140

FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e
Page 2: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e
Page 3: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

iii

FOLHA DE APROVAÇÃO

Page 4: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

v

DEDICATÓRIA

Aos meus pais Plínio e Carlina pelo exemplo de trabalho e determinação, pelo carinho e amor demonstrado ao longo de todos esses anos juntos. Vocês dois são, e continuarão sendo, o grande farol que ilumina e direciona minha vida.

Page 5: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

vii

AGRADECIMENTOS

A minha orientadora Professora Doutora Maria Irma Hadler Coudry - Maza, com quem aprendi muito nesses anos todos e em todos os sentidos. Obrigada pela paciência, pelo acompanhamento e pelas orientações, a mim dispensadas nesse percurso.

A professora Maria Bernadete Marquês Abaurre pelas sugestões, orientações e ensinamentos no exame de qualificação e também na defesa de tese.

Agradeço em especial a Fernanda Maria Pereira Freire, - Nanda, pela amizade de tantos anos e pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e na defesa de tese.

A professora Ivone Panhoca, que tanto admiro por sua atuação diferenciada na fonoaudiologia, agradeço pelas contribuições importantes na defesa de tese.

A Maria Inês Bacellar Monteiro pela participação na defesa de tese e pelas suas valiosas contribuições ao meu trabalho. Agradeço especialmente por tudo que aprendi com você, em relação às crianças com síndrome de Down, à época em que trabalhei no CDI- Fundação Síndrome de Down. Foi com você que aprendi a olhar para além da síndrome e enxergar as potencialidades nessas crianças.

Agradeço também a Evani Amaral Andreatta Camargo e a Ana Paula Freitas, amigas de longa data, por aceitarem a suplência e pela presença na defesa de tese.

A Sônia, grande amiga da pós, que meu deu não só pousada, mas um ombro amigo para os momentos difíceis nesta caminhada.

As amigas do antigo grupo da Neurolinguística, com as quais passei momentos inesquecíveis no Amarelinho.

Aos funcionários da pós-graduação, Cláudio, Rose e Miguel, pelos atendimentos e esclarecimentos, sempre feitos de forma gentil e precisa.

Page 6: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

viii

A todas as professoras do curso de Fonoaudiologia do Cesumar, que me substituíram em minhas aulas, minhas atribuições na clínica e souberam compreender as minhas falhas neste período.

Agradeço principalmente a Cássia e a Ana Paula, amigas de longa data, que com todo desprendimento, não mediram esforços para que tudo ocorresse na mais perfeita ordem em minha ausência. Obrigada pela torcida e pela confiança.

As professoras de francês Cecília (Campinas) e Leyse (Maringá) pelas aulas de francês, mas não só pelas aulas, mas por dividirem comigo esta fase de angústia me ajudando a vencê-la.

Aos meus queridos irmãos Leni, Máximo, Plínio, José André (Zãn), Marta e Lígia, fontes inesgotáveis de amparo e generosidade, que, cada um ao seu modo, contribuiu para que eu conseguisse concluir esta etapa tão importante em minha vida. Agradeço infinitamente pelas caronas, pelas pousadas, pelos cafezinhos, pelas conversas nas madrugadas, pelas boas refeições, muitas vezes apressadas, mas sempre com tempo para uma palavra amiga. Agradeço também aos cunhados e cunhadas pelo carinho dispensado às minhas crianças e a mim e especialmente ao Paul pela sua disponibilidade em servir sempre.

Aos meus pais, Carlina e Plínio, por todo carinho e atenção dispensados a mim nesse percurso.

A minha prima Nívea pelo seu desprendimento e solidariedade em me auxiliar no final deste trabalho.

Aos meus filhos Henriqueta, Herculanum, Carolina, Marieta, Maximiliano, Tarsila e a minha netinha Valentina, meu carinho e gratidão eterna; peço que me desculpem pela minha ausência, nos momentos, que, eu bem sei vocês esperavam por mim, mas acreditem vocês foram a razão de tudo isso. Obrigada pelas cartinhas e recados deixados no orkut e e-mail, vocês não imaginam o quanto são importantes para mim.

Ao meu marido Hugo por acreditar em meu trabalho e em minha capacidade profissional, de forma incondicional, mesmo quando tudo parecia caminhar de forma contrária. Obrigada por ter sido pai e mãe de nossos filhos nesse período, mostrando, desta forma, para as crianças a importância de meu trabalho. Hugo você é uma pessoa muito especial, espero um dia poder retribuir tudo que você fez e faz por mim hoje e sempre, te amo.

A Cida, mãe de AM, e a Silvia, mãe de ML, por confiarem suas filhas a mim e por acreditarem em minha capacidade profissional. A vocês minha eterna gratidão.

Page 7: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

ix

Ao Centro Universitário de Maringá, minha casa de trabalho, por possibilitar o meu desenvolvimento profissional e a execução desta pesquisa.

Ao professor Wilson de Mattos Silva, Reitor do Cesumar, pelo apoio incondicional sempre e por acreditar no processo educacional como parte importante do desenvolvimento do ser humano.

A minha Diretora do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde do Cesumar, professora Solange Munhoz Arroyo Lopes pelo seu acompanhamento solidário e pela atenção e compreensão demonstrada.

Ao pessoal do NAP – Núcleo de Apoio Pedagógico do Cesumar, especialmente a professora Gislene, você são únicos e necessários.

Pela Diretora de Pesquisa – Professora Ludhiana, pelo suporte logístico disponibilizado por meio do Programa PADEP a este projeto.

Page 8: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

xi

GHIRELLO-PIRES, Carla Salati Almeida. A Interrelação fala, leitura e escrita em duas crianças com síndrome de Down. Campinas. 2010. 130fls. Tese (Doutorado). Linguistica/Neurolinguistica. Instituto de Estudo da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas.

RESUMO Esta tese apresenta e analisa o acompanhamento fonoaudiológico longitudinal de duas crianças com Síndrome de Down: ML e AM. Objetiva compreender a relação estabelecida entre linguagem oral e escrita no início dessas crianças do mundo das letras. Buscou-se identificar como os sujeitos da pesquisa adquiriram autonomia na fala por meio da mediação considerando, para tanto, o papel do outro/interlocutor. No início desse processo, a escrita funcionou como sustentação da materialidade da fala e, posteriormente, ganhou corpo como uma nova possibilidade de linguagem. Este trabalho tem ancoragem teórica na Neurolinguística Discursiva que concebe a linguagem, sintaticamente, como indeterminada e heterogênea, e semanticamente, humana, como lugar de interação e de interlocução em uma relação dinâmica e constitutiva entre sujeitos. A análise dos dados foi feita com base no conceito de dado-achado, produzido no momento da interação, e, no momento da análise, como um achado acionado pela teorização. No início do trabalho, observou-se que ML e AM apresentavam diferenças significativas em relação à oralidade indicando uma discrepância em relação à fala e seu funcionamento. Este fato, porém, não foi impeditivo e nem demarcou diferenças significativas em relação à leitura e à escrita. Além disso, constatou-se que os processos intermediários de significação realizados por essas crianças para domínio do sistema alfabético se estendessem por um tempo maior do que o esperado em relação às crianças tidas como normais e da mesma idade. Os sujeitos demonstraram avanços significativos em relação ao domínio e à autonomia na escrita, devido à mediação e à intervenção do adulto ao materializar e dar visibilidade à suas dificuldades com desafios a serem avançados com segurança, respeitando o ritmo e a individualidade. No final do trabalho, essas crianças, que não sabiam ler e nem escrever, demonstraram certa autonomia nesse domínio que, no entanto, necessita de acompanhamento para um avanço contínuo. Palavras-chave: Síndrome de Down; fala; leitura; escrita.

Page 9: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

xiii

ABSTRACT

This research presents and analyzes the development of the speech of two children with Down syndrome: named as M.L. and A.M. It aims to understand the children’s conception between oral and written language. It searches to identify how the subjects acquire speech autonomy considering an adult’s interference. At the beginning of the process, the writing was a support of the materiality of speech, and later on as a new possibility of language. This work has basis on the foundations of Discursive Neurolinguistics theories that conceive language, syntactically, as indeterminate and heterogeneous, semantically, human, as a place of interaction and dialogue in a dynamic and constitutive relationship between subjects. Data analysis was based on the concepts of interaction theory. In early work, the children showed oral differences indicating a discrepancy in relation to speech and its functioning. That fact, however, was not relevant and did not cause meaningful differences to reading and writing processes. It took a longer period to achieve the results than expected comparing to children conceived as normal and with the same age. The subjects showed significant improvements in writing autonomy, caused by adults’ intervention in order to materialize and to recognize their difficulties with challenges, respecting their rhythm and individuality. At the end of the study, the children who could neither read nor write have shown some independence requiring supervision for continuous development. Keywords: Speech; Down syndrome; reading; Write.

Page 10: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

xv

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Atividade de ditado em sala de aula............................................... 46 Figura 2 Cópia de palavras do livro didático................................................. 47 Figura 3 Atividade de completar com R ou RR ............................................ 48 Figura 4 Ditado de palavras.......................................................................... 49 Figura 5 Escrita de numerais........................................................................ 50 Figura 6 Tarefa de separação de sílabas..................................................... 51 Figura 7 Verificação da compreensão da leitura pelo aluno......................... 52 Figura 8 Diálogos de AM............................................................................... 57 Figura 9 Diálogo de ML sobre a festa do sobrinho da G................................ 64 Figura 10 Desenho da Festa da tia Gilmara...................................................... 65 Figura 11 ML conta sobre sua ida à loja de departamentos............................ 70 Figura 12 Escrita de ML sobre sua ida para Rondon...................................... 72 Figura 13 ML escreve o mome de pessoas familiares....................................... 73 Figura 14 ML conta que foi ao restaurante...................................................... 74 Figura 15 ML descreve sua ida à Expoingá...................................................... 74 Figura 16 Preparação para a festa junina....................................................... 75 Figura 17 ML e suas primas em ambiente digital............................................. 76 Figura 18 ML assume o papel da empregada.................................................... 78 Figura 19 ML acorda sua mãe........................................................................ 79 Figura 20 Feira de brinquedos........................................................................ 80 Figura 21 Cirurgia da prima de ML.................................................................. 81 Figura 22 Carta para tia Cidinha..................................................................... 83

Page 11: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

xvi

Figura 23 Reprodução da fábula: “O leão e o ratinho”....................................... 85 Figura 24 Carta à sua mãe............................................................................. 87 Figura 25 AM conta que foi comer pastel....................................................... 93 Figura 26 AM conta que foi comprar sutiãn, estojo......................................... 97 Figura 27 Desenho de AM sobre sua ida às compras..................................... 98 Figura 28 AM fala sobre a festa de aniversário.............................................. 102 Figura 29 AM conta e desenha sobre sua casa.............................................. 103 Figura 30 AM conta sobre seus animais de estimação................................... 104 Figura 31 AM relata brincadeira de venda que fizemos na clínica.................. 105 Figura 32 AM conta sobre a visita de sua amiga............................................ 105 Figura 33 AM conta sobre suas atividades em casa....................................... 106 Figura 34 Aniversário da boneca de AM na clínica......................................... 107 Figura 35 AM brinca com sua cachorra.......................................................... 108 Figura 36 AM conta que andou no cavalo Pepeu........................................... 109 Figura 37 AM conta o que quer ganhar de aniversário................................... 110 Figura 38 AM escreve a receita de brigadeiro................................................ 111 Figura 39 Re-estruturação da estória “a princesa e o sapo”........................... 112 Figura 40 AM relata e escreve o sonhoa que teve com sua professora........... 114

Page 12: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

xvii

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO..................................................................................................... 01 CAPITULO 1 Síndrome de Down e gênese do peconcieto...................................... 05 CAPITULO 2: Considerações sobre a marca do estereótipo na síndrome de Down

e a perspectiva histórico cultural de Vygotsky................................... 15 CAPITULO 3 Linguagem e síndrome de Down........................................................ 21 CAPITULO 4 Mitos relacionados à sindorme de Down............................................ 35 CAPITULO 5 A busca de novo caminhos................................................................. 41 CAPITULO 6 O trabalho terapêutico clínico realizado com as crianças com

síndrome de Down............................................................................. 55 Procedimentos Éticos........................................................................ 55 Os sujeitos da pesquisa..................................................................... 55 Procedimentos de coleta de dado..................................................... 56 Caracterização dos sujeitos: Sujeito ML............................................ 60 Dados da produção oral de ML.......................................................... 62 Dado 1............................................................................................... 62 Dado 2............................................................................................... 67 Dado da produção da escrita de ML.................................................. 72 Dado 3............................................................................................... 72 Dado 4............................................................................................... 73 Dado 5............................................................................................... 73 Dado 6............................................................................................... 74 Dado 7............................................................................................... 75 Dado 8............................................................................................... 76 Dado 9............................................................................................... 78 Dado 10............................................................................................. 79 Dado 11............................................................................................. 80 Dado 12............................................................................................. 81 Dado 13............................................................................................. 83 Dado 14............................................................................................. 84 Dado 15.............................................................................................. 87 O sujeito ML....................................................................................... 88

Page 13: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

xviii

Caracterização dos sujeitos: Sujeito AM............................................ 89 Dados da produção/linguagem oral de AM........................................ 92 Dado 1............................................................................................... 92 Dado 2............................................................................................... 94 Dado 3............................................................................................... 98 Dado da produção da escrita de AM.................................................. 101 Dado 4............................................................................................... 102 Dado 5............................................................................................... 103 Dado 6............................................................................................... 104 Dado 7............................................................................................... 105 Dado 8............................................................................................... 105 Dado 9............................................................................................... 106 Dado 10............................................................................................... 107 Dado 11............................................................................................. 108 Dado 12............................................................................................. 109 Dado 13............................................................................................. 110 Dado 14............................................................................................. 111 Dado 15............................................................................................. 112 Dado 16.............................................................................................. 114 O sujeito AM....................................................................................... 115

CONCLUSÃO........................................................................................................... 117 REFERÊNCIAS........................................................................................................ 121 ANEXOS................................................................................................................... 129

Page 14: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

1

APRESENTAÇÃO

Esta tese apresenta e analisa o acompanhamento fonoaudiológico longitudinal de duas

crianças com Síndrome de Down: ML e AM. Neste estudo buscou-se privilegiar a relação que se

estabelece entre linguagem oral e escrita no início da entrada da criança para o mundo das

letras (COUDRY, 2010). No início deste processo a escrita funciona como sustentação da

materialidade da fala e, posteriormente, ganha corpo como uma nova possibilidade de

linguagem. No trabalho realizado com AM e ML foram observadas particularidades que revelam,

dentre outras coisas, que embora inicialmente houvesse entre os dois sujeitos uma discrepância

em relação à fala e seu funcionamento, este fato não foi impeditivo e nem demarcou diferenças

significativas na entrada inicial dessas crianças na leitura e na escrita. Além disso, constatou-se

que os processos intermediários de significação (COUDRY, 1986/1988; ABAURRE e COUDRY,

2008) realizados por essas crianças para dominarem o sistema alfabético se estendem por um

tempo maior do que o esperado em relação às crianças tidas como normais e da mesma idade.

O trabalho aqui realizado tem ancoragem na Neurolinguística Discursiva (abreviada

como ND) formulada por Coudry desde sua tese de doutorado, defendida em 1986 e publicada

como livro no ano de 1988, que concebe, com base em Franchi (1977), a linguagem como

indeterminada e, sobretudo, heterogênea sintática e semanticamente, pois humana, como lugar

de interação e de interlocução em que se dá uma relação dinâmica e constitutiva, entre sujeitos.

A ND considera que nesse trabalho entram em jogo, dispositivos (FOUCAULT, 1969; COUDRY,

2010) que determinam o dizer/fazer ao mesmo tempo em que o sujeito é tomado como alguém

que tem uma história de vida em curso, em uma determinada sociedade, participante de uma

comunidade de fala (SAMPAIO, 2006), portanto, histórico, heterogêneo.

Os dados, de fala e escrita, foram produzidos em situações interativas, conforme a

proposta discursiva a que se vincula esta pesquisa. São produzidos e mediados em situações de

fala, leitura e escrita, em práticas discursivas que representam à função social (intersubjetiva)

dessa tríade, além da função subjetiva, reflexiva que acontece nestas situações. Tais dados

possibilitam acompanhar as especificidades desses processos nos dois sujeitos com Síndrome

de Down (doravante SD), objetivo principal desta tese.

Metodologicamente, a análise dos dados é feita com base no conceito de dado-achado,

que é produzido no momento da interação e volta-se, no momento da análise, como um achado

acionado pela teorização proposta por Coudry (1991/1996). Essa metodologia tanto expõe os

Page 15: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

2

fatos linguísticos quanto os toma como objeto de reflexão, e, portanto, como dados; esse viés

analítico pressupõe um tratamento discursivo para os dados, em sua análise e nas formas de

seu acontecimento. Esse tipo de dado é sempre “revelador e encobridor" de fenômenos

linguísticos e sua análise proporciona um “movimento teórico”, permitindo a resolução de alguns

problemas e a colocação de outros (COUDRY, op. cit.); daí a razão de um mesmo fato poder ser

continuamente (re)interpretado, seguindo o curso da teorização 1.

Esta tese se compõe de duas partes. Na primeira parte que, inclui do Capitulo 1 ao

Capitulo 5, serão apresentadas as referências históricas e sociais que foram, e ainda são,

determinantes do olhar que a visão organicista dirige aos sujeitos com SD. Diferentemente

assumimos da perspectiva de Vygotsky uma visão dinâmica da deficiência mental entendendo

que a gênese da constituição humana é histórica e cultural e é somente na vivência com o outro

mais experiente que esse processo se concretiza. Será também considerada com Freud

(1891/1973) a fala como lugar de sentido para a criança, por onde ela entra na linguagem

mediada pelo outro associando a imagem sonora da palavra ouvida com a impressão

cinestésica/inervação do aparelho motor da fala com o objetivo de aproximar o som produzido do

som ouvido (COUDRY, 2008/2009; BORDIN, 2009); o que envolve tanto a face acústica quanto

motora da palavra; sendo por esse duplo retorno (do movimento e do sonoro) que se pode

corrigir/ajustar o que se fala. É pela via do sentido, pela repetição/recordação do motor e do

acústico da unidade funcional da palavra, e suas possíveis combinações, que o falante entra na

língua onde funcionam e se articulam suas dimensões fonológica, sintática, semântica,

pragmática. Faz-se necessária esta reflexão visto que, ainda hoje, as intervenções terapêuticas

propõem exercícios mecânicos desconectados do funcionamento da fala e da linguagem, fato

este que será explorado no Capitulo 4, Mitos Relacionados à Síndrome de Down.

E na segunda parte, Capitulo 6, serão apresentados os dados de fala e de escrita das

crianças, analisados de acordo com o arcabouço teórico elaborado no interior da ND, que

sustenta o trabalho linguístico-cognitivo realizado pelos sujeitos no acompanhamento

longitudinal. Os dados terão sua análise pautada, por um conjunto de conceitos que se articulam;

a partir do que busco compreender e participar da entrada da criança na linguagem, processo

em que ela é capturada pela língua (DE LEMOS, 2002/2006), sobretudo pelo discurso narrativo

(PERRONI,1992); busco entender, ainda, como a criança ganha autonomia na fala, manejando

1 A formulação dado achado é compatível com a epistemologia do paradigma indiciário proposto para as ciências humanas por Ginsburg (1986) de acordo com Abaurre e Coudry (2008).

Page 16: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

3

seu funcionamento (JAKOBSON,1956/1970) aprendendo o que deve selecionar e combinar

considerando a bipolaridade da linguagem. Dada à relevância configurada em alguns momentos

nesta análise, sobre a estrutura silábica e seus constituintes, será também considerado o

percurso estabelecido no que diz respeito ao conhecimento, por parte destas crianças, desta

estrutura. Esta análise toma por base os pressupostos de Selkirk (1982) que considera a sílaba

como uma unidade fonológica com uma estrutura interna hierarquicamente organizada. Para

entendermos a relação que se estabelece entre estes componentes fonológicos da sílaba, e a

sua percepção na escrita inicial de crianças, serão considerados os trabalhos de Abaurre (1999,

2001, 2006) nos quais autora analisa como as crianças quando em contato com a escrita

alfabética analisam e constroem hipóteses sobre estes segmentos.

Da abordagem histórico-cultural a ND partilha a visão de Vygotsky (1997) na qual as

funções culturais da linguagem, definem a especificidade humana. Essas funções surgem como

resultado da progressiva inserção da criança nas práticas sociais do seu meio cultural no qual,

por meio da mediação do outro, vai adquirindo sua forma humana à semelhança dos outros

homens. Partilho também a concepção de que a deficiência não retira do homem a possibilidade

de humanização, visto que, não é em si uma doença, mas uma condição prevista na

variabilidade humana da própria espécie (STRATFORD, 1989), que põe em outros termos a

relação normal/patológico.

Page 17: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

5

CAPITULO 1 SINDROME DE DOWN E A GÊNESE DO PRECONCEITO

Chegou um Down! Nasceu um Down! É bastante comum ouvirmos isto nos serviços de

saúde, nas clínicas, nas maternidades, nos centros obstétricos ou nas ante-salas dos

consultórios médicos. O sexo do recém nascido, ou da criança, suas características físicas,

como a cor dos olhos, dos cabelos, ou até mesmo seu nome, se apagam nessas circunstâncias

e a doença, a patologia, a síndrome, a aberração 2, falam mais alto.

Com a designação de Down apaga-se a individualidade do sujeito, conferindo-lhe uma

identificação que se estabelece como hegemônica da síndrome. Sem distinção, leigos e

profissionais da saúde e da educação assim se referem a esses sujeitos. O mesmo tratamento é

também observado em livros, sites especializados e artigos científicos. O que é visto pela grande

maioria das pessoas, envolvidas ou não com a questão, são as características fenotípicas

aparentes; assim, tais indivíduos passam a ser reconhecidos por aquilo que portam, ou seja,

pelos sinais da SD. É raro ouvir os comentários que são bastante comuns nas situações de

apresentação social de um recém nascido, considerado normal, como por exemplo, com quem

se parece. Quando nasce uma criança com SD há um silenciamento constrangedor, o que

chama a atenção é o que aparece, o que é visível. E tais indivíduos passam a ser reconhecidos

pelo seu problema: a síndrome de Down. Para Levy (1989) a quebra das espectativas faz com

que tudo aquilo que seja atribuído e esperado de meninos e meninas normais não tenha mais

importância agora (p. 32).

Para exemplificar situações como as afirmadas, trago o relato da mãe de uma criança

com SD participante de uma pesquisa por mim realizada em 1993 sobre como foi dada à notícia

do nascimento do filho. À época, ela me conta que sente o olhar dos profissionais da área da

saúde totalmente voltado para a síndrome e não para seu filho: ela levou seu filho a um

ortopedista para avaliação de seu andar, um pouco desajeitado; tão logo a mãe relata o motivo

da consulta, o médico fitando a criança, um pouco desconcertado, diz: Mas ele tem SD!! Para a

mãe a postura do médico é a de que se espera de antemão algo anormal para aquela criança

pela sua condição de trissômico, que o predestina a ser assim. E a mãe, em reposta a tal

constatação médica, responde: Que ele tem SD eu já sei desde que ele nasceu, mas eu o trouxe

aqui para que o senhor olhe o pé dele!.

2 Os termos em itálico correspondem aos usados comumente pela literatura médica, atualmente.

Page 18: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

6

Esta forma usual de percepção remete a questões discutidas por Foucault (1974/2002)

quando analisa o domínio da anomalia e, para tanto, elenca elementos que vão constituir tal

domínio, de forma marcante e determinante para as relações do homem, com a sociedade e

consigo mesmo. Tais elementos são representados na figura do monstro humano e do indivíduo

a ser corrigido onde o monstro humano se constitui em sua existência intrínseca e em sua forma,

uma violação das leis da sociedade, e é construído juridicamente, pelas leis da natureza, pela

nosologia e pelo discurso da medicina. O monstro, apenas por existir, passa a ser um duplo

infrator das leis, tanto das leis naturais como das leis sociais.

O indivíduo a ser corrigido, por sua vez, é um fenômeno mais freqüente na sociedade do

que o monstro, que ocupa um espaço limitado, pois está circunscrito ao contexto da família.

Porém, tanto o monstro, quanto o individuo a ser corrigido podem ser associados às

representações de anomalias presentes nas concepções atuais, a respeito das condições de

saúde das pessoas, nas diferentes síndromes, e principalmente na síndrome de Down, sendo

esta percepção extensiva ao discurso atual sobre a inclusão social.

Da mesma forma, Canguilhem (1943/1984) examina criticamente a tese prevalente no

séc. XIX, a respeito do entendimento usual sobre o que seja o normal e o patológico. A análise

do autor permite o entendimento de que as formações normais são fundadas no conhecimento

das formações monstruosas. E o entendimento sobre o que é o normal sedimenta-se na

constatação da existência das formações monstruosas, pois não há diferença ontológica, entre

uma forma viva perfeita e uma forma viva malograda. Se as diferenças ontológicas não são

perceptíveis, sobrepõem-se a elas as normas/leis construídas pela sociedade, que estabelecem

o discurso jurídico, o discurso da medicina e da nosologia médica, de acordo com Foucault

(1974/2002). Para Canguilhem (1943/1984), desta forma, a detecção de erros, em seres vivos,

exige ações prévias e que se relacionam com a determinação ou fixação da natureza de suas

obrigações como ser vivo sendo estas relações erigidas no contexto da história do indivíduo e da

sua vida em sociedade. O autor enfatiza que os fenômenos patológicos, nos organismos, não

são mais do que variações quantitativas - para mais ou para menos -, só podendo ser

compreendidas ao nível da totalidade orgânica e das experiências que os homens têm em suas

relações, em conjunto com o meio. Se não for considerada desta forma a questão da barreira

que separa o normal do patológico, poderá ser demarcada superficialmente. Apesar de ser esta

uma questão que está longe de ser compreendida, é fundamental que procuremos cada vez

mais analisar os fatos, na sua totalidade, para que possamos atuar de forma crítica em relação

às questões políticas, históricas e sociais, que envolvem o fenômeno estudado. Pois quando o

Page 19: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

7

médico fitando a criança, um pouco desconcertado, diz: Mas ele tem SD!! ele apenas reflete uma

formação discursiva que estabelece a determinação da doença pelo diagnóstico, separando os

indivíduos em classes de problemas, com base no discurso médico. A resposta do médico

mostra um olhar totalmente voltado para a síndrome e não para ser humano. O espaço entre o

ser humano e o monstro ou individuo a ser corrigido passa a ser uma linha tênue, sendo

justificado apenas por um discurso construído que determina o olhar.

A proposta desta tese envolve a discussão da relação existente entre o normal e o

patológico, tema no qual a ND vem se dedicando, desde seus primeiros estudos. Neste,

especialmente, busca-se compreender o movimento heterogêneo, às vezes abrupto, outras

vezes tênue da barra, (COUDRY, 2010), que separa o normal do patológico, indo em direção

contrária às imposições a que os sujeitos com SD têm sido submetidos, ainda, em nossos dias;

busca-se ainda conhecer os determinantes da ordem médica, as implicações sociais e históricas

a que esteve exposto o fenômeno conhecido, na sua descrição inicial como mongolismo.

Enviesado nesse conhecimento, encontra-se, também construída, a gênese do preconceito em

relação à SD: a marca desta posição está em evidenciar a desvalorização do sujeito em função

da valorização da síndrome.

O primeiro registro da SD foi realizado pelo povo Olmeca, no antigo México. Esta

civilização desenvolveu a região, que hoje conhecemos como o Golfo do México, entre 1500 aC.

até 300 dC, deixando rastros de sua cultura em artefatos, esculturas e desenhos de crianças e

adultos. Foram encontrados alguns desenhos e esculturas de fisionomias deste povo que

apresentavam características distintas daquelas comumente representadas por ele, mas, no

entanto, similares ao que foi posteriormente reconhecido como características da face de

indivíduos com SD (STRATFORD 1983; SCHWARTZMAN 1999). Contemporaneamente

observam-se imagens de famílias européias e até representações religiosas que caracterizam a

síndrome. Tanto os registros creditados aos povos do Antigo México como os do continente

europeu são indicadores da presença da síndrome em períodos diversos do desenvolvimento da

sociedade humana, porém para Stratford (op. cit.) a SD tem seu início absoluto na gênese

humana, ou seja, quando as pessoas passaram a se multiplicar.

Apesar dos primeiros registros datarem de mais de 3000 anos, as primeiras descrições

com referência à síndrome iniciaram-se somente no séc. XIX há pouco mais de cem anos.

Puschell (1983) considera algumas razões para isto, como por exemplo, o fato de não haver, na

época, revistas científicas que divulgassem o conhecimento, o baixo interesse dos estudiosos

Page 20: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

8

em pesquisa com crianças com problemas genéticos e/ou deficiência mental; o investimento

científico dirigido à descoberta de causas e tratamentos de doenças como infecções e

desnutrição. Além disso, até a metade do séc. XIX havia a constatação de que somente metade

das mulheres sobrevivia aos trinta e cinco anos de idade, razão pela qual a incidência de

nascimentos de SD poderia ser menor já que as mulheres não chegavam a ser mães em idade

madura. Outro fato é o de que muitas crianças nascidas com SD provavelmente morriam na

primeira infância sem que houvesse registro do fato.

Puschell (op. cit.) e Schwartzman (op. cit.) atribuem à primeira descrição da SD ao

médico francês Jean-Etiene Esquirol, em um trabalho de dois volumes sobre Malades mentales,

publicado em Paris, em 1838. No entanto, para Stratford (1989) há dúvida se Esquirol estava ou

não de fato descrevendo a particular condição que hoje conhecemos por SD. Isso se deve ao

fato de Straford (op. cit.) considerar a linguagem usada por Esquirol na descrição de seu trabalho

um tanto fantasiosa, extravagante e influenciada pela crença de que educar um deficiente mental

era uma inútil perda de tempo. É preciso levar em conta, no entanto, que embora suas

considerações hoje possam parecer descabidas, Esquirol foi uma figura muito respeitada em seu

tempo. No Dictionnaire des sciences médicale, Esquirol apresenta o registro das suas

observações sobre os indivíduos supostamente com SD, informando que,

tudo neles revela uma constituição imperfeita, forças vitais mal empregadas. Eles são incuráveis... atingiram o estágio final da degradação humana nas quais as faculdades mentais e intelectuais são inexistentes (ESQUIROL apud STRATFORD, op. cit., p.82)

Entretanto, é necessário ponderar que tais crianças eram regularmente abandonadas

pelas famílias. Em sua grande maioria, eram depositadas em instituições sem qualquer tipo de

atenção e/ou cuidados, de qualquer natureza. Qualquer criança nessas condições, apresentando

deficiência mental ou não, mas muito mais as deficientes, poderiam aparentar um quadro muito

mais severo do que realmente existia. Oito anos após a primeira descrição de Esquirol, em 1846,

Edouard Sèguin, médico discípulo de Itard, descreve um paciente, que parece se tratar de uma

criança com a SD, denominando sua condição intelectual de idiotia furfurácia (PUSCHEL, 1983).

Essa descrição é aceita atualmente como sendo da SD, um indivíduo de,

pele branca leitosa, rósea com escamações; as imperfeições de sua pele dão um aspecto inacabado dos dedos truncados e do nariz; lábios e língua rachados, conjuntiva ectópica vermelha, sobressaindo-se para compensar a pele encoberta da margem das pálpebras (p. 45)

Em sua obra Traitement moral: higiéne et éducacion des idiots et des autres enfants

arrièrés, publicada em 1846, Sèguin faz acusações contundentes aos médicos de sua época que

Page 21: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

9

escreviam sobre a idiotia, acusando-os de falar demais sobre o tema sem analisá-lo com

profundidade (PESSOTI, 1984). A obra de Sèguin rompe com a visão unitarista de uma idiotia

única considerando diferenças entre os tipos de manifestações e suas causas. Sèguin dedica

grande parte de sua obra a questões teóricas sobre a deficiência, sem deixar de esclarecer com

detalhes seu método para o trabalho com crianças deficientes. Para Stratford (1989) Sèguin foi

pioneiro em um trabalho educacional que hoje poderia ser considerado como a primeira escola

de educação especial da história. Em seu trabalho com os deficientes consegue bons resultados

quanto à educabilidade, rompendo com a hegemonia organicista dos médicos de sua época,

porém a tônica sobre o conceito da deficiência mental, essencialmente médica, continua, para a

grande maioria da comunidade médica, enfatizando prognósticos nada animadores. Acreditava-

se, nesta época, que os danos que provocavam a deficiência mental eram tão básicos que seria

uma total perda de tempo e recursos tentar mudá-los.

Depois de Sèguin, por vinte anos, não foi encontrado registro de nenhuma publicação

sobre a SD. Em 1866, Duncan registra em um manual a classificação, treinamento e educação

dos imbecis e idiotas débeis mentais, e descreve uma menina “com uma cabeça pequena e

redonda, olhos parecidos com os olhos dos chineses, projetando uma grande língua e que só

conhecia algumas palavras” (PUSCHELL, 1983, p.45). No mesmo ano acontece a publicação do

famoso artigo de John Langdon Down descrevendo algumas das características da síndrome

hoje conhecida pelo seu nome. O doutor Langdon Down era um médico, altamente respeitado,

com uma invejável reputação profissional e que, segundo Stratford (1989), chegou a espantar

seus amigos e colegas quando expressou a intenção de devotar sua carreira aos idiotas. Poucos

médicos nesta época, além de Down, direcionaram-se aos estudos da deficiência mental, sendo

que alguns estavam preocupados em descrever as características das pessoas mentalmente

deficientes e outros em discutir e entender a origem da deficiência mental. O peso da opinião

acadêmica a respeito da deficiência mental na época de Down estava ancorado na teoria da

degeneração na qual a deficiência mental era causada por algum tipo de regressão, um

retrocesso a uma forma mais primitiva de existência. Sendo que a noção de regressão está

intimamente relacionada com o termo idiotia mongolóide, hoje denominada de SD.

