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FOLHA 25-08-2015 HÉLIO SCHWARTSMAN Chacina altruísta SÃO PAULO - A PM paulista se referiu aos policiais suspeitos de ter liderado a chacina do último dia 13 como "bandidos que integram temporariamente a instituição". É isso mesmo? Esse gênero de crime é resultado apenas de algumas maçãs podres que se infiltraram na corporação ou há algo de institucional aí? Gostamos de pensar o delinquente ou como um maluco que não controla suas ações, ou como um agente racional que decide cometer crimes pesando fatores como benefício esperado e a chance de ser apanhado. Experimentos conduzidos por pesquisadores como Dan Ariely sugerem que as coisas podem ser mais complicadas. Pelo menos em condições de laboratório, as pessoas incorrem mais em infrações à norma quando têm a oportunidade de racionalizá-las do que quando o pesquisador aumenta a probabilidade de o trapaceiro não ser apanhado. É contraintuitivo, mas faz sentido, se pensarmos o pendor para o crime como resultado de uma contínua negociação entre a vontade de obter vantagem e a necessidade que cada um de nós tem de manter para si mesmo a imagem de que é um ser humano bom. O cérebro resolve a contradição com as racionalizações. E uma das surpresas que surgiram nesses experimentos é que as pessoas se sentem mais à vontade para delinquir quando podem argumentar que o fazem no interesse de terceiros do que quando a vantagem é inapelavelmente pessoal. Se criminosos são uma ameaça à sociedade, quando eu os elimino estou agindo altruisticamente, o que desculpa o fato de meus métodos não serem tecnicamente muito legais. Outro achado interessante é que a percepção (certa ou errada) de que todos estão cometendo uma violação também facilita a racionalização. Esses dois elementos já deveriam bastar para a polícia tratar a prevenção a chacinas como uma questão institucional, não um simples problema de maçãs podres. MARCELO FREIXO Teologia da Intolerância

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FOLHA 25-08-2015

HÉLIO SCHWARTSMAN

Chacina altruísta

SÃO PAULO - A PM paulista se referiu aos policiais suspeitos de ter liderado a chacina do último dia 13 como "bandidos que integram temporariamente a instituição". É isso mesmo? Esse gênero de crime é resultado apenas de algumas maçãs podres que se infiltraram na corporação ou há algo de institucional aí?

Gostamos de pensar o delinquente ou como um maluco que não controla suas ações, ou como um agente racional que decide cometer crimes pesando fatores como benefício esperado e a chance de ser apanhado.

Experimentos conduzidos por pesquisadores como Dan Ariely sugerem que as coisas podem ser mais complicadas. Pelo menos em condições de laboratório, as pessoas incorrem mais em infrações à norma quando têm a oportunidade de racionalizá-las do que quando o pesquisador aumenta a probabilidade de o trapaceiro não ser apanhado.

É contraintuitivo, mas faz sentido, se pensarmos o pendor para o crime como resultado de uma contínua negociação entre a vontade de obter vantagem e a necessidade que cada um de nós tem de manter para si mesmo a imagem de que é um ser humano bom. O cérebro resolve a contradição com as racionalizações.

E uma das surpresas que surgiram nesses experimentos é que as pessoas se sentem mais à vontade para delinquir quando podem argumentar que o fazem no interesse de terceiros do que quando a vantagem é inapelavelmente pessoal. Se criminosos são uma ameaça à sociedade, quando eu os elimino estou agindo altruisticamente, o que desculpa o fato de meus métodos não serem tecnicamente muito legais.

Outro achado interessante é que a percepção (certa ou errada) de que todos estão cometendo uma violação também facilita a racionalização.

Esses dois elementos já deveriam bastar para a polícia tratar a prevenção a chacinas como uma questão institucional, não um simples problema de maçãs podres.

MARCELO FREIXO

Teologia da Intolerância

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O jagunço Riobaldo Tatarana, numa de suas sábias divagações sobre Deus e o Diabo na terra do "Grande Sertão" de Guimarães Rosa, profetizou: "Deus mesmo, quando vier, que venha armado!".

