1
6 FORTALEZA-CE, DOMINGO , 17 de dezembro de 2006 DOCUMENTO BR C ecília (nome fictício) tem 16 anos. A voz e os trejeitos ainda são de menina, mas o aspecto é o de uma mulher com mais de 30. O fotógrafo a conhecia de dois anos atrás, também da BR- 116, noutra pauta sobre infância, mas se surpreendeu quando a viu novamente. Está com o olhar cadavérico, suja, magra, cabelu- da e viciada em crack. Admite que perdeu quase 20 quilos des- de o ano passado. A agitação ao falar dá pistas de que consumira pouco antes da conversa. Estava com o “pescoço na seda”, gíria para quem deve a traficantes. Comprou algumas “pulgas” e não pagou. Numa das várias de- núncias graves que apresenta ao longo de mais de uma hora de conversa, diz que trabalhou por mais de dois anos para um inspe- tor, um delegado e uma delegada, revendendo drogas numa casa que ficava a poucos metros da delegacia do Pirambu. Segundo ela, foi a partir dali, aos 13, que se iniciou no vício. Há mais denúncias. Os mes- mos policiais teriam lhe usado, por ser adolescente, para forjar flagrantes nos motéis. Entravam ela e um policial à paisana como clientes, ficavam nus, a cena montada era “descoberta” e o proprietário ou gerente passavam a ser extorquidos. Também nos motéis, o inspetor transava com ela enquanto cheirava cocaína e repartiam o crack. Com ou sem camisinha, Cecília não lembra. Os delegados repartiam lucros. Sem as revelações, só a histó- ria de vida de Cecília já seria con- strangedora para quem ouve. Per- deu a virgindade aos 11, num estu- pro. Antes, fugira de casa ao ver o padrasto, suposto assassino do pai dela, tentando abusar-lhe se- xualmente. A mãe não acreditava no que contava e ela decidiu dei- xar a Bahia; veio com uma amiga para o Ceará. Cecília faz progra- mas sexuais por R$ 10,00 na beira da BR-116. Com o dinheiro, paga por crack e alguma comida. Durante a conversa, dentro do carro de O POVO, em frente a uma praça na Cidade dos Funcionários, as mãos enruga- das de Cecília desfiam a saia de linha. As unhas sujas coçam um ferimento no canto do olho, um outro na perna à mostra. In- quieta, abre os braços, pede di- nheiro, mexe as mãos de um la- do a outro. Fora do carro, desa- pegada de qualquer pudor, mantém-se de pé e urina ali mesmo. “Não tenho medo de morrer. Já vivi foi muito. Não aproveitei nada que preste. Só acontece coisa ruim”. A gravação com as denúncias de Cecília foi repassada para a Corregedoria dos Órgãos de Se- gurança Pública e para o Minis- tério Público Estadual. Os nomes dos denunciados não serão pu- blicados para que não atrapalhe o andamento das apurações, mas O POVO acompanhará o caso. (Cláudio Ribeiro) LEIA A ÍNTEGRA da entrevista na Inter- net (www.opovo.com.br) >> EM ENTREVISTA, adolescente revela sua trajetória de vida e denuncia esquema de exploração sexual e de venda de drogas em Fortaleza por parte de policiais. Entre os denunciados, um inspetor, um delegado e uma delegada FORTALEZA O POVO - Você nasceu onde? Cecília - Na Bahia. OP - Como chegou a Fortaleza? Cecília - Cheguei aqui tinha 11 anos. Agora tenho 16. OP - Você veio com quem pra cá? Cecília - Vim com uma amiga minha. Quando vim, ainda era moça. Aí “vinhemo” combinada pra ela fazer programa e sustentar nós duas. Só que aí... quando a gente chegou eu ficava esperando ela debaixo do viaduto, aí um cara me pegou, botou um revólver na minha cabeça e me “estrupou”. OP - Você tinha quantos anos? Cecília - Tinha 11 anos. OP - Isso aconteceu onde? Cecília - Foi no viaduto da (avenida) Oliveira Paiva. OP - Mas você fazia programa? Cecília - Não. Ficava esperando ela. Um cara num carro preto parou, nem perguntou o que eu estava fazendo nem nada. Eu tava debaixo do viaduto, sempre ficava lá esperando ela. Ela fazia progra- ma e eu ficava esperando. Quando era onze horas a gente ia embora. Ele parou, botou a mão na cintura, pegou um revólver e me arrastou pra dentro dos matos. Deixou o carro ligado na BR. Quando acordei já estava no hospital “por causa que” ele deu uma pancada aqui ó, pegou oito ponto na minha cabeça. Aí desmaiei. Mas não sei quem levou “eu” pro hospital. OP - Isso foi à noite ou de dia? Cecília - Foi de dia. Fugi de casa “por causa que” meu “pradasto” tentou me “estrupar”. Eu disse pra minha mãe e ela não acreditou em mim. Aí eu fugi de casa, a minha amiga me chamou pra nós “vim” pra cá. Aí depois eu passei um ano na Febem, eles disseram que iam me deixar de volta (na Bahia) aí eu fugi de Recife pra cá de volta. OP - Não entendi. O estupro foi aqui. Você fugiu de Recife? Cecília - Eu já estava com um mês na Febem, fui pra outra, pas- sei um ano. Lá era casa de pas- sagem só. Era um dia de domin- go, eles me levaram pra Recife, quando fosse no outro dia eu ia pra Bahia de ônibus. Tinha uma pessoa acompanhando. Aí fugi de volta porque não queria ir pra casa. Lá chegou o encaminha- mento pra eu ir de volta pra mi- nha cidade, Juazeiro da Bahia. Fui no avião da “Varg”, até Re- cife. No outro dia eu ia num ônibus. Ficar num abrigo em Re- cife pra ir de ônibus. Comi, tomei banho e fugi. OP - Voltou pra Fortaleza? Cecília - Foi. Voltei com um camioneiro. Até hoje tô aqui. Cheguei aqui, o juiz soube, ele disse que eu cheguei primeiro “do que” o avião (risos). OP - Isso tudo você tinha 11 anos? Cecília - Tinha 11 anos. OP - Mas desde então você passou a fazer programas? Cecília - Não. Ficava no meio da rua, conheci os meninos... OP - Ficou sozinha? Cecília - Sozinha. No meio da rua. Dormia no posto São Cristóvão (km 12 da BR-116), de- baixo das “cegonha” (carreta que transporta veículos pequenos). OP - E pra arranjar comida? Cecília - Pedia. As pessoas pe- gavam nos meus peitos, davam dinheiro, aí eu comprava comida. OP - Foi daí que você passou a fazer programas? Cecília - Não. Depois conheci uma menina, a gente foi pro Pi- rambu. OP - Essa menina era adolescente e também fazia programa? Cecília - Ãnrran (Confirma). Ela cheirava cola. Tinha 13 anos. Aí nós fomos pro Pirambu e lá... será... (pausa) Será que pode falar? OP - Pode falar o que você quiser. Cecília - Aí eu conheci um poli- cial, inspetor da Civil (diz o nome do policial). Ele alugou uma casa e botou “eu” dentro. OP - Prometendo o quê? Cecília - Ele pegou e disse que... Pode dizer, né? OP - Pode falar. Cecília - Ele disse que ia me dar de tudo, me sustentar, mas em troca que eu vendesse pedra de crack pra ele lá no Pirambu. Perto da delegacia do 7º Distrito. Ele trabalhava com o delegado (diz o nome do delegado). OP - E o delegado sabia disso, que ele vendia crack? Cecília - Sabia. Que eu vendia pra ele. E a doutora (diz o nome da delegada) também sabia. OP - E o que o delegado dizia? Cecília - Era pra eles três. OP - O dinheiro? Cecília - Sim. Pra doutora, pro delegado e pro policial (repete o nome dos três). Era o inspetor que pagava. Aí eles botavam uns “pedação” bem grandão na mesa. Tinha um homem lá que fumava pedra, cortava, “dolava” (enrolava no papel) e deixava pra mim. OP - Esse homem que fumava era policial também? Cecília - Não conheço. Sei que ele ia só cortar lá. Levava a metade e deixava a metade. Em tudo eu tinha que dar mil reais pra eles. Às vezes eu só vendia 200, 300 (reais). OP - Quanto valia a pedra? Cecília - Cada pedra é cinco reais. OP - Quanto valia a pedra grande e você tinha quanto pra vender? Cecília - Se fosse pra vender to- da, valia mais de três mil (reais). OP - Você tinha que dar quanto para os policiais? Cecília - Tinha que dar mil reais da parte que ele deixou. Eles deixaram uma parte e levaram outra parte. Era dividido pra eles. OP - Mas quem negociava direta- mente contigo era o inspetor? Cecília - Era. Quando iam lá em casa me visitar, iam todos três num... como é o nome do carro? OP - Numa viatura? Cecília - Não era uma viatura. Era uma... Saveiro azul. OP - Qual sua idade nessa época? Cecília - Tinha 13. Fiquei lá dois anos, até 15 anos. OP - Você ficou sempre vendendo, vivendo disso? Cecília - Foi. Aí teve um dia que uma menina foi comprar, uma menina de programa, e pediu pra fumar lá. Quando ela saiu, eu fui “expermentar”. Aí me “aviciei”. OP - Você fuma crack desde essa época? Cecília - É, foi. OP - Quando você fumou a NO TRECHO da BR-116 em For- taleza, os pontos de explo- ração sexual são os viadutos e al- guns postos de gasolina. Logo no iní- cio da noite, já é possível presenciar o pro- blema. Curioso é que a sede da Polícia Rodoviária funciona como um divisor de preços. Até lá, na área cor- respondente ao bairro Tancredo Neves, as garotas chegam a cobrar apenas R$ 5,00 pelo programa. Nos postos e viadu- tos localizados depois da PRF, na direção de Messejana, o preço sobe. Segundo um grupo de garotas abordadas pelo O POVO, o preço ali é de pelo menos R$ 15,00 por programa. Ao lado, o flagrante do assé- dio de um motorista a uma das garotas que são exploradas na BR-116, dentro de Fortaleza. (FA)

