Florestan Fernandes autocracia como estrutura histórica.pdf

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    Programa de Ps-Graduao stricto sensu em Histria

    Rodrigo Pereira Chagas

    FLORESTAN FERNANDES: A AUTOCRACIA BURGUESA COMO ESTRUTURA HISTRICA

    E A I N S T I T U C I O N A L I Z A O D A C O N T R A - R E V O L U O N O B R A S I L

    MESTRADO EM HISTRIA SOCIAL

    So Paulo

    2011

  • 2

    PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    Programa de Ps-Graduao stricto sensu em Histria

    Rodrigo Pereira Chagas

    FLORESTAN FERNANDES: A AUTOCRACIA BURGUESA COMO ESTRUTURA HISTRICA

    E A I N S T I T U C I O N A L I Z A O D A C O N T R A - R E V O L U O N O B R A S I L

    MESTRADO EM HISTRIA SOCIAL

    Dissertao apresentada Banca

    Examinadora da Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo, como exigncia

    parcial para obteno do ttulo de

    MESTRE em Histria Social, sob a

    orientao do Prof. Doutor Antonio

    Rago Filho.

    So Paulo

    2011

  • 3

    BANCA EXAMINADORA

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Como cabe a todo trabalho autoral, assumo os provveis erros da pesquisa e tentarei

    destacar sempre que possvel, no corpo do texto, as contribuies tericas e tcnicas que

    recebi para seus eventuais acerto. Alm disso, cito abaixo alguns nomes de pessoas das quais

    recebi, direta ou indiretamente, importantes contribuies neste processo de mestrado.

    Para realizar esta pesquisa recebi apoios mltiplos em nveis e dimenses variados.

    Infelizmente corro o risco de cometer injustias ao arrolar nomes, no entanto, injustia maior

    seria deixar de faz-lo, uma vez que, sem estes diversificados apoios e um punhado de sorte

    jamais teria conseguido realizar um trabalho dentro da estrutura acadmica que impera no

    pas.

    De sada, devo agradecer ao apoio financeiro do Conselho Nacional do

    Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), fundos pblicos, que me garantiu as

    condies mnimas para reproduzir minha vida com alguma dignidade durante o processo

    todo.

    Ao meu orientador e amigo, o Prof. Dr. Antonio Rago Filho, deixo expressa aqui a

    gratido por sua honestidade de grande intelectual, sua distino humana, estmulo e apoio

    incondicionais.

    Prof. Dra. Vera Lucia Vieira, agradeo pela participao em minhas bancas de

    qualificao e defesa, bem como, pelo incansvel incentivo e apoio a todos os alunos da Ps-

    Graduao em histria da PUC/SP que enfrentam as mais diversas dificuldades para pesquisar

    a violncia que estrutura, tragicamente, a sociedade brasileira e latino-americana.

    Com a Prof. Dra. Lvia Cotrim minha dvida imensurvel. Aqui, limito-me a

    agradecer pela pacincia de ter me orientado durante a graduao e de ter aceitado participar

    como professora convidada de minhas bancas de qualificao e defesa.

    Em grande medida s pude realizar este trabalho por ter feito minha graduao no

    Curso de Cincias Sociais da Fundao Santo Andr, curso que vem resistindo bravamente

    mercantilizao da educao e mantendo firme um compromisso com os problemas humanos

    e o posicionamento crtico radical. Assim, agradeo aos alunos e professores deste curso, em

    especial, Prof. Dra. Terezinha Ferrari e ao Prof. Dr. Ivan Cotrim.

    Deixo um abrao aos colegas de disciplinas, mestrandos e doutorandos, pelas

    contribuies recebidas na PUC-SP: Danilo, Jussaramara, Patrcia, Fernando e,

  • 5

    especialmente, Vitor Lacerda, por nossos debates incansveis e pela honesta amizade firmada

    em to pouco tempo.

    Para alm das instituies formais, dois grupos de grande liberdade de pensamento

    foram importantssimos em minha trajetria nestes dois anos: a Escola Livre de Cincias

    Humanas e Artes e o grupo de leitura do Sumar.

    No primeiro contei com o companheirismo de toda uma rapaziada: Fabo, Ldia,

    Michel, Bruna, Digo e, destacadamente, Joo Paulo Alves Craveiro (Joozinho), um alegre

    companheiro para todos os momentos. Ainda vinculado Escola Livre tive um

    enriquecimento intelectual maravilhoso junto ao grupo de estudos em esttica e ontologia,

    com amigos to expressivos como Leandro Candido, Vladimir Luis da Silva e Fbio Roberto

    Ribeiro. Deixo aqui tambm minha sincera gratido e amizade a um personagem marcante da

    Escola Livre: o grande pintor brasileiro Gontran Guanaes Netto que, desde seu exlio

    institucionalizado, nos deu exemplos vivos das profundas feridas que a ditadura militar

    deixou em nossa cultura.

    No segundo, o grupo de leitura do Sumar, recebi contribuies estimulantes e

    agradeo a todos que por l passaram, mas principalmente ao pessoal que permaneceu: Tadeu,

    Renata, Frida, Rodolfo e um ar especial ao economista Carlos Alberto Cordovano Vieira,

    que criou o grupo e gentilmente me convidou para participar das reunies.

    bom lembrar que ao se objetivar uma formao intelectual que fuja da mera

    afirmao do que o mundo e vem sendo, faz-se necessria toda uma rede social que permita

    ao indivduo manter algum grau coerncia e respaldo humano. Neste ponto no s os amigos

    que compartilham diretamente do trabalho e dos grupos de pesquisas so essenciais;

    principalmente porque estes no se limitam apenas esfera acadmica.

    Sinto-me, assim, agraciado, j que conto com tantos amigos e colegas que so

    verdadeiros crticos da realidade social vigente, cada um sua maneira. Um grande abrao a:

    Beto, Tati, Diogo, Talita, Alexandre de Paula, Luciano Dutra, Roberto Candido e Leandro de

    Morais Silva. Danilo Amorim merece meno especial pelas discusses infindas nos grupos

    de estudos ou por telefone e pelos livros que j nem sabe mais estarem comigo.

    A famlia longa e importantssima. Como bom provinciano, deixo-lhes aqui um

    aceno a: Alberto Chagas (meu pai), Dona Bibiu e Seu Valdemir (meus avs), tia Mora. Aos

    meus irmos: Luquinhas, Aru, Van, Emer. Aos amigos de infncia e aos amigos de sempre, j

    verdadeiros irmos: Cesar (a quem devo a impresso do trabalho) e Giba (a quem devo o

    abstract); Marcel e Alan. Registro aqui muitas saudades e agradeo a contribuio

    inconsciente de Nan, minha irmzinha que faleceu no primeiro ano deste trabalho, e de

  • 6

    Norberto, meu padrasto. Um abrao especial a Sonia Maria Moretti, minha querida me, que

    ouviu sem querer, ou poder fugir, meus delrios cafenicos sobre temas que tanto domina e

    preza em sua vida cotidiana, como Florestan Fernandes, poltica e economia brasileira.

    pessoa que conhece todos os personagens dessa histria, que me deu apoio tcnico

    incondicional e que compartilhou todas minhas inseguranas e tormentos, bem como todos os

    momentos de esperana e xtase, deixo meu ltimo agradecimento e lhe dedico este

    trabalho com amor e admirao por seu companheirismo e grandeza intelectual: Aline de

    Vasconcelos Silva.

  • 7

    RESUMO

    Nossa pesquisa buscou resgatar, atravs do iderio do socilogo Florestan Fernandes

    (1920-1995), sua compreenso sobre o processo comumente denominado transio ou

    abertura democrtica no Brasil (1974-1988) processo que participou como agente

    privilegiado, partindo de uma anlise altamente elaborada sobre as estruturas sociais

    brasileiras e atuando diretamente como intelectual orgnico dos de baixo em atividades

    como: professor, publicista e deputado federal.

    No conjunto deste iderio, visualizamos uma atividade intensa e esperanosa, mas de

    grandes desiluses; que amargam a institucionalizao da ditadura militar (contra-revoluo)

    no Brasil e a manuteno de estruturas arcaicas atravs de modernizaes conservadoras,

    conjugadas represso e afastamento sistemticos da participao popular no destino da

    Nao.

    O trabalho d destaque a dois momentos que compem o iderio florestaniano: por um

    lado, resgata alguns aspectos tericos estruturais, principalmente, sua concepo de autocracia

    burguesa; e, por outro, apresenta sua face terico-prtica, que corresponde histria

    dinmica da luta de classes.

    Palavras-Chave: Florestan Fernandes; autocracia; democratizao.

  • 8

    ABSTRACT

    The object of this study is to examine, within the framework of the ideology upheld by

    the Sociologist Florestan Fernandes (1920-1995), his understanding of the process commonly

    known as transition or political opening in Brazil (1974-1988) where he participated as

    a privileged agent, setting forth a highly elaborated analysis of Brazilian social structures and

    functioning as an organic intellectual dos de baixo in activities such as: professor, publicist

    and deputy.

    Within this framework, we visualize an intense and promising activity but often

    leading to deep disappointment that discourage the institutionalization of the military

    dictatorship (counter-revolution) in Brazil and the preservation of archaic structures through

    conservative modernization, combined with the systematic repression and refrain from

    popular participation in the nations destiny.

    This study emphasizes two aspects that reflect Florestan Fernandes ideology: it

    examines some structural theoretical concepts, particularly, his conception of bourgeois

    autocracy on the one hand; and introduces his theoretical-practical facet that corresponds with

    the dynamic history of the struggle of classes.

    Keywords: Florestan Fernandes; autocracy; democratization.