Riobaldo se referia às muitas violências sertanejas. Mas seu aforismo, como tudo na obra-prima de Guimarães Rosa, extrapola as veredas do cangaço. Diante da agressividade da intolerância religiosa, ele é atual e irônico. Quando Jesus vier, que venha armado. Não para ferir, mas para tentar sobreviver àqueles que pregam o ódio em seu nome.

O dogma da Teologia da Intolerância é a violência, cujas principais vítimas são os seguidores de religiões afro-brasileiras. Segundo a Secretaria de Assistência Social do Rio de Janeiro, entre julho de 2012 e dezembro de 2014, houve 948 denúncias de atos de violência e 71% dos atingidos eram da umbanda e do candomblé.

Não é só um ataque à dignidade humana, mas também ameaça à democracia e ao Estado laico. É uma estratégia de poder de grupos religioso-empresariais, que, ligados a igrejas neopentecostais, transformaram a fé em lucro e capital político. São grupos que não representam o conjunto dos protestantes.

Eles se organizam por meio do controle de estações de rádio e TV –bens públicos– e da articulação com os Poderes Legislativos, principalmente com o Congresso, sob o comando de Eduardo Cunha.

A denúncia da Procuradoria-Geral da República enviada ao STF mostrou a relação clandestina entre os poderes políticos e os religiosos. Cunha teria recebido por meio de uma igreja da Assembleia de Deus R$ 250 mil como propina do esquema da Petrobras.

Na Assembleia Legislativa do Rio, a apoteose do obscurantismo foi o AI-5 religioso. O projeto, do deputado evangélico Fábio Silva (PMDB), prevê a censura, com multa de até R$ 270 mil, a manifestações políticas e culturais que satirizem religiões. A PM poderia interromper peça de teatro ou bloco de Carnaval, por exemplo. O absurdo saiu da pauta.

O teólogo Leonardo Boff me falou uma vez sobre as diferenças entre caridade e solidariedade. A caridade é uma relação vertical entre desiguais, movida pela pena. Já a solidariedade é fruto do sentimento de igualdade e empatia. Esta é a essência do cristianismo.

Os mercadores da intolerância estão muito distantes da simbologia da cruz, representação do compromisso com a dor do outro e com a justiça social. Os arautos do ódio são a coroa de espinhos, os algozes.

Riobaldo anunciou que a resposta é o amor, palavra revolucionária: "Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura".

ANÁLISE

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Ao combater um sintoma, não a doença, redução de pastas tende a ser inócua

GUSTAVO PATUDE BRASÍLIA

A experiência internacional mostra que o número de ministros no Executivo brasileiro é, sim, exagerado. Mas a quantidade de pastas é consequência de fragilidades políticas –e não causa de fragilidades orçamentárias.

Guardadas diferenças de nomenclatura e estruturas de governo, o primeiro escalão nos Estados Unidos é formado por 22 departamentos e postos de hierarquia equivalente; no Reino Unido, há 24 departamentos ministeriais.

Padrões semelhantes são encontrados em boa parte do mundo desenvolvido, o que deu força ao diagnóstico segundo o qual o congestionamento de ministros pode dificultar a tomada de decisões e a eficiência do governo.

Também se pode concluir, porém, que é mais fácil trabalhar com Executivos enxutos em democracias mais maduras e estáveis –onde, por exemplo, apenas dois partidos disputam o poder.

A multiplicação de postos ministeriais é quase ininterrupta ao longo da redemocratização brasileira: eram 12 em 1990, na posse de Fernando Collor, primeiro presidente eleito no período; são 39 agora, sob o governo Dilma Rousseff, se incluída na conta a pasta de Relações Institucionais, sem titular.

A criação e distribuição de ministérios tem papel decisivo na formação de bases de apoio no Legislativo, nas quais se combinam mais de uma dezena de partidos de diferentes orientações. Quanto mais frágil e heterogênea é a coalizão, mais cargos tendem a ser necessários.

Reduzir o número de ministérios em um momento de debilidade política, portanto, é combater um sintoma, não a doença. Não será surpresa se a medida se mostrar inócua ou cosmética.

