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1 FOTOGRAFIA COMO DOCUMENTO E ARTE. HÁ COMO SERVIR A DOIS SENHORES? CÉSAR BASTOS DE MATTOS VIEIRA Professor, Arquiteto, Doutor. UFRGS Faculdade de Arquitetura. E-mail: [email protected] Introdução Tendo-se como ponto de partida a discussão, aparentemente sem fim, da dupla origem da fotografia tecnologia e arte e baseando-se, principalmente, no livro de André Rouillé, A fotografia entre documento e arte contemporânea, propõe-se um olhar mais acurado e crítico sobre o trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado, mais especificamente, sobre seu trabalho mais recente: Genisis. Este projeto é apresentado em diversos formatos exposições externas, exposições internas em museus e espaços públicos, livros (edição “popular”, edição especial para colecionadores), pôsteres de grande formato além de cópias fotográficas. Em especial, na visitação da exposição principal, uma analise um pouco mais apurada e demorada sobre as fotografias, gerou uma série de indagações sobre sua real “honestidade fotojornalística” em se tratando da obra de um dos mais importante fotojornalista em atividade no mundo. Estas indagações surgem quando em algumas de suas fotografias percebe-se cenas que parecem posadas, outras feitas em estúdios com fundos infinito convencionais e outras, de certa forma, em estúdios mascarados por serem construídos de folhas, mas ainda assim em um formato que lembra os estúdios nos moldes dos utilizados no século XIX. Uma vez que Sebastião Salgado não inclui muita informação escrita em seus projetos fotográficos, buscou-se, então, subsídios em sua biografia. Pretende-se tentar entender seus processos, crenças, valores e até que níveis de elaboração e alteração da realidade Sebastião Salgado pode chagar na construção de suas imagens. Ainda há, no senso comum, uma crença de que a fotografia, e em especial a fotojornalística, por tratar de registrar fatos reais, seja mais “honesta”, elaborada de maneira limpa sem o uso de recursos técnicos, filtros e efeitos elaborados de forma a ser um registro fidedigno de uma determinada realidade vivenciada, observada pelo fotógrafo.

FOTOGRAFIA COMO DOCUMENTO E ARTE. HÁ COMO … · mais acurado e crítico sobre o trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado, mais ... nem do azul para mostrar o mar ou o ... ou uma

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FOTOGRAFIA COMO DOCUMENTO E ARTE.

HÁ COMO SERVIR A DOIS SENHORES?

CÉSAR BASTOS DE MATTOS VIEIRA

Professor, Arquiteto, Doutor.

UFRGS – Faculdade de Arquitetura.

E-mail: [email protected]

Introdução

Tendo-se como ponto de partida a discussão, aparentemente sem fim, da dupla

origem da fotografia – tecnologia e arte – e baseando-se, principalmente, no livro de

André Rouillé, A fotografia entre documento e arte contemporânea, propõe-se um olhar

mais acurado e crítico sobre o trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado, mais

especificamente, sobre seu trabalho mais recente: Genisis. Este projeto é apresentado

em diversos formatos – exposições externas, exposições internas em museus e espaços

públicos, livros (edição “popular”, edição especial para colecionadores), pôsteres de

grande formato além de cópias fotográficas. Em especial, na visitação da exposição

principal, uma analise um pouco mais apurada e demorada sobre as fotografias, gerou

uma série de indagações sobre sua real “honestidade fotojornalística” em se tratando da

obra de um dos mais importante fotojornalista em atividade no mundo. Estas indagações

surgem quando em algumas de suas fotografias percebe-se cenas que parecem posadas,

outras feitas em estúdios com fundos infinito convencionais e outras, de certa forma, em

estúdios mascarados por serem construídos de folhas, mas ainda assim em um formato

que lembra os estúdios nos moldes dos utilizados no século XIX. Uma vez que

Sebastião Salgado não inclui muita informação escrita em seus projetos fotográficos,

buscou-se, então, subsídios em sua biografia. Pretende-se tentar entender seus

processos, crenças, valores e até que níveis de elaboração e alteração da realidade

Sebastião Salgado pode chagar na construção de suas imagens.

