Flavio Ferreira Da Silva Dissertacao Mestrado

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Flvio Ferreira da Silva

INTRPRETE E ELETRNICA:anlise de poucas linhas de ana cristina de Silvio Ferraz para clarineta solo e com eletrnica ao vivo

Belo Horizonte Escola de Msica da UFMG 2007

Flvio Ferreira da Silva

INTRPRETE E ELETRNICA:anlise de poucas linhas de ana cristina de Silvio Ferraz para clarineta solo e com eletrnica ao vivo

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao da Escola de Msica da UFMG como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Msica. Linha de Pesquisa: Msica e Tecnologia Orientador: Maurcio Alves Loureiro Co-orientador: Srgio Freire

Belo Horizonte Escola de Msica da UFMG 2007

S586i

Silva, Flvio Ferreira da Intrprete e eletrnica: anlise de poucas linhas de ana cristina de Silvio Ferraz para clarineta e com eletrnica ao vivo / Flvio Ferreira da Silva. --2006. 117 fls. ; il. Inclui referncias.

eds

Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Msica Orientador: Prof. Dr. Maurcio Alves Loureiro Co-orientador: Prof. Dr. Srgio Freire 1. Msica para clarineta. 2. Msica eletrnica. 3. Msica e tecnologia. 4. Ferraz, Silvio. I. Ttulo CDD: 789.9

Aos meus pais, pelo apoio e incentivo sempre incondicionais.

Agradeo aos meus pais, Fernando e Rosa Maria, pela confiana em mim depositada. s minhas irms, Ndia e Simone, pelo estmulo revigorante. minha namorada, Elaine, presena indispensvel em minha determinao e

perseverana. Aos meus orientadores (e amigos), Maurcio Loureiro e Srgio Freire, pela orientao clara e ponderada. Aos meus colegas Marcos Filho e Willsterman, pelo apoio e pacincia. Ao Silvio Ferraz, pela disponibilidade e ateno. Ao colegiado de Ps-Graduao e s secretrias Edilene e Rulia, pela ateno e dedicao. CAPES, por me ter possibilitado dedicao exclusiva s atividades acadmicas. Por tudo e acima de todos, a Deus.

Como tornar um momento do mundo durvel ou faz-lo existir por si? Virginia Woolf d uma resposta que vale para a pintura ou a msica tanto quanto para a escrita: Saturar cada tomo, Eliminar tudo o que resto, morte e superfluidade, tudo o que gruda em nossas percepes correntes e vividas, tudo o que alimenta o romancista medocre, s guardar a saturao que nos d um percepto, Incluir no momento o absurdo, os fatos, o srdido, mas tratados em transparncia, Colocar a tudo e contudo saturar.(Deleuze e Guattari, 1991, p. 223)

ResumoA crescente utilizao musical de tecnologias eletrnico-digitais ao longo do sculo XX influenciou escuta, composio e performance. O surgimento da gravao sonora no final do sculo XIX desconectou audio musical dos aspectos visuais, fazendo a escuta se concentrar cada vez mais no som. Alteraes na escuta motivaram abordagens composicionais, originando a msica eletroacstica. A unio de meios eletroacsticos com instrumentos musicais tradicionais ao vivo trouxe novidades para o intrprete como a interao com altofalantes e com partes musicais pr-gravadas e temporalmente inflexveis e a manipulao de dispositivos controladores da eletrnica ao vivo. Trabalho procura discutir questes com as quais o instrumentista se depara ao tocar com processamento eletrnico a partir de anlise musical centrada na relao instrumento acstico/eletrnica e na funo de cada um no contexto da pea poucas linhas de ana cristina, para clarineta e eletrnica ao vivo, de Silvio Ferraz. Esta obra pode ser tocada com ou sem eletrnica sem nenhuma alterao na partitura da clarineta, o que suscita um interesse em conhecer a funo musical da eletrnica. A anlise de poucas linhas de ana cristina acontece em trs etapas: (1) anlise da partitura, (2) estudo das funes da eletrnica e (3) anlise da relao do instrumento acstico com a eletrnica. A primeira etapa fundamenta-se exclusivamente nos pensamentos composicionais de Silvio Ferraz, estudados luz de textos de Deleuze e Guattari. O estudo das funes da eletrnica concentra-se nas suas caractersticas de extenso dos recursos instrumentais. A ltima etapa tem como referncia a anlise da partitura e utiliza alguns conceitos da espectromorfologia de Smalley, alm dos pensamentos de Ferraz. Pudemos identificar dois tipos de comportamento da eletrnica: (1) sombra textural por trs da clarineta e (2) melodias em contraponto com a clarineta. Clarineta e eletrnica relacionam-se de duas maneiras: (1) uma predomina sobre a outra e (2) as duas apresentam igual relevncia. Acreditamos que este tipo de compreenso pode auxiliar no apenas a performance de poucas linhas de ana cristina, mas da prpria msica para instrumento acstico e eletrnica ao vivo.

AbstractThroughout 20th century the development of electronic and digital musical technologies influenced listening, composition and performance. The advent of sound recording at the end of 19th century disconnected musical hearing of its visual aspects and more attention was given to sound. Changes in the way of music listening lead to different compositional approaches such as electroacoustic music. Putting together electroacoustics equipments with live performance of traditional music instruments brought new challenges to the performer such as interaction with loudspeakers and time inflexible pre-recorded musical parts and the manipulation of interfaces to control live electronic. The purpose of this work is to discuss the questions that confront the performer when he plays interacting with electronic process. The musical analysis is based on the relation between acoustical instrument and electronics and on the functions of each one in the Silvio Ferrazs poucas linhas de ana cristina. This work can be played with or without electronics and our interest is to know the musical functions of electronics. The analysis of poucas linhas de ana cristina has been done in three parts: (1) analysis of the clarinet score, (2) study of the functions of the electronic and (3) analysis of the relationship between clarinet and electronics. The first part was based exclusively on Silvio Ferrazs compositional thoughts related to Deleuze and Guattari texts. The study of the functions of the electronics focused the aspects of enlargement of instrumental resources. The last part took the clarinet score as a reference to an analysis based on Smalleys Spectromorphology concepts and some Ferrazs thoughts. We identified two types of behaviors from the electronics: (1) textural mass built behind the clarinet and (2) melodies in counterpoint with clarinet. There are two relationships between the clarinet and the electronics: (1) one of predominance and (2) one of equal relevancy. We believe that this type of analysis can help performers to play not only poucas linhas de ana cristina, but also other pieces of music that demand interaction of acoustic instruments and live electronics.

Sumrio

1.

Introduo: as tecnologias de gravao e produo musical-------------- 12

Tecnologias de gravao sonora --------------------------------------------------------------13 Msica eletroacstica-----------------------------------------------------------------------------20 Unio de instrumento acstico com eletrnica ---------------------------------------------24 2. Anlise da msica eletroacstica---------------------------------------------------- 35

2.1. Anlise musical tradicional ---------------------------------------------------------------35 2.2. A anlise da msica eletroacstica-----------------------------------------------------39 2.2.1. 2.2.2. 3. A descrio de sons e de relaes estruturais------------------------------ 43 A espectromorfologia como ferramenta para anlise estrutural---------45

Anlise da pea poucas linhas de ana cristina---------------------------------- 54

3.1. Pensamentos composicionais de Silvio Ferraz--------------------------------------54 3.2. Anlise da partitura de clarineta---------------------------------------------------------65 3.3. Anacris: o processamento eletrnico da pea ---------------------------------------86 3.3.1 3.3.2 Harmonizer--------------------------------------------------------------------------- 86 O patch anacris---------------------------------------------------------------------- 90

3.4. Clarineta e eletrnica ao vivo ------------------------------------------------------------93 Concluso----------------------------------------------------------------------------------------- 102 Bibliografia---------------------------------------------------------------------------------------- 109 Anexo 1: Partitura de poucas linhas de ana cristina--------------------------------114 Anexo 2: Gravao de poucas linhas de ana cristina------------------------------ 119

(...) Pergunto aqui meus senhores Quem a loura donzela Que se chama Ana Cristina E que se diz ser algum E um fenmeno mor Ou um lapso sutil?(Ana Cristina Csar, 1985, p. 38)

1. Introduo:

as tecnologias produo musical1

de

gravao

e

As pesquisas acerca da gravao sonora iniciadas no fim do sculo XIX exerceram uma grande influncia no fazer musical do sculo XX, interferindo na escuta, na composio e na performance musical. Permitindo a captura do som, naturalmente efmero, estas tecnologias conduziram a outras formas de abordagem sonora e, posteriormente, musicais. De acordo com Iazzetta (2006), a utilizao musical destas tecnologias pode ser dividida em duas configuraes principais: as fonografias, relacionadas gravao e reproduo sonora, e a eletroacstica, relacionada composio musical a partir da criao e/ou manipulao de sons. A principal caracterstica da msica eletroacstica a explorao de sons tradicionalmente considerados no-musicais, sejam eles gravados ou produzidos eletronicamente, e o trabalho diretamente com a matria sonora, dispensando a intermediao da notao e do intrprete. A possibilidade de gravao musical e as prticas eletroacsticas foram ao mesmo tempo causa e conseqncia de transformaes na escuta e na performance instrumental, de modo que todos se influenciavam mutuamente, como pode ser visto em Schaeffer (1966), Chanan (1995), Thompson (1995) e Iazzetta (2006). As alteraes na performance de instrumento acstico remetem aos primeiros aparelhos de gravao e se devem s transformaes na escuta dos ouvintes e dos prprios intrpretes. A incluso dos instrumentos musicais tradicionais na msica eletroacstica deu origem msica eletroacstica mista, exigindo novas habilidades do intrprete.Este trabalho discute apenas a chamada msica de concerto, desconsiderando as vertentes de msica popular que utilizam instrumentos eltricos e/ou processamento eletrnico na sua criao e apresentao.1

Tecnologias de gravao sonoraGravaes levam a interpretao para a escuta daqueles que nunca haviam testemunhado a performance ao vivo; elas tm um valor documental, mas o que elas documentam, aquilo que nunca pde ser documentado anteriormente, a interpretao mais do que a obra.2

Na dcada de 1870, Thomas Edison iniciou as pesquisas que culminaram na idealizao e construo do primeiro aparelho de gravao: o fongrafo. Buscando uma melhoria do telgrafo atravs do cdigo Morse pr-gravado, Edison percebeu a produo de um rudo parecido com uma conversa humana, mas indiscernvel e, ao conectar o ponto de gravao deste telgrafo a um diafragma de telefone, ele gravou uma amostra da sua voz. O fongrafo lanado por Edison era constitudo de uma agulha de gravao montada sobre um cilindro com um corte em espiral recoberto por uma folha de estanho e conectado a uma manivela: medida que se girava a manivela, a gravao era feita ao longo da folha. Aps o lanamento do primeiro fongrafo, suas finalidades no eram muito definidas, indo da gravao de cartas, ditados e conversas telefnicas at caixas e brinquedos musicais (Chanan, 1995; Thompson, 1995). Graham Bell, interessado pelo desenvolvimento da gravao sonora, buscava aprimorar o fongrafo e, em 1886, patenteou o grafofone, que tem a agulha gravadora flutuante (e no mais anexada manivela) e motor eltrico, garantindo velocidade constante no giro do cilindro. O grafofone foi desenvolvido como uma mquina de escritrio e no teve sucesso no mercado devido falta de praticidade na sua operao (Chanan, 1995). A reproduo musical ainda no era o foco principal destes aparelhos devido limitada qualidade sonora, mas esta possibilidade no

Records carry the performance to the hearing of those who have never witnessed the performer live; they have documentary value, but what they document, which could never be documented before, is the performance rather than the piece (Chanan, 1995, p. 47).