Economia fiscal, se houver alguma, será pouca. Os servidores têm estabilidade no emprego e serão simplesmente realocados em outras repartições. A margem para cortar cargos de confiança é limitada pelos acordos políticos do governo.

As dificuldades começam pelo próprio partido da presidente: foi especialmente para atender o PT e suas diferentes correntes que o número de pastas chegou ao recorde atual.

FOCO

Barbie vira heroína e ganha diversidade étnica para combater queda nas vendas

DO "FINANCIAL TIMES"

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Seja como astronauta, executiva ou professora de ginástica aeróbica, a carreira da Barbie sempre foi um reflexo das mais amplas mudanças culturais e sociais.

Mas o quarto ano de queda nas vendas reflete a irrelevância da Barbie para as meninas de hoje e para as mães. Então, em vez de dar à boneca uma nova carreira, neste ano, ela finalmente ganhou mais diversidade étnica por meio da linha Fashionistas. E, começando a entender o amor infantil pelos super-heróis, a Barbie também foi agraciada com seus próprios poderes mágicos, protagonizando a Super Faísca, seu alter ego de combate ao crime no filme "Barbie Super Princesa".

A boneca enfrenta uma dura concorrência, após ter tido uma fatia de mercado dominante no segmento na maior parte das duas décadas passadas. Porém, com a perda da franquia Frozen, para a rival Hasbro, a Mattel não tem tempo a perder.

O sucesso de Frozen destacou o magnetismo que líderes femininas que tomam o controle de seu próprio destino exercem sobre as meninas.

Para Stephanie Wissink, do banco de investimento Piper Jaffray, apesar de todas as encarnações da Barbie, ela ainda é pensada como uma boneca magra e loura. Se a Mattel conseguir ser bem-sucedida em desenvolver personagens de modo que mais meninas possam se identificar com a ela, a boneca pode se encaixar melhor na mentalidade das mães jovens e ganhar as consumidoras de volta, diz.

Analistas reconhecem que a Mattel está fazendo algum progresso. Mas, com a competição feroz –de jogos digitais e aplicativos a outras bonecas–, a Barbie vai precisar dos seus novos superpoderes para deter a queda das vendas.

Soldado é preso por suspeita de ligação com série de mortes

PM foi reconhecido por sobrevivente dos ataques em Osasco e Barueri que deixaram 18 mortos e 6 feridos

Testemunhas relataram ter visto policiais de serviço recolhendo cápsulas de balas nos locais das mortes

DE SÃO PAULO

Um soldado da Polícia Militar, de 30 anos, é o primeiro preso por suspeita de envolvimento nos ataques que deixaram 18 mortos em Osasco e Barueri (Grande São Paulo).

A prisão administrativa foi feita com base no depoimento de um sobrevivente.

A vítima reconheceu a foto do PM entre as imagens apresentadas por policiais do DHPP (departamento de homicídios), setor responsável pelas investigações.

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A informação foi divulgada nesta segunda-feira (24) pelo "SPTV", da Rede Globo.

Os ataques nas duas cidades ocorreram na noite de 13 de agosto, em um intervalo de três horas, deixando 18 mortos e 6 feridos.

O soldado preso prestava serviços administrativos na Rota. Ele foi detido no prédio da Corregedoria da PM.

Segundo a Folha apurou,há policiais da Corregedoria que consideram frágeis as suspeitas contra esse PM.

Esse seria um dos motivos que teriam feito o secretário da Segurança, Alexandre de Moraes, negar, na tarde desta segunda, que alguém tivesse sido preso ou que houvesse pedidos nesse sentido.

A reportagem apurou que, nas próximas horas, deve ser preso outro policial militar. O governo avalia que esse PM deverá ajudar a confirmar os outros nomes investigados.

De acordo com reportagem do "Jornal do SBT", entre os 18 PMs investigados pela Corregedoria há um grupo de uma equipe de patrulhamento em motos, a Rocam, que teria sido liberado, sem justificativa, minutos antes da chacina. Há a suspeita de que esse grupo tenha ido a um bar naquela noite.

A Folha apurou que a Delegacia Geral recebeu informações de que cinco PMs –quatro soldados e um sargento– teriam ido, depois das mortes, a um bar na zona norte de SP para pedir a inclusão dos seus nomes na lista de convidados presentes no dia do crime. A segurança do local seria feita por um PM.