Ainda há, no senso comum, uma crença de que a fotografia, e em especial a

fotojornalística, por tratar de registrar fatos reais, seja mais “honesta”, elaborada de maneira

limpa – sem o uso de recursos técnicos, filtros e efeitos elaborados – de forma a ser um

registro fidedigno de uma determinada realidade vivenciada, observada pelo fotógrafo.

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Por outro lado, o trabalho de Sebastião Salgado parece buscar uma aproximação

com o universo das artes. Para isto, agrega valores subjetivos, dá importância a uma

“escrita” pessoal, faz com que suas fotografias sejam desejadas e consumidas por

colecionadores e estarem presente em museus do mundo inteiro. Seu formato de

apresentação amplia-se ao ser finalizado, além dos formatos tradicionais da foto-

documento, em cópias de grande formato e publicações de luxo. Entretanto, mantém

como objetivo, conforme declarado pelo autor, apresentar e servir de registro de lugares,

indivíduos e fatos ainda intactos ou que sofreram pouco com a expansão da

humanidade.

Neste contexto o trabalho e a biografia de Sebastião Salgado oferecem uma

oportunidade interessantíssima para refletir sobre como a fotografia pode servir como

documento e arte ao mesmo tempo. Se é um registro elaborado dentro dos mais altos

rigores técnicos e apresenta toda a sua objetividade científica registrando com precisão

fatos reais ou se toma de toda a subjetividade artística e apresenta uma leitura virtuosa

de um dos maiores fotógrafos mundiais. O equilíbrio entre estes dois polos pode existir?

Sempre as fotografias trarão um pouco de cada universo, mas parece interessante

sempre refletir e considerar estas minúcias da fotografia uma vez que ainda geram

surpresas, indagações e até mesmo indignação quando se percebe que determinadas

fotografias foram obtidas em cenários montados aos moldes do século XIX, ou que a

cena foi construída, seus atores preparados, esperou-se a melhor luz, tudo com a

intenção especifica de se obter uma imagem espetacular.

Discussão teórica

Sebastião Salgado: O fotógrafo e sua criação

Sebastião Salgado é um fotografo extraordinário que assim como outros grandes

fotógrafos não desenvolve muito teorias nem teses sobre a fotografia e sua obra, o que é

lastimável. Assim como Henri Cartier-Bresson acredita em algo muito próximo do

“momento mágico” e descreve o ato fotográfico da seguinte maneira:

Colocando-se num estado de total integração com aquilo que o cerca, o

fotógrafo sabe que assistirá a algo inesperado. Quando ele se funde com a

paisagem, com o lugar, a construção da imagem acaba vindo a tona diante de

seus olhos. Mas para conseguir vê-la, ele precisa fazer parte do fenômeno.

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Todos os elementos começam então a atuar para ele. Neste instante, quando

deslumbramento![...] Fotografia é isso. Em dado momento, todos os

elementos estão interligados: as pessoas, o vento, a árvore, o fundo, a luz.

Quando aciono a câmera, estou por inteiro nesse gesto. É mágico – e é um

prazer solitário. (SALGADO, 2014. p.49-50)

Por se tratar de um fotógrafo que construiu suas crenças e valores pela vivência

íntima com o ato fotográfico na prática e da observação diretas dos fenômenos, Sebastião

Salgado acredita, por exemplo, que “a fotografia é uma escrita tão forte porque pode ser

lida em todo o mundo sem tradução” (SALGADO, 2014. p.58) o que é ponto polêmico

uma vez que para os linguistas “se toda a imagem é uma representação, tal implica que

ela utilize necessariamente regras de construção [...] que para serem compreendidas por

outros exige um mínimo de convenção sociocultural” (JOLY, 2008. p. 44).

