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14 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22 Formação de professores na perspectiva do Movimento dos Professores Indígenas da Amazônia Lucíola Inês Pessoa Cavalcante Universidade Federal do Amazonas, Faculdade de Educação Introdução A escola foi o principal instrumento de destruição cultural dos povos, mas também pode ser o principal ins- trumento de reconstrução e afirmação de uma nova era. [...] O caminho da educação escolar indígena é a nossa grande esperança de conquista definitiva dos nossos direi- tos e da nossa terra. Gersem dos Santos Luciano 1 O depoimento acima expressa a necessidade da valorização de professores indígenas, desde que se realize de acordo com a ótica, os interesses e as ne- cessidades do próprio movimento indígena, tendo como referencial a autonomia indígena, no marco das discussões realizadas pelo Movimento dos Pro- fessores Indígenas da Amazônia e seus esforços de construir uma política indígena para a educação es- colar. Trata-se de um tema novo na história da educa- ção brasileira, reconhecido na Constituição Federal de 1988. As iniciativas no sentido de consolidar pro- postas de educação escolar entre os povos indígenas também são recentes e colocam-se como parte de seus projetos para o futuro. Como se sabe, historicamente os programas de escolarização nas áreas indígenas fo- ram fundados segundo a idéia de que é necessário “fa- zer a educação do índio”. Hoje, a escola entra em cena como uma necessidade pós-contato, assumida pelos índios, mesmo com todos os riscos, incertezas, difi- culdades e resultados contraditórios ocorridos ao lon- go da história. A trajetória dos povos indígenas no Brasil, nos últimos 500 anos, tem mostrado não só a existência de formas próprias de educação, ou seja, de sistemas indígenas de educação, como também a sua eficácia e força criativa na dinâmica do contato com os “ou- tros”, balizando os processos de resistência, perma- nência e/ou mudanças culturais. 1 Gersem dos Santos Luciano é professor indígena, do povo Baniwa. O depoimento consta no Informativo da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), São Gabriel da Cachoeira, AM, 1996.

Formação de Professores Na Perspectiva Do Movimento Dos Professores Indígenas Da Amazônia

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Formação de Professores Na Perspectiva Do Movimento Dos Professores Indígenas

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  • Lucola Ins Pessoa Cavalcante

    14 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 N 22

    Formao de professores na perspectivado Movimento dos Professores Indgenasda Amaznia

    Lucola Ins Pessoa CavalcanteUniversidade Federal do Amazonas, Faculdade de Educao

    Introduo

    A escola foi o principal instrumento de destruiocultural dos povos, mas tambm pode ser o principal ins-

    trumento de reconstruo e afirmao de uma nova era.[...] O caminho da educao escolar indgena a nossagrande esperana de conquista definitiva dos nossos direi-tos e da nossa terra.

    Gersem dos Santos Luciano1

    O depoimento acima expressa a necessidade davalorizao de professores indgenas, desde que serealize de acordo com a tica, os interesses e as ne-cessidades do prprio movimento indgena, tendocomo referencial a autonomia indgena, no marcodas discusses realizadas pelo Movimento dos Pro-

    fessores Indgenas da Amaznia e seus esforos deconstruir uma poltica indgena para a educao es-colar.

    Trata-se de um tema novo na histria da educa-o brasileira, reconhecido na Constituio Federalde 1988. As iniciativas no sentido de consolidar pro-postas de educao escolar entre os povos indgenastambm so recentes e colocam-se como parte de seusprojetos para o futuro. Como se sabe, historicamenteos programas de escolarizao nas reas indgenas fo-ram fundados segundo a idia de que necessrio fa-zer a educao do ndio. Hoje, a escola entra em cenacomo uma necessidade ps-contato, assumida pelosndios, mesmo com todos os riscos, incertezas, difi-culdades e resultados contraditrios ocorridos ao lon-go da histria.

    A trajetria dos povos indgenas no Brasil, nosltimos 500 anos, tem mostrado no s a existnciade formas prprias de educao, ou seja, de sistemasindgenas de educao, como tambm a sua eficciae fora criativa na dinmica do contato com os ou-tros, balizando os processos de resistncia, perma-nncia e/ou mudanas culturais.

    1 Gersem dos Santos Luciano professor indgena, do povo

    Baniwa. O depoimento consta no Informativo da Federao dasOrganizaes Indgenas do Rio Negro (FOIRN), So Gabriel daCachoeira, AM, 1996.

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    Esses modos prprios de educar constituem va-lor fundamental e devem tambm orientar o trabalhonas escolas. Assim, concebe-se a escola no comolugar nico de aprendizado, mas como um novo es-pao e tempo educativo que deve integrar-se ao siste-ma mais amplo de educao de cada povo. Para umamudana no entendimento e nas posturas inicialmen-te adotadas quanto aos projetos de escolarizao im-postos aos ndios, extremamente importante reco-nhecer que os povos indgenas mantm vivas as suasformas prprias de educao, que podem contribuirpara a proposio de uma poltica e uma prtica edu-cacionais adequadas, capazes de atender tambm aosanseios, aos interesses e s necessidades da realida-de, hoje. Percebe-se, na anlise dos relatrios doMovimento dos Professores Indgenas da Amaznia,quo grande a vontade que esses educadores ind-genas demonstram em fazer de suas escolas e de seusatos educacionais processos formadores que expres-sem a afirmao de suas culturas, bem como emdiscernir, em cada momento histrico, o porqu e opara qu de suas aes pedaggicas. Esse um enor-me desafio que tem um sentido especial na regioAmaznica, visto que nessa regio localiza-se 60%da populao indgena do Brasil.