FORTALEZA-CE, DOMINGO 17 de dezembro de 2006 … · do carro de OPOVO,em frente a uma praça na Cidade dos Funcionários, as mãos enruga-das de Cecília desfiam a saia de ... “pedação”

  • Upload
    dangtu

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

6 FORTALEZA-CE, DOMINGO , 17 de dezembro de 2006 DOCUMENTO BR

BR116Cecília diz que sedeixar de fazerprogramas na BR,não tem como sesustentar. Já teriamtentado lhe daremprego, masquem oferecesempre perguntapor documentos eela admite não ter.Faz “dois ou três”programas pornoite, mas garanteque nunca soubequanto ganha nummês, porque nuncajunta.

Cecília (nome fictício)tem 16 anos. A voz e ostrejeitos ainda são demenina, mas o aspecto é

o de uma mulher com mais de30. O fotógrafo a conhecia dedois anos atrás, também da BR-116, noutra pauta sobre infância,mas se surpreendeu quando aviu novamente. Está com o olharcadavérico, suja, magra, cabelu-da e viciada em crack. Admiteque perdeu quase 20 quilos des-de o ano passado. A agitação aofalar dá pistas de que consumirapouco antes da conversa. Estavacom o “pescoço na seda”, gíriapara quem deve a traficantes.Comprou algumas “pulgas” enão pagou. Numa das várias de-núncias graves que apresenta aolongo de mais de uma hora deconversa, diz que trabalhou pormais de dois anos para um inspe-tor, um delegado e uma delegada,revendendo drogas numa casaque ficava a poucos metros dadelegacia do Pirambu. Segundoela, foi a partir dali, aos 13, que seiniciou no vício.

Há mais denúncias. Os mes-mos policiais teriam lhe usado,por ser adolescente, para forjarflagrantes nos motéis. Entravamela e um policial à paisana comoclientes, ficavam nus, a cenamontada era “descoberta” e oproprietário ou gerente passavama ser extorquidos. Também nosmotéis, o inspetor transava comela enquanto cheirava cocaína erepartiam o crack. Com ou semcamisinha, Cecília não lembra. Osdelegados repartiam lucros.