Ilustra-se assim as divergências entre teóricos “puros” e “praticantes” desta

atividade apaixonante. Entra nesta trama também o leitor/expectador que traz suas crenças

e níveis distintos de capacidade de decifração das “Histórias fotográficas” construídas

pelo fotógrafo. Consequentemente, este trabalho é fruto de um conjunto de ações: “vejo,

sinto, portanto reparo, olho e penso.” (Barthes, 2008. p. 30)

GENISIS

Tem algo, neste projeto, que remete o visitante/espectador aos projetos

fotográficos da metade do século XIX onde, conforme Rouillé:

A fotografia afirma ao ritmo das mudanças do espaço, do tempo e do

horizonte do olhar que acompanha o desenvolvimento da ferrovia e da

navegação à vapor. [...] na qual a proliferação das imagens vai projetar para

longe o olhar; a da disjunção, em razão da crescente mobilidade dos homens,

das coisas e das imagens.” (2009. p.81)

Os projetos de Sebastião Salgado lembram em muito os projetos que

aconteceram na Europa entre 1856 e 1867 e nos Estados Unidos a partir de 1930

(ROUILLÉ, 2009. p.106-107) quando surgem em grande número com o objetivo de,

conforme André-Adolphe-Eugène Disdéri terem a ambição de:

organizar missões fotográficas, encarregadas de explorar todas as regiões do

mundo e de trazer, após alguns anos, reproduções completas de tudo que, nos

diferentes lugares do globo terrestre, possa interessar às ciências físicas e

naturais. (Cf. Alophe in, ROUILLÉ, 2009. p.99)

Não por mera coincidência, os projetos de Sebastião Salgado levam vários anos

para serem elaborados, exploram diferentes e exóticas regiões do mundo e trazem

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imagens que interessam a diversas áreas do conhecimento e ao leitor em geral. Neste

sentido Sebastião Salgado poderia ser considerado um dos últimos fotógrafos

desbravadores/exploradores em atividade no mundo. Oferecendo a oportunidade de

ainda manter vivo o desejo dos primeiros espectadores de que “Colecionar fotos é

colecionar o mundo”. (SONTAG, 2004. p. 13)

Neste sentido o trabalho de Sebastião Salgado pode ser classificado como de

fotografias-documentos e assim ser também inserido neste contexto:

“Uma das grandes funções da fotografia-documento terá sido a de erigir um

novo inventário do real, sob a forma de álbuns e, em seguida, de arquivos. [...] a partir

de 1840, foram confeccionados com a ajuda de provas originais, e muitas vezes

publicados em tiragens de poucos exemplares.” (ROUILLÉ, 2009. p.97-98)

Suas fotografias destoam da enxurrada de imagens que são oferecidas por todas

as mídias e as quais estamos expostos constantemente. Mas porque destoam?

Primeiro, porque são fotografias em preto e branco. Mas não apenas por uma

conversão direta da cor para os tons de cinza. Suas fotografias possuem uma textura,

uma densidade especial. Como descreve Sebastião Salgado: “Trata-se de reconstruir

minhas emoções numa linguagem que não é real – pois o preto e branco é uma

abstração – por meio da gama de cinzas do filme fotográfico.” (2014. p.49) São

fotografias exaustivamente trabalhadas por técnicas diferenciadas que agregam uma

qualidade de difícil obtenção pelo leigo ou pelo iniciante no universo da fotografia e da

pós-edição. O resultado final das fotografias de Sebastião Salgado é fruto de um

trabalho de uma equipe especializada e de materiais diferenciados algumas vezes

desenvolvidos especialmente para ele.

Sebastião Salgado descreve a escolha pelo preto e branco da seguinte maneira:

Não preciso do verde para mostrar árvores, nem do azul para mostrar o mar ou o

céu. A cor pouco interessa na fotografia. [...] Com o preto e branco e todas as

gamas de cinza posso me concentrar na densidade das pessoas, suas atitudes, seus

olhares, sem que estes sejam parasitados pela cor. Sei muito bem que a realidade

não é assim. Mas quando contemplamos uma imagem em preto e branco, ela

penetra em nós, nós a digerimos e, inconscientemente, a colorimos. O preto e

branco, essa abstração, é, portanto, assimilado por aquele que o contempla, que se

apropria dele. Considero seu poder realmente fenomenal. (2014. p.127-128)

Segundo, porque apresentam um universo, de certa maneira, construído mais do que

se espera de uma fotografia elaborada pelo “maior fotojornalista do mundo”. (SALGADO,

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2014. capa) É esperado, pelo senso comum, que uma fotografia feita por um fotojornalista

contenha uma grande parcela de equivalência com o universo visível do qual a câmera

capturou a luz refletida nos objetos da cena. Conforme Rouillé se refere: a “reprodução

exata da natureza” (2009. p.59), porém para um olhar mais apurado pode-se perceber

indícios de uma construção de uma versão da realidade e não apenas uma “reprodução”.

