Upload
lymien
View
219
Download
3
Embed Size (px)
Citation preview
FORMAÇÃO, EXPANSÃO, CONSOLIDAÇÃO E EVASÃO: passado e presente da dinâmica habitacional no Centro Antigo de Fortaleza/CE
Felipe Silveira de Moraes Pereira
Universidade Estadual do Ceará – UECE [email protected]
1. INTRODUÇÃO
Traçar percursos sobre a área central de uma metrópole traz à primeira vista
uma análise e uma interpretação a torna-la ambígua com relação a outras mundo afora:
são elementos característicos bastante semelhantes entre elas, tais como a evasão de
moradores, o ambiente construído consideravelmente degradado, a situação fundiária
urbanas cujas edificações estão “congeladas” ao longo dos anos em pequena rede de
proprietários e a presença de equipamentos urbanos e a infraestrutura urbana
consolidada. Podemos citar, a título de rápidos exemplos, o levantamento realizado por
Pereira& Holanda (2012) sobre algumas metrópoles brasileiras e a distinção de suas
áreas centrais1: algumas maiores, outras menores, porém, em suma, apresentam usos
semelhantes sobre sua malha urbana.
Este debate poderia inclusive ampliar-se à escala internacional que parte deste
esboçoprossegue as mesmas rotas, conforme estudos comparativos feitos
pelaorganização de Bidou-Zachariasen (2006) e as apresentadas por Audefroy (1999),
no âmbito da moradia em centros históricos. A discussão que se perscrutará neste
trabalho, no entanto, tem foco para a capital cearense, Fortaleza, considerando a sua
área central – e toda a sua plêiade de características – e o debate habitacional, em
paralelo com o processo de expansão pela qual vem passando sua malha urbana.
1“Citando por exemplo os casos de São Paulo, cujo sítio urbano inicial corresponde ao centro
antigo dacidade, hoje correspondente aos bairros da Liberdade e Sé; Recife, cujo centro antigo corresponde à idade doRecife – a Recife Antiga –, compreendendo os bairros Boa Vista, São José e Santo Antônio; e Belém, tendo seucentro conhecido como Cidade Antiga e, diante dos quais atualmente compõem a área central das capitaismencionadas” (PEREIRA, 2013, p. 43, nota de rodapé).
A questão da habitação na metrópole alencarina possui, atualmente, um
contexto marcado pela localização periférica dos equipamentos habitacionais
construídos pelo Estado, que se por um lado é uma marca da periferização da habitação
popular, por outro é produto desta expansão, oportunizada pela maior oferta da estrutura
viária e a emergência dos veículos automotivos, ao passo que a população com menor
poder aquisitivo, impedida historicamente de se fixar na área central da cidade pela
condição de mercadoria que a habitação vai sendo incorporada, tem suas razões traçadas
à periferia graças ao paralelo entre a oportunidade de terra (adquirida, cedida pelo
Estado ou mesmo ocupada) e a realização do morar.
Essa relação entre tais processos pode ser uma das possibilidades de
interpretação do crescimento horizontal da cidade. Para tanto, o objetivo deste artigo é
discutir a produção do espaço urbano da capital cearense a partir da habitação, pondo
ênfase ao chamado Centro Antigo, área específica dentro do centro de Fortaleza
analisada por Pereira (2013) na dissertação2da qual resultou este trabalho. Neste ínterim,
a investigação sobre a expansão, consolidação e evasão habitacional da área central
alencarina com destaque à infraestrutura urbana e à política habitacional dispõe o
percurso pelo qual estarão traçados as ideias a serem expostas, alicerçadas pelo método
materialista histórico-dialético, sob a concepção lefebvriana do método progressivo-
regressivo e tendo como materiais de análise, além da revisão bibliográfica, os dados
dos Censos 2000 e 2010, os trabalhos de campo e a consequente construção
geocartográfica.
2. DEFININDO O CENTRO ANTIGO DE FORTALEZA/CE
2 É fruto de dissertação produzida sob o título “Habitação em Áreas Centrais: as contradições do/no espaço urbano no Centro Antigo de Fortaleza/CE”, de nossa autoria, sob orientação da Profa. Dra. Virgínia Célia Cavalcante de Holanda e com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
As áreas centrais, de um modo geral, são marcadas pela relação de oposição
entre o forte fluxo diário de pessoas e a acentuada redução de residentes ao longo das
últimas décadas. O processo de expansão urbana e de modernização dos setores
produtivos – e dos produtos – que marcam a paisagem das cidades tem frisado a busca
por novos horizontes metropolitanos, o que, em antítese, reforça a evasão de moradores
destes locais.
