Flexibilidade à Francesa

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Sindicalismo

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  • A proposta deste artigo discutir os efeitos do processo recente de flexibilizaoda produo industrial (automotiva) sobre as relaes de trabalho e sobre osoperrios e seus sindicatos. A partir do exemplo da primeira unidade brasilei-ra da montadora francesa PSA Peugeot Citron, instalada no municpio dePorto Real, Rio de Janeiro, em 20011, pretende-se argumentar que a constru-o de uma fbrica enxuta e reestruturada, com um projeto de superao daorganizao fordista, e integrante de uma cadeia produtiva global, reconfigu-ra as relaes com os trabalhadores (e com o sindicato) no espao fabril medi-ante a exigncia de maior escolaridade, maior capacidade de adaptao snovas tecnologias e novas formas de organizao da produo. No entanto,mantm prticas gerenciais autoritrias e evita a reproduo de experinciasanteriores de resistncia operria. O debate beneficia-se dos trabalhos sobreessa empresa na Frana, realizados por Michel Pialoux e Stphane Beaud, quenas ltimas dcadas analisaram suas transformaes gerenciais e os desdobra-mentos sobre o modo de vida de diferentes geraes de operrios.

    Embora sejam experincias fabris diferentes no Brasil, uma estruturaflexibilizada; na Frana, pas sede da empresa, um processo de reestrutura-o industrial , pareceu-nos relevante uma referncia mais direta pesqui-sa substantiva feita por esses autores franceses, tendo em vista que no con-texto atual muitas das estratgias tm traos comuns, principalmente quantoao modo de tratar os novos operrios.

    Flexibilidade francesatrabalhadores na Peugeot Citron brasileira

    Jos Ricardo Ramalho e Marco Aurlio Santana

    1.Utilizamos uma sriede fontes escritas e oraisque incluem tanto do-cumentos institucionais(rgos estatais, empre-sariais e sindicais) como afala dos agentes propria-mente ditos. Os dados,informaes e entrevis-tas que sustentam o tex-to so resultados parciaisde projetos de pesquisaapoiados pelo ConselhoNacional de Desenvol-vimento Cientfico eTecnolgico (CNPq) epela Fundao de Am-paro Pesquisa do Esta-do do Rio de Janeiro(Faperj), Programa Ci-entistas do Nosso Esta-do, instituies s quaissomos gratos.

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 1116

    Flexibilidade francesa: trabalhadores na Peugeot Citron brasileira, pp. 115-132

    O processo de reestruturao produtiva pelo qual passou a indstria auto-mobilstica global, nos ltimos anos, implicou mudanas no mundo fabril enas relaes de trabalho. No Brasil, por exemplo, os operrios do ABCpaulista (onde se concentrava a indstria automobilstica), por meio do sin-dicato dos metalrgicos e das comisses de fbrica, desdobraram-se para re-sistir s novas prticas que trouxeram desemprego e precarizao das relaesde trabalho, e puseram em risco um conjunto de relaes polticas acumula-das nos embates de classe do perodo fordista. A PSA Peugeot Citron chegouao pas na fase seguinte, ps-reestruturao, mas na Frana, ao contrrio,viveu todo esse processo anterior.

    Beaud e Pialoux (2004) mostram como as mudanas afetaram os traba-lhadores da Peugeot (atual PSA), em Sochaux-Montbliard, embora issono tenha ocorrido sem resistncia:

    [...] os operrios do tempo da classe operria dispunham de capital poltico acumula-

    do (partidos e sindicatos), de um conjunto de recursos culturais (as associaes refe-

    riam-se sem vergonha ao termo operrio) e simblicos (o orgulho de ser operrio, o

    sentimento de pertencer classe) que permitiam defender coletivamente o grupo [...]

    o que limitava a influncia da dominao econmica e cultural (p. 417).

    No entanto, essas barreiras caem com a reestruturao, a incorporaode novas tcnicas gerenciais de corte toyotista e o aumento do desemprego, oque acabou impondo um processo de reconfigurao das identidades nomundo do trabalho. Essa situao veio associada ao recrutamento em gran-de escala de jovens geraes de trabalhadores, provocando uma pane nosmecanismos tradicionais de transmisso e troca de valores identitrios dogrupo operrio entre as geraes2.

    A PSA Peugeot Citron no Brasil fruto dessa fase mais recente de trans-formaes na estrutura produtiva da indstria automobilstica, o que im-plicou estmulos governamentais e condies fiscais extremamente favor-veis, emprstimos estatais de longo prazo e o recrutamento de um grupooperrio jovem, com um perfil condizente ao de uma regio sem nenhumatradio no setor automotivo, com um mercado de trabalho em formao ecom salrios bem abaixo da mdia das regies tradicionais desse tipo deindstria.

    Na verdade, este caso desperta curiosidade sociolgica pelo fato de setratar de uma empresa que se implantou e comeou suas atividades aplican-do o modelo de produo enxuta, sem a necessidade de fazer nenhuma

    2.Para Beaud e Pialoux,tratava-se de um movi-mento para desarmar aclasse operria de suacapacidade de dar senti-do s experincias vivi-das no mundo do traba-lho e de transform-laem uma classe fantas-ma (ttulo do livro deJean-Pierre Levaray, ci-tado por Beaud e Pia-loux, 2004, p. 433), namedida em que, em duasdcadas, passou de cen-tro das atenes poltico-sociais para o quase es-quecimento. No entan-to, para os autores (2004,p. 420), apesar desseobscurecimento no es-pao pblico, a questooperria continuariamais do que nunca atu-al. Seria necessrio pen-sar agora o mundo ope-rrio sem a classe oper-ria. Estaramos diantedo que poderia ser cha-mado de uma novacondio operria.