    A Amaznia, com sua diversidade e desigualdade de

    vida, de ordens, ciclos, espaos, culturas e contradies,

    pode configurar-se como uma regio do mundo onde v-

    rios caminhos foram abertos pelas foras histricas. (Silva,2001, p. 14)

    Um exemplo claro disso a fora do Movimen-to dos Professores Indgenas da Amaznia, atualmentedenominado Conselho dos Professores Indgenas daAmaznia (COPIAM), e sua luta constante para aconstruo e reafirmao da identidade cultural ind-gena. Como Silva (2001) acentua,

    possvel dizer que os ndios da Amaznia foram os pri-

    meiros, entre os segmentos sociais oprimidos, que se de-

    ram conta de que a cidadania formal no era suficiente para

    assegurar sua sobrevivncia fsica e cultural. (p. 17)

    Com base nessa tomada de conscincia, os ind-genas pensaram em um caminho e um local para dis-cutir a valorizao de suas vidas, nos seus mltiplosaspectos: culturais, educacionais, sociais e polticos.O COPIAM e a escola indgena representam, portan-to, uma grande fronteira de dilogo entre a aldeia e omundo, constituda de riscos, sacrifcios e desafios.Riscos de carem nas armadilhas da to criticadaescola formal; sacrifcios e desafios para que essa es-cola indgena se torne um grande espao de formaoe reflexo para a sociedade.

    Nessa perspectiva, torna-se imperiosa a temticada formao do professor. Como nos adverte Candau(1996), qualquer possibilidade de xito do processoque se pretenda mobilizar tem no professor em exer-ccio seu principal agente (p. 140).

    Com o interesse e as preocupaes voltados parao processo de formao de professores, ao tomarmosconhecimento do significado desse movimento orga-nizado dos professores indgenas, com assembliasrealizadas anualmente, dispus-me a investigar, atra-vs da leitura e anlise dos relatrios dos 13 encon-tros anuais,2 as diferentes concepes de formaoexplicitadas pelos participantes desse movimento,assim como os princpios elaborados, coletivamente,ao longo de sua trajetria histrica.3

    As seguintes questes serviram-me como nor-teadoras: a escola, um dos principais instrumentos usa-dos durante a histria do contato para descaracterizare destruir as culturas indgenas, pode vir a ser hojeum instrumental decisivo na reconstruo e afirma-o das identidades sociais, polticas e culturais? Pres-supondo-se essa possibilidade, qual o papel dos no-vos agentes poltico-culturais que surgem nessa novasituao educativa: os professores indgenas? Quaisso os saberes necessrios a essa nova prtica peda-

    2 O 14o no foi includo por ter ocorrido no final de feverei-

    ro. Foi o segundo realizado como COPIAM.3 Para isso, contamos com a colaborao de uma aluna do

    curso de pedagogia, Rita Floramar dos Santos Melo, bolsista deiniciao cientfica do CNPq.

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    ggica? Onde e como adquiri-los? Como e por quemso formados os educadores indgenas?

    Educao e escolarizao indgena

    Aproximo-me da temtica dialogando com Sena(1997); Paula (2000); Meli (2000); DAngelis (1999,2000); Teixeira (1997); Lima e Lima (2000) eTassinari (2001).

    Sena (1997) relata sua experincia na formaode professores indgenas no projeto Uma experin-cia de autoria dos ndios do Acre. Segundo a autora,a formao indgena constituda com base em doiscampos principais. O primeiro tem um suporte maismarcado nos valores, na identidade e no prprio con-vvio com a natureza. Os professores indgenas, as-sim como seus parentes, so os principais respon-sveis por essa parte da formao, que envolve asrelaes sociais no cotidiano da aldeia. No segundocampo, a formao ocorre por meio de um ensino querequer uma mediao mais verbal, isto , um desen-volvimento de competncias que esto ligadas ao le-tramento. Essas competncias, por sua vez, ampliamcapacidades tanto cognitivas como lingsticas e doacesso e domnio a novos tipos de saberes, impres-cindveis na situao de contato com o no-ndio.

    Paula (2000) auxiliou-nos na compreenso dainterculturalidade, questo complexa e desafiadora prtica docente. Em seu artigo, destaca a intercultu-ralidade como categoria constitutiva de uma escolaindgena. Contrastando com a concepo colonialistae etnocntrica que persiste nos dias de hoje, mostraalguns caminhos e possibilidades que consideram aautonomia dos povos indgenas na conduo de seusprprios projetos educacionais. Para uma melhorapreenso da temtica, a autora descreve a intercul-turalidade no cotidiano da escola indgena Tapirap,onde o currculo, as metodologias e os recursos did-ticos aplicados so todos voltados para a realidadeespecfica do lugar.

    Meli (2000), em seu trabalho Educao indge-na na escola, parte do pressuposto de que no h umproblema da educao indgena, pelo contrrio, o que

    existe uma soluo indgena ao problema da educa-o. Nesse sentido, afirma que

    a educao indgena no a mo estendida espera de uma

    esmola. a mo cheia que oferece s nossas sociedades umaalteridade e uma diferena, que ns j perdemos. (p. 16)

    Se em parte concordamos com essa afirmao,reconhecemos, entretanto, o muito que se tem a ca-minhar nessa direo, enfrentando relaes de poderextremamente desiguais.

