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A ASCENSÃO DA CLASSE CRIATIVA Richard Florida Tradução de ANA LUIZA LOPES E SEU PAPEL NA TRANSFORMAÇÃO DO TRABALHO, DO LAZER, DA COMUNIDADE E DO COTIDIANO L&PM EDITORES

FLORIDA, A Ascensão Da Classe Criativa_12 Introdução

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Introdução Richard Florida em português

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Page 1: FLORIDA, A Ascensão Da Classe Criativa_12 Introdução

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A Ascensão dA clAsse criAtivA

Richard Florida

Tradução de AnA LuizA Lopes

e seu papel na transformação do trabalho, do lazer, da comunidade e do cotidiano

L&PM EDITORES

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A transformação do cotidiano l 1

CAPÍTULO 1

A transformação do cotidiano

Alguma coisa está acontecendo,mas você não sabe o que é. Sabe, Mr. Jones?

Bob Dylan

Imagine duas situações. Primeiro, vá a 1900, escolha um homem qualquer e leve-o até a década de 1950. Em seguida, escolha um sujeito da década de 1950 e transporte-o para os dias de hoje à la Austin Powers. Quem

você acha que sentiria mais a mudança?À primeira vista, a resposta parece óbvia. Uma pessoa da virada do sé-

culo XIX para o XX que caísse de paraquedas em 1950 ficaria boquiaberta com as maravilhas tecnológicas à sua volta. Em vez de carruagens puxadas por cavalos, ela veria ruas e estradas abarrotadas de carros, caminhões e ônibus. Nos centros urbanos, gigantescos arranha-céus se enfileirariam no horizonte e pontes descomunais cruzariam águas que, antes, apenas em-barcações podiam transpor. Máquinas voadoras desfilariam pelo céu levan-do pessoas de um continente a outro em horas em vez de dias. Dentro de casa, o primeiro viajante do tempo teria que lidar com um ambiente novo e estranho, repleto de aparelhos elétricos: rádios e televisores que emanam sons e até imagens, refrigeradores que mantêm a comida gelada, máquinas que lavam roupas automaticamente e muito mais. Um novo mercado de proporções nunca vistas, com várias opções de comidas desenvolvidas tec-nologicamente – legumes congelados para guardar na geladeira e café so-lúvel, para citar alguns –, tornaria obsoletas as idas diárias ao mercadinho. A própria expectativa de vida seria radicalmente diferente: doenças outrora fatais poderiam ser evitadas com uma injeção ou curadas com um compri-mido. As transformações materiais do ambiente – a velocidade e a potência dos aparatos do dia a dia – seriam extremamente desnorteantes para esse viajante do tempo.

Já o homem de 1950 não demoraria muito para se adaptar à paisagem dos dias de hoje. Embora nos seja cara a ideia de que vivemos numa era de

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desenvolvimento tecnológico sem fronteiras, o segundo viajante do tempo aterrissaria num mundo não muito diferente daquele que deixou para trás. Ele continuaria a ir de carro para o trabalho. Se pegasse o trem, é bem pos-sível que utilizasse a mesma linha partindo da mesma estação. É provável também que pudesse pegar um avião no mesmo aeroporto. Talvez ainda morasse no mesmo bairro, quem sabe numa casa maior. A televisão teria mais canais, mas continuaria praticamente a mesma. Ele poderia, inclusive, ver a reprise de alguns de seus programas favoritos da década de 1950. Ele saberia operar (ou logo aprenderia a fazê-lo) a maioria dos eletrodomésticos – até o computador, com o mesmo teclado da boa e velha máquina de escre-ver. Na verdade, com algumas exceções como o PC, a internet, os reprodu-tores de CD e DVD, o caixa eletrônico e um telefone sem fio que ele poderia levar consigo, o segundo viajante estaria bastante familiarizado com a tec-nologia atual. Quem sabe, desiludido com o ritmo do progresso, perguntasse: “Por que não conquistamos o espaço?” ou “Onde estão os robôs?”.