Sem as revelações, só a histó-ria de vida de Cecília já seria con-strangedora para quem ouve. Per-deu a virgindade aos 11, num estu-pro. Antes, fugira de casa ao ver opadrasto, suposto assassino dopai dela, tentando abusar-lhe se-xualmente. A mãe não acreditavano que contava e ela decidiu dei-xar a Bahia; veio com uma amigapara o Ceará. Cecília faz progra-mas sexuais por R$ 10,00 na beirada BR-116. Com o dinheiro, pagapor crack e alguma comida.

Durante a conversa, dentrodo carro de O POVO, em frentea uma praça na Cidade dosFuncionários, as mãos enruga-das de Cecília desfiam a saia delinha. As unhas sujas coçam umferimento no canto do olho, umoutro na perna à mostra. In-quieta, abre os braços, pede di-nheiro, mexe as mãos de um la-do a outro. Fora do carro, desa-pegada de qualquer pudor,mantém-se de pé e urina alimesmo. “Não tenho medo demorrer. Já vivi foi muito. Nãoaproveitei nada que preste. Sóacontece coisa ruim”.

A gravação com as denúnciasde Cecília foi repassada para aCorregedoria dos Órgãos de Se-gurança Pública e para o Minis-tério Público Estadual. Os nomesdos denunciados não serão pu-blicados para que não atrapalheo andamento das apurações, masO POVO acompanhará o caso.(Cláudio Ribeiro)

LEIA A ÍNTEGRA da entrevista na Inter-net (www.opovo.com.br)

A BR-020 é trilha de romeiros. Naestrada, no trecho próximo a CamposBelos, em Maranguape, O POVOencontrou Francisco das Chagas doNascimento Filho, aposentado, 56 anos. Éo nono ano que segue a pé paraCanindé. É o último ano da promessa. Noparto, a esposa quase morreu, mas os

filhos gêmeos não resistiram. Desdeentão, fez o pacto com São Francisco. Abarba e os cabelos ficam longos por umano, traja-se de franciscano e vai. Aos pésdo santo, corta rente a cabeleira,barbeia-se e faz a oferenda. Ora porsaúde e por um mundo melhor. Seguecom uma caravana do bairro Planalto

Pici. Este ano, além das filhas, os netostambém o acompanharam. Um deles,Israel, 10, seguiu descalço. Quando tinhatrês anos, o menino escapou de umatropelamento. Já próximo ao final dacaminhada, no quarto dia do trajeto,Israel aproveitou para pegar carona nolombo de um jumento. (CR)

>> EM ENTREVISTA, adolescente revela sua trajetória de vida e denuncia esquema de exploração sexual e de venda de drogas em Fortaleza por parte de policiais. Entre os denunciados, um inspetor, um delegado e uma delegada

FORTALEZA

O POVO - Você nasceu onde?Cecília - Na Bahia.

OP - Como chegou a Fortaleza?Cecília - Cheguei aqui tinha 11anos. Agora tenho 16.

OP - Você veio com quem pra cá?Cecília - Vim com uma amigaminha. Quando vim, ainda eramoça. Aí “vinhemo” combinadapra ela fazer programa e sustentarnós duas. Só que aí... quando agente chegou eu ficava esperandoela debaixo do viaduto, aí um carame pegou, botou um revólver naminha cabeça e me “estrupou”.

OP - Você tinha quantos anos?Cecília - Tinha 11 anos.

OP - Isso aconteceu onde?Cecília - Foi no viaduto da(avenida) Oliveira Paiva.

OP - Mas você fazia programa?Cecília - Não. Ficava esperandoela. Um cara num carro pretoparou, nem perguntou o que euestava fazendo nem nada. Eu tavadebaixo do viaduto, sempre ficavalá esperando ela. Ela fazia progra-ma e eu ficava esperando. Quandoera onze horas a gente ia embora.Ele parou, botou a mão na cintura,pegou um revólver e me arrastoupra dentro dos matos. Deixou ocarro ligado na BR. Quandoacordei já estava no hospital “porcausa que” ele deu uma pancadaaqui ó, pegou oito ponto na minhacabeça. Aí desmaiei. Mas não seiquem levou “eu” pro hospital.