    DAngelis (2000), por sua vez, aponta para o de-safio de se conquistar uma escola indgena e, enfati-camente, pondera:

    sempre me espanta o simplismo com que so tratadas ques-

    tes fundamentais em educao escolar indgena. Lamen-

    tvel o imprio do senso comum. E, como seria de espe-

    rar, o senso comum de uns legitima o senso comum dos

    outros. (p. 19)

    Infelizmente, isso pode ser visto nos prprios cur-sos de formao de professores, onde, no raro, obser-va-se inadequada transposio de modelos.

    DAngelis (1999) afirma, ainda, que somente umprojeto poltico transformador levar autonomia dassociedades indgenas, revelando-se, portanto, o maiseficaz para ser aplicado nas suas escolas. Esclarecetambm que esse projeto deve manifestar, acima detudo, conscincia poltica, com a busca de conhecercomo funciona e como se distribuem as relaes depoder na sociedade majoritria (p. 9).

    Ponderando sobre os limites e as possibilidadesda escola indgena, Teixeira (1997) ressalta ser esseespao eivado de conflitos e contradies, tanto lin-gsticos quanto interculturais. Assim, afigura-se maisapropriado falar de escolas indgenas, uma vez querepresentam realidades diferenciadas e culturalmen-te diversas.

    A especificidade da escola indgena destacadapor Lima e Lima (2000) ao descreverem suas expe-rincias de pesquisas com ndios da regio de Roraima,especialmente com o magistrio indgena. Destacam o

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    quo importante se faz uma escolarizao indgena di-ferenciada, que tenha como prioridade a permannciados alunos em suas aldeias, em suas comunidades.

    Tassinari (2001, p. 50), por seu turno, define asescolas indgenas como

    espaos de fronteiras, entendidos como espaos de trnsi-

    to, articulao e troca de conhecimentos, assim como espa-

    os de incompreenses e de redefinies identitrias dos

    grupos envolvidos nesse processo, ndios e no-ndios.

    Construdas em meio a inmeras contradies,as chamadas escolas indgenas enfrentam o desafiode descobrirem caminhos prprios, desafio este quese agrava por terem como modelo uma instituioque lhes estranha, que no faz parte de sua tradio.

    Percebe-se, ento, o quanto se faz necessria aluta pela educao escolar indgena, mas, ao mesmotempo, o muito que se tem a aprender nesse processo.O que no se pode perder a clareza da necessidadedo compromisso com uma escolarizao que contri-bua para uma maior autonomia desses povos.

    O que nos dizem os relatrios

    Considerando o objetivo proposto e as questesque nortearam essa pesquisa, pode-se afirmar que o Mo-vimento dos Professores Indgenas da Amaznia atualCOPIAM , nos seus 13 anos de luta, firma-se comoum espao eminentemente formador e autoformador.

    Tal afirmao corroborada pelos contedosanalisados nos relatrios e por informaes coletadascom alguns professores indgenas, a exemplo do pro-fessor Bosco, da etnia Tukano, que diz:

    O movimento em si tem um papel muito importante

    na formao, na nossa conscientizao. Tem o objetivo deconquistar os direitos dos indgenas, principalmente no cam-

    po da educao. Nossa escola o caminho para isso.

    Faz-se oportuno, portanto, abrir aqui um parn-teses, no qual se possa descrever, de maneira breve, ohistrico desse movimento.

    Os encontros tiveram incio a partir do momen-to em que alguns professores indgenas, da etniaTikuna, decidiram reunir-se e reivindicar o direitode serem professores indgenas e serem, portanto,reconhecidos como tal. Antes disso, eram identifi-cados como professores rurais, recaindo sobre elestoda uma viso etnocntrica que orientava a ativida-de de docncia que realizavam no interior de suascomunidades, no levando em conta suas identida-des culturais e cosmovises. Perante isso, buscaramapoio e assessoria de alguns rgos e pessoas sim-patizantes da causa indgena (ONGs, ConselhoIndigenista Missionrio CIMI, universidades, pro-fessores universitrios, entre outros). Ento, no anode 1988, aconteceu o 1 Encontro de Professores In-dgenas da Amaznia, do qual participaram 41 pro-fessores indgenas, de 14 povos de Roraima e doAmazonas. A partir do terceiro encontro, o movi-mento passou a ser denominado Comisso dos Pro-fessores Indgenas do Amazonas e Roraima (CO-PIAR). Em outubro de 1992, professores do estadodo Acre tambm se incorporaram ao movimento.Hoje, esse movimento se consolida no COPIAM ese reconhece como entidade autnoma, independen-te, sem vnculos polticos e religiosos e sem fins lu-crativos, representando o conjunto de profissionaisindgenas da Amaznia que atuam na educao e emtodos os nveis e modalidades de ensino (Estatutodo COPIAM, Art. 1).

    O contedo dos relatrios analisados ser aquielencado de forma sintetizada e em ordem cronolgica:

    O 1 Encontro, realizado em Manaus, em 1988,reuniu representantes dos seguintes povos: Baniwa,Desano, Kambeba, Kichwa, Kokama, Macuxi,Marubo, Mayoruna, Munduruku, Pira-Tapuia, Satar-Maw, Tikuna, Tukano e Wapixana. Alm da asses-soria do CIMI, contou tambm com dois assessoresda Universidade do Amazonas. Os participantes ini-ciaram as reflexes partindo da pergunta: Como seaprende a viver?. Em meio a relatos de como se edu-ca na comunidade e a discusses sobre a escola e seusobjetivos, observa-se a preocupao pelo direito ter-ra, lngua materna e ao reconhecimento tnico-cul-

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    tural. O professor indgena deve, pois, ser o porta-voz de tais reivindicaes.