  • 9

    SUMRIO

    LISTA DE FIGURAS................................................................................................................... 10

    INTRODUO ......................................................................................................................... 12

    PARTE I: REPOSICIONAMENTO TERICO-PRTICO ................................................................ 17

    1. A CORREO SOCIALISTA DA SOCIOLOGIA ..................................................................... 19

    1.1 NOS QUADROS DA RUPTURA ............................................................................................................ 22

    1.2 DUPLA CONDIO .......................................................................................................................... 31

    1.3 A ANLISE ESTRUTURAL-HISTRICA E A HISTRIA EM PROCESSO .............................................................. 48

    2. AUTOCRACIA: ESTRUTURA DE PODER E DOMINAO .................................................... 63

    2.1 A REVOLUO BURGUESA E A TRANSFORMAO CAPITALISTA NO BRASIL ............................................... 64

    2.2 PROBLEMATIZAO DA CATEGORIA AUTOCRACIA .................................................................................. 85

    2.3 BASES SOCIAIS E SIGNIFICADO DA DITADURA MILITAR: A CONTRA-REVOLUO PREVENTIVA ......................... 107

    PARTE II: A HISTRIA EM PROCESSO .................................................................................... 123

    3. DISTENSO: LENTA, GRADUAL E SEGURA ..................................................................... 124

    3.1 IMOBILIDADE E DINAMIZAO DO CONFLITO DE CLASSES ...................................................................... 131

    3.2 DESOBEDINCIA CIVIL.................................................................................................................... 141

    3.3 AS GREVES NO ABC ..................................................................................................................... 145

    3.4 UM DEBATE DA ESQUERDA ............................................................................................................. 150

    3.5 OS NOVOS PARTIDOS .................................................................................................................... 156

    3.6 CLASSE E PARTIDO ........................................................................................................................ 164

    3.7 A DITADURA E OS PARTIDOS ........................................................................................................... 168

    3.8 REVOLUO DEMOCRTICA E PARTIDOS OPERRIOS ............................................................................ 173

    3.9 AS DIRETAS-J! ........................................................................................................................... 186

    3.10 A TRANSIO TRANSADA ............................................................................................................... 197

    4. A REFORMA DA REVOLUO E A INSTITUCIONALIZAO DA LUTA .............................. 208

    4.1 A ADESO AO PT ......................................................................................................................... 208

    4.2 A CAMPANHA PARA O PLEITO DE 1986 ............................................................................................ 216

    4.3 PIVS POLTICO-IDEOLGICOS ........................................................................................................ 232

    4.4 OS TRABALHOS DA CONSTITUINTE ................................................................................................... 238

    4.5 NOTCIAS E ESTRATGIAS DA CONSTITUINTE ...................................................................................... 250

    5. CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 259

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................................. 270

  • 10

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Manuscrito em pedao solto de papel....................................................................18

    Figura 2 Carta a Antonio Candido........................................................................................31

    Figura 3 Trecho de A domesticao dos intelectuais............................................................38

    Figura 4 Fichamento: The Social Costs of Development......................................................66

    Figura 5 Fichamento: A dominao externa no Brasil.........................................................77

    Figura 6 Glosas marginais em Teoria do Estado..................................................................86

    Figura 7 Fichamento: Classes sociais no Brasil....................................................................91

    Figura 8 Glosas marginais em 18 Brumrio.........................................................................94

    Figura 9 Fichamento: O modelo de desenvolvimento brasileiro....................................128

    Figura 10 Recorte de jornal: Florestan proibido de falar.................................................128

    Figura 11 Fichamento: Conjuntura nacional........................................................................151

    Figura 12 Recorte de jornal: Homenagem..........................................................................179

    Figura 13 Fotografia: Revista Ensaio.................................................................................179

    Figura 14 Fichamento: O significado das eleies.............................................................182

    Figura 15 Convite para feijoada..........................................................................................220

    Figura 16 Fotografia: Lanamento da Campanha de 1986.................................................221

    Figura 17 Folheto: Contra as ideias da fora......................................................................225

    Figura 18 Charge: Pelo socialismo.....................................................................................226

    Figura 19 Charge: Constituinte...........................................................................................227

    Figura 20 Fotografia: Luis Carlos Prestes e Florestan Fernandes......................................230

  • 11

    Nada de revoluo democrtica de contedo proletrio

    e de base popular. Se o controle burgus do Estado

    colide com a revoluo democrtica, pior para a

    democracia... Pois a ditadura militar no a nica via

    de preservao ou reciclagem da autocracia burguesa. (Florestan Fernandes, Equivalentes polticos, 1984)

  • 12

    INTRODUO

    O objetivo inicial deste trabalho visava anlise da abertura democrtica, tendo

    como baliza temporal o perodo de 1984 a 1994 e como objeto especfico os discursos de

    Florestan Fernandes. Particularmente, visvamos resgatar as problematizaes feitas pelo

    socilogo paulista sobre a transio transada, a nova Repblica e o carter conciliatrio e

    antidemocrtico da abertura, em sua fase final. Tais objetivos foram delineados a partir da

    pesquisa de iniciao cientfica, realizada durante o processo de graduao em Cincias

    Sociais.1

    No entanto, com o desenrolar da pesquisa de mestrado, percebemos a necessidade de

    aprofundarmos mais o mesmo recorte trabalhado em nossa iniciao cientfica, devido, por

    um lado, amplitude e complexidade do iderio florestaniano e, por outro, prpria

    importncia histrica do perodo. Foi possvel, desta forma, corrigir uma srie de equvocos e

    desdobrar vrios elementos centrais para a temtica proposta e, assim, compreendermos

    melhor o cerne da transio criticada por Florestan.

    Outro elemento importante, que nos levou a manter o recorte cronolgico anterior, foi

    o fato de resgatarmos um amplo conjunto de documentos, dentre eles gravaes e manuscritos

    inditos, bem como, artigos e entrevistas de difcil acesso, que permitiram ampliar a discusso

    do perodo. Na verdade, fizemos o resgate e sistematizao de uma documentao bastante

    significativa de um perodo maior, que vai at 1995 (quando o autor morre), mas no tivemos

    flego o suficiente para incorporar ao trabalho todo este material deixaremos apenas

    algumas indicaes sobre o tema em nossas consideraes finais. De qualquer forma, ter

    resgatado todo o processo, nos deu uma compreenso imprescindvel para a composio da

    anlise exposta neste trabalho. Destarte, o material que apresentamos no corpo do texto d

    mostra da rica documentao que, em grande medida, aguarda por pesquisadores no timo

    acervo da Biblioteca Municipal da Universidade Federal de So Carlos.2

    Saindo desta esfera do trabalho tcnico, em grande medida braal, importante

    ressaltar que partimos, como prprio da academia, de alguns referenciais metodolgicos e

    1 Iniciao cientfica realizada no CUFSA sob o ttulo: A abertura democrtica no iderio de Florestan Fernandes: 1974-1989; com orientao da Prof. Dra. Lvia Cotrim e contando com bolsa da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de

    So Paulo FAPESP. 2 Parte dos manuscritos a que nos referiremos no corpo do texto s nos foi possvel o acesso devido tima recepo que

    tivemos no Acervo Especial Florestan Fernandes (Colesp-UFSCar Fundo Florestan Fernandes) pela coordenadora do acervo Vera Lucia Cscia e pela pesquisadora Lvia Maria Gonalves Cabrera. Muitos destes documentos no haviam sido,

    at ento, tombados e oficialmente digitalizados, por isso no constar ainda a identificao completa dos documentos no

    padro do acervo.

  • 13

    sobre eles gostaramos de esclarecer alguns pontos gerais, que podero ajudar o leitor a

    melhor compreender nossa posio.

    Podemos dizer que nossa metodologia de trabalho compartilha com Florestan

    Fernandes do referencial do marxismo; mas, apesar disso, possumos tambm algumas

    diferenas especficas que valem a pena serem apontadas uma questo de mtodo que s

    tem importncia de ser aventada pelo fato de que a proximidade de nossos referenciais

    poderia criar ambigidades e imputaes que so sempre indevidas nesse tipo de trabalho e,

    sinceramente, indesejveis de nossa parte. Obviamente que, ao fazer isso, no tratamos de nos

    comparar a Florestan Fernandes autor muitssimo superior, com slida formao intelectual

    e incrvel erudio , buscamos apenas esclarecer nossa posio.

    Ao desenvolver suas anlises, Florestan resgata uma imaginao sociolgica e a

    aplicao de um vastssimo e rigoroso repertrio tcnico-metodolgico prprio da sociologia,

    compondo o que Gabriel Cohn chamou de ecletismo bem temperado.3 Procedimento

    metodolgico que no ser encontrado em nossa pesquisa. No queremos, com isso, dizer,

    como se poderia supor, que partimos de outro recorte epistemolgico como, por exemplo, o

    da cincia da histria; mas apenas que buscamos no partir, como tais recortes acadmicos

    geralmente impem, de um posicionamento gnosiolgico a priori.

    Nossa referncia metodolgica pautada pelo resgate do carter ontolgico da obra

    de Karl Marx realizado por Georg Lukcs e desdobrado pelo filosofo brasileiro Jos Chasin

    que extraiu da obra de Marx a teoria das abstraes, posicionando as categorias marxianas

    em um estatuto ontolgico.4 De forma simplificada, podemos dizer que buscamos pesquisar a

    lgica especfica do objeto especfico, evitando imputar pesquisa elementos cognitivos

    para o arrepio dos hermeneutas to em voga.

    Neste sentido, no foi nosso objetivo trabalhar atravs de tipificaes e modelos que

    possibilitem anlises sincrnicas ou aplicar a dialtica para dar conta de elementos

    3 Neste livro [A revoluo burguesa no Brasil] a sua modalidade prpria de ecletismo, temperado (ele prprio, em outro momento, fala de ecletismo balanceado), no est na construo deste ou daquele conceito: est no modo como ele incorpora as deversas vertentes metodolgicas e tericas na prpria anlise. COHN, Gabriel. Ecletismo bem temperado. In: DINCAO, Maria Angela. (org.) O saber militante. So Paulo: Unesp / Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987, p. 51. 4 As abstraes razoveis, relaes gerais ou mais simples das categorias ponto de partida da autntica dmarche cientfica so determinantes ou, em outras palavras, sem elas no se poderia conceber nenhuma formao concreta; todavia, elas no determinam nenhum objeto real, isto , no explicam nenhum grau histrico efetivo de existncia. Mesmo assim, o curso do pensamento abstrato se eleva do mais simples ao complexo, ou seja, as determinaes abstratas conduzem reproduo do concreto por meio do pensamento, e nesse itinerrio que se realiza o mtodo que consiste em se elevar do abstrato ao concreto. Relao metodolgica que subtende, pois, uma complexa metamorfose das abstraes razoveis, pela qual, mantendo a condio de pensamento, isto , de abstraes, deixam de prevalecer como momentos abstratos, para se

    converter em momentos concretos da apreenso ou reproduo dos graus histricos efetivos dos objetos concretamente

    existentes. Um dos aspectos fundamentais dessa transformao compreende a intensificao da razoabilidade dessas

    categorias simples, ou seja, a atualizao das virtudes de sua natureza ontolgica enquanto forma de apropriao ideal dos

    objetos reais. CHASIN, Jos. Marx Estatuto ontolgico e resoluo metodolgica. So Paulo: Boitempo, 2009, p. 129. (Grifos do autor).

  • 14

    diacrnicos, dos quais deduziramos contradies e snteses; menos ainda, partiremos de um

    referencial estrutural funcionalista ou de demais recursos habitualmente utilizados pelos

    socilogos.