A liberação de policiais antes da chacina levou a Corregedoria da PM a investigar os comandantes dos batalhões em Osasco e Barueri.

CÁPSULAS

Testemunhas disseram aos corregedores que viram policiais de serviço recolhendo cápsulas nos locais do crime. Como foram encontrados estojos de outros calibres, como 9 mm e 45, a suspeita é que eles tenham recolhido apenas os de.40, padrão da PM de São Paulo.

Uma arma desse calibre teria sido apreendida na casa de um homem casado com uma policial feminina. Como ele é canhoto, os corregedores tentam saber se é o mesmo que aparece nas imagens do circuito de segurança do bar atacado em Osasco.

Nesta segunda, o secretário Alexandre de Moraes confirmou o cumprimento de mandados de busca e apreensão contra 18 PMs. "Apreendemos diversos documentos, diversos celulares, provas que podem ser utilizadas, ou não, dependendo do cruzamento das investigações."

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FOCO

Bar palco de chacina reabre vazio e com clima de medo

THIAGO AMÂNCIODE SÃO PAULO

O bar de Juvenal de Sousa, 34, em Osasco, reabriu, mas segue vazio, assim como a antes movimentada rua Antônio Benedito Ferreira.

No último dia 13, estavam no bar oito das 18 pessoas que foram assassinadas em uma série de ataques na Grande São Paulo, em um intervalo de três horas.

Um dos mortos foi Thiago Sousa, 19, irmão de Juvenal.

"Preciso trabalhar, seguir minha vida", afirma o dono do estabelecimento, sobre a reabertura quase dez dias depois do crime.

A vida, porém, pode demorar a voltar ao normal. Na noite de sábado (22), seis pessoas bebiam no bar. "Fim de semana aqui era lotado. De 50 pessoas para mais", diz Jorge Paixão, 24, que frequenta o local há cinco anos.

Juvenal tem fechado o bar antes das 19h, por medo. Antes, ele conta, era comum encontrar o estabelecimento aberto até as 2h, pelo menos.

A dona de um comércio próximo, que não quis se identificar, tem feito o mesmo. Ela fechava a loja às 22h, agora não passa das 18h. "À noite não tem uma alma viva aqui. Todos têm medo."

Na tarde desta segunda (24), os amigos Cosme de Lima, 49, e Jair Dias, 66, bebiam por ali. "Todo mundo aqui está com o pé atrás", afirma Dias. "Só não pode ficar até muito tarde", diz Lima.

MARCA

Juvenal está reformando o bar. Vai aumentar os fundos e trocar parte dos azulejos externos. Em um deles, está a marca de duas balas, lembrança da chacina.

O dono de uma padaria próxima afirma que um cliente idoso não saiu de casa por uma semana. "Mas, aos poucos, as coisas estão voltando ao normal. Precisam voltar."

Os pais, piauienses, estão inconformados, conta. Apesar do crime, Juvenal não pensa em voltar para o Nordeste. "Vim para cá com 15 anos, minha vida é toda aqui. Não tenho o que fazer lá."

Coração de leão

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Kei Kamara sobreviveu à guerra civil e ao ebola em Serra Leoa para se tornar artilheiro da liga de futebol dos Estados Unidos

ALEX SABINOCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE EDIMBURGO (ESCÓCIA)

Artilheiro da Major League Soccer, a principal de liga de futebol dos Estados Unidos, Kei Kamara se acostumou a ouvir explosões e tiros quando era criança em Serra Leoa.

A mãe havia ido para os Estados Unidos, fugindo da guerra civil que matou 50 mil pessoas e destruiu a infra-estrutura do país africano.

Hoje com 30 anos, o atacante do Columbus Crew continua querendo o mesmo dos tempos em que morava no país natal: respeito.

"Eu ainda posso ouvir na minha cabeça os sons da guerra. Não perceberam a devastação que estavam causando em Serra Leoa. Não respeitaram as pessoas do país. A mesma coisa quando estourou o ébola. Eu estava lá. As autoridades não levaram a sério", afirma o atacante, autor de 18 gols na temporada. "Sete enfermeiras do hospital onde nasci morreram por causa do vírus."

