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Florestan Fernandes a pessoa e o político

Florestan Fernandes a pessoa e o políticoadunicamp.org.br/novosite/wp-content/uploads/2019/04/... · 2019-09-30 · Florestan Fernandes: a pessoa e o político Página 03 Heleieth

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Florestan Fernandes a pessoa e o político

Expediente: esta é uma publicação da Associação de Docentes da Unicamp – Seção Sindical. Gestão ‘ADunicamp Plural e Democrática’ (2018/2020): Presidente Wagner Romão (IFCH), 1ª Vice-Presidente Silvia Gatti (IB), 2º Vice-Presidente Paulo Cesar Centoducatte (IC), 1ª Secretária Verónica González-Lopez (IMECC), 2ª Secretária Áurea Maria Guimarães (FE), 1º Tesoureiro Gustavo Tenório Cunha (FCM), 2º Tesoureiro Guilherme Santos Mello (IE), Dir. Adm. Edson Joaquim dos Santos (Cotuca), Dir. Imprensa Edwiges Maria Morato (IEL), Dir. Cultural Wanderley Martins (IA). Esta edição foi produzida pela equipe de Comunicação da ADunicamp, em fevereiro de 2019. Endereço - Av. Érico Verissimo, 1479 - Cid. Universitária - CEP 13.083-851 - Campinas/SP - Fone.: (19) 35321-2479. www.adunicamp.org.br - facebook.com/ADunicamp - twitter.com/ADunicamp - youtube.com/ADunicamp.

apresentaçãoEsta entrevista veio a público pela primeira vez em dezem-bro de 1980, na Revista Escrita/Ensaio. O momento é já o de um Florestan bastante maduro que, em uma aval-iação crítica de sua trajetória como acadêmico e como ci-dadão, busca se reposicionar no ambiente da redemocra-tização do país, àquele mo-mento ainda incerta.

Florestan Fernandes foi, provavelmente, o maior sociólogo brasileiro. Elevou a padrões internacionais os rigores da ciência sociológica produzida na USP - e depois pelo Brasil afora. Esta foi sua missão autoimposta de forma-dor de gerações de cientistas sociais durante a fase inicial de sua trajetória acadêmica, em que produziu obras seminais da sociologia brasileira como a Integração do Negro na Socie-dade de Classes.

Os anos 1960 e as decorrên-cias do golpe militar atin-giram em cheio o Florestan scholar. Projetos foram interrompidos e veio a saí-

da forçada da USP, com a cassação pelo AI-5, a apo-sentadoria compulsória e a passagem pela Universidade de Toronto, no Canadá. O retorno de Florestan ao Brasil é carregado de frustração, que transparece na entrevista, com os limites da posição de intelectual e de universitário em um país tão fortemente desigual como o nosso. Ele se ressente da real impossibili-dade em se conciliar os papeis de acadêmico e de político no ambiente universitário, já àquele momento refratário a esforços de se coadunar conhecimento científico com transformação social.

Esta versão da entrevista nos chegou por meio do professor Paulo Fernandes Silveira, da Faculdade de Educação da USP, neto de Florestan. Ela é especial, pois possui notas cuidadosamente elaboradas por Paulo, que apresentam cada personagem e cada lugar ou instituição citada pelo entrevistado, além de explicações sobre o contexto histórico de cada passagem de

suas memórias, desde a infân-cia até fins dos anos 1970.

Gostaria, nesta breve apre-sentação, de destacar um trecho da entrevista, quando Florestan fala sobre a forma como foi recebido em sua volta à Faculdade de Filosofia, após o episódio de sua prisão no início da ditadura, em abril de 1964. Diz Florestan que “a maneira pela qual fui recebido, isso tudo forçou um pouco a consciência do dever intelectu-al. Eu vi que nós não tínhamos o direito de ser irresponsáveis e foi, em grande parte, por causa disso que procurei um ativismo político maior do que demonstrara antes.”

Penso que essa reflexão se aplica bem aos nossos dias, na luta em defesa da Univer-sidade e também em nossa atuação como intelectuais cidadãos, neste difícil mo-mento de nossa história. Que Florestan nos inspire!

Wagner Romão, professor de ciência política do IFCH e presidente da ADunicamp.

ENTREV

ISTA

Assim que retornou ao Brasil, após um autoexílio, o filósofo José Chasin assumiu a direção da revista Escrita/Ensaio. Essa entrevista com Florestan abriu o primeiro número da nova fase da revista 1.

José Chasin – Professor, como foi sua vida?

Em julho de 1920, quando nasci, minha mãe trabalhava numa casa

de família. Meu pai já havia falecido, eu nasci na maternidade da rua Frei Caneca. Criança fraca, com risco de vida, fui logo batizado. Houve um conflito de nomes, porque meus padrinhos, que eram os patrões de minha mãe, queriam que eu me chamasse Vicente, e ela queria Florestan, que era o nome do chofer da família – um alemão que mais tarde se casaria

com uma amiga de minha mãe. Minha madrinha (Hermínia Bresser de Lima) achava que Florestan não era nome para filho de criada, embora o alemão fosse o chofer, ela queria que eu fosse Vicente. Por isso, fiquei apelidado de Vicente durante muito tempo. Eu sou Vicente e Florestan. Os que me conhecem por Vicente, agora, são só meus tios e minha mãe.

1- Publicada, originalmente, na revista Escrita/Ensaio, São Paulo, ano IV, n. 8, dez. 1980, p. 9-39. Participaram da entre-vista: José Chasin (coordenador geral); Heleieth Safiotti; Marilene Pottes; Narciso Rodrigues; Ester Vaisman; Paulo Barsotti e Paulo Resende. Nos anos 60, quando ainda era aluno da Faculdade de Filosofia, Chasin militou ao lado de Florestan na Campanha de Defesa da Escola Pública (ASSUNÇÃO, Vânia; SARTORI, Lucia; RAGO FILHO, Antonio; VAISMAN, Ester. A trajetória de J. Chasin: teoria e prática a serviço da revolução social. Verinotio. Belo Horizonte, v. 9, 2008). As notas dessa reedição ficaram a cargo de Paulo Henrique Fernandes Silveira (USP), que agradece a autorização para essa publicação a Florestan Fernandes Júnior, Heloisa Fernandes Silveira e Ester Vaisman.

Florestan Fernandes a pessoa e o político

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Heleieth Safiotti – E o senhor viveu nessa casa com sua mãe?

Vivi um pouco. Minha madrinha queria que minha mãe me desse a ela, e minha mãe respondeu que: “Não se dá filho, o que se dá são cães”. Portuguesa decidida, nós enfrentamos a vida sozinhos, duramente2. Conheci o lado trágico da vida em São Paulo por aí, de modo que, quando estudei o negro, havia muito de experiência própria. Não era experiência contada. Chegamos a viver em casa de cômodos, em pequenos cortiços, naqueles grandes cortiços nunca cheguei a viver. Mesmo assim, cheguei a conhecê-los porque morei perto de um deles, um dos mais pavorosos, que ficava na Santo Antônio, perto da Jaceguai 3. Aqueles cortiços eram realmente terríveis. As descrições que faço no livro (A integração do negro na sociedade de classes) consegui reconstruir graças aos depoimentos de pessoas que moravam lá. E o que eles me contaram era exatamente

o que eu conheci quando criança. Minha mãe é de origem portuguesa, e lá, onde moravam brancos de origem brasileira, portuguesa, italiana, espanhola, vi como se excluía o negro. Isso tudo corresponde à década de 20. Comecei a trabalhar com seis anos, e com nove já ganhava a vida como um adulto. Minha mãe contraiu segundas núpcias nesse período. Depois não deu certo, mas, de qualquer maneira, nós organizamos nossa vida e melhorou. Aos seis anos de idade me iniciei na vida prática. Meu primeiro trabalho foi limpar a roupa dos clientes de uma barbearia, que ficava na Major Quedinho. Havia um salão de barbeiros ali, éramos dois meninos, eu e um negrinho. Como eu era pequeno e mais engraçadinho, eu ganhava muito dinheiro em gorjetas. Eu era do tipo fraquinho. Sempre fui muito anêmico, mas, apesar de anêmico, era uma criança bonitinha, os fregueses se engraçavam, davam 400 réis, 200 réis,

o que era muito dinheiro no fim do dia. Daí passei para vários outros tipos de trabalho, tudo de modo muito ocasional. Trabalhei num açougue, em alfaiataria. Depois descobri que o que dava mais dinheiro, para uma criança como eu, era engraxar sapatos. Aprendi, então, a engraxar sapatos, ainda na Bela Vista. Depois mudamos para o Cambuci. Estudei onde ficavam os “pontos bons” e descobri que os melhores ficavam na Vila Mariana – no Largo Ana Rosa e em frente à estação dos bondes. Havia uma mobilidade muito grande dos pobres, embora as pessoas preferissem mudar para a mesma área em que viviam, pois assim a mudança ficava mais barata. Mas era difícil, porque a população flutuante era muito grande nos cortiços, antigos prédios alugados para seis, oito, dez famílias pequenas. Então, às vezes a gente morava na rua Santo Antônio e mudava para a Luís Barreto ou rua Rocha. Mas ficávamos no mesmo bairro. Outras

2 - Numa entrevista concedida em 1991, Florestan afirma que teve uma irmã, falecida aos cinco anos. (Florestan Fernandes, por Paulo de Tarso Venceslau. In: Rememória – entrevistas sobre o Brasil do século XX. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1997, p. 227).3- Florestan refere-se ao complexo Vila Barros. Situado no bairro do Bixiga, entre as ruas Santo Antônio e Jaceguai, o Vila Barros era composto pelos cortiços: Vaticano, Navio Parado, Pombal e Geladeira (BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 68).

vezes, éramos obrigados a fazer mudanças para longe. Uma vez fomos morar no Bosque da Saúde, numa área ainda muito descampada, muito afastada. A casa era boa, tinha dois cômodos, cozinha e quintal. Ficamos um bom tempo lá. Eu ia a pé até a estação dos bondes da Vila Mariana, eu tinha um ponto no Largo Ana Rosa.Havia um barzinho ao lado da antiga estação de bondes e também um grande salão de barbeiro. Eu tinha freguesia montada tanto na barbearia como nas casas. Ficava nos pontos um período do dia. Na outra parte do dia, ia bater em casas de família, pois muitos preferiam engraxar sapatos em casa. Pegava dez, doze pares de sapato para engraxar, de famílias ricas. Eu saía de casa de manhã cedo, quando podia levava um bom sanduíche, quando não podia, não levava nada. Depois desse período, minha mãe já não trabalhava. Durante um tempo, ela lavou roupa, depois largou o serviço

doméstico e ficava em casa. O meu padrasto era garçom e tinha sua renda. Eu tinha a minha e, quando não tinha nenhum tipo de trabalho para fazer, arrumava uns biscatinhos, como encerar casa e transportar colchões, isso tudo dava dinheiro. Heleieth Safiotti – O senhor não acha que essa experiência o marcou profundamente?

Por sorte, eu não posso dizer isso, pois aceitei naturalmente esta vida. Eu não fiquei questionando o universo naquela época. Nasci na casa de minha madrinha, uma senhora da família Bresser que falava francês, tocava piano, com quem eu vivi até quase três anos, depois mantive contato com eles. Houve um período, entre seis e sete anos, que eu voltei a viver com ela. Fui colocado numa pequena escola primária. Por isso, fiquei com um padrão de curiosidade intelectual que foi alimentado pela família Bresser. Lá aprendi a ler

o Tico-Tico 4. E depois, o segundo padrasto (João de Carvalho) que eu tive, possuía vários livros. Eu lia bastante, para uma criança. Eu ficava um pouco isolado, como trabalhava muito e ficava muito tempo fora de casa, eu não podia ter uma vida de criança. A minha vida era de um adulto, muito prematura, portanto, o que realmente me faltou foi a socialização infantil. Quer dizer, em termos rousseaunianos, eu sou um estupro contra a natureza. Minha experiência adulta se antecipou tanto no nível prático como no nível intelectual. O duro, nesse período, era o fato de que as pessoas tratavam uma criança como uma pessoa de “classe inferior”. Tive experiências assim: gente que queria dar comida como quem dá comida a um cão. Eu podia estar morrendo de fome, mas não aceitava. Eu só aceitava comida na casa de uma professora, cujo filho era meu amigo, com quem eu brincava. Em outras casas eu recusava

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4 - A revista infanto-juvenil Tico-Tico foi criada na primeira década do século XX. Além dos quadrinhos, a revista trazia diversas informações culturais e versões adaptadas de trechos dos clássicos da literatura, o que indica seu propósito didáti-co-pedagógico (VERGUEIRO, Valdomiro. A postura educativa de O Tico-Tico: uma análise da primeira revista brasileira de história em quadrinhos. Comunicação & educação. São Paulo, ano XIII, n. 2, mai./ago. 2007). Em outro texto, Florestan destaca a importância dessa revista para sua formação como autodidata (FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 146).

mesmo que a comida fosse boa e estivesse faminto. Eu recusava porque me revoltava contra o fato de oferecerem comida em condições degradantes. E preferia comer um “mata-fome”, uma espécie de pudim de pão que custava metade de um tostão. Quem comesse dois daqueles ficava empanzinado para o resto do dia, porém, não estava alimentado, é claro.De modo que, essa experiência era chocante. Além do mais, há a perversidade dos adultos, que é muito grande, e uma criança que está vivendo com a mãe tende a aprender prematuramente a se defender, usando inclusive a violência. A violência entrou na minha vida muito cedo, era um processo de autodefesa: se eu não usasse a violência, eu acabaria sofrendo uma utilização sexual violenta por parte dos adultos. Acabaria sendo castigado nos grupos de crianças que brincavam no bairro. Como eu não era de nenhum dos grupos, eu

poderia ser perseguido. Por isso, em todos os bairros em que eu vivesse, apesar de franzino, tinha de recorrer à violência, o que é doloroso.Quanto ao resto, tenho a impressão de que o amadurecimento foi muito grande. Quanto à aprendizagem, esta foi razoável, porque eu estive na escola em torno dos seis anos e pouco. Mas, em função de todos esses problemas de violência, minha mãe queria me pôr na Marinha ou no Instituto de Menores. A minha madrinha, então, me pegou por uns tempos. Depois, minha mãe não quis que eu continuasse lá, talvez com medo de me perder. Voltei para a casa dela. Meus padrinhos, além do que davam na escola, me ensinavam a ler, acompanhavam minha aprendizagem. Depois, eu fui morar na Bela Vista e frequentei o Grupo Escolar Maria José, que ficava na esquina da Treze de Maio com a Manoel Dutra. Fui até o 3º ano lá.