Para comprovar esta tese foram selecionadas algumas fotografias da coleção

Genisis, que ilustram de maneira mais contundente e de fácil observação desta

construção de uma versão da realidade, ou uma interpretação. Esta estratégia fotográfica

parece ir na contramão da ideia original de Sebastião Salgado de ser um projeto

fotográfico que “queria mostrar a natureza no seu auge, independente do lugar onde se

encontrasse. [...] com o objetivo de retratar esses povos o mais próximo possível de seu

estilo de vida ancestral.” (SALGADO, 2013. p.7-8).

Figura 1 – Os Mentawai, Indonésia – Xamã preparando um filtro para sagu.

Fonte: SALGADO, 2013. p.207

A figura 1 apresenta um xamã preparando um filtro para sagu, na Ilha Suberut,

Sumatra Ocidental, Indonésia, março de 2008. O que chama a atenção, nesta fotografia,

é ter sido feita sobre um fundo infinito, com uma luz difusa, muito bem distribuída e

controlada o que sugere ter sido obtida dentro de um estúdio e não em plena floresta. Só

estão presentes na imagem o modelo com seus ornamentos e o material para a

confecção do filtro de sagu, como se o fotógrafo tivesse recortado do ambiente somente

o que lhe interessava retratar.

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Figura 2 – Papua-Nova Guiné

Fonte: SALGADO, 2013. p.198-199 e 200 respectivamente.

A figura 2 apresenta duas fotografias de Papua-Nova Guiné, também, apresentam os

modelos sobre fundo infinito escuro, com um controle muito preciso da luz que ilumina de

maneira suave realçando as texturas, oferecendo volume às imagens. Os modelos são

apresentados ornamentados, os primeiros em ação tocando suas flautas, todos com

expressões fortes e olhares penetrantes. Chama muita a atenção seus olhos. Parecem

denunciar certo desconforto e tensão.

Figura 3 – Os idígenas do Alto Xingu – Retrato de todos os xamãs kamayura.

Fonte: SALGADO, 2013. p.476-477

A mesma estratégia repete-se na Amazônia, com os idígenas do Alto Xingu –

Retrato de todos os xamãs kamayura – figura 3. Aqui Sebastião Salgado declara a estratégia

ao chamar a fotografia de “retrato”. Todas estas imagens até agora apresentadas são de fato

retratos feitos de uma maneira muito parecida com os retratos do século XIX, ou seja, cenas

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posadas, com os modelos devidamente caracterizados e/ou desenvolvendo suas atividades

e, portanto, oferecendo as mesmas discussões teóricas.

Figura 4 – A tribo dos Zo’é – Mulheres usando o urucum.

Fonte: SALGADO, 2013. p.462-463

A figura 4 - A tribo dos Zo’é – Mulheres usando o urucum – foi, também, obtida em

um tipo de estúdio fotográfico, porem este “estúdio” parece camuflado pela utilização no

fundo infinito de folhas de palmeiras. Este recurso, também é encontrado em diversas

fotografias o que dificulta a percepção do estúdio e torna mais difícil a percepção do nível

de construção da cena fotografada pelo leitor mais distraído e desavisado.

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Figura 5 – Os Mentawai, Indonésia – Homem-lama

Fonte: SALGADO, 2013. p.205

A figura 5 – Os Mentawai, de Papua-Nova Guiné - Indonésia – “Homem-lama

está entre as figuras mais impressionantes do imaginativo mundo dos planaltos”.

(SALGADO, 2013. Encarte p. 12) Nesta fotografia o que chama a atenção é a pose

estática, aos moldes das fotos dos primórdios da fotografia, com um tempo de exposição

prolongado. A água borrada da cachoeira e do córrego de água confirmar a necessidade

de um tempo prolongado de exposição. Esta estratégia obrigou o nativo a uma pose

estática por um tempo significativo. Sem uma cumplicidade fotógrafo/modelo isto não

teria sido possível o que tira a naturalidade da cena e coloca em dúvida o grau de

realismo: se era um momento “natural” deste grupo de indivíduos ou se é uma cena do

“mundo imaginativo do fotógrafo”.

