUJO, 2008) e uma compreensão do livro como produto-síntese do seu conteúdo e do material que o presentifica, mesmo nos cenários de vanguarda. Em contexto mais recente, entretanto, torna-se digno de nota um experimento de livro de artista que acrescenta outro olhar sobre a brochura, revisitando os modelos tradicionais da ontologia livresca – Cypher, de Eduardo Kac (Fig. 2). Em síntese, a citada obra consiste em um estojo de aço, bipartido e articulado que acomoda placas de petri, ágar, nutrientes pipetas, tubos de ensaio e DNA sintetizado, cuja base é um poema escrito pelo autor e, posteriormente, traduzido em sequência genética9 para criação dos organismos vivos (Fig. 3). A proposta é oferecer ao leitor-interator as ferramentas para o acionamento do organismo vivo – a tradução intersemiótica (PLAZA, 1987) do código verbal no código genético – e uma série de sucessivas intervenções para a construção de um “texto” que é um ausente-possível, posto que é vivo e, ao mesmo tempo particular, vez que reage ao ato do leitor no dado instante da “leitura”.

Figura 2 – Cypher (obra criada em 2009). Da esquerda para direita, o kit laboratório transgênico, o detalhe do petri contendo os organismos vivos inativos, com as respectivas orientações para ativação, e o detalhe de uma das formas de manifestação do discurso autopoiético dos organismos concebidos a partir de DNA sintético traduzidos do código verbal. Fonte: ekac.org

Embora carregue analogias icônicas – nome da obra gravado tanto no dorso do estojo como nas lombadas do Livro, bipartição que alude à sua fisicalidade – e indexicais ao códice (a marca do código verbal que é incorporado no código genético), não são esses os aspectos prioritários da obra. Em Cypher, como o próprio artista alega, há um híbrido entre escultura, kit transgênico e livro (KAC, 2013), o que por si só já sinaliza uma tentativa de descentralizar a obra como um ente definido e, por consequência, relativizar as características de fixação

promovidas pela ontologia do livro tradicional, em função de uma estrutura em processo de constante atualização.

Figura 3 – Processo de tradução do código verbal para o código genético. Fonte: ekac.org

A referida obra evoca atenção especial pelo fato de encontrar-se classificado como livro pelo próprio Kac, ao passo que problematiza a escrita e o suporte por meio de sucessivas traduções intersemióticas (PLAZA, 1987) resultantes de organismos vivos. Em Cypher (Fig. 2) a escrita e a base tradicional da brochura são relativizados a partir da substituição experimental por elementos orgânicos que se desdobram, por meio de processos autopoiéticos10 (MATURANA et al., 1997). Em outras palavras, os elementos reorganizam-se e evoluem impulsionando a também “evolução” – ou a reflexão sobre a possibilidade de desdobramentos reconfigurados – da própria mídia livro em um objeto-devir. No livro digital esse processo de atualização mediante imputs do usuário se dá por meio da retroalimentação de dados que a new media (MANOVICH, 2002, 2013; SCOLARI, 2009, 2013) permite, viabilizando, nos termos dos estudos de software, o acréscimo de camadas de informação ao código. Na medida em que se complexifica, a metamídia11 também produz novos dados, demanda novos procedimentos algorítmicos para selecionar, reordenar e capturar os padrões acrescidos, atualiza a interface do software, redefinindo a mídia em fluxo (SCHÖNBERGER; CUKIER, 2013). Nesse sentido, a dinâmica apresentada por Kac (2013), por meio dos organismos vivos, serve como analogia e metáfora às possibilidades de simulação, criação, manipulação e visualização da informação mediada por software, comentados por Manovich (2013; 2012; 2002; 1999). Ao representar uma narrativa-processo que responde particularmente ao interator, Cypher permite visualizar, conceitualmente, a operação de algumas das propriedades da new media no acesso à informação nela acomodada. Essas possibilidades, em alguma medida, já presentes nos dispositivos digitais de leitura, habilitam a captura dos comportamentos individuais dos usuários (tempo por página, preferências, horas de leitura etc.), viabilizando uma futura produção de conteúdos, narrativas e, quiçá, de gêneros literários marcados pela mineração de dados e um alto grau de segmentação.