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era descartada pelos construtores, tornando-se o objetivo principal das prximas pesquisas. A transmisso de msica via telefone e a construo de mquinas musicais operadas a partir do depsito de moedas foram os responsveis pela propulso da indstria de gravao sonora e somente em 1887, com a inveno do gramofone por Emile Berliner, foi possvel fazer cpias do material gravado. Isto se deve ao fato de que o gramofone utilizava discos ao invs dos cilindros dos aparelhos anteriores, o que possibilitava a gravao de um disco matriz e a prensagem das cpias, permitindo a gravao da performance de grandes intrpretes e sua comercializao em massa (Chanan, 1995; Thompson, 1995). As principais alteraes trazidas pela gravao sonora e musical foram a separao dos contextos onde se faz msica daqueles onde se escuta msica (Iazzetta, 2006) e a forma de escuta, mais direcionada para o som em si mesmo, desconectando-o dos aspectos visuais de sua produo. Como mostra Thompson (1995), na virada do sculo XIX para o sculo XX a vida musical americana era divida entre apresentaes pblicas, voltadas para um pblico mais numeroso, e apresentaes domsticas, realizadas em reunies familiares geralmente por msicos amadores. Segundo Iazzetta (2006, p. 47), esses agentes exerciam papis bastante determinados dentro da produo musical, ficando a criao a cargo dos compositores, que detinham tcnicas para tal, e a execuo para os intrpretes. Esses agentes representam a ponte mediadora entre aqueles que criam (compositores e intrpretes) e aqueles que escutam msica (p. 47). Desta forma, acostumados com a msica ao vivo, a possibilidade da reproduo musical gerou um grande desconforto inicial na situao de se ouvir uma msica vinda de dentro de uma caixa e sem se estar presente no momento de sua execuo (Iazzetta, 2006).

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Como pode ser visto nos diversos textos que tratam da gravao sonora (Chanan, 1995; Thompson, 1995; Freire, 2004; Iazzetta, 2006), o

desenvolvimento da indstria de gravao se deu de uma forma principalmente comercial, onde o objetivo de cada lanamento era convencer o consumidor da maravilhosa qualidade que o novo aparelho oferecia tanto para a gravao quanto para a reproduo. O primeiro passo para comprovar a qualidade do equipamento era mostrar o nvel de aproximao da sua sonoridade com a de uma performance ao vivo, dando origem ao conceito de fidelidade (Thompson, 1995; Iazzetta, 1997). Thompson (1995) mostra detalhadamente os testes de sonoridade realizados pelas Companhias Edison. Nestes testes, organizados como concertos em salas como a Carnegie Hall, em Nova Iorque, e a Symphony Hall, em Boston, um grande pblico de olhos vendados ou em plena escurido era submetido a um espetculo onde um artista renomado revezava com sua gravao em fongrafo e, segundo relatos da poca, nenhuma diferena sonora era identificada. Iazzetta (2006) ressalta que estes testes eram organizados de maneira muito cuidadosa e em um clima de magia com o objetivo de mostrar ao pblico uma mquina que reproduzia msica de qualidade, deixando passar despercebidos rudos e distores. Outro aspecto apresentado pelo autor o fato de que a audio um fenmeno dinmico, acomodando-se a diferentes contextos, e sujeita ao aprendizado. Segundo ele, as pessoas da poca no estavam acostumadas escuta proposta pelos aparelhos de reproduo e se os rudos no tivessem relao com o material gravado nem grandes variaes qualitativas, naturalmente passariam despercebidos. Corroborando com este argumento, temos uma afirmao de Bell em 1877 (citado por Chanan, 1995, p. 3) de que as conversas ao telefone se tornam simples aps algumas tentativas com

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as quais o ouvido se acostuma com os sons peculiares e encontra pequena dificuldade para compreender as palavras. Se na primeira metade do sculo XIX no havia muita diferena entre as performances pblicas e privadas, durante sua segunda metade, as performances pblicas passaram por um grande crescimento tcnico, desmotivando os intrpretes das apresentaes domsticas. No sculo XX, a apreciao musical, que antes s era possvel atravs das performances ao vivo, passa a acontecer tambm atravs de gravaes, com as quais o ouvinte adquire acesso s interpretaes de grandes msicos, podendo apreci-las em qualquer momento. Aliado a isso, as estratgias mercadolgicas desenvolvidas relacionavam os aparelhos de gravao e reproduo a um status de modernidade com o objetivo de convencer as pessoas a adquirirem estes equipamentos que adentraram os ambientes familiares e substituram os intrpretes das apresentaes domsticas (Thompson, 1995)3. Esta aceitao dos aparelhos de reproduo musical fez com que a msica passasse a ser ouvida principalmente atravs de gravaes e no mais exclusivamente nas performances ao vivo, desconectando a escuta musical do momento e local de sua produo. Tal separao trouxe mudanas para a produo musical, que se direcionou principalmente ao ouvinte (Iazzetta, 1997), e para a recepo, que perdeu os aspectos visuais e contextuais da performance ao vivo. Para Walter Benjamin (1936) no seu ensaio A Obra de Arte na poca de suas Tcnicas de Reproduo, onde trata sobretudo do cinema, a reproduo tcnica conduziu a uma crescente massificao da arte, desconectando-a dos aspectos ritualsticos e cultuais aos quais era inicialmente direcionada. Segundo o autor, a arte sempre foi suscetvel de reproduo, mas as tcnicas de reproduo3

Neste texto, Emily Thompson refere-se exclusivamente ao fongrafo.

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so novas e atingem o original da obra. A diferena est no fato de que as reprodues feitas pela mo do homem so consideradas, em princpio, como falsificaes e sobre elas o original mantm sua autoridade. J as reprodues tcnicas passaram a se impor como formas de arte por se distanciarem cada vez mais do original, como o caso da fotografia, que pode apreender aspectos que escapam ao olho e ir alm da viso natural (pp. 12-13). O advento da reproduo tcnica atingiu a obra no que o autor chama de autenticidade, que a unidade de sua presena no prprio local onde se encontra (p. 13). O que caracteriza a autenticidade de uma coisa tudo aquilo que ela contm e originalmente transmissvel, desde sua durao material at seu poder de testemunho histrico (p. 14). Neste tipo de reproduo, [a] catedral abandona sua localizao real a fim de se situar no estdio de um amador; o musicmano pode escutar a domiclio o coro executado numa sala de concerto ou ao ar livre (p. 13). Outro aspecto da obra de arte que atingido pelas tcnicas de reproduo sua aura, que se define como a nica apario de uma realidade longnqua, por mais prxima que esteja (p. 15):Num fim de tarde de vero, caso se siga com os olhos uma linha de montanhas ao longo do horizonte ou a de um galho, cuja sombra pousa sobre o nosso estado contemplativo, sentese a aura dessas montanhas, desse galho (p. 15, grifo do original).

Como mostra o autor, o que est essencialmente longe inatingvel (Benjamin, 1936, p. 16), que o que caracteriza o valor de culto da obra de arte e, na medida em que ela passa a ser reproduzida, este valor de culto substitudo por um outro: seu valor como realidade exibvel. Deste modo, com a reproduo, a obra de arte deixa de fazer parte de um local e de um momento, deixa de participar de

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um contexto e passa a ser exposta, transportada e exibida, perdendo a sua caracterstica de acontecimento nico. A reproduo tcnica da obra de arte atingiu tambm sensivelmente a interpretao, seja a do ator, sobre a qual fala Benjamin, seja a do instrumentista. Para Benjamin (1936, p. 21), a mediao de mecanismos entre a performance e o pblico resulta em duas conseqncias. A primeira que os mecanismos no esto obrigados a respeitar a performance, podendo modific-la. A segunda que o intrprete perde a possibilidade de se adaptar s reaes do pblico. No mbito musical, estas conseqncias tambm devem ser consideradas. A partir do momento em que gravada, a performance deixa de ser responsabilidade exclusiva do intrprete e passa a contar com os trabalhos dos tcnicos e engenheiros de som nas atividades de edio. Assim como no cinema as necessidades elementares da tcnica de operar dissociam, elas prprias, o desempenho do ator numa rapsdia de episdios a partir da qual deve-se [sic], em seguida, realizar a montagem (p. 23), na msica, a partir da gravao multipista, o desempenho do intrprete tornou-se segmentado. Gravada em uma srie de tomadas separadas e montada posteriormente em estdio, a performance passou a contar com os processos de edio que permitem cada vez mais ajustes de pequenos detalhes de sincronia, afinao e equilbrio, levando a performance musical a nveis de perfeio inimaginveis. De acordo com a segunda conseqncia apresentada por Benjamin, o intrprete perde o seu contato com o pblico e a performance o seu carter de acontecimento nico. Unindo estas duas conseqncias, a performance perde o seu fluxo temporal e energtico e, para Chanan (1995, p. 18), um novo tipo de intrprete necessrio, o virtuoso das tomadas repetidas [repeated takes]. Com o crescente

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detalhamento tcnico das performances gravadas, devido evoluo tecnolgica dos aparelhos de gravao, o padro de referncia deixou de ser a performance ao vivo e passou para a gravao. Desse modo, o conceito de fidelidade tornouse inconsistente: a fidelidade de uma reproduo no estabelecida pela comparao com seu original, mas em relao ao padro imposto pela prpria tecnologia de gravao (Iazzetta, 1997, p. 30). Considerando que a audio um sentido sujeito ao aprendizado e ao costume, este crescimento tcnico das performances gravadas foi responsvel pela formao de um novo ouvinte, acostumado com performances perfeitas e ricas em detalhes muitas vezes inapreensveis numa performance ao vivo, e entre estes ouvintes est o prprio intrprete. Como pode ser visto em alguns textos (Chanan, 1995; Thompson, 1995), inicialmente a indstria de gravao selecionava os melhores intrpretes para serem gravados, com os objetivos de convencer o consumidor de que a gravao trazia msica de qualidade e de se tornar comercializvel, o que, como j foi mencionado, desmotivou os intrpretes das performances domsticas. Aliado a isso, a evoluo tcnica das tecnologias de gravao elevou as performances gravadas a um nvel de qualidade extremo e a possibilidade de ouvir suas prprias gravaes e de compar-las s de outros msicos faz com que os intrpretes busquem nveis cada vez mais altos em suas interpretaes ao vivo, configurando uma total inverso nos padres de referncia (Iazzetta, 1997). Como mostra Thompson (1995), a gravao musical inicialmente adquiriu um carter conservador, perpetuando o repertrio j existente. No entanto, algumas experincias buscaram novos rumos para a pesquisa musical nas possibilidades suscitadas pela gravao e como afirma Chanan (1995, p. 9): a

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gravao transformou a msica atravs da transformao da experincia de escuta. A possibilidade de capturar o som, de escut-lo repetidamente e de alterar a sua velocidade permitiu uma ateno maior aos seus detalhes e conduziu a uma escuta musical diferente daquela condicionada pela notao. Para pesquisas como aquelas sobre msica folclrica realizadas pelos compositores Bla Bartk e Zoltn Kodly, a gravao exerceu um papel de utilidade inestimvel (Bartk, 1937). Como mostra Chanan (1995, pp. 09-10), estes compositores gravavam msicas folclricas da Europa Oriental e depois as ouviam repetidas vezes e, ao tentar transcrev-las, notaram que a notao tradicional era insuficiente para tal tarefa. Segundo Bartk (1937, p. 33), sem tais procedimentos [de gravao], o estudo dos materiais do folclore musical no seria, no sentido que damos hoje a esta palavra, exaustivo e at mesmo a coleta de tais materiais se mostraria impossvel, devido a uma notao que no passa de aproximativa. Como mostra Chanan (1995, p. 11), para Bartk a gravao exerceu um papel seminal em despertar sua audio para a presena e significncia destes vrios poderes sutis de expresso.