No início do 3º ano, precisei interromper, porque nos mudamos para o Bosque da Saúde e eu tinha que trabalhar, porque meu padrasto estava doente e eu era a única fonte de suprimento de dinheiro da família. Não pude mais frequentar escolas, mas a aprendizagem nunca foi interrompida. As pessoas me davam livros. Isso é uma coisa muito curiosa, eu sempre ganhei muito livro. Mesmo depois que eu passei a trabalhar em padarias, bares, restaurantes, os fregueses conversavam comigo e viam que eu tinha interesse, que conhecia assuntos extravagantes para um copeiro, e me davam livros. Um tio de Mário Wagner, o Lula – Luis do Amaral Wagner – era delegado de ensino e uma vez me deu 40 livros, que no início da década de 60 eu doei para a Faculdade de Filosofia5. Sempre gostei muito de contos, de novelas, ficção e folclore, que era muito cultivado e fazia parte da minha vida. As pessoas

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5 - Mário Wagner Vieira da Cunha tornou-se amigo de Florestan na Faculdade de Filosofia da USP. Luis do Amaral Wagner, tio de Mário Wagner, conheceu Florestan no período em que este completava o curso de madureza. Ele incentivou Florestan a optar pelo curso de ciências sociais (PONTES, Heloisa. Destinos mistos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, 168).

do nível em que eu vivia praticamente usavam esse saber, que era segregado do saber erudito. Então, eu gostava muito de contos populares e de novelas. Era uma forma de compensar as poucas oportunidades de ter qualquer recreação: a válvula de equilíbrio era a fantasia.

Heleieth Safiotti – Professor, como era a sua relação com os outros garotos?

Fiz amizades com alguns, mas a regra ali era esta: enquanto o sujeito não era aceito, tentavam impedir que ele fizesse parte do ponto. Porque o ponto é uma maneira de ganhar a vida. E, como não havia uma seleção programada, cada um conquistava o ponto com base no seu valor de luta. Quando eu fui para o Largo Ana Rosa, por exemplo, um alemãozinho taludo, quase o dobro de minha idade, não queria me deixar engraxar. Eu era um meninote, nessa época, devia ter uns nove anos.

Eu estava com uma caixa de sapólio Radium, grossa e forte, que fui girando enquanto a gente discutia – “Fico aqui”, “Não fica”, “Fico”, “Não fica” – até que espatifei a caixa na cabeça dele. Nunca mais ele se meteu comigo. Naquela época, ele tinha uns catorze anos, era muito mais forte do que eu. Era assim que as coisas se resolviam.

Heleieth Safiotti – Quer dizer que a caixa era sua arma?

Eu usava qualquer uma, até armas mais violentas. Na área em que vivi, na Luís Barreto e Santo Antônio, havia um líder de grupo chamado Papaiano, ele amedrontava as crianças. Esse camarada me perseguia e eu não podia brigar com ele, porque era muito pequeno. Naquela época, havia um negócio de cuspir no chão, o sujeito passar o pé em cima e, depois, passar a mão no nariz do cara. Ele veio, passou a mão no meu nariz e eu fiquei quieto. Aí ele cuspiu no chão, eu era

muito pequeno e corri para casa, eu não podia lutar com ele. Ele devia ter uns dezesseis anos. O fato é que fiquei apavorado e falei com minha mãe: “É melhor nos mudarmos daqui”. E ela disse: “Não, nós não podemos mudar”. Eu respondi: “Mas nós não podemos ficar aqui”. E ela repetiu: “Não podemos mudar”. Aí eu tive de pensar em como lutar com ele. E o que foi que eu fiz? Abri a costura da botina, quebrei uma gilete, instalei-a ali e fechei de novo. Passei por lá e o garoto me assaltou de novo, porque eu era o prato predileto dele. Quando ele veio para cima de mim, eu fiquei quieto. Repetiu-se a cena: ele cuspiu no chão, eu passei o pé em cima, aí ele passou a mão no meu nariz, e eu passei a mão no nariz dele. Aí ele veio me bater e eu meti o pé na canela dele. Eu dei uma bela sova naquele camarada. Foi violentíssimo! Ninguém nunca mais se meteu comigo. Esse era o “mundo

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normal”: ou o camarada sabia se defender ou ficava “protegido”. Agora, o “protegido” tem outros percalços, sofre outras violências. Mesmo no Bosque da Saúde, eu tive de enfrentar um rapaz, mas aí a luta foi leal: era uma família mineira e o rapaz tinha três irmãos. Essa luta era parte de um ritual de iniciação e adoção. Toda vez que havia uma mudança, eu tinha que enfrentar esse tipo de problema. Não queriam que eu entrasse no grupo e eu tive que brigar. Mas brigamos de maneira limpa, e ele apanhou. É que eu tinha mais experiência de vida. A família dele viera de uma zona rural de Minas e, enquanto viveram meio isolados ali, ele podia cantar de galo. Depois, eu apareci e, apesar de ser mais franzino, ele apanhou muito. No entanto, eu sofri um castigo que me deixou revoltado. Minha mãe me deixou uma semana sem poder sair, a não ser para ir trabalhar. E eu fiquei revoltado porque ele era mais forte que eu e tinha

me provocado.

Heleieth Safiotti – O senhor conseguiu terminar o Grupo Escolar?

Não, fiquei no 3º ano. Mas continuei a estudar sozinho. E, por acaso, quando o Riachuelo foi fundado, eu trabalhava no bar ao lado. Fiz amizade com os professores do ginásio e perguntei se podia ser aluno. Eles disseram que sim. Eu era copeiro do bar, mas também trabalhava na cozinha, à noite. Eventualmente, podia servir alguns fregueses na mesa. À noite não tinha quem cozinhasse, aí eu cozinhava. Trabalhei ali uns três anos, devia ter catorze, quinze anos. Fiz boas amizades, inclusive o Manoel Lopes de Oliveira Neto, a quem dedico o meu primeiro livro. Dona Ivana, o Castro6 e o Maneco foram os que receberam a dedicatória do meu primeiro trabalho sobre “As trocinhas do Bom Retiro”, escrito em 1944, que depois foi transferido para o livro Folclore e

mudança social na cidade de São Paulo. Eu conheci ali muita gente. Quando havia uma conversa sobre a campanha das tropas francesas na Espanha, a história de Roma, etc, eu entrava na conversa. E, com isso, os fregueses ficavam prestando atenção em mim. Na ocasião, eu combinei com o professor Benedito de Oliveira, que era diretor da escola, pagar uma taxa menor para estudar 7. Nesse ínterim, o Riachuelo mudou para o Campos Elíseos, e eu fiquei com o problema de arranjar outra ocupação, porque não podia estudar trabalhando no bar e restaurante. O Manoel Lopes de Oliveira Neto, o Maneco, disse que me ajudava, e me garantiu: “Só que você precisa estudar datilografia e fazer o tiro-de-guerra. Datilografia, porque eu não sei o que vou poder arranjar na Novoterápica (ele era um dos diretores da empresa). Se você precisar trabalhar na máquina, você sabe. Está estudando muito tardiamente e, se

6 - Ivana Piano de Castro e José de Castro Manso Preto foram padrinhos de Heloisa Fernandes e de Florestan Fernandes Júnior (filhos de Florestan). O casal se responsabilizou pela formação da afilhada. Ivana era filha adotiva de Hermínia, madrinha de Florestan. Assim que o seu marido faleceu, Ivana foi morar na casa de Florestan e Miriam Rodrigues Fer-nandes (esposa de Florestan). 7 - O professor Benedito de Oliveira, que Florestan considerava “o maior e talvez o único educador” que ele teve a opor-tunidade de conhecer, disponibilizou as chaves do colégio aos alunos para que eles pudessem estudar após as aulas e nos finais de semana (FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 148). Segundo Florestan, essa ocupação de estudantes criou uma pequena, alegre e unida comunidade, ali eles repassavam as lições, debatiam diversos temas, tomavam banho, faziam refeições, festas nas tardes de domingo e, muitas vezes, pernoitavam.

for sorteado para o exército, nunca mais vai poder estudar” 8.Eu consegui, com o Machado e os sócios dele, sair na hora de maior movimento e, três vezes por semana, ia receber instrução no tiro-de-guerra 546, que ficava na rua do Carmo. Um ano todo foi assim. Depois, o Maneco me arrumou um lugar como entregador de amostras, em que fiquei uns oito meses. Era um bom lugar, pois me permitia estudar. Quando juntava as amostras para entregar, ele me chamava: “Florestan, vá levar isso aí!” Eu saía. Entregava as amostrinhas, e depois voltava. Daí eu fui promovido a estoquista, cargo em que fiquei quase um ano. Fiz carreira rapidamente: a carreira dentro da Novoterápica estava encerrada, chefe de seção, em três anos. Mas aí eu já estava terminando o madureza e tinha de fazer um curso superior 9. Queria fazer

engenharia química, talvez, por causa de Júlio Verne. Mas não podia, precisaria ficar na escola o dia todo e eu tinha que trabalhar. Não segui, portanto, nenhum curso entre aqueles que estavam na minha linha de preferência. Examinei as possibilidades abertas pelos cursos de meio período. De início, eliminei direito e letras. Fiquei entre filosofia, ciências sociais, geografia e história. Aí escolhi ciências sociais. O professor Benedito de Oliveira, logo no 1º ano, detectou que eu era um aluno muito quieto, muito isolado, e disse à classe: “O Florestan é um reformador social, a gente vê pelo jeito dele”. Eu tinha, pois, certa propensão a me interessar por assuntos que diziam respeito às condições de vida dos seres humanos. E escolhi ciências sociais.

José Chasin – Gostaria de voltar atrás um pouquinho. Nós tivemos a descrição de um longo período duro, de um menino trabalhador, o menino que tem de se armar

com gilete na botina para salvar a pele. Tivemos, então, um perfil extremamente dramático, árduo, áspero. E eu queria fazer uma pergunta muito simples. E os traços mais simpáticos, positivos, alguma lembrança carinhosa e afetiva nesse passado?

Eu tive várias, mas poucas entre companheiros. Tive pessoas marcantes na vida: minha madrinha, minha avó, um tio chamado Francisco, que eu admirava, porque era do tipo aventureiro. Sabia montar muito bem. A família toda veio de Portugal e foi trabalhar no interior. Meu avô ficou tuberculoso e a família se desagregou, de modo que, as pessoas de quem eu gostava muito eram pessoas que representavam alguma coisa para mim. Durante um tempo, na área dos adultos, eram três as pessoas de quem eu gostava. Dona Ivana, uma delas, foi a maior amiga que tive na vida, a pessoa que mais gostou de mim,

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8 - Novas oportunidades de emprego eram raras para os pobres, especialmente, para aqueles que trabalhavam em bares e restau-rantes, “o mínimo que se pensava, sobre aquele ‘tipo de gente’, é que éramos ‘ladrões’ ou ‘imprestáveis’!” (FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 148). A ideologia de que os pobres formam uma “classe perigosa”, sem princípios e preguiçosa, foi forjada na Europa no século XIX e, posteriormente, incorporada pela imprensa brasileira (CHALHOUB, Sidney. Cidade febril. São Paulo: Companhia das Letras, 1996). 9 - Antes de entrar no Riachuelo, Florestan tinha concluído, apenas, os três anos iniciais do curso primário. O Riachuelo era um giná-sio particular que preparava os alunos para os exames do madureza. Nos anos 30, após a reforma de Francisco Campos, o madureza exigia a idade mínima de 18 anos, para os estudantes que desejassem obter o certificado do curso secundário fundamental, e 20 anos, para aqueles que desejassem obter o certificado do curso secundário complementar (HADDAD, Sérgio. O ensino supletivo no Brasil. Brasília: INEP, 1987, p. 22). Florestan passou em todos os exames, o que o habilitou a ser professor do curso secundário fundamental e a concorrer no vestibular do curso de ciências sociais, mesmo sem ter feito os dois anos do curso Pré-Universitário oferecido pela Faculdade de Filosofia (FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 155).

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talvez, mais do que minha mãe.Como criança, eu tinha pouca ocasião de ter contatos afetivos. Se alguma criança se mostrava aberta à minha amizade, eu me atirava muito profundamente a ela. Mencionei aqui o filho da professora, com quem eu brincava, mas era uma coisa superficial. Houve outra amizade profunda, um rapaz que também era engraxate, era um rapaz muito inteligente e sensível. Ele morreu uns dois anos depois que eu o conheci, morreu de tuberculose e de fome. Para nós, não era fácil sobreviver. Era uma vida dura, que parece literatura armada de televisão. Isso acontecia frequentemente, as pessoas caíam no caminho. E tive outro amigo no Cambuci, um menino que morava bem longe; fizemos uma amizade muito séria e profunda, que depois se desfez. Esses episódios eram importantes, porque essas amizades tinham para mim um significado que provavelmente não tinham

para o outro.

Marilene Pottes – E na escola?

No Grupo Escolar Maria José a disciplina era muito dura, as professoras usavam ponteiro 10. Na escola em que estive no Brás, ainda se usava palmatória, ainda se botava criança ajoelhada em grão de milho, ainda se usava pôr orelha de burro, o sujeito ficava sentado no banco com a orelha de papel. Eu levei palmatórias, levei bolos. No Grupo Escolar Maria José, eu tinha uns problemas porque, por causa da minha vivacidade, as professoras me usavam como auxiliar para tomar a tabuada, fazer coisas assim. E meus colegas ficavam bravos, porque eu parecia muito menor, era pequeno, e na hora que ia tomar a tabuada me chutavam na canela e eu chutava também. Levava um chutão e dava outro chutão. Quando saía na rua estava lá o bolo armado. E eu não fugia da briga. A sorte é que nesse colégio havia um diretor, o professor

Barros, um homem de bom discernimento humano, que compreendeu a natureza da situação e nunca usou de violência, mesmo quando minha mãe lhe dizia que: “Devia castigar-me como um pai, para aprender”. A repressão na escola ia tão longe, que uma vez a vice-diretora ficou com a orelha de um aluno na mão. Deu um escândalo tremendo naquela ocasião. Em função destas brigas, eu fiz alguns amigos, às vezes, fugíamos da escola. Nós íamos ao Morro dos Ingleses, onde existiam alguns palácios e um grande descampado com muro. Fingíamos que íamos à escola, cabulávamos aula, mas tudo foi descoberto e nós acabamos sofrendo punição.