Em um prisma mais amplo, o livro de Kac (2013) faz pensar acerca de processos algorítmicos ocultos sobre a aparente semelhança superficial à brochura. Tais processos, estando em constante atualização, expansão e desdobramento, implicam a urgente ampliação da compreensão da mídia livro, não na qualidade de um objeto único, mas como um ecossistema composto por media species ou uma plataforma de apresentação/interação12 (MANOVICH, 2013) em constante espraiamento e evolução. No nível da espécie, a metáfora das transformações orgânicas internas das bactérias-texto em Cypher – em resposta às mudanças externas no ambiente no qual se inserem – ilustram o movimento do livro mediado por software que se redefine a cada atualização/manipulação/edição resultante das ações e inputs do interator. Assim, a evolução orgânica de Cypher, ao sabor das intervenções do fruidor, é um modelo conceitual ilustrado dos desdobramentos constantes da modalidade de livro mediado por software, muito aproximado do conceito de media species, proposto por Lev Manovich (2013) e Carlos Alberto Scolari (2013) como alternativa aos modelos tradicionais já comentados. Considerações finais É importante recordar que a escolha de Cypher se deu enquanto espaço de provocação e ampliação das reflexões acerca das possibilidades de poiesis do livro mais adaptadas à dinamicidade ontológica da nova mídia, vez que o gesto do artista e sua produção evocam olhares vanguardistas para alguns dos elementos centrais da cultura livresca – o livro, a leitura, a ideia de autoria, a narrativa e lugar do leitor –. Por conseguinte, não se tem a intensão de buscar em Cypher um outro modelo a ser seguindo como substituto à brochura ou tampouco defender a aplicação direta dos experimentos artísticos de Kac nos artefatos de hardware ou nas espécies midiáticas de livro a serem concebidas. Contrariamente, as análises e reflexões realizadas buscam, antes, encontrar referencias que permitam uma visualização mais tangível das propriedades da new media que, frequentemente, se embaçam nas estratégias de remediação (BOLTER; GRUSIN, 2002) e simulação da velha mídia (MANOVICH, 2013) presentes nas interfaces do livros digitais. Desse modo, o cânone do livro enquanto mídia impressa/informação fixa, é posto em suspensão na medida em que Cypher se apresenta não como uma obra-fim, mas como um kit de ferramentas que permite a elaboração de um livro improvável, que será fruto das adaptações temporárias ao contexto da intervenção. Essas concepções não apenas coincidem com as características de new media – expansão e atualização – defendidas por Manovich (2013), como ainda permitem vislumbrar possíveis caminhos de gênero de narrativa orientado à captura e mineração de dados dos leitores. Nessa perspectiva, a obra de Kac difere das constatações de Silveira (2008) sobre os experimentos com livros no campo da arte – que legitimam o modelo da brochura através da negação/afirmação dos seus aspectos de materialidade e fixação –, ao passo que representa conceitualmente uma poiesis mais aproximada das particularidades da nova ontologia da mídia em questão. Se no âmbito metafórico, a ideia de evolução do livro ilustrada em Cypher alinha-se

com as analogias biológicas utilizadas por Manovich (2013) para ilustrar os conceitos de media evolution e media espécies; de outro, a obra de Kac estimula reflexões acerca das possíveis mudanças na abordagem do objeto livresco mediado por software. Referências ARAÚJO, Emanuel. A construção do livro. Rio de Janeiro: Lexikon Editora Digital, 2008.

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MATURANA, Humberto R. et al. De máquinas e seres vivos: autopoiese, a organização do vivo. 3. ed. Porto Alegre: Artes Medicas: 1997.

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SILVEIRA, Paulo. A página violada. Da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008.