Gould (2004), paleontólogo americano, considerado um dos maiores conhecedores de

história da ciência de nosso tempo, esbarrou em questões para além das descrições contextuais

e toca em um ponto crucial para entendermos as questões históricas do preconceito. O autor

considera que todos nós já tivemos contato com uma criança trissômica, e em algum momento,

nos perguntamos o porquê desta denominação mongolóide para essa idiotia, já que os traços

Page 22: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

10

que caracterizam estas crianças não são tão marcadamente orientais, a não ser pela pequena

prega epicântica, que algumas delas apresentam.

A questão que envolve a síndrome e suas conseqüências sócio-educativas é muito mais

profunda do que uma simples aparência oriental. Para Gould (op. cit.), poucas pessoas, quando

empregam hoje os termos, idiota, imbecil, débil mental – e posteriormente mongolóide – têm

consciência de que essas palavras se revestiam, na época da descrição da síndrome, de um

caráter científico para os médicos contemporâneos do doutor Down.

O significado desses termos carrega um preconceito social, inscrito na cultura de cada

época em uma determinada sociedade. Originariamente o termo idiota referia-se, na antiga

Grécia, às pessoas que não tinham vida política, ou seja, pessoas sem expressão na

comunidade. No período helênico este termo passa a designar pessoas que em uma situação

social fazem afirmações tolas ou sem fundamentação. Nesta situação era utilizada a expressão

você está falando como um idiota, significando alguém que não tinha noção do que falava

(STRATFORD, 1998). Na Roma antiga, o termo utilizado para designar pessoas que

apresentavam um padrão não condizente com o esperado socialmente era imbecil. É bastante

conhecido o fato de que, nesta época, pessoas com dificuldades físicas ou mentais eram

considerados sub-humanos e, desta forma era legitimado o seu abandono ou até mesmo a sua

morte. Na era cristã o deficiente ganha alma e, desta forma, não pode mais ser eliminado, pois

isto seria atentar contra a divindade. Nesta mesma época os termos, idiota, imbecil ou débil

mental, passam a designar pessoas que apresentam algum tipo de deficiência indistintamente.

No início do século XIX a partir de sua obra, Traitment Moral, Edouard Sèguin faz

distinções aos conceitos idiotia, imbecil e debilidade, com comprometimentos e etiologias

distintos. O autor leva em conta, naquela época, além das causas orgânicas, fatores ambientais

e/ou psicológicos. No início do século XX, com a introdução dos estudos psicométricos de Alfred

Binet, com a finalidade inicial de identificar crianças com necessidades de alguma forma de

intervenção diferenciada, passou a utilizar uma escala de valor numérico, por ele idealizada,

capaz de expressar a potencialidade global de cada criança. Para este propósito Binet elaborou

uma ampla série de tarefas organizadas segundo o grau de dificuldades que expressaria o

quociente de inteligência (QI) de determinada criança. Para Gould (2004) os objetivos iniciais

das escalas de Binet não foram medir e rotular crianças estigmatizando-as, mas sim o de

oferecer elementos para um diagnóstico psicológico da deficiência mental, comparando as

diferenças de desenvolvimento, o normal e o atrasado. Embora não fosse esta a proposta de

Page 23: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

11

Binet, a escala, por ele organizada, passa a fornecer uma medida quantitativa de inteligência que

a depender da visão do avaliador pode comprometer drasticamente o futuro da criança.

Após o estabelecimento do conceito de QI à deficiência mental é atribuída uma

designação quantitativa na qual os débeis mentais passam a ser classificados com o QI entre 50

e 70; os imbecis entre 25 e 50 e os idiotas abaixo de 25. No caso da SD, caracterizada como

idiotia, ela está no mais baixo grau, na classificação tripartida da deficiência mental, sendo que

os indivíduos classificados como idiotas apresentavam como uma de suas características o não

domínio da linguagem.

Doutor Down era o médico superintendente do Asilo Earlswood para Idiotas, no Surrey,

na Inglaterra, quando publicou suas Observations on a ethnic classification of idiots, no London

Hospital Reports em 1866 (GOULD, 2004). Foi nesta época que Langdon Down descreveu os

idiotas caucasianos que apresentavam traços que lembravam, não por acaso, africanos,

malaios, índios americanos e orientais. Curiosamente, Gould (2004) constata que dessas

extravagantes comparações, só os idiotas que se agruparam à volta do tipo mongolóide,

sobreviveram na literatura com a designação técnica, que hoje é reconhecida como SD. Porém

qualquer pessoa que leia o artigo do doutor Down, nos dias de hoje, sem um conhecimento de

seu contexto histórico poderá subestimar seu propósito de seriedade. Para o autor, o artigo de

Down, hoje, poderia ser considerado “um conjunto as analogias dispersas e superficiais, quase

fantásticas, apresentadas por um homem preconceituoso” (p.54). No seu tempo, porém,

significou uma tentativa possível de construir uma classificação genérica e causal da deficiência

mental, com base na melhor teoria biológica, mas submetida ao racismo dominante em uma

Inglaterra vitoriana em fins do século XIX.

Por volta de 1866, ainda sob a prevalência da teoria da degeneração, a recapitulação

constituía o melhor guia para o biólogo na organização da vida em sequências de formas

superiores e inferiores. Essa teoria sustentava que os animais superiores no seu

desenvolvimento embriológico percorrem uma série de estágios representativos, em sequência

adequada, das formas adultas de criaturas ancestrais inferiores. Assim, o embrião humano

desenvolve primeiro as fendas branquiais, como um peixe, mais tarde um coração de três

câmaras, como o de um réptil, e ainda mais tarde uma cauda de mamífero. A recapitulação

forneceu um foco conveniente para o racismo difundido dos cientistas brancos, que viam nas

atividades das suas próprias crianças uma fonte de comparação com o comportamento adulto

Page 24: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

12

normal nas raças inferiores. Como método de trabalho os recapitulacionistas recuperavam

antepassados reais no registro fóssil.

Muitos dos recapitulacionistas advogaram a idéia de que certos tipos de adultos

anormais entre as raças superiores existiriam devido à suspensão do desenvolvimento. A

reversão, ou atavismo, constitui o reaparecimento espontâneo nos adultos de características

ancestrais que desapareceram nas linhagens recentes. O exemplo mais espantoso,

representativo e conhecido dessas idéias recapitulacionistas é Cesare Lombroso, o fundador da

antropologia criminal, que acreditava que muitos dos transgressores da lei agiam por compulsão

biológica, por causa de um passado bestial que era revivido. Lombroso estabelecia uma

correlação direta entre o que marcava morfologicamente um indivíduo e sua conduta social,

onde os criminosos natos eram identificados pelos seus estigmas observados, estigmas de

morfologia simiesca: testa retraída, queixos proeminentes e braços compridos eram criminosos

natos, expressando já os primórdios da frenologia.

Gould (2004), por sua vez, critica a posição segundo a qual a suspensão do

desenvolvimento significa a transposição anormal para a fase adulta de características que

aparecem normalmente na vida fetal, e que deveriam ter sido modificadas ou substituídas por

algo mais complexo. Ou seja, para esta teoria, se um caucasiano sofre uma suspensão em seu

desenvolvimento fetal, pode nascer num estágio inferior da vida humana. Ainda segundo Gould,

foi neste contexto que o doutor Langdon Down teve o seu insight enganoso no qual acreditava

que alguns idiotas caucasianos provavelmente representavam suspensão do desenvolvimento e

deviam sua deficiência mental à retenção de traços e capacidades que seriam consideradas

normais nos adultos de raças inferiores. Nesta direção o doutor Down dirigiu suas investigações

para as características de raças inferiores, assim como o fez Lombroso, vinte anos depois, à

procura de sinais de morfologia simiesca.

Para Gould (2004) o doutor Down descreveu sua pesquisa com excitação óbvia (p. 147),

pois acreditava ter estabelecido uma classificação natural e causal da deficiência mental

segundo a qual, quanto mais séria for, mais profunda a suspensão do desenvolvimento e mais

inferior a raça em questão. Na reflexão dos autores Stratford (1989) e Gould (2004), fica

evidente, então, que a conjunção de vários fatores, como a pretensa soberania do povo

britânico, o racismo preponderante da época, a crença na existência de raças inferiores,

contribuíram para a conclusão de que indivíduos com SD refletiam uma suspensão do

desenvolvimento fetal, uma regressão a uma raça que julgavam inferior, levando-se em conta os

Page 25: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

13

padrões da época. E em decorrência disso, a expressão idiotia mongolóide se estabeleceu

fortemente - assim como outros tipos de idiotia 3 - sendo esta, porém, a única denominação que

prevaleceu na literatura médica, até recentemente. Há evidências, no entanto, que indicam não

ser apenas à aparência, ou os olhos puxados, os determinantes da denominação idiotia

mongolóide atribuída para esta síndrome, mas sim a crença no determinismo biológico,

prevalente na época, de que algumas raças, no caso os Mongóis, seriam constituídas de um

material inferior, cérebros mais pobres, genes de má qualidade estando predestinadas a assim

permanecer.

Esta questão é retomada por Canguilhem (1943/1984) quando busca romper com o que

é estabelecido rigidamente como sendo o normal e o patológico. O autor afirma que a relação

normal/patológico depende de uma série de fatores que devem ser considerados e discutidos,

pois, não estamos localizados sempre em uma dessas categorias. Minkowski apud Vygotsky

(1983), em referência ao estudo da doença mental, argumenta que é pela anomalia que o ser

humano se destaca do todo formado pelos homens e pela vida. É a anomalia que revela o

sentido de ser singular e o faz de uma maneira radical e impressionante. Assim, o autor

caracteriza a patologia não com algo desviante, mas sim diferente - no sentido qualitativo.

A importância da retomada destas proposições se deve ao fato de muitas vezes não nos

darmos conta da razão destas crianças/adultos, com SD, ou qualquer outra deficiência, ainda

hoje serem tão estigmatizados, marginalizados e desconsiderados. Por mais que sejam

veiculadas campanhas direcionadas à inclusão - aliás, a grande necessidade de campanhas na

mídia é um forte indício de rejeição social – o preconceito permanece algumas vezes de forma

velada, outras vezes escancarada, mas está sempre presente. A teoria da degeneração, vigente

há mais de cem anos, ainda traz consequências nos dias de hoje, mesmo de forma silenciosa.

Assim, é comum encontrarmos na literatura, quando se trata da descrição da SD, a designação

prega simiesca para se referir à prega palmar única, embora isso também ocorra entre crianças

normais e nem sempre ocorra em crianças com SD.

É importante, desta forma, conhecer as condições históricas e culturais nas quais os

estudos do século XIX ocorreram, a fim de percebermos mais claramente os porquês de

algumas designações que caracterizam a deficiência mental se manterem ainda hoje, mais

especificamente a SD. A forma de conceber doenças/síndromes pode ser compreendida pelo

3 Esta terminologia foi estabelecida para outras raças consideradas inferiores, como por exemplo, para a raça negra

como idiotia negróide

Page 26: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

14

modo de pensar de uma época, ou ainda, nas palavras de Foucault (2004), pela vontade de

verdade de uma época.

Page 27: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

15

CAPITULO 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A MARCA DO ESTEREÓTIPO NA SÍNDROME DE DOWN E A PERSPECTIVA HISTÓRICO CULTURAL DE VYGOTSKY

Como observamos no capitulo anterior, a questão do estereótipo é algo marcante na SD

e foi isso que levou o doutor Down a caracterizá-la como idiotia mongolóide. A partir de

características como, prega epicântica na região interna dos olhos, face arredondada, prega

palmar única, hipotonia, dentre outras características, sujeitos com SD dão a impressão de

pertencerem a uma categoria única e homogênea que os iguala a ponto de perderem sua

identidade/subjetividade. Tal tendência de homogeneidade é encontrada, também, em livros

sobre a SD que atribuem características específicas de comportamento e personalidade, como a

afabilidade, a afetividade, a meiguice, dentre outras, como atributos da síndrome. Porém,

autores como Stratford (1995) e Schartzman (1999) não compactuam com tais atribuições

considerando que é impossível traçar um único perfil que identifique todos estes indivíduos, o

que vale também em relação à população em geral.

Desta forma, é mais produtivo pensar que todos nós apresentamos características

específicas e variadas, e agimos levando em conta aspectos sócio-culturais de nossa

comunidade/sociedade, com a qual partilhamos características comuns. É evidente, porém, que

indivíduos com SD, como qualquer população, apresentem variabilidade marcante e pelo fato de

serem inseridos em uma categoria de doença - e não de uma condição genética – faz com que

sejam expostos a uma interpretação padronizada e quantitativa, onde o indivíduo com SD é

considerado mais ou menos afetado pela síndrome. É preciso evidenciar, no entanto, que isto

não é possível; a síndrome apresenta-se de forma irredutível e irreversível pela alteração

orgânica decorrente da trissomia do par 21, na fase de desenvolvimento embrionário. No

entanto, há que se considerar que as alterações e as variabilidades observadas nesses sujeitos

estão, como para qualquer pessoa da população, na dependência das condições sócio-culturais

e psico-afetivas a que estão expostos e envolvidos. Barrôco (2007) psicóloga e pesquisadora na

área de deficiência mental informa que muitas coisas aconteceram até se chegar à idéia,

presente nos dias de hoje, de qua a deficiência não retira do homem a sua possibilidade de

humanização, e de que a deficiência não é, em si, uma doença, mas uma condição, talvez

advinda de uma doença, com a qual a pessoa convive, quase sempre, por toda vida (p. 120).

A este respeito Stratford (1989) evidencia que nenhuma pessoa é deficiente no âmbito

de sua própria existência, mas se mostrará deficiente frente às exigências feitas a ela pela

Page 28: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

16

sociedade à qual faz parte. A variabilidade do desenvolvimento ou o que acontecerá com o

sujeito com SD depende, portanto, muito mais das condições culturais do que das condições

orgânicas que caracterizam a síndrome. É importante consideramos, no entanto, que crianças

com SD apresentarão, em seu desenvolvimento, diferenças e dificuldades que são decorrentes

da sua condição genética (trissomia do par 21), não há como negar este fato. A questão a ser

considerada é a postura assumida, pela sociedade, frente a estas dificuldades que serão

negativas (déficit) ou positivas (superação) a partir da concepção de sujeito assumida pelo outro.

Desta forma, as dificuldades apresentadas por essas crianças poderão ser minimizadas,

relativizadas e ou superadas a partir do entendimento que a sociedade apresenta a respeito da

síndrome (principlamente os profissionais envolvidos com elas). Considero que a proposição de

Stratford (op. cit.) vem neste sentido, ou seja, de que as deficiências são pérpetuadas ou não a

partir do valor a ela atribuido.

A este respeito Omote (1996), pesquisador na área de educação especial da

Universidade Estadual Paulista, campus de Marília, ao rever os conceitos relacionados à

deficiência mental, questiona a posição de que a deficiência é algo inerente à pessoa e comenta

criticamente as consequências desta visão na intervenção terapêutica, onde,

a concepção da deficiência como algo que está inerentemente presente no organismo e/ou comportamento da pessoa identificada como deficiente e a sua delimitação em função de áreas supostamente distintas de comprometimento implicam automaticamente um modo específico de lidar com as deficiências e as pessoas deficientes. Criam-se nomes e categorias para especificar (talvez construir) diferentes tipos de deficiência, especializam-se profissionais e profissionalizam-se as nomenclaturas. (...) Com isso cria-se a ilusão da homogeneidade entre os membros pertencentes a uma mesma categoria e de muita diferença entre eles e os membros de qualquer outra categoria. Assim os portadores da síndrome de Down podem ser vistos como muito parecidos uns com os outros, e o que é pior, vistos como tendo as mesmas necessidades e possibilidades, o que até pode ser usado para justificar a padronização de atendimento a eles dispensado. Ao mesmo tempo, esses deficientes podem ser vistos como muito diferentes dos deficientes pertencentes a outras categorias (p.127, itálico meu)

As concepções apresentadas indicam uma forma de compreender a deficiência

estabelecendo, de acordo com a teoria assumida, as proporções cabíveis ao binômio

orgânico/cultural. Este não é, no entanto, um assunto novo, já discutido há mais de meio século

por Vygotsky, nos anos de 1920, em seus estudos sobre defectologia. O autor enfatiza que o

destino de uma pessoa, em última instância, não é decidido pela ordem do orgânico, ou seja,

não é o defeito - a deficiência, a diferença - em si mesmo, os definidores, mas pelas realizações

psicossociais. Em relação às suas realizações e seu desenvolvimento, Vygotsky (1926/2004)

considera que,

Page 29: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

17

a criança não é um ser acabado, mas um organismo em desenvolvimento e, conseqüentemente, o seu comportamento se forma não só sobre a influência excepcional da interferência sistemática no meio mas ainda em função de certos ciclos ou períodos do desenvolvimento do próprio organismo infantil, que determinam, por sua vez, a relação do homem com o meio (p. 289).

Vygotsky (op. cit.) chama a atenção para a necessidade de valorização desses sujeitos

como sendo algo de crucial importância para o seu processo de desenvolvimento, pois há de ser

considerado que a deficiência não retira do homem a possibilidade de humanização e sua

inserção em uma cultura. Esta concepção, no entanto, não faz parte de um consenso,

prevalecendo, como podemos observar na literatura vigente e nas práticas diárias com estes

sujeitos, a idéia de que tais sujeitos apresentam déficit. A especificidade da estrutura orgânica e

psicológica, o tipo de desenvolvimento e de personalidade, e não as proporções quantitativas é o

que distingue a criança deficiente mental da criança normal. O autor examina em seus estudos a

questão da quantidade e da qualidade na aprendizagem da criança com retardo mental. Ele

questiona, no início do século XX, se já não era hora de compreendermos com profundidade e

veracidade todo o processo de desenvolvimento da criança, estabelecendo uma comparação

deste processo com a transformação da lagarta em crisálida e de crisálida em mariposa, ou seja,

o que ocorre ao longo do desenvolvimento da criança são transformações qualitativas. Neste

sentido a deficiência mental infantil deve ser entendida como uma variedade, como um tipo

especial de desenvolvimento, e não como uma variante quantitativa para menos do

desenvolvimento normal em que o patológico ganha amplo espaço de consideração.

Esta forma de interpretar a questão da deficiência aponta para o que Vygotsky (1983)

assinala: “a criança cujo desenvolvimento está complicado por um defeito não é simplesmente

uma criança menos desenvolvida que seus coetâneos normais, mas sim que se desenvolve de

outro modo” (p.181). Embora o autor considere que as leis do desenvolvimento sejam as

mesmas para as crianças consideradas normais e crianças deficientes, as relações entre as

diferentes funções psíquicas podem se estabelecer de uma forma diferenciada. O autor explicita

de forma clara a sua preocupação em não valorizar o déficit e sim compreender as necessidades

destas crianças estabelecendo objetivos práticos para sua superação, por meio da mediação do

outro. No interior da sua teoria, a mediação é estabelecida pela relação criança/adulto,

criança/mundo que se dá por meio de práticas sociais que são mediadas pela linguagem.

Para Vygotsky (1988), o processo de internalização e a transformação em estruturas

mais complexas das funções mentais superiores não é algo simples. Ele considera que todas as

funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes, ou seja, primeiro no nível social e

Page 30: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

18

depois ao nível individual; primeiro entre pessoas - interpsiquico, e depois no interior da criança –

intrapsiquico. Todas as funções superiores originam-se das relações entre indivíduos humanos.

O autor considera que a transformação de um processo interpessoal em um processo

intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos no processo de

desenvolvimento. Na transformação do social em interno os sistemas simbólicos mediadores,

principalmente a linguagem, têm papel fundamental na organização superior tipicamente

humana.

Vygotsky (1983) se preocupou, também, com a crítica ao modelo vigente de práticas

educativas com essas crianças. Para ele, a criança mentalmente atrasada necessita mais do que

a criança normal de estabelecer os vínculos com a natureza, com o trabalho e com a sociedade

no processo de aprendizagem escolar. O fato de o processo como um todo ser tão complexo

deveria ser visto como um fator positivo e que leva a criança e seus interlocutores a superar

dificuldades que se apresentam; isso requer que se proponham tarefas criativas de educação

com respeito ao desenvolvimento. Vygotsky (1926/2004) alerta, ainda, para o fato de que o

educador que se envolve com as práticas de educação deve se preocupar com a assimilação

dos conhecimentos. Para o autor a forma de aprender de cada criança acontece de maneira

individualizada; ou seja, o processo de aprendizado tem uma lógica de desencadeamento no

interior da mente de cada criança. De acordo com Vygotsky (op. cit.), existe uma rede

subterrânea de processos que são desencadeados e se movimentam no curso da aprendizagem

escolar e têm uma lógica própria de desenvolvimento. Desta forma a tarefa do educador, ou

quem trabalha com a criança, é a de descobrir essa lógica interna, este código interior de

processos de desenvolvimento desencadeados por essa ou aquela atividade, ou seja, as

crianças internalizam os conhecimentos de formas muito variadas, pois são diferentes, assim,

cabe às pessoas que trabalham com elas compreenderem seu trajeto e a melhor forma que

aprendem.

Uma das críticas mais importantes na obra de Vygotsky (1988/2001) recai sobre a forma

de se avaliar o nível de desenvolvimento intelectual de uma criança. O autor chama a atenção

para o fato de as crianças serem avaliadas por testes que indicam o que ela é capaz de fazer

sozinha. Desta forma o que se estabelece com os testes é o nível de seu desenvolvimento real

(também traduzido como atual). Diferentemente, a questão a ser discutida é que, para o autor, o

estado do desenvolvimento de uma criança nunca pode ser determinado apenas pela parte

madura, isto é, o que ela consegue fazer hoje, sozinha, com autonomia, mas sim pelo que ela

pode fazer com ajuda, em cooperação e/ou por sugestão. Aquilo que a criança consegue fazer

Page 31: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

19

com a ajuda de outras pessoas pode ser muito mais indicativo de seu desenvolvimento mental

do que aquilo que consegue fazer sozinha. Esta discrepância entre a idade mental real ou nível

de desenvolvimento atual, compreendida com os problemas que a criança resolve com

autonomia, e o nível que ela atinge ao resolver os problemas em colaboração com outras

pessoas, é denominado pelo autor por zona de desenvolvimento proximal, ZDP, (também

traduzida como zona de desenvolvimento imediato). Desta forma compreendemos que a criança

orientada, assessorada, sempre poderá ir além e resolver tarefas mais difíceis do que quando

sozinha.

Para explicar os fundamentos da ZDP, o autor chama a atenção para uma situação que

segundo ele nem sempre foi muito compreendida na psicologia: a imitação. Ele não considera

imitação uma atividade puramente mecânica, e explica que não se pode imitar qualquer coisa,

mas somente aquilo que se encontra nas potencialidades intelectuais de quem imita. Para imitar

é preciso que a criança apresente tal possibilidade que vai levá-la a executar aquilo que ela

nunca havia feito. O que é observado é que as crianças podem imitar ações que vão muito além

de suas próprias capacidades; é importante observar também o limite que se estabelece na

própria dinâmica da atividade de imitação e que também se diferencia, de criança para criança.

A esse respeito Vygotsky (2001) enfatiza que quando,

em colaboração a criança se revela mais forte e mais inteligente que trabalhando sozinha, projeta-se ao nível das dificuldades intelectuais que ela resolve, mas sempre existe uma distância rigorosamente determinada por lei, que condiciona a divergência entre a sua inteligência ocupada no trabalho que ela realiza sozinha e a sua inteligência no trabalho em colaboração. As nossas investigações mostraram que pela imitação a criança não resolve todos os testes até então não resolvidos. Ela chega até um limite, que é diferente para crianças diferentes. (...) em colaboração com outra pessoa, a criança resolve mais facilmente tarefas situadas mais próximas do nível de seu desenvolvimento, depois a dificuldade da solução cresce e finalmente se torna insuperável até mesmo para a solução em colaboração. A possibilidade maior ou menor de que a criança passe do que sabe fazer sozinha para o que sabe fazer em colaboração é o sintoma mais sensível que caracteriza a dinâmica do desenvolvimento e o êxito da criança. Tal possibilidade coincide perfeitamente com a sua zona de desenvolvimento imediato [o termo imediato foi utilizado na tradução de Paulo Bezerra na obra A Construção do Pensamento e da Linguagem editado pela Martins Fontes em 2001, sendo observado em outras traduções o termo proximal que será utilizado neste estudo] (p. 329).

A partir das considerações enunciadas, evidencia-se a importância do outro no processo

de internalização de conhecimentos não só para crianças que estão se desenvolvendo

normalmente, mas principalmente para crianças com deficiência mental que, pelo atraso, em

decorrência da deficiência, quando deixadas em si mesmas, apresentarão grande dificuldade em

avançar para situações de maior complexidade na aprendizagem.

Page 32: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

20

Neste sentido, Vygotsky (op.cit.) chama a atenção para a falsa premissa de que crianças

com deficiência mental não são capazes de ter pensamento abstrato. Parece ser com base

neste principio que a escola especial acabou por definir toda a sua estrutura de ensino seria

baseado no concreto. A pedagogia que se fundamenta nessa prática não só não permitiu que

essas crianças atingissem níveis mais avançados de desenvolvimento, como também reforçou

suas deficiências, acostumando-as ao pensamento concreto e retirando-lhes, assim, qualquer

possibilidade de pensamento abstrato.

Torna-se evidente, a partir dos pressupostos apresentados, que não devemos esperar

que a criança deficiente demonstre estar apta ou, nas palavras do autor, demonstre estar

madura, para apresentar-lhe uma determinada questão, pois aquilo que queremos que ela faça

sozinha amanhã deverá ser trabalhado hoje em conjunto e demonstrado a ela. Nessa visão, a

aprendizagem está sempre à frente do desenvolvimento, pois é a aprendizagem que leva ao

desenvolvimento e não o contrário. Dessa forma não é preciso esperar que a criança atinja certo

grau de desenvolvimento para que possa aprender, mas, ao contrário, a aprendizagem cria uma

zona de desenvolvimento imediato suscitando e despertando a criança para uma série de

processos interiores de desenvolvimento. Os processos que seriam possíveis somente com a

ajuda dos que estão próximos à criança se tornam, aos poucos, seu patrimônio interior. E a

aprendizagem conduz essa criança, ao desenvolvimento mental suscitando processos que, fora

da aprendizagem, não seriam possíveis. Considerando que é por meio da linguagem, e

juntamente com ela, que se dá a vivência e a reflexão de conceitos e, pensando na deficiência

mental, especificamente na SD, podemos explorar como a literatura tem tratado a questão do

funcionamento da linguagem nessas crianças, assunto que objeto de análise no capitulo

posterior.

Page 33: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

21

CAPITULO 3 LINGUAGEM E SÍNDROME DE DOWN

A linguagem é um dos aspectos de maior interesse na pesquisa com SD. Os autores

consideram que crianças com SD apresentarão atrasos e/ou dificuldades de forma significativa.

Esta afirmação é corroborada por Chapman (1977); Miller (1996); Hostmeier (1987); Schartzman

(1999), que justificam tais dificuldades ao fato destas crianças apresentarem deficiência severa.

A este respeito Kerr (1926) apud Booth (1985) apresentam um quadro bastante significativo

desses indivíduos quando enfatizam que,

eles são freqüentemente ecolálicos, têm a fala imperfeita, formam as consoantes inapropriadamente, ler e escrever estão além de suas possibilidades, mas a maioria delas gosta de música... o diagnóstico do mongolismo típico é claro, e quando feito é irremediável quanto à melhora educacional, embora a criança possa parecer promissora... eles nunca chegam a ser imbecis (p. 9).

A descrição feita por Kerr, de crianças SD, permeia os limites da incompetência e da

inabilidade, onde o indiviíduo com SD apresenta imperfeições, inapropriações e impossibilidades

havendo de considerar que qualquer criança que receba um diagnóstico como esse, estará

fadada ao fracasso. Tais crianças, citada por Kerr, seriam provavelmente institucionalizadas e

nada mais seria feito por elas. Ninguém investiria em seu desenvolvimento e assim sendo, quase

ninguém falaria com elas, e elas, também, não falariam com quase ninguém; como se poderia

afirmar, então, que elas têm um impedimento para entrar na fala, leitura e escrita? A partir de

outra concepção de linguagem, de sujeito, de cérebro/mente e da relação entre o normal e o

patológico, e uma visão histórica desses aspectos, considera-se que, o que era observado

nessas crianças quanto à sua capacidade de linguagem era algo muito aquém do que se pode

esperar de uma criança com SD hoje.

Sobre a questão da severidade da deficiência e da educabilidade da criança com SD,

Rynders et al. (1979), questionando os resultados de pesquisas realizadas na área, analisaram

105 artigos que continham informações relevantes sobre aspectos educacionais relacionados à

SD que foram publicados entre 1963 e 1978. Eles observaram os seguintes problemas

metodológicos nessas publicações: (a) 61 não especificavam o tipo de trissomia, (b) 63 não

especificavam o sexo das pessoas envolvidas na pesquisa, (c) 25 não forneciam indicações se

os sujeitos viviam com suas famílias ou em instituições, e a qualidade dos cuidados que

recebiam, (d) 56 agruparam dados que variavam de crianças até adultos. Como resultado dessa

análise, os autores concluíram que os sujeitos com SD poderiam estar em uma situação melhor

Page 34: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

22

cognitivamente do que os resultados apresentados pelos autores. A avaliação de QI, por

exemplo, poderia receber a pontuação de 50 ou mais, diferentemente dos resultados obtidos que

ficaram abaixo de 50. Os autores também sugerem que os médicos deveriam informar os novos

pais que seus filhos apresentam grande chance de não ser um deficiente mental severo, e que

existe grande variabilidade no desenvolvimento de sujeitos com SD, assim como em qualquer

população, e que os limites das capacidades educacionais da SD são desconhecidos.

Em seu artigo, Rynders et al. (1979) apresentam uma visão mais realista e otimista em

relação às questões educacionais e de desenvolvimento de pessoas com SD. Os autores levam

em conta a individualidade e a variabilidade da síndrome e se opõem à visão tradicional da área

médica, que orienta e determina que essas crianças sejam todas iguais e com poucas

possibilidades de educabilidade.

Para Miller (1987), crianças com retardo mental não demonstram, de uma forma geral,

os mesmos comportamentos de linguagem que crianças de sua mesma idade cronológica,

embora considere que as primeiras não apresentem padrões bizarros de produção. O autor

chama a atenção para o fato de que existe um dilema a ser resolvido que é a questão de

considerarmos a linguagem dessas pessoas quantitativamente ou qualitativamente diferente, ou

seja, elas estão falando com atraso ou estão falando de forma diferente, em outro padrão?

Apesar de o autor considerar que atrasos no desenvolvimento da linguagem comparados à idade

mental são considerados como um desempenho desviante da linguagem, em outro momento,

relata que crianças com atraso mental seguem o mesmo curso e a mesma sequência das

crianças que estão se desenvolvendo normalmente, apenas mais lentamente, ou seja, o autor

apresenta posição ambígua. Considero que, em relação a esta posição de Miller (1987), o atraso

é realmente algo que não se pode negar, no que diz respeito à crianças com síndrome de Down,

mesmo assim teríamos que questionar as condições de funcionamento de linguagem oferecidas

à cada criança, mas a questão de um padrão diferente torna-se infundada, pois estas crianças

estão expostas ao mesmo sistema de língua e, apesar das dificuldades, existe um sistema em

funcionamento que é o mesmo encontrado em todas as crianças. Desta forma considero que

não seja possível traçar um padrão diferente de fala e linguagem para crianças com SD.

Apesar de a SD ser bastante descrita pela literatura, a aquisição e desenvolvimento da

linguagem oral e/ou escrita de crianças com SD são marcados por muitos mal entendidos,

preconceitos e mitos. Esses equívocos, segundo Gun (1985), decorrem do desconhecimento,

Page 35: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

23

tanto de profissionais como de leigos, do funcionamento de linguagem dessas crianças 4 e de

pré-julgamentos oriundos da percepção de que a condição orgânica os torna incapazes de

qualquer tentativa de interpretação e produção de linguagem.

Stefanini; Caselli e Volterra (2007); Miller (1987); Meyers (1990); Hostmeier (1983) são

unânimes ao considerarem os sujeitos com SD como de risco para a aquisição de linguagem por

apresentarem: (a) frequentes problemas de orelha média, o que afetaria o processo auditivo em

vários níveis, como por exemplo, percepção auditiva, compreensão, memória auditiva; (b) déficit

na coordenação motora que pode acometer a sincronia dos movimentos requeridos para a

produção oral, incluindo respiração, fonação e articulação dos órgãos fonoarticulatórios; (c)

déficits cognitivos, considerando que para a maioria desses autores a linguagem é

compreendida como decorrente da cognição, portanto, déficits cognitivos levariam

invariavelmente a problemas na aquisição e desenvolvimento da fala e linguagem. Para os

autores a ocorrência de um desses fatores é suficiente para gerar déficits na aquisição da

linguagem; juntos, então, representam um quadro bastante desfavorável.