OP - Isso foi à noite ou de dia?Cecília - Foi de dia. Fugi de casa“por causa que” meu “pradasto”tentou me “estrupar”. Eu disse praminha mãe e ela não acreditou emmim. Aí eu fugi de casa, a minhaamiga me chamou pra nós “vim”

pra cá. Aí depois eu passei um anona Febem, eles disseram que iamme deixar de volta (na Bahia) aí eufugi de Recife pra cá de volta.

OP - Não entendi. O estupro foiaqui. Você fugiu de Recife?Cecília - Eu já estava com ummês na Febem, fui pra outra, pas-sei um ano. Lá era casa de pas-sagem só. Era um dia de domin-go, eles me levaram pra Recife,quando fosse no outro dia eu iapra Bahia de ônibus. Tinha umapessoa acompanhando. Aí fugide volta porque não queria ir pracasa. Lá chegou o encaminha-mento pra eu ir de volta pra mi-nha cidade, Juazeiro da Bahia.Fui no avião da “Varg”, até Re-cife. No outro dia eu ia numônibus. Ficar num abrigo em Re-cife pra ir de ônibus. Comi, tomeibanho e fugi.

OP - Voltou pra Fortaleza?Cecília - Foi. Voltei com umcamioneiro. Até hoje tô aqui.Cheguei aqui, o juiz soube, eledisse que eu cheguei primeiro “doque” o avião (risos).

OP - Isso tudo você tinha 11 anos?Cecília - Tinha 11 anos.

OP - Mas desde então você passoua fazer programas?Cecília - Não. Ficava no meio darua, conheci os meninos...

OP - Ficou sozinha?Cecília - Sozinha. No meio darua. Dormia no posto SãoCristóvão (km 12 da BR-116), de-baixo das “cegonha” (carreta quetransporta veículos pequenos).

OP - E pra arranjar comida?Cecília - Pedia. As pessoas pe-gavam nos meus peitos, davamdinheiro, aí eu comprava comida.

OP - Foi daí que você passou a fazerprogramas?Cecília - Não. Depois conheciuma menina, a gente foi pro Pi-rambu.

OP - Essa menina era adolescente etambém fazia programa?Cecília - Ãnrran (Confirma). Elacheirava cola. Tinha 13 anos. Aínós fomos pro Pirambu e lá...será... (pausa) Será que pode falar?

OP - Pode falar o que você quiser.Cecília - Aí eu conheci um poli-cial, inspetor da Civil (diz o nomedo policial). Ele alugou uma casae botou “eu” dentro.

OP - Prometendo o quê?Cecília - Ele pegou e disse que...Pode dizer, né?

OP - Pode falar.Cecília - Ele disse que ia me darde tudo, me sustentar, mas emtroca que eu vendesse pedra decrack pra ele lá no Pirambu. Pertoda delegacia do 7º Distrito. Eletrabalhava com o delegado (diz onome do delegado).

OP - E o delegado sabia disso, queele vendia crack?Cecília - Sabia. Que eu vendia praele. E a doutora (diz o nome dadelegada) também sabia.

OP - E o que o delegado dizia?Cecília - Era pra eles três.

OP - O dinheiro?Cecília - Sim. Pra doutora, prodelegado e pro policial (repete onome dos três). Era o inspetorque pagava. Aí eles botavam uns“pedação” bem grandão namesa. Tinha um homem lá quefumava pedra, cortava, “dolava”(enrolava no papel) e deixavapra mim.

OP - Esse homem que fumava erapolicial também?Cecília - Não conheço. Sei queele ia só cortar lá. Levava ametade e deixava a metade. Emtudo eu tinha que dar mil reaispra eles. Às vezes eu só vendia200, 300 (reais).

OP - Quanto valia a pedra?Cecília - Cada pedra é cinco reais.

OP - Quanto valia a pedra grande evocê tinha quanto pra vender?Cecília - Se fosse pra vender to-da, valia mais de três mil (reais).

OP - Você tinha que dar quantopara os policiais?Cecília - Tinha que dar mil reaisda parte que ele deixou. Elesdeixaram uma parte e levaramoutra parte. Era dividido pra eles.