Figura 6 – Os Himba - África

Fonte: SALGADO, 2013. p.264-265

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Figura 7 – As tribos do vale inferior do Omo - Etiópia

Fonte: SALGADO, 2013. p.309

Figura 8 – As tribos do vale inferior do Omo – Etiópia – As mulheres mursi e surma.

Fonte: SALGADO, 2013. p.312-313

As figuras 6, 7 e 8 são retratos em espaços abertos, mas que mantém o conceito

de retrato posado, que de acordo com Barthes:

... se cruzam, se confrontam e se deformam quatro imaginários. Perante a

objetiva, eu sou simultaneamente aquele que eu julgo ser, aquele que eu gostaria que os

outros julgassem que eu fosse, aquele que o fotógrafo julga que eu sou e aquele de

quem ele se serve para exibir a sua arte. (2008. p. 21-22)

A figura 6 apresenta, em um plano de fundo desfocado, cabras sugerindo um

ofício aos modelos, mostrados no primeiro plano. Sugere ser mãe e filhos o que nem na

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legenda é esclarecido, mas mostra uma mulher com fisionomia forte, seios a vista e uma

vestimenta carregada de ornamentos, que aos moldes das fotografias do século XIX

pode ser um traje de festa ou melhor do o utilizado no cotidiano. As crianças se

mostram de maneira mais natural, sem que se deixe de perceber algum constrangimento

que não parece ser por alguma repreenda da mulher.

A figura 7 apresentam um retrato quase abstrato onde parece mais importante a

forma construída pelo adorno de cabeça e o adorno da boca. A face se desconstrói pela

deformação e o grau de importância dos elementos de adorno colocados dentro de

quadro. O fundo desfocado aumenta o ponto focal para o modelo que é contraposto a

um tronco retorcido.

Já a figura 8 apresenta duas mulheres com seus adornos e uma postura e olhares

que remete às revistas masculinas pela tentativa de sensualidade. Chama à atenção a

limpeza da pele, dos panos brancos e dos adornos de boca. O fundo desfocado realça os

modelos e o tronco de árvore que parece marcar a linha de simetria da fotografia.

É importante salientar que as considerações apresentadas acima levam em conta,

pelo menos, códigos técnicos e socioculturais do pesquisador e pode – ou deverá – haver

divergências e discordâncias destas analises o que não tira o valor desta demonstração.

Verdade ou ficção?

“Genisis” é uma coleção de fotografias que, como é a intenção do autor, conta

uma história, mas que história? Qual o grau de verdade e de fantasia ela contém?

Quanto pode ser atribuído a ela de valor documental ou de valor artístico? Este é o

ponto focal deste trabalho e que parece depender em grande parte da intenção e objetivo

do fotógrafo/operador e da capacidade de leitura do espectador. O Spectator de Barthes

que experimenta e olha e que é qualquer pessoa “que consulta nas revistas, nos livros,

álbuns e arquivos, nas coleções de fotografias” (2008. p. 17) e que vai acreditar ou não

na veracidade do que a fotografia conta.

Conforme Rouillé, a verdade ou a ficção é uma construção que pode variar, ao

depender do leitor e de sues códigos e crenças:

O verdadeiro não é uma segunda natureza da fotografia: é somente efeito de

uma crença que, em um momento preciso da história do mundo e das

imagens, se ancora em práticas e formas cujo suporte é um dispositivo. O

verdadeiro da fotografia-documento se estabelece pela diferença na

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comparação, de um lado, com o verdadeiro da pintura ou do desenho, e, de

outro, com o da fotografia artística. As formas fotográficas do verdadeiro

tendem a confundir-se com as formas do útil. (ROUILLÉ, 2009. p.83)

Uma mesma fotografia pode ser apenas lida como um “instantâneo” simples sem

muitas pretensões apenas por sua beleza aparente, ou lida a fundo em sua potencialidade

de oferecer informações.