Kamara cresceu acreditando sempre ter algo a provar. Ao receber asilo político nos Estados Unidos, aos 16 anos, pôs na cabeça que tinha de aproveitar uma chance que milhões de compatriotas não receberam. Quando ganhou bolsa da California State University para jogar futebol, ouviu pela primeira vez a pergunta sobre que seleção defenderia se fosse profissional.

Kei Kamara diz sentir um frio na barriga só de pensar na possibilidade de levar Serra Leoa pela primeira vez para uma Copa do Mundo.

"Os Estados Unidos salvaram a minha vida. Me deu tudo o que eu tenho. Mas eu sou de Serra Leoa. Tenho a missão de ajudar minha terra dentro e fora de campo."

Ele é o principal nome do futebol no país, mas não vem sendo chamado para a seleção. Entrou em conflito com os dirigentes porque considera que falta respeito com os jogadores. Os locais para treinos não são adequados. Os uniformes são de segunda mão. Os atletas não recebem o conforto desfrutado pela cartolagem nas viagens.

Kamara reclamou pela imprensa. Recusou-se a cumprimentar o ministro dos Esportes do país. Passou a ser ignorado nas convocações.

"Fico bravo com algumas coisas. As pessoas não percebem o que o futebol pode fazer pelas pessoas. Acredito que o futebol tem potencial para salvar Serra Leoa. Mas é preciso seriedade e respeito."

A equipe ocupa a 104ª posição no ranking da Fifa e tem mandado seus jogos na Mauritânia, por medo do ebola.

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"Nós somos bons no futebol. Podemos nos classificar. Futebol é mais forte que uma religião e pode mudar como as pessoas de Serra Leoa veem a si mesmas."

Kamara criou a ONG "Escolas para Salone" ao lado do também jogador da MLS Mike Lahoud (Philadelphia Union). Eles constroem escolas em vilas da nação africana. "As crianças merecem a chance de aprender e, pelos resultados que temos, elas querem isso. Nós só colocamos a mão na massa para lhes dar essa oportunidade."

Ele reconhece viver o melhor momento da carreira. Os adversários montam esquema tático para anulá-lo em campo. É o principal destaque ofensivo da liga no momento em que esta vive o auge da popularidade internacional, com a chegada de jogadores como Kaká, Steven Gerrard, Frank Lampard, Andrea Pirlo e David Villa.

As partidas são transmitidas ao vivo na Europa e no Brasil, o que tem tornado Kamara uma figura conhecida internacionalmente. Ele teve passagens por dois times ingleses (Norwich e Middlesbrough), sem grande sucesso. "Acredito que até o final desta década a MLS será reconhecida como um dos cinco melhores campeonatos do mundo. Estamos em um momento de grande exposição e isso é muito bom para todos."

No passado, Kamara reclamou que a chegada de veteranos famosos atrapalhava o reconhecimento dos atletas formados localmente e que estavam na liga há mais tempo. Pedindo mais respeito (sempre respeito), disse que os torcedores votavam apenas nos mais conhecidos para a composição da partida das estrelas. Pelo visto, a bronca ficou para trás.

Quando começou a jogar, Kamara via a MLS como uma plataforma para ter a chance de se transferir para a Europa. Ainda é uma vitrine, mas para outra coisa. O atacante quer chamar a atenção para Serra Leoa e o seu futebol.

"Meu país me fez quem eu sou hoje. Gostaria de ser um exemplo para os meninos de Serra Leoa", afirmou.

Sonia ao redor

'Aquarius', novo filme de Kleber Mendonça Filho troca viés sociológico de 'O Som ao Redor' por mergulho psicológico na protagonista, Sonia Braga

PATRÍCIA BRITTODO RECIFE

Um labirinto de informações arquivadas, etiquetadas e distribuídas por estantes que parecem engolir quem se arrisca entre seus corredores. O cenário –o galpão de um arquivo público municipal– dá a dica sobre o enredo mais psicológico de "Aquarius", o novo filme que Kleber Mendonça Filho, 46, começou a gravar neste mês no Recife.