Msica eletroacsticaPessoalmente, pelas minhas concepes, eu preciso de um meio de expresso inteiramente novo: uma mquina produtora de som (no uma mquina reprodutora de som). Atualmente j possvel construir tais mquinas com apenas algumas pesquisas adicionais.4

A busca por novas sonoridades e pela renovao da escuta tem sido uma das principais preocupaes da composio musical desde o final do sculo XIX. Experincias que vo desde o rompimento com o tonalismo em busca de novas organizaes das alturas, como aquelas de Debussy, Schoenberg, Berg e4

Varse citado por Schwartz (1978, p. 200 grifos do original).

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Webern, at s inovaes sonoras e instrumentais de Varse e Cage so frutos de um crescente desejo por sonoridades diferentes daquelas disponveis para a msica do sculo XIX. As pesquisas de Steve Reich e Philip Glass com o minimalismo se interessavam mais pela explorao de uma experincia de escuta que no se voltasse para grandes desenvolvimentos formais como aqueles da msica tonal e serial, mas que se concentrasse no detalhe suscitado pela intermitente repetio de material com pequenas variaes. Outro tipo de inovao nas prticas musicais foram as exploraes rtmicas de Stravinsky que, para Boulez (1966), na dcada de 1960 ainda mantinham o seu potencial de inovao, e de Messiaen, no seu desejo de desconstruo do tempo musical, principalmente no Quatuor pour la fin du temps (Messiaen, 1941). Em Catalogue DOiseaux, Messiaen (1958) cria diversas correspondncias musicais com cantos de pssaros atravs da utilizao de diferentes organizaes rtmicas e de alturas e da repetio de estruturas com pequenas e constantes deformaes, o que apresenta tanto a busca por novas sonoridades quanto pede uma escuta localizada nos detalhes destas microdeformaes. Mas talvez, um dos compositores que tenha mais se interessado por novas experincias sonoras seja Edgard Varse, aproveitando-se de um gosto pelas sonoridades urbanas, como mostra Griffiths (1986). Em algumas de suas conferncias (Schwartz, 1978), podemos notar seu anseio por uma liberao sonora dos limites da notao, dos instrumentistas e dos instrumentos tradicionais e da interpretao, almejando aparatos que permitissem msica passar diretamente do compositor ao ouvinte. Este interesse de Varse pela renovao das sonoridades musicais foi alimentado

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pelo desenvolvimento da gravao sonora e dos instrumentos musicais eltricos e eletrnicos5. Desde o incio do sculo XX, compositores desejavam criar obras para instrumentos eltricos com os mais diversos objetivos, do desejo de perfeio absoluta busca de novos timbres e formas de expresso musical. Um bom exemplo o caso de Stravinsky que, por volta de 1920, comps algumas peas para pianola com o objetivo de ultrapassar os limites humanos e diminuir a interferncia do intrprete (Bartk, 1937). Apesar da inveno de instrumentos musicais como o ondes martenot, o theremin e o trautonium ajudar na criao de timbres diferentes daqueles dos instrumentos tradicionais, eles no contriburam para o estabelecimento de novos gneros musicais (Griffiths, 1986; Emmerson e Smalley, 2001). Foram as tcnicas proporcionadas pela gravao de fita, como controle da velocidade de gravao e direo de reproduo, que proporcionaram o verdadeiro nascimento da msica eletrnica (Griffiths, 1986, p. 145). As pesquisas da msica eletroacstica seguiam aqueles anseios por novas sonoridades, pela renovao da escuta e por ultrapassar os limites da notao e do intrprete, compondo diretamente sobre o meio de difuso, e buscavam utilizar as tecnologias disponveis no mais para a manuteno do repertrio tradicional e para as pesquisas folclricas, mas para a criao de novas formas de expresso musical. O Concert de Bruits organizado por Pierre Schaeffer e transmitido pela rdio francesa em 5 de outubro de 1948 ficou oficialmente reconhecido como marco inicial da msica eletroacstica. Originria5

Davies (2001) apresenta a diferena entre as denominaes eltrico e eletrnico para instrumentos musicais a partir da forma de gerao sonora. Grosso modo, os instrumentos musicais eltricos so divididos em dois tipos: instrumentos eletroacsticos, que geram sons por meios acsticos e tm amplificao eltrica, e instrumentos eletromecnicos, nos quais uma flutuao no circuito eltrico convertida em sinal de udio. J nos instrumentos musicais eletrnicos, o som gerado por osciladores eletrnicos ou circuitos digitais.

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da Frana sob a coordenao de Pierre Schaeffer e Pierre Henry, a musique concrte buscava a composio musical a partir da gravao e manipulao dos sons existentes, indo do material concreto a uma construo abstrata. Na Alemanha, a possibilidade de criao eletrnica de novas sonoridades a partir da sobreposio de senides serviu como material para as pesquisas lideradas pelos compositores Herbert Eimert e Karlheinz Stockhausen, culminando na

Elektronische Musik que, como uma seguidora do serialismo, parte de um a priori abstrato em busca de uma manifestao sonora concreta. Na dcada de 1950, os procedimentos destas duas vertentes foram unidos sob a denominao msica eletroacstica, que tem como interesse inicial a composio direta no som, dispensando a notao e o intrprete. Por um lado, os compositores da msica concreta desejavam partir do som, desconectar a msica de suas referncias externas e ir alm da sonoridade tradicional, o que no era possvel com o instrumento acstico e com o sistema de notao musical tradicional. Por outro lado, aqueles da msica eletrnica buscavam maior objetividade na composio e na execuo de suas obras, procurando extrapolar os limites humanos da interpretao. As pesquisas para a utilizao de tecnologias eletrnicas na composio musical aconteciam simultaneamente em diversas partes do mundo e, aps o Concert de Bruits em 1948, vrias formas de utilizao destas tecnologias se manifestaram, adquirindo denominaes diferentes. Alm da msica concreta e da msica eletrnica, temos tambm a msica para fita (tape music), que mais relacionada s prticas desenvolvidas nos Estados Unidos no incio dos anos 1950. Mais tarde, em 1957, foram feitas as primeiras experincias de utilizao do computador como ferramenta composicional, desenvolvendo a msica computacional (Computer Music) (Emmerson e Smalley, 2001). Apesar de

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aparentemente divergentes, estas prticas musicais se encontram no que se refere ao uso no convencional da aparelhagem eletroacstica (Freire, 2004, p. 98) e na busca de um controle cada vez maior do material e do resultado sonoro e, deste ponto de vista, a supresso dos executantes seria encarada como mais uma vantagem (Griffiths, 1986, p. 146). Mas, como mostra Iazzetta (2006), alguns aspectos comeam a causar desconforto, como a ausncia do intrprete que chama a ateno para a importncia expressiva de sua presena. Aos poucos, o intrprete comeou a ser mais um elemento das prticas eletroacsticas, o que no se tratava apenas de trazer sons instrumentais para uma produo eletroacstica geralmente realizada em estdio, mas de levar essa produo eletrnica para interagir com a performance no palco (Iazzetta, 2006, p. 96).

Unio de instrumento acstico com eletrnicaParece-me agora inteiramente aberto, escreveu, o caminho para um maior desenvolvimento da msica instrumental, pois suas qualidades insubstituveis e acima de tudo sua constante versatilidade, seu carter vivo j podem ser combinados s conquistas da msica eletrnica para constituir uma nova unidade6.

A partir de 1952, surgiram as primeiras obras que uniram recursos eletroacsticos com intrpretes tradicionais7 em performances ao vivo: Musica su due dimensioni I, para flauta, cmbalo e fita, de Bruno Maderna em 1952; Orphe 53, para soprano e fita, de Pierre Schaeffer e Pierre Henry em 1953 (Emmerson e Smalley, 2001) e Dserts, para orquestra e fita, de Varse em 1954 (Griffiths, 1986). A unio de instrumento acstico com procedimentos eletroacsticos produziu, at os dias atuais, trs tipos principais de interao: (1) msica eletroacstica mista que, como mostra Emmerson e Smalley (2001), se refere6 7

Stockhausen citado por Griffiths (1986, p. 153). So aqui denominados intrpretes tradicionais os cantores e intrpretes de instrumento acstico.

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quelas onde o instrumentista interage com a eletrnica8 pr-gravada; (2) msica com eletrnica ao vivo, na qual o som produzido pelo instrumento acstico modificado pela eletrnica no momento da performance (Emmerson e Smalley, 2001); e (3) sistemas interativos, onde os intrpretes fornecem informaes a serem interpretadas pelas mquinas e que modificam sua atuao de acordo com as respostas delas advindas (e vice-versa) (Freire, 2004, p. 167). Estes trs tipos de interao trazem diferentes questes para a performance de instrumento acstico que no estavam presentes na msica tradicional como a sincronizao com uma parte pr-gravada inflexvel ou a necessidade de controlar dispositivos ao mesmo tempo em que se toca um instrumento. A questo principal neste tipo de performance est no nvel de interao entre o instrumentista e a eletrnica, que vai desde a plena adaptao s condies impostas pela eletrnica at nveis onde o instrumentista pode manipul-la no momento da performance. As relaes entre as sonoridades do instrumento acstico e da eletrnica podem ser genericamente caracterizadas como solo/acompanhamento, complementaridade, indiferena, domnio, conflito etc. (Freire, 2004, p. 141), explorando o contraste entre as sonoridades ou criando situaes de ambigidade (Freire, 2004). Na msica eletroacstica mista, assim como foi definida anteriormente, a parte da eletrnica criada previamente em estdio pelo compositor e gravada em algum suporte (fita, CD, HD), tornandose fixa e inflexvel. Nestas obras, a interao aparece como uma via de mo nica, onde apenas o intrprete flexvel para se adaptar s caractersticas fixadas na gravao, seja referente a timbre, afinao, nveis de intensidade,8

O termo eletrnica utilizado de forma abrangente, referindo-se aos diversos procedimentos eletroacsticos, seja a gravao e manipulao sonora em estdio, seja o processamento de som ao vivo.