    Dentro de nosso marco referencial, poderamos apontar, de forma um pouco mais

    precisa, que nossa pesquisa buscou realizar uma anlise imanente ou gentica dos discursos

    de Florestan Fernandes, articulada, na medida do possvel, a sua gnese e funes sociais. Na

    medida do possvel, porque o ponto essencial de uma anlise com esta o resgate dos

    elementos internos ao prprio discurso analisado como fio condutor dos dois outros

    momentos analticos; o resgate da gnese e das funes sociais sero sempre limitados, de

    forma mais intensa, por uma srie de contingncias, que vo desde a conjuntura da realizao

    do trabalho e a capacidade do pesquisador, at o nvel de avano das pesquisas sobre a

    variedade de temas que compem tais elementos.

    Esta forma especfica de proceder, como j pontuamos, estranha concepo de

    mtodo de Florestan, que, apesar de ampliar continuamente sua ligao com o marxismo,

    sempre tomou como referncia o recorte epistemolgico da sociologia. O que deve ficar claro

    que este fato no impediu que Florestan tenha feito um trabalho de fundamental

    importncia, mesmo em seu momento mais profundamente academicista, apenas sugerimos

    que tal procedimento pode ter levado a possveis distores, que, em muitos casos, ele mesmo

    indicou como veremos na pesquisa.

    Em contrapartida, se, por um lado, Florestan parte de um tratamento metodolgico

    apriorstico para questionar seu objeto de anlise, no geral, no deixa de realizar o caminho

    contrrio, questionando a validade do mtodo atravs da observao do objeto analisado.

    Posiciona-se como arteso de uma sociologia prpria crtica, antes mesmo de ser militante

    que no se limita meramente a aplicar mtodos variados, mas tambm a confeccion-los e a

    extrair deles os instrumentos que atendam s necessidades particulares da realidade social que

    analisa. Tampouco o socilogo foi contaminado pela ojeriza, j mais que expressiva em sua

    poca, da verdade como finalidade cientfica.

    Assim, no geral, Florestan manteve um esforo enorme em colocar o corpo terico que

    desenvolveu ao longo de uma vida umbilicalmente ligada pesquisa e docncia nas

    cincias sociais em funo da realidade social servio da busca dos nexos essenciais desta

    realidade. No -toa que um dos maiores especialistas em ontologia do pas, Jos Paulo

    Netto, afirma que o pensamento de Florestan ontolgico, antes mesmo de sua radicalizao

    momento que trataremos no primeiro captulo da pesquisa , justamente porque o tipo de

    trabalho que ele realizou e estimulou [...] debruou-se sistematicamente sobre os processos

  • 15

    sociais ocorrentes na sociedade brasileira. E foi com referncia a esta pesquisa do real que

    Florestan dedicou-se a apurar o instrumento analtico sociolgico.5

    Que no haja lugar dvida: consideramos as contribuies tericas de Florestan

    Fernandes, no perodo em que analisamos, como uma das melhores que o pensamento de

    esquerda produziu no Brasil em grande medida, podemos afirmar que, neste trabalho, no

    fazemos mais do que dissertar sobre esta contribuio.

    No que diz respeito organizao do trabalho, ele est dividido em duas partes. A

    primeira resultado de nosso esforo para entender os conceitos chaves e o reposicionamento

    de Florestan Fernandes em relao a suas atividades terico-prticas. Para atingir este

    objetivo, buscamos comparar e problematizar as ideias de Florestan em relao s de alguns

    de seus intrpretes e com outros pensadores que abordaram problemas tericos prximos aos

    trabalhados pelo socilogo ao esbater posies tericas diversas, no tnhamos outra

    inteno seno a de demarcar melhor a especificidade do pensamento do prprio Florestan

    Fernandes.

    Obviamente, no esgotamos os vrios aspectos presentes na obra florestaniana; nosso

    interesse foi resgatar apenas os conceitos que nos pareceram mais importantes devida

    compreenso de seu iderio relacionado ao tema de nossa pesquisa: assim, no primeiro

    captulo, problematizamos a chamada ruptura ou radicalizao, realizada pelo autor, como

    ponto de partida para uma re-interpretao do Brasil e que gerou uma renovao de seu

    posicionamento terico. J, no segundo captulo, resgatamos o entendimento do autor sobre a

    modernizao da autocracia no Brasil a autocracia burguesa , principal caracterstica de

    dominao de classe que perpetua as estrutura histricas arcaicas no pas.

    Na segunda parte, acompanhamos o desenvolvimento das concepes tericas de

    Florestan em sua aplicao a problemas concretos procedimentos que acabam constituindo

    seu iderio sobre a abertura poltica, ou melhor, sobre a institucionalizao da contra-

    revoluo. Neste segundo caso, tambm lanamos mos de outros pensadores, mas agora

    cumprindo, principalmente, a funo de contextualizao dos momentos histricos. E aqui,

    vale uma ressalva, ao aproximarmos ou complementarmos a interpretao de Florestan com a

    de outros autores como, por exemplo, Jos Chasin, Ren Dreifuss, entre outros no

    estamos igualando ou pareando as contribuies, mas simplesmente mostrando possveis

    nexos e complementaes entre elas e, mesmo assim, sempre que nos pareceu necessrio,

    5 NETTO, Jos Paulo. A recuperao marxista da categoria de revoluo. IN: DINCAO, Maria Angela. (org.) Op. Cit., p. 294. (Grifos do autor).

  • 16

    tentamos particularizar a posio de Florestan. Por outro lado, chegamos a receber crticas de

    amigos apontando, nesta segunda parte, que no aparece claramente qual a nossa posio

    em relao posio de Florestan Fernandes; fato que tentamos reparar na medida do

    possvel, mas a partir do qual devemos lembrar que, em grande medida, estamos construindo

    uma posio justamente neste processo e vrios dos elementos que trazemos atravs da

    anlise de Florestan ou nos pareceram, de fato, a resposta mais adequada s questes

    abordadas, ou simplesmente no tivemos condies para critic-los. Repito, como objetivo

    principal, tentamos demonstrar a posio de Florestan; este o primeiro passo de qualquer

    crtica positiva e o passo que nos coube de forma bastante limtrofe nesta pesquisa.

    Em linhas gerais, dentro desta segunda parte, o terceiro captulo descrever o processo

    de nascimento, crescimento, desarticulao e reconduo de uma ruptura efetiva com a

    contra-revoluo (ditadura militar), enquanto o quarto captulo demonstra como se d o re-

    arranjo institucional para a democracia dos mais iguais, dizer, a modernizao

    conservadora da contra-revoluo e a manuteno da autocracia burguesa como forma

    especfica de dominao no Brasil pas estruturalmente subordinado e que, por isso,

    concentra absurda e tragicamente no s riqueza e prestgio na mo de poucos, mas tambm

    o poder equivalente necessidade de manter o tempo histrico da Nao atrelado s vontades

    particularistas de seus scios maiores: o grande capital dos pases centrais.

  • 17

    PARTE I: REPOSICIONAMENTO TERICO-PRTICO

  • 18

  • 19

    1. A CORREO SOCIALISTA DA SOCIOLOGIA

    Absolutamente. Continuo marxista. Continuo a defender

    minhas posies de extrema esquerda. Serei sempre um

    radical, mas sei que a gente no chega lua sem mais

    nem menos. (Florestan Fernandes, Revista Tempo

    Social,1995)

    A sociloga Amlia Cohn, ao finalizar sua apresentao de sua organizao de textos

    de Florestan Fernandes que vo de 1968 a 1995, demonstra que o autor perseguia sistemtica

    e metodologicamente as possibilidades histricas de gerao de uma cidadania universal ou

    seja, de uma cidadania que chegasse aos de baixo e conclui seu escrito reforando que o

    socilogo buscava este objetivo: sempre, claro, da perspectiva democrtica, e, de

    preferncia, socialista.6

    Se observarmos o desenvolvimento da obra de Florestan dos anos 70 at sua morte,

    veremos que seria conveniente, para sermos mais fiis ao seu discurso, uma pequena

    alterao: sua perspectiva, neste perodo, foi a do socialismo como principal (seno nica)

    possibilidade de o Brasil (e a Amrica Latina) efetivamente iniciar uma rota democrtica.7

    A democracia em Florestan Fernandes no um valor em si ou uma palavra de ordem

    que deva ser defendida a todo custo; no uma ideia ou formalismo anistrico; mas sim uma

    condio concreta, forma poltica de organizao do poder, que pode assumir realidades

    histricas variveis8 e que nasce e sustentada por relaes estrutural-histricas complexas.

    Este posicionamento leva o autor a uma recorrente adjetivao da democracia, que aparece

    como: burguesa, socialista, restrita, ampliada, real, popular, etc. Isto para fugir de uma falsa

    dicotomia entre o formalismo democrtico e a prtica democrtica efetiva, que se realiza ou

    no historicamente (em sua particularidade) e estruturalmente (em sua universalidade).

    6 COHN, Amlia (org.). Encontros: Florestan Fernandes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008, p. 13. 7 que a Amrica Latina tem uma alternativa histrica, essa alternativa no est no capitalismo, ela no aberta pela democracia burguesa, no aberta pelo imperialismo, no aberta pela internacionalizao da economia capitalista, ela

    aberta exatamente pelo socialismo. FERNANDES, Florestan. Florestan Fernandes, histria e histrias (1981). In: COHN, Amlia (org.). Op. Cit., p. 136. Muitos falavam na necessidade de restaurar a democracia, uma bandeira com a qual eu no convivia bem, porque, para mim, nunca houve democracia no pas. Ib., Uma trajetria de militncia (1991). In: COHN, Amlia (org.). Op. Cit., p. 189. A ideologia serve para esconder, e assim vai se passando de uma fantasia a outra: da democracia eleio livre, ao voto secreto, etc.. Ib., Revista Tempo Social (1995). In: COHN, Amlia (org.). Op. Cit., p. 222. Eu [Florestan Fernandes] sou socialista, portanto acredito que ns vamos construir uma sociedade socialista, que dever comear com uma democracia da maioria, atingir a igualdade com liberdade e desenvolver todos os elementos

    fundamentais da personalidade humana. Trata-se de um socialismo que defende um humanismo uma sntese, uma superao de todas as outras formas de humanismo anteriores. Ib., Uma trajetria de militncia (1991). In: COHN, Amlia (org.). Op. Cit., p. 172. 8 Ib., Pensamento e ao: o PT e os rumos do socialismo. So Paulo: Brasiliense, 1989, p. 70.

  • 20

    Em suas formulaes dos anos 50, ao tratar do tema,9 Florestan j relacionava o

    desenvolvimento democrtico s condies histricas, socioculturais e econmicas. J

    denuncia, ento, a existncia de uma tradio nacional que deveria ser superada e que

    acreditava estar sendo superada , pois se esgotava em seu carter formal e restrito, como fica

    claro em um pronunciamento de 1954 no Ministrio da Educao.