  • 117junho 2006

    Jos Ricardo Ramalho e Marco Aurlio Santana

    reconverso de sua fora de trabalho, como ocorreu na Frana (cf. Beaud ePialoux, 2004). A questo que se impe para ns, pesquisadores brasileiros, investigar como essa nova classe operria constri novos mecanismos deresistncia, como ela se pensa na qualidade de trabalhadores e constituiuma identidade operria, e de que modo interfere e altera o padro de aosindical na regio sul fluminense.

    Apesar das evidentes diferenas, percebe-se a possibilidade de traar al-guns paralelos com a situao atual dos operrios e ex-operrios da PSAfrancesa, como a juventude da fora de trabalho, o clima de forte presso nocho de fbrica, a instabilidade no emprego e o limite imposto pelas gern-cias s atividades sindicais.

    As mudanas na indstria automotiva brasileira e a PSA Peugeot Citron

    As transformaes estruturais ocorridas na indstria automotiva mun-dial nos ltimos anos atingiram o setor produtivo brasileiro principalmentea partir de uma poltica de abertura comercial no incio dos anos de 1990.As montadoras multinacionais no s investiram recursos significativos naconstruo de novas unidades fabris, como tambm saram em busca denovos territrios, fora das reas geogrficas tradicionais de produo de ve-culos. Desse modo, a regio sul do estado do Rio de Janeiro conseguiuatrair duas montadoras, a PSA Peugeot Citron e a Volkswagen, graas aosesforos dos governos estaduais e municipais e influncia de seus repre-sentantes polticos.

    O relato do secretrio de Indstria e Comrcio do estado do Rio deJaneiro poca da negociao revela o empenho governamental:

    [...] Ao longo do ano de 1997, fui sete vezes a Paris [...]. Fomos Peugeot e assinamos

    um protocolo inicial, que depois foi confirmado no final de janeiro de 1998, aqui no

    Rio, quando inclusive visitamos o presidente da Repblica [...]. Os franceses visitaram

    tudo. Fomos Assemblia Legislativa, e na realidade tudo s foi assinado depois de

    aprovado pela Assemblia. Virou lei. Nosso contrato com a Peugeot virou objeto de

    uma lei (RJ, 7/5/1999).

    Diversos fatores tornaram vivel a escolha da regio sul fluminense, emuma combinao de estratgias diferenciadas tanto por parte da empresacomo das administraes pblicas. Em primeiro lugar, esse estado enqua-drava-se na opo estratgica da montadora de permanecer geograficamen-

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 1118

    Flexibilidade francesa: trabalhadores na Peugeot Citron brasileira, pp. 115-132

    te perto do principal mercado consumidor brasileiro e acessvel ao mercadosul-americano. A regio localiza-se no meio do eixo RioSo Paulo e contacom o corredor da rodovia Presidente Dutra como canal de fornecimento,produo e circulao.

    No relato do gerente de implantao da PSA Peugeot Citron em PortoReal, isso fica muito claro:

    Eu acho que a regio sul fluminense tem algumas vantagens que no podem ser

    esquecidas, que so a proximidade dos dois grandes centros de consumo no Brasil, So

    Paulo e Rio de Janeiro. [...] A regio sul fluminense tambm fronteira com So Paulo

    [...]. Voc tem Taubat, So Jos dos Campos, no setor automotivo, voc tem at a

    Embraer, e muitas indstrias de tecnologia nessa regio. Ento, a gente estaria prximo

    disso tambm, o que facilitaria at migrao de mo-de-obra especializada se necessrio

    (RJ, 18/5/1999).

    O processo de negociao da vinda da empresa foi mediado por aspectostcnicos e polticos (cf. Ramalho e Santana, 2001) e diferiu do processo deimplantao da outra montadora da regio, embora os mecanismos utiliza-dos tenham sido basicamente os mesmos doaes de terras, incentivosfiscais, salrios baixos e infra-estrutura regional que atendia aos interessesde expanso da empresa.

    No que diz respeito poltica de incentivos, o caso da montadora fran-cesa traz a novidade da participao do prprio estado do Rio de Janeirocomo scio cerca de 32% de participao no capital total da empresa ,somada a um emprstimo por parte do Banco Nacional de Desenvolvimen-to Econmico e Social (BNDES).

    Os relatos de um gerente da PSA Peugeot Citron e de uma diretoratcnica da Companhia de Desenvolvimento Industrial do estado do Rio deJaneiro (Codin) esclarecem as caractersticas dessa negociao e dos incenti-vos oferecidos:

    O estado do Rio de Janeiro scio do capital da empresa [...]. Alm disso, a gente teve

    uma facilidade muito grande para a obteno de emprstimos junto ao BNDES. Eu

    no sei se isso facilita ou no, mas a gente tem tendncia a acreditar que sim. O fato de

    a sede do BNDES estar aqui no Rio de Janeiro, e as pessoas da Codin, que o rgo do

    estado que trabalha para a Secretaria de Indstria, Comrcio e Turismo, serem pessoas

    emprestadas do BNDES para trabalhar para o estado... ento so pessoas que conhe-

    cem muito bem o funcionamento do banco (RJ, 18/5/1999).