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tempo e sincronia de eventos. Iazzetta (2006, p. 102) apresenta duas questes deste tipo de performance:A primeira refere-se temporalidade, uma vez que a fita uma espcie de msico surdo e egosta, incapaz de demonstrar um gesto de ateno para com os outros msicos com quem atua. Assim o intrprete precisa estar adequando-se o tempo todo ao ritmo da gravao. (...) Uma outra questo diz respeito dificuldade de se equalizar a potncia e qualidade sonora dos msicos em relao parte gravada. Quase sempre necessrio recorrer amplificao das vozes e instrumentos, bem como adio de filtros e efeitos (em especial, reverberao) para que o som do instrumento possa soar com a mesma ambincia sonora criada pelo compositor para a parte gravada realizada em estdio.

Para Kimura (1995), o tempo musical pr-determinado nas gravaes muitas vezes obriga o intrprete a tocar em tempos muito desconfortveis, necessitando eventualmente da utilizao de clicks para a marcao do tempo, o que o leva a descuidar-se do resultado sonoro. Paul Lansky (citado por Kimura, 1995) diz que existem duas estratgias que o compositor pode considerar ao escrever para instrumento musical tradicional em interao com eletrnica pr-gravada: (1) a eletrnica pode funcionar como um intrprete independente ou (2) como uma extenso dos recursos do instrumento. Estas duas abordagens exigem diferentes posturas do instrumentista no momento da performance e podem ser observadas nas peas Dialogue de LOmbre Double de Pierre Boulez (1985) e Clarinet Threads de Denis Smalley (1985). Dialogue de LOmbre Double (Figura 1.1), para clarineta e eletrnica prgravada, de Pierre Boulez, foi composta em homenagem aos sessenta anos de Luciano Berio. A eletrnica deve ser gravada pelo prprio clarinetista, que pode determinar algumas nuanas temporais e dinmicas j no momento da gravao.

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Figura 1.1: Trecho de Dialogue de LOmbre Double de Pierre Boulez (1985). A clarineta ao vivo e a gravada tocam simultaneamente apenas nas transies de uma para a outra.

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Na performance, a clarineta ao vivo reveza com a clarineta gravada e so poucos os momentos onde as duas tocam simultaneamente, somente nas transies de uma para outra, o que minimiza o problema de sincronizao. Contudo, depois de fixada, a gravao se torna inflexvel e no se adapta ao contexto e s condies acsticas discutidas por Kimura (1995). Aqui, a eletrnica funciona como um outro intrprete e, para Lansky (citado por Kimura, 1995), o problema deste tipo de abordagem que a gravao se configura como um intrprete deficiente que, como comenta Kimura, no capaz de ouvir e se adaptar ao contexto. Clarinet Threads, para clarineta amplificada e sons eletroacsticos de Denis Smalley (1985), apresenta caractersticas bastante diferentes daquelas da pea de Boulez, pois aqui, a eletrnica pr-gravada funciona mais como uma extenso dos recursos instrumentais utilizados pelo compositor. Smalley compe a eletrnica a partir da gravao e transformao em estdio de sons de clarineta e na parte do instrumento, explora rudos de sopro e barulhos de chave entre outros efeitos, e d vrias indicaes para que o clarinetista imite a eletrnica. Deste modo, ele desconstri a clarineta tanto na parte eletrnica quanto na instrumental e faz com que suas caractersticas sonoras coincidam

freqentemente, formando um amlgama que beira o indiscernvel. Para isso, ele utiliza uma microfonao especfica com dois microfones distantes do instrumento (distant mikes), para a amplificao geral, e dois microfones o mais prximo possvel (close mikes), para a amplificao dos sons de baixa intensidade, como pode ser visto na Figura 1.2 (Smalley, 1985; Freire, 2004). Apesar de deixar o clarinetista mais livre em alguns momentos, a fixao da parte pr-gravada guarda caractersticas macro-temporais que constringem o tempo do

instrumentista.

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Figura 1.2: Trecho de Clarinet Threads de Denis Smalley (1985). Na parte inferior da figura, podemos ver as indicaes para a microfonao.

Na msica com eletrnica ao vivo, o som do instrumento acstico transformado no momento de sua produo e naquelas com sistemas interativos, o intrprete comunica-se com a mquina (Emmerson e Smalley, 2001; Freire, 2004), o que traz maior flexibilidade temporal para as performances. Kimura (1995) comps sua pea U (The Cormorant) inicialmente para violino e parte eletrnica realizada por um sequencer e, posteriormente, decidiu fazer uma verso interativa, tornando a parte eletrnica um pouco mais flexvel, pois assim, a eletrnica seguiria o intrprete, ao invs de o intrprete segui-la (p. 73). Mas a verdadeira motivao dos sistemas interativos est no retorno da imprevisibilidade e na efetiva comunicao entre o instrumentista e a eletrnica de modo que ambos se modifiquem no momento da performance. Para melhorar esta

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comunicao, algumas peas propem o uso de dispositivos com os quais o intrprete controla a eletrnica no momento da performance, como o caso da pea Narcissus de Thea Musgrave (1989)9. Esta msica altamente descritiva e baseada no mito grego de Narciso e tem como elemento principal uma espcie de cnone imitativo obtido atravs da utilizao de atraso digital (digital delay)10: o som da clarineta sem processamento enviado para caixa esquerda do palco e o som processado por diferentes configuraes de eco, para a caixa direita, representando o Narciso e sua imagem, respectivamente (Figura 1.3). Para a realizao de efeitos que muitas vezes apresentam caractersticas temticas ou descritivas, o intrprete usa trs pedais: um pedal de volume, para controle do nvel de intensidade do eco; um pedal bypass, que liga e desliga o eco; e um pedal hold, que liga e desliga o efeito de repetio circular do eco.

Figura 1.3: mapa da montagem de Narcissus, de Thea Musgrave. O clarinetista fica posicionado atrs da caixa esquerda do palco e o som processado emitido pela caixa direita, representando o Narciso e sua imagem.

Neste caso, alm de tocar a eletrnica, cujas indicaes esto todas na partitura, o clarinetista tem controle tambm sobre o equilbrio sonoro entre o

A verso original desta pea foi escrita para flauta em 1987, mas a prpria compositora escreveu esta verso para clarineta em 1989. 10 Nesta pea, o atraso digital funciona sempre como efeito de eco numa faixa de atraso que vai de 256 a 1024ms.

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instrumento acstico e a eletrnica, permitindo uma flexibilidade semelhante quela da msica instrumental. Por outro lado, tais controladores aparecem como um instrumento a mais a ser manipulado durante a performance. Kimura (1995) se preocupa com o controle da sonoridade em msica eletroacstica mista em diferentes ambientes. Como na msica tradicional, onde o equilbrio da sonoridade fica a cargo dos intrpretes, Kimura diz que tambm na msica eletroacstica o instrumentista responsvel por todo o resultado sonoro que chega ao ouvinte. Aliado a isso, a autora apresenta alguns problemas como o conhecimento da acstica das salas de concerto e a possibilidade de o intrprete controlar os nveis de intensidade da eletrnica, problema que j existia na msica tradicional e acentuado na msica eletroacstica devido diferena entre as difuses sonoras dos instrumentos e das caixas acsticas. Instrumentos apresentam uma sonoridade menos incisiva (Mannis, 2006) e se mantm fixos no centro do palco enquanto o som da eletrnica espalhado pelos alto-falantes. Kimura (1995) sugere a utilizao de monitores de retorno para informar o intrprete sobre o resultado sonoro final. Para minimizar a diferena de difuso, Mannis (2006) prope a utilizao de um nmero maior de caixas acsticas, aumentando o nmero de projees e de reflexes dos sons emitidos pelos altofalantes. Apesar da liberdade temporal mencionada como recurso da msica com eletrnica ao vivo, Narcissus traz momentos que demandam uma sincronia estrita entre intrprete e eletrnica, como no cnone realizado pelo eco que segue a clarineta num tempo fixo pr-estabelecido de 256ms, o que corresponde a q = 117 (Figura 1.4). Utilizando-se o pedal hold, a eletrnica comea uma repetio contnua de durao fixa que funciona como uma marcao metronmica neste tempo. 31

Figura 1.4: Trecho da pea Narcissus de Thea Musgrave. Neste trecho a clarineta toca junto com uma imitao realizada pela eletrnica. A imitao acontece de acordo com o tempo do atraso digital de 256ms, fazendo a clarineta obedecer a um tempo pr-estabelecido.

Para controlar a eletrnica e criar uma interpretao consciente, importante que o intrprete conhea tanto a parte tocada pelo instrumento

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acstico quanto a parte tocada pela eletrnica, que normalmente no est notada na partitura. Acreditamos que um estudo analtico como o que aqui apresentamos, o qual procurou discutir questes alm da anlise de poucas linhas de ana cristina, pode auxiliar na performance no s desta obra, mas da msica com eletrnica ao vivo em geral.

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17.10.68 Forma sem norma Defesa cotidiana Contedo tudo Abranges uma ana(Ana Cristina Csar, 1985, p. 36)

2. Anlise da msica eletroacsticaA anlise musical, reconhecida como disciplina autnoma desde o sculo XIX, apia-se tradicionalmente na notao musical como objeto principal de estudo. A msica eletroacstica absteve-se da partitura e suscitou um problema para a anlise, que teve de voltar-se para o som em si. A msica mista e a com eletrnica ao vivo utilizam algum tipo de notao para guiar o instrumentista, mas esta nem sempre traz indicaes precisas sobre o contedo da eletrnica e quando traz, bastante incompleto. Para uma plena compreenso do contedo destas msicas, so necessrias metodologias de anlise que lancem mo tanto da partitura do instrumentista quanto dos elementos musicais no notados.

2.1. Anlise musical tradicional sobre essa ambigidade estrutural e existencial, de saber tudo, e de nada saber (sobre o que de fato importa), que a anlise se equilibra como arte metafrica, como tcnica, cincia e, sobretudo, esttica, ou seja, como feito composicional. Por que, e para que, compor anlises? Eis a pergunta, em plena ressignificao1.