OP - Mas quem negociava direta-mente contigo era o inspetor?Cecília - Era. Quando iam lá emcasa me visitar, iam todos trêsnum... como é o nome do carro?

OP - Numa viatura?Cecília - Não era uma viatura. Erauma... Saveiro azul.

OP - Qual sua idade nessa época?Cecília - Tinha 13. Fiquei lá doisanos, até 15 anos.

OP - Você ficou sempre vendendo,vivendo disso?Cecília - Foi. Aí teve um dia queuma menina foi comprar, umamenina de programa, e pediu prafumar lá. Quando ela saiu, eu fui“expermentar”. Aí me “aviciei”.

OP - Você fuma crack desde essaépoca?Cecília - É, foi.

OP - Quando você fumou a

primeira vez tinha quantos anos?Cecília - Tinha 13. Eu fumava, sóque eles (policiais) não sabiamque eu tava fumando. Eu fumavadum pedaço que eles deixavamsolto. Fumava era dez (vezes). Aíteve um dia que fumei tudinho.Aí eles botaram “eu” pra fora.

OP - Você morava nessa casa so-zinha nesse tempo?Cecília - Era sozinha. E eu tinhade tudo. Mas eu era mais bonita.Eu tinha celular pra me comu-nicar com eles quando acabasse.Lá tinha geladeira, fogão, tinhatudo. Tinha cama.

OP - As pessoas iam lá comprar ouvocê saía pra vender?Cecília - Eles iam lá todo dia. Deminuto em minuto chegava uma“ruma” de gente.

OP - Essa casa era alugada nonome de quem?Cecília - No nome do inspetor(repete o nome do policial).

OP - Você sabe o nome da rua?Cecília - Sei não. Sei que fica emfrente pra praia da Leste-Oeste.É numas barraquinhas que tempor trás do 7º Distrito.

OP - Esses policiais iam semprenessa casa? Freqüentavam?Cecília - Freqüentavam. Co-nheci primeiro o inspetor(repete o nome), através de umprograma. Aí ele pegou e dissebem assim: “vamo, eu tenho umaamiga pra te apresentar. Ela édelegada. Aí, o que a gente querem troca de você ficar na casa éque você venda pra gente. Aí,qualquer coisa, se for outra polí-cia pegar, não dá rolo porque temum delegado e uma delegada”.Qualquer coisa não dava rolo pramim, e também eu era de menor.

Não dava foguete (problema).

OP - Você já falou disso algumavez pra alguém?Cecília - Não. Pra ninguém.

OP - Por que está falando agora?Cecília - “Por causa que” fiqueicom raiva dele. Porque se nãofosse ele eu ainda era bonita.

OP - Você ficou feia por causa docrack?Cecília - Do crack. Eu era bemgordona. Eu dava duas dessa queeu tô agora.

OP - E qual foi a última vez quevocê viu esses policiais?Cecília - Já faz um bocado detempo. Faz quase um ano, mas àsvezes vejo eles (repete o nomedo inspetor e acrescenta maisdois nomes, também de policiais,segundo ela).

OP - Eles te vêem também?Cecília - “Me vê” e dizem “vixemaria, como tu tá feia”.

OP - Já te ameaçaram alguma vezpor causa dessa história?Cecília - O inspetor (repete onome) já. Ele disse que se algumdia ao menos sonhasse que euabrisse a boca, eu ia amanhecercom a boca cheia de formiga enão iam nem saber quem foi.

OP - Você já teve medo que issoacontecesse de verdade?Cecília - Já, “por causa que” umavez fui sair com um homem, sóera um homem, quando chegueilá tinha dois no porta-malas.

OP - O que você falava com cadaum desses policiais?Cecília - Era só nós três. Essesoutros dois policiais eram amigosdele (inspetor), mas não sabiam.

OP - Os delegados também fu-mavam crack?Cecília - Não. Mas ele (inspetor)cheirava pó.