Tendo em vista as grandes – e óbvias – transformações tecnológicas, é certo que o viajante de 1900 sentiria mais a mudança, ao passo que o outro poderia facilmente concluir que passamos a segunda metade do século XX fazendo ajustezinhos nos avanços da primeira metade.1

No entanto, à medida que passassem mais tempo em seu novo lar, os viajantes perceberiam as sutilezas da transformação. Depois de arrefecido o impacto inicial da tecnologia, eles começariam a notar as mudanças nos princípios e nos valores de suas respectivas sociedades, bem como no modo de viver e trabalhar das pessoas comuns. É nesse ponto que o jogo vira. Em termos de adaptação às estruturas sociais e ao ritmo da vida cotidiana, o segundo viajante do tempo ficaria bem mais desnorteado.

Um indivíduo do início do século XX logo descobriria que a dinâ-mica social da década de 1950 é bastante semelhante à sua. Se trabalhasse numa fábrica, é possível que se deparasse com a mesma divisão do trabalho, o mesmo sistema de controle hierárquico. Se trabalhasse num escritório, estaria envolvido pela mesma burocracia, pela mesma rotina de ascensão corporativa. Ele chegaria ao trabalho às 8h ou 9h todo dia e sairia às 17h em ponto; casa e trabalho seriam duas esferas perfeitamente distintas de sua vida. O viajante de 1900 usaria terno e gravata, e a maioria de seus colegas de trabalho seria do sexo masculino e branco. Os valores e as relações de trabalho quase não teriam sofrido mudanças. Ele raramente veria mulheres no escritório, exceto as secretárias, e quase nunca interagiria profissional-mente com pessoas de outras raças. Ele casaria cedo, logo teria filhos e continuaria casado para o resto da vida. No que diz respeito ao lazer, ele descobriria que o cinema e a TV suplantaram em grande medida o teatro e outras apresentações ao vivo, mas, de resto, seu tempo livre seria dedicado

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a atividades bastante semelhantes às de 1900: assistir a jogos de beisebol ou lutas de boxe, quem sabe até jogar um pouco de golfe. Ele se associaria a clubes ou grupos adequados à sua classe socioeconômica, respeitaria as mesmas regras de conduta social e esperaria que seus filhos fizessem o mes-mo. Ele se estruturaria de acordo com valores e normas de uma empresa e levaria a vida de homem dedicado ao trabalho tão bem narrada por autores como Sinclair Lewis e John Kenneth Galbraith ou William Whyte e C. Wright Mills.2

Já o segundo viajante do tempo ficaria bastante irritado com as verti-ginosas transformações sociais e culturais que foram se acumulando desde a década de 1950 até hoje. No trabalho, ele se depararia com um novo modo de se vestir, novos horários e novas regras. Ele veria pessoas andando pela empresa de calça jeans e sem gravata como se estivessem relaxando no fim de semana e ficaria chocado ao descobrir que elas ocupam altos cargos. Os funcionários pareceriam ir e vir a seu bel-prazer. É bem possível que os mais novos exibissem tatuagens e piercings bizarros. Pessoas do sexo feminino e até de outras etnias exerceriam a função de gerente. A individua-lidade e o estilo pessoal seriam mais valorizados que a conformidade com os princípios organizacionais. Ainda assim, esses indivíduos pareceriam extremamente puritanos para o segundo viajante do tempo. Suas piadas de cunho racial seriam um fracasso, seu cigarro faria com que fosse banido do ambiente, e os martínis que toma no almoço causariam sincera preocu-pação. Atitudes e expressões triviais para ele seriam motivo de ofensa. Ele estaria sempre com a terrível sensação de não saber como se portar.