Os argumentos dos autores citados acima, coerentes com uma visão organicista, que

leva em conta o déficit e não as possibilidades dessas crianças desconsideram questões

importantes do ponto de vista da relação que esses sujeitos estabelecem com a linguagem,

sobretudo com a fala. Todas as causas ou justificativas para os problemas dessas crianças

estão centradas no próprio sujeito. Não mencionam, quando relacionam fatores que interferem

nesse processo, a história de vida dessa criança, sua relação familiar e psico-afetiva, as

condições de produção das situações interativas (quando há), o ritmo de aprendizado da criança,

experiências, envolvendo produção e compreensão, motoras, sensoriais e perceptivas do

movimento em relação ao próprio corpo e ao dos outros, além de relações com as coisas do

mundo. Sem isso o sujeito é um recorte, habita um vácuo, como se nada houvesse antes ou

depois dele.

Na visão que criticamos tudo o que acontece fora do usual, de uma medida ideal para

todos, ou daquilo que é comum a todos ou à média, ou ainda em tempos diferentes na execução

das tarefas, torna-se patológico. Não estamos querendo dizer com isso que não existam

dificuldades, mas sim que a forma de lidar com elas segue um padrão definido, centrado na

4 Conhecendo como funciona a linguagem normal (fala, leitura e escrita), convivendo com criança(s) com SD e

considerando sua heterogeneidade, saberemos como se dá o funcionamento de linguagem nessa síndrome, por um lado, e especialmente em um sujeito em particular, por outro.

Page 36: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

24

doença, no estado patológico, nas diferenças - e não no indivíduo ou nas suas possibilidades.

Crianças com SD, não fogem à regra e apresentam dificuldades, como por exemplo, de

hipotonia - que pode prejudicar os movimentos do corpo (correr, pular, pegar, além dos

envolvidos na fala), o que pode significar um tempo maior de aprendizado e automatização, mas

nunca um impedimento para entrar na linguagem e nos mais variados aprendizados.

Em pesquisas sobre o balbucio em crianças com SD e crianças normais, Oller (1995)

mostram existir diferenças entre os dois grupos, no início do balbucio, mas consideram que elas

não são tão significativas. Para o autor, os comprometimentos motor, cognitivo, dentre outros,

podem afetar a entrada no estágio do balbucio canônico. O autor considera, no entanto, que nem

todas as crianças com SD mostraram atraso e/ou instabilidade no balbucio. Este dado sugere

que diferenças individuais podem interferir na emergência do balbucio canônico para crianças

dos dois grupos.

Considero importante levar em conta que o fator psicológico influencia na interação da

díade mãe/bebê; pense-se, por exemplo, quando a mãe entra em contato, através das

informações fornecidas pelo pediatra, com os sintomas que seu filho apresentará, mesmo antes

de acontecer qualquer indício de que se confirmará esse prognóstico. Saber que seu filho tem

algum comprometimento que leva a atrasos no balbucio, na aquisição e uso da linguagem e no

aprendizado como um todo, faz toda a diferença na relação mãe/bebê/criança.

Outro exemplo que marca a posição organicista já no início do desenvolvimento de

crianças com SD impedindo-as de ultrapassar qualquer previsão determinística, são os estudos

em bebês com SD realizados na área de psicologia na Universidade de Brasília, por Tristão e

Feitosa (2003). As autoras apresentam peculiaridades fisiológicas e comportamentais desses

indivíduos e consideram que os processos psicológicos básicos mais prejudicados são os de

percepção auditiva, atenção, cognição, motivação e linguagem. Dão grande ênfase às alterações

auditivas temporárias ou permanentes devido à otite média crônica e problemas auditivos de

ordem central e relacionam esses problemas auditivos ao comprometimento no desenvolvimento

da linguagem. Consideram que os estudos sobre o desenvolvimento e padrão de especialização

cerebral têm demonstrado especificidades em crianças e adultos que convergem para um

modelo de dissociação da base biológica entre percepção (hemisfério direito) e a produção da

fala (hemisfério esquerdo). Sugerem que essa dissociação hemisférica entre os sistemas

responsáveis pela percepção de fala e seu controle de execução motora poderia explicar

dificuldades de processamento de informação encontrado na SD. Os achados desta pesquisa

Page 37: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

25

incluem o volume significativamente menor do cerebelo relacionando também este fato ao

controle motor fala. As autoras concluem que devido a uma condição estrutural e fisiológica

diferenciada, bebês com SD apresentam um desenvolvimento diferente do apresentado em

condições normais no período pré–lingüístico e posteriormente no uso funcional da linguagem. E

consideram que o desenvolvimento fonológico é lento, embora a seqüência pareça acompanhar

o desenvolvimento de crianças normais.

Os resultados apresentados pelos autores indicam também baixa inteligibilidade e

dificuldades articulatórias na fala e para melhor compreensão destas dificuldades indicam a

realização do exame Bera (respostas audiológicas evocadas de tronco cerebral), sugerindo

assim que a condição apresentada está centrada em problemas essencialmente auditivos.

Concluem que as dificuldades de percepção da fala e suas consequentes alterações fonéticas

nesses indivíduos são oriundas de alterações inatas do sistema nervoso central. Apesar de

Tristão e Feitosa (2003) reconhecerem que, embora mais lenta, a sequência de desenvolvimento

da criança com SD seja similar à de crianças que estão se desenvolvendo normalmente, buscam

padrões orgânicos para justificar as diferenças encontradas. Para as autoras, parece não haver

possibilidade de que crianças com SD, possam se constituir na conjunção de fatores orgânicos,

histórico-culturais e mesmo singulares.

Borghi (1990) interessado em questões da produção da fala de crianças com SD

considera que existem alguns padrões inadequados de articulação que irão se perpetuar para

toda a vida destas crianças. Observa que a precisão articulatória inadequada leva a uma pobre

articulação que, por sua vez, leva a pouca inteligibilidade de fala. Considera, ainda, que a

permanência de padrões inadequados tem preocupado pais e profissionais que se frustram com

os baixos resultados terapêuticos obtidos. Esta situação tem levado alguns pais a optar por

condutas drásticas como procedimentos cirúrgicos para modificar o tamanho e contorno da

língua, embora o autor considere que estas intervenções não tenham demonstrado nenhum

resultado satisfatório. Borghi concluiu em suas pesquisas que os padrões mais resistentes às

mudanças são as fricativas/africadas combinadas com os padrões de ponto - alveolar, dental,

pré-palatal e lábio-dental. O autor conclui que a anteriorização da língua é o fator determinante

para a permanência da falha na articulação.

Pesquisas realizadas no Brasil pelas fonoaudiólogas Porto; Pereira e Margall (2000) em

sujeitos com SD na faixa etária de 6 anos a 6 anos e 11 meses com o objetivo de analisar a

produção articulatória e os processos fonológicos dessas crianças concluíram que as 14

Page 38: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

26

crianças da amostra apresentaram capacidade de produzir todos os sons do português com

exceção de /m/ e /v/, que apenas uma criança não conseguiu produzir. De uma forma geral,

apresentaram maior dificuldade nas líquidas. Nos grupos consonantais encontraram maior

ocorrência dos grupos com / r / 50%, do que do grupo com / l / 29%, e nos arquifonemas a

ocorrência do {S}, 93% foi maior do que a do {R} 7%. Quanto aos processos fonológicos de

substituição, as autoras encontraram maior ocorrência de substituição de líquidas (64%), seguida

de processos de anteriorização (43%) e assimilação (41%). Nos processos fonológicos de

estrutura de sílaba observaram a ocorrência de 100% das crianças na redução de encontro

consonantal, 100% também em apagamento de sílaba átona e o apagamento de líquida

apareceu em 93% das crianças.

As autoras concluem que a emissão das líquidas se apresentou mais prejudicada do que

a emissão das plosivas, fricativas, africadas e nasais e explicam o fato baseando-se na

seqüência hierárquica na qual as líquidas seriam as últimas a serem adquiridas. Consideram que

crianças com SD apresentam maior dificuldade em articular grupos consonantais e

arquifonemas, mas levam em consideração que estas produções também são adquiridas mais

tarde por crianças normais. Neste ponto se faz necessário um esclarecimento quanto à

afirmação das autoras no que diz respeito à articulação do arquifonema. O arquifonema

expressa a perda de um contraste fonêmico, resultando em sua neutralização tendo, assim, um

status fonêmico (SILVA, 1999), não sendo possível, portanto a sua articulação. O que se articula

é a sua representação fonética que pode variar de acordo com o dialeto utilizado pelo falante.

Porto; Pereira e Margall (2000) consideram ainda que essas crianças realizaram a

produção de todos os sons da língua portuguesa, com exceção de [m] e [v]. Foi verificada uma

dificuldade maior nos sons de aquisição mais tardia, o que indica que crianças com SD seguem

a mesma sequência hierárquica que a criança normal na aquisição desses sons, na língua

portuguesa. Em relação aos processos fonológicos as autoras consideram que crianças normais

se utilizam de processos fonológicos visando diminuir suas dificuldades articulatórias,

ocasionada pela imaturidade neurológica. Crianças com SD e atraso de desenvolvimento não

conseguiriam suprir estas dificuldades na época esperada. Diante dos resultados obtidos as

autoras comentam que,

a ocorrência de substituição de líquidas e anteriorização também foram observadas por Baden et al. (1997) em seu estudo com crianças com inteligência normal, que apresentavam alteração de fala. Isso nos leva a pensar que apesar da deficiência mental, as crianças com SD também realizam processos fonológicos (p. 38, ênfase minha).

Page 39: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

27

O que chama a atenção nesta citação é o fato de que, para as autoras, parece que a

condição deficiência mental pressupõe que estas crianças, não necessariamente, passariam

pelos mesmos processos que qualquer criança. E qual seria esta forma de estar na língua senão

pelos mesmos processos? O fato de estas crianças apresentarem deficiência mental levaria

estas crianças a não entrarem na linguagem? Algo difícil de imaginar. É preciso considerar que

um ritmo diferente não quer dizer um funcionamento aberrante.

Na mesma direção se encontra o estudo das fonoaudiólogas Bahniuk; Koerich e Bastos

(2004) ao analisaram processos fonológicos em treze crianças com SD entre cinco e dez anos.

Os resultados demonstram que os processos mais freqüentes são: (a) redução de encontro

consonantal em 100% das crianças avaliadas; (b) apagamento de líquida final com 92% de

ocorrência; (c) apagamento de fricativa final encontrado em 38% das crianças; d) apagamento

da líquida inicial apresentado em 31% das crianças; (d) dessonorização de obstruintes

apresentado em 23% das crianças estudadas; e (e) apagamento de líquida intervocálica com 8%

de ocorrência. As autoras encontraram também outros processos que aparecem de forma

assistemática que são: apagamento de sílaba átona, anteriorização, substituição de líquida,

semivocalização, plosivização e posteriorização.

As autoras desta pesquisa e da pesquisa anterior chegaram a resultados semelhantes,

ou seja, as crianças com SD passam pelos mesmos processos pelos quais passam todas as

crianças, só que mais tardiamente. As autoras dessa pesquisa, bem como as da pesquisa

anterior, também consideram que, apesar da deficiência mental, crianças com SD também

realizam processos fonológicos, embora exista um atraso por não seguirem a mesma cronologia

de supressão dos processos fonológicos, proposta por Yavas e Hernandoren (1991)5. A

terminologia supressão de processos, utilizada pelas autoras, está relacionada ao conceito de

processos fonológicos baseados na fonologia natural de Stampe (1969, 1973) Concluem que

apesar de não levarem em conta questões culturais, educacionais e contextuais não é possível

descartar esses fatores. Considero que seria interessante não apenas constatarmos o que essas

5 A terminologia supressão de processos, utilizada pelas autoras, está relacionada ao conceito de processos

fonológicos baseados na fonologia natural de Stampe (1969, 1973). Dê acordo com este modelo os seres humanos nascem com um sistema inato de processos fonológicos naturais como redução de encontros consonantais ou plosivização de fricativas. Esses processos refletem as restrições naturais da capacidade humana para a fala e resultam em simplificações sistemáticas das formas adultas pela criança. Stampe descreveu os processos fonológicos como operações mentais inatas que são suprimidas gradualmente à medida que a criança domina o sistema. É neste sentido que as autoras sugerem que as crianças da pesquisa não seguem a mesma cronologia de supressão de processos fonológicos

Page 40: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

28

crianças estão fazendo, mas sim como elas se movimentam em busca desses contituintes

fonológicos não só na fala como também na escrita, ou seja, como elas se aproximam do

sistema alvo? Elas utlizam as mesmas estratégias que outras crianças? Conhecer e

compreender o seu percurso, suas dúvidas e buscas, pode ajudá-las a avançar.

Chapman (1997) e Meyer (1998) indicam que crianças e/ou adultos com SD apresentam

dificuldades de ordem sintática. Chapman (1997) credita estas dificuldades de compreensão de

frases e sintaxe expressiva à variação da amplitude de memória verbal e de curto prazo.

Considera também que crianças com SD apresentam déficits na sintaxe expressiva e problemas

morfológicos com flexões. Classifica a linguagem destes sujeitos como atrasada e com uma

sintaxe simples. Os autores observaram também que os morfemas gramaticais livres e presos

são omitidos com frequência.

Para Hostmeier (1985) crianças e adultos com SD apresentam dificuldades em produzir

sentenças corretas gramaticalmente. Para a autora a ordem incorreta das palavras e a

inabilidade de formar sentenças completas podem prejudicar o significado do que eles se

propõem a dizer. Considera que crianças e adultos com SD têm problemas com a formação de

sentenças pelo fato de apresentarem dificuldades de memória de curto prazo e de realizar

atividades em uma ordem sucessiva, como construir boas sentenças.

Ainda em relação à sintaxe, alguns pesquisadores têm apontado como estilo telegráfico

a omissão que estas crianças apresentam de relatores (preposições, conjunções, palavras

nominais de relação). Ghirello-Pires e Labigalini (2007) observaram que sujeitos com SD podem

apresentar uma dificuldade em manejar os eixos de seleção e combinação como foi proposto por

Jakobson (1956/1970) em seus estudos sobre afasia, priorizando o eixo de seleção em

detrimento do eixo de combinação. É importante ressaltar que esta unipolaridade não ocorre o

tempo todo e nem tampouco em todos os indivíduos. As autoras interpretam esse

funcionamento não como uma condição patológica, mas como um processo intermediário, assim

como ocorre com todas as crianças em idade menor ou em sujeitos afásicos, como analisa

Abaurre e Coudry (2008),

interpretar o chamado estilo telegráfico como um processo intermediário com funções (re) construtivas mencionadas para o afásico e para a criança exclui a hipótese de que falar ou escrever “telegraficamente” indica uma mera supressão ou omissão de elementos lingüísticos. Tal interpretação que salienta a falta, o apagamento baseia-se exclusivamente na observação da linguagem externa, ignorando aqueles aspectos da linguagem interna que nesses casos o sujeito privilegia e sublinha, explicitando o papel estruturante que têm os processos intermediários (p. 52).

Page 41: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

29

Cuileret (1984) ao acompanhar longitudinalmente crianças com SD em um centro de

estudos na França considera que elas têm dificuldades no desempenho narrativo devido a

problemas de análise e síntese e de ordem temporal. Em suas observações concluiu que estas

crianças fazem muita análise em detrimento de síntese. O resultado disto é que elas elegem

partes do enunciado e não o conseguem sintetizar; desta forma, tanto sua recepção de

linguagem quanto sua produção ficam prejudicadas, como se cada parte do enunciado fosse

compreendido ou processado separadamente. A autora nomeia este desempenho como efeito

caleidoscópio. Talvez fosse mais interessante considerar que elas, como todas as crianças no

início de sua entrada para a fala, leitura e escrita, suprimem palavras de relação que não têm

sentido em si mesmas. Estas palavras serão utilizadas na interação com o outro se o interlocutor

propiciar a chance de desdobramento de sua fala aproximando a fala da fala dos outros.

Podemos considerar a supressão de palavras de relação como processos intermediários, que,

no caso, podem ser interpretados de acordo com o que Vygotsky (1987) caracteriza como uma

espécie de linguagem interna, abreviada, predicativa que, se fosse ouvida

descontextualizadamente seria incompreensível. A passagem da linguagem interior abreviada

para a linguagem desdobrada sintaticamente, e depois para a linguagem escrita, “requer da

criança operações complexas de construção arbitrária do tecido semântico” (FREUD, 1891/1973,

p.317).

Limonge (2010), fonoaudióloga livre docente pela Faculdade de Medicina da

Universidade de São Paulo, dedica grande parte de seu artigo, no tratado de Fonoaudiologia,

aos aspectos clínicos da SD salientando, dentre outros, a questão da hipotonia na SD, tanto em

seus aspectos gerais, quanto em seus aspectos mais específicos, o que traz consequências

para a linguagem. Em relação aos aspectos gerais, a autora utiliza o termo hipoação para se

referir aos movimentos lentificados e diminuição na força muscular, relacionando esta hipoação à

perda de qualidade e quantidade de seu desenvolvimento e conhecimento de mundo. Ela

enfatiza o problema da hipotonia em relação ao funcionamento respiratório, responsável pelas

obstruções de vias aéreas superiores e incoordenação dos movimentos respiratórios. Tal padrão

respiratório inadequado na SD, associado aos desvios estruturais da cavidade oral, irá contribuir

para a alteração das estruturas orais como: palato duro mais elevado, lábios entreabertos, língua

no soalho da boca durante a postura de repouso, favorecendo a respiração oral, o que por sua

vez tende a mantê-las. A autora chama a atenção para os problemas relacionados à audição,

por considerar que a associação entre limitação cognitiva e distúrbio de audição poderia agravar

as condições de adequação no desenvolvimento da linguagem e sua expressão oral.

Page 42: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

30

Limonge (op. cit.) em seu trabalho relata ainda a ocorrência de anormalidades

estruturais e funcionais no sistema nervoso central das crianças com SD, enfocando a diferença

em relação ao tamanho e ao peso do encéfalo desde o período pré-natal. Considera que as

diferenças se acentuam após o nascimento, quando seria observada uma desaceleração no

crescimento das estruturas neuronais entre o terceiro e o sexto mês de vida. Para a autora, a

importância desses dados se dá pela relação entre a ocorrência da hipotonia e as alterações nos

processos cognitivos complexos presentes em todos os indivíduos com SD. Estudos de

neuroimagem têm confirmado esses dados, esclarecendo quanto à freqüência da doença de

Alzheimer no futuro dessa população. Podemos observar nas reflexões da autora a prevalência

das questões orgânicas em seu posicionamento no que diz respeito aos sujeitos com SD.

A autora considera, também, que a criança com SD se desenvolve mais lentamente e

que existem diferenças quantitativas em relação à linguagem, embora afirme que existam

similaridades no inicio das vocalizações. Para a autora, apesar de as crianças com SD

apresentarem um repertório lexical similar com relação às crianças consideradas normais, elas

vão apresentar alterações fonológicas, sintáticas e de habilidades pragmáticas. Ela conclui que

embora essas crianças apresentem um extenso repertório lexical é claramente observável sua

inabilidade em utilizá-lo de forma apropriada aos diferentes contextos. Esta inabilidade, segundo

a autora, se acentua aos 18 meses de idade e para explicá-la levanta duas hipóteses. A primeira

se refere às dificuldades de planejamento motor necessário ao controle da fala, relacionando-as

a alterações neuromusculares que prejudicam a coordenação de movimentos necessários para a

produção articulatória oral; na segunda hipótese, a inabilidade está relaciona ao déficit de

memória de curto prazo dificultando a retenção de informações imediatas. Na sequência,

Limonge (op. cit.) explicita que,

por outro lado, apesar da existência desses atrasos significativos com relação à linguagem, os bebês com essa síndrome balbuciam com variedade de sons no mesmo período que as crianças com desenvolvimento típico. Mas, enquanto os bebês considerados com desenvolvimento típico apresentam as primeiras palavras com significado por volta de 14 meses, os bebês com Down o fazem ao redor de 21 meses (p.375)

Com relação a essa citação comentamos: se estas crianças apresentam o balbucio na

mesma idade das crianças que estão se desenvolvendo normalmente, será que esse atraso não

poderia ser decorrente das interações estabelecidas entre estes sujeitos e seus interlocutores?

Ou seja, se de saída elas apresentam as mesmas condições, será possível que os atributos

orgânicos, e não as condições interacionais, serão responsáveis pelo atraso observado nessas

crianças? Esse fato evidencia, mais uma vez que, para esta autora, todas as situações de

Page 43: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

31

atraso, nomeadas como déficit, apresentam origem orgânica e consequentemente estão

centradas na criança e são irreversíveis.

Embora Limonge (op.cit.) faça ao finalizar as questões referentes aos aspectos que

envolvem linguagem e crianças com SD, considerações quanto à importância dos aspetos

ambientais, seu enfoque está mais direcionado à condição orgânica do sujeito, à ação desse

sujeito que possibilitará a construção de esquemas motores que, por sua vez, criarão condições

para a construção de esquemas verbais. Este posicionamento atrelado à sua posição teórica,

epistemologia genética, de Piaget, assume que o processo cognitivo antecede a linguagem, ou

seja, a linguagem é uma decorrência da construção do conhecimento. Nessa abordagem o

terapeuta deverá enfatizar o papel ativo do sujeito na construção do conhecimento obedecendo

a uma ordem hierárquica estabelecida. A partir destas considerações, poderíamos questionar, se

uma criança com SD, que necessita muito mais da mediação do outro do que as crianças que

estão se desenvolvendo normalmente, teria condições de superar suas dificuldades quando se

espera dela um papel ativo na construção do conhecimento? Na concepção que assumimos

neste trabalho, o processo de constituição da criança passa necessariamente pelo outro,

mediador entre a criança e o mundo. No caso de uma deficiência, fica evidente a necessidade da

mediação do outro de forma mais efetiva no processo de conversão das funções sociais em

pessoais.

Poucos são os estudos que analisam a produção de linguagem destas crianças de uma

forma mais produtiva, fundamentando-se em um ponto de vista dialógico, dentre os quais

podemos destaco os trabalhos de Levy (1988); Monteiro (1992) e Camargo (1994).

Levy (1989), ao acompanhar longitudinalmente o atendimento terapêutico de uma

criança com SD, constata que os pressupostos que temos da síndrome nos impedem de

interpretar o que não vem ao encontro de nossas expectativas e assim a criança com SD é

reduzida a uma produtora de sons ininteligíveis e anulada como sujeito. A autora considera que

este equívoco é fruto da formação do fonoaudiólogo, que, compartimentada, preconceituosa e

prescritiva, no que diz respeito principalmente à linguagem, nos leva a desconsiderar este sujeito

não promovendo situações de reconstrução e estratégias de participação lingüístico-discursivas,

excluindo o sujeito das possibilidades de interação. Para a autora inteligibilidade, que irá

assegurar significados e sentidos na produção dessas crianças, deve ser buscada e construída a

partir da construção e aceitação de formas alternativas do dizer dessas crianças.

O trabalho de Monteiro (1992), por sua vez, direciona-se à questão do funcionamento de

linguagem destas crianças em que o diálogo, estabelecido em roda de conversa, é a unidade de

Page 44: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

32

análise. Monteiro considera que o professor, ou pessoa trabalha com a criança, deve ter bem

claro quais são as características de fala de cada criança para que possa intervir de forma

adequada Considera ainda que é o outro, professor/terapeuta responsável pelos avanços da

linguagem nessas crianças conclui seu trabalho dizendo que: Eles sabem conversar e tem muito

o que nos dizer (p153). O estudo de Camargo (1994) apresenta como foco o discurso narrativo

em crianças com SD, pautando-se na abordagem de Perroni (1992). Os resultados da análise

dos dados indicaram que as crianças com Síndrome de Down na faixa de desenvolvimento de

linguagem da pesquisa, 4 a 6 anos, estão usando os mesmos mecanismos usados pelas

crianças de Perroni; porém as crianças com Síndrome de Down fazem uso desses mecanismos

numa idade cronológica posterior. Considera também que permanecem mais tempo em cada

"fase" das apontadas por Perroni (1992) e sua fala, durante a interlocução, é mais e por mais

tempo dependente da fala do interlocutor. Conclui que no momento da narrativa dessas crianças,

isto é, ocasião em que estão ocorrendo suas tentativas iniciais de relatos de histórias ou

experiências vividas, a fala do adulto é extremamente importante enquanto interpretante do

discurso da criança.

Nestes dois estudos as autoras concluem que as dificuldades de linguagem que essas

crianças apresentam não impedem que elas façam uso produtivo e significativo da linguagem.

Perroni (1992), em sua análise sobre o desenvolvimento do discurso narrativo em crianças,

considera que até pouco tempo a maioria dos estudos na área de aquisição da linguagem

trabalhava com modelos desenvolvidos para a análise de construções de adultos que eram

transportados para a análise das produções de crianças. Essa forma de analisar as narrativas

das crianças é muito negativa, pois se concentra em buscar o que falta na fala da criança, do

ponto de vista das construções do adulto, não havendo preocupação em compreender como a

criança se aproxima do discurso do adulto.

Também nesta direção os trabalhos de De Lemos (1995a, 1999, 1977, 2001a) fornecem

outra interpretação, que, embora não esteja direcionada à criança SD, contribui para esta

análise, ao indicar diferentes relações do sujeito com a língua. Em sua proposta teórica a autora

utiliza-se do conceito de mudança para se referir à trajetória da criança de infans ou não falante

para falante de sua língua materna. Esta mudança é entendida como efeito da linguagem na

criança. São mudanças de posição em uma estrutura que se articula em três pólos: o sujeito, o

outro enquanto lugar de funcionamento linguístico-discursivo e a ordem própria da língua. Essas

mudanças, segundo a autora, não se qualificam nem como acúmulo nem como construção de

conhecimento. O que há é uma dominância, ora de um pólo, ora de outro. A primeira posição

Page 45: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

33

marca a entrada da criança, como falante, em um funcionamento simbólico e se revela no

retorno, em sua fala, de fragmentos, ou vestígios, da fala do adulto naquela ou em outras

situações. Um retorno, assim, que evidencia uma relação singular entre a fala da criança e a fala

do outro. Desse retorno que indicia a entrada da criança na língua – ou capturada criança pelo

funcionamento da língua - se depreende a identificação/alienação da fala da criança na fala do

outro. A segunda posição é marcada pela dominância da relação do sujeito com a língua, que

segundo a autora não é na fala imediatamente precedente da mãe, mas no âmbito do próprio

enunciado da criança que está à cadeia que oferece sustentação para o movimento dos

significantes, deslocando-se, aproximando-se, ressignificando-se, a segunda posição é marcada

pelos chamados erros na fala da criança, que coincidem com a sua impermeabilidade à correção

do adulto, em outras palavras, nesta posição a escuta da criança não inclui o reconhecimento da

diferença entre sua fala e a fala do outro. A terceira posição representa um deslocamento da

criança, sujeito falante, em relação a sua própria fala e a fala do outro, com uma aparente

aproximação à homogeneidade da linguagem constituída do adulto. Mais importante do que isso,

entretanto, é que, nesta posição, o que se vê é a emergência de um sujeito em outro intervalo:

naquele que se abre entre a instância que fala e a instância que escuta a própria fala, instâncias

não coincidentes. Há erro, porém a criança é capaz de reconhecer a discrepância entre o que diz

e o que deve dizer, ainda que, mesmo assim, não chegue, necessariamente, à forma correta do

ponto de vista da língua constituída. Desta forma a autora considera que os fragmentos de

narrativas esclarecem as estratégias utilizadas pelas crianças, chama a atenção para o fato de

que os desvios e as incompletudes são as maiores fontes de informações sobre os processos

em construção.

Os trabalhos de Abaurre (1999, 2001, 2006), embora também não sejam direcionados

para crianças com SD, são relevanres nesse contexto, pela forma como a autora conduz suas

análises. Longe de caracterizar como problemas as dificuldades enfrentadas pelas crianças em

contato com a escrita alfabética, a autora busca compreender qual é o movimento que as

crianças realizam na tentativa de construir, e/ou ajustar, suas representações sobre a sílaba e

seus constituintes. A autora considera que a maioria das crianças enfrenta dificuldades ao

preencher as posições de coda e ataque ramificado, na escrita, ou seja, as estruturas silábicas

CVC e CCV, estruturas que apresentam uma complexidade maior que a estrutura canônica CV,

também chamada de universal. Ao entrar em contato com a escrita, as crianças demonstram

operar com esses constituintes externalizando suas dúvidas. A hipótese da autora é a de que

pelo menos algumas crianças começariam a fazer a análise das sílabas e seus constituintes

segmentais apenas quando entram em contato com a escrita alfabética. E as crianças com SD,

Page 46: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

34

apresentariam as mesmas dificuldades, quais seriam suas hipóteses? Considero que a análise

de estruturas silábicas deva constituir-se como uma preocupação ao terapeuta/ professor, ou

quem se direciona ao trabalho com essas crianças, pois nos ajuda a compreender oscilações

e/ou avanços destas crianças na escrita.

Observamos neste capítulo que são muitos os autores que se dedicam a estudar a

questão da linguagem em crianças com SD e em quase todos há a prevalência do ponto de vista

orgânico, o que condiciona o olhar para o sujeito aquém de seus limites. Tais autores, filiados a

um posicionamento organicista e conseqüentemente centrados no sujeito, apresentam a visão

de que todos os sintomas/dificuldades são inatos e inerentes a essas crianças. Alguns desses

autores, apesar de acreditarem que essas dificuldades não são propriamente da criança, mas

sim advindas da conjunção de fatores orgânicos e ambientais, consideram que estas alterações

são patológicas e/ou desviantes em função da deficiência mental e marcam sempre o déficit em

suas avaliações. Poucos são os estudos que apresentam um panorama mais otimista

enfatizando as potencialidades das crianças e considerando suas dificuldades como diferenças,

oriundas da condição genética, e não necessariamente do determinismo da doença que marca

sempre o fracasso.

Page 47: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

35

CAPITULO 4 MITOS RELACIONADOS À SÍNDROME DE DOWN

As atitudes que apresentamos frente à deficiência são adquiridas em nossas vivências

históricas e culturais sejam estas atitudes boas ou más. Mas é difícil determinar com precisão a

origem e o porquê de determinadas crenças, já que muitos dos mal entendidos, que levam aos

mitos e preconceitos, apresentam raízes seculares. Em relação à SD, considero que a falta de

um conhecimento específico e aprofundamento em algumas áreas gera um tipo de preconceito

que chamo de profissional que, por sua vez, gera uma atitude frente à avaliação e à terapia. Por

outro lado, tem-se o preconceito social, também por falta de conhecimento, do leigo que reflete

posições ideológicas. Os dois tipos de preconceito em relação à criança com SD criam mitos que

se interpõem tanto junto a atitudes que a família, a escola e a sociedade em geral tomam,

quanto junto à avaliação e ao acompanhamento terapêutico.

O primeiro aspecto a ser destacado é que durante muito tempo o trabalho com essas

crianças foi direcionado ao treino motor, em que não há interlocução/interação, esperando com

isso que a criança venha a falar. Essa prática revela a concepção de fala como um ato motor

desvinculado do sentido e de sua relação com o outro e com as coisas do mundo. Desta forma,

profissionais que desconhecem tecnicamente (ou seja, apartados das contribuições da

Lingüística) o funcionamento da linguagem (fala, leitura e escrita) dificilmente associam fala em

seu aspecto motor e perceptivo-acústico à produção do sentido (FREUD, 1973/1891). Essa

posição propõe uma terapia baseada em exercícios motores, aplicados mecanicamente, que

segmentam aspectos importantes do fluxo contínuo da fala - e por isso não têm efeitos sobre a

fala - além de serem muito distantes de práticas significativas com a linguagem vivenciadas

pelos falantes. Portanto, trabalhar com crianças, incluindo as com SD, implica compreender que

as práticas que envolvem atividades motoras (ato motor em funcionamento, articulado com o

aparato perceptivo-acústico e visual) devem fazer sentido para elas – não como um exercício

fora de contexto – mas sempre associado com a fala que implica na atuação do outro e na

relação com as coisas do mundo. Cabe ao adulto o papel de mediador (VYGOTSKY, 1988)

desse processo, despertando o interesse/motivação da criança, criando situações de desafio,

inicialmente propondo soluções assistidas, com vistas a uma futura autonomia, o que produz

efeitos positivos no aprendizado que, segundo esse autor, conduz ao desenvolvimento.

Outra questão que se destaca na discussão do determinismo da síndrome sobre o

sujeito é o modo como, no intuito de intervir e melhorar a questão da hipotonia que essas

Page 48: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

36

crianças apresentam desde o nascimento, é feito a indicação precoce de mamadeira no lugar da

amamentação natural, a indicação de exercícios de sucção com a chupeta, além de orientações

inadequadas quanto à transição alimentar (passagem da amamentação para o pastoso e

posteriormente para o sólido). A indicação de exercícios com a chupeta e a utilização de

mamadeira provoca uma movimentação excessiva do músculo bucinador que na ordenha é

quase nula. Com a hiperfunção do músculo bucinador há uma diminuição do espaço transversal

da maxila, ocorrendo um estreitamento das dimensões transversais da maxila e do palato,

levando a uma profundidade do palato (CARVALHO, 2003). Dessa forma, as possibilidades que

essas crianças têm para melhorar a condição hipotônica, como fazem as normais, são

precocemente descartadas e outras condições patológicas decorrentes da hipotonia ganham

espaço. Para compreendermos melhor a questão do aspecto motor em crianças com SD, é

importante esclarecer alguns pontos pesquisados por Rosenfeld-Johnson (1977), nomeados

como sete mitos relacionados ao sistema motor oral dessas crianças. (a) palato duro ogival; (b)

protrusão de língua; (c) perdas auditivas condutivas de leves a moderadas; (d) infecções

crônicas do trato respiratório superior; (e) respiração oral; (f) postura de boca frequentemente

aberta; (g) a impressão de que a língua é maior do que a boca.