Da coisa à imagem, o caminho nunca é reto, como creem os empiristas e

como queriam os enunciados do verdadeiro fotográfico. [...] A imagem é

tanto a impressão (física) da coisa como o produto (técnico) do dispositivo, e

o efeito (estético) do processo fotográfico. [...] A imagem constrói-se no

decorrer de uma sucessão estabelecida de etapas (o ponto de vista, o

enquadramento, a tomada, o negativo, a tiragem, etc.), através de um

conjunto de códigos de transcrição da realidade empírica: códigos ópticos (a

perspectiva), códigos técnicos (inscritos nos produtos e nos aparelhos),

códigos estéticos (o plano e os enquadramentos, o ponto de vista, a luz, etc.),

códigos ideológicos, etc. (2009. p.79)

Documento e arte: duas faces da fotografia

A fotografia sempre traz em sua essência traços de sua dupla origem: no aparato

tecnológico físico/químico, as regras e demandas da óptica e da química, e das artes, a

subjetividade do olhar sempre presente no ato fotográfico.

Apesar da presunção de veracidade que confere autoridade, interesse e

sedução a todas as fotos, a obra que os fotógrafos produzem não constitui

uma exceção genérica ao comércio usualmente nebuloso entre arte e verdade.

Mesmo quando os fotógrafos estão muito mais preocupados em espelhar a

realidade, ainda são assediados por imperativos de gosto e de consciência.

(SONTAG, 2004. p. 13)

Nos seus primórdios a fotografia baseia “seu caráter de imagem-máquina, à

parte que, sem precedentes, a tecnologia ocupa em suas imagens” (ROUILLÉ, 2009.

p.31). Nesta época se vangloriava de retirar a mão do artista do processo de registro.

Jules Janin, em 1839, proclama: “Nenhuma mão humana poderia desenhar como o sol

desenha” (in ROUILLÉ, 2009. p.33). O que parecia fantástico: um processo de registro

sem a necessidade da mão humana não considerava, entretanto, com a importância do

operador no ato fotográfico, ou seja, a mão humana apenas trocou de lugar: não se

coloca mais entre o modelo e a tela, mas comanda toda a ação pelo buraco da câmera

escura por traz do plano onde a imagem acontece. Nesta posição ele escolhe ângulos,

decide pelo que fica e o que sai de quadro e compõe a imagem dentro de regras

compositivas, se isso ele desejar. Discorda-se, então, de Rouillé que desqualifica o

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operador perante o artista: “Além disso, o olho do especialista não é o olho do pintor.”

(ROUILLÉ, 2009. p.41) Não considerando que muitos dos primeiros “operadores”

foram artistas que ao perderem seus ofícios se aliam às inovações.

Entretanto, concorda-se com Rouillé que ficará sempre ligada, à fotografia, a

dicotomia:

“De um lado, a representação, o ícone, a imitação; do outro, o registro, o

índice, o rastro. E um conjunto de oposições binárias: o artista e o operador;

as artes liberais e as artes mecânicas; a originalidade da obra, contra a

similaridade e a multiplicidade das provas.” (2009. p.17)

Rouillé tem uma posição curiosa para defender a diferença entre a fotografia e a

arte ao se basear na questão da hierarquização. “A fotografia não hierarquiza, seu olhar

sobre o mundo é democrático: para ela, todas as coisas são iguais.” (2009. p.57) e

coloca esta condição para afastar a fotografia das artes ao afirmar:

Mas o que, em definitivo, afasta radicalmente a fotografia da arte é que, em

todos os níveis, ‘o acessório á tão capital quanto o principal’, é o processo

não estabelecer nenhuma hierarquia: nem entre os objetos registrados, nem

entre os detalhes reproduzidos, nem entre as bordas e o centro da imagem.”