  • 119junho 2006

    Jos Ricardo Ramalho e Marco Aurlio Santana

    A Codin desempenhou um papel decisivo para consolidar a presena dafbrica em territrio fluminense:

    E, na Peugeot, a gente disse: ns vamos ter que fazer alguma coisa a mais [...]. A o estado

    [do Rio de Janeiro] resolveu entrar como acionista [...]. A Codin que montou essa

    estratgia. [...] Porque o estado aporta recursos sim, mas como acionista. Ele est inves-

    tindo um dinheiro hoje. Se hoje uma ao da Peugeot vale um, daqui a pouco vai valer

    mais. como se estivesse investindo realmente. Ento essa foi a sada encontrada (RJ, 7/

    11/2002).

    A fbrica de Porto Real

    Em fevereiro de 2001 foi inaugurada a fbrica de Porto Real, no Rio deJaneiro. A PSA Peugeot Citron a sexta maior empresa de veculos domundo e a segunda maior da Europa. A unidade brasileira conta com cercade 2 mil funcionrios. Quando de sua inaugurao, o Centro de Produode Porto Real (CPPR) ocupava um total de 150 mil metros quadrados, emum terreno de 2 milhes de metros quadrados. Ali se localizavam os prdiosde solda e chaparia, de pintura e de montagem, e a unidade de produo demotores.

    Segundo dados da Anfavea (2003), a multinacional contou com investi-mentos da ordem de 600 milhes de dlares, mais 50 milhes de dlaresutilizados para a construo da fbrica de motores, inaugurada em 2002.

    A presena no Brasil faz parte do que se anunciou como uma estratgiaglobal da empresa de avanar em mercados fora da Europa, nesse caso espe-cfico o do Mercosul (com uma fbrica tambm na Argentina). A apostatem sido to alta nessa direo que, segundo documentos corporativos, te-riam ficado obscurecidos os 200 milhes de dlares de resultados negativosda regio no balano global apurado em anos recentes.

    A PSA Peugeot Citron de Porto Real trouxe para perto de si a sua redede fornecedores mais prximos, que, assim como a montadora, se beneficia-ram com a doao de terrenos, poltica implementada por um empresriolocal como parte do pacote de atrativos regionais para as novas montadoras.Isso propiciou a formao de um cinturo de empresas para atender as de-mandas da produo, acomodados no que foi chamado de tecnoplo, umaespcie de distrito industrial que viabilizava demandas just-in-time. Nesseconjunto esto unidades fabris da Vallourec, que fabrica eixos; da Magnetto-Eurostamp, que se dedica estamparia de chapa; da Faurecia, fabricante de

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    Flexibilidade francesa: trabalhadores na Peugeot Citron brasileira, pp. 115-132

    assentos; e da Gefco, que executa todo o trabalho de logstica e transporteda PSA Peugeot Citron.

    A formao de uma nova classe operria na regio sul fluminense

    A busca de locais com uma fora de trabalho jovem e inexperiente fazparte da estratgia das novas fbricas instaladas no Brasil a partir dos anosde 1990. Mas houve tambm uma forte preocupao em interferir na qua-lificao desses operrios, de modo a adapt-los ao formato da fbrica enxu-ta, flexibilizada no processo produtivo e nas relaes de trabalho.

    Agregou-se a isso uma estratgia de recrutamento que inclua a contra-tao de trabalhadores com um padro mais elevado de escolarizao (ensi-no mdio completo), a maioria deles operrios na prpria regio. Em todoo processo de instalao da montadora, a participao do Senai foi funda-mental como agente intermedirio, com a tarefa de convocar seus ex-alunospara ocupar os novos postos de trabalho. A empresa buscou uma associaorpida e estreita com esse centro de formao de profissionais, no s equi-pando-o com instrumental para cursos ligados s demandas da indstriaautomobilstica, mas tambm oferecendo cursos e convnios.

    A montadora construiu um prottipo da linha de montagem dentro doSenai, para que os alunos se adequassem s especificidades tcnicas da novaplanta, podendo se antecipar s prticas de trabalho no cho de fbrica, etrouxe um instrutor francs para a seleo final dos novos contratados.

    A nossa idia utilizar o mais possvel de mo-de-obra da regio... Ns j temos uma

    poltica de recrutamento de mo-de-obra, que interna, ns temos pessoas aqui j da

    rea de recursos humanos, de recrutamento e seleo [...]. Existe um acordo com o

    Senai. Ns temos um responsvel por recrutamento e formao, especialmente forma-

    o de mo-de-obra, que veio da Frana, que est cuidando do desenvolvimento desses

    acordos com o Senai e com outros rgos pblicos e privados (Gerente, RJ, 18/5/

    1999).

    O processo de formao tcnica, sob controle da PSA Peugeot Citron,incluiu at mesmo os prprios tcnicos do Senai, que no s tiveram quereadaptar as instalaes fsicas, como tambm receber instrues no exterior.

    A fbrica est dividida em trs grandes reas: chaparia, montagem e pintura. E ns

    vamos simular essas trs reas aqui. Tem uma quarta rea que a gente chama de PCP, que

  • 121junho 2006

    Jos Ricardo Ramalho e Marco Aurlio Santana

    a rea de logstica, que a gente j vem fazendo. [...] A gente j atende esse segmento de

    logstica atravs dos cursos de segurana de empilhadeira, armazenagem... Ento a

    gente vai atender a Peugeot atravs de uma situao que j existe aqui na Unidade. Esse

    centro est sendo montado e a gente est conversando para fazer as obras necessrias

    aqui. Os equipamentos vo vir da Frana, de algumas fbricas que esto funcionando

    na Frana. Ns estamos enviando funcionrios do Senai para essa fbrica na Frana, at

    mesmo para eles conhecerem como todo o funcionamento (A. de Almeida, ex-diretor

    do Senai de Resende, 1999).