Heleieth Safiotti – E como era o relacionamento com sua mãe? A relação era profunda, porque ela era o adulto permanente em minha vida. E era uma relação em dois níveis, porque ela

10 - Fundada em 1895, após a reforma de Caetano de Campos, a Escola-Modelo Maria José tornou-se um Grupo Escolar (PATTO, Maria. Mutações do cativeiro. São Paulo: Hacker Editores/ EDUSP, 2000, p. 121). Os grupos escolares visaram reunir pequenas escolas que ficavam numa mesma região e irradiar um projeto de normalização da disciplina escolar (SOUZA, Rosa, Templos de civilização. São Paulo: Editora da UNESP, 1998, p. 17). Para cobrar assiduidade e respeito às normas, a direção e os professores dos grupos escolares valiam-se de repreensões e castigos. A Escola Estadual Maria José continua a existir no bairro do Bixiga. Em 2015, a Mazé, como é conhecida, foi uma das escolas públicas ocupa-das por estudantes que protestaram contra a reorganização escolar proposta pelo governo do Estado (CAMPOS, Antônia; MEDEIROS, Jonas; RIBEIRO, Márcio. Escolas de luta. São Paulo: Veneta, 2016).

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era a fonte de repressão organizada. Ela tomava para si a punição de tudo o que acontecia de errado e a sua concepção para corrigir as coisas era simplista. Fez errado, paga, tem de sofrer castigo. E eu me rebelava quando achava que o castigo não era justo e brigava com ela, nos batíamos. Ela batia em mim com tamanco e eu mordia as pernas dela. Eu atacava como podia. Mas eu sempre quis muito bem minha mãe e ela sempre me quis muito bem. Todo o dinheiro que ganhava eu levava para casa. Quando escondia dinheiro – tinha uns truques para esconder dinheiro – eu não escondia para gastar, escondia para dosar a entrada de dinheiro em casa. Havia dias em que não tinha trabalho, e eu não queria submeter a família à privação. Então, se algum dia fazia muito dinheiro, escondia dentro do sapato. E, quando o trabalho caía, o dinheiro continuava a fluir. Isso nunca ninguém me ensinou a fazer, eu fazia

como uma prudência antecipada.

Marilene Pottes – Como, na época, esse menino trabalhador via a cidade?

Eu me formei dentro da cidade, a minha escola de fato foi a cidade. E como criança, como rapaz, eu cresci através da convivência com os outros. Era uma cidade dura e uma das experiências dramáticas que tive foi na casa de um alfaiate italiano, na rua Major Diogo. Foi um trabalho que minha mãe, através de amigas, me arrumou na preocupação de me dar um ofício. O patrão tinha uma alfaiataria na rua Quintino Bocaiúva. Era um sobrado e ele tinha boa freguesia. O conde Matarazzo era freguês dele. Eu conheci o conde e sua filha lá. Tinha por volta de nove anos e pouco, dez anos. Uma criança mirrada que ele vestiu com um paletó velho dele, sem reformar nem ajustar. Eu vestia, arregaçava a manga e parecia um desses garotos dos romances do Charles

Dickens, aquelas crianças abandonadas de Londres.Eu ia a pé da Major Diogo até a Quintino Bocaiúva, esquina com a José Bonifácio, e voltava à noite. Nesse vaivém, passava por várias áreas de pessoas que tinham outra vida. Eu via o Paramount, por exemplo, ao passar por lá, via aquela beleza, aqueles metais amarelos, aquilo tudo brilhando, aqueles homens que abriam as portas dos carros das pessoas, que iam assistir aos filmes vestidos com aquelas roupas especiais, tudo aquilo me deslumbrava. Desse ângulo, a vida em São Paulo me encantava sim. Mas, era eu, de um lado, e essa vida, de outro. Isso bolia muito com minha fantasia, porque eu ficava pensando na minha vida em termos daquilo tudo que não usufruía. Essas minhas fantasias iam na direção compensatória. Preocupava-me em conseguir para mim e para minha mãe coisas desse tipo.Fiquei trabalhando com esse alfaiate durante algum tempo, até que minha mãe

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foi me visitar uma noite, porque eu ia só uma vez ou outra à casa dela. Eu morava lá na casa dele e queria sair de lá, eu dizia que passava mal, que comia mal, dormia mal e tudo ia mal, e ela não acreditava. Um dia ela foi lá para ver. Ele morava numa casa térrea e a rua tinha um desnível grande. Então, o porão era mais alto que a parte da casa térrea. Eu morava no porão. Só que ele morava numa casa e alugava a outra. E nos dois porões ele guardava grandes armários. Em cima de um desses armários ele colocou um colchãozinho e eu ficava perto do respirador. Com a iluminação da rua, as sombras das pessoas que andavam se projetavam na parede de um maneira fantástica, o mesmo acontecendo com o ruído das pisadas. Afora o barulho, tinha rato, morcego, aranha, barata e eu vivia ali apavorado, passava a noite apavorado11. Quando minha mãe viu onde eu dormia, levou um susto e

brigou com o homem: “O senhor não tem coração”, disse. Na mesma hora me tirou de lá. Por aí vocês veem o contraste. Quer dizer, eu estava em contato com a “outra vida”. Mas, aquela vida estava de um lado, e eu, de outro. De modo que foi importante para mim, em termos psicológicos e seletivos, porque se eu ficasse isolado, só, afastado daquela vida que eu podia ter, talvez, eu nunca tivesse a inquietação de me projetar e estudar. Porque ela era negadora. Eu tentei realizar a minha fantasia, superando as dificuldades. E tive sorte, porque sempre havia alguém interessado em me ajudar. Então, voltando, comecei a vender artigos dentários na base de comissão. Fiquei na Novoterápica até terminar o curso de madureza, fiz as provas na Faculdade de Filosofia e comecei o curso. Aí eu saí da firma, fui trabalhar no Boticão Universal. Primeiro, vendendo no balcão. Assim que começaram as aulas, veio o senhor Gianatazzio,

que tinha uma filha na Faculdade de Filosofia, e disse: “O senhor não pode fazer o curso lá. Minha filha também está lá e não aguenta acompanhar os cursos. Como o senhor vai fazer?”. Eu respondi que aquilo era problema meu: “Eu trabalho aqui e, se vocês consentirem, eu vou vender por comissão”. Eu trabalhava com freguesia em São Caetano, Jundiaí, São Bernardo e um pouco na Capital. Como eu tinha muitos romances, fazia amizades com as enfermeiras, dando ou emprestando os livros. Com isso, elas guardavam pedidos para mim. Depois, fiz amizade com um rapaz chamado Delfim. Nós formávamos uma dupla com talento prático. Começamos a competir com o Boticão, porque muitos produtos nós comprávamos no atacado, no mercado negro – havia mercado negro por causa da guerra –, e revendíamos. O Paladon, por exemplo, quando nós conseguíamos uma partida, levantávamos um bom

11 - Como o próprio Florestan reconhece, a exploração do trabalho infantil e as condições de vida impostas nessa alfaiataria, bem como a maneira que algumas pessoas lhe ofereciam comida quando ele era menino, como se estivessem dando ração a um animal, lembram algumas das desventuras da personagem criada por Charles Dickens para o romance Oliver Twist.

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dinheiro, vendendo tudo independentemente da firma. Até que eu tive, uma vez, um conflito com seu Evaldo, um dos donos. É que eu fiz uma venda muito grande para o laboratório Langoni e consultei o chefe da seção de materiais para ver se eles faziam a entrega, e ele disse que sim. Mas, depois, cortaram quase tudo. Aí eu me demiti.Nesse ínterim, acabei, através do Maneco, recebendo duas ofertas: uma para ser representante de uma firma que estava instalando escritório no Brasil. Era para ser representante no Paraná. Aquilo era uma oportunidade de carreira tão grande, que foi um choque para mim. O Maneco dizia que eu poderia ficar rico. Eu recusei. Depois, ele soube de um laboratório no Rio que tinha só dois produtos: Iodobismam e Trofolipan. Aqui em São Paulo, esse laboratório tinha só dois propagandistas. O Maneco me preparou para os exames. Eu fui para o Rio e tive que concorrer com

outro candidato que era farmacêutico. Na prova escrita, nós empatamos, cometemos um erro cada um. Na prova prática, que consistia em visita a médicos, eu ganhei dele. Fiquei trabalhando nesse laboratório até dois anos depois de formado, já como assistente da faculdade. Como propagandista ganhava mil quatrocentos e pouco, como assistente ganhava mil e cem. Graças a esse trabalho, pude fazer o curso da Faculdade de Filosofia, como se eu realmente tivesse recursos. Era um curso difícil. Basta que vocês vejam: um menino que saía do curso de madureza, sem saber francês, ouvindo professores que davam aula em francês. Os franceses não faziam concessões, eles não tinham ideia de que estavam no Brasil. As concessões vieram muito mais tarde, com o Antonio Candido e comigo. Mas essa é outra história.

Narciso Rodrigues – Neste momento, evidentemente, a atividade política já

estava inserida, não?

Como tinha que trabalhar e estudar, me sobrava pouco tempo para a atividade política. Minha vida deixava pouco tempo para a atividade política, deixava muito tempo para a frustração. Eu era típico daquilo que se chama marginalização da pessoa em relação à consciência política e à participação. Isso não significava que não acompanhasse o que acontecia em São Paulo. Mas, de qualquer forma, ficava muito pouco tempo para a atividade política. Eu tinha que aproveitar o tempo disponível para estudar. A minha concepção de estudo era, como naquela época comumente se chamava, do “cu de ferro”. Eu me obrigava muito, inclusive no trabalho. Por outro lado, 30 poderia dar margem para alguma coisa, mas em seguida toda a fase de agitação desse período é encerrada, tudo isso cai. É o Estado Novo. Talvez fosse esse o momento no qual eu poderia

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sentir maior atração pela atividade política, mas era o momento no qual o espaço político se fechou e a repressão era muito violenta. Por curioso que pareça, não foi como estudante que eu entrei na atividade política. Como estudante, eu repudiei a vida gremial, por causa, justamente, daquele tipo de líder que se acomodava com o Estado, para ter vantagens. Em 42, 43, através de um colega meu, Jussieu da Cunha Batista (ver nota 12), entrei em contato com o grupo Folha e comecei a escrever artigos para o jornal. Foi por aí que acabei entrando em contato com o movimento político subterrâneo, que era o movimento contra Getúlio. Esse movimento era ativo e tinha espaço grande para crescer, porque havia vários setores da burguesia – ao contrário do que acontece hoje – firmemente empenhados em combater a ditadura. Hoje, há uma união da burguesia no sentido de impedir uma queda rápida do regime. Naquele

momento, havia setores da burguesia empenhados na defesa da ditadura, mas havia outros fortemente envolvidos na luta direta contra a ditadura. E, do outro lado, havia o movimento do PC, que tinha um setor subterrâneo muito amplo. O PC estava muito empenhado em soltar Prestes. Casando esta oposição burguesa com os canais de ação clandestina que o PC abria, qualquer jovem tinha muita possibilidade de se engajar na luta política subterrânea. Eu fui conhecer mais de perto algumas pessoas, inclusive Cruz Costa, que conheci primeiro na vida subterrânea, e outros que depois ficaram meus amigos. Quando se colocou a questão de aderir formalmente a um grupo eu me liguei aos trotskistas da IV Internacional. Ocasionalmente, eu tinha conhecido Sacchetta12 e outros companheiros e era uma área na qual o debate intelectual tinha maior complexidade. O PC não oferecia muita sedução para o jovem

radical naquele momento, por causa do problema dos níveis de aliança com a burguesia, que foi sempre grave. Porém, depois que o Estado Novo caiu, o PC se aliou aos grupos que apoiavam o Getúlio. Tudo aquilo criou muito fermento e inibiu os jovens que poderiam ir para o PC em outras condições. Fiquei naquele grupo de extrema esquerda durante algum tempo. Nós criamos um setor de atividade legal chamada Coligação Democrática Radical. Afastei-me do grupo trotskista somente no final da década de 40. De outro lado, o intelectual não era utilizado. Eu tinha o mesmo padrão de atuação que qualquer indivíduo poderia ter. Na USP, no entanto, eu me deparava com um trabalho intelectual mais elaborado. Eles foram muito honestos comigo, aceitaram a minha posição e não sofri nenhuma represália, continuo amigo deles até hoje. Rocha Barros já faleceu (ver nota 14), mas ele foi meu companheiro

12 - Em outro texto sobre o tema, Florestan comenta que Jussieu da Cunha, seu amigo desde os tempos do colégio Riachue-lo, foi quem lhe apresentou o jornalista Hermínio Sacchetta, que logo se tornaria seu companheiro de militância e amigo pessoal (SACCHETTA, Hermínio. O caldeirão das bruxas e outros escritos. CAMPINAS: Pontes/EdUNICAMP, 1992, p. 75). Anos depois, seus filhos, Florestan Fernandes Júnior e Vladimir Sacchetta também começariam uma grande amizade.

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nesse processo. Nunca deixei de ter contato com outros grupos, como, por exemplo, os anarquistas: eles sempre gostaram muito de mim. Também tinha contato com o PS, principalmente, antigos militantes, que não pertenciam à minha geração. Em suma, eu tinha boa circulação entre o pessoal da esquerda, com exceção do pessoal do PC, por algum tempo. Durante o período de luta direta contra o Estado Novo, não enfrentei problemas com o PC, em seguida, fui colocado na geladeira, enquanto durou e foi conhecida minha tendência trotskista.

Ester Vaisman – O senhor poderia caracterizar melhor os conflitos com o PC?