Para a autora, todas essas alterações, descritas na literatura como inerentes à SD,

apresentam outra explicação causal. Ela considera que a comunidade terapêutica permitiu

inadvertidamente que estes mitos se difundissem e se perpetuassem por reconhecer que são

intrínsecos à síndrome e desconhecer que eles podem ser evitados. Para compreender a sua

crítica, ela nos leva a rever alguns pontos do desenvolvimento do sistema motor oral, aqui

considerado para qualquer criança, indistintamente. Quando as crianças nascem, elas

apresentam fisiologicamente dois pontos que não estão calcificados, um no alto do crânio e outro

na posição à altura do palato, ambos na linha média. Quando as placas se fecham no topo do

crânio, moldam-se ao formato arredondado do contorno do cérebro, o que configura o formato da

cabeça. Oclusão idêntica que ocorre nas placas na linha média do cérebro ocorre também nas

placas do palato duro. Assim como o cérebro configura o formato do topo da cabeça, a língua dá

forma ao palato. Durante o fechamento do palato, se a língua não se mantiver habitualmente

dentro da boca, não há nada que iniba o movimento das placas em direção à linha média para o

alto. Resultado disso é o mito que indica que a SD apresenta (a) um palato duro alto e estreito.

A autora acredita que o palato alto e estreito pode ser evitado, pois considera que todo

bebê ao nascimento apresenta respiração nasal, mesmo aqueles com hipotonia severa. Esses

bebês podem e devem manter suas línguas dentro da boca, já que apresentam respiração nasal,

Page 49: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

37

sendo o mais indicado - tanto para o desenvolvimento das estruturas do sistema motor oral,

quanto para o posicionamento correto da língua na cavidade oral - a amamentação. Desta forma

considera-se que ao sugar a mama há o trabalho conjugado e concomitante de toda a

musculatura peri e intra-oral, de forma harmoniosa, principalmente pelo movimento de protrusão

e retrusão mandibular. Soma-se a esse trabalho, o funcionamento integrado dos músculos

envolvidos na respiração, sucção e deglutição. Destaca-se que a sucção é o sistema mais

desenvolvido no recém nascido, mas a organização do trabalho conjugado e a adequação

quanto ao ritmo e força são aprendidas na interação humana entre mãe/bebê. O exercício

natural da amamentação proporciona o desenvolvimento das estruturas oro motoras que são

fundamentais para a aceitação de alimentos mais sólidos que virão posteriormente (LAURETTO,

1997).

Minha experiência com bebês SD tem mostrado que muitas mães têm desejo de

amamentar seu recém-nascido com SD, mas se sentem desestimuladas pela sucção fraca de

seu bebê (embora haja bebês SD com sucção normal) e a orientação médica de passar para a

mamadeira. Considero que mesmo nesses casos deveria haver um investimento por parte dos

profissionais envolvidos, revendo assim sua orientação às mães. Tenho observado que quando

há insistência na sucção natural os bebês respondem bem e a sucção melhora. Exceto em

casos de problemas cardíacos, devido ao esforço excessivo do bebê, não existe contra

indicação para a amamentação de uma criança com SD. O que ocorre na prática é que algumas

mães sentem dificuldades e precisariam de mais apoio e orientação profissional para que seus

filhos consigam ser amamentados. Para Carvalho (2008), é importante que a criança com SD

seja amamentada naturalmente para que haja estímulo 6 da musculatura que envolve a sucção,

deglutição e respiração e consequentemente a hipotonia será reduzida. Com a amamentação as

estruturas do sistema estomatognático como língua, lábios e bochechas terão melhor

desenvolvimento, resultando em um crescimento facial mais harmônico e uma face mais

simétrica. Desta forma a amamentação é o que irá proporcionar a esses bebês as melhores

condições tanto motoras quanto nutricionais (AMÁBILE, 2008).

Como vimos, situação contrária acontece com a maioria das mães de bebês com SD,

que são desencorajadas a amamentar e estimuladas a usarem mamadeiras e fórmulas (leites

artificiais) com seus bebês, por seus pediatras considerarem a sucção deles fraca em virtude da

6 Dá-se preferência, pelos princípios teóricos assumidos pela ND, à expressão uso da musculatura, no lugar de estímulo; não se precisa estimular a sucção, mas posicionar devidamente a criança no peito e ajeitá-la, cuidando para que a respiração nasal esteja desobstruída, o que possibilita um uso funcional das estruturas envolvidas no sistema motor oral e consequente aprendizado.

Page 50: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

38

hipotonia. Outra justificativa dada para a indicação da mamadeira é a de que são bebês de risco

e precisam ganhar peso. No entanto, pesquisas têm mostrado que o ganho de peso não se

traduz necessariamente em melhora na condição nutricional da criança, sendo o leite materno o

que irá garantir a saúde nutricional do bebê. Pesquisas mostram que apesar das campanhas que

divulgam o valor da amamentação, em caso de bebês com SD, não há esforços para sustentar

essa posição, desconsiderando, pois, que o mais indicado para manter a língua na posição

adequada - dentro da boca – é a amamentação, o que melhora a hipotonia.

Amamentar com a mamadeira pode ser adequado, com ressalvas, quando há

necessidade terapêutica em casos de doenças graves (HIV da mãe e/ou do bebê, insuficiência

cardíaca do bebê). Quando não há problemas assim, a mamadeira é contra indicada, sobretudo

considerando que o tamanho do furo do bico e a altura da cabeça na posição da amamentação

artificial são sempre difíceis de serem controlados. Isso se agrava considerando que é comum

que o furo da mamadeira seja feito em cruz, ou alargado, para facilitar a sucção do bebê, o que

só agrava a hipotonia porque não há força para sugar. Na amamentação artificial, portanto, a

criança é apoiada no braço dobrado da mãe e a mamadeira é segurada na diagonal, com o bico

para baixo, o que faz mais facilmente o leite entrar para a boca do bebê que, na tentativa de

controlar o fluxo do leite, anterioriza a língua, causando sua protusão e alargamento, o que, por

sua vez, agrava a hipotonia – mito (b) Língua protruída. A excessiva protusão de língua é um

comportamento aprendido que cria uma manifestação física. A tonicidade da língua também fica

prejudicada, a criança não tem que fazer esforços como na amamentação natural, em que ao

sugar a mama, forma-se uma pressão negativa que demanda esforços do bebê em organizar o

movimento sincrônico da língua e de outros músculos, o que produz crescimento harmonioso

dos ossos e estruturas da face (músculos e cartilagens).

Como consequência, a mastigação e a articulação também ficam prejudicadas, o que faz

com que as mães, preocupadas com a dificuldade na mastigação e com os engasgos de seus

bebês, retardem a transição alimentar, oferecendo a eles somente líquidos, encorpados com

fórmulas nutritivas, ou semi-sólidos, amassados ou batidos no liquidificador – o que faz manter e

agravar as dificuldades. Podemos observar como indica Rosenfeld-Johnson (1977), uma cascata

de eventos que acontecem a partir de inadequações partindo da sucção que, quando não bem

orientada, prejudica o desenvolvimento dos bebês com SD. Temos ainda outros mitos a serem

esclarecidos.

Page 51: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

39

Na situação de amamentação por mamadeira os bebês ficam em uma posição mais

reclinada, sendo que esse posicionamento associado à baixa tonicidade do esfíncter muscular

da tuba auditiva favorece a entrada do leite na orelha média. O resultado desta situação é a otite

média crônica, fator que pode levar à perda auditiva condutiva, o que explica o mito (c) perdas

auditivas condutivas de leves a moderadas. A entrada de líquido no ouvido médio, e a infecção

resultante, difundem-se através das mucosas das membranas do sistema respiratório e

frequentemente torna-se a origem de infecções crônicas do trato respiratório superior, o que

explica o mito (d) infecções do trato respiratório superior.

Por sua vez, estando a cavidade nasal congestionada, a criança transfere a respiração

nasal para uma respiração oral e tem-se o mito (e) respiração oral. Em decorrência disso, a

mandíbula se abaixa para acomodar a respiração oral, provocando uma postura crônica de boca

aberta, em repouso, o que corresponde ao mito (f) postura de boca aberta. Como a língua não

pode mais ser mantida dentro da boca, pela sua flacidez, e os lábios não funcionam como um

anteparo permanecendo entreabertos, o arco palatal não tem nada que impeça o seu movimento

em direção à linha média, o que redunda em um palato estreito e ogival, completando o círculo

de retorno ao mito (a). A língua da criança permanece flácida com a postura de boca aberta em

descanso. A falta de uma retração apropriada da língua corresponde ao mito (g) língua maior do

que a boca. A aparência alargada da língua não é, portanto, geneticamente codificada, mas sim

uma consequência de vários fatores. É muito mais o resultado de uma série de cuidados que

não são fornecidos em resposta à questão da fraca sucção. É mais cômodo introduzir a

mamadeira, mas é mais prejudicial para o bebê e os aprendizados que decorrerão no processo

de desenvolvimento de cada criança. Considera-se que as características físicas iniciais não

determinam as conquistas do bebê/criança. Veja-se o comentário de um pediatra para uma

fonoaudióloga que foi buscar orientação dele para, por sua vez, orientar a amamentação natural

de um bebê com SD: -- É Down, pode dar mamadeira.

Finalizando este item, comento uma experiência que tem dado certo em minha prática

clínica destinada a bebês com SD, ou seja, a introdução da técnica do copo, que Kuehl (1997);

Armstrong (1998); Howard et al. (1999b); OMS (2001) utilizaram com bebês normais. Tal

procedimento é bem-vindo porque substitui a indicação da mamadeira e evita alterações no

sistema motor oral e pode ser utilizado também no caso de haver algum fator que impeça a

amamentação natural. O interessante é que foi comprovado por exames de eletromiografia que

Page 52: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

40

esta técnica é muito superior ao uso da mamadeira, dado que utiliza o mesmo conjunto de

músculos elencados pela amamentação natural (GOMES, 2002).

O aleitamento por copo é definido como um método de alimentação com leite materno

utilizando um copo pequeno, de plástico mole, descartável, como o que se usa para café. Esse

procedimento não é novo e vem sendo utilizado há anos, especialmente em países em

desenvolvimento, com o objetivo de proporcionar uma alimentação segura nos casos em que os

meios de esterilização de mamadeiras e bicos não sejam seguros, ou quando as sondas

gástricas não estejam disponíveis. Indicado também em períodos de doença ou impossibilidade

temporária de a mãe amamentar e até mesmo para alimentar bebês com fissura labial e/ou

palatina.

A partir do que foi exposto podemos considerar que fatores externos como ambientais

contextuais, sociais, além do fator econômico, visto que há muitos interesses comerciais

envolvidos com a venda de fórmulas (leite artificial), mamadeiras e chupetas que estão na base

do problema relacionado ao funcionamento das funções orais e da fala de sujeitos com SD, e

não fatores intrínsecos ao próprio sujeito.

Page 53: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

41

CAPITULO 5 A BUSCA DE NOVOS CAMINHOS

Como vimos, muitos trabalhos fazem referência aos problemas do sujeito com SD,

centrando nele o déficit, e em quase todos se identifica o determinismo da síndrome sobre o

sujeito. A tendência geral é, pois, creditar ao sujeito as dificuldades motoras que causam

impedimentos para entrar na linguagem e se relacionar com o outro e as coisas do mundo pela

fala, corpo, percepção, leitura e escrita. De uma forma geral, as pesquisas se referem às

características da SD como: atraso de aquisição de linguagem, problemas de imprecisão

articulatória causados por hipotonia dos órgãos fonoarticulatórios, problemas fonético-

fonológicos, problemas de sintaxe pobre e estilo telegráfico, dentre outros.

Em suma, a maior parte dos autores relata os mesmos problemas e considera que as

causas destas dificuldades são de origem orgânica, central e/ou periférica. Assim, tais alterações

afetarão o desempenho das funções cognitivas, linguísticas, auditivas, motoras, respiratórias e

mesmo o conjunto delas. O que surpreende é que essa visão funciona como verdade absoluta e

inquestionável. Seguindo nessa direção não há escolha ou possibilidades de vida que possam

se abrir, para sujeitos com SD, que ainda hoje são encaminhados, em sua grande maioria, para

instituições que mantêm essa condição, fazendo com que haja para eles pouca perspectiva de

uma vida melhor.

Diferentemente, a ND é pautada por uma concepção histórica e social de linguagem,

que a concebe como, de acordo com Franchi (1977), de natureza indeterminada e heterogênea,

pelo qual o homem organiza e dá forma a suas experiências, uma atividade do sujeito que se

constitui a cada momento. Nesta perspectiva os sujeitos, com e sem patologia, são tomados

considerando suas possibilidades reais e potenciais e não suas dificuldades. As dificuldades são

compreendidas e orientam o adulto/mediador a lidar com elas, o qual, por sua vez, faz a criança

(re) conhecê-las.

Disso decorre outra diferença marcante entre a ND e a visão tradicional: a primeira se

interessa por compreender o sujeito, sua história, dificuldades, marcas de subjetividade e

caminhos alternativos que trilha; interessa-se também em compreender o fenômeno alterado

para saber como intervir nele com conhecimento, no lugar de aceitá-lo como inerente à

síndrome.

Page 54: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

42

Tal visão pressupõe, conforme Coudry e Freire (2005), uma variação funcional do

cérebro determinada pela contextualização histórica dos processos lingüístico-cognitivos, o que

a afasta de uma visão de funcionamento cerebral médio7, padrão, desprovida de sentido, a-

histórica e idealizada. Por isso se opõe à idéia de uma divisão estrita entre o que é da ordem do

normal e do patológico, propondo uma mobilidade entre essas duas ordens, o que não significa

que a patologia não exista: sempre que o aparelho cerebral for privado - por lesões congênitas

e/ou adquiridas - de suas estruturas e funções, a patologia se estabelece (COUDRY e FREIRE,

2006; COUDRY, a sair). Veja-se o que diz Coudry a propósito da relação normal patológico nas

afasias que pode ser apropriadamente aplicado, também, à SD,

é justamente na mobilidade da barra que separa o velho do novo que incidem as afasias. Afásicos, como já mencionado, perdem a intimidade com a língua estabelecida ao longo da vida; e tudo se apresenta como novo, rompendo a anterioridade lógica da entrada da criança na língua, capturada pelo funcionamento da linguagem. A mobilidade da barra - que nem sempre é a mesma - determina o que é da ordem do normal e o que é da ordem do patológico, a depender de fatores fisiológicos, psíquicos e históricos que, por um lado, funcionam como dispositivos8 biológicos e históricos que regulam/condicionam os diferentes modos de viver em sociedade e que, por outro, representam cada sujeito em particular (COUDRY, a sair).

Deixo clara a posição da ND que teoriza e propõe práticas com a linguagem (verbal e

não verbal) para a avaliação e acompanhamento longitudinal de sujeitos, com e sem lesão

cerebral, articulando teorias que iluminam o olhar sobre dados e sujeitos. No caso desta tese, os

autores que contribuem em especial são Vygotsky (1926/2004, 1932, 1933/1997, várias

datas/1983); Jakobson (1956/197); Freud (1901/1969, 1905/1969); Coudry (1986, 1988, 1992,

2010); De Lemos (1992, 1995, 1999, 2001, 2006); Abaurre (1999, 2001, 2006, 2008a); Perroni

(1992).

Nessa perspectiva, introduzida por Coudry (1986/1988) para estudar as afasias e os

sujeitos afásicos, refinada e expandida a outros sujeitos, com e sem patologia, por tantos

pesquisadores ao longo dos anos, importa a relação entre sujeito e linguagem que é

heterogênea, ou seja, não se faz sempre do mesmo modo, esta relação é dependente de uma

série de fatores contextuais e psíquicos, e não uma relação pré-estabelecida entre a falta e a

patologia. Para a ND, importa tanto o que o sujeito deixa de dizer, escrever, ler, perceber,

7 Além disso, não se encontram falantes que se comportem da forma enunciada.

8 Seguimos a reflexão de Agamben (2007), ao retomar o conceito de dispositivo de Foucault que o formula como um conjunto heterogêneo, que recobre o dito e o não dito, e implica discursos, instituições estruturas arquitetônicas, (FOUCAULT, 1969). De natureza estratégica, o dispositivo está inscrito em um jogo de poder que condiciona saberes e práticas. Dispositivo, para Agamben, é “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (p. 41).

Page 55: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

43

gestualizar etc. como o que diz, escreve, lê, perceber, gestualiza. Importa, assim, sujeitos

marcados por sua relação com a linguagem (fala, leitura e escrita), práxis/corpo, atenção,

percepção, raciocínio intelectual - e não sujeitos idealizados e padronizados. Daí o interesse por

estabelecer a relação com os sujeitos (na avaliação e no acompanhamento longitudinal

terapêutico) pelas mais diversas manifestações de linguagem que são praticadas na vida em

sociedade. Conforme Franchi (1977), entendemos que,

a linguagem é ela mesma um trabalho pelo qual, histórica, social e culturalmente, o homem organiza e dá forma a suas experiências. Nela se produz de modo mais admirável, o processo dialético entre o que resulta da interação e o que resulta da atividade do sujeito na constituição dos sistemas lingüísticos, as línguas naturais de que nos servimos (p. 12 ).

E, mais precisamente, quando a questão envolve crianças deficientes mentais e

linguagem escrita, é preciso urgentemente direcionar nosso olhar para este sujeito, que em sala

de aula é muitas vezes deixado de lado, considerado como aquele que apresenta uma escrita

telegráfica desprovida de sentido, ou mesmo como um copista. Estes fatos são frequentemente

relatados por professores da rede quando questionados sobre o desempenho destas crianças.

Por isso, é mais adequado, conforme propõem Abaurre e Coudry (2008),

olhar para o sujeito que opera sobre o seu objeto de conhecimento – a escrita -, e não para um objeto que é a escrita sem sujeito, produto mecânico do treinamento escolar, implica reconhecer que esse sujeito, ao formular hipóteses sobre a natureza e a função do objeto, está também sublinhando, em vários momentos, o percurso de um processo de construção que a instituição escolar opta por freqüentemente apagar. Anulando o sujeito, negando a sua relação dinâmica com a escrita que constrói, a escola acaba por inaugurar patologias em contextos em que certas operações devem ser interpretadas como normais (p. 54)

Neste sentido buscamos entender neste trabalho quais são as dificuldades reais dessas

crianças em seu processo de entrada na fala, leitura e escrita, observando se elas passam pelos

mesmos processos que qualquer outra criança, qual é o seu ritmo, considerando suas hipóteses,

erros e reformulações.

Considero oportuno apresentar ainda neste capítulo, já que a proposta é buscarmos

novos caminhos, algumas atividades propostas em livros e manuais que nortearam por muito

tempo o trabalho terapêutico com as crianças com SD, na visão tradicional. Um destes trabalhos

é o livro de Lefevre (1988) psicóloga-chefe do setor de Atividade Nervosa Superior da Divisão de

Neurologia do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, na

época da publicação, com diversos trabalhos na área de deficiência mental. Em sua obra

Mongolismo – orientação para famílias, compreender e estimular a criança deficiente, publicação

Page 56: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

44

bastante divulgada e utilizada por profissionais e pais, descreve o trabalho fonoaudiológico, a ser

executado com a criança com SD, enfatizando que,

a fonoaudiologia se dirige ao desenvolvimento da fala. Na criança mongólica desde o nascimento encontram-se distúrbios relacionados com a comunicação, principalmente no que se refere à expressão. Ela encontra dificuldade para sugar, deglutir, mastigar, controlar os movimentos dos lábios e da língua e isto ocasiona atraso na articulação dos movimentos que compõem a fala expressiva (p. 68).

Observa-se claramente na argumentação da autora que a criança com SD não tem

saída, dado o determinismo que compromete sua fala desde o nascimento e a relação de falta

estabelecida entre o ato motor e a fala da criança. Reduzindo a fala a essa relação priorizam-se

os exercícios motores, prática ainda corrente na Fonoaudiologia, como exposto no capitulo

anterior.

A autora considera a criança mongólica desajeitada em seus movimentos e para que a

articulação, função respiratória e fluência não prejudiquem a evolução da expressão da

linguagem, propõe exercitar os movimentos da boca e da língua, sempre de modo progressivo e

sistemático por meio das sílabas MA, PA, BA, que são mais fáceis para a criança. Para introduzir

e provocar a realização de movimentos mais difíceis, a autora sugere a introdução de vários

sabores como doce, salgado ou amargo indicando, ainda, o emprego de sons isolados para o

treino articulatório.

O problema com este tipo de trabalho é que a produção de sons isolados e

descontextualizados não levará a criança à utilização efetiva da linguagem, primeiro pela

situação de produção desprovida de sentido, questão já exposta várias vezes nesta tese, e

segundo porque a realização da fala se dá em um contínuo não sendo possível, desta forma,

treinar sons isolados para que em um segundo momento a criança os realize em uma sequência

fluida, que por sua vez se relaciona com a produzida pelo outro no fluir do discurso.

Da mesma forma, como várias outras obras utilizadas para crianças com deficiência

mental, o manual do Deficiente no Brasil, publicado pela Sociedade Beneficente São Camilo nos

anos de 1980, apresenta, no capitulo Fonoaudiologia (GOMES e MACEDO, 1987), uma longa

série de exercícios de sopro, de lábios de língua, mandíbula, de palato, de menor e maior

esforço para a movimentação da musculatura orofacial. Em relação aos exercícios para sopro,

por exemplo, o manual indica as atividades de soprar velas, fazer bolinhas de sabão, soprar

apitos, soprar tirinhas de papel, dentre outros. Em relação aos exercícios para lábios, sugere

as atividades de vibrar os lábios, apertar fortemente um lábio contra o outro, soltar e contrair

Page 57: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

45

novamente - indicando a repetição das atividades por seis a dez vezes -, falar as vogais

rapidamente, soltar beijinhos. Para meu espanto, uma das atividades que chama a atenção pela

situação a que expõe a criança é a que sugere, na situação clínica e educacional, que a criança

deficiente, alcance com a boca objetos colocados sobre a mesa, de tamanho e forma que não

lhe ofereça perigo, imitando uma pinça; colocar um lápis entre o nariz e o lábio superior

enquanto fala a letra U, sugerindo a repetição da atividade por quatro ou seis vezes. Em relação

aos exercícios de língua, o manual sugere passar a língua nos lábios lentamente com repetição

da atividade, além da colocação da língua para fora e para dentro da boca, de forma constante e

rapidamente; estalar, vibrar e sugar a língua contra o céu da boca; abrir e fechar a boca sem

soltar a língua, sempre sugerindo a repetição das atividades por seis a dez vezes. Em relação

aos exercícios de mandíbula, as autoras sugerem o abrir e fechar a boca devagar, o abrir e

fechar a boca rapidamente, mover a mandíbula para a direita e para a esquerda, trincar os

dentes com força, de forma a contrair a musculatura lateral da face, relaxando, em seguida, e

repetindo as atividades, sempre por seis a dez vezes. E em relação aos exercícios de palato é

sugerida as atividades que levem as crianças a forçar a tosse, a forçar o bocejo, a gargarejar

com água e sem água, repetindo sempre as atividades, por várias vezes, levando o aluno a falar

dingue-dongue, pingue-pongue e can-can, repetindo de seis a dez vezes, essas atividades.

As autoras sugerem, ainda, que se reserve, durante a intervenção, 15 minutos para que

seja feita uma conversa com o aluno e que essa conversa verse a respeito de algo novo e que

tenha relação com os acontecimentos do dia a dia (família, vizinhos, colegas, programas de TV,

animais). Frente ao que é sugerido, este momento da conversa poderia ser um momento

integrador. Ao sugerir este tipo de atividade, no entanto, as autoras deixam claro que isto deve

ser feito mesmo que o aluno não esteja entendendo nada. E complementam justificando que tal

atividade, por si só, uma vez realizada, deverá criar o interesse do aluno em falar. O que chama

a atenção nessa proposta é a sugestão de uma atividade de funcionamento de linguagem

independente do sentido que isto tenha para o aluno: mesmo que ele nada entenda da conversa,

mesmo que não haja sentido, para ele. Como é possível falar sobre algo que não faz sentido e

que essa fala crie interesse no aluno em falar?

A mesma tendência observada nos autores citados pode ser evidenciada nas práticas de

escrita propostas em instituições de educação especial, no atendimento educacional, para

indivíduos com SD em processo de alfabetização. Isso pode ser verificado nas diversas tarefas

propostas nas figuras que se seguem. A Figura 1 apresenta uma situação de ditado de numerais

Page 58: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

46

Figura 01. Atividade de ditado em sala de aula

Qual seria o objetivo da professora em fazer um ditado de numerais? É importante

salientar que o aluno com SD, que realizou essa tarefa, à época estava com dezoito anos. Por

que não propor, por exemplo, para um jovem de dezoito anos, atividades como o preenchimento

de cheque em que se usam números e escrita de números por extenso? Ou seja, propor

atividades em que está em jogo a função social da escrita.

Segundo a visão da ND, o sujeito se organiza linguisticamente em função da

contextualização histórica dos processos linguístico-cognitivos, o que é muito diferente da visão

a-histórica e idealizada de linguagem, em que predominam tarefas sem sentido, como as que as

escolas para deficientes mentais propõem. A ND se opõe a essa visão tradicional, buscando

conhecer e compreender o sujeito, sua história, dificuldades, marcas de subjetividade e de

alteridade para saber como intervir junto ao sujeito, no lugar de aceitar as dificuldades como

inerentes à síndrome. O enunciado da atividade propõe copiar aleatoriamente palavras das

páginas 62 e 63, o que parece não acompanhar nenhum objetivo a não ser o treino motor, não

importando o que se copia um tema particular ou qualquer outro gênero discursivo.

Page 59: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

47

Figura 02. Cópia de palavras do livro didático

A cópia pode ter uma função e sentido, como por exemplo, copiar uma música, uma

receita para se fazer em casa, mas não como uma atividade escolar mecânica, em que nada

reúne as palavras copiadas. O movimento na escrita está a serviço do sentido que a palavra

carrega pela associação que se estabelece na linguagem. O movimento motor sem sentido não

carrega significado. Do nosso ponto de vista, a partir da ND, a idéia seria a de promover a

motivação e o interesse pela escrita, uma escrita produtiva e não o treino mecânico. No caso

deste sujeito está claro que ele já sabe como escrever, ele necessita vivenciar a prática escrita

em diferentes gêneros com a intervenção do professor.

Page 60: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

48

Figura 03. Atividade de completar com R ou RR e depois copiar as palavras

Page 61: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

49

De novo, para um sujeito que já apresenta domínio do sistema alfabético, exercícios de

ortografia. No lugar disso, deveria haver propostas de escrever e reescrever textos. Podemos

notar que o sujeito consegue fazer o exercício ortográfico quando deve escrever na figura o

nome do objeto que se pede, e na cópia quando a letra R aparece em início de sílaba em início

de palavras. Mas o preenchimento de RR no início de sílaba dentro das palavras na cópia não é

preenchido corretamente. Quando copia, a criança não faz a oposição fonológica entre R e RR,

pois não basta preencher espaços em branco para entender a diferença que este contraste

fonológico estabelece no sentido das palavras. Acreditamos que é a partir do sentido e uso

efetivo das palavras que a criança/jovem/adulto, com ou sem deficiência, estabelece o contraste

na língua. Desta forma, este tipo de tarefa de nada adianta.

Figura 04. Ditado de palavras

Novamente o ditado de palavras, podemos observar que o caderno deste jovem é

permeado de cópias de e de ditados, ou melhor, nos vários cadernos que analisei deste

adolescente, não encontrei nenhuma produção de textos, no máximo frases soltas sem nenhum

Page 62: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

50

contexto. Isto se estende para as outras crianças institucionalizadas, que pude observar. A

diferença desta produção é que vem com a aprovação da professora no alto da folha: Jóia!

Figura 05. Escrita de numerais

Fica difícil entender o objetivo da proposta, destinada a um adolescente que já sabe

escrever números e também sua sequência.

Page 63: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

51

Figura 06. Tarefa de separação de sílabas

A falta de sentido em todas as tarefas observadas na Figura 06, é tão grande que

encontrei essa produção no caderno deste jovem. A busca pelo sentido faz com que o sujeito

irrefletidamente escreva números de um a dez, como sempre faz no seu caderno, e inclua a

palavra sílabas em todos eles.

Por outro lado, qual será o objetivo a ser atingido pela professora quando propõe uma

tarefa para a criança na qual a solicitação feita por escrito é que a criança pinte a iguana de

verde, faça um quadrado em torno do espelho, pinte a acerola de vermelho, circule o ovo ou faça

um X ao lado do cacho de uvas? Se o caso é averiguar a compreensão da leitura feita pela

criança por meio dessas tarefas, considero que existam formas mais interessantes e inteligentes

de se fazer isto. Poderíamos trabalhar com as crianças, por exemplo, instruções de jogos, ou

também sugerir a leitura de uma fábula e em seguida a escrita pela criança da fábula, ou mesmo

Page 64: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

52

conversar com a criança sobre a moral da fábula, o que aquilo significa ler uma estória em

quadrinhos e depois comentar com a criança ou o grupo sobre o desenrolar dos fatos ocorridos,

e tantas outras atividades que são possíveis para se trabalhar e/ou organizar em conjunto com a

criança a compreensão da leitura.

Figura 07 Verificação da compreensão da leitura pelo aluno

Na verdade existem muitas maneiras de se fazer isso. Mas todas exigem, além de outra

concepção de linguagem, acompanhamento próximo e sistemático ao aluno e comprometimento

do profissional. Mas será que esses professores ou mesmo os professores de escola regular têm

esse tempo e também comprometimento para disponibilizarem a esses alunos?

No capitulo 6 acompanharemos as histórias de vida de duas crianças com SD, as quais acompanho por vários anos e busco compreender o processo de aquisição de fala/leitura /escrita mediadas pelo outro.

Page 65: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

53

CAPÍTULO 6 O TRABALHO CLÍNICO-TERAPÊUTICO REALIZADO COM AS CRIANÇAS COM SÍNDROME DE DOWN

Procedimentos Éticos

O projeto de pesquisa inicial foi submetido à avaliação ética do Comitê Permanente de

Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (CEP) da Faculdade de Ciências Médicas (FCM)

da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – CEP/Fcm/Unicamp, sob o titulo O papel do

mediador no processo da aquisição de escrita em indivíduos com síndrome de Down. O projeto

de pesquisa é vinculado ao Grupo III, conforme Resolução MS/CNS n. 196/96, recebeu Parecer

CEP/FCM n. 1210/2009 e CAAE n. 0929.0.146.000-09 tendo sido, o parecer, homologado na

Primeira Reunião Ordinária do CEP/Fcm/Unicamp, em 19 janeiro de 2010. Os relatores

sugeriram a submissão do projeto à análise ética do Comitê Permanente de Ética em Pesquisa

Envolvendo Seres Humanos (CEP) do Centro Universitário de Maringá (Cesumar), onde os

sujeitos de pesquisa foram recrutados e o dado coletado. A sugestão foi acatada e o projeto foi

submetido à apreciação ética do CEP-Cesumar, recebendo Parecer n. 225/2010, CAAE n.

0449.0.299.000-10 tendo sido analisado na reunião ordinária da plenária do CEP-Cesumar, em

2010/07/09 e aprovado a proposta “considerando o teor exarado pelo parecer da instituição

vinculada” CEP/Fcm/Unicamp, em 09 de julho de 2010. O trabalho, após ser apresentado na

Qualificação de Tese, recebeu alteração do titulo para A interrelação fala, leitura e escrita em

duas crianças com síndrome de Down devendo ser enviado aos CEP FCM/Unicamp e CEP

Cesumar, relatório final informando a alteração sendo aguardada manifestação do mesmo.

Os sujeitos da pesquisa

Os sujeitos desta pesquisa são duas crianças com SD, aqui chamadas de ML e AM. O

trabalho com ML teve início no segundo semestre de 1998, quando ela tinha três anos de idade.

O trabalho com AM iniciou-se em 2001, quando ela tinha 6 anos de idade, portanto, três anos

após o início do atendimento de ML. No final desta pesquisa ML tinha 13 anos e AM 14. Elas

foram inseridas no atendimento de terapia fonoaudiológica de um serviço de extensão, em uma

clínica escola no interior do Paraná.

Procedimento de coleta dos dados

Page 66: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

54

Após algum tempo de trabalho individual com ML e AM, iniciamos em 2003, o trabalho

em grupo (ML com 7anos e AM com 8 anos), objetivando ampliar suas interações com outras

crianças e adultos. A irmã de AM, dois anos mais nova, designada AL, também participava do

grupo, não porque apresentasse alguma dificuldade, mas porque se interessava pelas atividades

e falava bastante com AM. Além de AL, no início, também participava do grupo GH, um menino

com SD, na época com 7 anos, que não faz parte da pesquisa, por ter parado de frequentar o

grupo após um ano e meio. O grupo também é composto por estagiárias do Curso de

Fonoaudiologia de um Centro Universitário, que mudam ano a ano, e pela investigadora,

coordenadora do grupo, identificada por Icp. Os encontros aconteciam duas vezes por semana

na clínica escola e duravam uma hora e meia. Por razões de agenda e horários a partir de 2007

os trabalhos foram realizados individualmente com L e AM.

A partir da ND, tanto para avaliação como para a prática clínica, parte-se do pressuposto

de que as atividades de linguagem só ganham sentido se inseridas em situações que

representem o uso social da fala, leitura e escrita, em nossa sociedade. Desta forma, busca-se

utilizar no grupo situações reais vividas pelas crianças, a fim de que elas possam se envolver

nas interações de que participam. Minha preocupação, quando iniciamos o grupo, era a de que

as duas crianças, principalmente AM, que ainda apresentava em sua fala muitas omissões,

percebessem a importância de que sua fala deveria conter constituintes indispensáveis para a

compreensão do outro. Para dar visibilidade a este fato, comecei a escrever seus relatos criando

uma materialidade (escrita) para o que falavam. Nesta proposta, a minha escrita, a respeito do

que elas falavam, foi utilizada para dar forma e visibilidade à fala materializando para as crianças

algo que até então não era possível de se visualizar, ou seja, o que faltava em sua(s) fala(s).