Segundo Bent e Pople (2001, p. 526), a anlise aquela parte do estudo da msica que tem o seu ponto de partida na msica em si mesma mais do que em fatores externos. Historicamente, a origem da anlise musical remonta aos anos 1750, mas nesta poca ela era considerada uma disciplina de apoio performance e composio, surgindo como uma disciplina autnoma apenas no final do sculo XIX (Bent e Pople, 2001). Seu desenvolvimento esteve sempre ligado aos elementos da composio musical seja com a finalidade de se interpretar a msica ou como uma atividade pedaggica relacionada ao estudo de composio, influenciando-se pelos preconceitos da cultura de sua poca. Em1

Lima, 2006.

geral, as metodologias de anlise musical apresentadas por Cook (1994) e Bent e Pople (2001) buscam decodificar os elementos composicionais e responder questes de uma poca especfica: as tcnicas de ornamentao e o baixo cifrado, ambos orientados performance e que se mantiveram da msica medieval msica barroca; o sistema modal e a retrica na msica eclesistica medieval e renascentista; a teoria da harmonia, que pode ser encontrada desde a filosofia grega; as teorias voltadas para o tonalismo, a forma e as organizaes estruturais como a anlise musical schenkeriana; a teoria dos conjuntos de Allen Forte, que se preocupa com a organizao das alturas em msicas sem um centro tonal; etc. Durante o Romantismo, um interesse pelo contedo musical em si mesmo despertou formas de anlise que se desprenderam do servio composio e performance e no tinham interesse nas espcies do passado, mas desejavam entrar no passado, descobrir sua essncia (Bent e Pople, 2001, p. 536). Este novo interesse unido ao culto ao gnio do Romantismo deu incio a uma nova forma de anlise denominada anlise estilstica (Bent e Pople, 2001), que buscava identificar aspectos comuns em diversas obras de um mesmo compositor. Todas estas diferentes diretrizes analticas, seja como apoio pedaggico ou como atividade independente, compreendem a anlise como atividade objetiva mais relacionada descrio do que ao julgamento (Bent e Pople, 2001), concentrando-se especialmente na decodificao da organizao estrutural das obras analisadas:Mais formalmente, pode-se dizer que a anlise inclui a interpretao de estruturas em msica, unida sua decomposio em elementos constituintes relativamente mais simples, e na investigao das funes relevantes destes elementos (Bent e Pople, 2001, p. 526).

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A estrutura inerente do objeto musical tornou-se assunto comum dos mtodos de anlise, no apenas nas anlises conduzidas pela melodia [voice-leading] ou na teoria dos conjuntos, mas, definida diferentemente, tambm nas abordagens semiticas, bem como nas mais recentes teorias de anlise como a teoria generativa (Lerdahl e Jackendoff citados por Dunsby, 1992, p. 643).

Para Bent e Pople (2001), como a msica no tangvel nem mensurvel, o objeto da anlise musical precisa ser determinado, seja a partitura, uma imagem sonora suscitada por esta partitura ou uma performance. Mas, devido dificuldade de determinar onde termina a composio e comea a interpretao, a maioria das anlises ocidentais considera a partitura como apresentao finalizada das idias musicais. Para Dunsby (1992, p. 643), a excessiva concentrao na estrutura conduziu a uma situao radical: uma obsesso dos analistas pela nota acima de todos os outros fatores. Esta concentrao excessiva na notao tornou-se uma espcie de bloqueio do trabalho do analista, limitando o seu campo de ao tanto no que concerne msica antiga, msica popular e ao material etnomusicolgico (Bent e Pople, 2001), quanto quelas msicas que utilizam eletrnica para sua produo e performance. No perodo posterior II Guerra Mundial, vrias pesquisas no campo da anlise musical buscaram ampliar os seus domnios adotando noes de outras reas do conhecimento, como a lingstica, a semitica, o estruturalismo, a teoria da informao, a ciberntica e a fenomenologia (Bent e Pople, 2001), como a semiologia da msica de Molino e Nattiez (1990) e a anlise musical fenomenolgica. Estas linhas de pesquisa tm o objetivo de ir alm dos aspectos pertencentes obra musical em si e consideram tambm elementos importantes da composio e recepo desta obra. No entanto, tais correntes analticas

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continuam arraigadas ao desejo de objetividade cientfica e produzem textos analticos sobre msica com aspirao verdade e no textos analticos musicais, que sejam produtos da prpria experincia musical, como propem Ferraz (1998 e 2005) e Lima (2006). Para Silvio Ferraz (2005, p. 41),Muitas das anlises musicais depositam na matria e na forma a essncia da msica. Mas esta essncia apenas aquilo que nos dado como um senso comum, aquilo que est o mais prximo de ns, dado por uma poca, por um lugar.

Ferraz (1998; 2005) sustenta uma viso bastante crtica em relao s teorias que abordam a composio musical como mera organizao de matria. Assim como este pensamento composicional leva produo de obras enfadonhas, para Ferraz, as anlises que se preocupam apenas em decodificar a matria organizada so da mesma forma enfadonhas e no comportam nada da msica analisada. Para ele, falta anlise descrever e produzir um efeito e se fazer dentro de um campo de batalha (Ferraz, 2005, p.18). Saber a estrutura, saber as resolues formais de alguma coisa pouco me ajuda a saber porque o som sofre esta transformao que est fora dele de tornar-se msica (p. 33). Em O Campo da Anlise Musical e suas Ontologias, Paulo Costa Lima (2006) afirma:A exterioridade de um objeto musical a ser segmentado e sistematicamente entendido no condiz com o cerne da experincia analtica em msica, justamente porque o todo analtico , em resumo, a prpria experincia musical, uma construo do sujeito ouvinte (e analisante).

Este texto de Lima defende a importncia de se considerar a subjetividade do analista e de se recuperar a beleza da anlise musical. Para ele,pensar no campo analtico como uma espcie de continuum que se inicia diretamente na experincia musical e que se espraia na direo de fazeres musicais os mais diversos

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implica em reconhecer uma nova flexibilidade, desistindo do ideal positivista de um territrio claramente demarcado (Lima, 2006).

Para ambos, a anlise deve ser um produto da experincia musical do analista, contendo em si mesma esta experincia. Mas o maior problema para tal ambio so as limitaes impostas pela palavra e pela intraduzibilidade do vivido sonoro. Ferraz (1998; 2005) prope anlises que, lanando mo da matria, descrevam as sensaes despertadas durante suas escutas das msicas analisadas e que apaream mais como um produto dos seus pensamentos composicionais.

2.2. A anlise da msica eletroacsticaSe pudermos entender nossa relao com a vasta gama de sons da msica eletroacstica, ento estaremos mais bem posicionados para chegar a uma compreenso da msica e da escuta como prticas culturais: esta a grande ambio de uma agenda analtica centrada na msica eletroacstica.2

Com as primeiras pesquisas musicais que utilizaram a gravao, a escuta comeou a abrir os ouvidos para a percepo de sonoridades que mostraram a insuficincia da notao musical tradicional. A msica eletroacstica e a msica com eletrnica ao vivo e/ou sistemas interativos quando no prescindem totalmente da notao, a apresentam de forma mais incompleta do que a msica tradicional para instrumento acstico, pois geralmente no contm indicaes precisas sobre a parte tocada pela eletrnica, trazendo novas questes para a anlise musical e a necessidade de novas metodologias analticas. Segundo Smalley (1986; 1997), a crescente explorao do material sonoro na msica do sculo XX trouxe problemas tanto para o compositor quanto para o analista: aoIf we can understand our relationship to the wide-ranging sound-world of electroacoustic music, then we shall be better positioned to arrive at a more comprehensive understanding of music and listening as cultural practices: that is the longer-term ambition of an analytical agenda centred on electroacoustic music. Camilleri e Smalley (1998) na introduo do Journal of New Music Research vol. 27 no. 1-2 em comemorao aos 50 anos da msica eletroacstica.2

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compositor apresentam-se questes sobre como construir estruturas musicais e qual caminho esttico seguir diante da enorme disponibilidade de sons musicalmente utilizveis; ao analista, a falta de um sistema de notao que traga um apoio visual e a carncia de um vocabulrio para a descrio sonora dificultam a abordagem da nova explorao musical. Durante os mais de cinqenta anos de histria da msica eletroacstica, apesar da afirmao de Nattiez (1990, p. 51) de que no h hoje ningum para analisar as msicas eletroacsticas, algumas diretrizes de anlise musical que a comportem vm sendo desenvolvidas. Segundo Giselle Ferreira (19--), a maior dificuldade para esse desenvolvimento a falta de uma base conceitual largamente aceita entre as linhas tericas da msica eletroacstica. A espectromorfologia de Denis Smalley (1986; 1993; 1997), inicialmente baseada na tipo-morfologia de Pierre Schaeffer (Schaeffer, 1966; Palombini, 1993), as anlises comparativas entre diferentes obras (Emmerson, 1998), os

comportamentos de escuta (listening behaviours) de Franois Delalande (Delalande, 1998; Gubernikoff, 2003) e as abordagens fenomenolgicas (Ferreira, 19--) so alguns exemplos das diferentes diretrizes analticas existentes. Pierre Schaeffer desenvolveu suas teorias em busca de novas formas de escuta e de abordagem do fenmeno sonoro, desvinculando-o de seus aspectos referenciais a eventos externos e descondicionando a audio das prticas tradicionais centradas nos parmetros da nota musical: altura, durao e intensidade (Schaeffer, 1957; 1966). Denis Smalley criou sua espectromorfologia para a anlise e descrio da experincia de escuta e, embora baseada nas pesquisas de Schaeffer, ela permite a referncia do som com eventos exteriores (Smalley, 1992a; 1992b; 1997). A anlise comparativa empregada por Emmerson

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(1998) aborda a utilizao de instrumento tradicional em obras eletroacsticas atravs da escuta de gravao destas obras. Utilizando a espectromorfologia de Smalley, ele observa os espaos criados tanto pelo instrumento quanto pela eletrnica em trs obras eletroacsticas que utilizam instrumento musical tradicional em algum momento de sua produo. Por outro lado, Franois Delalande (1998) no se preocupa com a descrio sonora, mas com a postura do ouvinte perante a obra. Para ele, a forma, a estrutura e a msica em si alteram-se de acordo com a escuta empregada pelo ouvinte. Delalande (1998) apresentou a pea Sommeil de Pierre Henry para um grupo de oito pessoas que deveriam, logo aps a audio, escrever sobre sua experincia de escuta e sobre a pea ouvida. A partir da anlise dos textos dos ouvintes, o autor identificou trs posturas de escuta principais: escuta taxonmica, escuta emptica e

figurativizao. As propostas de Smalley e Delalande foram empregadas por Gubernikoff (2003) nas anlises das peas Introduo Pedra de Rodolfo Caesar e Dsintgrations de Tristan Murail. Para a autora, as duas metodologias tm pontos em comum em relao semantizao da escuta da msica eletroacstica.Mas, h uma divergncia fundamental: Smalley aceita a sua escuta como guia para a anlise, o seu ponto de vista enquanto Delalande prope uma pertinncia social, ou pelo menos pontos consensuais para estabelecer as pertinncias (Gubernikoff, 2003, p. 42).