    Nesse contexto, comea a reivindicao por umaescola especfica, com a inteno de que ela seja biln-ge, conscientizadora, voltada para a cultura de cadapovo e defensora dos direitos indgenas. Da o reco-nhecimento, por parte dos indgenas, da necessidadede terem uma escola que, sem perder sua especificida-de, incorpore conhecimentos da sociedade envolvida.

    Os indgenas enfatizam, ainda, a necessidade dematerial didtico prprio e, mais do que isso, o quedesde ento j se apresenta para eles como um desa-fio, um currculo diferenciado.

    Diferenciado tambm o nvel de organizao ede tomada de conscincia de cada povo, em seus pro-cessos de afirmao cultural, bem como de concreti-zao de uma escola que corresponda aos seus inte-resses e necessidades. Nesse sentido, a troca deexperincias que acontece em encontros dessa natu-reza por todos reconhecida como um valor.

    Em suma, o encontro procurou discutir as formasoriginais de educao de cada um dos povos l repre-sentados e a necessidade de fazer da instituio esco-lar uma instncia de contato com a sociedade nacional.Nele, os ndios reafirmaram, no processo de formao,a valorizao da reflexo de suas aes pedaggicas.

    Ao 2 Encontro, em 1989, compareceram repre-sentantes dos povos Baniwa, Desano, Kambeba,Kokama, Makuxi, Manchinery, Mayoruna, Sater-Maw, Tariano, Tikuna, Tukano e Wapixana. Ele con-tou com a presena de trs assessores do CIMI, umda UNICAMP e um da USP, e teve como objetivo acontinuidade da troca de experincias e conhecimen-tos entre os professores indgenas, a discusso do quecada grupo estava fazendo para conseguir uma esco-la adequada e, ainda, as dificuldades que os professo-res estavam encontrando nesse processo.

    O reconhecimento oficial das escolas indgenasfoi insistentemente reclamado. Reflexes foram fei-tas, tambm, no que tange s dificuldades no estabe-lecimento de relaes mais diretas com a sociedadeenvolvida, sobretudo com os rgos governamentais.

    Surgiram ainda questionamentos acerca das ati-

    tudes tomadas pelos professores para a valorizao erevitalizao de suas culturas. A complexa diversida-de lingstica foi tambm abordada.

    No 3 Encontro, realizado em 1990, estiverampresentes representantes das seguintes etnias: Baniwa,Bar, Kambeba, Kokama, Makuxi, Marubo, Mayoruna,Pira-Tapuia, Sater-Maw, Tikuna, Tukano, Wapixanae Yanomami. O CIMI, a Universidade do Amazonas,a UNICAMP e a USP prestaram assessoria. Houve oencaminhamento de uma discusso especfica sobrea elaborao de um currculo diferenciado para as es-colas indgenas, bem como a avaliao sobre os bene-fcios ocorridos desde as primeiras assemblias e sobreo cotidiano dos professores em suas comunidades.

    Ressalta-se aqui a crescente importncia atribu-da pelos indgenas ao fato de estarem articulados en-tre si e ao peso sobre seus ombros nas situaes emque se sentiam desrespeitados: Eu participei do 1Encontro, mas no do segundo, porque a diretora nodeixou. A gente vem aqui, discute, e na volta a gente visto como atrevido (professor Baniwa). Come-am a se dar conta de que a atitude poltica em defesade uma escola indgena incomoda.

    O 4 Encontro, ocorrido em 1991, contou com re-presentantes dos povos Baniwa, Bar, Kambeba,Kokama, Makuxi, Marubo, Mayoruna, Miranha,Mura, Pira-Tapuia, Tar-Maw, Tariano, Taurepang,Tikuna, Tukano, Wapixana e Yanomami e com a as-sessoria do CIMI, da UNICAMP e da USP. O encon-tro enfocou os contedos mnimos exigidos pelo Mi-nistrio da Educao, que tm que constar noscurrculos das escolas indgenas; realizou trabalhos emgrupo sobre temas geradores e sobre legislao e pro-curou fazer uma avaliao do movimento. Reconhe-ceu, ainda, a necessidade de efetivar, em vrios nveis,as articulaes entre professores e organizaes ind-genas. Um dos momentos mais significativos foi a dis-cusso e aprovao de uma Declarao de princpiossobre a educao escolar indgena, de carterarticulador e reivindicatrio, que se tornou, desde essaocasio, o principal documento do movimento.

    Sobressaiu, na discusso, o posicionamento deque as escolas, para serem realmente indgenas, de-

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    vem ensinar elementos das prprias culturas e maisos conhecimentos da sociedade envolvida. Foi tam-bm defendido o reconhecimento oficial dessas esco-las. Tal anseio est ligado luta pela construo daidentidade da escola indgena. Esse encontro possibi-litou, ainda, um expressivo exerccio de intercultura-lidade, estabelecendo-se fecunda troca de saberes entreos diferentes povos indgenas ali presentes. Veemen-te foi o apelo para que os ndios sejam ouvidos e pos-sam falar sem intermedirios.