Na rua, o homem de 1950 veria mais grupos étnicos do que pode-ria sonhar: asiáticos, indianos, latinos e outros tantos confraternizando de modo estranho e talvez inapropriado segundo sua concepção. Ele encon-traria casais inter-raciais e casais do mesmo sexo andando por aí com um apelido alto-astral – “gay”. Talvez considerasse natural a atitude de alguns – mulheres fazendo compras com seus bebês ou executivos almoçando no balcão de um restaurante, por exemplo. Imagine, porém, quando visse adul-tos vestidos com roupas colantes passando a toda velocidade em bicicletas high-tech ou mulheres andando para lá e para cá em estranhos patins com o tronco coberto apenas por um “sutiã”, só para citar alguns casos. Para o viajante de 1950, esses seres pareceriam estar envolvidos em atividades totalmente bizarras.

Além disso, as pessoas passariam a impressão de estar sempre traba-lhando e, ainda assim, de nunca trabalhar na hora devida. Elas pareceriam preguiçosas, mas obcecadas com exercício físico; preocupadas com a car-reira e ao mesmo tempo volúveis (“Ninguém para na empresa mais de três anos?”); compassivas, mas antissociais (“O que aconteceu com os clubes de

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carteado, as associações desportivas e as noites de bingo?”). É verdade que as características físicas do ambiente poderiam ser relativamente familiares, mas a sensação geral seria de estranhamento e confusão.

Sendo assim, embora o primeiro viajante do tempo tivesse que se adap-tar a drásticas mudanças tecnológicas, o segundo experimentaria uma trans-formação mais generalizada e profunda. Ora, este último foi transportado para uma época em que os estilos de vida e as visões de mundo estão sofrendo as maiores reviravoltas – uma época em que a velha ordem sucumbiu, em que mudança constante e incertezas fazem parte da norma.

A forçA por trás dA mudAnçA

O que causou essa transformação? O que aconteceu entre a década de 1950 e os dias de hoje que não aconteceu na primeira metade do século XX? Estudiosos e especialistas propuseram muitas teorias, acompanha-das de uma avalanche de opiniões acerca do caráter positivo ou negativo das mudanças. Alguns lastimam o fim dos tradicionais valores culturais e sociais, outros apontam um futuro cor-de-rosa com base em novas tecno-logias. Ainda assim, a maioria concorda num ponto: a transformação nos teria sido imposta. Uns reclamam que determinadas parcelas da socieda-de impingiram seus valores ao resto do mundo, outros dizem que nossas próprias invenções estão se voltando contra nós e nos remodelando. Estão todos equivocados.

A sociedade está mudando porque queremos. Além disso, a mudança não acontece de maneira caótica nem misteriosa, ela se dá de modo bastante coerente e racional. Se a lógica por trás dos acontecimentos não é patente, é porque a transformação ainda está em andamento. Nos últimos tempos, porém, vários fios aparentemente soltos começaram a se ligar. O padrão latente, a força por trás da mudança, pode finalmente ser divisado.

A força motriz é a ascensão da criatividade humana como agente central na economia e na vida em sociedade. Seja no trabalho ou em outras esferas da vida, nunca valorizamos tanto a criatividade e nunca a culti-vamos com tamanho empenho. O ímpeto criativo – a característica que nos diferencia de outras espécies – está sendo liberado numa escala sem precedentes. O propósito deste livro é investigar como e por que isso está acontecendo, bem como identificar seus efeitos à medida que eles se pro-pagam pelo mundo.

Vejamos primeiro o âmbito da economia. Muitos dizem que vivemos numa economia da “informação” ou do “conhecimento”. Ora, mais certo seria afirmar que, hoje, a economia é movida pela criatividade humana. A criatividade – ou, segundo o dicionário Webster, “a capacidade de inovar

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de forma significativa” – é o fator determinante da vantagem competitiva. Em praticamente todos os setores da economia (da indústria automobilís-tica à moda, passando por produtos alimentícios e pela própria tecnologia da informação), aqueles que conseguem criar e continuar criando são os que logram sucesso duradouro. Isso sempre foi assim, desde a Revolução Agrícola até a Industrial, mas, nas últimas décadas, passamos a reconhecer claramente esse fator e agir com base nisso de modo sistemático.