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Considerado um dos nomes mais importantes do cinema brasileiro atual, o pernambucano despertou a atenção da crítica em 2012 com o premiado "O Som ao Redor", seu primeiro longa de ficção, no qual mostrou a herança de uma sociedade patriarcal no cotidiano de personagens de classe média da zona sul do Recife.

Agora, o diretor e roteirista faz um mergulho mais intimista no mundo de uma personagem, Clara, vivida por um rosto bem conhecido nas telas brasileiras: Sonia Braga, de sucessos como "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976) e "O Beijo da Mulher Aranha" (1985). É a primeira vez que a atriz grava no Recife.

"Um filme sobre uma pessoa e o mundo dela", nas palavras do diretor. "É mais o estudo de um personagem do que um panorama social", disse, sem querer revelar muitos detalhes da trama.

As gravações, em bairros como Boa Viagem e Casa Forte, começaram no último dia 4 e seguem por sete semanas –ainda não há previsão de lançamento do filme.

Viúva, curada de um câncer e mãe de três filhos adultos, Sonia Braga é Clara, uma crítica de música de 65 anos que "viaja no tempo" e vive cercada por livros e discos em um apartamento no edifício Aquarius, de frente para o mar, onde se passa a maior parte da história.

"Muito disso vem de uma ideia de arquivo pessoal. Curiosamente, estamos hoje numa sequência [filmada] em arquivos. No fim, [o filme] é sobre uma guarda de memórias", contou o diretor durante visita da reportagem ao set de filmagem montado no arquivo público de Jaboatão dos Guararapes (PE), na última terça-feira (18).

Antes de gravar uma cena, ele tira o celular do bolso e testa o enquadramento com a câmera do telefone. Dá uma última orientação às atrizes e volta. A preocupação de dar significado aos cenários, capturados de preferência em planos abertos, é frequente em seus filmes.

"Esta locação aqui hoje é muito isso, é um labirinto. Vieram pesquisar uns papéis em meio a muitos corredores, entradas e saídas. A locação já é um personagem, ela engole as pessoas."

O novo filme acabou passando na frente de outro que já estava na fila do cineasta: "Bacurau", que ele prepara em parceria em parceria com Juliano Dornelles.

PERSONALIDADE

Kleber Mendonça reconhece a expectativa em torno de "Aquarius". "O Som ao Redor" foi premiado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e nos festivais de Nova York e de Roterdã, entre outros. Foi apontado pelo jornal "The New York Times" como um dos dez melhores filmes de 2012 e listado para disputar, pelo país, uma indicação ao Oscar 2014 de melhor filme estrangeiro.

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Mas o diretor tenta evitar comparações entre os dois trabalhos. "Cada filme tem que ter o seu jeito, a sua personalidade. 'O Som ao Redor' teve aquela, e acho que 'Aquarius' vai ter a dele."

E pode-se dizer que essa diferença de personalidade começa ainda na criação do roteiro: o diretor levou um ano e meio para escrever "Aquarius", enquanto a primeira versão de "O Som ao Redor" ficou pronta em oito dias. Já o baixo orçamento, de R$ 2,5 milhões –financiado com um fundo estadual de cultura e patrocínio do BNDES– não se distancia tanto do longa anterior, de R$ 1,9 milhão.

Nomes da equipe de "O Som..." foram mantidos: a produtora Emilie Lesclaux, casada com o diretor; Irandhir Santos, Maeve Jinkings e Lula Terra no elenco; Pedro Sotero e Fabrício Tadeu na fotografia e Juliano Dornelles e Thales Junqueira na direção de arte. Além de Emilie, outros acompanham Kleber desde curtas mais antigos, como o consultor artístico Daniel Bandeira, que participou de "Eletrodoméstica" (2005).

E, como de costume, o cineasta também escolheu atores não profissionais.

Mas foi uma longa busca por um "rosto de cinema" para segurar o papel da protagonista. Até que, numa noite com amigos, alguém soltou o palpite: Sonia Braga. "Sonia Braga, uau! Como a gente entra em contato com ela? E, em cinco dias, tínhamos feito o contato, enviado o roteiro e ela já tinha respondido que sim", conta o cineasta. A atriz não quis dar entrevista.