    No caso francs, as novas configuraes industriais, segundo Beaud ePialoux, implicaram a homogeneizao social e profissional dos trabalha-dores, e com isso:

    [...] a acelerao da ruptura geracional e uma triagem seletiva que permite, por um lado,

    afastar os operrios no empregveis ou que atrapalham (aqueles que, por exemplo,

    ousam ainda falar de sindicato) e, por outro, de manter apenas aqueles que, segundo a

    empresa, so mais suscetveis de se curvar s novas exigncias (2004, p. 23).

    Com a ruptura geracional, estabeleceram-se critrios de recrutamentodos jovens operrios, que incluem em seu portfolio, entre outros, compe-tncia, adaptabilidade, capacidade, motivao e potencial.

    Por meio da descrio de Beaud e Pialoux percebe-se como nesse novocontexto, j desde antes na Frana, os processos formativos e educativos aque esto expostos os jovens operrios so fatores essenciais na fbrica rees-truturada, ao mesmo tempo em que reforam uma postura de desconstru-o e reconfigurao da condio operria. Segundo esses autores, a exign-cia da ampliao dos anos de estudos

    [...] contribui para desqualificar a experincia operria e pode produzir efeitos de vergo-

    nha social por parte dos alunos que so desaculturados (perda de sua cultura operria

    de origem), mas no verdadeiramente aculturados pela escola, flutuando assim entre

    diversos pertencimentos (2004, p. 23).

    Em Porto Real, a questo geracional e a memria de lutas dentro da fbricano se apresentam da mesma forma que na PSA Peugeot Citron na Frana.De fato, os operrios brasileiros dessa empresa foram recrutados segundo asnovas estratgias gerenciais, que exigem do trabalhador um intenso envolvi-mento individual e uma capacidade de ser flexvel, competente e motivado

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 1122

    Flexibilidade francesa: trabalhadores na Peugeot Citron brasileira, pp. 115-132

    no processo de produo. Isso, no entanto, no significa que, nesse curtoespao de tempo de existncia da fbrica, os operrios j no estejam criandoformas de adaptao e resistncia e constituindo uma identidade de classeque os valoriza como trabalhadores.

    Contudo, um ponto de aproximao talvez esteja no fato de que a empresano Brasil claramente promove a homogeneidade geracional identificadapor Beaud e Pialoux (2004). Ao buscar, em termos de sua estratgia formativae de recrutamento, jovens com pelo menos o ensino mdio de escolaridade, aempresa faz um recorte que deixa de fora, oriundo ou no da regio, qualquervelho operrio com outras experincias, seja de trabalho seja sindicais, comas quais a empresa busca romper em sua lgica de funcionamento. Se no casofrancs a empresa teve de fazer a ruptura geracional a frio, ao longo do seuprocesso de reestruturao, no caso brasileiro ela trabalhou no sentido deexcluir qualquer herana indesejada desde a sua implantao: duas faces damesma estratgia, que visa a desarmar e desmobilizar o potencial identitrioe coletivo da classe operria, preservando apenas operrios individualiza-dos, ou, em termos mais atuais, colaboradores.

    A questo salarial

    A criao de novos empregos com a chegada das montadoras foi objetode grande expectativa na regio. Embora o nmero dos efetivamente con-tratados no tenha atingido o patamar esperado pelo mercado de trabalholocal, na verdade pode-se dizer que um contingente significativo de jovensoperrios foi recrutado e que a oportunidade de um posto de trabalho emuma empresa como a PSA Peugeot Citron foi extremamente valorizada.Porm, deve-se dizer que os salrios recebidos pelos trabalhadores da em-presa, ainda que estejam acima da mdia local, esto abaixo daqueles pagosem regies mais tradicionais do setor.

    Entre as principais razes para as empresas da indstria automotiva esco-lherem novos locais e regies para seus renovados investimentos no pas emmeados dos anos de 1990 (incluindo a a PSA Peugeot Citron e a prpriaregio sul fluminense) est o custo dos salrios. E, nesse ponto, a relao como ABC paulista imediata.

    Regio escolhida para a instalao da indstria brasileira de veculos nosanos de 1950, e que a partir de ento reuniu as principais montadoras dopas, o ABC paulista engendrou, em conseqncia, uma classe operrianumerosa, cada vez mais ativa politicamente e que demandou uma crescen-

  • 123junho 2006

    Jos Ricardo Ramalho e Marco Aurlio Santana

    te participao dos trabalhadores nos ganhos das empresas, por meio demovimentos por melhorias salariais e pela ampliao da democracia no chode fbrica, transformando-se em uma forte referncia para o sindicalismonacional. Isso fez com que, na estratgia de re-espacializao das montadoras,novas regies fossem escolhidas, representando certa fuga do ABC e tendocomo critrios mo-de-obra mais barata e sindicatos menos atuantes.

    Os salrios pagos aos trabalhadores do sul fluminense (e da PSA PeugeotCitron) esto claramente defasados se comparados com os do ABC paulista,e o argumento das empresas sempre foi de que haveria uma defasagem tam-bm entre os preos dos produtos essenciais nas diferentes regies.