A criatividade é multidimensional e se apresenta de diversas formas que se potencializam. É um erro pensar, como muitos, que ela se limita à criação de inventos espalhafatosos, novos produtos ou novas empresas. Na economia de hoje, a criatividade é generalizada e contínua: estamos sempre revendo e aprimorando cada produto, cada processo e cada ativi-dade imaginável, e integrando-os de novas maneiras. Além disso, a cria-tividade tecnológica e econômica é fomentada pela criatividade cultural e interage com ela. Esse diálogo é evidente no surgimento de novas áreas como a computação gráfica, a música digital e a animação. Max Weber há muito afirmou que a ética protestante forneceu o espírito de prosperidade, de trabalho duro e de eficiência que motivou a ascensão do capitalismo. De modo semelhante, o compromisso compartilhado para com as diversas manifestações da criatividade sustenta o novo éthos criativo que anima nossa época.

Não é surpreendente que a criatividade tenha se tornado o bem mais estimado de nossa economia. Ainda assim, ela não é exatamente um “bem”, mas fruto da atividade humana. Por mais que as pessoas possam ser con-tratadas e despedidas, sua criatividade não pode ser comprada e vendida, ou ativada e desativada ao bel-prazer de quem quer que seja. Entre outras coisas, é por isso que vemos surgir uma nova ordem no ambiente de traba-lho. Contratar tendo em vista a diversidade não é mais uma obrigação legal, mas uma questão de sobrevivência econômica, pois a criatividade vem em todas as cores, gêneros e preferências pessoais. Horários, regras e códigos de vestimenta foram flexibilizados para atender o processo criativo. A cria-tividade deve ser promovida de diversas formas pelos empregadores, pelos próprios indivíduos criativos e pelas comunidades onde vivem. Não é de se espantar que o éthos criativo transponha o mundo do trabalho e penetre em todas as esferas da vida.

Ao mesmo tempo, vemos despontar modelos totalmente novos de in-fraestrutura econômica para dar suporte à criatividade e estimular pessoas criativas a desenvolver novas ideias e produtos – exemplos disso são os gastos sistemáticos com pesquisa e desenvolvimento, o crescente número de empresas de alta tecnologia e os investimentos de risco. O capitalismo também expandiu seus horizontes para abarcar talentos de grupos marginais

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e inconformistas que até agora eram excluídos. Com isso, desencadeou ou-tra reviravolta impressionante: levou os que antes eram vistos como rebel-des excêntricos atuando à margem para o centro do processo de inovação e crescimento econômico. Essas mudanças na economia e no ambiente de trabalho, por sua vez, ajudaram a propagar e a legitimar transformações semelhantes na sociedade como um todo. O indivíduo criativo não é mais encarado como um iconoclasta; ele – ou ela – faz parte da nova cultura predominante.

Ao tratar das mudanças econômicas, costumo dizer que nossa eco-nomia está passando de um sistema corporativo centrado em grandes em-presas a um sistema mais voltado para o indivíduo. Essa ideia não deve ser confundida com a concepção tola e infundada de que as grandes empresas estão à beira da extinção. Também não acredito na fantasia de uma econo-mia centrada em pequenos negócios e em “agentes livres” independentes.3 As grandes empresas ainda existem (óbvio), ainda têm bastante influência e provavelmente sempre terão. Minha intenção é salientar que as pessoas, na medida em que são a principal fonte de criatividade, representam o prin-cipal recurso da nova era. Essa constatação tem amplas consequências, por exemplo, na geografia social e econômica, bem como nas características das comunidades.