Vale ressaltar que esta derrocada habitacional é diretamente associada ao
mercado, pois a oferta pública de moradias pouco se tem efetivado nas zonas com maior
disposição de infraestrutura urbana. Ao contrário, a política habitacional, em muitos
casos, é justamente um dos elementos que alimentam o crescimento do sítio urbano,
usufruindo dos equipamentos viários instalados comaquela finalidade.
Não obstante, é importante fazer algumas ressalvas, inclusive para não tornar o
fato superlativo e fazer um debate hermético sobre estes locais: a) o fenômeno, em
escala mundial, de evasão de habitantes das áreas centrais não pode estar desarticulado
dos processos em movimento na própria cidade, ou seja, a produção do espaço urbano –
a sua reestruturação urbana – em sua totalidade (RUFINO, 2005); b) neste movimento
maior, há inclusive tentativas, desde a década de 1970, de fazer retornar a estes locais
um conjunto de setores, atividades e pessoas os quais eram presentes e dominantes,
tendo como público-alvo as elites locais e como agentes interventores o Estado e o
mercado, em clara demonstração de impor uma forma glamorosa de cidade; c) nem
todas as cidades surgiram em suas atuais áreas centrais (SPOSITO, 1991a), cuja
caracterização também pode se dar a partir de sua condição como núcleo central dos
fluxos de pessoas e mercadorias em uma relação centrípeto-centrífuga da dinâmica
urbana (SPOSITO, 1991b) ou então pela concentração do patrimônio histórico, artístico
e arquitetônico (GADENS; ULTRAMARI. REZENDE, 2008); e d) as áreas centrais
podem ser apenas uma definição administrativa municipal por via da delimitação
institucional (PICCINI, 2004) ou como resultado de uma política pública baseada
naquele viés da requalificação urbana acima disposto, por meio de equipamentos
urbanos de grande porte (GONDIM; BEZERRA; FONTENELE, 2009).
No que tange à capital cearense, este conjunto de aspectos foram considerados
para a delimitação do Centro Antigo, sem deixar de considerar as definições urbanas
oriundas do Plano Diretor Participativo de Fortaleza e os bens tombados dos três entes
federativos (União, Estado e Município). Com isso, foi possível sistematizar pela
cartografia alguns caminhos da expansão urbana de Fortaleza a partir do Centro Antigo,
mas principalmente a disposição de como tem se realizado a função moradia neste
trecho da cidade, assim como a identificação de possibilidades de uso e ocupação para o
enfrentamento do grande déficit habitacional da capital cearense: os imóveis de uso
misto – térreo sendo comercial e os andares, residenciais – e os vazios urbanos.
A disposição do Centro Antigo – e sua oferta de infraestrutura urbana –
possibilitou o crescimento da cidade, considerando a forma semiestelar da cidade
(SILVA, 1997; 1994; 1992) e as estradas de penetração para o porto, as indústrias e os
antigos sítios, que acabaram por trazer o sertão ao litoral, em que atualmente formam
algumas das principais ruas e avenidas do Centro, assim como da própria capital
cearense. A condição da cidade de Fortaleza em tempos passados pode ser observada na
Figura 01, de maneira a perceber a sua estreita vinculação com o denominado Centro
Antigo, ao passo que as Figura 02demonstra as antigas estradas de penetração à
periferia.
No século XVIII, Fortaleza ainda podia estar caracterizada por uma
inexpressividade urbana, haja vista que o Ceará era uma província vinculada a
Pernambuco, terminada apenas em 1799, e que por isso todo o conjunto de
equipamentos – e a própria vida urbana – estava concentrada em Recife, mas por outro
lado as charqueadas – iniciadas na primeira metade deste século, marcaram o Ceará
como destino para o fluxo terrestre e marítimo comercial – e o algodão – na segunda
metade deste período, cujo momento histórico internacional com a Guerra de Secessão
(1861-1865) norte-americana possibilitou forte incremento da exportação algodoeira –
abriram novas estradas de penetração do sertão até o litoral. É nesse contexto em que
Fortaleza, no século XIX, se encontrará inserida: com a participação na divisão
internacional do trabalho pelo algodão, os caminhos do sertão – as estradas e, agora, os
trilhos – levarão os produtos até o porto e as pessoas até Fortaleza, a nova cidade
portuária cearense, desbancando o porto de Aracati.A capital cearense passa então a
estabelecer a sua hegemonia na hierarquia urbana cearense com a articulação de todos
estes elementos: o algodão como produto econômico, as ferrovias e estradas como
estruturas acessórias direcionadas a ela e a organização de um centro coletor e
exportador por via dos armazéns nela instaladas (SILVA, 1994).