    Diferente dos anteriores, em 1992, o 5 Encon-tro ocorreu em Boa Vista (RR) e teve como cenrio aampliao do conhecimento sobre currculo e comoele deveria ser construdo em cada comunidade. No-vamente discutiu-se a metodologia do tema gerador,foi enfocada a questo do regimento da escola e de-batida a legislao poltico-governamental. A preo-cupao com a maior articulao dos movimentos deprofessores indgenas foi tambm alvo de discussese propostas de ao. Estiveram presentes represen-tantes dos seguintes povos: Baniwa, Kambeba,Kaxinawa, Kokama, Makuxi, Marubo, Mayoruna,Munduruku, Mura, Sater-Maw, Taurepang, Tikuna,Tukano, Wapixana e Yanomami. Como assessores,participaram representantes do CIMI, da UNICAMPe da USP.

    O 6 Encontro tambm foi realizado em Boa Vis-ta (RR), em 1993, e contou com a mesma assessoriado anterior. Participaram povos das etnias Baniwa,Kambeba, Kampa, Kaxinawa, Kokama, Makuxi,Mayoruna, Miranha, Mura, Pira-Tapuia, Sater-Maw,Shanenawa,Taurepamg, Tikuma, Tukano, Wapixana eYanomami. Todo o trabalho em torno desse encontropartiu do tema Culturas diversificadas, provocandoa discusso de questes importantes para a educaonas escolas indgenas, com destaque para a histria e acultura dos diversos povos presentes. Cada grupo es-colheu um assunto para a discusso de como vivem e oque fazem. Assim, surgiram vrios subtemas: organi-zao social e poltica, rituais, educao tradicional,trabalho, economia e produo.

    No 7 Encontro, em 1994, que voltou a ser reali-zado em Manaus, a participao foi ainda mais ex-pressiva. Estiveram presentes representantes dos po-

    vos Apurin, Baniwa, Bar, Guarani, Jaminawa,Kampa, Kaxinawa, Kokama, Makuxi, Manchineri,Mayoruna, Miranha, Munduruku, Mura, Pira-Tapuia,Sater-Maw, Shanenawa, Tariano, Tikuna, Tukanoe Yanomami. A assessoria permaneceu com o CIMI,a UNICAMP e a USP. Nele, foi destacada, como for-ma de valorizao cultural, a manipulao da medici-na tradicional dos povos indgenas. Foram tambmfeitos alguns questionamentos sobre os problemas queocorriam nas vrias escolas e houve troca de infor-maes sobre o currculo e o regimento que as comu-nidades adotaram.

    Com participao crescente e tendo a assessoriadas mesmas entidades, o 8 Encontro, ocorrido nova-mente em Boa Vista (RR), em 1995, teve a participa-o de representantes das seguintes etnias: Baniwa,Bar, Desano, Djahi, Jaminawa, Kaxinawa,Kambeba, Kokama, Makuxi, Mayoruna, Miranha,Munduruku, Mura, Pira-Tapuia, Parintintin, Sater-Maw, Shanenawa, Tariano, Taurepang, Tikuna,Tukano, Wai-Wai, Wanano, Wapixana e Yanomami.Nesse evento foi lanado um cartaz com a Declara-o de princpios elaborada pelos professores indge-nas em 1991, fruto de vrios anos de discusso e pr-tica desses agentes educacionais.4

    Alm da afirmao de princpios, temos na men-cionada declarao a expresso de anseios e reivindi-caes em relao escola indgena que se pretende:especfica e diferenciada.

    Cabe aqui reforar que o processo de formaodos professores indgenas deve se pautar nessa Decla-rao de princpios. Assim, as questes educacionaisdevem acentuar o reconhecimento dos direitos funda-mentais de cada etnia, enquanto grupo diferenciado.Os professores indgenas tm de ser pesquisadores desuas culturas, alfabetizadores em suas lnguas mater-nas, autores e redatores de seus escritos, baseados natransmisso do saber coletivo e na construo, tam-bm coletiva, de novos saberes, de novas prticas.

    4 No 7 Encontro, 1994, a Declarao de princpios, com-

    posta de 15 pontos, foi alvo de profunda avaliao do movimento,

    tendo sido reafirmada, com pequenas alteraes.

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    O 9 Encontro foi realizado em So Gabriel daCachoeira (AM), em 1996, e contou com representan-tes dos seguintes povos: Arapao, Baniwa, Bar,Desano, Kambeba, Kokama, Makuxi, Mayoruna, Mi-ranha, Munduruku, Mura, Parintintin, Pira-Tapuia,Sater-Maw, Tariano, Taurepang, Tenharim, Tikuna,Tor, Tukano, Wanano, Wapixana e Yanomami. A as-sessoria esteve por conta do CIMI, da UNICAMP, daUSP, da Operao Amaznia Nativa (OPAN) e da Uni-versidade Federal do Amazonas. Esse encontro tevecomo tema: Escolas indgenas e projetos de futuro.Mais uma vez questionada a construo da escolaindgena que, para eles, ainda est no incio do seu pro-cesso de amadurecimento. Refora-se a perspectiva deautoria e autogesto indgena nesse processo, como me-canismo de garantir a efetivao de escolas realmenteindgenas, no sentido de estarem a servio de projetosde futuro, ou, como disse um professor Wapixana: Es-colas indgenas, com cara e corpo indgena.

    No 10 Encontro, ocorrido em Manaus, em 1997,32 povos se fizeram representar: Arapao, Baniwa,Bar, Djahi, Guarani, Jaminawa, Kanamari, Kambeba,Karipuna, Kaxinawa, Kokama, Kulina, Makuxi,Manchineri, Marubo, Mayoruna, Miranha, Munduruku,Mura, Parintintin, Pira-Tapuia, Sater-Maw,Shanenawa, Taurepang, Tenharim, Tikuna, Tor,Tukano, Waimiri-Atroari, Wanano, Wapixana eYanomami. A assessoria foi prestada por CIMI, USP eOPAN. Efetivou-se uma avaliao profunda dos avan-os alcanados e dos problemas e dificuldades que per-maneceram nessas diversas assemblias.