Ferreira (19--) prope uma anlise musical absolutamente estsica, ou seja, baseada exclusivamente na escuta e no em aspectos composicionais ou em transcries. Com o objetivo de identificar e descrever as estruturas sonoras e as relaes entre elas, sua articulao, ela utiliza diversos conceitos desenvolvidos por Smalley na espectromorfologia. Seu conceito de estruturas sonoras se 41

contrape ao objeto sonoro de Pierre Schaeffer3. Para a autora (Ferreira, 19--, p. 125),A combinao dos bem conhecidos objetos sonoros pode resultar na completa destruio de suas identidades (perceptivas). As estruturas sonoras so propostas como perceptos, i.e. objetos integrados pela percepo que no podem ser separados na prtica do contexto em que so identificados.

Alm dos conceitos de Smalley, ela identifica a organizao da pea atravs da escuta aberta (open listening) proposta por Ferrara, que a atitude do analista que permite emergir todas as dimenses de significado (Ferreira, 19--, p. 68) e a sua segmentao atravs da escuta reduzida de Schaeffer4. Tendo como objetivo uma anlise fenomenolgica, ela considera os aspectos estruturais da obra e as imagens despertadas na escuta: o simbolismo, que so as imagens relacionadas aos arqutipos culturais e imagens ontolgicas, que so aquelas despertadas na experincia pessoal do ouvinte (Ferreira, 19--, p. 135). Observando as diretrizes analticas aqui apresentadas, notamos que todas se apiam na escuta da msica eletroacstica e podem ser dividas em duas tendncias principais: (1) descrio de sons e estruturas utilizados na composio (Schaeffer, 1966; Smalley, 1986; 1992a; 1992b; 1997) e (2) abordagem do produto resultante da relao do ouvinte com a msica (Delalande, 1998; Ferreira, 19--; Gubernikoff, 2003). Nenhuma delas, entretanto, se preocupa com a relao do instrumento acstico com a eletrnica.Na definio de Schaeffer, objeto sonoro o som ouvido por suas caractersticas intrnsecas, sem referncias a aspectos exteriores como sua origem ou efeitos na escuta: Se algum nos apresenta uma fita na qual est gravado um som do qual somos incapazes de identificar a origem, o que que ns ouvimos? Precisamente o que ns chamamos um objeto sonoro, independentemente de toda referncia causal pelos termos de corpo sonoro, fonte sonora e instrumento (Schaeffer, 1966, p. 95 grifos do original). Ele no se modifica nem com as variaes da escuta de um indivduo ao outro, nem com as variaes incessantes de nossa ateno e de nossa sensibilidade (p. 97). 4 Escuta reduzida a escuta centrada nas caractersticas internas do som, que origina a percepo do objeto sonoro (Schaeffer, 1966, p. 270).3

42

2.2.1. A descrio de sons e de relaes estruturaisAs pesquisas desenvolvidas por Pierre Schaeffer em busca de uma renovao da escuta e da abordagem sonora pelas prticas musicais remontam aos primeiros textos de 1938, onde ele trata da relao entre a audio direta e a audio radiofnica (Schaeffer, 1938; Palombini, 1999). Desde ento, Schaeffer se concentrou nos avanos tecnolgicos e na criao de novas prticas artsticas, chegando msica concreta em 1948 (Schaeffer, 1941; 1950). Suas teorias foram as fontes para o desenvolvimento da espectromorfologia por Denis Smalley (1986; 1992a; 1997) e ambas servem como base conceitual para a maior parte das anlises de msica eletroacstica (Camilleri e Smalley, 1998; Dack, 1998; Emmerson, 1998; Ferreira, 19--; Gubernikoff, 2003). As duas teorias partem da descrio sonora e como mostram Camilleri e Smalley (1998, p. 3),Schaeffer logo percebeu que o desafio inicial colocado pela expanso do material sonoro foi encontrar algum senso de ordenao para ele. Assim, um primeiro passo necessrio foi criar uma metodologia para descrever todos os sons desconsiderando sua provenincia.

No Trait des Objets Musicaux, Schaeffer (1966) desenvolve um extenso vocabulrio para a descrio dos sons: a tipo-morfologia do objeto sonoro5. No entanto, esta tipo-morfologia no pode ser considerada apenas como um glossrio descritivo, mas como o desejo de uma nova postura por parte do ouvinte que transforme a escuta banal6 em escuta reduzida e todo o som ouvido em objeto sonoro. O tratado mostra a ousadia de Schaeffer em suas pesquisas que transitavam por reas como acstica, psicoacstica, fenomenologia e lingstica.5

Um trabalho bastante aprofundado sobre a tipo-morfologia do objeto sonoro em lngua inglesa pode ser encontrado em Palombini (1993). 6 A escuta banal se contrape escuta prtica. a escuta que em geral se volta significao musical e ao mesmo tempo s condies de fabricao do som (Schaeffer, 1966, p. 153). J a escuta prtica mais hbil, mais educada [informe] (p. 152).

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Baseando-se nestas pesquisas, Smalley desenvolve sua espectromorfologia como uma ferramenta descritiva baseada na experincia de escuta. Nas palavras de Smalley (1997, p. 107):A espectromorfologia no uma teoria ou mtodo composicional, mas uma ferramenta descritiva baseada na percepo aural. Ela se direciona a auxiliar a escuta e busca ajudar a explicar o que pode ser apreendido ao longo de quatro dcadas de repertrio eletroacstico.

Tanto a tipo-morfologia schaefferiana como a espectromorfologia smalleyana tinham como foco a experincia de escuta, mas, diferentemente de Schaeffer com sua escuta reduzida, Smalley admite a referncia a eventos exteriores, o que ele chama de ligao com a fonte (source bonding), definida como a tendncia natural de relacionar sons com supostas fontes e causas e de relacionar cada som com outro pelo fato de eles aparecerem como tendo origens associadas (Smalley, 1992a, p. 424 grifos do original). Outro conceito desenvolvido pelo autor o de campos e redes indicativas (indicative fields and networks) que so referncias criadas pelo ouvinte que conectam os sons ouvidos na msica com comportamentos humanos comuns como gesto, articulao vocal (utterance) e comportamento (Smalley, 1992b). Smalley (1997) apresenta um aspecto positivo e um aspecto negativo da escuta reduzida. O aspecto positivo que este tipo de escuta permite uma concentrao nas caractersticas internas do som e uma anlise mais profunda das estruturas, estando por trs do prprio

desenvolvimento da espectromorfologia. O aspecto negativo est no fato de que um aprofundamento nas caractersticas espectromorfolgicas do som dificulta um retorno s suas referncias externas, conduzindo a um excesso de detalhamento e a uma distoro perceptiva. As teorias dos dois autores observam o som a partir de suas caractersticas que podemos chamar de verticais (textura, espectro) e 44

horizontais (forma). Em Schaeffer, a tipologia e a morfologia so complementares na seleo, classificao e avaliao do objeto sonoro. A tipologia est relacionada com a identificao e com o isolamento de um objeto de dentro de um contnuo sonoro e com sua posterior classificao e a morfologia com a descrio e qualificao destes objetos (Schaeffer, 1966). J em Smalley, a

espectromorfologia oferece mecanismos tanto para a classificao e descrio sonora quanto para o estudo das relaes estruturais da pea analisada (Smalley, 1986; 1992a; 1997), servindo para anlises da msica eletroacstica pura7 e tambm das msicas que evolvem a interao de instrumento acstico com eletrnica, como mostra Emmerson (1998) em sua anlise da pea Clarinet Threads de Smalley.

2.2.2. A espectromorfologia como ferramenta para anlise estruturalBuscando fazer da espectromorfologia uma ferramenta descritiva baseada na percepo aural, o primeiro passo de Smalley foi descrever diferentes tipos de sons a partir de sua composio espectral: a tipologia espectral. Esta classificao sonora aborda aspectos externos e internos do som, definindo trs tipos bsicos: nota, nodo ou espectro nodal e rudo (Smalley, 1986). A nota tem uma altura definida e seu espectro pode ser harmnico ou inarmnico. O nodo ou espectro nodal um grupo de sons que resiste percepo de altura definida, mas apresenta uma caracterstica compacta que dificulta a percepo de sua estrutura interna. O rudo to comprimido que torna impossvel a percepo de sua estrutura interna, mas permite o reconhecimento de algumas qualidades e movimentos. Esta zona de incremento espectral que vai da nota ao rudo 7

O termo msica eletroacstica pura refere-se msica eletroacstica difundida exclusivamente atravs de alto-falantes, sem a presena de instrumento acstico ao vivo.

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denominada por Smalley de contnuo altura-eflvio (pitch-effluvium continuum), sendo que eflvio se refere ao estado onde o ouvido no pode separar o espectro em alturas componentes (Smalley, 1986, p. 67). A morfologia, por sua vez, refere-se s transformaes temporais do som e pode ser relacionada primeira morfologia de Schaeffer. Smalley distingue trs fases temporais do som ataque (onset), sustentao (continuant) e terminao (termination) que do origem a uma srie de classificaes morfolgicas, chegando ao contnuo ataqueeflvio: correspondente temporal do contnuo altura-eflvio que vai da percepo de ataques distintos at a percepo de formas mais extensas do movimento estrutural. Este contnuo comporta quatro nveis (Figura 2.1): ataques-impulsos separados; iterao, onde os ataques so percebidos como partes de um objeto nico; gro, onde se perdem vestgios de impulsos individuais; e estado efluvioso, que passa a ser reconhecido como uma forma do movimento estrutural (Smalley, 1986). Ultrapassando os limites onde os aspectos espectrais e morfolgicos so considerados separadamente, Smalley passa a tratar das questes realmente espectromorfolgicas, onde os dois limites se interagem, criando os conceitos de movimento (motion) e crescimento (growth). Para Smalley (1986), o movimento musical tem sido largamente explorado desde o advento das prticas estereofnicas, mas a espectromorfologia, controlando espectro e forma temporal, capaz de criar movimentos reais ou imaginrios sem movimento no espao.

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Figura 2.1: contnuo ataque-eflvio (Smalley, 1986).

Smalley (1997) separa esta metfora espacial da msica em duas espcies: movimento (motion), que se desloca em apenas uma direo de cada vez; e crescimento (growth), que se desloca em mais de uma direo simultaneamente. Este estudo das tendncias direcionais da msica denominado tipologia do movimento (Figura 2.2) e se divide em quatro tipos: unidirecional, recproco, cntrico/cclico e bi/multidirecional que se desdobram, formando uma larga cadeia com os tipos de direcionalidades possveis. Os tipos unidirecional, recproco e cntrico/cclico tm caractersticas de movimento e o bi/multidirecional tem caractersticas de crescimento; (Smalley, 1986; 1997). Diferente da msica tradicional, que baseada na escrita e tem a unidade fundamental na nota e o movimento direcionado pelo ritmo, a msica eletroacstica tem as suas hierarquias e estruturas baseadas em gestos e texturas que direcionam a construo musical, formando os contextos conduzidos pelo gesto (gesture-carried) ou pela textura (texture-carried) (Smalley, 1986; 1997).

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Figura 2.2: Tipologia do movimento (Smalley, 1997).