Com autonomia política e hegemonia urbana em processos de afirmação, o
poder político estabelece o seu primeiro ato sobre o espaço3, a fim de pretender uma
intencionalidade imposta ao local: Fortaleza é elevada de vila à cidade em 18234. Para
isso, foram levadas em consideração, além do ato de Dom Pedro I – que se impôs sobre
o espaço –, a sede da administração e a localização centralizada das atividades
econômicas, que subsidiaram os primeiros passos da urbanização cearense sobre a
capital alencarina. Resultado disso, assim, são as primeiras intenções e propostas de
definir o perímetro urbano – e de estabelecê-lo – para fins de planificação do espaço: as
contribuições – e as influências – de Adolfo Hersbter e as plantas de 1859, 1867, 1875 e
1888. Conforme a Figura 01, observa-se que delas tivemos as primeiras delimitações do
que se pretendia impor como perímetro urbano, mas não há como não deixar de
registrar, neste curto esboço, que alguns caminhos marcaram justamente a sua expansão,
ultrapassando o perímetro estabelecido pelos antigos bulevares: a Estrada de Vila Velha
(atual Avenida Francisco Sá), a Estrada de Soure (atual Avenida Bezerra de Menezes), a
Estrada de Parangaba (em extensão e continuação, as atuais Avenida João Pessoa e
Osório de Paiva), a Estrada de Messejana(em extensão e continuação, as atuais Avenida
Visconde do Rio Branco, BR-116 e Avenida Frei Cirilo) e a Estrada do Mucuripe (atual
Avenida Abolição).
3Com raciocínio de Costa (2007), Fortaleza tem dois momentos em que o poder político
antecipa-se sobre o espaço, sobre Fortaleza: a elevação de vila à cidade em 1823 e o estabelecimento das regiões metropolitanas via decreto – incluindo a de Fortaleza – em 1973.
4 “Logo após a Independência, em 1823, o imperador Pedro I decreta a elevação de todas as vilas quefossem capitais de província à categoria de cidade, assim, Fortaleza, vila desde 1726, torna-se cidade”(COSTA,2007, p. 56).
Figura 01: Mapa de Localização: Perímetros Urbanos de Fortaleza no passado e os
limites atuais do bairro Centro de Fortaleza/CE
Fonte: Laboratório de Geoprocessamento – LABGEO/UECE; Prefeitura Municipal de Fortaleza; Levantamentos de campo. Elaboração: Felipe Silveira de Moraes Pereira, 2013.
Esta forma de crescimento e expansão da cidade indicou a busca das elites
locais para outras áreas da capital: nos primeiros anos do século XX, o leste é
“descoberto” e a Aldeota e o Meireles, antes extensões pobres, são atualmente zonas
onde o mercado imobiliário consolida o metro quadrado mais caro de Fortaleza, e,
desde os anos 1970, o Centro da cidade perde assistira a forte redução de moradores.
3. MERCADORIA HABITAÇÃO NA CAPITAL CEARENSE E NO CENTRO
ANTIGO
Fortaleza, marcada pela centralidade paradoxal entre a forte concentração de
atividades econômicas e um quase abandono do setor imobiliário até meados dos anos
2000, conforme destaca Rufino (2005), já tem uma pequena mudança neste quadro:
alguns empreendimentos privados, mesmo que de forma lenta e isolada, estão presentes
na transformação da paisagem em tempos de crescimento de população residente no
Centro da cidade, exposto na Tabela 01.
Tabela 01: População de Fortaleza e do Centro, variação absoluta, relativa e proporcional
FORTALEZA
POPULAÇÃO DE FORTALEZA E DO CENTRO, VARIAÇÃO ABSOLUTA, RELATIVA E PROPORCIONAL
ANO FORTALEZA (1) CENTRO (2)
(2) / (1) TOTAL % TOTAL %
1980 1.338.793 38.545 2,87
1991 1.765.794 31,89 30.679 -20,4 1,73
1996 1.954.656 10,69 27.584 -10,08 1,41
2000 2.138.224 9,39 24.775 -10,18 1,15
2010 2.452.185 14,68 28.154 13,63 1,14 Fonte: RUFINO (2005), SOARES & LIMA (2011) e IBGE – Censos Demográficos 2000 e 2010. Elaboração: PEREIRA, F. S. de M.
A perspectiva de mudança do quadro de redução no número de moradores no
Centro de Fortaleza, no entanto, além de não romper a contínua queda na proporção
entre os moradores da cidade e os moradores do Centro, possui ainda outras duas
importantes considerações: 1) a população residente nos domicílios no Centro da capital
alencarinaé marcada por pessoas economicamente ativas, demonstrando que ela não
está se renovando nas gerações; e 2) a maior quantidade de domicílios localizados nesta
parte da cidade é ocupada por um ou duas pessoas, de forma majoritária. Ademais, ao
observar a Figura 04, temos a evidência de como a habitação tem se tornado mercadoria
e ela tem ali uma função específica, já que a maior parte da população do Centro realiza
a função moradia por via do aluguel: a acumulação rentista.