O que aconteceu foi o seguinte: assim que o PC decidiu que o contato conosco não interessava mais, nós passamos a ser vistos como trânsfugas, pessoas reprováveis em termos políticos. Havia uma certa intransigência

porque o PC, naquele momento, adotou uma orientação comtista13. E nós queríamos, naturalmente, uma atuação mais congruente com os princípios da luta de classes, da preservação de uma luta revolucionária, os dois níveis da ação política simultânea. Havia, assim, muita divergência. Agora, como eu estava no mundo acadêmico, não me impunha os conflitos que eram dos outros, que vinham da época da cisão. Para mim foi um choque o ostracismo a que os companheiros marxistas nos condenaram, pois pessoas com as quais eu covivia de maneira muito fraterna, de uma hora para outra passaram a nem me cumprimentar. Eis aí um problema que não sei explicar. O que você me pede é uma explicação de psicologia política: por que eles fizeram isso, por que num período nos absorveram e fomos companheiros em atividades arriscadas e noutro período nos renegaram?

Renegaram-nos porque aquele pequeno grupo realmente era um grupo de renegados, e já foi uma virtude deles nos aceitarem no período de tempo anterior. Eu tenho a impressão de que talvez esperassem que, no processo, nós nos transformássemos. Nós não nos transformamos, mantivemos posições que eram intransigentes. Por isso, viram-se na necessidade de nos isolar, porque não tinham como nos absorver e o aprofundamento público dos conflitos provocariam consequências mais ou menos previsíveis. Só para dar um exemplo, e sem dar nomes, trata-se de pessoa conhecida, bom militante do PC, homem de educação política realmente considerável. Ele dirigiu o setor universitário, isso por volta de 46 ou 47. Eu tinha também um colega do PC, que sempre teve muita relação de amizade comigo. Um dia, a gente estava na Leiteria Campo Belo tomando

13 - Algumas lideranças importantes do PC foram influenciadas pelas ideias positivistas de Augusto Comte, essas ideias marcaram a orientação do partido até os anos 50 (BRANDÃO, Gildo. “Sobre a fisionomia intelectual do partido comunista (1945-1964)”, Lua Nova. São Paulo, n. 15, jul./set. 1988).

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um chá e começamos a conversar sobre o Manifesto Comunista e outras coisas. E ele não sabia nada, nunca lera coisa alguma. Um sujeito de quadro intermediário. Os estudantes que eu conhecia, que eram bons ativistas, não sabiam nada de marxismo14. Eu achei aquilo horrível e fui procurar a pessoa em questão. Disse-lhe: “Não pode ser assim. Como nós podemos chegar a uma revolução com essa gente? Não que eles não se tornem revolucionários, mas não pode sair revolução daí”. Aí ele discutiu comigo e falou: “Você vai ver, nós vamos fazer revolução com essa gente, você vai ver”. Eu respondi: “Você está enganado. Lênin disse que sem teoria revolucionária não há revolução e, portanto, nós nunca teremos revolucionários sem gente que acredite e defenda a teoria revolucionária”. Enfim, aquilo foi uma experiência bastante dolorosa para mim, porque um dos rapazes que era sacrificado

nisso era um aluno de muito talento, que inclusive teria perspectiva de carreira na universidade. Ele se lançou de corpo e alma no movimento comunista para ser aproveitado assim, de maneira distorcida.

Paulo Barsotti – Gostaria que o senhor caracterizasse a década de 50.

Na década de 50, fiquei muito mais engolfado no trabalho intelectual dentro da USP. Quando me afastei do grupo trotskista, perdi posição no espectro político. Eu entraria no PC, pois este sempre foi meu ideal. E só não entrei porque esbarrei nas posições táticas do partido. Todas as vezes que eu tentei entrar, o PC seguia uma orientação que tornaria a minha presença dentro do partido negativa. Não adiantava nada eu querer ser militante de um partido comunista e depois estar em choque com ele. E essa ideia de que a gente entre e lute a partir de dentro não leva a nada. Eu sabia muito bem que a pessoa

depois não teria espaço para crescer, para ser útil. Então, eu preferia ficar de fora, mas sempre com esta frustração de querer estar lá dentro e não poder.Como eu não podia entrar para o movimento ao qual eu pretendia pertencer, compensava a frustração trabalhando duro no plano intelectual. Isso foi tema de várias discussões com o Antonio Candido. Duas vezes eu tive conversas sérias com ele. A primeira foi quando resolvi entrar para o grupo trotskista. Ele achava que, intelectualmente, não era bom para mim, mas como eu tinha vocação política muito forte e estava numa posição coerente com o socialismo revolucionário, ele pensava que era correto. Depois, quando decidi me afastar, tivemos uma discussão profunda. E ele achou que realmente era válido que eu me separasse do grupo e optasse pelo trabalho acadêmico. Dedicando-me à carreira intelectual, eu estaria fazendo algo mais produtivo e importante.

14 - Em 1946, ainda militando no grupo trotskista, Florestan traduziu e fez uma introdução para o livro Contribuição à crítica da economia política, de Marx. Florestan fez a tradução a partir da edição inglesa da obra, que lhe foi emprestada pelo advogado e militante Alberto Rocha Barros (Florestan Fernandes, por Paulo de Tarso Venceslau. In: Rememória – entrevistas sobre o Brasil do século XX. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1997, p. 230). A tradução e a intro-dução de Florestan foram reeditadas, em 2008, pela Editora Expressão Popular.

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Um intelectual divergente, que na sociologia fizesse o que estava fazendo, exerceria uma atividade fermentativa de natureza política, ainda que não fosse específica. A Faculdade de Filosofia me ofereceu um caminho totalmente novo, porque ela era uma construção incongruente com o nosso antigo ensino superior. Realmente, ela traduziu, pela primeira vez no Brasil, o que deveria ser o ensino universitário no século 20. Eu tive essa oportunidade que permitiu que o potencial humano que eu dispunha fosse explorado. Nesse sentido, a Faculdade de Filosofia abriu para mim e para outros a nossa grande oportunidade. Se não surgisse a Faculdade de Filosofia, nós seríamos tragados na vala comum do conformismo do intelectual típico do Brasil. O intelectual podia produzir um conhecimento que não estava na natureza da escola superior brasileira. Na verdade, rompia com ele. Por isso, as escolas daqui resistiram

violentamente contra a Faculdade de Filosofia. É um processo político no qual o intelectual acaba tendo papéis que não são superficiais, são papéis vinculados à própria produção do saber.

Paulo Barsotti – O senhor diria que os partidos políticos não ofereciam espaço para a realização de um trabalho intelectual divergente?

O PC poderia oferecer, se realmente aproveitasse o intelectual em atividades políticas específicas, se tivesse rompido com sua linha de conciliação de classe. As oportunidades se abriam em campo fechado. Você pega o Mário Schemberg, o Caio Prado Júnior, através do PC eles encontraram um caminho de participação. Mas acontece que eu queria mais outro tipo de coisa. Eu queria ligar o trabalho de investigação na sociologia ao processo de construção de um pensamento socialista no Brasil, e

isso exigia uma atividade política revolucionária que não havia. Então, o que restou para mim foi o trabalho dentro da universidade, a partir das tensões que poderiam nos levar a um processo de renovação cultural profundo.

José Chasin – Quer dizer, a construção de um conhecimento sobre a realidade, a tomada de posição lúcida diante do processo brasileiro, se constitui no objeto efetivo desta atividade política através da ciência?

Vocês precisam ver que o trabalho era muito limitado aqui. O meu primeiro trabalho de envergadura foi sobre os sírio-libaneses. E, no final, não pude adaptar esse trabalho às minhas obrigações de rotina. Então, tive que pensar sobre o que poderia fazer que estivesse dentro das tradições brasileiras, algo que pudesse ser absorvido, assim conseguiria prestígio e depois poderia dar uma banana às pressões

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retrógradas. Por isso, escolhi ponderada e refletidamente o estudo dos tupis.

Ester Vaisman – Numa entrevista que o senhor deu em 1978, que foi transformada no livro A condição do sociólogo, num determinado momento onde está se discutindo exatamente esta questão, o senhor coloca com inconciliável a atividade acadêmica com a militância política.

Não, eu não digo inconciliável. A universidade ainda não se abriu para essa simultaneidade de papéis. A universidade não se abriu para saturar funções numa área em que a atividade política se coloque dentro dela, em termos de negação da ordem. Você como intelectual pode avançar muito, mas enquanto permanecer numa atividade intelectual de caráter abstrato. É como nos Estados Unidos, onde você pode ir muito longe,

desde que não desafie politicamente a ordem estabelecida. Se desafiar, acabou, você não tem condições de sobrevivência.

Paulo Resende – Duas compulsões marcam a sua presença na experiência paulista: fazer ciência a partir da língua brasileira e participar do movimento socialista. Mas, por que o desencanto? Você diz em seu livro A natureza sociológica da sociologia que não há encanto novo para a sociologia no contexto brasileiro atual. Mas, e a contestação que brota no bojo do desgaste e das contradições do regime ditatorial, revitalizando a questão da democracia no Brasil?

A natureza sociológica da sociologia nasceu de um curso que dei na PUC, que é o primeiro curso de nível alto, aliás, o único que dei com aquele nível, praticamente aproveitando toda a minha experiência anterior e enfrentando o dilema de ensinar. Porque, na verdade, é

preciso ver que eu rompi minhas ligações com a universidade. Por que larguei o lugar em Toronto? Se eu tivesse uma identidade profissional forte e uma vontade de continuar a carreira universitária, eu teria ficado lá. É que realmente sofri um processo de desabamento na minha relação com o mundo intelectual. E a Universidade ficou no fundo disto. Então, quando eu volto, tenho a necessidade de me explicar ao estudante, eu tenho que absorver essa frustração. E aquele curso foi extremamente tenso, eu quase interrompi o curso ao descobrir que estava levando para os estudantes a minha tensão psicológica. Houve até uma moça que teve um chilique em plena aula. Foi um curso dado em condições extremamente dramáticas, eu não podia dar o curso que dei. Na verdade, nos fins de 72, quando vim para cá, pensei: “Eu fui para Toronto e fiquei lá pensando que podia lutar

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ali contra a ditadura”. Depois, descobri que lá não se luta contra a ditadura. Os que nos ouviam eram pessoas que eu não precisaria convencer; além de constituírem um público fechado, minoritário. O esforço maior lá ia na direção de fortalecer a ditadura. Por isso é que pensei: “Eu volto para o Brasil e lá eu vou poder lutar”. Vim para cá e não pude lutar coisa alguma, porque realmente, de 73 em diante, vivi dentro de um isolamento tremendo. Até 1975, eu tinha o que fazer dentro da produção anterior. Podia viver assim, o isolamento de maneira equilibrada. Mas, depois, não. Depois eu resvalei. E a radicalização pela qual eu passei engendrou o desequilíbrio, que tive de enfrentar como pessoa. Não vá pensar que um intelectual, um sociólogo, está livre das contingências que afetam todos os seres humanos. E na medida em que eu estava isolado, eu vi amigos e companheiros que sequer se lembravam de mim, eu fiquei

prisioneiro da família. É uma bela prisão, mas, entra ano e sai ano, ficava só com essa convivência e com um desdobramento que não vem ao caso discutir. Através desse desdobramento, eu tinha um diálogo intelectual útil e permanente. E era isso aí. Dei alguns cursos no Sedes e um cursinho sobre a teoria do autoritarismo, uma coisa intermediária15. De repente, me vejo diante de um curso e da necessidade de engolir a condição de professor, que eu não queria engolir de novo. Realmente, o que eu queria era exatamente voltar a uma atividade militante e só militante. Daí essa tensão, essa frustração. De novo, eu vejo que no Brasil não dá mais que isso. Tente fazer mais do que isso. Onde? Você fica preso a um grupúsculo e neste grupúsculo fica na condição em que eu fiquei na década de 40, você fica patinando. O movimento socialista aqui ainda não engrenou a ponto de se diferenciar, de

criar um espaço para o ser humano poder sobreviver e lutar dentro dele. Não conseguimos isso. A ruptura com a ordem é tão superficial que as pessoas só sobrevivem se realmente se “radicalizarem”. Se as pessoas não perceberem que o status de classe média é instrumental para sobreviver, elas se destroem. Então, o que aparece ali como tensão é uma tensão psicológica. Eu tive de aceitar o fato de não ser nada mais do que um intelectual divergente. Tive que engolir este fato, e estou engolindo. Durante todo curso, ao dar as aulas, engoli essa terrível frustração, daí a tensão. Agora, é claro que o desgaste da ditadura abre perspectivas. Mas perspectivas que dependem de que o movimento socialista se solte. Se ele não se soltar, nós voltamos a todas aquelas situações que nós já vivemos longamente. Tenho a impressão de que, nesse ponto, os militantes que ficam absorvidos pelo conformismo intrínseco

15 - No final dos anos 70, Florestan teve o apoio corajoso de Madre Cristina e de Dom Paulo Evaristo Ars para retomar suas atividades docentes no Sedes e na PUC. Num depoimento sobre Madre Cristina, a psicanalista Maria Laurinda relata uma das aulas de Florestan naquele período: “O Brasil estava submetido ao regime militar – ditatorial – e o Sedes, como todos sabem, sempre foi um lugar de resistência e de acolhida aos que precisavam de proteção. Certa vez, Madre Cristina convidou Florestan Fernandes para falar para nossa turma. Ele estava banido do país por conta de suas ideias. A madre sugeriu que formássemos uma corrente com as mãos dadas até a porta da Marques de Paranaguá e através de sinais – pres-sionando as mãos, como num telefone sem fio,  avisássemos se a polícia se aproximasse. Nem sabemos o que de fato falou Florestan Fernandes; a tensão da situação foi mais intensa”. (https://sedes.org.br/site/homenagem-para-madre-cristina-100-anos-de-um-legado/).

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ao movimento da esquerda aqui, são protegidos por esse tipo de ruptura superficial com a ordem. Eles podem ser úteis ao processo de luta política e, ao mesmo tempo, não precisam viver o drama que nós acabamos vivendo de maneira intensa.

José Chasin – Neste sentido, eu lembro uma ponderação de Lukács, que diz “muito antes de me transformar em marxista, eu já abominava qualquer dimensão da existência burguesa”.

Pois é. O fato é que estamos atolados, nós temos automóvel, televisão, um certo conforto. Viver como nós vivemos no Brasil é um acinte. Como ser socialista e tolerar a condição de privilegiado?

José Chasin – Professor, deixa eu fazer uma provocação neste sentido, pois este é um aspecto que, quando mal entendido, pode levar até a uma espécie de ideologia da pobreza. O maoísmo

ocidental, com todas as suas corruptelas, me parece, tem toda uma dimensão dessa ordem. Não será hipostasiar, não será levar demasiadamente, de forma muito profunda, para o plano ético, este dilema?