    Restringindo-nos ao essencial, poderamos dizer que o Brasil se

    constituiu em Nao, econmica, cultural e socialmente, em

    condies altamente desfavorveis difuso de ideais democrticos

    de vida poltica. [...] Graas a essa composio estrutural, a maior

    parte da populao, brasileira adulta no tinha participao direta

    na vida poltica, ou nela tinha acesso para exercer atividades

    subordinadas aos interesses das camadas dominantes. Formaram-se,

    em conseqncia, duas orientaes de comportamento, que eram

    sancionadas pela tradio e reforadas por uma longa prtica . De

    um lado, nas camadas populares, a do alheamento e de desinteresse

    pela vida poltica. De outro, nas camadas dominantes, a de que o

    exerccio do poder poltico fazia parte dos privilgios inalienveis

    dos setores esclarecidos ou responsveis da Nao. Uns no identificavam em nenhum ponto os seus interesses sociais como os

    destinos do Estado; outros identificavam-nos demais...10

    No entanto, h pelo menos dois momentos da trajetria de Florestan nos quais a

    democracia aparece no discurso do autor como exigncia nmero um: em 1962, no II

    Congresso Brasileiro de Sociologia,11

    e em um discurso de paraninfo da turma do ano de

    1964, da Faculdade de Filosofia Cincias e Letras da USP, onde diz: nossa dbil revoluo

    burguesa constitui, por enquanto, o nico processo dinmico e irreversvel que abre algumas

    alternativas histricas,12 sustentando que o nico elemento realmente positivo de nossa

    histria recente diz respeito aos pequenos progressos que alcanamos na esfera da

    democratizao do poder.13

    Vale lembrar, contudo, que no primeiro caso (1962), afirma a democracia como

    principal preocupao que cabia a sociedade menos de um ano aps a tentativa de golpe

    contra a entrada legal de Joo Goulart, como vice-presidente ao governo;14

    e, no segundo

    9 Sobre democracia em Florestan Fernandes nas dcadas de 50 e 60 ver: SOUZA, Patrcia Olsen. Os dilemas da democracia

    no Brasil: um estudo sobre o pensamento de Florestan Fernandes. Araraquara: Unesp, em mimeo, 2005. 10 FERNANDES, Florestan. Existe uma crise da democracia no Brasil? (1954). In: Mudanas sociais no Brasil. So Paulo:

    Difel, 1979, pp. 99-100. (Grifos nosso). 11 A expanso da ordem social democrtica constitui o requisito sine qua non de qualquer alterao estrutural ou organizatria da sociedade brasileira [...] em conseqncia, lutar pela democracia vem a ser muito mais importante que

    aumentar o excedente econmico e aplic-lo produtivamente. Ib., A revoluo brasileira e os intelectuais (1964). In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 195. 12 Ibid., p. 192. 13 Ibid., p. 194. 14 Em 1961, aps a renncia do presidente Jnio Quadros cria-se uma tentativa de golpe para impedir que o vice-presidente

    Joo Goulart, que no momento estava em viagem oficial na China, tomasse posse da presidncia. O pas chega a entrar em

    clima de guerra, principalmente, pelos esforos do ento governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que chegou a

    distribuir armas populao, criar os Comits de resistncia democrtica que chegaram em 12 dias a recrutar mais de 100

  • 21

    caso, j temos como pano de fundo o golpe militar definitivo no governo Jango. Para alm do

    clima golpista que predominou em solo brasileiro desde o incio do sculo XX, naquele

    momento, o autor via a possibilidade do Brasil consolidar e aprofundar sua revoluo

    burguesa, iniciada, segundo sua anlise, por volta de 1880 e ainda naquele momento

    inacabada. Para Florestan, o Brasil transitava no sentido de se tornar um pas capitalista

    autnomo, democrtico-burgus. Neste contexto no deixa lugar dvida:

    Isso significa, em outras palavras, que os intelectuais brasileiros

    devem ser paladinos convictos e intransigentes da causa da

    democracia. A instaurao da democracia deve no s ser

    compreendida como o requisito nmero um da revoluo burguesa. Ela ser o nico freio possvel a esta revoluo. Sem que ela se d, corremos o risco de ver o capitalismo industrial gerar

    no Brasil formas de espoliao e iniqidades sociais chocantes,

    desumanas e degradantes como outras que se elaboraram em nosso

    passado agrrio.15

    Esta posio de Florestan perfeitamente fundamentada em suas previses dos anos

    50 e meados dos anos 60, quando acreditava que a importncia de elementos autocrticos

    na organizao poltica do pas tendiam a diminuir gradativamente na constituio do Estado

    brasileiro.16

    Duas dcadas depois, suas concluses sero bem diferentes; passar a diagnosticar que

    o Brasil possui dificuldades congnitas para o desenvolvimento de uma democracia nos

    moldes burgueses. Mas, o que haveria mudado? Seu conceito de democracia?

    O ponto de inflexo desta reflexo sobre a possibilidade de democracia no Brasil a

    publicao de seu ensaio sociolgico A revoluo burguesa no Brasil, em 1975, em que

    examina dialeticamente as artimanhas de uma classe dominante, que fez da condio

    burguesa e do esprito capitalista meios de autoprivilegiamento exclusivo e fatores de

    articulao entre o arcaico, o moderno e o ultramoderno.17

    Todavia, para que Florestan chegue formulao de A revoluo burguesa com

    concluses to opostas a sua compreenso dos anos 50 passando da previso de uma

    democracia como tendncia para a impossibilidade do capitalismo brasileiro ser efetivamente

    democrtico burgus h um processo de ruptura em seu posicionamento intelectual que

    mil voluntrios para lutar a favor da posse de Goulart e transformar o palcio do Governo em um verdadeiro Quartel General. Apesar disso, Goulart, sem ter dimenso da situao no Brasil e demonstrando seu carter conciliatrio, acaba

    realizando um acordo atravs de Tancredo Neves e aceita um parlamentarismo hbrido que entra em vigor em setembro de 1961. No final de 1962, transita-se para o presidencialismo atravs de um plebiscito. Ver: LABAKI, Amir. 1961 a crise da

    renncia e a soluo parlamentar. So Paulo: Brasiliense, 1986. 15 FERNANDES, Florestan. A revoluo brasileira e os intelectuais (1964). In: Ib., Sociedade de classe e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 195. 16 Ib., Existe uma crise da democracia no Brasil? (1954). In: Mudanas sociais no Brasil. So Paulo: Difel, 1979, p. 96. 17 Ib., Dilemas do nordeste (1990). In: Ib., Parlamentarismo: contexto e perspectivas. Braslia: Centro de Documentao e

    Informao Coordenao de Publicaes, 1992, p. 57.

  • 22

    nasce entre os anos 60 e 70, justamente quando a anlise histrico-sociolgica atinge seu

    apogeu, no Brasil, e nos quais sofreu uma perseguio sem quartel.18

    Este processo de ruptura reflete o que o autor chamou de uma crise da civilizao e

    uma crise da cincia. Ao final desta ruptura, Florestan continuar partindo da sociologia

    como plataforma de anlise e interveno da realidade social, porm, longe das amarras que a

    academia passou a representar sob o capital monopolista, pois: s vezes, se o que entra em

    conta uma denncia (expressa ou velada), ele [o socilogo] limitado por sua profisso ou

    por suas vinculaes acadmicas dentro do mundo da universidade.19

    Abre-se, ento, um novo horizonte intelectual que radicaliza sua sociologia crtica20

    ao se aproxim-la continuamente do pensamento marxista.

    1.1 Nos quadros da Ruptura

    Descrever a ruptura que ocorre na obra de Florestan entre os anos 60 e 70 apontar

    uma nova atitude de natureza psicolgica e poltica que rompe com a posio dos perodos

    anteriores, nos quais o socilogo assumia suas responsabilidades profissionais em um nvel

    puramente profissional. Seu posicionamento anterior se devia ao entendimento de que a

    sociedade brasileira evolua para uma revoluo burguesa segundo o modelo francs,21 sob

    a acelerao de renda, do prestgio social e do poder:

    Tratava-se de uma utopia e, o pior, de uma utopia que se achava redondamente errada.

    Tal utopia pode ser facilmente compreendida se se toma em conta

    sua origem acadmica (transferncia de ideias de trabalho por parte

    dos professores de origem europeia e treinados para trabalhar nas

    universidades europeias) e a falta de concomitncia entre papis

    profissionais e oportunidades de participao dos socilogos no

    movimento poltico-social.22

    Nos anos 60, desenvolve-se uma polarizao poltica e ideolgica dos papis sociais

    do socilogo, tendo como patamar uma situao de crise nacional e internacional das

    18 FERNANDES, Florestan. Mudanas Sociais no Brasil. So Paulo: Difel, 1979, p. 20. 19 Ib., Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o "poder institucional". So Paulo: Hucitec, 1977, p. 99. 20 Florestan Fernandes o fundador da sociologia crtica no Brasil. Toda a sua produo intelectual est impregnada de um estilo de reflexo que questiona a realidade social e o pensamento. IANNI, Octavio. Sociologia da sociologia: o pensamento sociolgico brasileiro. So Paulo: tica, 1989. Ver tambm: Ib., (org.). Florestan Fernandes: Sociologia. So Paulo: tica,

    1986. Outro autor que busca explorar esta dimenso crtica do pensamento de Florestan Fernandes Mariosa, mas, no geral,

    no achamos um bom ngulo de anlise, pois tende a destacar um aspecto subjetivo do sujeito. MARIOSA, Duarte. Florestan

    Fernandes e a sociologia como crtica dos processos sociais. Campinas: Unicamp, em mimeo, 2007. 21 Sob as condies do absolutismo real, as classes superiores proprietrias da Frana adaptaram-se intruso gradual do capitalismo, fazendo maior presso sobre os camponeses [...] a modernizao da sociedade francesa teve lugar atravs da

    coroa. Como parte desse processo, desenvolveu-se uma fuso entre a nobreza e a burguesia. MOORE JUNIOR, Barrington. As origens sociais ditadura e da democracia: senhores camponeses na construo do mundo moderno. Lisboa: Cosmo, 1975,

    p.138. 22 FERNANDES, Florestan. Mudanas Sociais no Brasil. So Paulo: Difel, 1979, p. 21.