    Dentre os avanos, destacam-se: o conhecimentomtuo das diferentes culturas; a ampla discusso sobrecurrculos e regimentos prprios; a valorizao dasculturas; a criao de organizaes locais de professo-res; o trabalho articulado e a participao das escolasem outras lutas, como a da terra e da sade; a gestodas escolas diretores indgenas indicados pelas pr-prias comunidades; a Declarao de princpios; a re-presentao do movimento no comit do MEC.

    Os problemas registrados foram: professores no-falantes da lngua indgena; invaso e no-demarcaode terras; perseguio poltica aos professores, influn-cia poltico-partidria; resistncia dos alunos e de al-

    gumas comunidades com relao ao ensino das ln-guas indgenas; sada dos jovens para as periferiasdas cidades; currculos e regimentos sem reconheci-mento e aprovao oficial; falta de recursos para arti-cular o movimento.

    O 11 Encontro, ocorrido em Manaus, em 1998,teve a participao de representantes de 27 povos:Apurin, Baniwa, Bar, Ingaric, Jahi, Kambeba,Kampa, Katukina, Kaxinaw, Kokama, Macuxi,Manchineri, Mayoruna, Munduruku, Mura, Parintin-tin, Sater-Maw, Shanenaw, Tariano, Taurepang,Tenharim, Tikuna, Tor, Tukano, Wanano, Wapixanae Yanomami. Como assessores, participaram represen-tantes de: Associao de Leitura do Brasil (ALB),UNICAMP, FUNAI, OPAN, Universidade Federal doAmazonas, CIMI e USP. Foram descritas as expectati-vas dos ndios quanto : formao de lideranas quepossam administrar sua organizao e no deix-laentrar em decadncia; formao de professores para omagistrio; formao e qualificao dos professores noque se refere educao diferenciada, para que osmesmos se conscientizem do que ser ndio; forma-o para mulheres na rea de artesanato e culinria;formao e qualificao de agentes de sade no desen-volvimento da medicina tradicional; formao de pes-soas com capacidade de criar e recriar, e no apenas decopiar; formao especfica de professor indgena.

    Observa-se aqui a preocupao com uma forma-o reflexiva, crtica e criativa. Configura-se, pois,esse processo de formao como poltica de valoriza-o do desenvolvimento pessoal-profissional dos pro-fessores, uma vez que pressupe condies de traba-lho propiciadoras de formao contnua.

    O 12 Encontro foi realizado em Manaus, em1999, com a presena de representantes dos povosApurin, Arapao, Baniwa, Bar, Dessano, Diahoy,Ingaric, Kanamari, Kambeba, Karapan, Karitiana,Kaxinawa, Kokama, Macuxi, Manchineri, Mayoruna,Miranha, Miriti-Tapuwa, Munduruku, Mura, Palmari,Parintintin, Piratapuia, Sater-Maw, Shanenawa,Tariano, Taurepang, Tenharin, Tikuna, Tor, Tukano,Tuyuka, Wai-Wai, Wapixana, Yanomami e Yekwana.A assessoria foi prestada por representantes do CIMI,do Conselho Estadual de Educao Escolar Indgena

  • Formao de professores na perspectiva do Movimento dos Professores Indgenas da Amaznia

    Revista Brasileira de Educao 21

    do Amazonas e pelo Secretrio de Educao do Mu-nicpio de So Gabriel da Cachoeira (Gersem dosSantos Luciano, da etnia Baniwa). Foi trabalhado otema Educao indgena: a resistncia de 500 anos.Cada grupo tnico presente posicionou-se a respeitoda temtica em questo, ficando patente que reivindi-caes como direito terra, autonomia e valorizaocultural no podem desvincular-se dessa construode escola diferenciada, voltada a cada realidade es-pecfica, com sua diversidade cultural.

    Em 2000, aconteceu em Manaus a 1 AssembliaGeral do COPIAM. Essa assemblia constituiu ummarco na trajetria dos professores indgenas, pois apassagem de comisso para conselho representou maisum passo no fortalecimento e ampliao da luta dessesprofessores. V-se nos objetivos do conselho os an-seios e a determinao dos professores indgenas nosentido de construir uma educao escolar indgenaespecfica e diferenciada, bem como de fortalecer suaorganizao, no intuito de torn-la uma grande forade articulao entre os ndios e a sociedade envolvida.

    Conhecendo o histrico do movimento e o con-tedo dos relatrios analisados nessa pesquisa, emer-giram algumas idias centrais acerca da escola que osprofessores indgenas defendem e da escola que elesrejeitam.

    A escola que defendem: bilnge; voltada para acultura e a histria de cada povo; fundada em suastradies; conscientizadora; que trabalhe na defesa deseus direitos; de intercmbio com o meio; crtica etransformadora; com professores indgenas; com cur-rculo elaborado com a comunidade; participativa; queintegre a sade em seus currculos; com material di-dtico prprio e reconhecido; com o ensino voltadopara os elementos das prprias culturas; voltada paraa conquista da autonomia; com oportunidades de for-mao continuada; com currculos, materiais didti-cos e calendrios adequados a cada realidade espec-fica; que esteja a servio dos projetos das comunidadesindgenas; que induza articulao entre os vriosprofessores indgenas; que valorize as suas crenasreligiosas; que valorize a unio entre os professores;que seja organizada pelos prprios indgenas.