Para isto elas teriam que organizar em conjunto com a terapeuta, e algumas vezes com o grupo,

o que deveria ser escrito. Mas por que introduzir a escrita e não continuar o trabalho com a

oralidade que estava sendo realizado? Em minha prática, no trabalho com a fala dessas

crianças, percebia que quando estávamos em uma atividade dialógica, em situações de

brincadeira de casinha ou na atividade de contar o que havia acontecido no final de semana,

quando eu solicitava da criança uma reestruturação do seu turno por uma questão fonológica ou

uma (re) organização da sintaxe, percebia que isso ocorria de forma muito breve e muitas vezes

sem que a criança tivesse tempo de operar internamente com aquele novo conhecimento. Mas

quando estávamos escrevendo sobre aquela vivência da criança e eu perguntava a ela como eu

deveria escrever aquilo que ela havia me contado, ou mesmo o que havíamos vivenciado

dialogicamente na brincadeira, eu percebia que elas se esforçavam para preencher o que estava

Page 67: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

55

faltando em sua produção, após a minha leitura em voz alta sobre o que ela havia pedido para

eu escrever. Para exemplificar este procedimento, descreverei um trecho de um dos diálogos

com AM em agosto de 2003. As Figuras 08, 09 e 11 foram elaboradas com base no modelo

enunciado pela BDN/CNPq n. 521773/95-4.

Número Sigla

do Locutor

Transcrição

Observações sobre os processos de significação verbais

Observações sobre os processos de significação não verbais

01 Icp Fala AM o que você fez ontem? 02 AM Ecola. 03 Icp Onde você foi? 04 AM Ecola.

05 Icp Espera AM, explica melhor, então eu vou escrever como? Quem foi na escola?

06 AM Eu! 07 Icp Ah! Então fala tudo para mim. 08 AM Eu ecola.

09 Icp

AM, então eu vou escrever assim: Eu ecola? Não esta faltando nada aí? Como você fala: - Eu vou na escola, eu fui na escola... ?

10 AM Eu fui ecola C.

11 Icp

Isso AM! Agora está melhor. Mas não esta faltando alguma coisa? Olha: - Eu fui ecola. Eu falo assim? Ou eu fal: - Eu fui na escola.

escrevendo

12 AM Eu fui na ecola rindo 13 Icp Então fala tudo para eu escrever, AM. 14 AM Eu fui na ecola.

15 Icp Mas quando foi isso? 16 AM Ontem. 17 Icp Então, fala tudo agora. 18 AM Eu fui na ecola ontem. 19 Icp Isso AM! escrevendo

20 Icp Então ficou assim: - Eu fui na escola ontem.

Lendo

21 Icp Está certo? Era isso?

22 AM Isso. Com expressão de satisfação

Figura 08. Diálogo de AM

Pode-se observar que se não estivéssemos escrevendo a produção de AM,

provavelmente, não ficaria tão evidente o que estava faltando e provavelmente ela não repetiria

para mim, o que eu escrevi, após ter chegado a conclusão do que estava faltando. O fato de AM

ter tempo de verificação, após a minha leitura para ela do que ela havia deixado de produzir, fez

com que ela pudesse refletir e reformular este processo. Minha atuação vai na direção da

proposta de Vygotsky (1988) ao criar uma Zona de Desenvolvimento Proximal para AM, no que

Page 68: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

56

diz respeito a sua produção oral e, futuramente, escrita, ampliando para ela possibilidades de

produção e de fala. Fica evidente, na dialogia, que AM tem condições de realizar esta produção,

mas não o fazia, pois não lhe foram dadas as condições, nem em casa e nem na escola.

Foi de crucial importância para o fluir do discurso dessas crianças a intervenção da

terapeuta que incide sobre as falas do que as crianças queriam que fosse escrito. De crucial

importância também foi a escuta da terapeuta para as falas das crianças, em todos os seus

detalhes, a fim de que o sentido organizado pela seleção e combinação (JACOBSON, 1955/56)

estivesse garantido. Embora as crianças neste momento ainda não soubessem ler e escrever, a

terapeuta escrevia e lia o que estava sendo produzido por elas. Desta forma, neste período, a

terapeuta era leitora e escriba das crianças, introduzindo-as, pouco a pouco, nessas práticas de

leitura e escrita, atuando como mediadora e (re) estruturando, o que é dito pelas crianças. Foi a

partir do trânsito entre oralidade/leitura e escrita, que as crianças começaram a ampliar suas

produções orais e a compreender, ao mesmo tempo, o que é a escrita e seu significado em

nossas práticas sociais.

Para que estas atividades se realizem de uma forma mais natural estabelecemos no

grupo que todos os integrantes (crianças, estagiárias e terapeuta) seriam convidadas a relatar,

no início da sessão, algo que aconteceu durante a semana e que, posteriormente, os relatos das

crianças seriam escritos pela terapeuta e retomados oralmente a cada passo, até sua escrita

final. Chamávamos esses momentos iniciais de hora de contar a novidade. No início foi um

pouco difícil, visto que as crianças não estavam habituadas a práticas com a linguagem

centradas na narrativa e não costumavam relatar para o outro o que faziam em casa, na escola

ou em qualquer outro ambiente. É importante ressaltar que o que parecia ocorrer, na verdade, é

que não era creditado a essas crianças, em seu convívio social, que elas pudessem ou

soubessem relatar algo que acontecia com elas em outros ambientes, sendo, pois, preciso

ensiná-las a passar pela experiência da narrativa. Como já foi considerado na revisão de

literatura deste trabalho, é preciso deixar claro que, a deficiência mental não tira das crianças a

possibilidade do raciocínio verbal, sobretudo se, no início, mediado.

Outra situação, observada por mim na sala de espera, que colaborava com a dificuldade

das crianças em relatar os acontecimentos, foi o fato de notar que as mães praticamente

decifravam suas necessidades, compreendiam, pela proximidade e familiaridade, tudo, ou quase

tudo, o que as crianças queriam dizer; as mães faziam isso se utilizando apenas de uma palavra

associada a gestos e a expressões faciais e não exigiam, desta forma, um esforço por parte das

Page 69: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

57

crianças em usar enunciados com todos os constituintes e com uma articulação motora mais

precisa. É preciso deixar claro que o uso de gestos e expressões faciais não é em si prejudicial,

mas no caso dessas crianças, elas tinham condições de fazer uso da fala, como qualquer

criança, o que neste momento seria importante, tanto para sua sociabilização, quanto para sua

autonomia, e não o faziam simplesmente por que não lhes era solicitado e, portanto, não sabiam

como fazê-lo. Desta forma as mães foram orientadas para que conversassem com as crianças e

que em meio a estas interações solicitassem das crianças produções mais completas e uma

articulação mais precisa. Por exemplo, se a criança pedisse algo para comer, a mãe não deveria

se contentar com o gesto de apontar da criança, ou somente com palavra doce, a mãe deveria

solicitar da criança qual tipo de doce, e que ela dissesse: - Eu quero bolacha, ou - Eu quero

chocolate, e assim por diante. Desta forma a mãe era orientada a não adivinhar os desejos da

criança, mas sim a solicitar dela o que ela já sabia produzir e quando não soubesse a mãe diria

para que ela repetisse. A mediação da mãe é fundamental para a criança expandir e ajustar sua

fala e deve ser feita em todas as situações de necessidade, pois o que a criança faz hoje com a

ajuda do outro ela conseguirá fazer amanhã sozinha: é isto o que nos diz Vygotsky (1988)

quando descreve a zona de desenvolvimento proximal e sua importância para o aprendizado da

criança que, segundo ele, desencadeia o desenvolvimento.

Assim, quando iniciamos as sessões do grupo foi preciso um empenho grande para que

as crianças contassem suas atividades, como foi proposto. Foi orientado também para as mães

que elas deveriam conversar com as crianças e motivá-las a relatar para a terapeuta, no grupo, o

que faziam em casa nos finais de semana. Algumas vezes as mães mandavam por escrito o que

havia acontecido ou nos falavam na sala de espera se havia acontecido algo de especial em

casa, se viajaram, ou fizeram algum passeio. Demoramos por volta de um ano para que elas se

soltassem e começassem a relatar com motivação suas vivências. Levávamos um grande tempo

para compreender e organizar seus enunciados que, muitas vezes, se apresentavam de uma

forma muito reduzida e fragmentada. Era preciso fazer muitas perguntas para compreender o

que elas queriam relatar. Eu perguntava: Onde foi? Quem te levou? Mas quando foi? Quem

estava lá? Para Perroni (1992), em seus estudos sobre o desenvolvimento narrativo em

crianças, perguntas feitas pelo interlocutor: quem? onde? quando?, levam a criança a organizar

as lembranças sob a forma de discurso narrativo. Isto é o aprender a contar (p.55). Desta forma

as crianças faziam tentativas no sentido de contar, mas produziam, na maioria das vezes,

apenas uma palavra para designar todo o acontecimento, e o meu empenho era desdobrar o

conteúdo que se encontrava abreviado, conforme Vygotsky (2001). O autor quando discute o

Page 70: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

58

conceito de fala reduzida, abreviada, refere-se à fala interiorizada.

Mais do que registrar os acontecimentos esta atividade fez com que elas tivessem que

organizar e elaborar dialogicamente com a terapeuta como ficaria o texto escrito, ou seja, elas

teriam que encontrar uma forma de o texto ganhar organização e visibilidade para que todos o

entendessem. Mais ou menos ao mesmo tempo, em conjunto com a atividade de a terapeuta

escrever o texto falado da criança, AM e ML começaram, por iniciativa própria, a escrever suas

próprias produções. A escrita da terapeuta funciona como condição para a escrita da criança, da

mesma forma que a fala do outro funciona como condição para a criança entrar na língua

(COUDRY, 2010). Foi a partir desta atividade conjunta entre crianças e terapeuta que surgiu

motivação para a escrita e também entendimento para as duas crianças de qual é a função

social da escrita. Depois que ML e AM começaram a produzir seus próprios textos começamos

a trabalhar em conjunto a reescrita e consequentemente a leitura de suas produções para que

elas compreendessem o que poderia ser melhorado.

Caracterização dos sujeitos Sujeito ML

O trabalho terapêutico iniciou-se com ML em 1998 em uma clínica particular no interior

do Paraná. Nesta época o serviço de extensão da clinica escola ainda não estava em

funcionamento, motivo pelo qual eu atuei com ML como fonoaudióloga em uma clínica particular

onde a conheci. Ela estava com 3 anos e sua mãe procurou o atendimento fonoaudiológico com

a queixa de que a fala de sua filha era ininteligível e que ela falava um tipo de “inglês”. A mãe de

ML é professora de matemática, hoje aposentada, e seu pai era pediatra e faleceu quando ML

tinha dois anos. ML não tem irmãos. Seu padrão socioeconômico é de classe-média alta. Sua

mãe é muito preocupada com seu desenvolvimento e procura fazer tudo que está ao seu

alcance para que ML tenha uma vida como a de qualquer criança.

Quando me procurou para o atendimento, ML ainda não frequentava escola e fazia

atendimento individual em terapia fonoaudiológica e fisioterápica. Esse atendimento

fonoaudiológico privilegiava o aspecto motor e em nosso primeiro encontro sua mãe me trouxe

uma caixa com utensílios que ela utilizava para fazer os exercícios em casa. Esta caixa continha

canudos, garrotes, chupeta e elásticos, materiais comumente utilizados para os exercícios

motores. Conversei então com a mãe de ML dizendo que não iria utilizar esses materiais e que

meu trabalho estava baseado em outra concepção de linguagem na qual privilegiaria as

Page 71: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

59

situações dialógicas entre mim e ML, por meio de narrativas. Percebi que ela ficou um pouco

desconfiada, mas resolveu investir nesta nova proposta. O trabalho terapêutico foi organizado

em torno de atividades dialógicas envolvendo fantoches, contagem de histórias, músicas,

brincadeiras com figuras, animais em miniatura, culinária, bingo, dentre outras. ML era

freqüentemente solicitada pela terapeuta a contar o que acontecia com ela em seu dia-dia e isso

fez parte das orientações passadas semanalmente para a mãe. A mãe foi orientada a conversar,

brincar com ela, ler estórias, cantar.

A fim de que se pudesse ter uma idéia dos sujeitos de uma forma global e completa

foram realizados, como é de rotina na clínica fonoaudiológica, vários exames complementares,

com a diferença de que aqui estes exames não foram feitos para rotular o sujeito, mas sim com a

intenção de correlacionarmos os dados de fala, audição e sistema motor oral, as questões

familiares, condições do ambiente da criança, dados do nascimento como amamentação, e

intercorrências clínicas, escola e outros. Nos exames audiológicos constatou-se que sua audição

está dentro dos padrões de normalidade. Os exames do sistema motor oral mostraram que ML

apresenta assimetria de face, não apresentou selamento labial, permanecendo a maior parte do

tempo com os lábios entreabertos, durante a mastigação apresentou projeção de língua e

amassamento do alimento no palato. Apresenta palato ogival e profundo.

Durante a avaliação do sistema motor oral também foi feita uma entrevista com a mãe

para saber sobre amamentação e alimentação de ML. Constatou-se que ML foi amamentada

somente por quinze dias, utilizou mamadeira e fez uso de chupeta, não gosta de verduras e

come poucas frutas, sua preferência na alimentação é por alimentos mais moles. O fato de ML

apresentar estas alterações do sistema motor oral é totalmente compatível com o que Rosenfeld-

Jonhon (1977) nos apresenta quando fala dos mitos que são caracterizados como inerentes à

SD. O fato de ML ter sido amamentada apenas por quinze dias e ter feito uso de chupeta e

mamadeira foi provavelmente o que levou a esta configuração do sistema motor oral, e não a SD

em si.

No ano de 2001 quando ML estava com 6 anos, foi realizada na clínica escola de

fonoaudiologia a Avaliação Fonológica da Criança (AFC) proposta por Yavas; Hernandorena e

LAMPRECHT (1992). Os resultados apresentados mostraram que ML tinha inventário fonético

completo, ou seja, era capaz de produzir todos os sons da língua que é falante. Quanto à análise

dos traços distintivos, ML apresentou dificuldades na coordenação dos traços anterior, alto,

sonoro e lateral, na produção das seguintes palavras: para açúcar falou [suka], para feijão falou

[vêsaw], para garrafa falou [kaxafa], para geladeira falou [eledela]. Não apresentou problemas

Page 72: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

60

quanto às estruturas silábicas mais complexas, como ataque ramificado e coda. ML aos 6 anos

apresentava, quanto ao nível fonético e fonológico, uma fala fluida e com poucas estratégias de

reparo9. Apresentava sintaticamente boa organização das frases, algumas vezes se confundia

com os pronomes. Em seu discurso apresentava algumas dificuldades em organizar o que

deveria vir antes ou depois dificultando o sentido para o interlocutor, como eventualmente

algumas crianças em idade menor fazem.

ML frequentou a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) por um tempo

muito pequeno, menos de um ano, no programa de estimulação precoce, conforme relatou sua

mãe. Sua escolarização se deu em escolas regulares. Junto com a escola também fazia

ecoterapia e no verão natação.

Dados da Produção Oral de ML

Dado 1

ML 8 anos, 11 de novembro de 2003. O dado apresentado abaixo foi produzido em um

encontro com ML no qual ela conta sobre uma festa de aniversário que foi com sua mãe.

Número Sigla do Locutor

Transcrição

Observações sobre os

processos de significação

verbais

Observações sobre os processos de significação não verbais

01 ML Eu quero contar a novidade.

02 Icp Então vamos lá. O que é que nós vamos escrever aí?

03 ML Nova de novidade.

04 Icp Uma novidade bem nova? Bem nova? O que que é?

05 ML Coloca, eu..... Fica esperando Icp escrever a palavra eu para continuar

06 Icp Mas então conta tudo depois a gente escreve. 07 ML Não, escreve... 08 Icp Eu o quê? Pega a caneta da mão de Icp 09 ML Ah! Deixa eu escrever 10 Icp Você quer escrever? Então pode escrever. Icp põe o caderno na frente de ML

11 ML Não, você, eu só tirei a tampa para você. Tira a tampa da caneta e devolve para Icp

12 Icp Então tá bom.

9 A expressão estratégia de reparo refere-se a estratégias adotadas pelas crianças para adequar a realização do sistema alvo –a língua falada pelos adultos do seu grupo social - ao seu sistema fonológico, ou seja, refere-se àquilo que as crianças realizam em lugar do segmento e/ou da estrutura silábica que ainda não conhecem ou cuja produção não dominam.

Page 73: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

61

13 ML Eu::::::: a minha m...., eu fui....

ML fecha os lábios parece que vai dizer a palavra mãe mas depois muda para eu

14 Icp Eu .... 15 ML Fui ... 16 Icp Fui... 17 ML Da... 18 Icp Da? 19 ML Cristiane. 20 Icp Da ou na?

21 ML Ai , ai! Rindo, bate com a mão na testa como se tivesse falado uma bobagem

22 ML Eu minha mãe... 23 Icp Você falou eu fui antes 24 ML Não, coloca minha mãe ML muda de idéia

25 Icp Então coloca: Eu , minha mãe.... Icp faz movimento um movimento como se fosse riscar a palavra Fui.

26 ML Não pode riscar.

27 Icp Ah, mas como é que eu vou... Eu fui minha mãe? Não dá, como é que eu vou resolver isso?

28 ML Eu fui da festa da G.! 29 Icp Eu fui na festa de quem? 30 ML G.. 31 Icp G. ? Quem é G.? 32 ML Minha tia.

33 Icp Ah, tá bom então, eu fui na festa da G.. Pode ser assim, olha, eu fui na festa da G. com a minha mãe?

34 ML É ! ML olha para Icp sorrindo.

35 Icp Ah! Então tá jóia. Eu fui na, olha aqui para mim ML, festa, ó, festa da....

ML se distrai, e desvia seu olhar para o lado oposto da terapeuta

36 ML Sabia que o sitio da minha mãe agora é clube? 37 Icp Ah? O sítio da sua mãe é clube? Icp olha para ML com espanto. 38 ML É igualzinho! 39 Icp Agora é clube lá?

40 ML Faz movimento afirmativo com a cabeça.

41 Icp ....com a minha mãe. Eu fui na festa da G. com a minha mãe.

Icp volta para a escrita e começa a ler de onde havia parado antes da interrupção de ML.

42 ML Coloca a C.. 43 Icp Quem é C.? 44 ML A babá. 45 Icp Ela foi junto?

46 ML ML faz movimento afirmativo com a cabeça.

47 Icp Então, como é que a gente pode colocar aqui?

48 ML Aqui no meio, aqui cabe. Apontando para um espaço na folha do caderno onde eu estava escrevendo

49 Icp Olha, eu fui na festa na casa da G com a minha mãe.

Icp retoma com ML tudo que ela havia dito.

50 ML Então, coloca aí C....

51 Icp Mas se eu colocar só C a gente não vai entender o que ela faz aqui....

Page 74: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

62

51 ML Ela também foi na festa. 52 Icp Ah! Então vamos escrever o que? A C..... Escrevendo 53 ML Cris. 54 Icp Que que tem a Cris? 55 ML Foi na festa da G. 56 Icp Foi ....foi também Escrevendo 57 ML E só. 58 Icp Só?

59 ML Movimenta a cabeça afirmativamente.

60 Icp Tá bom, você vai fazer um desenho agora? O que você vai desenhar?

61 ML Vou desenhar o chão primeiro, vou desenhar o pessoal que foi....

62 Icp Que foi na festa?

63 ML Faz movimento afirmativo com a cabeça.

64 IML Vou desenhar o bolo... Sabia que o sobrinho da G. fez onze anos?

65 Icp Quem? 66 ML O sobrinho da G.. 67 Icp Sobrinho da G. fez onze anos?

68 ML Faz movimento afirmativo com a cabeça.

69 Icp É ? Então, você vai desenhar a G o bolo dela... 70 ML Dele! ML fala enfaticamente.

71 Icp Da G., nós estamos falando aqui da G, não é do sobrinho dela.

Icp olha para ML sem entender e depois fala.

72 ML Do sobrinho também. 73 Icp Mas esta foi a festa da G.

74 ML Não é festa da G, o sobrinho da G é que fez festa.

75 Icp Só que você falou aqui: Eu fui na festa da G com a minha mãe, a Cris foi também.

76 ML Não, não é festa da G, sobrinho da G. ML fica irritada. 77 Icp Você falou que era festa da G . 78 IML Sobrinho da G. Repete novamente, com irritação. 79 Icp Então vamos corrigir. Então tá. A festa... Escrevendo 80 IML do sobrinho da G.

81 Icp A festa foi... Tem que falar direito, senão eu não entendo, do sobrinho da G

Escrevendo

82 ML da G 83 Icp Como é o nome dele? 84 Ml P. P. C. 85 Icp O P. C.

86 ML Hum! ML demonstra satisfação com a correção.

87 Icp O P Escrevendo 88 ML C.

89 Icp Tá bom. Agora você vai desenhar pra gente. Depois você escreve G, desenha o P C, desenha a G né ?

Figura 09. Diálogo de ML sobre a festa do sobrinho da G

A Figura 10 apresenta o relato de ML escrito pela investigadora sobre a novidade de ML,

observa-se as tentativa de ML, no ano de 2003, de escrever seu próprio nome MABA, o de sua

mãe SAB, e CAU para sua babá.

Page 75: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

63

Figura 10. Desenho da Festa da tia Gilmara

Neste encontro, ML não quis como era de costume falar primeiro sobre o que ela queria

contar para depois escrevermos em conjunto e fica indecisa sobre como começar. Podemos

observar também que ML está aprendendo a contar e deste modo fica em dúvida em como

organizar os elementos de seu discurso. Neste momento tento mostrar a ela que teremos que

optar por uma das duas possibilidades que ela apresenta para o início de sua produção. ML

demonstra dúvida, mas se tranquiliza demonstrando satisfação quando proponho uma resolução

para seu dilema. ML aos poucos vai compreendendo que é preciso uma organização para

externalizar sua fala e também começa a compreender como isto funciona na escrita. Para

Vigotsky (1988), isso corresponde ao desdobrar do pensamento na materialidade da fala, que é

feito por mim nesse momento, por meio da materialidade da escrita

Podemos observar que ML introduz em sua narrativa, na linha 36, um tema que não está

relacionado ao que ela está contando naquele momento. ML fala sobre o sítio de sua mãe e

provavelmente sua intervenção se deve ao fato de sua mãe ter construído uma piscina no sítio, e

G, sua tia, ter acompanhado ML ao sítio nesses dias. Mas de qualquer forma esta intervenção

não estava relacionada ao que ela estava relatando, ou seja, a festa de aniversário. Estas

entradas abruptas de ML para introduzir outros assuntos ocorriam com muita frequência em sua

fala. Considero que este fato ocorra por uma associação, no caso à ida de sua tia ao sítio, e a

festa de aniversário de sua tia G, não explicitada por ela. Uma explicação linguística para este

Page 76: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

64

fato é que ML faz esta associação e não se utiliza de um marcador conversacional10 como, por

exemplo: Por falar nisso, ou, falando nessa pessoa me lembrei de... Crianças, de uma forma

geral, em fase inicial de aquisição de linguagem também introduzem temas novos ao discurso,

sem o uso de marcadores, mas à medida que interagem com adultos passam a utilizá-los, assim

como crianças com SD. Outra questão a ser comentada com relação à estas entradas abruptas

de ML, é o fato de que a criança vai aprendendo aos poucos que nem todas as associações

feitas internamente devem ser explicitadas, ou seja, muitas associações feitas serão silenciadas,

assim como fazemos todos nós. Mas isto a criança aprenderá no convívio e com a orientação do

adulto/interlocutor assim como todas as crianças.

Perroni (1992), em seu trabalho sobre o discurso narrativo, reconhece características de

estruturas narrativas diferenciadas nas várias fases do desenvolvimento das crianças, enfatiza o

papel do adulto neste processo e valoriza a criança como ser ativo na relação diádica. Segundo

a autora, o discurso é construído pela criança em conjunto com o adulto, sendo as respostas às

perguntas do adulto para a criança, o início da constituição do desse processo. O fato de ML

introduzir algo novo sem explicitá-lo, o que já ocorreu outras vezes, fez com que eu assumisse a

postura de dizer a ela que o que ela estava dizendo não se relacionava ao que ela estava me

contando, e que ela precisaria explicar melhor toda vez que quisesse introduzir algo novo para

mim. Neste dado, prosseguimos sem interrupção, dando continuidade ao fluir do tema por avaliar

que sua intervenção não comprometeu a narrativa, mas em outras situações discursivas ela foi

orientada para que se organizasse, pouco a pouco, quanto aos seus movimentos discursivos na

interação, considerando o interlocutor.

Nesse dado é possível também observar que ML está buscando entender a relação

oralidade/escrita; isto fica claro quando ML, na linha 42 diz – Coloca C. E na linha 47, quando eu

pergunto – Então como é que á gente pode colocar aí? ML responde – Coloca aí no meio tem

lugar, referindo-se ao espaço em branco na folha do texto. Mas o que eu perguntava a ela é

como iríamos introduzir o nome/assunto Cristiane dando sentido ao texto. A resposta só vem

quando eu pergunto na linha 5 – Mas se eu colocar só C. a gente não vai entender o que ela faz.

10 O texto falado surge no próprio momento da interação, isto é, ele é o seu próprio rascunho. A expressão marcador conversacional serve para designar não só elementos verbais, mas também prosódicos e não-linguísticos que desempenham uma função interacional qualquer na fala. Através desses marcadores, os deslocamentos referenciais locais ou globais que conduzem e orientam as atividades do locutor e do interlocutor podem ser explicados.

Page 77: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

65

Ao que ML responde – Ela também foi na festa. Nesse momento, ML explica porque quer

introduzir o nome C. ao seu texto. Desta forma parece que a construção do texto vai aos poucos

se tornando mais clara, fazendo sentido para ML, que não estava acostumada a detalhar o que

queria contar, muito menos organizar seu relato para ser escrito.

Outro fato que chama atenção neste dado é que ML relata que a festa de aniversário é

de sua tia G, mas, no final, se dá conta de que o que queria relatar é que a festa foi do sobrinho

da G. Isto fica evidente na linha 70 quando ML fala – Dele! Se referindo ao bolo da festa de

aniversário que era do sobrinho da G.

Podemos notar que a intenção de ML era a de relatar a festa de aniversário de PC, mas

não consegue deixar claro isso, no início de seu relato, dizendo que a festa era de sua tia. Nesta

época ML, com 8 anos, está aprendendo organizar mentalmente o que irá contar, já consegue

introduzir alguns fatos sozinha, mas ainda precisa muito do interlocutor que organiza com ela e

para ela o que ela pretende externalizar. É nesse sentido que Vygotsky (1983) formula o

conceito de rascunho mental, pois quando estruturamos juntas o que ML pretende dizer percebo

que ela consegue melhor organização oral e consequentemente o que deverá ser escrito por

mim. Este fato terá reflexo também na escrita de ML.

Neste sentido Freitas e Monteiro (1995), ao acompanhar crianças com SD em uma

atividade de roda de conversa, concluem que,

jovens com SD apresentam coerência em seu texto oral nas situações de conversação. No entanto para que o diálogo flua em seu texto e não se torne incoerente é fundamental a presença do mediador apto a resgatar o tópico daquilo que está sendo dito. Isto é, é necessário que o ouvinte esteja disponível para escutar aquilo que o jovem deseja falar e que se interesse e dê importância ao assunto (p 61).

Em concordância com as autoras citadas acredito que é fundamental o interlocutor estar

envolvido e interessado no que a criança tem a dizer, por esta razão retomamos tantas vezes o

turno do diálogo, que pode parecer algumas vezes repetitivo, mas trata-se de uma forma de

conseguirmos estabelecer uma significação mútua.

Dado 2

ML, 9 anos, setembro de 2004. Nesse encontro ML conta que foi comprar presente para

a prima que nasceu.

Page 78: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

66

Número Sigla do Locutor

Transcrição Observações sobre os

processos de significação verbais

Observações sobre os processos de significação não

verbais 01 Icp Qual que é a novidade? 02 ML Eu... 03 ML A minha mãe... 04 Icp Eu e a minha mãe? 05 ML É 06 Icp Eu e... escrevendo 07 ML a minha mãe... 08 Icp A minha mãe... escrevendo 09 ML Vamos.... 10 Icp Vamos ou fomos? 11 ML Fomos .....

12 ML Acho que tá surda Comenta baixo como se estivesse falando para si mesma

13 Ml e Icp Fomos... juntas 14 ML Cachoeira 15 Icp Fomos... 16 ML Cachoeira 17 Icp Posso por assim então, fomos cachoeira?

18 Icp Não é melhor colocar assim então: fomos na cachoeira, fomos ver a cachoeira?

19 ML Na:::::::õ! Prolongamento da vogal a 20 Icp Como que é? 21 ML Fui comprar o presente da Ana Júlia! 22 Icp Na cachoeira? 23 ML Fui comprar o presente para a Ana Júlia 24 Icp Ta. Mas você falou cachoeira. 25 ML É. Cachoeira 26 Icp Fomos na cachoeira? 27 ML É 29 Icp Fomos na cachoeira Escrevendo 29 ML Ca-cho-ei-ra 30 Icp Que é cachoeira? 31 ML Pra pagar 32 Icp Cachoeira? Com tom de espanto

33 ML Ó, ó Faz sinal de dinheiro esfregando os dedos indicador e polegar

34 Icp Pagar? Mas na cachoeira? 35 ML É 67 Icp Cachoeira, o que que é?

37 ML A gente vai lá... que a minha mãe tá combinando

38 Icp Mas não tô entendendo Demonstrando estranhamento

39 ML A minha mãe...

40 Icp Cachoeira não é um lugar que cai água? Fazendo sinal com a mão de água caindo

41 ML Não, não é isso! 42 Icp O que que é então? 43 ML É que a gente paga com dinheiro

44 ML Parece na Americana. A gente... Lojas Americanas...

Entoa a vinheta das Lojas Americanas

45 Icp Ta bom... mas ó 46 ML Esse aqui é... ca-cho-ei-ra Mostra no caderno a palavra

Page 79: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

67

escrita pela Icp e lê silabando

47 Icp Cachoeira é um lugar que tem água, que cai água

48

ML Não, não é que cai água, é para pagar

49 Icp Mas então tem que me explicar, se é uma loja, se é..... É uma loja?

50 ML Não, sabe lá na rua...Americana? 51 Icp Na rua da Americana tem cachoeira?

52 ML É, é lá na cachoeira, tem para pagar, dinheiro da minha mãe, minha mãe combinando lá, sabia?

53 Icp Mas eu não entendo, é um banco? É uma loja? O que que é?

54 ML Não é nem banco, nem loja, nem nada 55 Icp O que que é então? 56 ML É Americana 57 Icp Mas Americana é cachoeira? 58 ML Não Começa a rir

59 Icp Não tô entendendo... Rindo

60 ML Aí, pera aí, tem uma borracha?

61 Icp Cachoeira... o que é que tem lá dentro ML?

62 ML A gente paga Procurando uma borracha

63 ML Eu entendi, mas é o nome de um lugar? ML apaga a palavra cachoeira

64 Icp Por que você está apagando a palavra cachoeira?

65 ML Vamos lá falar com a minha mãe 66 Icp A sua mãe saiu 67 ML Não, não saiu não

68 ML Eu não quero por na Americana Referindo-se a escrita no caderno

69 Icp Você foi pagar um carnê de compra?

70 ML Não C. Vamos lá na minha mãe

Saímos e fomos conversar com a mãe de ML que estava na sala de espera. A mãe de ML conta que elas foram na loja Riachuelo

Voltamos para a atividade.

71 Icp É uma loja, é uma loja grande

72 ML Éh!

ML se mostra satisfeita, pois conseguiu se fazer entender.

73 Icp É, vamos lá. Ó como é que é, presta atenção: Eu e a minha mãe fomos na Ri-a-chu-e-lo

Escrevendo. C fala pausadamente e escreve.

.

74 Icp Essa loja é uma loja grande e vende um monte de coisas

75 ML É, então!

76 Icp Eu e a minha mãe fomos na Riachuelo, fazer o que? Pagar

C vai escrevendo e lendo em voz alta para que ML acompanhe o que está sendo escrito.

77 ML Com dinheiro 78 Icp Pagar uma conta 79 ML Richuelo Fala baixinho

Page 80: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

68

80 Icp Riachuelo. Fala pra mim: Riachuelo Escrevendo 81 ML Richuelo 82 Icp Isso! Pagar uma conta 83 ML Aquele papelzinho, papel para pagar 84 Icp Isso, papelzinho para pagar 85 Icp E depois o que que vocês fizeram?

86 ML E depois dei o dinheiro. Ah! Aí minha mãe comprou o presente para a Ana Julia.

Figura 11. ML conta sobre sua ida à loja de departamentos

ML sabe o que quer contar, e se mostra determinada a fazê-lo, mostra maior autonomia

e desenvoltura para contar em relação ao dado apresentado anteriormente. Como pode ser

observado na narrativa de ML, ela maneja bem os níveis de análise linguística (Benveniste,

1969/1988), fonológico, sintático, semântico, mas no nível do discurso, faltam ajustes semântico-

pragmáticos, sendo ela refrataria em relação ao que o outro diz, se fixando em uma palavra, sem

realizá-la, o que dificulta a intercompreensão. Icp tenta, ao longo da situação dialógica, fazer

com que ML compreenda que a palavra selecionada - cachoeira – não é a mais adequada para o

sentido que ela deseja. A resolução, ao final, vem pela palavra da mãe, que esclarece do que se

trata.