(ROUILLÉ, 2009. p.85)

E complementa relacionando a fotografia com o desenho:

“A fotografia dá não somente o que o próprio autor viu e quis representar,

mas tudo o que é realmente visível no objeto reproduzido. Logo, a fotografia

e o desenho não se equivalem. Enquanto a fotografia reproduz todo o visível,

visto ou não visto, sem seleção e sem perda, o desenhista representa apenas

um aspecto restrito: o que consegue perceber, o que ele quer reter.” (2009.

p.41)

Esta posição de Rouillé parece da falta de uma vivência prática com o ato

fotográfico, pois há limitações no registro fotográfico que não permitem que todo o

universo visível seja apresentado “todo o visível de forma igual”. Conforme Vieira

(2012. p. 111-206) descreve no item 3.4 - As variáveis no ato fotográfico, há diversas

discrepâncias e diferenças entre o que a câmera registra e o que o olho humano vê. Já

Benjamin constatava que “A natureza que fala com a câmera é distinta da que fala ao

olho” (2008, p. 26). Para dar apenas um exemplo ilustrativo: a fotografia não é capaz de

registrar em uma mesma imagem grandes variações de luz, ou seja, em uma foto obtida

com uma fotometragem média, da luz refletida pelos objetos vão ficar sem leitura nas

altas luzes e nas zonas muito sombreadas (as baixas luzes), o que era explorada de

maneira primorosa por Ansel Adams e Sebastião Salgado, mesmo referindo à

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quantidade de imagens que ele perdeu em situações com pouca iluminação (2014. p.

118). Estas peculiaridades no registro da cena permite ao fotógrafo hierarquizar os

objetos registrados, contrariamente ao que Rouillé afirma e derruba de certa forma a não

equivalência entre a fotografia e outras formas de representação, como o desenho e a

pintura. Há como hierarquizar os objetos na fotografia de maneira diferente do desenho,

mas há esta possibilidade. Entretanto, haverá situações onde o desenho, ou em outros

onde a fotografia resultará em melhores registros das cenas pelas características

especificas de cada caso.

Rouillé é em parte confuso ao apresentar seus argumento, pois alterna pontos

controversos a respeito da capacidade da fotografia de representar o real e seu caráter de

verdade ao afirmar também que: “...o importante é como a imagem produz o real. O que

equivale a defender a relativa autonomia das imagens e de suas formas perante os

referentes, e reavaliar o papel da escrita em face do registro.” (2009. p.18)

Documento e expressão

Rouillé propõe como base na discussão de seu livro Fotografia entre documento

e arte contemporânea uma diferenciação entre o que ele denomina de fotografia-

documento e a fotografia-expressão, a saber:

Fotografia-documento: O valor documental que, longe de ser fixo ou

absoluto, deve ser apreciado por sua variabilidade no âmbito de um regime

de verdade – o regime documental. O valor documental da imagem baseia-se

em seu dispositivo técnico, mas não é garantido por ele, pois varia em função

das condições de recepção da imagem e das crenças que existem a respeito.

Fotografia-expressão: a fotografia em seu aspecto expressivo, que durante

muito tempo, esteve escondido ou foi rejeitado. (2009. p.27-28)

Rouillé apresenta dois usos da fotografia no qual um sucede o outro dentro de

uma evolução histórica. Parece que Sebastião Salgado derruba esta evolução linear com

sua “História fotográfica Genisis”, na qual ele volta aos lugares, personagens e

protocolos anteriores e mesmo assim satisfaz e surpreende seus públicos.

Lembrando que Barthes (2008. p. 12) já alertava para a dificuldade de classificar

a fotografia uma vez que ela “esquiva-se” destas tentativas. Para nossos objetivos de

entender a fotografia e seus usos uma taxionomia baseada em “tipos pontuais” –

fotografia-documento, fotografia-expressão, fotografia-artística – em uma classificação

unitária não é tão potente quanto uma classificação em escalas variáveis de uso. Como,

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por exemplo, Vieira (2012. p. 276-289) propôs para uma taxonomia da fotografia de

arquitetura que apresenta uma escala onde em cada ponto extremo está um tipo de uso

(fotografia de representação arquitetônica e fotografia de expressão arquitetônica) e que

cada fotografia pode conter uma parcela de cada tipo variando com seu uso, utilidade e

finalidade de aproveitamento. No caso das fotografias de Sebastião Salgado na coleção

Genisis, por exemplo, elas podem ter um valor artístico para um leitor leigo, pode ter

um valor histórico e assim documental para um pesquisador daquela região ou povo e

um valor de expressão para alguém que pesquise as estratégias de obtenção das imagens

pelo seu autor.