    A presso das centrais sindicais para uma equalizao nacional das re-muneraes das montadoras impulsionou o Dieese a investigar os preos deum conjunto de produtos em dezessete municpios com fbricas de vecu-los no pas, coletando mais de 5 mil preos em 470 pontos comerciais. Osresultados da pesquisa confirmam as grandes diferenas salariais entre ostrabalhadores dos diversos municpios, mas identificam, em contrapartida,uma convergncia na maioria dos preos e servios, com exceo de terre-nos, aluguis e educao (escolas) (cf. Dieese et al., 2003, p.11).

    A compilao a partir dos dados levantados pelo Dieese permite compararsalrios e preos do sul fluminense com o ABC. No que diz respeito aos sal-rios (ver Tabela 1), a remunerao dos trabalhadores horistas (ou seja, do chode fbrica) do sul fluminense aparece em clara desvantagem de duas maneirasdiferentes. No caso dos horistas diretos das fbricas da VW e da PSA PeugeotCitron, o salrio no atinge nem a metade do de seus colegas de So Paulo.

    TABELA 1Remunerao nas empresas montadoras de veculos, por municpio, Brasil, 2001 (em reais) e (ABC=100)

    MUNICPIOS HORISTAS DIRETOS HORISTAS INDIRETOS HORISTAS DIRETOS HORISTAS INDIRETOS

    (EM REAIS) (EM REAIS) (ABC = 100) (ABC = 100)

    S. B. CAMPO/S. C. SUL SP (ABC) 1.999,83 2.609,48 100,0 100,0

    RESENDE/P. REAL RJ (SUL FLUMINENSE) 860,17 1.743,47 43,0 66,8

    Fonte: Rais Relao Anual de Informaes Sociais. Extrado da tabela elaborada pela Subseo Dieese/Sindicato dos Metalrgicos doABC. (Dieese et al., 2003).

    No que diz respeito aquisio de uma cesta de produtos e servios, oargumento de que as diferenas seriam substantivas no se confirma (verTabela 2). Ou seja, se gasta quase a mesma coisa para comprar uma cestacomum de produtos nas duas regies, embora a diferena de salrios per-manea grande.

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 1124

    Flexibilidade francesa: trabalhadores na Peugeot Citron brasileira, pp. 115-132

    TABELA 2Gasto mdio mensal para a aquisio de cesta de produtos e servios, por municpio de produoautomobilstica, Brasil, 2002 (em reais)

    CIDADE/PRODUTO/SERVIO S. B. CAMPO/S. C. SUL SP RESENDE/P. REAL RJ

    (ABC) (SUL FLUMINENSE)

    ALIMENTAO 396,03 382,15

    HABITAO (ALUGUEL ETC.) 619,40 482,72

    EQUIPAMENTOS DOMSTICOS 44,23 42,65

    TRANSPORTE 181,91 190,71

    VESTURIO 57,98 54,41

    EDUCAO/LEITURA 472,97 377,61

    SADE 37,73 38,46

    RECREAO 7,71 6,46

    DESPESAS PESSOAIS 62,39 63,13

    GASTO TOTAL 1.880,35 1.638,29

    Fonte: Extrado da tabela elaborada pela Subseo Dieese/Sindicato dos Metalrgicos do ABC, a partir

    da pesquisa de 151 produtos e servios em 17 municpios brasileiros (Dieese et al., 2003).

    Em resumo, os dados recolhidos confirmam a execuo da estratgia debaixos salrios por parte das montadoras no sul fluminense, complementadapela existncia de um sindicato com pouca experincia em negociaes coma indstria automotiva.

    Ao sindical e relaes de trabalho

    Como j dissemos, a fora da militncia do sindicalismo do ABC foi umdos motivos para que as empresas buscassem outras regies, com poucatradio de participao operria e baixa densidade sindical. Nesse sentido,os municpios de Resende e Porto Real, no sul fluminense, tambm pos-suam boas credenciais.

    Isso se deve a diversos fatores. Primeiro, apesar da proximidade geogrficacom Volta Redonda tradicional centro regional da indstria siderrgica,graas Companhia Siderrgica Nacional (CSN) , esses municpios nuncativeram uma classe operria metalrgica ligada indstria automotiva. Se-gundo, a atuao sindical nesses dois municpios sempre representou umapequena porcentagem das aes do sindicato dos metalrgicos de Volta Re-donda, cujas principais atividades sempre estiveram ligadas CSN, maiorbase da categoria na regio. Por ltimo, mas no menos importante, o fato deo sindicato estar associado Fora Sindical, central sindical com perfil maisconservador, afeita prtica de um sindicalismo de conciliao.

  • 125junho 2006

    Jos Ricardo Ramalho e Marco Aurlio Santana

    De acordo com o gerente de instalao da PSA Peugeot Citron, a posi-o do sindicato foi muito positiva quanto chegada da empresa na regio:

    Ns tivemos um contato, na CSN, com o sindicato da regio, e foi um contato muito

    positivo. Ns sabamos que ali a Fora Sindical era menos... agressiva, se puder chamar

    assim. Porque a gente s vezes, como empresrio, acha que o sindicato agressivo. E no

    o caso. [...] A gente sentiu um sindicato receptivo, foi um contato muito bom (RJ, 18/

    5/1999).