Não é incomum ouvir que, na atual era da alta tecnologia, “a geografia morreu” e a noção de lugar não é mais relevante.4 Para ver que isso não é verdade, basta observar que as empresas de alta tecnologia estão concentra-das em pontos específicos como a área da Baía de São Francisco, Austin ou Seattle. O lugar geográfico se tornou o principal elemento organizador da nossa era, assumindo muitas das funções que antes eram exercidas por em-presas e outras organizações. No passado, as corporações desempenhavam um papel econômico central ao atuar como elo de ligação entre o indivíduo e o trabalho, em especial se levamos em conta a prática de contratações potencialmente vitalícias que se instaurou depois da Segunda Guerra Mun-dial. Hoje, porém, as organizações são menos “fiéis” a seus funcionários, e as pessoas mudam de emprego com frequência, o que torna os contratos de trabalho bem mais contingentes. Nesse ambiente, a situação geográfica substitui a corporação como aquela que organiza as relações entre indiví-duo e trabalho. Hoje, ter acesso a pessoas talentosas e criativas está para os negócios assim como ter acesso a carvão e minério de ferro estava para a siderurgia. Ele determina os lugares que as empresas escolhem para se fixar e crescer, o que por sua vez altera a dinâmica de competição entre cidades. Em um discurso para governadores dos EUA, Carley Fiorina, CEO da Hew-lett-Packard, declarou: “Fiquem com seus incentivos fiscais e autoestradas; nós vamos aonde estão as pessoas mais capacitadas”.5

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Os indivíduos criativos, por sua vez, não se concentram onde estão os empregos. Eles se reúnem em centros de criatividade e onde gostam de viver. Veja o caso de Atenas e Roma no período clássico, de Florença na época dos Médici, da Londres elisabetana, do Greenwich Village e da área da Baía de São Francisco – a criatividade sempre foi atraída para locais específicos. Como observou Jane Jacobs, grande urbanista, lugares bem-sucedidos são multidimensionais e diversificados – eles não apelam a um único setor ou grupo demográfico; eles são repletos de estímulo e troca cria-tiva.6 Como consultor, costumo dizer a líderes políticos e empresariais que os lugares precisam de uma atmosfera humana – ou criativa – tanto quanto de uma atmosfera comercial. Cidades como Seattle, Austin, Toronto e Du-blin reconhecem a natureza multidimensional da mudança e se esforçam para converter-se em comunidades amplamente criativas, e não apenas em centros de inovação e de alta tecnologia. Se cidades como Buffalo, Grand Rapids, Memphis e Louisville não seguirem o exemplo, elas vão penar para sobreviver.

Os principais modelos sociais também estão mudando, guiados por forças que têm origem no éthos criativo. Em praticamente todas as esferas da vida, laços efêmeros substituíram os vínculos estáveis que antes estru-turavam a sociedade. Em vez de morar na mesma cidade durante décadas, hoje nos mudamos com frequência. No lugar de comunidades forjadas por estruturas sociais fechadas e pelo forte compromisso com a família, ami-gos e organizações, nós buscamos espaços em que é possível conhecer pessoas facilmente e viver de modo semianônimo. A deterioração do po-der dos laços, seja com indivíduos ou com instituições, é resultado do número crescente de vínculos que estabelecemos. O que me contou um in-dustrial aposentado, ex-diretor de um centro de transferência de tecnologia em Ottawa, Canadá, ilustra bem isso: “Meu pai cresceu numa cidade pe-quena, trabalhou para a mesma empresa e conviveu com as mesmas catorze pessoas a vida toda. Eu conheço mais gente do que isso num único dia”.7 A vida moderna é cada vez mais definida por compromissos contingentes. Nós pulamos de emprego em emprego sem esforço ou grande preocupação. Se antes as pessoas se uniam por meio de instituições sociais e forjavam sua identidade em grupos, uma das principais características da atualidade está relacionada ao esforço de encontrar uma identidade própria.8 Essa invenção e reinvenção do eu, que geralmente reflete nossa criatividade, é a principal característica do éthos criativo.

Hoje não somos mais definidos pela organização em que trabalhamos, pela igreja que frequentamos, pelo lugar onde vivemos ou mesmo por la-ços familiares. Quem nos define somos nós, ao forjarmos uma identidade com base nas várias facetas de nossa criatividade. Outros aspectos da vida

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– o que consumimos, como nos divertimos, os esforços que fazemos para formar comunidades – se organizam a partir desse processo de criação de identidade.