Gesto um movimento que se direciona de um ponto a outro atravs das alteraes espectrais e morfolgicas gerado pelo emprego de energia e normalmente est ligado causa do som. Textura, por sua vez, comportamento e energia interna do som, mais relacionada s caractersticas espectrais. Contextos onde o gesto dominante, tendo uma caracterstica direcional muito forte, so considerados conduzidos pelo gesto. Por outro lado, quando o gesto torna-se muito longo ou tem uma evoluo muito lenta, o foco da percepo muda para os detalhes internos do som, formando os contextos conduzidos pela textura (Smalley, 1986; 1997). O prximo passo de Smalley (1986) a funo estrutural, uma ampliao das trs fases da nota ataque, sustentao e terminao projetadas no mbito da estrutura. A partir da, ele prope uma anlise estrutural e cria um vocabulrio para a sua descrio, passando, ento, para uma anlise dos relacionamentos estruturais (Figura 2.3) que se preocupam com as ocorrncias simultneas e sucessivas de componentes estruturais.Esta conexo forjada em uma de trs direes. A primeira ligada com interao ou igualdade relativa, a segunda com

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reao ou desigualdade relativa, e a terceira interpolao aborda mais aproximadamente a independncia. Interao significa cooperao e representada por confluncia e reciprocidade. Reao implica ou uma relao casual ou competitiva, um dos quais pode envolver graus de relao ativa ou passiva [active-passive role playing]. Vicissitude e deslocamento representam mtodos relacionados de progresso. Em uma progresso vicissitudinria um evento d lugar ao prximo. Tal seria a relao numa textura que est sujeita a uma transformao gradual e contnua. Progresso por deslocamento, por outro lado, expressa a resistncia de um evento em ser substitudo. Interpolao uma interrupo ou mudana repentina (Smalley, 1986, pp. 88-89).

Figura 2.3: Relacionamentos estruturais (Smalley, 1986).

O conhecimento destes relacionamentos leva elaborao dos comportamentos estruturais (Figura 2.4), que representam os relacionamentos entre as vrias espectromorfologias agindo dentro de um contexto musical (Smalley, 1997, p. 117), mas tambm podem se referir relao entre os elementos da performance instrumental e os elementos acusmticos nas peas mistas. Estes

comportamentos expressam desde relaes como dominao/subordinao, conflito/coexistncia at relaes temporais como coordenao do movimento e

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passagem de movimento, referindo-se aos aspectos vertical e horizontal, respectivamente. As ltimas consideraes de Smalley (1986; 1997) so sobre os espaos formados pelas caractersticas espectromorfolgicas, que ele chama de espao-morfologia e divide em cinco abordagens: (1) espao espectral, (2) tempo como espao, (3) ressonncia, (4) articulao espacial (na composio) e (5) transferncia da articulao do espao composto (no ambiente de escuta).

Figura 2.4: Comportamentos estruturais (Smalley, 1997).

O espao espectral aquele referente distribuio das freqncias componentes e estrutura do som. Tempo como espao o espao criado pelas mudanas espectromorfolgicas. Ressonncia um aspecto do som que permite a sua manuteno aps o ataque e que torna possvel a percepo das alteraes espectrais, sendo considerado por Smalley (1986) como espao interno. A articulao espacial planejada pelo compositor no momento da

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composio da obra e se refere interao entre a estrutura sonora e o ambiente acstico, originando uma srie de comportamentos espaciais como:

aberto/confinado, real/fictcio, esttico/movido, distribuio (textura)/trajetria (gesto). A quinta abordagem transferncia desta articulao espacial, ou seja, o espao criado na composio transferido para o espao de difuso e tanto os meios eletroacsticos quanto o espao de difuso interferem na estrutura da msica. Aplicaes da espectromorfologia na anlise da msica eletroacstica podem ser encontradas nos artigos Can Electro-Acoustic Music Be Analysed? de Denis Smalley (1992a) e Acoustic/Electroacoustic: the relationship with

instruments de Simon Emmerson (1998). Smalley analisa o movimento Aquatisme da pea La Creation du Monde de Bernard Parmegiani. Chamando a ateno para as caractersticas espectromorfolgicas e suas referncias a elementos externos, ele identifica duas tendncias nos elementos estruturais, uma mais natural e outra mais musical, e realiza sua anlise baseada nesta dicotomia.Por natural, eu quero dizer que como se elas viessem da natureza. Por mais musical, me refiro quelas organizaes com ritmo e altura mais intimamente associadas com as prticas tradicionais (Smalley, 1992a, p. 425).

Simon Emmerson (1998) apresenta uma proposta interessante ao utilizar as teorias de Smalley para analisar a utilizao de instrumento acstico nas peas eletroacsticas Clarinet Threads, de Denis Smalley, Songes, de Jean-Claude Risset e Lichtbogen, de Kaija Saariaho. As anlises de Emmerson partem das gravaes das obras buscando maior ateno ao resultado sonoro, focalizando os contextos espaciais e as relaes estruturais entre instrumento e eletrnica. Nos contextos espaciais, ele ressalta dois pontos: (1) o instrumento mantm uma

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posio fixa enquanto a eletrnica varia; (2) a diferena de espao espectral entre instrumento e eletrnica. Nos relacionamentos estruturais, ele utiliza os conceitos espectromorfolgicos de gesto, textura e comportamentos estruturais e apresenta relaes de causalidade e contingncia entre os elementos instrumentais e eletrnicos. Utilizaremos estas anlises de Emmerson e seus aspectos espectromorfolgicos em nossa anlise das relaes entre instrumento e eletrnica na pea poucas linhas de ana cristina, no captulo 3. Acreditamos que munidos de alguns conceitos de organizao estrutural e baseando-nos nos pensamentos composicionais de Silvio Ferraz, discutidos no captulo 3, poderemos descrever e produzir um efeito (Ferraz, 2005, p.18), ultrapassar a exterioridade de um objeto musical a ser segmentado e sistematicamente entendido (Lima, 2006), e depositar na anlise algo da msica analisada, como prope Ferraz (1998; 2005).

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(...) Eu queria (s) perceber o invislumbrvel no levssimo que sobrevoava. Eu queria apanhar uma braada do infinito em luz que a mim se misturava. Eu queria captar o impercebido nos momentos mnimos do espao nu e cheio. Eu queria ao menos manter descerradas as cortinas na impossibilidade de tang-las Eu no sabia que virar pelo avesso era uma experincia mortal(Ana Cristina Csar, 1985, pp. 40-41)

3. Anlise da pea poucas linhas de ana cristina3.1. Pensamentos composicionais de Silvio FerrazPenso a msica passando longe de qualquer idia de organizao. Ou seja, no se trata nem de organizar sons, nem mesmo notas ou gestos musicais. Todos esses recursos produziram em compositores menos habilidosos uma msica enfadonha, cujo lugar no o tempo, mas um arquivo1.

Silvio Ferraz um compositor paulista que tem dedicado os seus estudos tericos a uma discusso da composio musical contempornea, tendo como trabalho central o livro Msica e Repetio (Ferraz, 1998), fruto de sua tese de doutorado, onde aplica a filosofia de Gilles Deleuze a um estudo sobre composio musical. O foco deste trabalho de Ferraz a presena da diferena e da repetio na composio musical do sculo XX e tem como base o livro Diferena e Repetio de Gilles Deleuze (1968)2, uma discusso filosfica que vai muito alm da repetio iterativa do material, atingindo o nvel mais profundo do conceito onde a repetio comporta a diferena que, por sua vez, antagnica representao. Para Deleuze (1968), enquanto a representao mantm-se presa a uma imitao, uma analogia com o original, a repetio aparece como uma singularidade. O autor apresenta trs tipos de repetio: repetio negativa, repetio positiva e repetio fora-dos-eixos. A repetio negativa a iterao no nvel material, a repetio do Mesmo. A repetio positiva aquela que s faz voltar o diferente, a repetio que comporta a diferena. A repetio fora-doseixos o espao aberto da multiplicidade e que Deleuze (1968, p. 73), baseandose em Nietzsche, chama de repetio no eterno retorno, que tem a potncia de repetir o Diferente:Ferraz, 2005, pp. 75-76. Silvio Ferraz utiliza a edio de 1988 de Diferena e Repetio, no entanto, estamos utilizando para este trabalho a reedio de 2006.2 1

O eterno retorno no pode significar o retorno do Idntico, pois ele supe, ao contrrio, um mundo (o da vontade de potncia) em que todas as identidades prvias so abolidas e dissolvidas. Retornar o ser, mas somente o ser do devir. O eterno retorno no faz o mesmo retornar, mas o retornar constitui o nico Mesmo do que devm. Retornar o deviridntico do prprio devir. Retornar , pois, a nica identidade, mas a identidade como potncia segunda, a identidade da diferena, o idntico que se diz do diferente, que gira em torno do diferente. Tal identidade, produzida pela diferena, determinada como repetio.

Esta terceira repetio a repetio causada pelo ritornelo assim como encontramos em Ferraz: um ritornelo que no reiterativo como aquele comum na notao musical, mas um ritornelo que faa retornar a potncia do diferente:Desse modo, no representvel sem que seja transformada, e qualquer signo que tente represent-la ser o seu simulacro, ser em si uma transmutao que guarda relaes com o original, mas se apresenta como um novo objeto diverso e singular a cada momento (Ferraz, 1998, p. 73).

O simulacro definido por Deleuze como um sistema onde todas as tentativas de cpia aparecem como cpias falsificadas de um original e como mostra Ferraz (1998, p. 124), um sistema que afirma a divergncia e o descentramento, como numa trama de linhas em que as sries no convergem, mas sim coexistem num caos informal. Para uma discusso sobre a diferena e a repetio na msica do sculo XX, Ferraz lana mo dos nveis da composio e da escuta musicais, utilizando a msica serial e a minimalista como dois pontos extremos. A msica serial tem como princpio bsico a no repetio de material, sendo feita a partir de sries onde os elementos no se repetem at que todo o ciclo seja percorrido, o que, do ponto de vista do material, inicialmente aparece como uma diferena. J a msica minimalista fundada na repetio iterativa de material, geralmente rtmico, e no uso de ostinatos e no permite grandes variaes, dando a impresso de uma

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insistente repetio. No entanto, Ferraz (1998, p. 33) chama a ateno para dois tipos de repetio que podem alterar este quadro, fazendo com que nem sempre a repetio esteja relacionada ao material:No primeiro tipo de repetio, as referncias mais comuns so as repeties de frases, de notas ou de sonoridades especficas dentro de um enunciado musical. Esses elementos podem ou no estar associados ao segundo tipo de repetio; a repetio de emoes, de associaes e sentimentos que afloram em forma de lembranas quando evocados por um fato sonoro experienciado anteriormente.