Podemos analisar esse dado pela teorização da linguagem que Jakobson (1956/1970),

desenvolve para a afasia apresentada em Dois aspectos de linguagem dois tipos de Afasia em

que o autor descreve linguisticamente o funcionamento da linguagem de sujeitos afásicos.

Jakobson entende que considerando a bipolaridade da linguagem, em relação à seleção e

combinação de palavras, dois eixos que se articulam e se complementam. Para este autor, falar

implica em selecionar certas entidades linguísticas e combiná-las em enunciados de acordo com

o sistema sintático da língua, dando lugar ao funcionamento bipolar linguagem. Observamos que

ML maneja melhor o eixo de contiguidade, combinando unidades linguísticas sucessivamente

formando, assim, um contexto verbal maior, organizado e com sentido. A questão a ser tomada

com relevante nesse dado é o fato de ML selecionar a palavra (cachoeira) no lugar de Riachuelo,

mas não qualquer palavra (FREUD, 1891/1973). E por que ML diz cachoeira para Riachuelo e

não qualquer outra palavra? Vários são os motivos11: o número de sílabas muito próximo nas

duas palavras, a questão da similaridade acústica entre as duas palavras que apresentam a

fricativa palato-alveolar desvozeada em um contexto fonológico muito parecido. As duas

palavras têm, pois, em comum: o mesmo núcleo na sílaba tônica, mesmo número de sílabas,

nas duas palavras temos líquidas no ataque da última sílaba e nas duas palavras temos na

11 Certamente, como aponta Freud (1901/1969), pode haver motivos de razão psíquica que determinam selecionar

uma palavra no lugar de outra, mas essa questão foge do escopo desta tese.

Page 81: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

69

primeira sílaba um segmento com uma articulação velar.

Para resolver a questão do estranhamento de Icp, causado pela seleção da palavra

cachoeira, ML busca vários caminhos. A possibilidade de sua seleção estar equivocada não é

uma possibilidade considerada por ela que busca outras saídas no eixo sintagmático como

podemos observar na linha 32 – É para pagar. Ou na linha 45, quando ML associa Riachuelo a

outra loja de departamentos, as Lojas Americanas e ainda entoa a sua vinheta: Parece na

America... a gente... Lojas Americanas (cantando).

ML parece resistir em não escutar, a demanda de seu interlocutor (que fala a palavra loja

por três vezes), que por sua vez também não escuta ML, que também fala a palavra loja. Mas a

não escuta da terapeuta se deve ao fato de, no começo, realmente não entender do que se

tratava, mas depois insiste, intencionalmente, a fim de que ML percebesse o equivoco na

seleção da palavra; ML ao final pede para conversar com sua mãe, e só assim, traz o nome da

loja Riachuelo para a cena enunciativa. Cabe aqui a proposta interacionosta de Claudia Lemos,

na qual a autora utiliza-se do conceito de “mudança” para se referir à trajetória da criança de

infans ou não falante para falante de sua língua materna. Tal mudança é entendida como efeito

da linguagem na criança (De LEMOS, 1997). Trata-se de mudanças de posição em uma

estrutura que se articula em três pólos: o sujeito, o outro, enquanto lugar de funcionamento

linguístico-discursivo, e, a ordem própria da língua. Desta forma, considerando a proposta

interacionosta de De Lemos, essa não escuta na fala de ML poderia corresponder à 2ª posição,

cujo pólo dominante é a lingua, uma posição que marca a possibilidade de erros em seu

funcionamento e o não reconhecimento pela criança da fala do adulto É interessante observar

que dizer uma palavra por outra ocorre na entrada da criança para a linguagem, em estados de

afasia, em situações de cansaço, atos falhos, stress e situações de funcionamento normal da

linguagem, que são motivados por instâncias, às vezes, desconhecidas pelo interlocutor. A

diferença está no tempo que se leva para reconhecer e modificar esta situação enunciativa.

Como pode ser observado, tanto na proposta de Perroni (1982), como na de Jakobson

(1956/1970), e ainda, em De Lemos (1995, 1999, 2002), que subsidiam esta análise, o dado aqui

considerado, nos leva a questionar o estatuto do funcionamento de linguagem dessa criança

ponderando se essas situações não seriam, portanto encaradas como possibilidades inerentes

ao funcionamento da língua (COUDRY; POSSENTI, 1983), que mesmo ocorrendo em outro

tempo ou ritmo, a depender do sujeito, poderiam ocorrer para qualquer outra pessoa.

No próximo tópico, analisaremos os dados de escrita de ML buscando entender como

ela entra no mundo da escrita.

Page 82: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

70

Dados da produção de escrita de ML

Os dados de escrita inicial de crianças são povoados de desenho, garatujas, escrita de

letras, de palavras e partes de palavras. Em geral, algumas palavras como o nome da criança e

outros nomes de pessoas conhecidas já aparecem escritos de forma alfabética, não porque a

criança já consiga dominar este sistema, mas pelo fato de alguém ter mostrado para ela como

escreve ou mesmo ter escrito para ela e, ainda, de ver escrito seu nome em muitos lugares.

Dado 3: ML, 7 anos, abril de 2003. ML inicialmente comenta sobre o fim de semana que passou

na cidade vizinha e depois registra isso no seu caderno. Não foi solicitado que ela escrevesse.

ML contou que foi viajar e em seguida sem a solicitação do adulto/interlocutor começou

preencher a folha com a palavra EU, depois com letras, que como pode ser observado, não são

aleatórias, mas sim relacionadas ao contexto do que ela contou.

Figura 12. Escrita de ML sobre sua ida para Rondon

A produção de ML, observada na figura 12, retrata sua entrada na escrita. Este dado,

observado por mim no procedimento terapêutico, indica sua primeira tentativa de escrever

alfabeticamente como é notado no alto da folha quando ML escreve - EUIRPARRR – dizendo -

Eu fui para Rondon. (Rondon é uma cidade próxima à cidade onde ML reside). Quando faz isso,

ML se mostra satisfeita, por assumir uma atitude de escrita no papel de escrevente - antes

desempenhado apenas por Icp. Podemos notar que ML não apresenta escrita alfabética nesse

momento, mas mostra ter familiaridade com essa representação: escreve da esquerda para a

Page 83: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

71

direita, preenche toda a folha com caracteres da escrita, faz uso do apoio da fala enquanto

escreve seu próprio relato.

Dado 4: ML, 8 anos, outubro de 2003. ML fala afetivamente sobre as pessoas de seu convívio,

depois representa esta situação tanto com desenhos quanto com escrita.

Figura 13. ML escreve o mome de pessoas familiares

Neste dado podem ser observadas as tentativas feitas por ML para escrever os nomes

dos integrantes de sua família e das pessoas de seu convívio. Ela escreve SNAI para Sandra;

SVAI para Silvia; VM para VILMA. A escrita de seu nome, MARIA LAURA, e da investigadora,

CARLA, apresenta o padrão alfabético e, muito provavelmente, por ter solicitado a escrita destes

nomes para a investigadora. Como qualquer criança, ML tenta escrever palavras utilizando

elementos que já conhece pela prática com a escrita, isso demonstra que as hipóteses das quais

faz uso são as mesmas que qualquer criança, a partir do mesmo sistema de escrita observado

pelos dados de Abaurre (1999).

Dado 5: ML, 9 anos, agosto de 2004. ML conta sobre sua ida ao shopping com a sua família.

ML nesse dado conta sobre sua ida ao shopping com os familiares. Após contar ML

escreve, mas quer escrever sozinha, não deixa que ninguém olhe como e o que está

escrevendo, depois lê, em voz alta, o que escreveu.12

12

Nos dados que se seguem, a escrita de ML apresentada na caixa de texto corresponde ao que a criança considera que escreveu, sendo, pois, o que ela fala para a investigadora, que anota tudo e faz ajustes de ortografia e sintaxe.

Page 84: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

72

Eu fui no restaurante do Shopping com a minha mãe com a Cristiane

com o tio Jorge a Marília, e a Sandra. A Amanda ligou para ele

no telefone.

Figura 14. ML conta que foi ao restaurente

Desta forma, o que se apresenta na caixa acima é a fala de ML sobre o que escreveu.

ML também está fazendo progressos na escrita. Ela já produz textos e embora sua escrita não

seja alfabética pode ser observado que não se trata de um conjunto de letras aleatórias, mas de

representações de quem sabe o que está escrevendo. ML está percebendo que existem regras,

mas ainda não estabeleceu correspondências sistemáticas entre elas.

Dado 6: ML, 9 anos, setembro de 2004.Ela conta sobre sua visita a uma exposição tradicional de

sua cidade.

Eu fui na expoingá, eu comi cachorro quente e fui no barco Viking

Figura 15. ML descreve sua ida à Expoingá

Vemos neste dado que ML não insere espaços em branco entre as palavras, o que

também ocorre, para muitas crianças que estão no processo inicial de escrita. Isso se deve ao

não reconhecimento por parte de ML do que é uma palavra na escrita. Parece que neste caso

ML tem a percepção da organização de outros níveis internos da língua e se guia pelos

Page 85: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

73

constituintes prosódicos13, os quais, segundo Bisol, (1999) não apresentam necessariamente

isomorfia com os constituintes de outras áreas da gramática. Embora as crianças tenham noção

de que a escrita apresenta algum tipo de segmentação, pois observam isso em situações

corriqueiras do dia a dia em outdoors, revistas e outras situações de vivência no mundo, pode

ocorrer de a criança, em algum momento, tomar a escrita como a fala, num contínuo, guiando-

se, como já foi explicitado, por outros constituintes. Parece que ML escreveu num fôlego só,

dando mostras do trânsito entre fala e escrita.

Dado 7: ML, 9 anos, dezembro de 2004. ML comenta sobre a festa junina que vai se realizar na clínica.

-Na semana que vem nos vamos fazer uma

-festa junina, a Carla vai trazer a paçoquinha

e eu vou trazer o refrigerante guaraná.

Figura 16. Preparação para a festa junina

ML conta com todos os elementos necessários para se fazer entender sobre o que vai

acontecer na semana que vem. Seu texto, na fala, foi elaborado em conjunto com Icp a partir de

uma atividade programada pelo grupo. No entanto, a produção do texto foi feita apenas por ML,

mas podemos notar o quanto a elaboração em conjunto ajudou e interferiu em sua escrita’, que

apresenta-uma sequencia de idéias organizadas e encadeadas. Primeiro esclarece o que vai

acontecer e depois para a organização do acontecimento. Neste texto de ML notamos que

embora ela não separe de forma consistente as palavras umas das outras, em alguns

momentos, deixa um espaço maior delimitando a fronteira entre as palavras. Uma situação

13 Segundo Nepor e Vogel (1986), os constituintes da hierarquia prosódica organizam-se de maneira hierarquizada e representam domínios de aplicação de regras Estes domínios são unidades linguísticas complexas compostas por dois ou mais membros em uma relação do tipo dominante e dominado, isto é, um elemento forte e um fraco.

Page 86: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

74

interessante neste dado é que ML apresenta no início do texto com uma marcação de parágrafo,

e em seguida faz uma separação do texto em duas partes: a primeira parte vai até a palavra

JUNINA; em seguida, ela faz uso de hífen marcando o começo do que parece ser a segunda

parte, que tem correspondência com a estrutura semântica do texto. Nesta produção, três meses

depois da produção anterior, ML parece apresentar maior domínio das estruturas silábicas tipo

CV, embora ainda haja instabilidades. Nesse texto já podemos reconhecer algumas palavras

que, apesar de não se apresentarem totalmente de forma alfabética, já apresentam maior

correspondência com os constituintes da escrita.

Dado 8: ML, 9 anos, maio de 2005 . ML fala sobre a conversa que teve com suas primas em

ambiente digital.

Figura 17. ML e suas primas em ambiente digital

Nesse dado fica evidente que ML apresenta maior organização em sua produção escrita,

estamos trabalhando com um caderno pautado, já guarda mais espaço entre as palavras, e

também apresenta maior estabilidade quanto à presença de silabas CV. Destaca-se nesse dado

o fato de ML usar sala de aula no lugar de sala de bate papo, talvez por ser a primeira muito

mais frequente em seu uso. Ocorre que mesmo quando Icp chama sua atenção para esse “erro”,

ela resiste em corrigir, assim como o fez no Dado 2 sobre a loja Riachuelo. Neste dado pode-se

observar que ML não apresenta domínio da estrutura interna da silaba e seus constituintes. Ela

Um dia a Cristiane e a Marília estavam no bate papo conversando com o Bruno e o Henrique saiu da sala de aula a Cristiane e a Marília apanharam da minha da minha mãe e de mim. A Fernanda foi na minha casa.

Page 87: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

75

já apresenta, na primeira silaba da palavra Cristiane, a hipótese dos dois elementos que

compõem a estrutura silábica do ataque ramificado, embora ainda não apresente a ordem

correta. Ao se deparar com a sílaba complexa no nome Bruno, ML insere uma vogal

transformando esta silaba em duas CVCV, minimizando sua complexidade

Dado 9: ML, 10 anos junho de 2005. ML brinca de casinha e assume o papel da empregada.

ML deixa claro, no início do texto, na Figura 18, que vai assumir o papel da empregada.

Destaca-se que ML demonstra a capacidade de abstração no momento em que assume, por

vontade própria, desempenhar o papel da empregada. ML também demonstra que sabe

selecionar quais atribuições deverão ser relatadas, a fim de dar credibilidade ao seu papel.

Considero isso importante visto que a literatura a respeito da SD nega a esses sujeitos a

capacidade de abstração, sem considerar, que essas crianças, embora apresentem um atraso,

apresentam condições semelhantes a outras crianças, evidentemente se as possibilidades lhes

forem dadas. ML narra com propriedade todas as suas atribuições como sendo a empregada,

inclusive levá-la, ela própria, à escola.

Outro fato interessante nesse texto é o fato de ML avançar na compreensão da silaba

como domínio no qual se organizam os segmentos. Já apresenta maior domínio da estrutura CV,

o que torna seu texto mais inteligível, ainda não domina as estruturas CCV, mas já podemos

notar avanços nesta direção. Na primeira linha do texto ML grafa RBIRIQEI, para brinquei. Pode

ser observado que na primeira sílaba RBI, ML representa os três elementos da sílaba CCV, mas

insere RI em seguida, demonstrando ainda não dominar completamente essa estrutura. Parece

que ela já sabe que esta sílaba apresenta outro padrão, mas ainda sente necessidade de inserir

a estrutura CV. Na segunda linha, para a palavra empregada grafa PERGADA. ML omite a

primeira sílaba em e preenche os três elementos da sílaba CCV. Embora não acerte a ordem

podemos considerar que ela está a caminho.

Page 88: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

76

Figura 18. ML assume o papel da empregada

Observa-se também que este é um texto maior do que os que ML produziu até então,

podemos notar que ao final está cansada, percebe-se isso pela sua letra e também pelo fato de

deixar de inserir alguns segmentos que já utiliza com frequência em outras situações.

Eu briquei de casinha. Eu sou a Vilma a empregada Eu mando nesta casa Eu limpei a casa Eu carreguei o relógio Em cima da cama, o trenzinho E o telefone, o carro A mesinha a cadeira, O relógio, o cofrinho e passei roupa Comi salada, arroz, feijão. Limpei o fogão, passei rodo, cama, casa, geladeira. (trecho inteligível) Maria Laua Levei na escola E dei comida, E lavei rosto/cara, Lavei o nariz

E foi embora atrasada.

Page 89: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

77

Dado 10: ML, 10 anos, setembro de 2005. ML conta que acordou sua mãe e fez tarefa.

Figura 19. ML acorda sua mãe

Nesse texto a primeira situação que chama a atenção é o fato de ML estar em transição

quanto à sua escrita, ou seja, ela passa da escrita em caixa alta para a letra cursiva. Outro fato a

ser analisado é a questão da sílaba CCV. Na palavra brava ML escreve RABRAVA, podemos

notar que a mesma situação ocorreu na produção anterior, ou seja, ML grafa a sílaba CCV, na

sequência correta dos segmentos, mas grafa RA, desta vez antes da sílaba complexa. Na

sequência do texto ML grafa preta preenchendo desta vez a sílaba complexa CCV com todos os

elementos e sequência adequada. Podemos considerar que nos últimos dados apresentados

dado 08, dado 09 e dado 10, ML demonstra uma tentativa em compreender como se organizam

os segmentos em uma sílaba. Neste último dado ela parece encontrar uma estabilidade maior

mesmo apresentando ainda algumas oscilações. A escrita em letra cursiva trouxe alguns

momentos de dúvida para ML que podem ser observados na escrita das palavras livro e livrinho.

Sua dificuldade se torna evidente pelas refacções apresentadas: para livro escreve irvo apaga e

escreve ivor, na sequência escreve lihovivor e liviho para livrinho. Quando re-estruturamos seu

texto ML explicitou esta dificuldade perguntando Como se escreve livro? tentando por várias

Hoje de manhã eu acordei minha mãe.Ela ficou brava eu peguei minha roupa camiseta, calça e bota preta de salto Eu pequei minha bolsa, tem tarefa Eu li meu livro, livrinho desse rodizio.

Page 90: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

78

vezes escrever esta palavra, desenhando os contornos da sílaba vro em escrita cursiva, escrevi

conjuntamente com ML ajudando-a a entender a especificidade desta palavra na escrita. Nesse

dado observamos que ML está em constante mudança, apresenta dúvidas que vão sendo

resolvidas em seu próprio movimento ativo neste processo.

Dado 11: ML, 11 anos, agosto de 2006. ML conta sobre sua ida a uma feira de brinquedos

Figura 20.Feira de brinquedos

ML conta que foi um dia com a mãe em um parque de diversões. Contando onde foi

nomeia um dos brinquedos (escorehgador gingate). Escreve escorregador como escorehgador

em que consta tanto a letra h quanto parte do nome da letra h (ga) o que nos indica que ML sabe

o nome da letra, mas não apaga (COUDRY, 2009, 2010; BORDIN [tese de doutorado em

desenvolvimento]). Esta situação do apagamento das letras é formulada por Freud (1891/1993)

quando indica que a criança aprende o nome das letras, mas precisa apagá-los para fazer uso

da letra, de outra forma ocorre à escrita de escorrehador e de tantas outras palavras na escrita

inicial de crianças. Destaca-se que ML fala escorreagador, o que contribui para ela escrever

escorehgador. Quando escreve a palavra gigante ML faz um espelhamento da nasalidade para a

primeira sílaba da palavra escrevendo gingante, depois mantém a nasalidade somente na

Um dia a gente foi na feirinha com brinquedos nos fomos no escorregadorr gingante.

A minha mãe ficou com medo. Escorregador gigante.

Page 91: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

79

primeira sílaba. Interessante destacar a alegria e o movimento do desenho. Ela representa sua

descida no escorregador gigante e seus cabelos voando com um sorriso. Isso mostra que

transita bem nesses sistemas semióticos por onde se dá o sentido.

Dado 12: ML, 11 anos, marco de 2007. ML comenta sobre a cirurgia da prima.

A minha prima Amanda operou o dente que estava torto. Ela foi no hospital. Ela só vai tomar líquido, tia Aninha estava junto com a Amanda ficou com ela. Eu fiquei chorando em casa tremendo igual vara verde.

Figura 21. Cirurgia da prima de ML

Neste dado ML conta sobre a operação que a prima fez, conseguindo narrar com certa

autonomia. Percebo que ML fica um pouco insegura e sempre espera a minha aprovação para

prosseguir com o texto, mesmo que isso signifique simplesmente meu olhar de aprovação ou a

minha presença. ML precisa que o seu interlocutor a ajude no desdobramento de uma sintaxe na

escrita reduzida a nomes, para uma sintaxe marcada por relações entre as palavras (ordem,

relatores, determinantes), embora já faça isso em sua fala. Como terapeuta, tento me afastar um

Page 92: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

80

pouco para que ela perceba que é capaz. Ao começar a escrever, ML sempre me pergunta como

poderia iniciar seu texto; meu procedimento é apresentar duas ou três possibilidades a fim de

que ela imagine outras e decida por uma opção que melhor lhe convier. ML produziu o texto e

leu para mim. Quanto a aspectos notacionais, ML apresenta uma situação de hiper–

segmentação, escreve o perou para operou, usa a letra T no lugar de D, em dente. Mas em

outros momentos usa a letra D corretamente. Não utiliza o H na palavra hospital, o que é

previsível, pois a letra H em português não tem correspondente acústico nem motor; sendo este

fato considerado por Abaurre (1987) um dos mais arbitrários da nossa ortográfia por isso a

maioria das crianças deixa de grafá-lo. ML faz uma hipo-segmentação na expressão tremendo

igual vara verde que usa com maestria porque aprendeu no convívio familiar, embora não

reconheça todas as palavras que constituem o conteúdo semântico da expressão e recorra à fala

para escrevê-las.

Page 93: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

81

Dado 13 : ML, 12 anos, junho de 2008. ML escreve uma carta para sua tia.

Oi tia Cidinha tudo bem, Eu quero trazer a Ana Júlia para fazer terapia de fono aqui em Maringá Ela vai fazer fono junto comigo eu vou ajudar a Carla a atender a Ana Júlia. Sabia Cidinha que eu quero que a Ana Julia fale bem? Você pode trazer a Ana Júlia na terça-feira,

dá um abraço na Ana Júlia.

de sua prima mais a mada

Maria Laura Figura 22. Carta para tia Cidinha

Neste dia ML e eu conversamos muito sobre a vontade de ML trazer sua prima, de três

anos, para fazer terapia, pois, segundo ela, a prima fala muito pouco. ML disse que gostaria de

participar do processo terapêutico da prima. Disse a ela que escrevesse um bilhete à sua tia

sugerindo que ela trouxesse a filha para sessões de terapia fonoaudiológica. ML ficou muito

entusiasmada, me pediu uma sugestão para começar o bilhete; disse-lhe que poderia começar

Page 94: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

82

cumprimentando sua tia e que isso poderia ser através de um “oi” ou “tudo bem?”. Pediu se

poderia colaborar na terapia, o que a levou a escrever o bilhete. Perguntou se o atendimento da

prima poderia ser no mesmo dia que o dela. Resolvidas essas questões, ML escreve o bilhete

que será enviado para sua tia. Considero que a motivação e a disposição de ML, além de uma

menor complexidade, comparando com a estrutura de uma fábula, ou de um conto de fadas, fez

com que ML escrevesse de forma organizada. Até a disposição gráfica do espaço se ajusta ao

gênero bilhete. Não se pode deixar de mencionar que apenas em uma palavra ML apresenta

uma situação de hiper-segmentação, escrevendo a mada por amada.

Dado 14 ML: 13 anos abril de 2009. ML reproduz a fábula do ratinho e o leão

Na reprodução da fábula notamos que ML escreve um texto com título O leão e o

ratinho, inicia o texto com um demarcador “Um leão”, desenvolve o texto em que se reconhece a

fábula, além de incluir a moral da história. Podemos notar que ML ainda não domina alguns

aspectos notacionais, como pontuação, letras maiúsculas e parágrafos. Escreve o pronome

pessoal do caso reto junto com o oblíquo, ou seja, parece que estruturas como me precisam

ainda do eu.

ML omite a sílaba san da palavra descansando, isto pode ter acontecido pelo fato de a

palavra descansando apresentar duas sílabas com o mesmo padrão silábico CVC e a mesma

coda nasal o que pode tê-la confundido. Na primeira sílaba da palavra subindo ML insere uma

coda, sulbinto, que podemos considerar como uma hipercorreção, talvez pelo fato da segunda

sílaba apresentar coda. Na quinta linha do texto ML grafa nenua após ter produzido oralmente as

palavras em uma. Nesta situação ela faz uma aglutinação das duas palavras, que parece ter sido

motivada pelo fato de as duas palavras começarem pelo núcleo da sílaba o que leva ML a

produzir ne para em e nua para uma, aglutinando as duas palavras em nenua produzindo uma

palavra CVCVC. Na mesma linha do texto escreve roreu para roeu, em que ML falou

perfeitamente, roeu, antes de escrever, ocorre que para grafá-la depara-se com uma sequência

de três vogais que a coloca em dúvida quanto às letras e posições que devem ser preenchidas

nessa estrutura silábica. Podemos observar que ML ainda apresenta a tendência da utilização da

estrutura universal CV.

Page 95: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

83

Isso já ocorre com pouca frequência nos textos de ML e considero que na reprodução da

fábula ela estava preocupada em se manter no enredo, o que a levou a algumas situações de

instabilidade.

Figura 23. Reprodução da fábula: “O leão e o ratinho”

A questão da segmentação, embora não faça parte da proposta de análise nesta

pesquisa, será considerada em função de fazer parte do contexto geral de produção e evolução

de ML que se preocupa em demonstrar expressividade na súplica do ratinho, quando se utiliza

do recurso de repetição por cinco vezes da palavra por favor. Não segmenta a expressão por

favor, talvez pelo fato de se guiar por domínios prosódicos hierarquicamente superiores à sílaba.

As segmentações não convencionais são bastante frequentes na escrita de crianças que estão

em processo de alfabetização, pelo fato de as crianças se orientarem pelos constituintes

O leão e o ratinho Um leão que estava cansado tanto de caçar os animais estava descansando. Os ratinhos sulbinto no leão e prendeu uma pata dele num ratinho. Porfavor, porfavor, porfavor, porfavor, porfavor, me solta eu. Solta o ratinho. Um dia o leão estava preso em uma corda e o ratinho dente fiado roeu as corda e salvo o leão. Moral da estória: Quando fica bom para uma pessoa é bom para outra pessoas

Page 96: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

84

prosódicos. Nessa situação podemos considerar que tanto a repetição quanto a não

segmentação fazem parte da estratégia expressiva de ML, em que busca representar

graficamente a emoção da personagem da fábula.

Destaca-se nessa produção a qualidade que ML confere ao ratinho quando demarca isto

pela expressão dente (a)fiado, revelando uma forma peculiar de descrevê-lo, o que representa

um avanço em seu processo de escrita. A omissão da primeira sílaba da palavra afiado, pode

talvez ser explicada pela falta de tonicidade desta silaba.

Dado 15: ML, 13 anos, maio de 2009. ML escreve uma carta para sua mãe falando sobre seu

aniversário.

Mãe eu quero ter aniversário de 14 anos e vai ter coisa mais bonita ex: telão quando era pequena, lembrancinha, convite, aniversário, serpentina

Page 97: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

85

fita óculos, pulseira. Sabia que eu vou me arrumar assim (como) uma indianazinha na novela das nove tá?

Mãe eu não sou mais bebe, por que ter enfeite? Explo barbie, não, branca de neve também não. eu sou moça, uma linda Baile.

Figura 24. Carta à sua mãe

Para fechar a sessão de dados de ML apresento uma cartinha deixada por ela para sua

mãe, dois meses antes de seu aniversário, em que ela completaria quatorze anos. Nessa carta

podemos observar a autonomia adquirida por ML tanto para relatar seus desejos, argumentando

sobre o que quer e porquê, quanto pela situação de escrever o texto sozinha. Considero que a

motivação desempenhou um papel crucial na escrita bem sucedida da carta. Como terapeuta foi

uma conquista importante ver um texto produzido por ML sem a minha mediação, o que remete

aos estudos de Vygotsky (1926) sobre a zona de desenvolvimento próximo: o que uma criança

consegue fazer hoje com a ajuda do outro o fará sozinha em um futuro próximo.

Podemos observar na escrita de ML que ela deixa de inserir artigos e preposições, fato

que pode ser observado já na primeira linha do texto, quando ML escreve: eu quero ter

aniversário quatorze anos, ou quando escreve sobre o traje que quer usar na festa: sabia eu vou

(me) arrumar sim (como uma) indianazinha (da) novela das 9 tá? Embora na sequência do texto

ML o faça: Mãe eu não sou mais bebê por que ter enfeite? O fato de ML conseguir apresentar,

em certas situações, uma organização melhor do que em outras mostra que ela está procurando

acertar e busca elementos para isso, o que nem sempre consegue. No final do texto ML escreve

eu sou moça uma linda baile, podemos notar que ML não realiza a concordância em relação ao

gênero quando escreve linda baile, o que talvez tenha sido motivada pela presença da palavra

moça que antecede linda, levando-a a linda baile e não lindo baile. Outra possibilidade é a de

que ML, realmente iria escrever eu sou uma linda moça, mas antes de terminar mudou de idéia e

resolveu falar do baile o que a fez escrever linda baile.

Por fim, chamou minha atenção o tamanho da letra progressivamente aumentado, como

marca de subjetividade, quando ML escreve sobre o que quer e sobre o que não quer em sua

festa. Parece que ao final da carta o aumento das letras dá a idéia de um grito demonstrando

que ela já não é mais uma criança, é uma adolescente e quer ser reconhecida como tal.

O sujeito ML

Page 98: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

86

Ao acompanhar ML ao longo destes anos podemos notar algumas conquistas. Na

produção oral passou do jargão entonativo, aos três anos, para aos sete, a produção de todo o

inventário fonético e sua utilização fonológica, com pouquíssimas estratégias de reparo. Aos

seis/sete anos algumas inadequações quanto ao manejo dos eixos sintagmático e

paradigmático, ao nível de seleção, que também ocorre com outras crianças em fase inicial de

aquisição de linguagem, mas que foram organizados ao longo da relação com o outro.

A entrada na escrita se deu ao mesmo tempo em que ampliava sua oralidade pelo outro

em práticas discursivas, movimento da terapeuta de escrever para ela, organizando em conjunto

seu discurso. Considero que este fato favoreceu ML em sua organização para a escrita. Isto

pode ser observado desde as suas primeiras produções escritas sempre apresentadas em forma

de texto e não em palavras isoladas ou frases soltas. ML avançou em suas produções também

no domínio de estruturas silábicas mais complexas como CCV e CVC.

Pode-se observar pela apresentação dos dados que nos anos 2004 e 2005 ocorreram as

maiores mudanças relacionadas às questões de organização e estrutura do texto, estrutura da

sílaba e segmentação. Nos anos subsequentes, ML apresentou um maior avanço nos aspectos

relacionados ao discurso e sua autonomia.

Mas considero que o fato mais significativo foi a questão da autonomia de ML tanto em

sua produção oral quanto escrita. ML que ao final da pesquisa, já consegue organizar de forma

mais independente tanto sua produção oral seu texto escrito. Algumas vezes ainda omite alguns

elementos na escrita embora isto ocorra com uma frequência bem menor do que ocorria no

início. ML também ainda solicita a presença do adulto para ajudá-la na organização do texto,

mas agora a função do adulto é de orientá-la de uma maneira mais distante do que no início. ML

atualmente apresenta uma atitude mais autônoma e crítica, pois sabe o que quer contar e sabe

como fazê-lo, discute comigo qual a melhor maneira de apresentar o texto. Minha posição como

terapeuta, que no inicio estava colada à ML, também teve que se adequar e ir se soltando aos

poucos para dar voz à ML.

Caracterização do Sujeito

O sujeito AM

O trabalho terapêutico com AM iniciou-se em agosto de 2001 na clínica escola de um

Page 99: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

87

centro universitário no interior do Paraná. AM estava na época com seis anos e sua mãe

procurou o atendimento com a queixa de que AM falava muito pouco e o que falava quase não

era compreendido. AM frequentava a APAE e não tinha outra atividade.

A família de AM é de classe média baixa, sua mãe trabalhava e trabalha, ainda, como

diarista, e seu pai não exerce nenhuma profissão. Segundo relato da mãe, o pai apresentou

algumas dificuldades de aprendizagem quando jovem e frequentou a APAE. A fala dele é

laboriosa e de difícil compreensão em alguns momentos, tanto pelo aspecto motor quanto por

sua elaboração. Sua mãe é uma pessoa muito simples, fala muito pouco e se utiliza de uma

variedade linguística não prestigiada. AM tem duas irmãs, a mais velha não mora com os pais,

mora com a avó, e a outra irmã nasceu quando AM tinha quatro anos, e é companheira de AM,

auxiliando-a em seus afazeres.

O trabalho terapêutico com AM nesta época, assim como com ML, foi direcionado para a

fala, visto que sua fala consistia de algumas palavras isoladas e quando lhe era solicitado a

explicar algo, ficava muito irritada. A inteligibilidade de sua fala era comprometida em função de

constantes apagamentos, dessonorizações e omissões, principalmente de líquidas. No início do

acompanhamento, AM não falava muito e eu tinha muita dificuldade em entender o que ela

queria dizer, praticamente tinha que traduzir sua fala. O trabalho privilegiava situações dialógicas

em brincadeiras de casinha, fantoches, contagem e recontagem de histórias, dentre outras.

Foram realizadas orientações à mãe de AM para que ela interagisse com ela, de várias formas,

por exemplo, perguntando sobre suas atividades cotidianas a fim de que AM tivesse como

aproximar sua fala da fala do outro, conforme Freud (1891). As orientações foram sistemáticas,

praticamente em todas as sessões de terapia; ocorreu também de a mãe participar de algumas

sessões, sempre com o consentimento de AM, para observar como era o trabalho terapêutico.

As orientações à mãe eram feitas tanto no sentido de que ela considerasse AM como alguém

que tem algo importante a dizer, ou seja, esperasse seu tempo e não falasse por ela, como

também que ela falasse com naturalidade, como com qualquer criança, de modo que AM tivesse

mais contato com a fala do outro e com a sua fala dirigida ao outro, mesmo com as dificuldades

articulatórias que apresentava nessa época. As dificuldades articulatórias de AM não estão

relacionadas à hipotonia ou a dificuldades motoras da região oral, mas sim ao fato de AM ter

poucas chances de exercer sua fala, seja com a mãe – que é uma pessoa de falar pouco e de

personalidade retraída - seja com outros interlocutores. Soma-se a isso o fato de a mãe ter

procurado atendimento fonoaudiológico para a filha apenas aos seis anos, quando AM teve

oportunidade de escutar o outro e aproximar/ajustar sua produção motora ao que o outro dizia e

Page 100: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

88

ao que ela escutava do que o outro dizia; ou seja quando AM aprendeu a repetir (FREUD, 1891).