Para pensar em identidade coletiva hoje, é preciso repensar as noções de classe. Geralmente, somos levados a classificar os indivíduos com base em seus hábitos de consumo, seu estilo de vida ou, grosso modo, sua ren-da. Frequentemente equiparamos renda média e classe média, por exemplo. Embora os considere indicadores de classe relevantes, eles não são fatores determinantes. Uma classe corresponde a um grupo de pessoas que com-partilham interesses e costumam pensar, sentir e comportar-se de modo se-melhante. No entanto, o que determina essas semelhanças é, antes de mais nada, a atividade econômica, o que fazem para ganhar a vida. Todas as ou-tras distinções partem daí. Ora, uma das características centrais da nossa era está ligada ao fato de que cada vez mais pessoas estão exercendo trabalhos criativos para ganhar a vida.

A novA clAsse

A criatividade como imperativo econômico fica evidente com a ascen-são de uma nova classe que chamo de classe criativa. Cerca de 38 milhões de americanos, 30% dos indivíduos economicamente ativos nos Estados Unidos, pertencem a essa nova classe. Segundo minha definição, o centro da classe criativa é formado por indivíduos das ciências, das engenharias, da arqui-tetura e do design, da educação, das artes plásticas, da música e do entrete-nimento, cuja função econômica é criar novas ideias, novas tecnologias e/ou novos conteúdos criativos. Além desse centro, a classe criativa também abrange um grupo mais amplo de profissionais criativos que trabalham com negócios e finanças, leis, saúde e outras áreas afins. O trabalho dessas pessoas envolve a solução de problemas complexos, que requer uma boa capacidade de julgamento, bem como alto nível de instrução e muita experiência. Todos os membros da classe criativa – sejam eles artistas ou engenheiros, músicos ou cientistas da computação – compartilham o mesmo éthos criativo, que valoriza a criatividade, a individualidade, as diferenças e o mérito. Para esses indivíduos, todos os aspectos e todas as manifestações da criatividade – tec-nológicas, culturais e econômicas – estão interligados e são inseparáveis.

A principal diferença entre a classe criativa e outras classes está rela-cionada ao que ela é paga para fazer. Os membros da classe trabalhadora e da classe de serviços recebem sobretudo para executar de acordo com um plano. Já os da classe criativa ganham para criar e têm muito mais autono-mia e flexibilidade para isso do que as outras duas classes. É claro que há uma zona cinzenta e questões de limites a serem consideradas no que diz

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respeito ao meu esquema. Embora alguns possam criticar minha definição de classe criativa (e as estimativas numéricas que se baseiam nela), acredito que seja bem mais precisa do que as definições mais amorfas de trabalhado-res do conhecimento, analistas simbólicos ou profissionais técnicos e espe-cializados que existem hoje.

A estrutura de classes nos Estados Unidos e em outras nações desen-volvidas tem sido alvo de intensos debates por bem mais de um século. Para uma série de autores dos séculos XIX e XX, a grande questão foi a ascensão e, em seguida, o declínio da classe trabalhadora.9 Já para Daniel Bell e ou-tros autores da segunda metade do século XX, o tema central passou a ser o surgimento da chamada sociedade pós-industrial, caracterizada pelo cresci-mento da indústria de serviços em oposição ao setor manufatureiro.10 Hoje, a grande questão – que já vem se revelando há algum tempo – gira em torno da ascensão da classe criativa, a classe que mais cresce nesta era.

A vertiginosa ascensão dessa classe é o motivo de a sociedade moder-na parecer tão estranha ao segundo viajante do tempo. Ao longo do século XX, a classe criativa nos Estados Unidos passou de aproximadamente 3 milhões de trabalhadores ao que ela é hoje, um crescimento de mais de 1.000%. Se considerarmos apenas o crescimento de 1980 para cá, veremos que ela dobrou de tamanho. Cerca de 15 milhões de americanos, mais de 12% da força de trabalho, fazem parte do Centro Hipercriativo dessa nova classe. Hoje, a classe criativa nos Estados Unidos é maior do que a tradicio-nal classe trabalhadora, formada por aqueles que trabalham nos setores de produção, construção e transporte, por exemplo.