Acho que você tem razão. O que é chocante, aqui, não é a obrigação ética e abstrata que eu teria com meus ideais, não é nesse nível que penso. Eu estou colocando o problema ao nível prático da congruência da opção. Se você é um socialista e, ao mesmo tempo, tem uma dimensão política no seu pensamento e na sua ação, você precisa sair, naturalmente, do conformismo adaptativo. Porque o que caracteriza o nosso socialismo é que ele não rompe com a ordem. Ele convive com a ordem de tal maneira que é, do próprio setor radical dos intelectuais, que sai toda a liderança que vai permear tanto a esquerda do liberalismo,

quanto as várias posições que encontramos no cenário político, em termos de PTB, PS e outros similares. A pessoa aceita esta adaptação, esta convivência do indivíduo que se considera socialista, mas ao mesmo tempo aceita e deseja tudo o que a sociedade capitalista oferece. E não leva a ruptura até o fim. Você acha que seria possível conciliar a revolução bolchevique com isso?A primeira coisa é que você tem que romper com o status, você tem que romper com esse modo de ser. Agora, não se pode romper enquanto indivíduo, pois isso não adiantaria nada, seria um romantismo destrutivo. Para que haja a ruptura em termos profundos e criadores é preciso que o movimento socialista avance dentro da sociedade. Tem de haver um movimento orgânico, que suporte e que dê sentido histórico e dimensão política à ruptura da ordem. Daí o fato de eu não ter

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conseguido viver este dilema, e acabei sendo vitimado por esse fato. Eu me sinto incomodado com o fato de pretender fazer uma coisa e nunca poder fazer. E isso a vida inteira. Quando você vive essa tensão por pouco tempo, você pode jogar a esperança para o futuro. Mas, a partir de um certo momento na vida de uma pessoa, você não pode jogar mais nada para o futuro: biologicamente, você está chegando ao fim. Você vê que a sociedade reproduz a mesma situação e o movimento socialista cresce, porque ele acaba se enleando. No fim da década de 60, surgiram perspectivas que a contrarrevolução não logrou eliminar. Estas perspectivas ressurgem hoje, mas, ao mesmo tempo, com limitações tremendas. Veja bem, o salto se deu no fim da década de 60, em termos de consciência revolucionária, em termos de congruência entre pensamentos, ação e política revolucionária.

Surgiram tentativas para se criar movimentos que respondessem às exigências específicas da situação histórica. A década de 60 foi muito rica. A ditadura, em vez de fomentar o desaparecimento precoce dessas tendências, alimentou a sua germinação. Porque ela por seu cunho repressivo obrigou as pessoas a saírem de seus limites normais. Ficamos com uma herança rica, a mais rica que já houve na sociedade brasileira em termos de discurso político. Hoje, nós podemos partir de várias tendências que viveram nestes limites do fim da década de 60 e sobreviveram àquela pressão muito violenta e destrutiva. Agora, a questão é que no intervalo, ao contrário do que sucedeu em outros países, os vários grupos não tentaram passar para a clandestinidade, não tentaram criar um espaço político próprio, apesar da repressão

e opressão e contra a repressão e opressão.

Heleieth Safiotti – Professor, o senhor disse que os partidos políticos não oferecem espaço ao intelectual. Poder-se-ia colocar a questão de maneira inversa: por que o intelectual não cria este espaço?

O intelectual sozinho não pode fazer nada. Essa história de que o intelectual cria o seu meio, o seu movimento, é ilusório. Numa sociedade de classes, e a classe trabalhadora não amadurece politicamente se não se desenvolve como classe independente, o intelectual que se identifica com ela não pode ser instrumental para nada. A menos que ele queira ser instrumental para as suas inquietações, para o seu nível de vida, para um trabalho pessoal criador. Mas, se você vai, além disso, você se esborracha. O que aconteceu comigo foi que eu me esborrachei e daí o fato de que, até hoje, não me conformo com o nosso

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padrão de radicalismo e de socialismo.

José Chasin – Eu gostaria de repor a questão de seu isolamento que há pouco o senhor marcava como um instante extremamente agudo. Eu me lembro de cartas suas recebidas por mim no exterior, extremamente comoventes sob certos aspectos, principalmente, aquele relacionado com a decepção com os amigos, com a academia.

É muito difícil examinar isso de uma maneira mais ampla. Uma coisa é você dizer quais são as suas frustrações e outra coisa é você ir ao fundo desta questão. Eu acho que este é o momento em que nós temos que fazer um terrível esforço de união entre os vários intelectuais divergentes e entre todos os divergentes que não são intelectuais. Eu me lembro do que escrevi a você. Por causa de casos como o seu, Chasin, acabei descobrindo qual

é a impotência de um intelectual que acabou sendo isolado. Quando eu saio em busca de uma oportunidade de trabalho para alguém de valor, eu esbarro com isso. Até hoje eu só consegui lugar para uma pessoa, e isso foi num momento em que alguns elementos que vinham do passado tinham um campo de decisão próprio, apesar de não haver nenhuma abertura. Depois me vi reduzido ao valor zero. Bom, mas uma pessoa de valor não pode ser perdida, não pode ser lançada a um destino ingrato. Você sai a campo e encontra todo um mundo de razões e, às vezes, ditas assim: “Se ele entrar por uma porta, eu saio pela outra”. Isso não pode caber na cabeça de um intelectual. A vida dentro da universidade tem que ser aberta para o talento. Na cadeira de sociologia, aproveitei pessoas que não tinham nenhuma vocação política. Não que eu desse prioridade à vocação política. Quando eu podia conciliar as duas coisas, eu

dava prioridade. Agora, quando eu via que não tinha remédio, e que entre os talentos acessíveis havia uma vocação intelectual de primeira, aceitava-a. Mais tarde, se tivesse um fracasso concreto, a regra era a mesma para todos: a eliminação. Hoje, não vemos que a divergência do intelectual com a sociedade é uma divergência tão superficial que o intelectual se acomodou às pressões conservadoras, se acomodou a um nível inconcebível anteriormente. No entanto, faz-se o rateio dos talentos, às avessas.

Ester Vaisman – Nesse sentido, o senhor acredita que por volta de 60 a comunidade universitária passou a sofrer a influência da sociedade?

Na verdade, o que aconteceu na década de 60, quando você toma a USP e, especialmente, a Faculdade de Filosofia como exemplos, é que a repressão e a internalização da repressão, em dado

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momento, se tornaram graves. Várias vezes eu ouvi de pessoas coisas assim: “A partir de certa hora, ao ouvir o que o senhor dizia, comecei a ficar com medo de estar aqui”. Por que é que as pessoas estavam com medo? Não era do que eu estava dizendo. A ditadura criou o medo, o pânico dentro da cabeça dos intelectuais, dos professores, dos estudantes. E não é que o intelectual não deva ter medo. É humano que ele tenha medo. O medo é autoprotetivo e, inclusive, amadurecedor. Agora, ceder ao medo é que é errado. A luta com a ditadura exige que estejamos em permanente tensão com o nosso medo.

Heleieth Safiotti – O senhor não acha que, em relação a este problema, há uma certa dimensão de integridade e de caráter que nem todo intelectual possui?

Eu não faço críticas ao caráter dessas pessoas. Elas deviam fazer uma revisão

das suas autoavaliações, isto é, elas assumiram, num dado momento, posições de vanguarda para as quais elas não estavam preparadas. Por quê? Porque não havia um movimento socialista forte, maduro. Se esse movimento existisse, essas pessoas teriam a oportunidade de aprender que elas não queriam aquilo.

Paulo Barsotti – Nesse contexto, qual o significado do ressurgimento do movimento operário a partir de 78?

Por aí vamos ter aquilo com o qual eu não pude contar no passado: o fato de eu ter que enfrentar uma carreira estruturalmente dividida. Num plano, eu fiz um tipo de trabalho bastante avançado, no outro, fui obrigado a engolir a saliva do ódio. Essa cisão vai diminuir no futuro. E não vai diminuir porque o intelectual terá mais talento, vai diminuir porque a sociedade abre outras oportunidades ao inconformismo político.

José Chasin – Lembrando aqui o problema da subsistência face ao trabalho intelectual e político, eu queria complicar um pouco a questão, que está no bojo disso tudo, que por economia de linguagem chamamos de stalinismo. Não é possível tematizar esta questão sem levar em consideração os últimos sessenta anos de implantação do socialismo, isto é, da Revolução Russa para cá. Nesse período, nós tivemos a emergência histórica fundamental desta própria revolução, com todos os seus significados positivos, que é sempre necessário proclamar. Mas também não podemos mais esconder as deformações, distorções, desvios, ou sei lá o nome que se queira dar a estes fenômenos que induzem, determinam fortemente, a nível internacional, certos comportamentos e determinadas concepções. Há pouco, falava-se no centralismo democrático. Gostaria de lembrar

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aqui que esta expressão não é de Lênin, e que ele pouco trabalhou com isto. A concepção leniniana de partido é, antes de tudo, uma concepção que toma o organismo político como um forja da razão, como uma organização da razão para ativar a ação política propriamente dita. Ora, a deformação tantas vezes apontada no stalinismo seria, exatamente, a negação desta razão. Assim, a estrutura que se nota nos partidos comunistas é precisamente esta incapacidade de preservação da razão, onde haveria uma inadequação do intelectual no partido. Eu estou plenamente de acordo com a subordinação individual do intelectual à estrutura política, mas, na medida em que esta estrutura seja a tal forja da razão. Eu lembraria aquela distinção de Lênin entre OC e CC, um duplo comando. O OC como órgão central que se dedica fundamentalmente à conclusão teórica do partido e o CC (comitê central), o comando

prático. Dizia ele, no 2º Congresso e na “Carta a um camarada” que essa distinção se põe não por razões circunstanciais, não porque nas circunstâncias russas fosse necessário um duplo comando. O critério se põe em razão das funções fundamentalmente distintas que cada militante deve cumprir. Assim, a racionalidade e, claro, a racionalidade dialética, deixemos frisado isso, não é uma racionalidade qualquer, é a máxima razão possível.

Na verdade, nós estamos vivendo uma situação de duas faces: o movimento socialista avançou a tal ponto que nossa tendência é querer pensar a posição revolucionária em termos das contradições do socialismo, ou seja, o que está impedindo uma aceleração da revolução socialista, porque o comunismo ainda está longe. Marx, hoje, não estudaria a sociedade capitalista, iria estudar a sociedade socialista e

dizer como é que essas contradições vão operar para criar um mundo de igualdade social. Agora, acontece que estamos na periferia da periferia. Estamos tão atrasados que foi possível uma revolução em Cuba e não aqui. Absorvemos da nossa burguesia retrógada a ideia de que estamos muito na frente. Estamos muito na frente por quê? Porque somos muito coloniais, quer dizer, se sai um livro em Paris, em 15 dias este livro está sendo lido aqui. Nós vivemos abstratamente os movimentos do pensamento socialista. É uma manifestação de consciência colonizada, que se dá, inclusive, na esquerda. Quanto à questão da organização, penso que, na verdade, um partido responde a uma dada situação histórica. Isso não se pode negar. Isso aconteceu na União Soviética, aconteceu na China e vai acontecer em toda parte. O partido revolucionário não cria seu próprio destino, ele tem que

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trabalhar dentro de uma sociedade nacional e dentro do mundo. A melhor maneira que temos para avaliar o que aconteceu na União Soviética é partir, de um lado, de Stálin, e, de outro, de Trotsky. Nenhum dos dois queria o caminho que foi percorrido pela União Soviética. E, no fim, esse caminho foi vivido não porque era inelutável que isso acontecesse assim. É porque realmente a famosa revolução socialista, em escala mundial, não ocorreu. A União Soviética ficou sem base externa de sustentação revolucionária. E teve em seu lugar um processo de cerco do capitalismo, que é intransigente e que se aprofunda de uma maneira contínua. Assim, a fórmula “o socialismo em um só país” não é uma invenção de Stálin, mas acaba sendo um produto da evolução histórica. A avaliação do que acontece na União Soviética, atualmente, eu prefiro fazer em termos do futuro e não em termos do passado. Procuro verificar o que é que representa tudo

o que foi conquistado na União Soviética, em termos da transição para a etapa comunista.

Paulo Resende – Em relação à União Soviética, os desiludidos se avolumam. Mais do que limites do período de transição e contradições sob o socialismo de acumulação, não estaríamos diante de outra realidade não desejada, atestando um novo tipo de denominação com base num modo de produção estatal, excelente, apenas, enquanto técnica de desenvolvimento?

O que vemos é que o capitalismo, ainda que esteja numa fase de crise profunda, se encontra, no mesmo momento em que ocorre a revolução bolchevique, no limiar de uma terceira revolução industrial. Esse fato favoreceu, sem dúvida nenhuma, as nações socialistas, mas favoreceu, de maneira muito mais vantajosa, em termos estratégicos,

os países capitalistas. Estes ganharam uma fronteira histórica que estão explorando e que está longe do fim. O próprio imperialismo mudou de caráter, do início do século para cá. Com a internalização das estruturas de produção, do mercado, das finanças, o próprio capitalismo mudou a sua capacidade de dominação imperialista.Em face disso tudo, a relação do socialismo com o período de transição apresenta uma complexidade que só foi vista em parte, quando se fala em socialismo de acumulação, dos elos mais frágeis. Tudo isto responde a uma problemática que se colocou no início do século, quando a questão da transição se colocou concretamente na Rússia. Coube a ela mostrar o que é período de transição. A União Soviética vive o drama de ter energias produtivas muito avançadas para condições históricas que não deram a essas energias produtivas uma base social satisfatória.

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Houve um desequilíbrio muito grande. E o que fez com que o socialismo em um só país se tornasse uma fórmula estreita foi, exatamente, esse drama que levou a União Soviética a ter que se defender, procurando não aprofundar os conflitos com as nações capitalistas, uma acomodação que acaba sendo indispensável. Então, nessa perspectiva, o período de transição foi vivido por um país que tinha um desenvolvimento capitalista desigual e que deu um salto bastante acelerado. Foi um atraso que teve de ser vencido. Hoje, o mundo socialista tem que ser pensado em termos de futuro. O socialismo só tem futuro quando pode ser pensado em termos de sua autodestruição, rumo ao comunismo. Na medida em que a revolução social foi tão funda, na União Soviética, criou condições novas – quer exista, quer não exista uma burocracia poderosa, quer o partido retarde ou não retarde de maneira brutal a dissolução

do Estado, aconteça o que acontecer – e houve um salto qualitativo. As pressões de baixo para cima vão crescer de uma maneira cada vez mais vigorosa na direção de exigir que o socialismo passe da organização das forças produtivas para a esfera da distribuição, da circulação, e daí para a dissolução dos elementos que impedem que a democracia opere como uma democracia da classe operária, como uma democracia da maioria. Estamos no limiar de um novo salto qualitativo.