  • 23

    estruturas internas de dominao de classes. O golpe mais duro deste processo ocorre com o

    AI-5 (1968), que ser determinante na imposio de sua aposentadoria e de sua proscrio de

    trs anos de exlio. No Canad, exilado, realizou anlises comparadas entre vrios pases da

    Amrica Latina, que lhe evidenciaram em que sentido o que acontecia no Brasil era tpico de

    um estgio de incorporao do pas ao capital monopolista. Segundo o autor, esta

    compreenso foi o golpe final que liquidou as ltimas hesitaes e todas as esperanas de

    uma sada de amplitude efetivamente democrtica sob a presso de outras classes (como o

    proletariado, o campesinato ou certos setores insatisfeitos das classes mdias) no caso

    brasileiro;23

    ou seja, a partir dali, v que dentro do capitalismo s existem sadas, na Amrica

    Latina, para as minorias ricas, para as multinacionais, para as naes capitalistas hegemnicas

    e a sua superpotncia.24

    Neste momento, fica claro que a burguesia nacional e internacional no toleraria uma

    democratizao ainda que incipiente, como a que se iniciava no Brasil pr-64 j que, se

    assim o fosse, tal democratizao poderia interferir em sua concentrao de privilgios e

    poder. Ao mesmo tempo, se explicitava a Florestan como a burguesia nacional cumpria a

    funo de cooperao com o capital internacional na luta contra o possvel avano do

    socialismo no Brasil.

    Assim, as classes dominantes sofreavam abertamente, atravs de um duplo golpe dos

    militares em 1964 e 1968 , o desenrolar histrico, deflagrando uma inflexo histrica que

    possibilitar que o socilogo paulista questione suas prticas e funes sociais, reproduzindo

    assim o que Lukcs afirmou em relao ao pensamento francs do incio do sculo XX:

    As inflexes na histria provocam, portanto, necessariamente,

    crises na filosofia. Concepes que, durante muito tempo, pareciam

    indiscutivelmente evidentes, tornam-se de repente problemticas. O

    pensamento, ento, entrega-se tumultuosamente, por toda parte,

    procura de justificaes novas, de possibilidades de modificao,

    de perspectivas inditas.25

    Parafraseando o filsofo hngaro, mas no sentido inverso, como se deu no caso de que

    tratamos, podemos dizer que seria espantoso que o desmoronamento da luta em termos

    democrticos do pr-64, promovido pelos golpes da burguesia, no tivesse provocado

    mudanas no pensamento brasileiro que exibissem todos os caracteres de uma crise. Em

    Florestan, esta crise se expressa esquerda, na busca de superar a circularidade de uma

    23 FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuio para o estudo de sua formao e desenvolvimento.

    Petrpolis: Vozes, 1977, p. 202. 24 Ibid., p. 204. 25 LUKCS, Georg. Existencialismo ou marxismo? So Paulo: Senzala, 1967, pp. 101-102.

  • 24

    investigao sociolgica condicionada pelo passado e repor o raciocnio sociolgico no

    circuito da histria em processo, que se abre para o futuro.26

    Florestan passa a estudar a revoluo socialista da Rssia, da China e de Cuba entre

    as quais, lhe chamou a ateno as peculiaridades da revoluo de 1905, na Rssia 27 e o que

    se evidencia, neste contexto conturbado, so os limites da prpria cincia sob o capitalismo

    monopolista, que entendido como uma poca de crise da civilizao na qual esto em xeque

    as prprias funes sociais da sociologia.

    At agora a Sociologia (e com ela os socilogos) nunca passou de

    uma serva do poder. Mas isso no se deu porque a Sociologia esteja condenada a ser e a manter-se uma cincia burguesa. [...] A Sociologia sofreu, portanto, uma dupla deformao, que nos

    compete corrigir e retificar, para chegarmos a explicaes

    adequadas a mudanas que no podem ser concebidas e efetuadas

    sem conhecimento cientfico prvio da realidade. 28

    O enfrentamento desta crise exigir um reposicionamento do autor, que se expressar

    como ruptura de suas perspectivas e modus faciendi do perodo anterior. Os elementos desta

    ruptura j aparecem de forma bastante clara em 1969, em sua coletnea de escritos publicada

    no exlio: The Latin American in residence lectures.29

    Este momento de ruptura vivido por Florestan j foi bastante abordado dentro das

    anlises realizadas sobre o autor. Na verdade, ele se tornou um ponto central para definir o

    carter do pensamento de Florestan antes e depois de sua sada da USP, um ponto de apoio

    para separar o joio do trigo. Surgem assim recortes para depurar o autor e possibilitar o

    resgate apenas do Florestan que nos convm.

    Para o objetivo desta pesquisa trata-se de um momento incontornvel, primeiro,

    porque em grande medida determina o rumo que sua obra tomar; depois, porque a forma

    como este momento vem sendo analisado tende a rebaixar o carter cientfico da obra de

    Florestan aps sua sada da USP e, assim, reduzir a legitimidade das anlises feitas pelo autor

    nos ltimos 26 anos de sua carreira, perodo no qual nossa pesquisa est inserida.

    Brbara Freitag ser uma das primeiras a tocar no tema de uma diferenciao entre o

    iderio de Florestan antes e depois dos anos 70, em sua fala na Jornada de Estudos de

    Florestan Fernandes na Unesp/Marlia, em 198630

    onde apresentar a ideia de que Florestan

    26 FERNANDES, Florestan. A Sociologia no Brasil: contribuio para o estudo de sua formao e desenvolvimento.

    Petrpolis: Cortez, 1977, p. 102. 27 Ibid., p. 204. 28 Ib., Sociologia, modernizao autnoma e revoluo social (1970). In: Ib., Capitalismo Dependente e Classes Sociais na

    Amrica Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1973, pp. 126-127. 29 Ib., The latin american in residence lectures. Toronto: University of Toronto, 1969. 30 FREITAG, Brbara. Democratizao, Universidade, revoluo. In: DINCAO, Maria Angela. (org.) Op. Cit.

  • 25

    passa da posio de um acadmico-reformista para a de um poltico-revolucionrio. O

    tema tambm ser abordado por Eliana Vera Soares em sua dissertao de mestrado orientada

    por Freitag.31

    Nesta, a autora demonstrar uma conciliao que amenizava o corte de

    Freitag entre o poltico e o acadmico, chegando mesmo concluso de que esta uma

    questo secundria luz das superaes pessoais do autor.

    Outra leitura corrente a de que, com o fim de sua carreira como professor da USP, ao

    ser aposentado compulsoriamente em 1969, Florestan deixa de desenvolver um pensamento

    de carter cientfico ainda que mantenha viva sempre sua vocao cientfica32 e sua

    noo mesma de cincia, antes concebida a partir da articulao de certos procedimentos,

    preocupada com o rigor, capaz de combinar vrias orientaes metodolgicas, enfim, dotada

    de universalidade, esfuma-se;33 neste sentido, o socilogo se adstringiria cada vez mais

    figura de publicista. Dentro desta leitura da professora Maria Arminda do Nascimento Arruda,

    a crise pela qual Florestan passa tem sua preponderncia na esfera psicolgica do autor e se

    exprimir na conciliao entre pensamento cientfico e revoluo e no desencanto nos papis

    profissionais do socilogo, dado que haviam lhe arrancado o centro dos seus investimentos

    pessoais.34

    O prprio Florestan apresenta esta face psicolgica da crise e, de fato, motivos para

    esta crise psicolgica no lhe faltaram, basta retomarmos o prprio argumento de Arruda, na

    medida em que o percurso formativo do autor, inclusive no mbito da constituio de si

    mesmo e de sua identidade social, indissocivel da formao da prpria

    institucionalizao de sua disciplina e, desta forma, a sada desse nicho

    institucional ter significao equivalente, no que se refira reconstituio de si mesmo, ao

    estabelecimento de uma nova relao com a disciplina e de uma nova equao do sentido

    social e poltico de sua prpria atividade.35

    Trata-se do desmoronamento de um projeto de desenvolvimento de sociologia

    moderna que vinha sendo arquitetado h anos e ao qual o autor dedicou-se incessantemente.

    Mas nos parece que, da forma em que a questo formulada por Arruda, sua crise

    psicolgica e a adoo aberta de uma postura poltica maculam sua capacidade de fazer

    cincia, apesar de sua vocao. Teremos que refletir se realmente isso ocorre, se realmente

    31 SOARES, Eliane Veras. Florestan Fernandes: o militante solitrio. So Paulo: Cortez, 1997. 32 Independente do significado atribudo ao desempenho profissional do socilogo e, mesmo, disciplina, Florestan sempre foi um personalidade vocacionada [no sentido weberiano]. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. A sociologia no Brasil: Florestan Fernandes e a escola paulista. In: MICELI, Sergio. (org.) Histria das Cincias Sociais no Brasil, 1995, p. 166. 33 Ibid., p. 165. 34 Ibid., p. 164. 35 Ibid., p. 43

  • 26

    Florestan deixa de combinar vrias orientaes metodolgicas e se este um bom critrio

    para fundarmos o carter cientfico de uma anlise , se a crise psicolgica est apenas ligada

    a questes de investimentos pessoais ou se no se trata tambm da percepo de que esta

    carreira e investimentos pessoais estavam pautados em uma utopia que se achava

    redondamente errada.36

    Ser Lidiane Soares Rodrigues quem recentemente desenvolveu o principal trabalho

    sobre o tema, a partir da no concordncia da autora com a ciso consagrada por Freitag, entre

    o Florestan Fernandes acadmico-reformista e o poltico-universitrio. Seu objetivo foi

    debruar-se sobre a frao da obra do prprio Florestan Fernandes que pensa e, alm do

    mais vislumbrar a historicidade dos diversos perfis a ele atribudos. Para isso, teve em vista

    o eixo institucional, que serve como linha divisria da trajetria do autor; por outro lado,

    como potencial heurstico para sua anlise, a autora parte da problemtica da memria e do

    esquecimento.37

    A anlise da autora buscou corretamente superar a excessiva simplificao apresentada

    na palestra de Freitag, mas, a nosso ver, acaba tendendo a coadunar com uma posio que

    refora a ideia de trauma psicolgico que macula a objetividade cientfica de Florestan.

    Fato que pode ser visto, na medida em que tende a subestimar Florestan quanto ao trato que

    este d ao pensamento marxista e em especial ao de Lenin.

    Em sua leitura, o resgate da obra e prtica leniniana feita por Florestan Fernandes

    quase se limita a uma transferncia, nos termos psicanalticos, a um utilitarismo, na medida

    em que o socilogo, frustrado com a academia, precisaria encontrar outro ponto de ancoragem

    para toda sua bagagem de sociologia aplicada e projeto de vida em suspenso.38

    Tende-se

    assim a reduzir a anlise ao aspecto da personalidade e resolues de conflitos imediatos do

    cientista, na qual Florestan parece ser afetado por uma doena que sempre visou combater, o

    esquerdismo-infantil.