O século XX foi palco da ascensão e do declínio da classe trabalhadora, que atingiu o auge entre 1920 e 1950, com 40% da força de trabalho ameri-cana. Depois disso, veio a longa queda, chegando a um quarto da força de trabalho nos Estados Unidos hoje. A classe de serviços – que inclui o mercado de alimentação, o trabalho de escritório e a assistência pessoal, por exemplo – cresceu gradativamente ao longo do século XX, passando de aproximada-mente 16% a 30% da força de trabalho americana entre 1900 e 1950 antes de chegar a mais de 45% em 1980. Com cerca de 55 milhões de membros, a classe de serviços é, hoje, a maior classe em termos absolutos.

Embora a classe criativa ainda seja menor do que a classe de serviços, seu papel econômico vital a torna mais influente. Além disso, ela é signi-ficativamente maior do que a classe de “homens organizacionais”, descrita por William Whyte em seu livro de 1956. Assim como a classe empresarial de Whyte, que “determinou o espírito americano” nos anos 1950, a classe criativa é a classe normativa desta era. Seus princípios, porém, são muito di-ferentes: individualidade, liberdade de expressão e abertura à diferença são privilegiadas em detrimento de homogeneidade, conformismo e adequação,

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que definiram a era organizacional. A classe criativa é dominante também em termos financeiros – em média, seus membros ganham duas vezes mais do que os membros das duas outras classes.

Os sacrifícios a que os membros da classe criativa estão dispostos por dinheiro também são muito diferentes dos realizados pelos homens or-ganizacionais de Whyte. Somos poucos os que trabalhamos para a mesma grande empresa por toda a vida, e somos bem menos propensos a relacionar nossa identidade ou autoestima àqueles para quem trabalhamos. Nós le-vamos em consideração tanto questões financeiras quanto a possibilidade de sermos nós mesmos, de determinarmos nosso horário, de realizarmos trabalhos instigantes e de vivermos em comunidades que refletem nossos valores e prioridades. De acordo com uma grande pesquisa realizada com profissionais de tecnologia da informação – um subgrupo relativamente conservador da classe criativa –, desafio e responsabilidade, horário flexível e um ambiente de trabalho seguro e estável estão acima do dinheiro no que diz respeito ao que valorizam no emprego. A reviravolta da vida privada pode ser resumida por esta estatística bastante divulgada nos Estados Uni-dos: menos de um quarto de todos os americanos (23,5%) pesquisados no censo de 2000 vivia em um núcleo familiar “convencional” – queda signifi-cativa em relação a 1960, cujo percentual correspondente era 45%.11 Essas mudanças profundas não são, como dizem por aí, o resultado dos exces-sos e imprudências de sujeitos mimados. Elas estão calcadas numa lógica econômica simples. Nós vivemos da nossa criatividade; logo, procuramos cultivá-la e buscamos ambientes que possibilitam seu desenvolvimento, assim como o ferreiro cuidava de sua oficina, e o fazendeiro cuidava do gado que puxava seu arado.

A criatividade no mundo do trabalho não está limitada a membros da classe criativa. Trabalhadores de fábricas e até prestadores de serviço me-nos qualificados sempre foram criativos de alguma maneira útil. Sem falar que o conteúdo criativo de muitas funções associadas à classe trabalhadora e à classe de serviços vem crescendo – exemplo disso são os programas de melhoria contínua de várias fábricas, que convidam operários a contri-buir também com ideias. Baseado em tendências como essa, suponho que a classe criativa, ainda em ascensão, continuará a crescer nas próximas déca-das à medida que atividades econômicas mais tradicionais se tornem suas funções. Como o leitor verá no último capítulo deste livro, não acredito de forma alguma que a solução para melhorar as condições de vida dos mal pagos, subempregados e desprovidos seja implementar programas sociais – nem restituir o trabalho operário dos velhos tempos –, mas estimular a criatividade desses indivíduos, pagar devidamente por isso e integrá-los à economia criativa.