José Chasin – Nós vamos solicitar que o senhor caracterize a sua experiência, a sua vivência, o seu modo de ter visto uma série de problemas de 60 para cá. A primeira: a velha campanha da escola pública.

Eu entrei nessa campanha com uma resistência muito grande, porque ela tinha uma característica bifronte. Em termos da situação

presente, era uma coisa avançada. Já em termos de um pensamento revolucionário, era uma coisa retrógrada. A tal ponto que, quando eu me impunha o dever de discutir, dizia: “Estou defendendo isso, mas isso seria uma coisa avançada na Europa do século XIX”. Na verdade, não era o Estado republicano que absorvera certas funções construtivas na área da educação, eram os setores das classes possuidoras que tinham o poder de usar o Estado e levaram-no a preencher certas tarefas que, na verdade, não eram de interesse da nação, no seu conjunto. Estas classes usavam, pois, facilidades da escola pública. Naquele momento, eu defendia essa evolução e os seus frutos, porque continham um avanço, de qualquer modo. O que importa nisso tudo é que o Estado avançou e hoje suporta defender suas realizações quando as classes possuidoras pretendem destruí-las, porque para elas não são mais funcionais

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ao seu particularismo. Elas querem impedir que as classes subalternas possam utilizar essa válvula em benefício próprio.

Narciso Rodrigues – Querem executar, hoje, o arrocho educacional.

Exatamente.

José Chasin – Professor, a campanha da escola pública foi um erro?

Não, não foi. Ela foi construtiva. Eu acho um erro querer refazer a campanha hoje, porque naquele momento havia toda uma consciência civilista, no sentido que a palavra civilista tomou no início do século aqui, principalmente, através da campanha Rui Barbosa e do que sobrou do Movimento Abolicionista. Havia dentro de um setor mais liberal ou radical da burguesia, possibilidade de dinamizar uma relação com os problemas do país que era muito construtiva. Hoje não, pois estamos num período de recesso

da contrarrevolução, e seria um engano pegar elementos que foram ativos num momento em que a burguesia estava em ascensão, tentando o controle do Estado, criando novas formas de utilização do poder, no período em que ela está na autodefesa mais reacionária, sob a presunção de que as coisas vão ter o mesmo significado. Naquele momento era útil, porque havia uma ressonância, havia resposta. Basta dizer que Júlio de Mesquita Filho chorou em público quando eu falei na Biblioteca Municipal. Ele deu um apoio material e intelectual entusiasta àquela campanha16. Agora, depois de 64, acho que a coisa mudou de figura. Um Estado ditatorial pode superar muitas das tensões centralizando o poder de decisão. Não há mais ambiente para repetir aquela experiência. Eu vejo que há grupos tentando restabelecer a campanha, tentando animar um debate da mesma natureza. Tudo isso soa falso, porque

agora o problema é muito mais de mobilizar a classe trabalhadora para o fim de desenvolvê-la e de retrucar, através dela, os verdadeiros caminhos da revolução democrática.

José Chasin – Uma última pergunta sobre esta questão: parece-me que um dos méritos da campanha foi tornar a questão da educação uma questão, um problema público. O povo participou da campanha?

Isso sem dúvida nenhuma! E aí é preciso dar aos educadores, que não são socialistas, um lugar tão importante quanto o dos outros, porque a tendência da esquerda é dar uma certa saliência aos seus heróis. Na verdade, aquele movimento foi um movimento pluralista, com várias forças agregadas. Educadores como Roque (Spencer), Laerte (Ramos), (João) Vilalobos, o Anísio Teixeira, o Fernando de Azevedo, o próprio Darcy (Ribeiro), tiveram importância em fases diferentes da campanha.

16 - A Campanha de Defesa da Escola Pública surgiu como uma forma de reação de inúmeros intelectuais contra o substi-tutivo de caráter privatista elaborado pelo então deputado Carlos Lacerda para o projeto de lei sobre Diretrizes de Bases da Educação Nacional (FERNANDES, F. Educação e sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus/ EDUSP, 1966, p. 347). Além de fazer palestras e de participar de inúmeros debates por todo o país, Florestan publicou vários textos na grande imprensa defendendo a campanha, esses textos foram republicados na coletânea Educação e sociedade no Brasil.

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Houve momentos nos quais a campanha se radicalizou, em que várias dessas forças recuaram, mas todas elas, ao longo do percurso, foram igualmente construtivas.

José Chasin – Conseguimos, na época, fazer com que o povo discutisse Educação, que assumisse essa questão como um problema seu.

E de uma maneira que é muito mais chocante do que os que estão falando sobre o assunto hoje. Eu me lembro que, quando fizemos a primeira “Convenção de Defesa da Escola Pública”, no Sindicato dos Metalúrgicos, o Laerte me disse: “Florestan, esse pessoal está falando de educação como se fosse pão, feijão e arroz”. Eu nunca me esqueci disso, porque ele não achou admirável, não, ele ficou assustado. Ele nunca pensou que, para um operário, pão, feijão, arroz e educação pudessem valer a mesma coisa.

Paulo Barsotti – E as famosas reformas de base?

Vejam bem, eu entrei no debate das reformas de base apenas em termos da campanha em defesa da escola pública. Quando se colocou toda a problemática das reformas de base, eu não entrei nela, não. Eu participei do movimento em termos muito pessoais, porque aceitei fazer conferências, por assim dizer, técnicas sobre universidade, sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento, etc. Porque a discussão das reformas de base estava embricada em pressupostos falsos, estava embricada na ideologia que o ISEB havia disseminado, de que era possível fazer a revolução através do desenvolvimento. Essa teoria da revolução através do desenvolvimento é uma teoria que tem raízes muito dúbias. De um lado, está a CEPAL, de outro, estão autores norte-americanos como (Kalman) Silvert, por exemplo. Como socialista, eu não via a coisa

desse ângulo17. Percebia que estávamos perdendo terreno entre os estudantes, porque eles estavam cada vez mais revoltados conosco, achando que não estávamos participando do movimento que o ISEB havia criado. Por isso, achei necessário avançar até o ponto de colocar as mesmas questões, mas discuti-las de um ângulo diferente.Se vocês pegarem alguns ensaios que estão em A sociologia numa era de revolução social, poderão ver que as minhas posições não coincidem com as do ISEB, porque eu não interrompia o ciclo das transformações dentro da órbita burguesa. Eu pensava além, ainda que colocasse esse além de forma um pouco abstrata. Eu não precisava ser um sociólogo treinado para ver que, inclusive, o discurso que fiz no “2º Congresso Brasileiro de Sociologia” marcava bem essa orientação. Quer dizer, a contradição que surgiu depois, a respeito de que não se podia fechar o

17 - Para os intelectuais do ISEB, o desenvolvimento econômico que emerge da revolução capitalista promoveria o aumento da renda e a melhoria dos padrões de vida da população (BRESSER-PEREIRA, Luiz. O conceito de Desenvolvimento do ISEB rediscutido. DADOS – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, v. 47, n. 1. 2004). Numa interpretação semelhante à de Florestan, o filósofo Caio Toledo argumenta que, por não considerarem as implicações do conceito marxista de classe social, esses intelectuais cometeram o equívoco de sustentar que o desenvolvimento econômico poderia liquidar todas as formas de alienação e de espoliação (ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1978, p. 74).

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debate no desenvolvimento. O problema central era a democracia. Se o desenvolvimento se acelerasse e o processo de democratização não se acelerasse, não haveria ganhos reais. Eu coloquei tudo isso porque, na verdade, para um socialista, o problema da reforma de base seria o de alargar a ordem social competitiva, pinçar o inchaço que pode haver dentro da sociedade burguesa, e partir para um movimento de negação dessa mesma ordem. Mas, como o debate era confinado, eu também me limitei. Tanto esse discurso, quanto o pequeno ensaio sobre “Problemas da mudança social no Brasil” (publicado no mesmo livro), no qual relato as conclusões que podem ser tiradas da campanha em defesa da escola pública, sobre a resistência sociopática à mudança (uma maneira de evidenciar a inutilidade da aliança de classe: a aliança com quem e para quem?) revelam o rumo político que foi suprimido em São

Paulo ao debate reformista e desenvolvimentista. Se há uma resistência à mudança, se as classes possuidoras só mudam em termos de seus interesses estratégicos, então, é claro que o nosso campo de ação tem que ser outro. Apesar de que, em um dos artigos, eu tenha falado do combate junto à classe trabalhadora, do intelectual subir com ela às questões essenciais, não explicitei as posições socialistas. Todavia, elas estão bem evidentes. Naquele momento, eu usava o discurso de hoje do PT. José Chasin – Evidentemente, não há ambiguidade quanto à sua posição. Mas, ainda neste capítulo, eu gostaria de ouvi-lo falar a respeito do seguinte: o que me parece constituir um erro fundamental da época, é não ter percebido que as reformas de base precisavam ser anguladas do ponto de vista da classe operária.

Mas, era fatal, porque basta que você parta do

fato de que a nota política era dada pelo demagogo populista. O pessoal fala em populismo e esquece a figura do demagogo. O demagogo, que usava o populismo, era instrumental para as classes possuidoras, não para as classes trabalhadoras. E a nota era dada por aí.

José Chasin – Em última análise, as forças de esquerda que defendiam as reformas de base deveriam perceber que elas tinham como ponto de apoio central a classe operária, senão, ficariam a reboque da burguesia.

Mas ficaram, nem se colocaram o problema de estar a reboque.

José Chasin – Ficaram, consideraram que a hegemonia era da burguesia da época. Partiam do princípio que seria possível realizar um capitalismo autônomo.

Houve um erro estratégico, não foi tático, o erro foi estratégico de pensar

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que, numa situação de dependência como a do Brasil, você tem um conflito irredutível entre a burguesia nacional e as burguesias estrangeiras. Por aí pensaram que, se a burguesia nacional se fortalecesse, ela golpearia a dominação imperialista. Na verdade, nossa burguesia, como no resto da América Latina, é profundamente pró-imperialista, sempre cresceu nessa direção.

José Chasin – O que mostra a debilidade congênita.

Aí entram questões que já analisei em profundidade em vários trabalhos. É uma burguesia que teme arriscar as suas posições e prefere, numa luta contra o proletariado, agravar a repressão do que procurar no proletariado um apoio para lutar contra o imperialismo. Isso é constante na história do país.

Heleieth Saffioti – Que observação o senhor poderia fazer a respeito

do levantamento de uma temática que era central nas reformas de base, que está aí na ordem do dia, novamente, que é a reforma agrária.

Eu acho que a reforma agrária no Brasil, para se realizar ao nível histórico em que ela se tornaria imperativa para a transformação da ordem, seria preciso realizar, nesse nível, o que se realiza na revolução proletária. Eu não sei como é que isso surge, mas há uma tendência, na América Latina, de separar o latifúndio da burguesia. O Rui Mauro Marini, que possui um nível de análise teórica muito sofisticada e uma posição revolucionária congruente, mesmo ele, no livro que foi publicado em francês, Sobre a revolução na América Latina, onde trata do Brasil, fundamentalmente, separa o latifúndio da burguesia, quando na verdade o setor mais reacionário da burguesia brasileira é o latifúndio. Foi esse setor que deu o salto rápido no

sentido de passar de uma condição aristocrática para uma condição burguesa, o que procuro demonstrar em A revolução burguesa no Brasil. Agora, quando se entende o que está aí, descobre-se uma posição capitalista muito retrógrada, muito fechada, que se ampara em termos de força exterior, que revitaliza o capitalismo. Isso leva a uma posição pró-imperialista que cresce. É claro que essa burguesia vai ter de lutar com o imperialismo, porque, se não, poderia sofrer uma regressão neocolonial. Daí a necessidade de lançar mão de uma ditadura para se proteger contra o aliado principal. Nisso, a burguesia nos dá uma lição, porque no setor das forças proletárias e revolucionárias não se faz a mesma coisa.

José Chasin – Esse é um aspecto que eu incluiria claramente naquilo que chamo de via colonial de objetivação do capitalismo no Brasil. É, precisamente, uma burguesia capaz

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de controlar a classe operária – tem dispositivos para isso – e, ao mesmo tempo, associar-se ao imperialismo e lavrar contra ele certas lutas.

Mas, essa batalha que trava com o imperialismo não é funcional para a revolução nacional, para revolução democrática, e redundam numa coisa que eu tenho insistido nos meus trabalhos e nas aulas – a descolonização aqui sempre foi pela burguesia. Nós não levamos a descolonização até o fim e até o fundo, nós teríamos que consumar a revolução nacional e a revolução democrática.

José Chasin – Não sendo congruente com a cronologia, embora afinada com essa temática, lembro da campanha Lott.

Eu não participei daquela campanha. Aliás, acho que aquilo foi um erro terrível. Eu tenho a impressão que as alternativas, em termos de forças da ordem, são sempre ruins, e a

tendência de procurar a espada salvadora só pode ser útil para a burguesia. A campanha Lott só teve sentido na medida em que ela encontrou um reforço que não era propriamente da burguesia. Eu não participei e fiquei mal informado. Há coisas que a gente não combate como deveria. Mas, também, você não pode combater tudo o que há de errado numa sociedade como a sociedade brasileira. Eu não entrei na campanha, nem votei no Lott.

José Chasin – Vamos a uma questão muito genérica. Todos nós conhecemos as suas posições, as suas iniciativas e a sua atuação. E o golpe de 64?