Isso possibilitou que AM visualizasse a fala do outro e experimentasse modelos acústicos e

articulatórios.

Após iniciarmos o atendimento na clínica escola sua mãe foi orientada por mim para que

procurasse uma escola regular para AM, a fim de que ela pudesse compartilhar outras

possibilidades de funcionamento de linguagem com crianças que estavam se desenvolvendo

normalmente, já que, como foi relatado, em casa, ou mesmo na instituição que frequentava as

possibilidades de interação pela linguagem eram reduzidas. Desta forma, com muita resistência

da instituição que frequentava, ela foi encaminhada para a escola regular. A indicação para que

AM fosse para uma escola regular pauta-se na constatação de que qualquer situação de

embate/dificuldade, a qual supostamente ela teria que enfrentar, é um lugar de trabalho com a

linguagem, em que a criança/adulto dispõe de outros sistemas semióticos (FRANCHI, 1977) para

se fazer entender e isto se dá na interação, pela interlocução.

Assim como foi feito com ML, foram realizados exames audiológicos em AM,

constatando-se que sua audição está dentro dos padrões de normalidade. AM também foi

avaliada quanto às estruturas do sistema motor oral e foi constatado que apresenta selamento

labial em posição de repouso, ou seja, mantém os lábios fechados. AM apresenta mastigação e

deglutição adequadas, mastigando sem dificuldades os alimentos, bilateralmente, com

selamento labial e sem projeção de língua; mastiga os alimentos sem amassamento da língua

contra o palato, come de tudo, apresenta força adequada na mastigação. Não apresenta palato

ogival ou atrésico. Nas entrevistas com a mãe ela nos informou que AM foi amamentada por

mais de um ano no peito e não fez uso de mamadeira e/ou chupeta. Come de tudo, inclusive

frutas e verduras não apresentando preferência especifica por algum tipo de alimento.

Podemos observar que os dados referentes ao sistema motor oral de AM são

compatíveis com o que Rosenfeld-Jonhon apresenta em relação a características motoras em

crianças com SD. É importante considerar que de acordo com a avaliação fonoaudiológica do

sistema motor oral de AM e também considerando os dados sobre sua amamentação, ela teria

as condições ótimas para uma articulação motora dentro dos padrões esperados para qualquer

criança. Mas o que ocorre é que as poucas experiências de fala que AM teve em casa, na escola

e em outros ambientes não possibilitaram um desenvolvimento compatível com suas condições

orgânicas.

Em 2002 tentamos realizar a Avaliação Fonológica da Criança - AFC - em AM, mas não

Page 101: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

89

foi possível devido ao fato de AM realizar muitas omissões em sua fala como por exemplo:

borboleta [oeta], casa [asa] Abacaxi [ si], livro [ifu], espelho [pelu], nariz [ise], carro [kawo], Navio

[viw], fumaça [asa], prato [patu].

Dados de produção/linguagem oral de AM

AM, ML e AL (irmão de AM) no início desta atividade estão todas sentadas ao redor da

mesa, na sala de terapia, onde nos reuníamos semanalmente. Combinávamos previamente a

ordem na qual cada integrante contaria sua novidade.

Dado 1: AM, 8 anos em 11/11/2003. AM conta para sua terapeuta que irá à casa da avó comer

pastel

Número Sigla do Locutor

Transcrição Observações sobre os

processos de significação verbais

Observações sobre os processos de significação não

verbais 01 Icp Conta AM 02 AM Ecola vovó 03 Icp .O que? 04 AM Ecola vovó 05 Icp Escola e …. 06 AM Vó 07 Icp Vó? 08 AM Ome patel 09 Icp Então fala, não estou entendendo .

10 AM Ome patel

Fala enfaticamente, passa a língua ao redor dos lábios como se estivesse imaginando o gosto do pastel.

11 Icp Você vai comer pastel?

12 AM Gesto afirmativo com a cabeça

13 Icp Onde? 14 AM Mia vó 15 AM Vó

16 Icp Mas onde, só vó? Tem que me contar onde.

17 AM Vó 18 Icp Onde, na feira na casa dela.... 19 AM Asa 21 Icp Na... 22 AM Asa

23 Icp Não, casa, fala pra mim casa, de quem?

Articulando bem a primeira sílaba de casa mostrando com a mão na garganta a oclusáo do [k]

24 Icp e AM Casa Falam juntas 25 AM Vó 26 Icp Da minha .. 27 AM Vó 28 Icp Então, quando você vai comer pastel

Page 102: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

90

29 AM Hoje!

30 Icp Então vamos contar. Conta tudo pra mim. Hoje eu... conta pra mim...eu ..

31 AM Eu vou... 32 Icp Eu vou.... 33 AM Come patê.l 34 Icp Onde? 35 Asa da mia vó. 36 Icp Ótimo. Muito bem!

37 Icp Agora vamos então escrever sua novidade, adorei sua novidade viu? Vamos então, onde você vai AM?

38 AM Minha vó, ecola. 39 Icp Escola mas o que que tem a ver escola 40 AM Náo sei. 41 Icp Então porque que você falou escola? 42 AM Vó . 43 Icp Como que você quer que eu escreva. 44 AM Eu.. 45 Icp Eu escrevendo 46 AM Fui 47 Icp Você foi ou vai? 48 AM Vai

49 Icp Eu vai ? É assim que a gente fala? Eu vai comer pastel

50 AM É. 51 Icp Ou é assim, eu vou comer pastel. 52 AM Eu vou patel.

53 Icp Então fica, eu..v::::. Icp produz a frivativa labiodental [ v] com um prompt

54 AM Vou 55 Icp Vou, eu vou, onde AM 56 AM Asa da minha vó

57 Icp Na, casa da minha vó... Na, olha pra mim AM, oh, o ca, na casa da minha da minha vó. Que que você vai fazer lá AM?

escrevendo

58 AM Ome patel

59 Icp Co, vamos lá,

Colocando a mão na garganta na altura da laringe para demonstrar a oclusão, AM também faz o mesmo movimento.

60 Icp e AM Comer juntas

61 Icp Eu vou na casa da minha vó.... Lendo para AM o que foi escrito.

62 AM Vó ome patel

63 Icp Como é que é? Chama a atenção de AM para a produção da oclusiva velar [ k ]

64 AM Co:::::::: AM produz a palavra comer 65 Icp e AM Comer AM produz a palavra comer 66 AM Patel 67 Icp Ótimo, lindo, agora você vai desenhar.

Figura 25. AM conta que foi comer pastel

Page 103: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

91

AM está aprendendo a contar suas experiências e apresenta uma fala reduzida que

dificulta a compreensão do interlocutor, sendo preciso desdobrá-la, a fim de que ele atribua um

sentido para o que AM quer contar; destaca-se que isso é possível a partir das palavras que AM

fala. Nesse processo, a fala de AM se aproxima do pensamento que, para Vygotsky (1983),

apresenta a sintaxe e o som reduzidos ao mínimo, operando com a semântica (p.125). Por isso é

importante que o interlocutor de AM insista nesse desdobramento, fazendo perguntas que às

vezes AM já respondeu, mas ainda de forma reduzida; retomando o tema para que ela

reorganize seu dizer.

O trabalho dirigido a essa explicitação se concentra, prioritariamente, na relação entre as

palavras, ou seja, na sintaxe da língua e envolve a própria fala de AM, seu desenho, a fala do

outro, a escrita do outro e, futuramente, sua própria escrita. Desta forma, AM aprende pouco a

pouco a se aproximar do modo como outras crianças e adultos falam, inserida que está no grupo

terapêutico onde convive com vários interlocutores.

No dado apresentado observa-se que a investigadora, muitas vezes, insiste em obter as

respostas que aparentemente estão dadas por AM, como na linha 08 quando AM diz que vai

ome patel e a investigadora pergunta onde e em resposta AM diz Vó. Fica claro que é na casa

da avó, mas ninguém responde quando perguntado se vai à casa de alguém pelo nome da

pessoa, no mínimo, AM teria que dizer na Vó, para na casa da Vó. Considero que AM percebeu

o que falta em sua fala por meio da fala do outro, da qual ela tenta se aproximar desdobrando

sua própria fala. Após a apresentação do próximo dado de AM serão apresentados mais

detalhes sobre o funcionamento de sua fala.

No dado que segue, AM estava bastante ansiosa para contar sobre a compra de seu

primeiro sutiãn. O quadro abaixo apresenta o diálogo entre AM e a terapeuta (Icp).

Dado 2: AM, 8 anos em 09/08/2004. Nesse encontro AM conta que foi fazer compras com a mãe

e o que comprou.

Número Sigla do Locutor

Transcrição Observações sobre os

processos de significação verbais

Observações sobre os processos de significação não

verbais

01 Icp

Vamos lá AM, o que você vai me contar? Gente, vamos ver se todo mundo entende o que a AM vai contar, senão a gente pergunta pra ela...Vamos lá...

Icp abre o caderno de AM e seleciona a página em que será escrito as novidades contadas por AM

02 AM Eu... 03 Icp E::u... escrevendo 04 AM Andei...

Page 104: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

92

05 Icp Andei... escrevendo 06 AM Opando 07 Icp Eu andei... Tom interrogativo

08 AM Copano tinhã Articula bem as palavras como se quisesse se fazer entender

09 Icp Comprando? Terapeuta não entende o que AM quer dizer

10 AM É 11 Icp Você comprou, o quê?

12 AM

Ficou de pé, debruçada na mesa e abriu a blusa para mostrar o sutiãn novo que sua mãe tinha comprado para ela.

13 Icp Ah ! Você foi comprar um... só mostra a alcinha, assim ó!

Mostrando para AM que não precisa abrir a blusa toda, apenas mostrar a alça do sutiân. Pois havia muita gente na sala.

14 Então vamos, eu andei comprando um sutiãn você falou?

15 AM É 16 Icp Comprando... escrevendo 17 AM Tinhã

18 Icp Então, olha, a gente não pode fazer assim; oh, presta atenção

Tocando o rosto de AM para voltar sua atenção para Icp

19 Icp

Oh, não pode por assim? Eu fui comprar... Eu comprei, ou, eu fui comprar, o que que você quer que eu coloque? Olha pra mim AM

21 AM Compa. 22 Icp Tá, então, eu fui comprar um... 23 AM Sutiãn 24 Icp Sutiãn. Quando foi isso?

25 AM Oja AM responde onde no lugar de quando

26 Icp Não, quando? 27 AM Oja, cento 28 Icp Hoje? 29 AM Cento 30 Icp No centro?

31 AM Faz movimento afirmativo com a cabeça.

32 Icp É. Que legal né, AM

33 Icp Não foi hoje, foi na semana passada? Foi no sábado?

34 AM Foi Sábado. 35 Icp Foi na semana passada?

36 Icp Eu fui comprar um sutiã na semana passada no sábado.

Icp fala em voz alta enquanto escreve.

37 Icp Que legal AM. 38 AM Tem mais, heim! 39 Icp Tá bom, vai… 40 AM Quinho, tamaquinho, hoje 41 Icp Você comprou?

42 AM Minha mãe não deixou, hoje vai, hoje vai!

Referindo-se ao outro dia em que não pode comprar o tamanquinho.

43 Icp Sua mãe não deixou? 44 AM Hoje vai 45 Icp Mas hoje você vai comprar? Então você

Page 105: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

93

vai contar que vai comprar? 46 AM Tojo, baibe, odinha e manquinho

47 Icp Então conta, como é que é que a gente vai colocar aqui. AM, conta aqui

48 AM Manquinho

49 Icp Então, como é que é que eu ponho? Tamanquinho? Mas que é que vai acontecer?

50 AM Hoje, tamaquinho, hoje

51 Icp Tá, você quer comprar, você vai comprar...

52 AM Hoje 53 Icp Então, como é que eu ponho?

54 AM e Icp Eu... vou... Falando Juntas e bem devagar. Icp escreve

Olhando uma para a outra.

55 Icp Por que você ainda não comprou, você vai comprar...

56 AM Vou compá 57 Icp Então, como é que eu escrevo?

58 Icp Eu...

Icp inicia a frase para que AM a complete , Icp está escrevendo no caderno e AM está olhando para o que ela está escrevendo

59 AM Eu vou compá... tamaquinho!

60 Icp Eu vou comprar tamanquinho e estojo da Barbie.Quando?

Escrevendo

61 AM Hoje 62 Icp Hoje? E o que mais? 63 AM Ua oncilodinha

64 Icp

O que que é isso AM? Uchilodinha? Ah! mochila de rodinha! Eu sei AM, mas por você está falando da mochila de rodinha, o que você vai fazer?

Icp quer que AM explique porque está falando da mochila, ou seja, que ela fale que vai comprar uma mochila

64 ML Vai arrastá

Neste momento ML que também estava participando da atividade, toma iniciativa e fala tentando ajudar AM a responder minha pergunta

66 Icp Não entendi!

67 ML Assim oh!, a gente vai vim na escola...e leva uma mochila bolsa,de arrastá!

ML tenta explicar por AM para que serve a mochila de rodinha

68 Icp

Ah! De arrastar, eu sei, eu sei. Mas eu não estou entendendo. Ela falou assim, olha, mochila de rodinha, mas ela não falou se você vai ganhar, se ela vai comprar, se já tem....

69 AM Não a minha mãe, me dá, hoje. AM tenta explicar que vai comprar, no centro

70 Icp Hoje, você tem mochila de rodinha? Então o que que vai acontecer?

71 AM Pãn lá teal

Movimenta a cabeça negativamente e depois fala.

Page 106: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

94

72 Icp Hã? Icp, não entende o que AM quer contar

73 AM Põe teal AM faz gesto com a mão, arrastando a mão sobre a mesa como se estivesse guardando algo

74 Icp Ah!! Icp entende que AM quer falar para guardar material

75 AM Potá lá dento

76 Icp Pra por lá dentro... tá, da mochila de rodinha, mas você já tem a mochila?

Icp quer que AM diga que vai comprar

77 AM Entáo AM o que tem que fazer? Movimenta a cabeça negativamente

78 ML Comprá ML novamente 79 Icp E quem vai comprar? 80 AM Mia mãe 81 Icp Entáo vai .....A minha mãe 82 AM Mãe eu 83 Icp A minha mãe vai

84 AM A mia mãe eu A-MAN-DA

AM chega bem perto de Icp e bate no peito enquanto fala o seu nome com ênfase silabando. Quer que Icp escreva seu nome além de eu

85 Icp É voce quem está contando , por isso tem que ser eu, e não, a minha mãe eu e .....

86 AM Amanda...

87 Icp Eu sei que é seu nome, mas não dá pra falar A minha mãe, eu a Amanda, parece outra pessoa

88 AM É eu, meu nome, minha... AM olha ostensivamente para Icp e bate com a mão no peito.

89 Icp Eu sei que é seu nome, mas olha, a minha mãe e eu... É você quem fala. Fala pra mim, a minha mãe e eu...

90 AM Vãm compá

91 Icp Aí !Então, a minha mãe e eu vamos sair

92 AM Vãm saí, vãm compá 93 Icp A minha mãe eu vamos sair comprar

94 AM Ë ota, também vovô Referindo-se a um outro fato que queria contar

95 Icp Espera um pouquinho, outra novidade?Acaba esta! A minha mãe e eu vamos sair e comprar...

96 AM A cata e opa. Icp não entende o que AM fala.

97 Icp A mochila, nós não escrevemos ainda. A mochila de

98 AM tinha 99 Icp Rodinha, fala pra mim mochila de...

100 AM Mutila ti

101 Icp Rodinha, a minha mãe e eu vamos sair e comprar a mochila...

Icp está escrevendo para AM

102 AM Otinha 103 Icp Rodinha, a mochila de rodinha. Tá bom.

104 AM Tem mais! AM refere-se a uma outra novidade que quer contar.

Figura 26. AM conta que foi comprar sutiãn, estojo da Barbie e mochila de rodinha.

Page 107: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

95

Dado 3 Desenho referente à produção oral de AM sobre a compra de seu sutiãn, o tamanquinho,

o estojo e a mochila de rodinha.

Figura 27 Desenho de AM sobre sua ida às compras.

Depois que conta sua novidade, apresentada na Figura 26, AM faz este desenho.

Podemos observar que neste desenho AM não está com sua mãe fazendo compras, como me

contou, quando lhe perguntei sobre o que havia desenhado, ela me falou que no desenho ela

estava saindo de sua casa para as compras, e parece estar bem feliz. Pode-se observar ao alto

da folha a primeira fala de AM sobre sua novidade, e em seguida o texto que elaboramos juntas.

Perroni (1982), no acompanhamento longitudinal com crianças em que analisa seu

discurso narrativo, considera que, até pouco tempo, a maioria dos estudos na área de aquisição

da linguagem trabalhava com modelos desenvolvidos para a análise de construções de adultos

transportados para a análise das produções de crianças. Essa forma de analisar as narrativas

infantis mostra-se negativa, pois se direciona para o que esta faltando nas construções das

crianças, do ponto de vista das construções do adulto, não havendo preocupação em

compreender como a criança chega ao discurso do adulto. A análise de Perroni (op. cit.) mostra

que a criança vai aprendendo o pouco a pouco seu papel de narrador e de interlocutor, e, assim,

compreende a situação de interlocução.

E o que AM faz? Aos oito anos de idade, AM sabe que tem coisas para contar, que

precisa levar em consideração o outro, ainda que muitas vezes não consiga se fazer entendida.

Page 108: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

96

Nesses casos, aceita a mediação da terapeuta para organizar e estruturar sua fala. Como vimos,

AM apresenta uma fala bastante reduzida, contendo muitas vezes somente o verbo, não fazendo

uso de relatores (preposições, conjunções, palavras nominais de relação). O uso do pronome

“eu” surgiu depois que começamos a trabalhar atividades em que ela é solicitada a contar sua

própria experiência de vida. Na fala, AM apresenta questões fonéticas e fonológicas como a não

realização de sílabas átonas em algumas situações, nem do ataque ramificado e da coda; além

disso, faz algumas dessonorizações de obstruintes e omite as líquidas de forma assistemática.

Mesmo apresentando essas dificuldades, AM está determinada a contar o que deseja,

considera seu interlocutor e busca ajustar sua fala a fala dele para que seja compreendida. Na

linha 38, podemos observar que AM tem prazer em contar, mesmo com dificuldades: Tem mais,

heim! Sem dúvida, ela precisa sistematicamente da fala/mediação do outro para ajudá-la a

estruturar seu discurso, e o faz estendendo na escrita a sintaxe do que aparece reduzido na fala.

Tal redução é percebida em apagamentos e dessonorizações - que também são observados em

crianças menores. De tal modo, poderíamos considerar que ela se encaixa, conforme Perroni

(1992), em um momento inicial da construção do discurso narrativo, as protonarrativas. Mas,

diferentemente de uma criança nessa fase, AM apresenta iniciativa, encadeia os fatos em uma

seqüência temporal, o que vai além do que crianças menores fazem. A dependência marcante

que ela tem do adulto se dá, provavelmente, pelo fato de AM não ter vivido socialmente a

experiência de aprender a narrar. Interpreto esse fato, com a autora, como pertinente ao

processo intermediário da “arte de narrar”, até que consiga fazê-lo com mais autonomia. Isso só

ocorre se for olhada para além da síndrome (Vygotsky, 2004, 1997), ou seja, inserida em

condições favoráveis para o aprendizado de narrativas. Segundo Perroni, perguntas feitas pelo

interlocutor (linhas 11, 55, por exemplo), como: onde? quem? quando? - levam a criança a

organizar lembranças sob a forma de discurso narrativo; isto é o que constitui o aprender a

contar (p.55).

Além dos recursos verbais, como o de articular lenta e exageradamente as palavras

quando quer se fazer entender, AM se utiliza também de recursos não verbais, como o uso que

faz de sua expressão corporal para mostrar a que está se referindo, como ocorre na linha 12: AM

ficou de pé, debruçada na mesa e abriu a blusa para mostrar o sutiã novo que sua mãe tinha

comprado para ela. Também na linha 73, AM tenta explicar que vai guardar seu material na

mochila. Observa-se que por AM estar engajada em situações interativas, dialógicas, faz cada

vez mais uso de diversos recursos além da fala: gestos, expressão facial marcante e desenho.

Page 109: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

97

No dado apresentado, observa-se que em nenhum momento foi dito a AM qualquer

palavra no sentido de desvalorizar ou de menosprezar a sua fala, ao contrário, o movimento é de

considerá-la como a interlocutora que é. A partir da teorização que tem sido feita pela ND,

considera-se que o sentido não é prévio à interlocução que se estabelece, ou seja, a linguagem

não é transparente para nenhum falante e, desta forma, os interlocutores negociam e ajusta seus

dizeres o tempo todo. Portanto, frente a AM, com SD, não se trata de fazer de conta que

entendemos quando de fato isto não ocorre, mas de buscar sentido na interlocução no que está

sendo dito e, ainda, buscar que ela fale mais do que fala.

O fato de AM apresentar uma fala reduzida sintaticamente é designado na literatura

como uma fala telegráfica. Retomo aqui a proposição de Jakobson (1956/1970) proposta para o

estudo das afasias, discutido na análise dos dados do sujeito ML. Para Jakobson o

funcionamento da cadeia verbal é compreendido a partir da bipolaridade da linguagem em

relação à seleção e combinação de palavras, em dois eixos que se articulam e se

complementam. No caso de AM, parece que ela encontra dificuldade em manejar os dois eixos,

sendo que o mais prejudicado é o da combinação: ela consegue selecionar as palavras que

deseja, mas não as combina com outras palavras. Como podemos observar na linha 08 –

Compano tinhã (comprando sutiã); na linha 40 – “Quinho, tamaquinho, hoje”; na linha 46 – “Tojo,

baibe, odinha” (estojo, da barbie, mochila de rodinha). Vê-se que ela, preferencialmente,

seleciona e elenca as palavras que fazem sentido para contar o que deseja, mas não as

combina em unidades maiores. E AM consegue sair dessa unipolaridade? Sim, como podemos

observar na linha 59, AM articula os dois eixos para produzir – Eu vou compá tamaquinho.

O trabalho linguístico realizado por AM para organizar sintaticamente seus enunciados e

sair da unipolaridade dizendo: Eu vou compa tamanquinho começa muito antes de AM formular

seu enunciado, com a introdução da fala e da escrita pela investigadora. Assim como para ML, a

escrita da investigadora deu visibilidade e materialidade à sua fala, o que lhe possibilitou

desdobra-la sintaticamente. Ao analisar a linha 47, observamos que quando a investigadora

pergunta – Então conta como é que a gente vai colocar aqui? Ao que AM responde: Manquinho

existe uma insistência por parte da investigadora: Então como é que eu ponho tamanquinho?

(referindo-se à escrita). Mas o que é que vai acontecer? AM responde: Hoje, tamanquinho, hoje.

Novamente a investigadora faz perguntas e retoma o que foi dito, para nortear AM: Tá, você quer

comprar, você vai comprar..... AM, então, responde: Hoje. Novamente, a investigadora questiona

AM dizendo: Então como é que eu ponho? Querendo dizer a AM que somente a palavra hoje

não é suficiente para escrever seu relato. AM parece entender, pois na sequência, olhando para

Page 110: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

98

a investigadora fala junto com ela: Eu ...vou.... E finalmente na linha 58 quando lhe é perguntado:

Então como é que eu ponho? Na seqüência a investigadora inicia a frase para AM que desta vez

responde: Eu vou compá tamaquinho! Observa-se, então, que o investimento do interlocutor na

fala de AM juntamente com o recurso da escrita foi o que possibilitou o desdobramento de sua

fala no eixo sintagmático. Com relação aos recursos visuais, proprioceptivo e acústico, dos quais

AM faz uso quando fala devagar, fala junto com a investigadora, olhando para ela, capricha na

articulação, considera-se com Freud (1891/1973) que aprendemos a falar repetindo em nossa

fala a fala do outro e nisso há um forte laço entre a percepção acústica e a realização motora no

processo de aproximar a nossa fala da fala do outro e também pela escuta e o ato motor que

produz os gestos articulatórios. Para Freud isso se faz em concomitância e, assim, se

automatiza, Aprendemos a falar asociando uma ‘imagem sonora de la palabra’ com uma

‘impresión de la inervaçión de la palabra’ (op cit p. 87).

Os três autores Vygotsky, Freud e Jakobson, prioritariamente considerados nessa

análise, que a ND tem articulado para teorizar sobre as afasias e sobre a entrada da criança,

com e sem patologia, na linguagem (fala, leitura e escrita) ajudam a compreender tanto a fala

reduzida de AM quanto a expandi-la envolvendo os dois eixos da cadeia verbal e, ainda, o papel

crucial que o outro desempenha na mediação.

Dados da produção da escrita de AM

Assim como nos dados de ML os dados da escrita inicial de AM mostram desenhos,

escrita de letras, de palavras. Algumas palavras como o nome da criança e o nome de pessoas

conhecidas, tal como é observado no dado de ML, já aparecem escritos de forma alfabética, não

porque a criança já consiga dominar este sistema, mas pelo fato da criança observar estes

nomes em escrita de adultos, ou mesmo pelo fato da criança ter solicitado que alguem

escrevesse paa ela.

Dado 4: AM, 8 anos, maio de 2003. Nesta atividade ela conta sobre a festa de aniversário de

uma amiga.

Page 111: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

99

Figura 28 AM fala sobre a festa de aniversário.

Em 2003, AM começou a colocar no papel suas primeiras tentativas de escrita e já

escreve seu nome que aprendeu observando a escrita do adulto. Esta não foi à primeira tentativa

de AM, mas caracteriza o início de seu processo, escrevendo – como um todo - nomes de

pessoas da família, como muitas crianças o fazem. AM escreve algumas letras no alto da folha,

sem, aparentemente, correlacionar com alguma palavra específica. Neste dado, AM conta sobre

uma festa de aniversário que foi no final de semana e depois desenha sobre o que contou. Pedi

que AM escrevesse o nome das pessoas que desenhou na festa e ela escreve seu próprio

nome, alfabeticamente (Amanda); o nome da amiga (Maria Laura) em que faltam letras e o da

terapeuta (Carla) em que há letras coincidentes e outras não. AM ainda não produz um texto

escrito, mas se mostra muito interessada na escrita, observando atentamente todos os

movimentos da terapeuta quando escreve para ela.

Dado 5: AM, 8 anos, agosto de 2003. AM conta para o grupo de crianças com SD sobre um

acontecimento em sua casa. Em seguida, desenha o que julga representar a situação e depois

escreve.

Page 112: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

100

t

Figura 29. AM conta e desenha sobre sua casa .

A partir da prática com a escrita realizada por meio de atividades em grupo, AM vai

refinando suas percepções e conseguindo introduzir novos elementos que mostram uma maior

interação com o que se torna gradativamente, para ela, uma nova possibilidade de significação.

AM escreve a palavra CASA alfabeticamente, mas é provável que o tenha feito se guiando pela

forma visual da palavra já que essa palavra é recorrente nas atividades de escrita que realiza.

Na escrita da palavra árvore, como AVE. Desta forma observa-se que AM ainda não apresenta

uma escrita alfabética, representa uma letra para cada sílaba. Outra possibilidade a ser

considerada é que talvez AM tenha se guiado pela realização desta palavra em sua fala que é

[ave].

Dado 6: AM, 9 anos dezembro de 2003. AM conta sobre o sua cachorrinha Sandy e o gato que

ganhou

Page 113: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

101

Figura 30. AM conta sobre seus animais de estimação

Neste dado em que AM conta a situação que envolve seu gato e sua cachorrinha,

podemos observar os detalhes do desenho: ela desenha seu pai, sua mãe, sua irmã, seus

animais de estimação e os nomeia. Embora ela ainda não escreva sua própria narrativa, seu

desenho é bastante representativo da cena que descreve. Em sua organização, pode ser

observado que AM destaca-se como narradora dos seus personagens (mãe, pai, animais de

estimação). AM escreve pãe, para o pai; mãe, para a mãe, Alexadea para sua irmã, gato e

também o nome da cachorra. AM escreve sozinha todos os nomes. Pode ser que tenha se

pautado na escrita da terapeuta, mas o faz sozinha. Isto é percebido na escrita de Sandy (o

nome da cachorra), que primeiro AM escreve samd, depois, talvez por comparar com a escrita

da terapeuta insere o Y, escrevendo samdy.

Dado 714: AM, 9 anos, abril de 2004. Nesta escrita AM relata uma atividade que envolve uma

situação de brincadeira de venda em um armazém.

Hoje nós brincamos de venda

Figura 31. AM relata brincadeira de venda que fizemos na clínica

14 Nos dados que se seguem, a escrita de AM apresentada na caixa de texto corresponde ao que a criança

considera que escreveu, sendo, pois, o que ela fala para a investigadora, que anota tudo e faz ajustes de ortografia

e sintaxe.

Page 114: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

102

AM escreve sozinha e mostra seus progressos com a escrita, pois consegue produzir

um texto. É interessante ressaltar que AM nesta produção inclui a marca de pessoa e a

preposição, o que não ocorre em sua fala. Considero que este fato seja efeito das atividades

dialógicas envolvendo a explicitação oral da atividade antes de AM materializar a escrita; ou

seja, trata-se da realização do que Vygotsky (1983) chama de rascunho mental da escrita. AM

entra para a escrita desdobrando sua fala, incluindo palavras funcionais, verbos conjugados, por

exigência da escrita, em que o interlocutor é representado e está ausente fisicamente, não

podendo suprir as lacunas da fala. Observa-se em sua produção que AM consegue transmitir

integralmente sua idéia e sua escrita não se configura de palavras soltas aleatoriamente.

Dado 8: AM, 9 anos, agosto de 2004. AM conta sobre a visita de sua amiga em sua casa.

A Flávia vai na minha casa

Figura 32. AM conta sobre a visita de sua amiga

Neste texto de AM há um enunciado completo com possessivo, determinante, verbo

conjugado e uma palavra de relação, que frequentemente são omitidos em sua fala. Além disso,

observa-se também uma refacção feita por ela quando escreve a palavra Flávia: inicialmente

escreve FLLVUA e em seguida reescreve em cima das letras L L, as letras A A. O que pode ter

ocorrido é que AM na primeira escrita da palavra Flávia sabia que precisava inserir a letra L, pois

esta palavra já esteve presente em outras situações de produção, mas não sabia exatamente

onde, então insere nas duas posições do ataque ramificado. No momento em que escreve

parece ter havido um estranhamento por parte de AM diante de sua escrita, considerando que

ela não tem a representação da sílaba CCV, tanto na fala quanto na escrita; desta forma ela

volta-se para sua escrita e escreve por cima das letras L L as letras A A, que acredito a deixe

mais tranqüila, por estar mais acostumada a preencher a posição de núcleo com a vogal.

É interessante notar que mesmo não analisando esta sílaba como complexa, AM marca,

de alguma forma, as posições do ataque ramificado. Embora AM já consiga produzir em alguns

Page 115: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

103

momentos a estrutura CV, podemos observar a presença de situações em que ela utiliza apenas

uma letra para representar a sílaba inteira como, por exemplo, quando ela produz IA para a

palavra minha, ainda estão presentes em sua escrita. Estes momentos em que as crianças

produzem diferentes hipóteses revelam uma oscilação, comum e produtiva, na representação da

sílaba, o que também ocorre com a maior parte das crianças no processo inicial de aquisição da

fala e da escrita - e não podem ser tomados como patológicos. Também não pode ser perdido

de vista que, é na escrita, processo mais recente para AM, que está se dando um sofisticado

desdobramento que não se percebe na sua fala externa.

Dado 9: AM, 10 anos, 20/12/2005. AM conta que brincou com a boneca e com a irmã.

Figura 33. AM conta sobre suas atividades em casa

De 2004 para 2005 AM não apresentou muitos progressos, não expandiu muito sua

produção de texto. Vygotsky (1926) considera que crianças com deficiência mental evoluem em

saltos e depois passam por períodos de estagnação, que é o que pode ter acontecido com AM.

Nesta produção, ela conta o que fez em casa, apresenta uma ocorrência de hipo-segmentação e

aglutinação de palavras como em IMNHCAMA, para minha cama; e de hiper-segmentação,

como em A REMU para arrumei. AM apresenta em sua escrita ainda produções nas quais

representa um elemento para uma sílaba como em QTO para quarto.

Dado 10: AM, 11 anos, março de 2006. AM fala sobre a festa que foi feita para a sua boneca.

Eu arrumei meu quarto e minha cama,

brinquei com a Estrela (nome da boneca) com a Bebe (apelido da irmã).

Page 116: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

104

Figura 34. Aniversário da boneca de AM na clínica

AM está ampliando seu texto e já consegue encadear as frases. Neste dado pode ser

observada uma situação diferente da dos outros. AM não produz em sua fala a fricativa alveolar

surda nas posições de coda medial e coda final, mas em seu texto estas ocorrências

apareceram como em ESTELA para Estrela, FESTA e PASTE, para pastel. Observo que o

percurso que AM faz por meio da escrita envolve a escrita dela, a fala do mediador e a fala dela,

o que faz com que reflita sobre suas escolhas e consiga fazer um percurso diferente, inter-

relacionando sua fala e sua escrita. Isso corresponde à 3ª posição da criança, elaborada por De

Lemos (2002), no processo de entrada na linguagem em que a criança é falante e ouvinte; no

caso AM, ela se escuta/lê o que escreve, assim como escuta o outro/lê o que o outro escreve.