    O foco no aspecto subjetivo ressaltado por Rodrigues compreensvel na medida em

    que um de seus interesses principais em analisar Florestan buscar como se d a

    36 FERNANDES, Florestan. Mudanas Sociais no Brasil. So Paulo: Difel, 1979, p. 21. 37 RODRIGUES, Lidiane Soares. Entre a academia e o partido: a obra de Florestan Fernandes (1969/1983). So Paulo: USP,

    em mimeo, 2006, p. 12. 38 Contudo, estabelece-se um qiproqu na teorizao da teoria, quando se pretende atribuir a racionalidade elaborada a posteriori a um dos agentes coevos aos acontecimentos e erigi-lo em exemplar de previsibilidade sociolgica. E, ao que

    parece exatamente esse o propsito de Florestan Fernandes. Da oscilaes inevitveis, intransponveis ao texto do

    intrprete, seno ao custo de deselegantes transcries, que tributam o sucesso da revoluo socialista por vezes

    mobilizao da massa, por vezes vanguarda profissional, mas, sobretudo ao suposto modelo de cincia de Lnin. Da tambm que, ao estabelecer uma relao causal entre preciso da anlise e o sucesso da revoluo, o autor parea projetar sua

    ambio irrealizada na vertente da Sociologia Aplicada. Com efeito, tendo em vista que se trata de uma trajetria bem

    sucedida no que tange interveno, tudo se passa como ela desse vida quela que era a pretenso do prprio autor. RODRIGUES, Lidiane Soares. Op. Cit., pp. 57-58.

  • 27

    recomposio do perfil intelectual do autor. No entanto, para delinear o desdobramento de

    perfis dos anos 60 em diante , acaba estabelecendo quadros que reduzem aspectos muito

    importantes: diminui-se o vnculo anterior com o pensamento marxista; aponta um

    distanciamento muito grande entre A revoluo burguesa e suas obras anteriores, inclusive a

    obra do exlio.

    O que parece servir de pressuposto para a anlise de Rodrigues e que tem sua principal

    formuladora, em relao obra de Florestan, na sociloga Maria Arminda, a dissociao

    entre a dimenso cientfica e a dimenso poltica. Concepo amplamente adotada na

    academia e que tem sua base na ideia de neutralidade cientifica, de clara inspirao

    weberiana.39

    Em ltima anlise, com esta posio nada neutra, acaba-se em grande medida

    rejeitando apenas parcialmente a posio inicial de Freitag, j que parece que h uma

    manuteno subliminar da dicotomia cincia/poltica.

    Este posicionamento, que distingue o poltico do acadmico, acaba por ganhar uma

    dimenso muito importante porque tomado por Arruda e outros autores que analisam os

    intelectuais brasileiros como, por exemplo, Daniel Pecault para diferenciar a postura

    intelectual no s de Florestan Fernandes, mas de toda a chamada Escola Paulista de

    sociologia, por ele conduzida, e que instaura o estilo paulista como verdadeiro paldio da

    cincia, entre os anos 50 e 60. Escola esta que se contrapunha ao pensamento isebiano que

    dava base ao nacional-populismo, vinculado ao partido comunista e ao governo populista

    de Joo Goulart. 40

    Ora, Florestan, ao romper com a neutralidade cientfica, rompe com a escola que

    ele mesmo doutrinou, deixa de ser um cientista e avana no sentido da poltica, o que poderia

    resultar, se radicalizarmos este raciocnio, em um rebaixamento da preciso do seu

    pensamento a partir de ento. O interessante que esta ruptura e retomada crtica que

    Florestan realiza, em relao ao seu projeto anterior, rebaixa a prpria escola paulista de

    sociologia; escola esta que fornece subsdio terico para boa parte destes analistas que

    citamos acima.

    39 Weber se dispe a construir um instrumento neutro de analise e acaba por produzir uma arma ideolgica que longe de ser neutra torna-o capaz de descartar-se do adversrio ideolgico sem mesmo lhe dar ouvidos, e num terreno da prpria escolha de Weber. [...] no pode haver nenhuma metateoria nem mesmo aquela dos alegados tipos ideais que no esteja profundamente arraigada em um conjunto de proposies tericas inseparavelmente ligadas a determinados valores sociais. MSZROS, Istvn. Filosofia, ideologia e cincia social: ensaio de negao e afirmao.So Paulo: Ensaio, 1993, p. 34. 40 A elite intelectual paulista no sentia entusiasmo em associar-se criao ideolgica dos isebianos ou pregao da vulgata marxista, e menos ainda em lanar-se na aventura da marcha para o povo, ou, ainda: embora seja verdade que o estilo terico universitrio de reflexo esteja presente mais em So Paulo do que no Rio [...]. PCAULT, Daniel. Os intelectuais e a poltica no Brasil: entre o povo e a nao. So Paulo: tica, 1990, p. 173 e p. 205.

  • 28

    Rodrigues avanar neste sentido, buscando demonstrar que no s o autor passa a

    atuar de forma poltica, mas tambm realiza uma leitura do passado viciada por sua nova

    postura poltica; o que vemos em sua anlise de A gerao perdida:41

    Deslocando o referencial especificamente cientfico na origem dos

    posicionamentos pretritos, para a apreenso de seu significa do

    especificamente poltico, que passa a interess-lo no presente,

    considera suas relaes polticas nos anos cinqenta e sessenta.42

    O resultado prtico destas colocaes assumir que Florestan verga os fatos concretos

    atravs do mecanismo de constituio de sua prpria autobiografia, pois evidente que uma

    das dimenses da memria consiste em construir o passado no presente, atravs, entre outros

    recursos, da reconstituio autobiogrfica.43

    Obviamente concordamos que pode haver distores nas ideias que as pessoas fazem

    de si prprias seja no tempo presente, ou no tempo passado. Constatao inclusive feita por

    Marx:

    Do mesmo modo que no se julga o indivduo pela ideia que de si

    mesmo faz, tampouco se pode julgar uma tal poca de

    transformaes pela conscincia que ela tem de si mesma.

    preciso, ao contrrio, explicar essa conscincia pelas contradies

    da vida material, pelo conflito que existe entre as foras produtivas

    sociais e as relaes de produo.44

    Mas temos que atinar para a possibilidade de que o indivduo possa estar fazendo um

    julgamento condizente com a realidade na qual est ou esteve inserido. Para refutar o mito da

    ruptura Rodrigues nega que o ano de 1969 seja um divisor de guas efetivo na vida de

    Florestan Fernandes, apesar do autor insistentemente, como ela prpria afirma, pontuar este

    ano. E adverte: Portanto, os cuidados do intrprete devem ser redobrados as balizas em sua

    trajetria devem ser matizadas, tanto mais suas elaboraes autobiogrficas sedimentem a

    marca da aposentadoria compulsria.45

    Pelo que j foi apresentado em relao ao golpe que o autor recebe em vrios planos

    de sua vida, ao ter sido aposentado compulsoriamente e ver um projeto de vida desmoronar, e

    a constatao prtica de que realmente houve mudanas substanciais a partir deste perodo em

    sua produo, nos parece importante levar a srio este marco pontuado por Florestan. No

    como uma diviso unilateral como veremos, haver muitas continuidades de um momento

    41 O texto compe o livro: FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuio para o estudo de sua formao e

    desenvolvimento. Petrpolis: Vozes, 1977. 42 Em: RODRIGUES, Lidiane Soares. Op. Cit., p. 102. 43 Ibid., p. 91. 44 MARX, Karl. Contribuio crtica da economia poltica. So Paulo: Expresso popular, 2007, p. 46. 45 RODRIGUES, Lidiane Soares. Op. Cit., p. 91.

  • 29

    para o outro , mas como um reposicionamento geral; e, ao se reposicionar, nada mais normal

    que refletir criticamente sobre sua posio anterior, o que no implica necessariamente em

    distores.

    Um exemplo disso, que, apesar de transcender ao nosso objetivo, parece conveniente,

    que algumas ideias apresentadas por Florestan sobre as ambies polticas da gerao

    perdida ressoam em uma carta que s pode ser considerada insuspeita de distores

    autobiogrficas, pois se trata da primeira carta do autor para Antonio Candido em 1942,

    quando Florestan acabara de entrar na USP. Nada modesto este rapaz de 22 anos escreve:

    Meu caro Antonio Candido:

    Perdoe-me a intrometida intimidade, pois penso no nos

    conhecermos pessoalmente. Entretanto, ela se justifica por dois

    motivos: primeiro, porque representamos a nova gerao. Estamos

    no mesmo plano, dentro do tempo, apesar de voc, neste caso, ser

    uma espcie de irmo mais velho. Representamos o novo esprito de

    trabalho, encaramos tudo sob novos aspectos, mais objetiva e

    humanamente. Segundo, porque encarna um processo admirvel e

    justo de crtica, que eu defendo e lamentava j no existir entre ns.

    [...] Era uma condio social e poltica. Contudo a passagem est se

    processando. [...]

    De uma coisa tenho certeza: ns derrubaremos o esprito

    dominante, de convencionalismo e pseudo-fecundidade, com menos

    tempo que todos os figures do passado e do presente, precisaram

    para erigir esta monumental estupidez do esprito que o

    bizantinismo consciente.

    Frente a projetos to ambiciosos de juventude e sabendo como Florestan desenvolve

    sua carreira de forma to colossal,46

    no nos parecem estranhas as lamentaes que realiza ao

    perceber que todo o esforo de uma vida estava pautado em uma viso errada.47 O que o

    autor verifica, frente ao golpe militar, que todo o esforo que sua gerao teve para cumprir

    a derrubada do esprito dominante, dos figures do passado e do presente, no foi realizado:

    Depois de abafar e reprimir por mais de quatro sculos qualquer

    florescimento da inteligncia crtica e criadora, o pensamento

    conservador lograra varrer o terreno e impor, no sabemos por

    quanto tempo, o seu padro mortio de entreguismo intelectual e de

    covardia moral. Uma vitria s avessas, que reabria o pas s

    46 Tendo, como ponto auge, a implantao de um projeto de modernizao da sociologia que um projeto de modernizao da cultura e, em ltima anlise, do pas. 47 Parecia que estvamos mergulhados em um forte processo espontneo de crescimento institucional da cincia, que nos levaria gradualmente a passos maiores. Ora isso no sucedeu; nem poderia suceder. A minha viso estava errada! [...]

    preciso liberar o elemento crtico em planos mais profundos, que afetam a arte, a filosofia e a cincia importadas; e,

    principalmente, que diz respeito ao engate da produo cultural com a luta de classes, com a transformao revolucionria do

    mundo. FERNANDES, Florestan. A domesticao dos intelectuais (roteiro para exposio na PUC, RJ), datilografado e corrigido, 18 mar. 1981. Acervo Especial Florestan Fernandes. Colesp-UFSCar Fundo Florestan Fernandes.