Eu já fiz uma análise desse golpe. Talvez, hoje seja capaz de ver mais claro porque em nenhum dos ensaios que elaborei cheguei a fazer uma análise mais elaborada desses golpes, que não são específicos do Brasil. Tenho a impressão, com relação a 64, dentro do contexto de nossa

discussão, que o elemento lamentável foi a ausência da luta direta entre as forças que se diziam dinamizadoras das reformas de base e as forças que capitanearam a contrarrevolução. As forças que tinham uma posição pelo aprofundamento da revolução nacional, da revolução democrática, não deveriam ter saído do campo sem luta. Isso foi terrivelmente desmoralizador porque, na verdade, fez com que as classes trabalhadoras não pudessem fixar a identidade daquilo pelo qual lutaram. Mesmo que elas não tivessem levado a luta até o fim, teriam se polarizado e seriam capazes de distinguir o que, dentro da ditadura, precisaria ser combatido sem descanso.

Heleieth Saffioti – Na medida em que não fixam a identidade daquilo por que lutam, não fixam a identidade do inimigo.

Pois é, aí é que está o problema. É o que Lênin sempre dizia: é preciso evitar a confusão no campo da consciência operária.

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Quer dizer, um partido como o Partido Comunista, um Partido Socialista, não tem liberdade total para avançar até onde queira, não pode fazer alianças de cúpula, como se através das alianças de cúpula tivéssemos o sucedâneo da revolução. Não se acelera a história por aí. A história só se acelera a partir de transformações reais de baixo para cima, especialmente, da consolidação do proletariado e da luta de classes.

José Chasin – Poderia, pelo menos, ter combinado a operação pelo alto e por baixo.

Sim, mas isso em condições históricas especiais.

José Chasin – Perfeito.

É o assunto de um dos livros de Lênin, sobre a tática das duas frentes18. Quando as condições não existem, nem isso se pode fazer e, às vezes, é preciso partir para uma posição de sacrifício. Por exemplo, se as massas

avançam num dado momento, respondem a uma agitação, e se marcam certas fronteiras, depois é imperioso lutar por aquelas bandeiras. Pode não ser racional do ponto de vista da “conservação das forças”, mas é racional do ponto de vista da aceleração do processo histórico.O que houve, em 64, foi melancólico, porque, de um lado, a gente vê que as forças da contrarrevolução se compuseram no plano político, levaram o seu projeto até o fim, enquanto as outras forças se fragmentaram, os elementos mais ativos e visíveis se resguardaram autoprotetivamente, para ressurgir depois. O que estava em jogo exigia um comportamento diferente: na verdade, não basta cometer erros e depois fazer autocríticas. É preciso enfrentar as consequências de uma dada situação, mesmo que se parta para uma luta que, antecipadamente, se vê como desigual e perdida. Ela é desigual, sabe-se que se vai perder, mas ganha-

se no processo da luta política. É a mesma coisa que aconteceu com os rebeldes de 22, em termos burgueses. Claro que eles sabiam que iam partir para um sacrifício certo, mas aquilo depois iria contar em termos de dinamização da luta política e em termos da dominação de classe. Quando se luta pela revolução proletária, a proposição é a mesma, Em 64, as forças que defenderam as posições de vanguarda tinham que defender essas posições mesmo quando já estavam condenadas à derrota. Isso não ocorreu e foi altamente desmoralizador.

José Chasin – O que me parece é que o grande equívoco do pré-64, das forças de esquerda mais estruturadas e consequentes, foi precisamente não perceber a inviabilidade da repetição, no Brasil, da democracia burguesa liberal.

Há um amigo meu, que já faleceu, que esteve muito envolvido em toda essa

18 - Florestan retoma esse tema no livro Democracia e desenvolvimento: a transformação da periferia e o capitalismo mo-nopolista da era atual. São Paulo: Hucitec, 1994. Lênin discute a necessidade da coordenação de atividades partidárias legais e clandestinas em vários momentos da sua obra, por exemplo, no livro Que Fazer?, de 1902, publicado no Brasil com um texto de apresentação do próprio Florestan (Lênin, Vladimir. Que fazer? São Paulo: Hucitec, 1979).

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estratégia das reformas de base, e que me disse depois, quando nos encontramos em férias em Itanhaém, o seguinte: “olha, Florestan, foi um erro não ouvirmos você; foi um grande erro”. O Caio Prado Júnior teve o mérito de dizer em A revolução brasileira que, certas fórmulas são aplicáveis de uma maneira geral e outras não. Quando se leva em conta a transição da sociedade feudal para a sociedade capitalista, o que se nota é que a sociedade feudal legou ao capitalismo uma porção de ideais de luta pela liberdade, de respeito a certas garantias sociais, etc. Numa sociedade colonial não existe isso. O que existe numa sociedade colonial? Havia a luta de um setor divergente dos escravocratas, das classes possuidoras, pela eliminação do trabalho escravo, porque isso era necessário para aceleração do desenvolvimento capitalista. Os liberais do Movimento Abolicionista sequer eram liberais numa escala

revolucionária, a ponto de lutarem pelo negro, propriamente dito. Eles lutavam contra a existência do escravo, não pela existência do homem livre. Tanto que, em seguida, eles engatilham as armas e se desinteressam pelo escravo, pelo liberto, pelo ingênuo. A nossa análise tem que estar voltada para o mundo colonial, o que restou dele no presente, especialmente, nas relações de produção e na esfera do trabalho, e que continua a entravar o desenvolvimento capitalista ou, então, continua a nos colocar dentro das transformações que vão em direção ao capitalismo dependente, ao pró-imperialismo e por aí afora. E todos esses elementos foram ignorados ou negligenciados, embora politicamente se revelassem muito dinâmicos.

Ester Vaisman – Professor, 64 em pouco tempo vai lhe causar a aposentaria compulsória. Em 64, o senhor é preso e eu queria uma reconstrução dessa prisão. A prisão e

a liberdade que o senhor adquire dias depois.

Na verdade, ali o que houve de importante não foi a prisão nem a libertação. Eu vivi esses episódios em termos de situações irremediáveis. Quando volto à Faculdade, ao sair da prisão militar, a maneira pela qual fui recebido, isso tudo forçou um pouco a consciência do dever intelectual. Eu vi que nós não tínhamos o direito de ser irresponsáveis e foi, em grande parte, por causa disso que procurei um ativismo político maior do que demonstrara antes. É curioso porque, em 64, eu havia assumido um compromisso de ir aos Estados Unidos no ano seguinte. Fui, fiquei um semestre lá. Voltei para cá no início de 66 e, assim que pude, assumi toda a carga de uma atividade política possível, totalmente a descoberto, sem nenhum amparo. Essa atividade foi crescendo e, em 67, ela se tornou realmente uma atividade maior. O período na minha atividade política

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está nesse ano de 67. Entre 66 e 67 me desdobrei, de todas as formas possíveis, na luta contra a ditadura, e de uma maneira que não foi produtiva, nem para mim nem para as forças que queriam ver a ditadura destruída, mas por isso eu não sou responsável. É curioso, porque a minha consciência de dever foi exacerbada. Não havia nenhum elemento de autodefesa, de autoproteção. Lancei-me à luta de peito descoberto. Já em 68, em que me radicalizei muito mais, tomei posições que apareceram nos jornais como muito violentas ou virulentas, mas não tinha uma participação tão intensa. Em 67, ganhara uma hipertensão que vem até hoje e precisei parar ou moderar por muito tempo. Mas, em 68, já havia muitas forças ativas, lutando em campo aberto. Tenho a impressão de que este período que vai de 64 a 68 foi o período de verdadeiro amadurecimento da luta por uma democracia real no Brasil. As contradições

de uma sociedade de classes apareceriam de forma mais profunda, no caso da história do Brasil. A repressão também acabou aprendendo como é que tinha de lidar contra a ameaça que estava pairando contra a ordem. Eu tenho a impressão de que o endurecimento, a Junta Militar, tudo isso são subprodutos, a maneira pela qual a ditadura teve que enfrentar essa situação, porque realmente a sociedade brasileira viveu, naquele curto período de tempo, a tal fase pré-revolucionária que alguns tinham colocado no início da década de 60. Todavia, a experiência foi vivida por forças muito reduzidas, na verdade, só os setores realmente radicais, mais politizados, de classe média, alguns elementos de origem sindical e muitos estudantes se engajaram no processo. Se 68 falhou na Europa, imaginem o que tinha que acontecer aqui. Foi uma hecatombe. Nós perdemos muito, porque, se a ditadura tivesse sido combatida por um

conjunto maior de forças, o que sairia daí seria uma evolução no sentido de destroçar, de uma vez, a democracia restrita. Não se ia muito mais longe disso. O segredo deste regime é que ele isola os inimigos, escolhe a área de combate e dá os combates em terrenos ou momentos sucessivos.

José Chasin – Temos que conceber que isso é inteligente. Não é casuístico.

A coisa é programada. O único elemento que leva a programação até o fim é o governo ditatorial. Ele programa realmente tudo. Inclusive, como deve agir a oposição consentida.

José Chasin – Mas, em seguida à anistia e ao retorno, o senhor recusou a reintegrar-se à Universidade nas condições impostas. Por esta entrevista, é fácil perceber a motivação de base. Contudo, valeria a pena uma explicitação. Isto também está ligado à crise da USP?

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Não, eu não pensei tanto na USP. Eu tenho a impressão de que os intelectuais valorizam muito a Universidade. É claro que é essencial valorizar a Universidade, mas também não se pode transformar a Universidade num super-valor.

Marilene Pottes – Mas, a crise da USP é ou não verdadeira?

Ela é verdadeira, mas temos duas coisas diferentes. Uma é o combate a uma ditadura. Todo o processo de anistia foi uma luta importante e significativa: ele obrigou o regime a recuar. Não se pode ignorar, contudo, que essa luta tenha sido um pouco confinada, ela mobilizou forças mais de superfície do que de profundidade, mas foi uma luta tenaz e importante. Isso sem querer fazer uma avaliação do significado, da importância dessa luta. O que representou a anistia a partir do momento em que a ditadura tomou para si determinar como

ela ia ser e, inclusive, decidir como aproveitá-la politicamente. Um intelectual que toma uma posição de luta em 64, que cai em 69, por causa dessa posição de luta, tem como problema central desmascarar a ditadura, lutar contra ela. E a maneira de lutar contra a ditadura é dizer não, porque aquela anistia regulada, predeterminada, que nos expunha a uma humilhação intelectual, tinha que ser rejeitada in limine. Foi o que procurei fazer. Mesmo que eu queira voltar, quero voltar de uma forma que aprofunde o significado da nossa luta política, e não em termos de uma concessão pela qual o governo se apresenta à nação como o concessionário de um avanço político. Ele não fez concessão nenhuma. A concessão que ele deveria fazer era a concessão de uma anistia total. Era essa a pressão do movimento pela anistia. Não fez concessão e fez o contrário. Ele sublimou a repressão alegando que, do ponto de

vista do regime, estavam perdoados os erros e que, da nossa parte, também esperavam que fizéssemos uma autoretratação. Ora, em 64, 68, 69, eu estava em luta contra a ditadura. Então, eu não queria saber disso. Ela está aí, está forte, já analisei o que a opção representava para mim. Isto é, se eu concedo e não desmistifico, o mais importante é desmistificar, ainda que isso acabe sendo confundido e, de fato, o foi. Recebi críticas amargas ou amarguradas de colegas que achavam que subestimei a USP. Recebi críticas de cidadãos que achavam que não fui congruente com a luta pela democracia. Tudo isso está errado, porque eu não estaria lutando pela democracia aceitando a anistia do governo. Ao contrário, estaria lutando literalmente pela “democracia” do regime existente.

Paulo Barsotti – E nem apenas pela democracia do Butantã, não é?

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É! Eu vejo o processo de uma forma diferente. Voltar para quê? E aí se coloca o problema da crise da USP. É uma crise real, é uma crise que não está tanto na qualidade do trabalho intelectual. A Universidade brasileira, de uma forma geral, cresceu muito, e não pode negar que o trabalho intelectual se tornou mais sofisticado, mais sério, mais produtivo. A crise intelectual vem do fato de que, na relação entre uma Universidade que tinha avançado muito e o espírito reacionário das classes possuidoras na sociedade brasileira, nessa relação, a reação conseguiu, pela primeira vez, depois de 64, penetrar nos muros da Universidade. E penetrou através de seus baluartes internos, que estão nas profissões liberais, nos vários campos de ensino e de trabalho intelectual, que realmente eram os alicerces da contrarrevolução dentro da Universidade. Em um pequeno ensaio sobre a universidade na América Latina, que escrevi em 66, já mostrava

que as profissões liberais não representavam a Universidade na sociedade, representavam a sociedade na Universidade, quer dizer, eles levam para a Universidade um espírito repressivo, de opressão, de luta de classes em termos negativos e de defesa de privilégios. Aprofundei esse debate em 1967, pelo que se poderá concluir de A universidade brasileira: reforma ou revolução? O setor, em questão, cresceu muito, se fortaleceu muito, e o que há de crise na Universidade, não somente na USP, é esse avanço da contrarrevolução no campo institucional. A contrarrevolução vai ser batida no campo político, mas ela ainda vai ficar forte no campo institucional. E não vai ser só na Universidade. Vai ser em todas as instituições-chaves, nas quais a burguesia construiu as suas trincheiras. De modo que, é uma crise que vai exigir de todos os intelectuais uma capacidade de luta e de discernimento muito forte, porque se não se destruir

essa força reacionária, não vai ter Universidade possível, de maneira nenhuma.

José Chasin – Nesse sentido, e não apenas em relação à USP, mas talvez com ênfase em relação à USP, gostaria que a resposta fosse explicitada, apesar de crer que seja óbvia. Os intelectuais não foram integralmente congruentes nesse processo todo, não é?

Não, é claro. Eu já fiz esta análise, prematuramente, até. Eu a fiz em 69, naquele ensaio que está publicado no Circuito Fechado. Lembrei a frase de Lênin: “Sem teoria revolucionária não há revolução”. No mesmo sentido, podemos dizer que, sem teoria contrarrevolucionária não há contrarrevolução. Dentro da Universidade, a contrarrevolução teve uma força muito vigorosa. Eu tenho a impressão de que, quando se combate a ditadura, não se combate, apenas, o governo militar,

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combatem-se essas forças que organizam a repressão no país inteiro.

Narciso Rodrigues – E até o taticismo dos mais “consequentes”?

Sim, porque o que prevalece é o velho espírito elitista. O brasileiro se acostumou a servir às elites. A Universidade prendeu-se às necessidades políticas e intelectuais das elites, das classes possuidoras. Eles não sabem ver outra saída, do que decorre uma simulação enorme. Isto é, uma pessoa se apresenta como “muito avançada”, mas é “avançada” só no terreno verbal ou da verbalização fácil.