Dado 11: AM, 11 anos abril , 2006. AM fala sobre suas brincadeiras com sua cachorra Nina.

Maringá, julho de 2006

Maringá, 23 de março de 2006

Na semana passada teve festa de

aniversário para a Estela, mas ela não

veio. Na festa tinha bolo, biscoito pastel,

tinha guaraná, suco, musica e muita gente.

Page 117: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

105

Eu brinquei com a Nina ontem de pega-pega

A Nina correu atrás de mim.

Eu subi na cadeira e a Nina fico

olhando.

Figura 35. AM brinca com sua cachorra

Neste dado e no dado anterior podemos notar que AM inicia seu texto com o cabeçalho,

uma prática escolar de escrita que AM incorporou. Apresenta maior domínio de questões

referentes ao contexto da escrita como as segmentações. Podemos observar que ela está

refletindo mais sobre a escrita, colocando espaços em branco entre as palavras, justamente

onde é esperado. Podemos observar suas dúvidas quanto à letra a utilizar na representação da

coda nasal quando escreve CONM. Na palavra cadeira substitui a letra I pela letra R.. O que

pode ter levado AM a essa substituição foi o fato de que tanto a letra R quanto a letra I, podem

ocupar a posição de coda na sílaba.

No texto há problemas de segmentação, como na palavra atrás, que também ocorre nos

textos da maioria das crianças em fase de alfabetização assim como nos textos de crianças

demonstrados por Abaurre (2006). Utiliza em sua escrita os pronomes, artigos e preposições,

que omite ainda algumas vezes na oralidade.

Page 118: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

106

Dado 12: AM, 11 anos, julho, 2006. AM fala sobre a brincadeira com sua irmã e sobre a

atividadde com o cavalo Pepeu.

Eu e a minha irmã brincamos de escola Eu andei de cavalo e fui dirigindo o cavalo Pepeu Eu andei de sela Figura 36. AM conta que andou no cavalo Pepeu

Neste dado o destaco o fato de AM escrever BRCANS para brincamos e falar bincamos,

o que marca a sua percepção para o tepe, no ataque ramificado, que grafa com a letra R,

embora ainda não analise esta estrutura como uma sílaba complexa, pois não preenche as três

posições, ela está começando a perceber algo diferente, nesta sílaba. Considero que foi o

contato com a escrita que forneceu esta percepção para AM que não produz o ataque ramificado

em sua fala. Para Abaurre (1999), as crianças ao iniciarem a aprendizagem da escrita alfabética

começam também a analisar a estrutura interna da sílaba reajustando suas representações

fonológicas de forma a acomodar os constituintes da sílaba e sua hierarquia. Outro fato a ser

destacado é a escrita de SECOLA, para escola. A análise de crianças, em escrita inicial, revela

que esse fato é bastante comum pois a criança acomoda a estrutura VC em uma estrutura CV,

Page 119: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

107

padrão universal adquirido mais cedo pelas crianças. Mas o dado interessante, é que AM nesta

fase não produzia escola sistematicamente em sua fala e sim ECOLA, desta forma, mais uma

vez, fica evidenciada pela análise deste dado, que foi a partir de seu contato com a escrita, pela

mediação do outro/interlocutor, que AM começa a refletir sobre a organização interna da sílaba e

seus constituintes.

Dado 13: AM, 12 anos, setembro de 2007. AM planeja sua festa de aniversário.

Meu aniversário vai ser em novembro

sábado à noite a festa vai ser na casa da

minha madrinha. Domingo vai ser na chácara

à tarde.

A Carla vai dar um celular de brinquedo, eu quero

ganhar mais roupa, vestido amarrado nas

costas. Barbie bailarina. casa de diamante da Poli,

Barbie que canta e tem celular e mais navio da

poli e casa da Barbie. Eu quero ganhar um bebe de

verdade.

Figura 37. AM conta o que quer ganhar de aniversário.

Nesse dado AM apresenta letra cursiva e considero que avançou bastante em sua

produção. Produz um texto maior, mais organizado e neste dado, planeja sua festa de

aniversário. Planejar articula os processos psíquicos superiores (linguagem, memória,

práxis/corpo, percepção, raciocínio intelectual) com a imaginação (COUDRY, 2010), orientando a

atenção e seu foco em uma atitude interna e externa (VYGOTSKY, 1926, 2004) compatível com

aprender. Planejar pela linguagem organiza seu raciocínio intelectual porque requer uma

Page 120: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

108

sequência narrativa e uma finalização fazendo isso com autonomia, sem depender tanto do

adulto. Neste texto observamos que AM ainda tem preferência por nomes justapostos em que

fica garantido o sentido, mas fazem falta, ainda, algumas palavras de relação (de, da e que);

talvez, ainda, não as explicite na escrita porque não as usa sistematicamente em sua fala.

Dado 14. AM 13 anos abril de 2008

Figura 38. AM escreve a receita de brigadeiro

Neste dia conversamos sobre festas de aniversário e AM me contou que adora

brigadeiro, então perguntei se ela sabia fazer este doce. AM respondeu que sim e relatou com

precisão todos os ingredientes, ela me disse que já havia feito brigadeiro junto com sua irmã.

Perguntei se ela gostaria de escrever a receita. Mostrei outras receitas para AM, em revistas, e

expliquei à ela que era preciso deixar claro como fazemos a receita, o que é chamado modo de

fazer. AM então escreveu sem dificuldade, ajudei-a a encontrar uma palavra para explicar o

processo pelo qual o brigadeiro fica pronto: engrossar. Fica evidente, por meio da disposição

gráfica de sua produção, a caracterização do gênero receita. Pode-se observar que o desenho

da letra de AM está mais preciso, a disposição do texto como um todo está mais organizado, e

não podemos deixar de notar seu capricho.

Dado 15: AM, 13 anos, 15 de maio de 2008. AM reproduz a história A princesa e o sapo.

Page 121: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

109

O príncipe Sapo Era uma vez uma princesa que gostava

de brincar de bola de ouro. Um dia a bola caiu

dentro do poço o sapo chegou princesa começou

a chorar o sapo falou que pegava a bola se ela desse beijo

nele. O sapo pegou a bola. A princesa fugiu e o

sapo foi na casa dela contou para o pai dela a promessa.

O pai mandou a princesa cumprir a promessa. A princesa

levou o sapo para cama dela e beijou o sapo. O sapo

virou príncipe e ele casou para sempre feliz.

Figura 39. Re-estruturação da estória a princesa e o sapo.

Começamos a ler e contar nesta época histórias infantis e fábulas. Este dado produzido

em 2008 foi produzido a partir da leitura em voz alta, feita por AM, da história A princesa e o

sapo. Após a leitura falamos bastante sobre o enredo e o desenvolvimento da história para

depois AM escrevê-la. Ao escrever ela solicitou minha ajuda por várias vezes; percebi que por se

tratar de uma história com um enredo que não poderia ser mudado, ela precisou mais de mim

Page 122: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

110

para se manter no tema, e isso desencadeou uma atitude de atenção, dirigida a um foco de cada

vez, o que fez com que se lembrasse de detalhes importantes para compor um raciocínio

intelectual, compatível com as partes e sua relação com o todo da história. Tem-se a escrita

como um lugar privilegiado de um funcionamento articulado das funções corticais superiores.

Observei que quando estava na metade de sua produção AM logo quis terminá-la. Aí

conversamos novamente sobre a história e suas partes fazendo-a compreender que não poderia

omitir passagens importantes que caracterizam a história. AM retornou ao texto e com

dificuldade conseguiu concluí-lo.

Esta atividade trouxe desafios para AM que, desde o início do seguimento longitudinal,

mostra dificuldades em desdobrar seu texto sintaticamente, embora consiga fazê-lo algumas

vezes com todos os elementos necessários para a compreensão do outro. Percebo aqui mais

fortemente a necessidade de AM de um rascunho mental, Vygotsky (1983), que funciona com

um ensaio para a escrita de seu texto. Antes da escrita de AM repassamos a história, pela fala,

nessa atividade o mediador dá sustentação ao desdobramento do texto, não mais como nas

primeiras escritas, visto que agora AM apresenta um pouco mais de autonomia e faz

intervenções questionando e ou argumentando sobre detalhes do texto. AM escuta sua própria

fala e também a fala do outro, pede ajuda e se corrige, o que a faz ocupar a 3ª posição

elaborada por De Lemos (2002), ou seja, a posição de falante/ouvinte. Nesse processo se inclui

o papel de leitora/escrevente que ela passa a exercer. Destaca-se que AM já apresenta um

domínio da língua, mas precisa do outro para ajudá-la em processos mais refinados que incluem

organização e elaboração do texto, construções e explicitações próprias da escrita. Destaca-se o

uso de marcadores narrativos de histórias infantis - Era uma vez e felizes para sempre - para

abrir e fechar a reprodução da história. É interessante que AM, apesar de não usar a sílaba CCV

sistematicamente em sua fala, representou essa estrutura em todas as ocorrências na escrita, o

que é compatível com a posição de quem se escuta, escuta o outro e se corrige.

Dado 16. AM, 14 anos, outubro de 2008

Page 123: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

111

1/10/2008

Oi Marcia15

tudo bem?

Com você.

Eu fiquei muito triste porque eu sonho/

sonhei com você, eu fiquei nervosa quase passando

mal. No sonho eu e você brincamos

juntos de esconde esconde.eu senti dor no cora

ção porque acordei assustada e fiquei triste

porque lembrei de você

Figura 40. AM relata e escreve o sonhoa que teve com sua professora.

Antes de produzir esse texto, AM chegou e disse que estava triste porque havia sonhado

com sua antiga professora, de quem gostava muito. Tive a oportunidade de conversar com essa

15 Este nome é fictício.

Page 124: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

112

professora que, à época, me relatou que achava melhor AM se afastar dela, pois estava muito

apegada a ela e considerava que essa dependência não fazia bem para AM. Percebi que esse

fato deixou AM magoada porque sempre tocava nesse assunto comigo, em nossos encontros.

Especialmente nesse dia que AM me contou seu sonho, lhe propus escrever algo sobre isso e

ela disse que gostaria de escrever uma carta para sua professora. Podemos notar que embora

AM escreva ainda em alguns momentos sem considerar a convenção ortográfica (omissão de

letras; escrever uma letra por outra, deixar de marcar acento), e realize a omissão de

preposições que tornam as relações sintáticas menos específicas e questões de concordância e

dêixis, ela consegue produzir sozinha um texto (que pode ser mexido e ajustado) em que

transmite sentimento e saudade em relação à professora. As questões ortográficas, nesta fase,

são trabalhadas com AM na reescrita de seu texto logo depois que escreve. Seu desenho refere-

se ao local do sonho, um lugar tranquilo onde ela e a professora brincam de esconde–esconde.

O sujeito AM

AM apresentava no início desta pesquisa, uma fala bastante resumida, não sabia relatar

suas vivências e nem estava inserida em práticas de escrita. No decorrer da pesquisa, como foi

observado, nos dados, ela foi desdobrando sua fala, por meio da fala, leitura e escrita da

investigadora, sua interlocutora. AM aos poucos vai aprendendo a organizar melhor seu

pensamento. Este fato torna-se mais evidente quando AM começa a escrever, pois começa a

apresentar em sua escrita, elementos que não estavam presentes em sua fala como

preposições, artigos, e outros. Posteriormente estes elementos retornam à sua fala que se

apresentou ao final da pesquisa mais elaborada tanto na questão da sintaxe, quanto nas

estruturas silábicas mais complexas, ataque ramificado e coda, embora ainda se apresente

reduzida em alguns momentos. Demonstra também com isso uma preocupação com o

interlocutor que no início não existia.

Considero que as maiores reflexões e avanços de AM ocorreram na escrita, nos anos de

2006 e 2007, quando começa a apresentar maior autonomia se aventurando e escrevendo mais,

expandindo sua sintaxe e demonstrando suas hipóteses sobre a estrutura interna da sílaba. O

fato de AM apresentar um desenvolvimento maior a partir desses anos acredito estar relacionado

ao fato de que suas práticas mais efetivas com a linguagem iniciaram-se somente a partir de sua

entrada na clínica, ou seja, aos seis anos de idade. Desta forma, é compreensível que AM,

levasse mais tempo para internalizar esse conhecimento e utilizá-lo em suas situações

interacionais.

Page 125: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

113

CONCLUSÃO

Após todos estes anos acompanhando AM e ML, considero que os caminhos pelos

quais as duas percorreram não se diferenciam muito do caminho de outras crianças, no sentido

de sua progressão. A diferença reside mais no ritmo: as crianças com SD progridem mais

lentamente. Isso indica que a relação entre estados normais e patológicos, estados marcados

por alterações, orgânicas e/ou funcionais, em que a linguagem está envolvida, presentam

semelhanças e diferenças. Talvez mais semelhanças do que diferenças pressupondo um

movimento contínuo da barra normal/patológico que separa esses dois estados.

As diferenças marcantes apresentadas na fala das duas crianças, no início do

acompanhamento, não foram significativas para sua entrada na escrita. Os dados demonstram

que as diferenças de fala, leitura e escrita entre as crianças, que surgiram durante seu percurso

longitudinal, são muito mais originárias das diferenças da história de vida de cada uma do que

efeitos da SD. A história de vida de AM, a não ser pela irmã mais nova que é sua interlocutora

mais próxima, não lhe proporcionou - e nem tem proporcionado - situações dialógicas e

narrativas para que ela avance como falante, como qualquer criança e, assim, possa superar

suas dificuldades. A escola de AM, local onde ela deveria aprender conhecimentos científicos,

internalizar conceitos, generalizá-los e desenvolver raciocínio intelectual, no ano passado e

novamente neste ano, sugeriu à mãe que AM deveria voltar para a APAE, demonstrando com

isso não considerá-la como capaz de exercer seu papel de aprendiz, na escola regular, como

qualquer criança.

Diferentemente, a história de ML tem lhe favorecido de várias formas. Embora não tenha

irmãos, percebo que suas primas, tias e tios, lhe proporcionam um ambiente amoroso e

motivador para que ela avance em suas potencialidades. A escola também tem demonstrado

muito interesse no progresso de ML. Sou chamada com frequência à escola, a fim de

discutirmos propostas e atividades importantes, no que diz respeito à sua aprendizagem.

As diferenças orgânicas no sistema motor oral das duas crianças não foram

determinantes para indicar melhora ou piora em sua fala. Vimos que AM apresentava de início

uma condição motora muito superior à de ML. No entanto, usar essa condição motora para falar,

desde pequena, como se faz com outras crianças, ou seja, atribuindo sentido às suas produções

e falando com ela de forma que pudesse se aproximar da fala do outro, não foi realizado. A mãe

não recebeu essa orientação na fase inicial de seu desenvolvimento. Desta forma desfaz-se o

Page 126: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

114

mito de que a condição motora é determinante para o trabalho e atividade dessas crianças na

linguagem.

Por outro lado, ML que apresentou condições bastante desfavoráveis em seu sistema

motor oral, desde o início, mas recebeu todas as condições favoráveis para seu funcionamento,

como motivação para a fala, escuta do outro e a consideração de que tinha algo importante a

dizer, fez com que ela superasse suas dificuldades motoras iniciais. Desta forma, observamos

que não bastam as condições orgânicas propícias, é preciso o exercício com outros falantes, a

atribuição de sentido, ou seja, a linguagem em funcionamento em que se articulam os níveis de

análise linguística; além de outras funções motoras orais que compõem este aparelho, como:

respiração, mastigação e deglutição, atuando em concomitância, desde o início. Na ausência ou

insuficiência desse sistema funcional complexo em que atuam vários sistemas e subsistemas

para a realização de uma função complexa, emergem outras dificuldades que se transformam

em sintomas. Isso acaba por justificar os mitos que povoam a SD, determinando um conceito

cercado da ideologia sobre a deficiência mental, pressupondo que um conjunto de sintomas

passa a ser compreendido como decorrência natural da síndrome. Outro fato observado foi o de

que as diferenças no sistema motor oral de ML e AM não demarcaram vantagens ou

desvantagens na entrada dessas crianças na escrita. Descarta-se aqui o mito da fala como pré-

requisito para a escrita.

Com relação à entrada de ML e AM no mundo da escrita, considero que, apesar das

especificidades de cada uma, as duas demonstram avanço significativo e atribuo este fato à

mediação do adulto que lhes proporcionou, por meio de sua fala/leitura e escrita, condições de

visibilidade a algo que até então não tinha materialidade para elas e, consequentemente, não

lhes permitia sair do lugar. A partir desse movimento, novos caminhos são possíveis - e elas

avançam. A presença e o comprometimento do adulto nesse processo são fatores cruciais, pois

além de lhes possibilitar o aprendizado da fala, leitura e escrita, criando-lhes desafios para que

superem suas dificuldades, lhes transmitem segurança, porque seu ritmo próprio é respeitado. O

que sugere ser este o caminho que as escolas (professores, administradores) e profissionais

como fonoaudiólogos e psicopedagogos, deveriam trilhar na intervenção com as diferenças (em

qualquer nível) levando a materialização de fato do processo de inclusão social, principalmente

do individuo com SD.

Já que estas crianças apresentam outro ritmo e podem levar mais tempo para atingirem

os mesmos objetivos propostos para outras crianças, de uma forma geral, insisti na relação fala,

Page 127: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

115

leitura e escrita, mediada pela minha fala. Este proceder foi motivando-as para ler-escrever-falar;

falar-escrever-ler; escrever-ler-falar e outras combinações. Quando compreendemos que a

deficiência mental não tira das crianças as possibilidades de raciocínio, abstração,

generalização, senso critico e outras competências que lhes foram negadas durante tanto tempo,

somos levados a propor formas diferenciadas para a condução da terapia fonoaudiológica e para

a inserção da criança na escola regular; formas que considerem o funcionamento da linguagem

e sua relação com os demais processos psíquicos superiores. Isso possibilita explorar também a

rede subterrânea de processos internos na mente da criança, como chama a atenção Vygotsky,

a fim de que elas possam produzir processos alternativos de significação, ou seja, outros

arranjos possíveis em um determinado momento de seu aprendizado. Tais processos vão se

estabelecer na situação de interlocução, condição privilegiada nesta tese, na qual pudemos

observar atuar e garantir a produção de sentido, isto resultando na transformação de crisálidas

em borboletas. No início do trabalho não sabiam ler, nem escrever e, ao final, mostram, de forma

ousada e com elegância, certa autonomia, mas que ainda deve ser cuidada para que continuem

avançando.

No trabalho com essas crianças não é preciso ter um método diferente daquele usado

com crianças que não apresentam a condição da SD, mas é preciso uma visão diferenciada de

sujeito e de linguagem, pautada em uma concepção histórica de língua (fala, leitura e escrita) e

de seu funcionamento no exercício da linguagem. E, assim, vislumbra-se um vôo para as

borboletas, ML e AM.

Page 128: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

116

REFERÊNCIAS ABAURRE, Maria Bernadete M. Horizontes e limites de um programa de investigação em aquisição da escrita. In: LAMPRECHT, R. (Org.) Aquisição da linguagem: questões e análises. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. ABAURRE, Maria Bernadete M. Dados da escrita inicial: indícios de construção da hierarquia de constituintes silábicos? In: HERNANDORENA, C. L. M. (Org.). Aquisição da lingua materna e de lingua estrangeira: aspectos fonéticos e fonológicos. Pelotas: Educad/Alab, 2001. ABAURRE, Maria Bernadete M. Dados de aquisição de escrita: considerações a respeito de indícios, hipóteses e provas. PucRS: Enal, 2006. (texto não publicado). ABAURRE, Maria Bernadete M.; COUDRY, Maria Irma. H. A relação entre trocas lingüísticas de sujeitos afásicos e de crianças no processo de aquisição da língua escrita. Estudos da Língua(gem), v. 6, p. 45-58, 2008. AGAMBEN, G. Infância e história. Belo Horizonte: UGMG, 2008. AGAMBEN, G. O que é contemporâneo?: e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. ARMSTRONG, H.Techniques of feeding infants: the case for cup fedding. Research In Action, v. 8, não paginado, jun., 1998. BAHNIUK, Marcelle, E.; KOERICH Mirella S.; BASTOS,Juliana C. Processos fonológicos em criança com síndrome de Down. Distúrbios da Comunicação, 16 (1) 93-99, Abril, 2004. BARRÔCO, Sônia Mari Shima. A educação especial do novo homem soviético e a psicologia de L. S. Vigotski: implicações e contribuições para a psicologia e a educação atuais. Araraqura. 2007. 530 fls. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação - Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”. BENVENISTE, Emile. Problemas de linguistica geral I. Campinas: Pontes, 1988. BISOL, Leda (Org.). Introdução aos estudos de fonologia do português brasileiro. Porto Alegre: Edipocrs, 1999.

Page 129: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

117

BOOTH, Tony. Labels and their consequences. In: LANE, David; STRATFORD, Brian. Current approaches to Down’s syndrome. London: Holt, Rinehart and Winston, 1985. BORGHI, Robert W. Consonant phoneme, and distintive feature error patterns in speech. In VAN DIKE, D. C.; FANG, D.G; HEIDE, F.; VAN DEYNE, S.; SOUCK, M. J. Education clinical perspectives in the management of Down syndrome. Springer Verlag. New York,1990. CAMARGO, Evani Amaral Andreatta. Era uma vez ...o contar histórias em crianças com síndrome de Down. Campinas. 1994. 110 fls. Dissertação (Mestrado). Instituo de Estudo da Linguagem - Universidade Estadual de Campinas. CANGUILHEM, George. O normal e o patológico. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. CARNEIRO, Maria S. C. Adultos com ssíndrome de Down: a deficiência mental como produção social. Campinas: Papirus, 2008. CARVALHO, Gabriela Doroth. Amamentação e o sistema estomatognático. In: CARVALHO, M. R.;TAMEZ, R. N. Amamentação: bases científica para a prática profissional. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002. CARVALHO, Gabriela Doroth. Amamentação: prevenção primáriadas alterações morfofuncionais comuns da Síndrome do Respirador Bucal. In: CARVALHO, Gabriela Doroth. S. O.S. respirador bucal: uma visão funcional e clínica da amamentação. São Paulo: Lovise, 2003. Cap 13. CHAPMAN, R. S. Desenvolvimento da linguagem em crianças e adolescentes com SD. In: FLETCHER, P.; WHINNEY, B. M. Compêndio da linguagem da criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1977. COUDRY, Maria Irma Hadler; POSSENTI, Sirio. Avaliar discursos patológicos. Cadernos de Estudos Linguísticos, 5, 99-109, 1983. COUDRY, Maria Irma Hadler. Diário de Narciso: discurso e afasia. Campinas. 1986. 235fls. Tese (Doutorado). Instituto de Estudo da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas. COUDRY, Maria Irma Hadler. Diário de Narciso: discurso e afasia. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

Page 130: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

118

COUDRY, Maria Irma Hadler. "O que é dado em neurolinguística?". In: CASTRO, Maria Fausta C. Pereira de (Org.). O método e o dado no estudo da linguagem. Campinas: Unicamp, 1991/1996. p.179-194. COUDRY Maria Irma Hadler. Relatório do projeto integrado em neurolinguística: Avaliação e banco de dados. Projeto n 521773/95-4 Coordemado por Maria Irma Hadler Coudry, 2010. COUDRY, Maria Irma Hadler; FREIRE, Fernanda Maria Pereira. O trabalho do cérebro e da linguagem. Campinas: Cefiel/Iel/Unicamp - Brasília: Ministério da Educação, 2005. CUILLERET, M. Lês trissomoques parmi nous ou lês mongoliens ne sont plus. 2 ed. France: Simep, rue de Beuxelles. 1984. DE LEMOS, C. T. G.. Sobre aquisição de linguagem e seu dilema (pecado) original. Boletim da Abralin. 3. Recife: UFPE, 1982. DE LEMOS, C. T. G. A sintaxe no espelho. Cadernos de Estudos Lingüísticos, n.10, 5-15, 1986. DE LEMOS, C.T.G. Los procesos metafóricos y metonímicos como mecanismos de cambio. Substratum, vol. I,n. 1. 121 – 135, 1992. DE LEMOS, C. T. G. Processos metafóricos e metonímicos: seu estatuto descritivo e explicativo na aquisição da língua materna. The Trento Lectures and Workshop on Metaphor and Analogy - organizada pelo Instituo pera Ricerca Scientifica e Tecnologica Italiana em Povo, 1995. DE LEMOS, C.T.G. Native speaker´s intuitions and metalinguisticabilities: what dothey have in common from the point of view of language acquition. Cadernos de Estudos Lingüísticos, n. 33, 5-14, 1997. DE LEMOS, C. T. G. Em busca de uma alternativa à noção de desenvolvimento nainterpretação do processo de aquisição de linguagem. Relatório Científico apresentado ao CNPq, 1999. DE LEMOS, C. T. G. Sobre o estatuto lingüístico e discursivo da narrativa na fala da criança. Lingüística, São Paulo, v. 13, p. 23-60, 2001a. DE LEMOS, C. T. G. O que a fala da criança nos diz sobre a língua. IX Simpósio de Letras e Lingüística, 2001, Uberlândia. Resumos. IX Simpósio de Letras e Lingüística. Uberlândia: Universidade de Uberlândia, p. 20-21, 2001b.

Page 131: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

119

DE LEMOS, C. T. G. Sobre fragmentos e holófrases. III Colóquio do LEPSI, 2002, São Paulo. Psicanálise-Infância-Educação- Anais, do III Colóquio do LEPSI. São Paulo: USP, 2002. p. 45-52. DE LEMOS, M. T. G. A língua que me falta: uma análise dos estudos em aquisição de linguagem. Campinas: Mercado de Letras, 2002. DE LEMOS, C.T.G. Em busca de uma alternativa à noção de desenvolvimento na interpretação do processo de aquisição de linguagem. Relatório Científico apresentado ao CNPq, 1999. DE LEMOS, C.T.G. Sobre o estatuto lingüístico e discursivo da narrativa na fala da criança. Lingüística, v. 13, p. 23-60, 2001c. DE LEMOS, C. T. G. Uma crítica (radical) à noção de desenvolvimento na aquisição de linguagem. In: LIER-DE VITTO, M. F.; ARANTES, L. (Org.). Aquisição, patologias e clínica de linguagem. São Paulo: EDUC, 2006. v. 1, p. 21- 32. DOUGLAS, C. R. Tratado de fisiologia aplicada às ciências da saúde. São Paulo: Roca,1994. FOULCAULT, Michel. O anormais: curso no college de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2002. FOUCALT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no college de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Edições Loyola, 2004. FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1969 JAKOBSON, B. Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia: lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1975. 1956) FRANCHI, C. Linguagem – atividade constitutiva. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 22 p. 9-39, 1977/1992. FREITAS, Ana Paula de; MONTEIRO, Maria Ines Bacellar, Questóes textuais em adolescentes com síndrome de Down. Revista Brasileira de Educação Especial, v.1, n 3, p. 53-62, 1995. FREUD, S. A interpretação das afasias. Tradução de Ramón Alcalde. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1973. Texto original é de 1891.

Page 132: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

120

FREUD, S. Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Rio de Janeiro: Imago, 1901/1969. FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 1905/1969. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, e sinais; morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. Capitulo: Sinais: raízes de um paradigma indiciário GOMES, Cristiane Faccio. O aleitamento materno e a fonoaudiologia: tendências curriculares e opiniões de docentes e discentes. Marilia. 2002. Dissertação (Mestrado). Mestrado em Educação – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. GOMES, Cristiane Faccio. A avaliação eletromiógrafa dos músculos masseter, temporal e bucinadorde lactentes em situação de aleitamento natural e artificial. Botucuatu. 2005. Tese (Doutorado em Pediatria). Faculdade de Ciências Médicas - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 2003. GOULD, Stephen Jay. O polegar do panda: reflexões sobre a história natural. São Paulo: Martins Fontes, 2004. HORSTMEIER, D. A. But I don’t understand you: the communications interetions of yong and adults with Down .Syndrome: transition from adolescent to adulthood. Baltimore: Paul H.Brookes Publishing, 1987. JAKOBSON. J. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1956/1975. Capitulo: Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia KUEHL, J, Cup feedingthe newborn: what you should now? Journal of Perinatology and Neonatology Nursing, v 11, n. 2, p. 56-60, 1997. LAURETTO, F. H. B. Odontologia e síndrome de Down. Congresso Brasileiro e I Encontro Latino Americano sobre SD. Brasília, 1997. Anais, LANE, David; STRATFORD, Brian. Current approaches to Down’s syndrome. London: Holt, Rinehart and Winston, 1985. LEFEVRE, Beatriz, H. Mongolismo, orientação para a família compreender e estimular a criança deficiente. São Paulo: Artmed, 1988.

Page 133: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

121

LEVY, Ivone Panhoca. Para além da nau dos insensatos: considerações a partir de um caso de síndrome de Down. Campinas. 1988. Dissertação (Mestrado). Instituto de Estudos da Linguagem - Universidade Estadual de Campinas. LEVY, Ivone Panhoca. O que se fala e o que se diz na, e sobre a terapia (de linguagem) da criança com síndrome de Down. Cadernos de Estudos Lingüísticos, 16, p. 31-45 1989. LIMONGE, S. C. O. Linguagem na síndrome de Down. In: FERREIRA, L. P.; BEFI-LOPES, D. M. (Org). Tratado de fonoaudiologia. São Paulo: Editora Roca, 2004. cap.76. LURIA, Alexander Romanovich. El cérebro em acción. Barcelona: Fontanella, 1979. MEYERS, F. L. Using computers to teach children whith Downs syndrome spoken and written language skills. The Psicobiologyof Down syndrome, 1990. MONTEIRO, Maria Inês Bacellar. A dinâmica do diálogo de crianças portadoras de síndrome de Down. São Paulo. 1992. Tese (Doutorado), Instituto de Psicologia - Universidade de São Paulo. MILLER, Jon F. Language and comunication caracteristics of Down syndrome, In: PUESCHEL, S. M. New perspectives on Down syndrome. London: Paulh Brookes Publishing, 1987. OLLER, D. K. Descripition of infant vocalizations and young child speech: teoritical and pratical tolls. Seminars in Speech and Language, 13, 178 -193, 1995. OMOTE, Sadão. Perspectivas para a conceituação das deficiências. Revista Brasileira de Educação Especia, v. 2, n. 4, 127-135, 1996. PERRONI,Cecília M. Desenvolvimento do discurso narrativo. São Paulo: Martins Fontes, 1992. PEROTINO, Silvana. Sob a condição de não falar: a escrita de caso JM. Campinas. 2009. Tese (Doutorado). Instituto de Estudos da Linguagem - Universidade Estadual de Campinas. PESSOTI, Isaias. Deficiência mental: da superstição à ciência. São Paulo: T.A. Queiroz, 1984. PORTO, Eliza; PEREIRA, Tânia, MARGALL, Soraya, A. C. Análise da produção prticulatória e dos processos fonológicos realizados por criança portadoras da síndrome de Down. Pró Fono Revista de Atualização Científica, vol.12, n. 1, 2004.

Page 134: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

122

PUESCHEL, Siegfried (Org.). Sindrome de Down: guia para pais e educadores. Campinas: Papirus, 1983. RYNDERS, Perfomance characteristics of Down’s syndrome children receivingargumented of receptive verbal instruction. American Journal of Mental Deficiency, 84, 67-73,1979. SAMPAIO, N. F. S. Uma abordagem sociolinguistica da afasia: a centro de convivência de afásicos (Unicamp) como uma comunidade de cala em coco. Campinas. 2006. Tese (Doutorado em Lingüística). Instituto de Estudos da Linguagem - Universidade Estadual de Campinas. SELKIRK, Elisabeth O. The syllable. In: VAN DER HULST, H.; SMITH, N. (Org.). The struture of phonological representations (part II). Dordrecht: Foris, 1982. STAMPE, D. A dissertation on natural phonology. Chicago. 1973. Tese (Doutorado). Universidade de Chicago. EUA. STEFANINI, Silvia; CASELLI, Cristina M.; VOLTERRA, Virginia. Spoken and gestural prodction in a naming by young children whith Down syndrome. Brain and Language, 101, 2007/2008. SCHWARTZMAN, Salomão (Col.). Sindrome de Down. São Paulo: Memnon/Mackenzie, 1999. STRATFORD, Brian. Crescendo com a síndrome de Down. Brasilia: Corde,1997 STRATFORD, Brian. Down’s syndrome: past, present and future na understanding and positive guide for families, friends and professionals. London: Penguin Books, 1989. TRISTÃO, Maria R.; FEITOSA Maria A. G. Percepção da fala em bebês no primeiro ano de vida. Estudos de Psicologia, (3) 459 – 467, 2003. VYGOTSKY, Lev Semiónovic. Obras escogidas: fundamentos de defectología. Madrid: Visor, várias datas/1997. VYGOTSKY, Lev Semiónovic. A construção do pensamento e da linguagem na criança. São Paulo: Martins Fontes, 2001. VYGOTSKY, Lev Semiónovic. Formação social da mente. São Paulo: Matins Fontes, 1932- 1933/1983.

Page 135: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

123

VYGOTSKY, Lev Semiónovic. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 1926 - 2004. YAVAS, M.; HERNANDORENA, C. L.; M., LAMPRECHT, R. R. L. Avaliação fonológica da criança, reeducação e terapia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992

Page 136: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

124

ANEXOS Anexo A. Documentos Éticos

Page 137: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

125

Page 138: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

127

Page 139: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

129

Page 140: FOLHA DE APROVAÇÃO - Unicamprepositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269136/1/... · pela riqueza dos detalhes em suas observações e correções, no exame de qualificação e

130