                                                                                                               3 Em tradução livre do autor: “Quando uma nova mídia emerge, outra mídia passa para o estágio de hegemonia (dominância) e a velha mídia tenta se adaptar para sobreviver” 4 A internet das coisas ou internet of things refere-se ao conceito de comunicação entre objetos que, possuindo computação embarcada e fazendo uso de protocolos de comunicação, podem trocar informações entre si. Circuitos de arduino impressos, etiquetas de radio-frequencia (rfids), sensores de proximidade de campo (NFC), iBeacon, Maçanetas que se conectam a celulares, recipientes que reconhecem as substâncias contida nos líquidos que portam são, respectivamente, alguns dos exemplos de tecnologias e objetos que ilustram o referido conceito. 5 Criado em 1971 por Michael Hart, o Projeto Gutemberg é a primeira biblioteca digital de que se tem registro. O projeto tem por objetivo a digitalização, o armazenamento e a socialização de conteúdo editorial em domínio público, em uma plataforma computacional aberta e compatível com um amplo número de sistemas operacionais. Para isso foi escolhido o padrão binário bem simplificado, o padrão ASCII – American Standard Code for Information Interchange -. 6 Distante do objetivo de discutir a polêmica que envolve a nomenclatura e os baremas da categoria livro-de-artista, adota-se, nesta pesquisa, o termo a partir das conceituações de Paulo Silveira (2008), que toma a referida categoria como um campo de atuação e, simultaneamente, o produto do próprio campo – um resultado específico das artes visuais –, em especial, as produções localizadas no final do século XX. Para o autor, a categoria livro-de-artista abarcaria também o conceito de livro-objeto e se estenderia, dentro do recorte das artes visuais, do livro ao não livro.  7 Na sua obra, Paulo Silveira (2008) refere-se à injúria como todos aqueles atos/gestos criativos de agravo ao Livro, seja pela via da subversão, afronta, comprometimento da verdade, seja pela verossimilhança com o modelo e que atentam contra a integridade física ou simbólica da brochura. A ternura, do contrário, é vista como o gesto ou intervenção positiva que busca operar sobre os mesmos aspectos citados, vetores de enaltecimento, legitimação e preservação das conformidades tradicionais do Livro. 8 O aspecto estrutural de um livro diz respeito às partes que o compõem: aspectos extratextuais, pré-textuais, textuais e pós-textuais; e é estabelecido pela tradição e normalizado pela ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas (Disponível em: <http://www.bn.br/portal/?nu_pagina=8>). 9 O poema foi escrito procurando utilizar os caracteres ortográficos de modo a permitir a inclusão de um código dentro do código por meio da incorporação das letras A,T,G,C (base do código genético) na escrita da frase-poema A Tagged cat will attack Gattaca (em tradução livre, o gato marcado atacará Gattaca). Segundo o artista, a palavra Gattaca aponta para o opressivo e genocrático modelo de estado abordado no filme homônimo. 10 O conceito de autopoiesis de Maturana et al. (1997) refere-se à capacidade autônoma do sistema vivo em produzir a si, a partir de uma rede de processos moleculares que, pelas interações com suas produções, promovem a mesma rede de processos que as produziu. Dessa forma, um sistema vivo autopoiético autorregula-se e adapta-se aos diferentes contextos por meio de reorganizações infinitas de uma cadeia finita de moléculas, desencadeando, portanto, mudanças que são da própria natureza da estrutura e não dependentes de agentes externos. 11 Para Manovich (2013), o software cultural – ferramenta acessível de produção, edição e acesso de conteúdo por meio da mediação entre as linguagens humanas e computacionais – transformou a

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         mídia em uma metamídia, um sistema tecnológico e semiótico fundamentalmente novo que incorpora a maioria das técnicas, dos procedimentos e estéticas das mídias pré-digitais como elementos também próprios da nova mídia. Dessa forma, a metamídia, ou a mídia softwarizada, contém dois tipos de mídia incorporados na sua estrutura: aquelas que figuram enquanto simulações de mídias e processos pré-digitais acrescidos de novas propriedades, e aquelas mídias nativamente computacionais que não encontram precedentes na história. Ambos os tipos operam em conjunto, permitindo a criação, modificação, edição e visualização de conteúdos, dados ou novas mídias. 12 Como resultado dos processos de digitalização, apresentação e disponibilização de conteúdo, a partir de ferramentas culturais nativas da cultura digital, a ideia geral atribuída à mídia, como conjunto de trabalhos e criações realizadas a partir do montante de técnicas disponíveis, passou a ser uma realidade. Dessa forma, como acréscimo ao conceito de mídia defendido pelo autor (algoritmo + estrutura de dado), Lev Manovich (2002, 2013) afirma que o termo mídia também pode ser empregado para se referir a uma plataforma de apresentação/interação ou, em outros termos, enquanto o coletivo de recursos que permite, aos usuários, acessar e manipular conteúdo de modo particular. Mesmo que o próprio autor reconheça que tais ideias derivem das concepções de mídia presente nos estudos em comunicação, em particular, das teorias da informação de Shannon (1948), o conceito de mídia como plataforma, para Manovich (2013; 2002), inclui os canais de armazenamento e transmissão com um foco especial nas tecnologias da recepção.