    A escola que rejeitam: a que no leva em consi-derao os valores de sua cultura; a que domina e quecoloniza; a que no ensina na lngua materna; a queno defende os seus direitos; a que pisa no ndio; aque faz os ndios abandonarem suas aldeias; a queno os ajuda a fazer uma leitura crtica de sua realida-de; a que leva acomodao; a que no aceita a par-ticipao dos idosos.

    Repensando a formao do professorno contexto das culturas da Amaznia

    Pensar a formao de professores indgenas, acontribuio da universidade nesse processo e osmodelos implementados pelos rgos governamen-tais tarefa complexa e desafiadora. Quando, porexemplo, leio os relatrios de professoras que so ouforam minhas alunas na Faculdade de Educao daUFAM e que trabalham em cursos de formao deprofessores indgenas, no Projeto Pira-Yawara, daSecretaria de Educao do Estado do Amazonas, de-paro-me com um material cuja riqueza e complexi-dade excedem os limites de uma nica disciplina edemandam diversas leituras, inter e transdisciplina-res. O desafio comea na narrativa do difcil e prec-rio (no raro, precarssimo) acesso s aldeias. Torna-se mais angustiante quando se l o relato de umaprofessora que trabalhou, em um curso de formao,os seguintes componentes: metodologia da pesqui-sa (20h), prtica de ensino (20h), noes de antropo-logia (20h) e noes de sociologia (20h). Alm dosdiferentes enfoques, a turma era formada por alunosde diversas etnias, muitos dos quais no podiam secomunicar, nem com a professora e nem entre si, sema ajuda de tradutores. Como aparece no trabalho deconcluso de curso dessa aluna Romy GuimaresCabral (2002) , referente ao segundo estgio do cur-so de pedagogia, que incorporou seu trabalho em co-munidades indgenas, suas aulas eram ministradas emportugus e reproduzidas por vrios tradutores. Asdificuldades de comunicao foram enormes. Naspalavras da estagiria/professora: Pouco entendiamportugus, e eu tampouco suas lnguas.

  • Lucola Ins Pessoa Cavalcante

    22 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 N 22

    A partir de 1999, com o ingresso da professoraRosa Helena Dias da Silva, que desde 1989 era asses-sora do COPIAM (como representante do CIMI), parao quadro da UFAM e, em especial, para o nosso Pro-grama de Ps-Graduao em Educao, intensifica-ram-se os contatos e as articulaes com o movimen-to indgena organizado. Novas demandas foram,portanto, criadas para a linha Formao e prxis doeducador frente aos desafios amaznicos, qual es-tou vinculada. Convites para cursos de formao deprofessores indgenas e para assessorias comearama aparecer com uma certa freqncia, a exemplo da5 Assemblia do Movimento dos Estudantes Indge-nas do Amazonas, ocorrida no perodo de 19 a 21 dejaneiro de 2002, em que tive a oportunidade de parti-cipar de uma mesa-redonda, contribuindo com refle-xes sobre a importncia da educao escolar paraos povos indgenas, e de acompanhar o desenvolvi-mento de todos os trabalhos ali desenvolvidos.

    Meu crescente envolvimento levou-me a iniciaruma pesquisa, sob minha coordenao, financiada peloCNPq e intitulada Formao de professores no con-texto amaznico, com subprojetos voltados para aeducao escolar indgena.

    Em contrapartida, crescem tambm as iniciati-vas relacionadas questo indgena em outros espa-os da universidade, merecendo destaque a criaode um Curso de Especializao em Gesto para o Et-nodesenvolvimento, em vigncia, resultado de umconvnio estabelecido entre o Departamento de Cin-cias Sociais do ICHL/UFAM e o Laboratrio de Pes-quisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento(LACED) / Setor de Etnologia, ligado ao Departa-mento de Antropologia do Museu Nacional, da UFRJ.Tambm merece destaque o seminrio realizado nosdias 26 a 28 de novembro de 2002, tambm promovi-do pelo Departamento de Cincias Sociais do ICHL/UFAM, que teve como ttulo Interfaces da antropo-logia com os povos indgenas da Amaznia. Nesseseminrio, uma tarde foi dedicada educao indge-na, especialmente a educao escolar indgena.

    Em todos os fruns de que tenho participado, emque a educao escolar indgena posta em foco, acomplexidade da temtica fica evidente. Como ex-

    presso dessa complexidade, temos as implicaes domulticulturalismo, aqui enfocadas no processo de for-mao de professores. Tomei como referncia o textode Moreira (1998), no qual o autor procura ampliar adiscusso, articulando a questo do multiculturalis-mo problemtica da formao docente, reconhecen-do, por um lado, a relevncia dessa articulao e, poroutro, as dificuldades tericas e prticas de propostasencaminhadas nessa direo.

    Candau (1998), em seu texto sobre pluralismomulticultural, cotidiano escolar e formao de pro-fessores, argumenta que as questes culturais e seuimpacto sobre a escolarizao no tm sido includosde forma explcita e sistemtica nos processos de for-mao docente. Defende que os processos de escola-rizao e formao de professores muito tm a se be-neficiar com os estudos culturais, que trazem reflexo discusses instigantes e polmicas, bem comooferecem novas vises que podem aprofundar a an-lise da problemtica enfrentada pelos educadores nocotidiano das escolas.