Considerando o plano tcnico de composio e a escuta, Wisnik (citado por Ferraz, 1998) distingue a msica serial, que tem sua unidade na repetio de uma srie, e a minimalista, onde as repeties levam a escuta percepo das pequenas diferenas do material, como repetio do Mesmo e repetio do diferente, respectivamente. Nesta inverso, Ferraz (1998, p. 35) levanta as seguintes questes: Como pensar numa msica que tenha por bases a reiterao, mas que pea uma escuta das diferenas? Por outro lado, como pensar numa msica que varie constantemente seus elementos, mas que se funde na repetio? Ao que ele responde mais adiante (p. 37), considerando o conceito e identificando as duas linhas composicionais no uso da diferena:a) a variedade material utilizada pelo serialismo pode ser vista como uma diferena que se submete a uma repetio fundamentada na analogia entre elementos semelhantes, de modo que toda variedade esteja identificada em conceitos como a forma musical, a prpria srie, as regras estruturais; b) a reiterao de um objeto aparentemente invarivel diversificada pela prpria instabilidade dos estados da matria fsica e ainda pela instabilidade do prprio aparelho receptor. Assim, se o compositor serial se preocupa de antemo em encontrar um elemento unificador, representando todos os eventos de sua obra sobre um mesmo conceito, compositor minimalista busca procedimentos que evidenciem ainda mais a diversidade inerente materialidade do objeto que ele apresenta e repete. Embora aparentemente antagnicos, importante frisar que tanto um quanto o outro lidam com um mesmo resultado: a diferena.

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Esta relao entre diferena e repetio concentra-se principalmente na escuta, como mostra Ferraz (1998). O excesso de variao material da msica serial conduziria a uma regio de indiscernibilidade se no fosse a unidade conceitual estabelecida pela srie, o que exige uma escuta que conhea as regras composicionais, definida aprioristicamente como escuta correta: uma escuta que busque a repetio. A quase ausncia de variao material na msica minimalista, para no cair em uma monotonia desinteressante, exige uma escuta concentrada nos detalhes e nas pequenas variaes: uma escuta que busque a diferena. A terceira repetio, a do eterno retorno, das multiplicidades, exige uma escuta tambm das multiplicidades, uma escuta intensiva e no extensiva, como prope Ferraz (1998, p. 254), uma escuta localizada e no mais [voltada] para a forma geral de desenvolvimento. Para Ferraz, este tipo de discusso importante para ultrapassar os nveis de organizao de matria, aos quais freqentemente se atm os estudos sobre composio e anlise musical, passando para o nvel das sensaes e das emoes, os perceptos e afectos de Gilles Deleuze e Flix Guattari (1991). Ferraz critica a concepo corrente na msica ocidental que considera a composio musical como organizao de matria em uma forma pr-estabelecida. Contra este par matria/forma, ele aborda a composio musical a partir do par material/fora, ou seja, a composio deixa de ser a organizao de matria na forma pr-estabelecida da msica clssica ou na estrutura rgida da msica serial e passa a ser o ato de captar as foras de um determinado material e de torn-las sonoras (Ferraz, 1998; 2005). Assim, o primeiro passo da composio no a definio da estrutura e da forma, nem a escolha das matrias composicionais

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como notas, ritmos, motivos e frases, mas a apreenso de um material3, a captao de suas foras, a destruio e molecularizao deste material e sua transformao em partculas. Tais partculas se tornam o verdadeiro material composicional, gerando uma fora sonora jamais ouvida, como mostra Ferraz (2005, pp. 38-39):No se compe o lugar com uma matria que tem uma forma, ou seja, com linhas duras... ou mesmo com uma forma preenchida de matria, mas com estas formas e matrias desmanteladas. H antes o desmonte e o que vai e vem so partculas que giram sem um centro dado de antemo. (...) Ritornelos que no estaro mais atados s foras do passado e presente, como matria ou forma, mas a outras foras. De onde surgem tais partculas? aqui que podemos falar uma primeira vez em foras que esto no futuro. Esto no futuro porque so improvveis, nada do presente ou do passado me ajudam a deduzi-las.

Ferraz (1998; 2005) diz que, em La Mer, Debussy moleculariza o mar, capta suas foras e as transforma em partculas. Estas partculas se tornam o seu material composicional, tornando sonoras as foras no sonoras do mar. Deleuze e Guattari (1991) ressaltam que o central na obra de arte a criao de sensaes:O objetivo da arte, com os meios do material, arrancar o percepto das percepes do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afeces, como passagem de um estado a um outro. Extrair um bloco de sensaes, um puro ser de sensaes. (Deleuze e Guattari, 1991, p. 217 grifos nossos). A questo no a da organizao, mas da composio; no do desenvolvimento ou da diferenciao, mas do movimento e do repouso, da velocidade e da lentido. A questo a dos elementos e partculas, que chegaro ou no rpido o bastante para operar uma passagem, um devir ou um salto sobre um mesmo plano de imanncia pura (Deleuze e Guattari, 1980, p. 41).3

importante notar a diferena entre matria e material. Apesar de se confundirem, em muitos momentos para Ferraz (1998;2005), material recebe um sentido mais amplo do que matria, podendo ser um motivo, um ritmo, uma sonoridade, um gesto, uma lembrana, uma imagem, um sonho etc., sendo que matria se resume aos elementos da gramtica musical como notas, ritmos, frases etc.

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De acordo com a definio de Deleuze e Guattari, Ferraz encara a obra musical como um devir, um vir-a-ser sonoro, um devir-msica das foras captadas. Mas o que este devir?Devir no certamente imitar, nem identificar-se [sic]; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relaes correspondentes; nem produzir, produzir uma filiao, produzir por filiao. Devir um verbo tendo toda sua consistncia; ele no se reduz, ele no nos conduz a parecer, nem ser, nem equivaler, nem produzir. (Deleuze e Guattari, 1980, p. 19). Eles [os devires] so perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Pois se o devir animal no consiste em se fazer de animal ou imit-lo, evidente tambm que o homem no se torna realmente animal, como tampouco o animal se torna realmente outra coisa. O devir no produz outra coisa seno ele prprio (Deleuze e Guattari, 1980, p. 18 grifos nossos). Fazer devir aqui, ao menos como se pode ver, ao pensar a msica e talvez as outras artes, acoplar-se [sic] foras no humanas que nos dragam para fora de nossa humanidade. aqui que opera o compositor quando torna sonoras certas foras que no nos so sensveis, no so sonoras nem presente, nem passado (Ferraz, 2005, p. 36).

O devir um tornar-se que no se concretiza materialmente, captar as foras e adquirir as caractersticas do outro, no caso da msica, um agenciamento de partculas que se tornam sonoras. Assim, para Ferraz, a composio musical um agenciamento de foras na multiplicidade de partculas do material molecularizado. Alm do devir-msica das foras no sonoras na composio musical, devemos considerar tambm o devir proporcionado pela escuta. Neste devir, o homem atrado pela multiplicidade presente na obra musical num agenciamento que o leva para outro estado. Para Ferraz (2005, p. 75), a potncia da msica est em tirar, ejetar o ouvinte do territrio firme, indo fix-los em estados totalmente transientes de escuta. Por isso que ele diz que a obra musical um territrio, um lugar construdo por onde o ouvinte passeia, sai do seu estado, entra

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num agenciamento. Realiza-se assim um devir de onde surge um Ser que se diz do homem e da msica num s e mesmo sentido. Da as crticas de Ferraz s anlises fenomenolgicas que consideram msica e ouvinte separadamente, pois eles se concretizam em um devir (Ferraz, 2005). Como mostram Deleuze e Guattari (1980, p. 18), um devir no tem termo, porque seu termo por sua vez s existe tomado num outro devir do qual ele o sujeito, e que coexiste, que faz bloco com o primeiro. O compositor entra em um agenciamento com as partculas molecularizadas do material composicional num devir-sonoro de foras no sonoras que, por sua vez, formaro um agenciamento com o ouvinte e o arrancaro para fora de sua humanidade (Ferraz, 2005), formando os blocos de devir de Deleuze e Guattari (1980). Numa composio musical, a captao das foras e a realizao dos agenciamentos e devires se fazem no ritornelo.Diramos que o ritornelo o contedo propriamente musical, o bloco de contedo prprio da msica. (...) O motivo do ritornelo pode ser a angstia, o medo, a alegria, o amor, o trabalho, a marcha, o territrio..., mas quanto ao ritornelo, ele o contedo da msica (Deleuze e Guattari, 1980, pp. 99-100 grifo do original).

Considerando a msica como um territrio onde se constri uma casa, a partir do ritornelo, da repetio de elementos que d origem a uma sensao, que este territrio formado. E aqui a definio de ritornelo vai muito alm do significado musical de repetio de matria, definindo um centro, um eixo em torno do qual se gira. Atravs do giro, da repetio, o ritornelo define o territrio que comporta o bloco de sensaes. Ferraz (2005, p. 77) apresenta o ritornelo da seguinte maneira:

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Veja bem que o ritornelo no o vai e volta, no a repetio de um elemento. Ele compreende reiteraes, jogos de vai e vem, mas este o modo com que ele escolhe um centro, funda um centro e desenha o seu lugar.

Segundo Deleuze e Guattari (1980), o ritornelo o fator territorializante, um agenciamento territorial, atravs dele que construmos um centro estvel, que delimitamos um espao no caos. No entanto, alm de marcar um centro estvel e delimitar um espao, ele se abre para uma outra regio, para um futuro. So os trs aspectos do ritornelo:Ora o caos um imenso buraco negro, e nos esforamos para fixar nele um ponto frgil como centro. Ora organizamos em torno do ponto uma pose (mais do que uma forma) calma e estvel: o buraco negro tornou-se um em-casa. Ora enxertamos uma escapada nessa pose, para fora do buraco negro (p. 117).

Estes trs aspectos do ritornelo mostram que alm de definir um centro e delimitar um territrio, o ritornelo traz suas escapadas, suas linhas de fuga, agencia tambm a desterritorializao e assim, o ritornelo torna-se msica.A msica a operao ativa, criadora, que consiste em desterritorializar o ritornelo. Enquanto que o ritornelo essencialmente territorial, territorializante ou reterritorializante, a msica faz dele um contedo desterritorializado para uma forma de expresso desterritorializada (Deleuze e Guattari, 1980, p. 101).

Como mostram Deleuze e Guattari (1980), enquanto o ritornelo uma territorializao no caos, a msica o fator desterritorializante que j estava presente no prprio ritornelo, que o conduz para um outro lugar onde ele se reterritorializa atravs de novos agenciamentos. Lembrando o que j foi visto a respeito do devir, o material composicional molecularizado em partculas e desterritorializado. Em seguida, estas partculas so reterritorializadas atravs de agenciamentos, de ritornelos, e tornam-se sonoras, musicais. Entrando em novos

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agenciamentos, estas molculas desterritorializam-se e se reterritorializam em constantes blocos de devir. Como mostra Ferraz (2005, p. 38):A msica feita desses jogos de criar e desfazer lugares. Voc escolhe um centro, gira em torno dele com alguns elementos e, de repente, atrado por outro centro, e da retoma o movimento. E isto no tem nada a ver com ordenar sons, com fazer interpolaes, com limitar-se a fazer permutaes, com colocar um elemento em loop... (...) Por que o ritornelo no o loop? Porque no estamos falando da matria sonora, nem da forma que ela possa ganhar em um espao-tempo. Falamos de construir um lugar, de fazer um canto, de girar em torno de um centro, e tudo isto s surge porque, antes do lugar, est a presena constante das linhas que me tiram