José Chasin – Prevalece a carreira, não é?

No terreno prático, nem sequer a carreira está prevalecendo. São interesses mesquinhos, de dominação, de destruição dos outros.

José Chasin – Professor, o

senhor mencionou várias vezes o PC, a decisiva necessidade de um partido revolucionário. Eu queria que o senhor se detivesse no momento atual, no momento concreto que vive o PC brasileiro, com suas duas orientações, ou duas tendências que se manifestaram nos últimos meses, do ano passado para cá. Toda uma série de paradoxos, toda uma série de contrastes aí se configuram. Eu não quero antecipar de modo nenhum à pergunta elementos da resposta. Ainda que, do seu ponto de vista, ambas as formulações possam ser concebidas como equivocadas, eu gostaria de um pouco mais de paciência de sua parte e que se estendesse um pouco mais sobre essa questão. Em última análise, nós temos um PC problemático, ao longo de décadas, e que chega ao início da década de 80 degolando o único líder nacional que ele tem, ou que teve. Exatamente no momento em que, ao

que me parece, este líder atinge sua melhor fase, a de mais ampla lucidez. O choque está entre uma concepção liberal, de procedimento tático do PC, com generalidades bastante desossadas, com clara influência europeia, por mais que ela seja negada – inclusive, de forma brincalhona, eu chamo de eurocaboclismo e não de eurocomunismo – e de outro lado, uma posição que tenta, ainda que sem maior consequência teórica, neste ou naquele ponto, defender uma dinâmica a partir da classe operária.

Bem, na verdade, eu não gosto muito de discutir esse assunto, porque acho que um debate sobre o PC é, agora, por demais negativo para as forças de esquerda. Talvez, por causa da minha militância ter sido concentrada num período de tempo relativamente curto, não adquiri aquele dogmatismo dos conflitos partidários, prefiro calar a denunciar e, às vezes, falo das frustrações porque

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realmente são marcantes. Você pode ter uma oportunidade e pode não ter. O fato de o PC não ter crescido no sentido revolucionário me negou várias oportunidades na minha vida. Então, eu posso cobrar essa omissão. Agora, é claro que o PC no Brasil é parte da situação histórica brasileira. Há vários PCs no mundo. Na América Latina, nós tivemos um PC de atuação universalmente baixa, muito pobre. Todos os PCs da América Latina adotaram não só a mesma linha de ação, mas também a mesma tendência de compor com as forças que traficam com o poder. É essa a expressão correta – tráfico com poder. E isso não era uma coisa feita em termos mesquinhos, isto é, de que a liderança, a cúpula do PC, quisesse tirar proveito. Havia uma reflexão ingênua, de que era a única maneira de vencer a resistência da burguesia, que era, como eu chamei, sociopática, muito

virulenta. Para abaixar as armas da burguesia, o caráter ultrarepressivo da reação conservadora, seria necessário explorar uma posição defensiva de mecanismos adaptativos, de concessões, etc., e tentar movimentos de cima para baixo que, depois, a médio prazo, poderiam ser transformados em movimentos de baixo para cima. Hoje, ninguém mais pode defender essa tática. Eu tinha a impressão que, depois de 64, o PC aprenderia qual seria a lógica da situação política, e que romperia, no Brasil, no Chile, na Argentina, no Uruguai, na Bolívia, nos países que sofreram mais o drama profundo, com essa linha de orientação. Fico espantado ao verificar que não rompeu. Aqui a diferença entre os dois PCs, quando se fala em diferenças, é de grau e não de natureza. É uma diferença de grau, pois vejo que a posição de Prestes é muito mais congruente, mas, ao mesmo tempo, o outro PC é produto do prestismo. Não se pode

separar o que este PC adesivo está fazendo do prestismo. Por isso, não sei se não é toda uma fase de existência do PC que está em questão. Não é o Prestes, nem os prestismos. É o outro PC que tem que nascer. E os comunistas, e eu me incluo entre eles, embora não esteja no PC, os comunistas não descobriram isso. Hoje, o problema da luta política na periferia do mundo capitalista, em particular na América Latina, é um problema grave. Não se vai obter espaço político a partir de conciliações de classes e de composições de cúpulas. Essas conciliações e composições não criam espaço político para as classes trabalhadoras. Elas criam espaço político para os grupos que controlam o poder a partir de cima, principalmente, para a aliança terrível entre as nações capitalistas hegemônicas, sua superpotência e os setores mais poderosos das burguesias nacionais.

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Portanto, é um momento que impõe clara percepção da realidade. Os PCs têm que se tornar revolucionários para enfrentar, exatamente, a contrarrevolução prolongada e tortuosa das burguesias. Até há pouco tempo, poderia parecer um sofisma falar isso. Mas a logística militar aplicada à política acabou revelando o que se precisa fazer. O general Golbery declarou quais são os propósitos que estão em jogo nas várias manipulações feitas pela ditadura. O espaço que se pretende, em termos de democracia, é um espaço de manobra para a contrarrevolução e para a ditadura, não um espaço para o crescimento da revolução, mesmo de uma revolução que se circunscreva à democracia de participação ampliada. Isso exige que os comunistas saiam totalmente da linha tradicional de aliança com a burguesia. O que não significa um convite ao extremismo irresponsável,

ao extremismo infantil. Significa, apenas, que esses partidos têm, novamente, de colocar na ordem-do-dia a questão das duas frentes, e têm de coloca-la em termos de exigências muito complicadas, porque a frente legal hoje é muito reduzida. Eles têm de criar um movimento político orgânico nas classes trabalhadoras. Essa é uma tarefa fundamental dos PCs e dos partidos socialistas na América Latina. Porque espaço democrático, luta pela democracia sem conteúdo socialista, isso já não leva a nada, pode até levar à cooptação, ao regime de capitalismo de Estado, que são capazes de comprar a segurança da burguesia e do capitalismo, através das chamadas funções de legitimação do Estado. Ora, não é por aí que passa a tarefa revolucionária de um partido comunista, ou de um partido socialista congruente. Portanto, fica muito claro que, nesta fase, de um lado, é preciso não fortalecer os setores mais retrógrados e mais

reacionários da burguesia, e tampouco fortalecer, em bloco, a burguesia, com alianças que geram confusão no movimento operário. E, de outro lado, é preciso que o movimento operário seja o centro de todo o processo. Nós estamos num ponto zero. Não importa quão longe chegaram as nações socialistas ou quão longe chegou a democracia burguesa em países de capitalismo de Estado, disfarçado ou não. O importante é que, na América Latina, o movimento operário não é autônomo, ainda não conseguiu, mesmo nos países que tiveram uma experiência mais marcante, como é o caso da Argentina ou do Chile, chegar a um ponto de confrontação decisiva com as forças da burguesia. Porque o nível de luta hoje é mundial e o poder de repressão das burguesias não passa pela luta da burguesia do Chile, Argentina, do Brasil, passa pela capacidade de repressão do capitalismo monopolista e imperialista.

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E isso se determina através das nações capitalistas hegemônicas e de sua superpotência. É nesse nível que as coisas devem se colocadas.Quando se usa essa perspectiva, o que se vê é que não estamos travando praticamente a luta contra a ditadura no terreno correto, mas no terreno que a ditadura nos oferece, o da oposição consentida e sem ter uma ousadia maior. Nós podemos aprofundar a luta política. O grave pecado político dos PCs é que essa luta não se aprofunda quando se fala em eurocomunismo. Eu não sou adepto do eurocomunismo, para mim, isso não passa de um processo de social-democratização dos PCs. Mas, se o eurocomunismo tem sentido, só tem sentido em países onde há uma consolidação da luta democrática em termos capitalistas. Ora, aqui nós não temos essa consolidação. A burguesia fechou o espaço em termos de autocracia capitalista.

Portanto, não tem sentido importar tais soluções oportunistas. É inegável que Prestes se aprofundou nas suas reflexões políticas. Mas não chegou ao ponto de ver até onde ele próprio está na raiz disso tudo, e até onde o problema, para nós, é transcender ao antigo prestismo e à herança que o PC acumulou ao longo desse período. Eu não quero transformá-lo em alvo, porque ele está travando um combate necessário e construtivo. Não pretendo entrar nesse combate, porque acho que nós já devíamos ter saído dele há muito tempo19.

José Chasin – Há possibilidade, no Brasil, sob qualquer forma, por mais tênue que seja, de uma edificação democrática que não conte com a classe operária?

Realmente, sem nenhum dogmatismo, porque uma coisa é pensar que o socialista só fala em função de parâmetros políticos pré-estabelecidos, outra

coisa é partir da própria dinâmica de transformação política das sociedades burguesas, principalmente, na periferia do mundo capitalista. Quando se parte dessa perspectiva, que é muito realista e até empírica, o que sobra é que, na periferia, o que se dinamizou é o que certos autores chamam de biombo da dominação da burguesia. Isto é, a “democracia burguesa” nunca se aprofundou e o uso do Estado foi, na verdade, um meio de dinamizar a capacidade de dominação da burguesia. Aquele Estado parecia um “estado democrático”, mas, na verdade, ele só consolidava uma força muito egoísta de dominação restrita. Egoísta porque era uma democracia restrita, fechada para os setores mais privilegiados das classes possuidoras, mas se apresentava como se fosse uma democracia plena. E só há uma maneira de romper com essa limitação histórica, que é da pressão radical que vem de baixo

19 - Numa entrevista realizada após sua eleição para deputado constituinte pelo Partido dos Trabalhadores, Florestan reconhece a importância do apoio que recebeu de Luiz Carlos Prestes naquela campanha (Florestan eleito pelas ‘bases do PT’. In: Correio Brasiliense, Brasília, n. 8706, p. 5, 08/02/1987; http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/115959/1987_05%20a%2008%20de%20fevereiro_104b.pdf?sequence=1).

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para cima. É a pressão que vem das classes subalternas e que se organiza de uma maneira um pouco mais flexível, um pouco mais avançada no setor operário, especialmente no setor industrial das classes trabalhadoras. No Brasil, a classe operária já tem uma densidade, uma presença morfológica e, ao mesmo tempo, uma presença qualitativa suficiente para que se pense na classe operária como vanguarda das classes subalternas. O problema todo é de amadurecimento político. É preciso combinar a atividade militante do próprio operário com a formação de um partido que venha a objetivar e instrumentalizar, no campo político, o poder real das classes trabalhadoras. Até há pouco tempo, esse poder real era muito baixo, amorfo e difuso. A presença da classe trabalhadora acabava sendo esvaziada e, ao mesmo tempo, coordenada, sublimada e transformada em poder de dominação

da burguesia. Hoje, o que nós podemos dizer é que o desenvolvimento capitalista acelerado, apesar da ditadura, apesar da presença maciça das grandes corporações estrangeiras, esse desenvolvimento capitalista acelerado possibilitou às classes trabalhadoras terem condições de luta gradativamente mais fortes e mais vantajosas do que elas possuíam no passado recente.A partir dai, existe base material suficiente para se refletir sobre o movimento político das classes trabalhadoras da sociedade brasileira. Tarefas políticas que até há pouco tempo não podiam ser pensadas, em termos das classes trabalhadoras, hoje já podem ser pensadas, desde que elas se disponham a avançar até o ponto de incorporar o socialismo; a luta de classes poderá ter um significado e consequências que ela não teve no passado recente no Brasil. Acho que a luta política não deve ser pensada em

termos de 5, 10, 15 anos. Ao mesmo tempo, é indispensável pensar em outros paradigmas. Cuba está presente para mostrar que o socialismo é uma alternativa concreta na América Latina. Embora não possamos desencadear um processo revolucionário pela via cubana, o paralelo com Cuba é suficiente para mostrar que o socialismo é uma alternativa para os latino-americanos, ao contrário do capitalismo. Portanto, é preciso pensar nas classes trabalhadoras como as classes que podem enfrentar a tarefa política de desencadear a revolução, de aprofundar a revolução, de conquistar dentro do capitalismo condições para a organização do conflito de classes e da luta de classes e, quiçá, em um prazo menor do que pensamos, transformar as sociedades latino-americanas de forma revolucionária. De modo que, sem dogmatismos, é possível se pensar sobre a sociedade brasileira, longe do “pessimismo burguês”, na verdade, os operários

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e as massas populares insatisfeitas já deram uma prova cabal do que aspiram. O que aconteceu nestes últimos três anos mostra que a sociedade brasileira está se transformando de uma maneira relativamente rápida, ainda que os efeitos dessa transformação só se tornarão mais visíveis quando projetados sobre os últimos 20 anos do século XX. Há, pois, toda uma nova perspectiva, para se ter esperança no futuro, para se ser otimista, para se pensar revolucionariamente. Em conjunto, tudo isso cria para os partidos socialistas revolucionários o dever de pensar nessa situação, em termos totalmente diferentes da estratégia que foi utilizada até agora. Eles têm pela frente ditaduras que estão lutando, tenazmente, pela autoperpetuação e pela “democracia totalitária”. Esses mecanismos vêm do fascismo, vêm das tentativas que a burguesia fez de fortalecer a sua dominação de classe e

de luta política, através do Estado capitalista periférico. O que cabe àqueles que pensam na dinâmica da história, do ponto de vista contrário, da destruição do Estado – não só desse Estado – é fazer o caminho inverso. De um lado, criando formas de participação política, que levem as classes trabalhadoras a ter uma presença mais ativa dentro do processo político. De outro lado, num plano mais profundo, de organizar essas forças para travarem a sua batalha, porque essa batalha vai ser travada no Brasil a partir de agora. Por que a partir de agora? Porque a partir de agora vai surgir uma vanguarda operária autêntica e articulada ao movimento político das classes trabalhadoras. Essa vanguarda vai poder alimentar um processo revolucionário autônomo que não se prenderá nem se subordinará mais à dinâmica de autodefesa e do fortalecimento do capitalismo.

José Chasin – Nós colhemos com esta entrevista uma página formidável, que vai marcar a história brasileira e que vai marcar, também, a nova fase da revista Escrita/Ensaio. Mas, espero que não marque apenas a nova fase de uma revista, mas de um trabalho coletivo que seja um ponto pequeno e simples de partida para um trabalho muito mais amplo dentro do qual, de algum modo, já estamos inseridos.