OP - Os dois delegados também?Cecília - Esses aí não sei. Mas ele(inspetor) cheirava pó. Porque àsvezes, dia de domingo, ele fecha-va a porta e nós “ia” pro motel. Aíeu levava crack e ele levava o pó.Lá no motel (diz o nome de doisestabelecimentos). Aí uma vezeles pegaram e disseram que nãodava mais pra “mim” vender. Aí“paremo”. Aí o jogo foi outro,agora. Era eu, o inspetor, a douto-ra e o delegado (repete o nomedos três). A gente entrava numcarro disfarçado, eram dois car-ros. Aí eu entrava com um poli-cial sem farda num motel, aí jáera combinado. Chegava lá, de-morava cinco minutos, a gentenão fazia nada. Ficava só lá senta-do, conversando, nu, que era praeles “chegar” e pegar no “fraga”,na viatura.

OP - Eles iam cobrar dinheiro aodono ou ao gerente do motel pranão denunciar, é isso?Cecília - É, pra não ir preso. Láno motel, eu dizia que eramenor. E eles algemavam opolicial. Não me algemavamporque diziam que eu era demenor. Aí levavam eu pra DCA(Delegacia da Criança e doAdolescente).

OP - Exigiram quanto?Cecília - Três mil reais.

OP - Isso ocorreu quantas vezes?Cecília - “Foi” duas vezes. Umalá no Centro (descreve o motel),não sei o nome. O outro foi láperto do Castelão (dá o nome doestabelecimento). Desse “foi”três mil reais. Deram uma parte,

depois pegavam a outra parte. Aíeles algemaram o policial e eu,botaram dentro da viatura atrás.O policial, também. Só que opolicial tava algemado.

OP - Só foram duas vezes, isso?Cecília - Foi. Porque depois eume saí, fiquei com medo.

OP -Mas você disse que não queriamais ou eles disseram que não pre-cisava mais que você fosse?Cecília - Não, eu que disse quenão ia mais. Porque eu estava ar-riscando minha vida e só ganha-va cinqüenta “real”.

OP - Você sabe se eles faziam issocom outras meninas?Cecília - “Fazia”. Disseram queas outras meninas da BR sabiamfazer mais do que eu.

OP - Tanto a história do crack co-mo a do motel?Cecília - Não.

OP - A do crack só era você?Cecília - Só eu.

OP - Nunca mais você viu essespoliciais pessoalmente?Cecília - Não. Faz tempo.

OP - Você mora com quem aquiem Fortaleza?Cecília - Eu morava com umamulher (diz o nome). Morreu docoração. Aí “ficou” só os filhosdela. Eles faziam raiva a ela e elamorreu. Mas eu gostava dela co-mo se fosse minha mãe. Gostavamais dela do que da minha mãe.E ela gostava de mim mais doque dos “fi” dela.

OP - Você faz programa todanoite?Cecília - Não. Só às vezes que euvenho.

OP - Você cobra quanto?Cecília - Dez reais.

OP - Nunca mais você viu sua mãenem seu pai?Cecília - O homem que “veve”com minha mãe mandou matarmeu pai. Eu conheço ele, eu tinhaoito anos. E também minha mãequando dava em mim, eu metrancava no quarto e esculham-bava ela, dizendo que qualquerdia ela ia presa. “Por causa que”quando eu tinha oito anos, meupai foi pra feira comigo, minhamãe queria ir. Ela bebia e meu painão levou. A gente ia num cami-nhão. Aí quando a gente vinha devolta não era mais o mesmo mo-torista, já era outro. E um é esseque matou meu pai, é o que“veve” com minha mãe.

OP - Ele tentou abusar de você?Cecília - Foi. Ele disse que nãodeu certo me “estrupar”, mas eleia me “estrupar”, me matar eminha mãe nem ia acreditar quefoi ele. Aí eu fugi com medo enão volto mais nunca. Só quandoeu morrer.

OP - Você estudou?Cecília - Estudei até a sétima.Estudava duas vezes, de manhã ede tarde. Parei por causa do meu“pradasto”, que me tirou docolégio, ele tinha ciúme de mim.

OP - Não estuda desde a Bahia?Cecília - Não. Eu parei tinha 11anos. Sei ler, escrever. Tambémtô aqui mas não tenho nenhumdocumento. Nada, nada. Quandofugi de casa, foi só com a roupado corpo.