(Não) encerrando a (breve) apresentação, como um demonstrativo da
mercadoria habitação que tem tornado a se realizar no Centro Antigo de Fortaleza –
aproveitando a boa oferta de infraestrutura urbana e incentivos urbanísticos –, a política
habitacional não tem combatido o déficit habitacional em áreas com suporte
infraestrutural, de modo que nem a disposição do Plano Habitacional de Reabilitação da
Área Central de Fortaleza, de 2009, tem logrado resultados. Ao contrário, conforme os
dados, para morar no Centro da capital cearense, é necessário possuir capital para o
acesso à moradia – que nem será
mapeamento (Figura 05), o Centro Antigo
apropriado para uso social da terra urbana
Figura 04:Domicílios Particulares Permanentes quanto à forma de ocupação
Fonte: IBGE – Censos Demográficos 2000 e 2010.Elaboração: PEREIRA, F. S. de M.
próprio e quitado
próprio em aquisição
alugados
cedidos por empregador
cedidos de outra forma
outra forma de ocupação
Domicílios Particulares Permanentes quanto à forma de ocupação
dados, para morar no Centro da capital cearense, é necessário possuir capital para o
que nem será apropriada de maneira definitiva
, o Centro Antigo possuimuitos vazios urbanos
apropriado para uso social da terra urbana.
Domicílios Particulares Permanentes quanto à forma de ocupação
de Fortaleza/CE
Censos Demográficos 2000 e 2010. Elaboração: PEREIRA, F. S. de M.
3.272
276
3.108
95
239
28
3.180
156
59
147
49
Domicílios Particulares Permanentes quanto à forma de ocupação - Centro de Fortaleza/CE
dados, para morar no Centro da capital cearense, é necessário possuir capital para o
propriada de maneira definitiva – e conforme o
vazios urbanos – que não está
Domicílios Particulares Permanentes quanto à forma de ocupação – Centro
4.758
Domicílios Particulares Permanentes quanto à forma de
Série4
Série3
2010
2000
Figura 05: Mapa Temático – Manchas de Uso e Ocupação do Solo Urbano no Centro Antigo de Fortaleza/CE e adjacência imediata
Fonte: Laboratório de Geoprocessamento – LABGEO/UECE; Prefeitura Municipal de Fortaleza; Levantamentos de campo. Elaboração: Felipe Silveira de Moraes Pereira, 2013.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUDEFROY, J. (Coord.). Vivirenlos Centros Históricos: experiencias y luchas de los habitantes para permanecer enlos Centros Históricos. Mexico D. F.: Habitat InternationalCoalition, 1999.
BIDOU-ZACHARIASEN, C. (org.). De Volta à Cidade: dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. São Paulo: Annablume, 2006.
PEREIRA, F. S. de M. Habitação em Áreas Centrais: as contradições do/no espaço urbano no Centro Antigo de Fortaleza/CE. Dissertação (Mestrado em Geografia). Fortaleza. Programa de Pós Graduaçaõ em Geografia/UECE, 2013.
PEREIRA, F. S. de M.; HOLANDA, V. C. C.. Quando Morar no Centro Histórico não é Manchete: um debate hemerográfico sobre a área central de Fortaleza/CE. Belo Horizonte. Encontro Nacional de Geógrafos, 2012.
PICCINI, A. Cortiços na cidade: conceitos e preconceitos na reestruturação do centro urbano de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2004.
RUFINO, M. B. C. Regeneração Urbana e Estratégias Residenciais em Áreas Centrais: o caso de Fortaleza (Brasil). Dissertação (Mestrado). Faculdade de Engenharia/Faculdade de Arquitectura, Universidade do Porto, 2005.
SILVA, J. B. da. Discutindo a cidade e o urbano. In: SILVA, J. B. da; COSTA, M. C. L; DANTAS, E. W. C. (orgs.). A Cidade e o Urbano: temas para debate. Fortaleza: EUFC, 1997.
__________. O Algodão na organização do espaço. In: In: SOUZA, S. de (coord.). História do Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1994.
__________. Quando os incomodados não se retiram: uma análise dos movimentos sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992.
SPOSITO, M. E. B. Estruturação Urbana e Centralidade. In: Encuentro de Geografos de América Latina, 3, 1991a. Anais. Toluca/México, v. 1. p. 44-55.
__________. O Centro e as Formas de Expansão da Centralidade Urbana. In:Revista de Geografia (São Paulo), São Paulo, v. 10, p. 1-18, 1991b.