ANÁLISE

Cineasta integra escola que se aproxima do espectador e foge do academicismo

INÁCIO ARAUJOCRÍTICO DA FOLHA

De Kleber Mendonça Filho já se esperava uma estreia sólida no longa de ficção. Ele vinha de uma atividade relevante como crítico e cineclubista, seu curta de 2009, "Recife Frio", era tido como uma pequena obra-prima, o documentário "Crítico" (2008), punha em questão a atividade crítica de maneira pertinente.

Ainda assim, "O Som ao Redor" foi uma surpresa. Se a geração de Lírio Ferreira, Paulo Caldas e Claudio Assis havia recolocado Pernambuco no mapa cinematográfico no fim do século passado, esse filme de 2012 marcava o surgimento de uma nova geração, com olhar e ambição próprios.

A ambição, diga-se, não era pequena: observar num mesmo quadro transformação e permanência em Pernambuco. O que era engenho e coronelismo –uma sociedade voltada para o interior– transformou-se em um conjunto de propriedades à beira-mar.

Seu patriarca é um temível coronel (W.J. Solha), tão valente que mergulha na praia à noite, sozinho, indiferente aos tubarões. Sua linha de sucessão vai dar no

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passivo vendedor dos apartamentos da família (tendo estudado na Alemanha!). A meritocracia pode ter caminhos tortuosos.

Ela contempla, entre outros, o jovem primo semi-marginal, que nenhum pobre da rua se atreve a delatar como a pessoa que roubou o rádio de um carro estacionado. Aquele com quem os seguranças não podem se meter.

O retorno do reprimido se dará, no entanto, a partir de notações tão sutis quanto marcantes: os subalternos que fazem amor na casa vazia; os fantasmas de negrinhos que invadem a rua como que saídos de uma senzala de pesadelo; os seguranças (liderados por Irandhir Santos). Além do som, claro.

Até a surpresa do final, vemos um mundo que se dobra sobre si, ou que muda para melhor permanecer o mesmo.

Se o Brasil produziu, ainda que esparsamente, filmes bem interessante neste começo de século, "O Som ao Redor" teve a particularidade de aliar uma narrativa moderna à capacidade de despertar a empatia de um número significativo de espectadores e ganhar muitos prêmios, para não falar de comentários favoráveis nos "Cahiers du Cinéma".

Tudo isso coloca ao cinema de Mendonça um desafio: dar sequência, junto a um público nada fiel a seus realizadores (vide Walter Salles ou Fernando Meirelles), a uma escola (a recifense) e a uma tendência que busca a comunicação fluente com o espectador ao mesmo tempo em que foge do academismo como o diabo da cruz.

Livro 'Perecíveis' captura absurdos da vida cotidiana

Atriz e encenadora Elisa Band lança nesta terça reunião de contos, seu primeiro livro

DE SÃO PAULO

Tudo é instável nos contos do livro "Perecíveis". Há sempre um estranhamento, um fato absurdo que desestabiliza e tira da ordem usual mesmo as ações mais rotineiras.

Numa das histórias, o narrador congela bifes, moelas, peito de frango e "um filho ou dois", "quase tão lindos como um cachorro filhote" também já congelado.

"Todos os contos lidam com o que transborda, o que não cabe, com o que entra em colapso", diz Elisa Band, 41, sobre sua estreia na literatura.

Performer, atriz e encenadora, ela reuniu no livro que lança nesta terça-feira (25) contos curtos que dialogam com a poesia e o teatro.

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Elisa Band já trabalhou em mais de 20 espetáculos, é professora convidada da SP Escola de Teatro e ministra curso de performance no MAM.

Também faz parte do coletivo literário Djalma, grupo de dez escritores que teve papel preponderante na criação de "Perecíveis". "Foi muito importante ouvir o que as pessoas achavam das histórias."

Ela pretende utilizar algum dos contos no espetáculo "Compêndio de Gavetas, Bactérias, Ursos e Corações", que estreia em São Paulo em 2016.