    Porm, em sua fala, j assinalava os limites de mdio e longo prazosdessa estratgia empresarial de busca de reas com baixa atividade sindical.Segundo ele:

    [...] no adianta a gente se iludir, porque o sindicato hoje assim pela presena discreta

    das empresas do setor aqui. Quando a presena for macia, certamente ns vamos ter

    um sindicato com um comportamento diferente. Mas a, quem sabe, a gente no vai ter

    a oportunidade de, partindo de uma base mais interessante, mais amiga, a gente no vai

    conseguir uma coisa melhor? (RJ, 18/5/1999)

    De toda forma, a chegada da PSA Peugeot Citron (e da Volkswagen)mudou de forma sensvel a paisagem social, poltica e econmica do sulfluminense. Um dos impactos mais notados diz respeito exatamente re-presentao dos trabalhadores metalrgicos da localidade, o que parece tersido a tnica tambm em outras regies (cf. Nabuco, Neves e CarvalhoNeto, 2002). A instalao das montadoras trouxe novos desafios ao sindica-to dos metalrgicos de Volta Redonda, tradicional representante dos inte-resses dos operrios da regio.

    At recentemente, o quadro organizativo e de mobilizao dos trabalha-dores na localidade estava mais relacionado VW (cf. Ramalho, 1999; Ra-malho e Santana, 2002), que comeou a funcionar em 1996. Contudo, eletendeu a intensificar-se bastante com a instalao crescente de outras em-presas na regio. O cenrio tornou-se ainda mais complexo com o comeoda produo da PSA Peugeot Citron, em 2001.

    O fato de se posicionar favoravelmente chegada das montadoras e assu-mir uma postura mais conciliatria no impediu que o sindicato fosse rapi-damente levado a dar conta das demandas efetivas dos trabalhadores desdeo incio do funcionamento das empresas e enfrentar as particularidades dassuas culturas gerenciais.

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 1126

    Flexibilidade francesa: trabalhadores na Peugeot Citron brasileira, pp. 115-132

    No que diz respeito ao sindical, percebem-se algumas tentativas deorganizao e mobilizao por parte dos operrios da montadora francesa, oque, no entanto, no tem sido tarefa fcil. Os trabalhadores tm enfrentan-do situaes muito duras em relao sua ao dentro e fora da empresa ena discusso sobre as relaes de trabalho.

    No entanto, talvez nesse ponto seja possvel traar um paralelo com o casofrancs, j que o desenvolvimento de prticas anti-sindicais e de limitao daorganizao dos trabalhadores marca a trajetria gerencial da empresa. Nosanos de 1970, por exemplo, assumindo uma postura repressiva, a empresatratou os representantes dos trabalhadores com prticas que incluam todotipo de humilhao em termos profissionais e entraves sua ao sindical (cf.Hatzfeld, 2002; 2004). Nesse sentido, a militncia sindical e o engajamentoorganizativo lhes custavam caro. J no contexto da reestruturao da empre-sa, Pialoux e Beaud (2004) indicam as dificuldades, passadas e atuais, dosindicato em buscar um agenciamento das demandas operrias visando construo de atores coletivos, diante das prticas da companhia.

    Em Porto Real, diferentemente da direo da Volkswagen, que resistiude incio mas acabou cedendo e aceitando uma comisso de trabalhadoresno interior da fbrica, a PSA Peugeot Citron tem tornado difceis todas asiniciativas de articulao operria no cho de fbrica.

    Isso pode ser verificado nos empecilhos impostos entidade de classe paraaceder aos operrios da linha de produo e no baixo percentual de sindicali-zao dos trabalhadores, especialmente se comparado com a unidade vizinhada Volkswagen. Alm disso, a tentativa de criar mecanismos de organizaono local de trabalho tem enfrentado a resistncia empresarial, o que se tornabastante aparente nas palavras do representante sindical:

    Na Peugeot? Uma dificuldade muito grande. Olha que a gente tem uma relao muito

    boa com eles, mas para entrar na Peugeot... chama o RH, o auxiliar do RH e acompa-

    nham a pessoa... deixa entrar, mas aonde a pessoa vai, ele vai atrs. A, ningum chega

    perto para conversar... uma coisa besta (C. H. Perrut, presidente do sindicato dos

    metalrgicos de Volta Redonda, RJ, 2002).

    As dificuldades apresentam-se aos trabalhadores tambm no que diz res-peito s relaes de trabalho. Relatos de operrios em entrevistas explorat-rias tm indicado um ambiente fabril de extrema tenso, ritmos acelerados detrabalho e baixa participao dos trabalhadores. Embora as atuais teoriasgerenciais acentuem a necessidade de participao dos trabalhadores no pro-

  • 127junho 2006

    Jos Ricardo Ramalho e Marco Aurlio Santana

    cesso produtivo por meio do convencimento, o procedimento da empresa emPorto Real parece incluir prticas autoritrias e a obteno de colaborao dostrabalhadores por meio de muita presso.

    Fora a presso que a gente sofre l dentro. Todo tipo de presso. Voc no pode reclamar

    de nada, voc obrigado a fazer hora extra, tem dia que chega l onze e meia da noite,

    meia-noite, e eles falam assim: , vai ter que ficar at trs horas da manh a. Ah, no

    d porque amanh eu tenho que acordar cedo. Mas vai ter que ficar (Operrio 1,

    2003).

    Mesmo a representao de trabalhadores naqueles casos obrigatrios porlei, e que pode ser benfica para a empresa, como na Cipa, parecem ser objetode desconfiana por parte da gerncia local.

    Tem (Cipa), mas no funciona. O cara na Cipa tambm tem medo. S tem Cipa para

    poder ter a ata, para mostrar para a legislao que tem a Cipa, porque no vale de nada.