  • 30

    correntes avassaladoras e sempre revigoradas do colonialismo

    cultural.48

    Obviamente que Florestan, ao resgatar todo o desenvolvimento desta gerao,

    diferencia que uma gerao perdida no significa uma gerao derrotada e o fato de que no

    se tratou de um esforo intil:

    No diria que a nossa presena tenha sido intil: ela no foi e por

    isto se justifica este ensaio. No entanto, a nossa presena

    transcendeu s possibilidades da histria, na medida em que a

    sociedade brasileira precisava de ns, contudo, ao mesmo tempo,

    no tinha como livrar-se de estruturas de poder obsoletas, que

    entraram em conflito frontal com as nossas tentativas de um

    audacioso salto para a frente.49

    No nos cabe desdobrar aqui uma anlise deste tipo, apenas queremos deixar

    registrado que possvel, e bastante provvel, que Florestan no esteja simplesmente

    remodelando o passado de acordo com o presente, mas olhando o passado de uma posio que

    s pode ser possvel naquele momento. Provavelmente pode haver imputaes e distores

    prprias da memria, o que no, necessariamente, reduz a validade desta releitura de

    Florestan. H, de fato, um paradoxo em seu arrependimento de no ter sido mais radical e a

    compreenso amarga de que no lhe era possvel s-lo, mas no uma incoerncia. Parece que

    ao retomar todas estas questes, aps ter dado um salto no escuro ao voltar ao Brasil, em

    1972, Florestan tenta iluminar, com os erros do passado, o caminho adequado ao futuro,

    dentro de sua situao histrica concreta de ento.

    48 FERNANDES, Florestan. A gerao perdida (1976). In: Ib., A sociologia no Brasil: contribuio para o estudo de sua

    formao e desenvolvimento. Petrpolis: Vozes, 1977, p. 215. 49 Ibid., p. 213.

  • 31

    Figura 2 Primeira pgina da carta enviada para Antonio Candido. So Paulo, 04 fev.1942. Acervo Especial Florestan Fernandes. Colesp-UFSCar Fundo Florestan Fernandes.

    1.2 Dupla condio

    Apesar das discusses j existentes sobre o carter e a amplitude desta ruptura, nos

    parece que a principal e mais importante explicao sobre o tema ainda cabe ao prprio

    Florestan Fernandes. O autor, ao buscar responder crise social de sua poca, se questiona: o

  • 32

    que significa para ns, essa debilidade congnita, que converte o socilogo, automaticamente

    e inevitavelmente, em intelectuais orgnicos da ordem?.50

    Pergunta e resposta que nascem atravs de uma combinao das atividades prticas

    com o trabalho acadmico, pelo qual consegue eliminar o impacto da condio burguesa e

    do radicalismo democrtico de sua prpria reflexo sociolgica.51 Desta forma, amplia

    suas perspectivas analticas na medida em que se desvincula dos limites de sua posio

    anterior, operando a passagem de um radicalismo intelectual (ou radicalismo puramente

    subjetivo)52 para um intelectualismo radical. Em que o primeiro, pautado pela conciliao do

    esprito crtico com as vantagens da posio de classe, no melhor dos casos

    cindia o intelectual crtico em dois qualquer que fosse a sua identificao com e a sua participao nos movimentos radical -

    democrticos ou socialistas e sofreava nele a compulso propriamente revolucionria de desligar -se da ordem existente, para

    romper definitivamente com ela e para lutar contra ela, como e

    enquanto intelectual. Ele ficava condenado a um inconformismo

    contido e alimentado pela ordem existente, alm do mais

    concentrado no plano especfico da imaginao criadora e do

    pensamento inventivo.53

    A resoluo deste conflito se d pela adoo radical de uma dupla condio,54

    que

    balizar o percurso deste intelectualismo radical; ou seja, a condio de socilogo e a

    condio de socialista. Posicionamento que ultrapassa assim uma preocupao acadmica,

    que acredita poder se aproximar de um posicionamento neutro, realizando uma dicotomia e

    oposio entre cincia e ideologia; desta forma que, para Florestan Fernandes, a sociologia

    passa, pois, de autoconscincia crtica condio de arma de combate.55

    50 FERNANDES, Florestan. A gerao perdida (1976). In: Ib., A sociologia no Brasil: contribuio para o estudo de sua

    formao e desenvolvimento. Petrpolis: Vozes, 1977, p. 204. 51 Ibid., p. 202. 52 Os mais ntegros protegeram-se atravs de radicalismo puramente subjetivo (isto , sem suporte institucional, j que no se poderia apoiar na estrutura e no funcionamento da universidade brasileira; e sem suporte de massa, j que no existia

    qualquer movimento poltico-social suficientemente forte para servir de contrapeso presso conservadora). Ib., Mudanas Sociais no Brasil. So Paulo: Difel, 1979, p. 22. 53 Ib., A gerao perdida (1976). In: Ib., A sociologia no Brasil: contribuio para o estudo de sua formao e

    desenvolvimento. Petrpolis: Vozes, 1977, p. 241. 54 Apesar de Florestan afirmar que esta dupla condio j estava presente em seu iderio desde 59 s teremos a concretizao

    desta posio de maneira radical (ou completa) no final dos anos 70: Este livro rene ensaios que refletem o esprito da poca em que foram escritos: entre 1959 e 1962 [...] O Autor, naquela poca, como nos dias que correm, vinculava sua

    dupla condio de socilogo e de socialista uma ampla viso dos problemas tericos, empricos e prticos da sociologia como

    cincia, pois, na verdade, a sociologia no valeria uma missa se no fosse possvel associar a pesquisa sociolgica

    revoluo democrtica na sociedade brasileira. Ib., Prefcio segunda edio (1976). In: Ib., A sociologia numa era de revoluo social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 9. Outros autores afirmam a radicalidade do pensamento de Florestan

    Fernandes bem antes, j no perodo dos anos 50 como Carlos Guilherme Mota: A radicalizao de Florestan Fernandes se processa, de fato, na dcada de 50, sobre tudo nos ltimos anos, quando passa a realizar estudos no mais de acentuanda

    orientao funcionalista. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira (1933-1974). So Paulo: 34, 2008, p. 220. 55 FERNANDES, Florestan. A natureza sociolgica da sociologia. So Paulo: tica, 1980, p.17.

  • 33

    Foi pela prpria incoerncia que observava entre os fatos concretos que ocorriam no

    Brasil e na Amrica Latina e a produo cientfica das cincias sociais de ento, que Florestan

    conclui que incorporar sociologia sua ideologia socialista no lhe limitaria cientificamente,

    mas, ao contrrio, lhe ampliava a capacidade de apreenso da realidade.

    No diria que a infiltrao ideolgica e utpica inerente ao

    socialismo produza um saldo negativo ou uma reao bloqueadora

    na interpretao sociolgica do capitalismo dependente e de suas

    vinculaes com o imperialismo. Isso s ocorre quando essa

    infiltrao empobrece o horizonte intelectual ou enrijece a

    perspectiva de observao do socilogo, graas aos influxos de um

    dogmatismo especulativo a que o socilogo no tem direito,

    especialmente se for um socilogo socialista. Tudo isso fica muito

    claro quando se considera que no so os socialistas que querem

    calar ou deturpar as verdades que a sociologia crtica pode

    descobrir. Os socialistas distinguem o momento intelectual do momento poltico no que se refere ao conhecimento cientfico. Embora estejam empenhados em passar de um a outro e de

    estabelecer uma relao dialtica entre ambos, para eles o

    conhecimento sociolgico s possui valor se for obtido dentro dos

    cnones da cincia e puder ser submetido ao teste da prtica, pelo

    qual se determina seu grau de verdade, de capacidade de

    transformar o mundo, ou o grau da reviso que se faz necessria. O que pressupe um vnculo recproco entre cincia, ideologia e

    utopia, que no aparece nem pode existir onde a imaginao

    sociolgica no seja intrinsecamente revolucionria . 56

    Este intelectualismo radical busca vincular o rigor cientfico e elementos positivos da

    sociologia utopia e ideologia do socialismo57

    que no ficassem circunscrito ao universo

    burgus da defesa da ordem, dizer: realiza uma correo socialista do pensamento

    sociolgico.58

    56 Ib., A sociologia no Brasil: contribuio para o estudo de sua formao e desenvolvimento. Petrpolis: Vozes, 1977, p.

    205. 57 Uma leitura interessante sobre ideologia e utopia retirada a partir do texto do prprio Florestan a de Gabriel Cohn ao

    expressar: Nesse ponto, preciso ler diretamente a brilhante anlise que Florestan faz do significado do liberalismo na construo da sociedade nacional no sculo XIX, ao oferecer aos estamentos senhoriais as referncias utpicas que lhes

    permitem projetar aspiraes e vises da sociedade no futuro, em contraste com as referncias ideolgicas que ela tambm

    oferece, e que alimentam a conservao no plano econmico. COHN, Gabriel. Florestan Fernandes - A revoluo burguesa no Brasil. In: MOTA, Loureno Dantas (Org.). Introduo ao Brasil - um banquete nos trpicos. So Paulo: SENAC, 1999,

    pp. 400-401.

    Mas podemos ler tambm que Florestan manter sua compreenso de utopia e ideologia de acordo com a compreenso de

    Mannheim, ou seja: ideologia o conjunto das concepes, ou legitimaes, ou reproduo, da ordem estabelecida. So todas aquelas doutrinas que tm um certo carter conservador no sentido amplo da palavra, isto , consciente ou

    inconscientemente, voluntria ou involuntariamente, servem manuteno da ordem estabelecida. Utopias, ao contrrio, so

    aquelas ideias, representaes e teorias que aspiram uma outra realidade, uma realidade ainda inexistente. Tm, portanto,

    uma dimenso crtica ou de negao da ordem social existente e se orienta para sua ruptura. LWY, Michel. Ideologias e cincia social: elementos para uma anlise marxista. So Paulo: Cortez, 1991, p. 13. 58 FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a revoluo cubana. So Paulo: Expresso popular, 2007, p. 113.

    Lemos em outro texto: Impunha-se unificar os vrios componentes da atitude poltica inerente ao radicalismo intelectual o puritanismo intelectual, o inconformismo, a vocao para uma ao intelectual crtica, a identificao com a revoluo

    democrtica e a valorizao das massas populares como fator histrico convertendo-a, portanto, no substrato estrutural e dinmico de um intelectualismo de negao da ordem burguesa e, por conseguinte, em um intelectualismo radical. Ib., A sociologia no Brasil: contribuio para o estudo de sua formao e desenvolvimento. Petrpolis: Vozes, 1977, p. 243.

  • 34

    Um exemplo do contraste entre o radicalismo intelectual e seu intelectualismo radical

    se expressa claramente atravs de sua crtica ao conceito autoritarismo, na medida em que

    explicita a diferena entre os horizontes intelectuais dos cientistas da ordem e dos que se

    pautam pela superao da ordem.