OP - Você queria sair dessa vida,mudar completamente?Cecília - Eu queria mudar de vi-da de pedra (de crack).OP - Você compra pedra de crackcom o dinheiro dos programas?

Cecília - Às vezes eu compro,mas às vezes me dão.

OP - Quem te dá?Cecília - Os caras que saio comeles. Eles têm. E têm pó também.Eu já fiquei no hotel (diz o nome)na Beira Mar com um gringo. Eele tinha um bocado de crackdentro da gaveta. Bem cheinha.

OP - Você emagreceu muito de-pois do crack?Cecília - Aos 15 anos eu aindaera gorda. Era bonita. Todomundo disse que eu não queria,agora são eles que não “quer”.Fiquei com raiva e revoltada davida. Se não “fosse” eles (os trêspoliciais) eu não taria usando. Eunem conhecia.

OP - Quando você começou a fa-zer programas?Cecília - Depois disso, que eume “aviciei” no crack.

OP - Você já morou onde mais emFortaleza?Cecília - Na praia da Leste-Oeste. Tem outra praia pracolá...Barra do Ceará. Lá foi onde elesme botaram pra entregar aostraficantes (a droga), e os trafi-cantes queriam me matar. Aí elesme trouxeram de volta (repete onome dos policiais). Disseram“ei, tu tem que sair fora que essescaras vão te matar”. E eu disse“mas é vocês que foram comigo,eu tô com medo”. Comecei achorar, aí o inspetor (repete onome do policial) botou “eu”dentro do carro e foi me deixarno terminal, mas os traficantesainda me pegaram e ainda mebateram. Enquanto o outro foibuscar a arma, o inspetor (repeteo nome) chegou.

OP - Você sabe dizer se os policiaiscontinuaram a venda de drogas?Cecília - Não, pararam. “Porcausa que” eles ficaram commedo de eu abrir a boca.

OP - Eles já haviam feito isso comoutra menina antes?Cecília - Eles disseram que não.Mas não tenho certeza. Acho queessa casa que eu tava já vendia. Játinha gente vendendo e elestiraram. Lá tinha tudo, balança,tudo. Era atrás da delegacia, aterceira rua.

OP - Como são os programas quevocê faz na BR?Cecília - Eles param, perguntamquanto é, digo “é 10”. Aí elesdizem “onde”, eu digo “no carroou no motel”. Aí nós vamos.

OP - Você transa com camisinha?Cecília - Com camisinha. Masteve um bocado “de vez” que fizsem camisinha. Eu drogada, umbocado de vez.

OP - Você sabe se tem algumadoença?Cecília - Acho que tenho.

OP - Mas você não tem medo deestar espalhando alguma doença?Cecília - Não. Quem manda eles“querer” sem camisinha? Fuiprum hospital fazer exame, omédico disse que não ia fazer,que não tenho documento. Porisso não sei se tenho. Tá nascen-do um bocado de feridinha emmim. Por isso acho que tenhodoença. E já tá bom!

OP - Com seu dinheiro, você sem-pre compra droga ou comida?Cecília - É. Não tenho medo demorrer. Acho que já vivi muito.

OP - Já viveu muito?Cecília - Já, e não aproveitei na-da que preste. Só acontece coisaruim, ruim, ruim. Cada vez maisruim, ruim, ruim.

NO TRECHOda BR-116 em For-

taleza, os pontos de explo-ração sexual são os viadutos e al-

guns postos de gasolina. Logo no iní-cio da noite, já é possível presenciar o pro-

blema. Curioso é que a sede da Polícia Rodoviáriafunciona como um divisor de preços. Até lá, na área cor-

respondente ao bairro Tancredo Neves, as garotas chegama cobrar apenas R$ 5,00 pelo programa. Nos postos e viadu-

tos localizados depois da PRF, na direção de Messejana, opreço sobe. Segundo um grupo de garotas abordadas

pelo O POVO, o preço ali é de pelo menos R$ 15,00por programa. Ao lado, o flagrante do assé-

dio de um motorista a uma das garotasque são exploradas na BR-116,

dentro de Fortaleza. (FA)