    Os desafios so inmeros. Se no d para negarque, nos ltimos anos, propostas que visam articulara educao e a cultura de referncia ganharam maiorexpressividade, o que em grande parte se deve ao pen-samento de Paulo Freire, o alargamento da compreen-so sobre as relaes entre educao e cultura(s) nose fez acompanhar de mudanas efetivas nas relaesque se estabelecem no cotidiano das escolas. Em nossarealidade, freqentes so as queixas de estudantes in-dgenas que moram em Manaus e sofrem pesada car-ga de preconceito e discriminao nas escolas pbli-cas em que estudam. Longe estamos, em nossoscursos de formao de professores (no-indgenas eindgenas), da incluso aprofundada da temtica dainterculturalidade, enfatizando o entendimento da to-talidade cultural como fruto da atividade humana dosdiferentes povos, ndios e no-ndios, em nosso pas,e dos demais povos da Amrica; como prtica de pro-duo e de criao dos sujeitos, artfices e autores deseu mundo e sua histria (Freitas, 2001, p. 86).

    Se, por um lado, o fato de a pluralidade culturalter sido includa nos Parmetros Curriculares Nacio-nais como tema transversal pode significar sensibili-

  • Formao de professores na perspectiva do Movimento dos Professores Indgenas da Amaznia

    Revista Brasileira de Educao 23

    dade com a temtica, o mesmo talvez no possa serdito em termos de comprometimento. Falta-nos umapoltica educacional que se volte para a valorizaodo magistrio e para a formao permanente dos pro-fessores.

    Levar em conta a pluralidade de culturas no sig-nifica apenas introduzir na escola novos contedos emateriais didticos. preciso que fiquemos atentos linguagem que utilizada na escola, aos exemplos queso utilizados, s manifestaes (mais explcitas ou maisveladas) de preconceitos, esteretipos, racismo etc.

    Reconhecer que os indgenas reclamam por umaformao emancipadora, com clara orientao polti-ca, crtica e transformadora de relaes sociais que osdeixam em situao ou posio desigual, inferior implica reconhecer o quo pouco preparados estamospara atender-lhes em suas necessidades especficas.Implica tambm incentivar a participao dos indge-nas em seus vrios movimentos organizados, reconhe-cidamente instncias formadoras e autoformadoras.

    Assim, a luta pela institucionalizao do Movi-mento dos Professores Indgenas da Amaznia, suabusca de aceitao oficial, inscreve-se no reconheci-mento da sua necessria emancipao poltica e afir-mao de sua identidade, a fim de assegurar o respeito sua cidadania indgena, seja em termos individuais,seja como expresso de sua prtica social coletiva esolidria.

    Concluses

    O estudo e a anlise dos relatrios do Movimen-to dos Professores Indgenas da Amaznia, bem comoas entrevistas feitas com algumas de suas lideranas,mostrou-me que a escola pode se tornar (e, em algunscasos, j se revela) um instrumental decisivo na re-construo e afirmao das identidades sociais, polti-cas e culturais dos povos indgenas. Para tal, entre-tanto, urge que cada escola tenha clareza de seu projetopoltico-pedaggico, forjado como construo perma-nente e coletiva, que expressa as tenses e a dinmicado cotidiano dos professores indgenas.

    Nesse processo, imprescindvel que o educa-

    dor indgena tenha clareza do seu papel como agentepoltico-cultural, como algum capaz de transformara realidade sua volta, respeitando-a sempre. Paraisso, esse educador necessita ter como prioridade acriticidade e a conscientizao da responsabilidadesocial inerente sua prtica.

    preciso, pois, que se invista em programas deformao profissional continuada, em que a reflexosobre a prtica acontea ao longo do processo de tra-balho e no apenas em cursos espordicos. Estes, quan-do oferecidos, devem ter formatos novos, que refli-tam os anseios, necessidades e modos de ser dacomunidade indgena, com nfase nos etnoconhecimen-tos, no se apresentando, portanto, como cursos debrancos (expresso comum entre os ndios) para osndios. preciso, ainda, que se alargue a compreensosobre o processo de formao, entendendo-o presenteno s em cursos especficos e nas prticas escolarescotidianas, mas na vida diria e, de modo especial, nasinstncias organizativas (movimentos, associaes,conselhos etc.), sempre com a mediao da reflexo.

    Alm disso, necessrio que esse processo deformao contnua seja construdo e permanentementefecundado por saberes da experincia, do conhecimen-to e da abordagem pedaggica (Pimenta, 1999), numaconvivncia de trocas e de mtuas articulaes.

    A formao do professor indgena, portanto, seconstitui num processo inesgotvel que se constri ereconstri a cada dia, na interlocuo com a categoriamais ampla de professores num dilogo que deveter, como marca, o compromisso, rigorosamente tico,de defesa de uma vida digna e, como projeto e utopia,a construo de um mundo melhor, onde os seres hu-manos possam expressar e aprimorar a humanidade queos constitui, numa vivncia solidria e fraterna.

    LUCOLA INS PESSOA CAVALCANTE, doutora em edu-cao pela Vanderbilt University, professora da Faculdade de

    Educao da Universidade Federal do Amazonas. Publicou: For-

    mao de professores na perspectiva do Movimento dos Professo-res Indgenas da Amaznia: implicaes da institucionalizao,

    CD-ROM do Seminrio Nacional Fronteiras tnico-culturais e

    fronteiras da excluso: o desafio da interculturalidade e da eqi-

  • Lucola Ins Pessoa Cavalcante

    24 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 N 22

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    Aprovado em dezembro de 2002