    O pessoal da Cipa no participa de reunio, no participa de nada. [...] Na rea que eu

    trabalho, essa mscara de p que descartvel, o funcionrio tem que usar trs dias. Um

    dia desses, eu discuti com o cara da Cipa. Isso no existe, se voc est na Cipa, voc tem

    que agir. Se a mscara descartvel, um dia s e acabou. O gerente fala para voc usar

    trs dias (Operrio 2, 2003).

    O tratamento base de presso parece ser tambm um constituintegeral da cultura gerencial da empresa, j que o mesmo tipo de tratamentopode ser percebido no caso francs, ainda que composto de outras variveisespecficas, como assinala Michel Pialoux3 sobre a experincia recente naPSA de Sochaux-Montbliard,

    Os trabalhadores so explorados, mas as chefias lhes dizem: Se vocs no aceitarem o

    que lhes imposto, a fbrica vai embora. Na PSA [...] prossegue o deslocamento de

    setores da fbrica para outros lugares. [...] Desde 1998, todas essas empresas [ligadas

    PSA na regio] no hesitam em lanar mo do freqente recurso aos precarizados, via

    trabalho temporrio, em verdadeiro ataque ao grupo operrio.

    Alm desse tratamento dado aos trabalhadores no sul fluminense, tam-bm a relao da montadora com o sindicato local marcada pela descon-fiana e pelo controle das atividades dentro do espao fabril.

    3.Entrevista com St-phane Beaud no jornalLHumanit, 4 de feve-reiro de 2004.

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 1128

    Flexibilidade francesa: trabalhadores na Peugeot Citron brasileira, pp. 115-132

    Eles [sindicato] entram, mas sempre com algum do departamento junto, um assisten-

    te do RH junto. O sindicato, infelizmente, restrito. Ele s vai ao RH [...]. Mas na

    montagem eles no vo (Operrio 2, 2003).

    Um arremedo de comisso de fbrica existe apenas na fachada, j queno parece ter nenhum poder de exercer sua atividade de fiscalizao nointerior da fbrica. O relato de um trabalhador confirma a posio da ge-rncia de no aceitar a comisso, a no ser no processo de negociao coleti-va, o que na verdade se confunde com as tarefas do sindicato:

    A Peugeot no aceita. Ns vamos reunio, a gente discute [mas] s reunio do acordo

    coletivo. Na reunio mensal a gente no chamado, no. [...] Eles no aceitam. Eles s

    aceitaram no acordo coletivo porque o sindicato pressionou. Caso contrrio, nem co-

    misso existia. [Eu] Reclamo, mas no adianta nada. Eu chego e passo para o sindicato

    mas... para eu ter acesso ao diretor de RH... Eu vou e falo, mas eles no do bola no,

    no respeitado. Eles no respeitam (Operrio 1, 2003).

    Apesar de todas as tentativas da montadora de impedir a transformaode seus trabalhadores em um ator coletivo, os efeitos do tratamento duronas relaes de trabalho j se fazem sentir. Esse tipo de prtica por parte daempresa tem precipitado tenses com os trabalhadores e seus representan-tes. o caso, por exemplo, do contencioso criado no final de 2001, com afbrica recm-inaugurada, que se estendeu at fevereiro de 2002 e chegou acriar um impasse, com ameaa de greve por parte da organizao sindical.

    A deciso da diretoria da Peugeot Citron de descontar dos empregados os 45 minutos

    de atraso no incio da produo na tera-feira, devido realizao da assemblia em que

    a contraproposta da montadora para o acordo coletivo dos metalrgicos foi discutida,

    quase criou um impasse maior na questo. Ao saber da atitude da empresa, o presidente

    do sindicato dos metalrgicos, Carlos Henrique Perrut, decidiu radicalizar as aes,

    dando incio aos procedimentos legais para uma greve. [...] Na quarta-feira, a empresa

    recuou da deciso de descontar o tempo parado por causa da assemblia e chamou o

    sindicato para uma reunio no dia seguinte (Peugeot Citron Montadora reabre

    negociaes, Dirio do Vale, 25/01/2002).

    Apesar da existncia, em alguns momentos, do enfrentamento abertoentre o sindicato e a empresa, as dificuldades do rgo representativo dostrabalhadores ainda so muito grandes. Isso evita que os operrios da PSA

  • 129junho 2006

    Jos Ricardo Ramalho e Marco Aurlio Santana

    Peugeot Citron consigam no s construir de forma efetiva mecanismos derepresentao mais atuantes no interior da fbrica, mas tambm obter maiorliberdade de filiao e ao sindical. Um dos grandes limites da ao sindi-cal pode ser sentido na incapacidade de organizar e articular com eficcia ostrabalhadores das duas montadoras existentes na localidade, o que poderiaampliar seu poder de fogo na defesa dos direitos dos trabalhadores diantedos interesses das empresas.

    Concluso

    A experincia particular da PSA Peugeot Citron no sul fluminense aju-da a pensar a complexidade do processo de constituio de novos cenriosprodutivos e seus impactos na vida dos trabalhadores. O caso em questomostra uma situao em que a empresa j inicia suas atividades tomandocomo base os princpios da produo enxuta, mas sem oferecer evidnciasde que estaria considerando decisiva para o sucesso do projeto empresarial aparticipao do trabalhador na discusso do processo produtivo.