Fotografia-documento como elemento autônomo: a arte no documento

Cattani (2010) fala do desenho como elemento autônomo em relação ao que

representa e apresenta uma linha de raciocínio capaz de abarcar, também, a

possibilidade da fotografia-documento tornar-se um elemento autônomo em relação ao

seu referente. Assim Cattani argumenta:

Mas assim como a maquete pode adquirir autonomia em relação ao que

representa, colocando-se em um patamar de obra de arte autônoma, o mesmo

pode acontecer com o desenho, sobretudo os croquis de estudo de caráter

marcadamente autoral. Prova disso é a quantidade de desenhos de arquitetos

que são motivo de exposições, livros, mostras e vendas. Deste modo, fica

evidente a dupla natureza do desenho de arquitetura: de um lado, instrumento

objetivo de controle de definição de espaços construídos e processos

construtivos; de outro, instrumento de investigação, divagação, pesquisa,

invenção, criação, arte. (2010. p. 16-17)

Nesta mesma abordagem, aplicada às fotografias de Sebastião Salgado, é

possível afirmar que por possuírem “caráter marcadamente autoral”: “Minha fotografia

não é objetiva. Como todos os fotógrafos, fotografo em função de mim mesmo, daquilo

que me passa pela cabeça, daquilo que estou vivendo e pensando.” (SALGADO, 2014.

p.47 - Grifo do pesquisador). Pode-se assim atribuir, também, a “dupla natureza” à sua

fotografia: valor documental e valor artístico. Validando na proposta de Cattani pelo seu

meio de exibição (exposições) e seu consumo (por museus e colecionadores). “Os

escritores relatam com suas penas, eu relatava com minhas câmeras. A fotografia é para

mim uma escrita.” (SALGADO, 2014. p.43)

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Considerações finais

A fotografia é um ato vinculado a uma relação entre o fotógrafo, sua câmera e o

modelo que será lida por um terceiro: o leitor. Em que grau cada parte será atribuído de

importância dependerá de uma diversidade de intencionalidades possíveis motivadoras

do ato fotográfico e sua decifração. Flusser afirma que “o significado decifrado será,

pois, o resultado de síntese entre duas intencionalidades: a do emissor e a do receptor”

(2002, p. 8). Aparentemente, a intenção de registro do modelo pode não ser mais o

objetivo primário. As ambições do fotógrafo de pretender se afirmar como artista, a

necessidade de demonstração da capacidade de controle e esgotamento das

potencialidades da câmera, as demandas visuais de um publico viciado em imagens

diferentes, impactantes, surpreendentes parecem superar a demanda por um registro

mais preciso do modelo.

Sebastião Salgado com suas “histórias fotográficas” “nos ensina um novo código

visual, onde as fotos modificam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o

que temos o direito de observar.” (SONTAG, 2004. p. 13)

A obra de Sebastião Salgado, enfim, demonstra que a fotografia pode transitar

por vários universos distintos tais como a objetividade da informação documental e a

subjetividade da arte sem necessariamente sofrer grandes modificações aparentes.

A mesma imagem pode servir a dois mundos, então pode servir a dois senhores.

Há obviamente que se ter, como leitor/espectador, a consciência de que se trata sempre

de uma representação, que ali esta a mão do fotógrafo que interviu na realidade que

buscou seu olhar sobre o mundo visível: “Minhas fotos foram tiradas porque pensei que

o mundo inteiro devia saber. É meu ponto de vista, mas não obrigo ninguém a vê-las.”

(SALGADO, 2014. p.94)

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Referências

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Edições 70, 2008.

BENJAMIN, Walter. Sobre la fotografia. 4 ed. Valencia, Espanha:Pre-textos, 2008.

CATTANI, Airton. Sistemas de representação em arquitetura. Relatório de estágio

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FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da

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JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Portugal, Lisboa: Edições 70, 2008.

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SALGADO, Sebastião, FRANCQ, Isabelle. Da minha terra a Terra; tradução Julia da

Rosa Simões – 1. Ed. São Paulo: Paralela, 2014.

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VIEIRA, César Bastos de Mattos. A fotografia na percepção da arquitetura. Tese

(Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Universidade Federal do

Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. Repositório Digital – UFRGS Linck:

http://hdl.handle.net/10183/53735