    Assim, segundo Florestan, o conceito de autoritarismo foi abusivamente utilizado na

    sociologia e nas cincias polticas, representando uma perplexidade ideolgica pela qual os

    cientistas sociais realizam muitas manipulaes repressivas da autoridade (aparentemente

    legtimas ou claramente ilegtimas) com o objetivo

    de confundir os regimes de transio socialista com o fascismo; e

    uma tendncia generalizada de estabelecer confuses sistemticas,

    pelas quais: a) regime autoritrio seria equivalente de democracia forte e o regime sovitico (e todas as variantes) podiam ser postos no mesmo saco do totalitarismo. [...] O que

    permite aplicar o termo autoritarismo em conexo com qualquer

    regime, em substituio ao conceito mais preciso de ditadura.59

    Com este tipo de anlise, o cientista burgus mantm-se em seu horizonte intelectual

    de defesa da ordem, afirmando idealmente a sociedade democrtica como perfeita; mais

    precisamente, trata-se de uma definio formal perfeita e, ao mesmo tempo, exemplar e

    apologtica que acarreta no s crtica como o repdio da democracia popular. Para

    estes intelectuais:

    A massa neutraliza a ao criadora das elites [...] pe o estmago

    em primeiro plano (como afirma Rickert) e desloca a razo,

    destruindo-a. [...] Trata-se de condenar a democracia popular, de

    demonstrar que ela intrinsecamente aberrante e corrompida [...]

    Portanto, a cincia poltica fecha-se dentro do universo burgus e

    introduz o elemento autoritrio na substncia mesma do raciocnio cientfico.60

    Florestan desmascara assim o quanto as cincias que se pretendem neutras se valem de

    perverses lgicas para a defesa, no plano ideolgico, da afirmao da ordem, ao afirmarem a

    democracia burguesa como nica possibilidade efetivamente democrtica.

    Se acompanharmos a trajetria de Florestan desde os anos 50, quando conclui sua

    formao e assume na prtica a cadeira de Sociologia I,61

    veremos que o autor j vinha,

    59 FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo. So Paulo: Hucitec, 1979, pp. 5-6. 60 Ibid., pp. 10-11. 61 Florestan assume na prtica a cadeira de Sociologia I com a ida de Roger Bastide para Frana em 1954, porm

    formalmente alcanar o patamar de catedrtico apenas em 1964. Quanto ao marco final do que considero o perodo de formao, localizo-o no ano de 1953, entendido como o momento em que Florestan atinge a maturidade profissional ou institucional e a maturidade intelectual. De fato, em 1953, ele defende sua tese de livre-docncia, alcanando-se aos nveis

    superiores da hierarquia da carreira acadmica. Em seguida, passa a dirigir um programa de pesquisa no mbito da cadeira de

    sociologia I. Entre de 1953 e 1954, portanto, Florestan chega maturidade enquanto socilogo academicamente consagrado,

    atuando como diretor de pesquisa, chefe de equipe e formador de discpulos. GARCIA, Sylvia Gemignani Garcia. Destino mpar: sobre a formao de Florestan Fernandes. So Paulo: 34, 2002, p.13

  • 35

    paulatinamente, radicando uma posio de interveno social e, principalmente, passa a

    pensar o processo de revoluo burguesa no Brasil que nascia no mago de um projeto de

    modernizao para a sociologia. A crise psicolgica de longa durao pela qual o autor

    passou desde o incio dos anos 70, nos parece, em grande parte, reflexo da convulso social

    que o faz refletir sobre suas posies e atividades, pondo em cheque suas articulaes e laos

    sociais, bem como, em grande parte, sua compreenso ligada a tais laos e articulaes

    sociais.

    Nos limites do que aqui cabe ao nosso tema, essa reflexo recai tambm sobre a

    possibilidade de Brasil moderno e, portanto, sobre sua anlise cientfica desenvolvida at

    ento junto s instituies que lhe deram suporte, se estendendo prpria sociologia que

    colocada em questo.

    A crise surgiu entre 1969 e 1972, em Toronto (onde, alis, ela no

    deveria ter lugar: para mim a oportunidade era daquelas que so

    vistas como o coroamento de uma carreira de nvel internacional mas foi exatamente essa oportunidade que funcionou como o

    equivalente do poo em que ficou o jovem Jos; sa de l

    transformado e dentro de uma crise de longa durao, da qual ainda

    no emergi). Para ficarmos no essencial: a sociologia perdeu o seu

    encanto, para mim.62

    Como sabemos, sua resposta a convulso social condensada em A revoluo

    burguesa no Brasil, um ensaio que revela mais que um carter inacabado e pouco

    sistemtico de exposio. A advertncia sobre os limites da obra evoca tambm, com um

    travo amargo, as circunstncias de sua composio, que impuseram a ela o seu formato

    fragmentado, de projeto interrompido mas no abandonado; assim como haviam feito com o

    prprio ofcio do autor.63 A obra corporifica no s a expulso de Florestan da USP, como a

    recusa consagrao acadmica no exterior, ao decidir abandonar a Universidade de

    Toronto e voltar sem perspectivas acadmicas para o Brasil. Sua nica perspectiva no

    momento era: por mim no passar!

    Todo esse perodo de crise fermentativa levou-me a frustraes

    demasiado profundas e a decepes que no podem ser corrigidas

    ou superadas. Quando algum se lana frente e descobre que no

    tem cobertura, a verdade sobre as instituies e os seus tipos

    humanos, os movimentos polticos e sua conscincia sobem tona.

    O Brasil se revelou melhor para mim nesse longo perodo de

    amargura sem pessimismo e de luta por teimosia (como um limite

    62FERNANDES, Florestan. A natureza sociolgica da sociologia. So Paulo: tica, 1980, p. 13. 63 COHN, Gabriel. Florestan Fernandes - A revoluo burguesa no Brasil. In: MOTA, Loureno Dantas. Op. Cit., p. 395.

  • 36

    puro da vontade de proclamar aos quatro ventos: por mim a

    ditadura no passar!).64

    Teimosia e vontade que revelam certa dose de romantismo, na medida em que

    se atira contra a ditadura por uma teimosia no limite puro da vontade. Ora, esta posio

    receber rapidamente uma correo amarga da realidade, que se configurar pelo vcuo

    institucional e poltico, vcuo que parece enterrar qualquer romantismo que possa trazer de

    seu momento anterior, de radicalismo intelectual;65

    as iluses foram perdidas, pois

    o socilogo profissional converteu-se numa pessoa que luta mais

    para sobreviver e ganhar a vida enfim, para preservar e reforar sua condiozinha de classe mdia do que pela verdade inerente natureza cientfica e, portanto, revolucionria da explicao

    sociolgica [...] os controles externos e a represso da imaginao

    criadora corroem tanto a sociologia como cincia, quanto os papis

    intelectuais construtivos do socilogo. 66

    Assim, veremos a consolidao de uma nova posio do autor, que ter como ponto

    alto deste novo posicionamento os textos de preparao para aulas no perodo no qual o

    socilogo passa a ser professor do Sedes e depois da PUC/SP, onde apresentar questes

    fundamentais e de forma mais ampla e articulada do que nos escritos e entrevistas casuais da

    pequena imprensa a que teve acesso na poca (1976-1982). Desta forma, em um conjunto de

    quatro livros,67

    surgiu a consolidao de questes nevrlgicas para sua atuao posterior, tais

    como: a superao do momento anterior, uma anlise importante sobre o momento chave em

    que vive, as perspectiva para superao daquela quadra histrica e um referencial para o

    futuro a partir do socialismo.

    Neste passo, sua melhor contextualizao do esgotamento da sociologia profissional se

    d em A Natureza sociolgica da sociologia. Obra fundamental na qual sistematiza a situao

    histrica da sociologia e do socilogo, demonstrando que sua nova posio no decorria

    apenas de uma crise psicolgica ou, como ele prprio tentava deixar claro, no se tratava de

    invocar-se a questo de ressentimento, que a crtica conservadora lanou contra mim.68 O

    que temos a fundamentao histrica da dificuldade (que beira a impossibilidade por

    64 FERNANDES, Florestan. A natureza sociolgica da sociologia. So Paulo: tica, 1980, p. 14. 65 Os esforos despendidos foram bem empregados e as iluses que eles envolviam, realistas (algumas) ou romnticas outras, so inevitveis, quando se quer fazer algo partindo-se do ponto zero. Ib., A sociologia numa era de revoluo social. Rio de Janeiro: Zahar, 1976, p. 9. 66Ib., A natureza sociolgica da sociologia. So Paulo: tica, 1980, p. 13. (Grifos do autor). 67 So eles: Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo; Da guerrilha ao socialismo: a revoluo cubana; A natureza sociolgica da sociologia; e, A ditadura em questo. 68 FERNANDES, Florestan. A sociologia no Brasil: contribuio para o estudo de sua formao e desenvolvimento.

    Petrpolis: Vozes, 1977, p. 142. interessante que mesmo o DOPS atribua uma questo psicolgica para explicar a posio

    subversiva do autor. Em um relatrio do DOPS sobre Florestan, l-se: Dotado de ambio sem limites, desleal, despatriado, amoral e revoltado com sua humilde origem (filho de lavadeira). Ver: CERQUEIRA, Laurez. Florestan Fernandes: vida e obra. So Paulo: Expresso Popular, 2004, p. 104.

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    momentos) das cincias sociais autnomas sob o capital monopolista. Trata-se de um esforo

    que vai esteira de Paul Baran e Paul Sweezy, quando questionam as cincias sociais norte-

    americana nos anos 60: Como podemos explicar o paradoxo de que cientistas sociais mais

    numerosos e mais bem treinados tenham falhado cada vez mais ostensivamente na explicao

    da realidade social?.69 Contudo, ao mesmo tempo, Florestan se colocar tambm em uma

    posio que vai de encontro ao procedimento de Ernest Mandel70

    em seu Tratado de

    Economia Marxista,71

    na medida em que retoma a tradio das cincias sociais, no

    necessariamente marxistas, para constituir uma viso marxista do objeto analisado. Ou seja,

    trata-se de um processo de negar as cincias sociais contemporneas, por um lado, e, por

    outro, reafirmar as contribuies positivas das cincias sociais em geral, ainda que de forma

    tensa, ou melhor, polarizada.72

    Assim, como os autores citados acima (e os citando), a resposta de Florestan no nasce

    apenas da crtica do horizonte liberal, mas tambm passa pela crtica de certas posies

    marxistas. dizer, esta superao do horizonte liberal, predominante nas cincias sociais,

    exigir que o autor desenvolva uma nova posio como intelectual-socialista no dogmtico e

    invulgar.

    Nos quadros deste intelectualismo radical, o que vemos que Florestan Fernandes se

    articulou atravs de um esforo terico-prtico no qual, por um lado, tratava de realizar uma

    profunda reflexo terica no sentido de resgatar os elementos estruturais e histricos da

    realidade social e, por outro, tais reflexes estrutural-histricas dialogavam const