    A anlise revela outros aspectos que, em alguma medida, desautorizamformulaes comumente utilizadas pelas gerncias sobre a necessidade doenvolvimento voluntrio dos operrios no projeto da empresa. So as situa-es de cho de fbrica relatadas pelos trabalhadores que indicam certo hibri-dismo entre as novas prticas gerenciais e os mtodos autoritrios, caracters-ticos do modelo de produo fordista. Nesse sentido, pode-se dizer que ascondies locais permitem um tipo diferente de flexibilidade, da qual semprese espera eficincia, produtividade e qualidade sem, contudo, atribuir im-portncia a uma participao efetiva dos trabalhadores.

    Alm dos privilgios comparativos com outras regies, associados isen-o fiscal, aos investimentos em infra-estrutura e aos baixos salrios, asmontadoras transformaram tambm o prprio emprego em vantagem, namedida em que o utilizam como mecanismo para pressionar os trabalhado-res no processo de produo. O caso do sul fluminense serve de bom exem-plo do uso do trabalho inseguro como estratgia de controle no processode trabalho.

    Por fim, o fato de as fbricas j terem nascido flexveis no facilitou demodo algum a ao sindical. Ultimamente se tem falado em novas estrat-gias gerenciais, que estariam superando a produo enxuta e passando aconsiderar a colaborao do sindicato na elaborao do projeto da empresa.Esse tambm no parece ser o caso. Alm da inexperincia para lidar com a

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 1130

    Flexibilidade francesa: trabalhadores na Peugeot Citron brasileira, pp. 115-132

    problemtica salarial do setor automobilstico, o sindicato local ainda teveque atuar em situaes de fbricas enxutas e de trabalho flexvel. No houvedebate sobre as mudanas, ou mesmo sobre se elas significavam uma redu-o das conquistas anteriores dos trabalhadores.

    Embora o sindicato tenha rapidamente se organizado para algumas aesna rea das reivindicaes salariais e das negociaes coletivas, inclusive amea-ando com a realizao de greves, nota-se uma enorme deficincia na atuaodentro da fbrica. O espao fabril permanece sob o domnio absoluto daempresa e as poucas interferncias por parte da organizao sindical so trata-das como indevidas e ilegtimas.

    O processo de implantao e o funcionamento da PSA Peugeot Citronem Porto Real, apesar de suas particularidades, guardam, portanto, certasimilaridade com a experincia analisada por Beaud e Pialoux (2004) e reve-lam um padro de relacionamento da empresa com seus operrios indepen-dentemente das fronteiras nacionais, um conjunto de caractersticas comunsao novo mundo do trabalho em escala global e alguns sinais de como essasmudanas esto sendo vividas pelos trabalhadores.

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    Resumo

    Flexibilidade francesa: trabalhadores na Peugeot Citron brasileira

    A proposta deste artigo discutir os efeitos do processo recente de flexibilizao da produ-

    o industrial (automotiva) sobre as relaes de trabalho e sobre os operrios e seus sindica-

    tos. A partir do exemplo da primeira unidade brasileira da montadora francesa PSA Peu-

    geot Citron, instalada no municpio de Porto Real, Rio de Janeiro, em 2001, pretende-se

    argumentar que a construo de uma fbrica enxuta e reestruturada, com um projeto de

    superao da organizao fordista e integrante de uma cadeia produtiva global, reconfigura

    as relaes com os trabalhadores (e com o sindicato) no espao fabril por meio da exigncia

    de mais escolaridade, maior capacidade de adaptao s novas tecnologias e novas formas de

    organizao da produo. No entanto, mantm prticas gerenciais autoritrias e evita a

    reproduo de experincias anteriores de resistncia operria. O debate beneficia-se dos

    trabalhos sobre esta empresa na Frana realizados por Michel Pialoux e Stphane Beaux,

    que nas ltimas dcadas analisaram suas transformaes gerenciais e os desdobramentos

    sobre o modo de vida de diferentes geraes de operrios.

    Palavras-chave: PSA Peugeot Citron; Trabalhadores; Relaes de trabalho; Sindicato.

  • Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 18, n. 1132

    Flexibilidade francesa: trabalhadores na Peugeot Citron brasileira, pp. 115-132

    Abstract

    French-style flexibility: workers at the Brazilian Peugeot Citren plant

    The article discusses the effects of the recent process of flexibilization in industrial (auto-

    mobile) production on labour relations, on workers and their unions. As an example, the

    authors examine the first Brazilian plant to be opened by the French manufacturer PSA

    Peugeot Citron, installed in Porto Real, Rio de Janeiro, in 2001. They argue that the

    construction of a shrunk and restructured plant a project designed to move beyond

    Fordist organization as an integral part of a global productive chain reconfigures the

    relations with workers (and with the union) in the factory space by creating the demand

    for higher levels of schooling, a greater capacity to adapt to new technologies, and new

    forms of organizing production. However, these relations maintain authoritarian practices

    while preventing the reproduction of previous forms of worker resistance. The debate

    benefits from the research on the same company conducted by Michel Pialoux and Stphane

    Beaud, who have analyzed its managerial transformations over the last few decades and the

    impact on the lifestyles of different generations of workers.

    Keywords: PSA Peugeot Citron; Workers; Labour Relations; Unions.

    Texto recebido e apro-vado em 11/4/2006.

    Jos Ricardo Ramalho professor do Programade Ps-Graduao emSociologia e Antropolo-gia da UFRJ. E-mail:[email protected].

    Marco Aurlio Santana professor do Programade Ps-Graduao emMemria Social daUnirio.