Upload
claudia-girassol
View
184
Download
3
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Carlos Relvas (1838-1894) foi um dos maiores fotógrafos amadores de Portugal e destacou-se em todos os géneros, desde o retrato do mais simples mendigo a personagens da realeza, da paisagem ribatejana às ruas movimentadas de Paris, da lua às obras de arte e ao património monumental. É precisamente neste último ponto que nos iremos debruçar neste ensaio.
Citation preview
“A FOTOGRAFIA DE PATRIMÓNIO/ FOTOGRAFIA COMO PATRIMÓ NIO
NO SÉCULO XIX: O PAPEL
DE CARLOS RELVAS (1838-1894)”
«Se o seculo XIX, considerado debaixo do ponto de vista politico e scientifico,
é justamente denominado o século das luzes, estudado sob o ponto de vista especial da arte
elle deve ser conhecido justamente como o seculo da LUZ.»
A Arte photographica, nº1, Jan. 1884.
Cláudia dos Santos Araújo Feio
1
Índice 1. A fotografia de património no século XIX ................................................................... 2 2. O caso específico de Carlos Relvas ............................................................................ 16 3. Em jeito de conclusão: fotografia como património .................................................. 24 4. Fotografia de Património por Carlos Relvas .......................................................... 25 Bibliografia .................................................................................................................... 35
2
1. A fotografia de património no século XIX
Na aurora do século XIX, nos principais países da Europa, o património surgiu
como a grande vítima das revoluções políticas, sociais e industriais. Como reacção à
destruição patrimonial, à desagregação de um passado histórico, à incúria e à
indiferença dos bens legados pelos antepassados – e temperadas por um afirmar
paulatino de uma consciência romântica, ligada ao culto do passado e da procura da
individualidade enquanto nação – intentaram-se medidas de protecção do património, se
bem que periclitantes e envoltas numa ambiguidade de destruição/conservação que
percorreu todo o século. Como refere Françoise Choay, “a chegada da era industrial
enquanto processo de transformação, mas também de degradação do ambiente
humano, contribuiu, juntamente com outros factores menos importantes, como o
Romantismo, para inverter a hierarquia de valores atribuídos aos monumentos
históricos e para privilegiar pela primeira vez os valores da sensibilidade,
nomeadamente estéticos.”1
Com a nacionalização do património decorrente das revoluções liberais, os bens
históricos tornaram-se possessões materiais que importava conservar, porque os Estados
arriscavam-se a sofrer pesados danos financeiros. O património era, pois, um valioso
“pé-de-meia” para sustentar os gastos da revolução, através da sua venda a particulares
ou da sua transformação em algo mais proveitoso para a causa revolucionária. A
verdade é que os decretos protectores gizados nesta altura “tornaram-se instrumentos de
uma táctica vergonhosa ou perversa: inúteis diversões retóricas destinadas a encobrir
as contradições da acção revolucionária, a dissimular os conflitos ideológicos surgidos
no seio das comissões revolucionárias, a suavizar os excessos de iconoclastia e a
recusar assumir a sua responsabilidade.”2
Apesar de tudo, estes decretos mostraram-se importantes para um avanço na
política conservativa. Apoiados nos ideais iluministas, o património era agora um
instrumento de “pedagogia cívica” e de “educação histórica dos cidadãos”3.
O grande passo foi tomado quando se chegou à conclusão que “romper com o
passado não significa nem abolir a sua memória, nem destruir os seus monumentos,
mas conservar uns e outros num movimento dialéctico que, simultaneamente, assume e
1 CHOAY, Françoise, A alegoria do património, edições 70, 1999, p. 112. 2 IDEM, ibid.,, p. 94. 3IDEM, ibid.,, p. 90.
3
ultrapassa o seu significado históricos nacional, ao integrá-lo num novo estrato
semântico” 4.
Em Portugal, através da literatura e da imprensa, vozes sábias erguiam-se para
denunciar a situação grave e apresentar soluções, plasmadas nas experiências
estrangeiras, cuja caminhada em prole do património estava mais avançada que no
nosso país. Académicos, literatos e pedagogos apontavam o dedo ao Estado, à
administração local, à falta de educação e sensibilização de todo um povo que, vendo o
seu património ser destruído e delapidado, se quedava impávido e sereno, apreciando a
catástrofe.
Uma dessas vozes, Alexandre Herculano, denunciava: “Mas dirá alguém: que
quereis que se faça acerca dos monumentos? – Que queremos se faça? – Que se deixem
em paz. […] as pedras só pedem repouso!”5 Para este dilecto homem da cultura, era
preferível não fazer nada, nem restaurar (sendo o restauro um dos pilares desta nova
consciencialização patrimonial oitocentista) nem criar museus com as partes
desagregadas do conjunto. O importante, afirma, era fazer uma lei de monumentos “já
que se fazem leis para tudo.”6
No entanto, este brado conservacionista estava intimamente ligado a uma
concepção estética voltada para a Idade Média, segundo a noção romântica de que seria
nestes tempos medievos que se encontrava a nossa individualidade enquanto povo e
nação, ao contrário da arte barroca, considerada uma arte-praga, que desvirtuava,
amaneirava e afrancesava a arte românica e gótica. Assim, explica Françoise Choay que
esta consciência patrimonial estava ligada a uma noção de monumento baseado numa
“emoção estética engendrada pela qualidade arquitectónica ou pelo pitoresco”
temperado pelo “sentimento de abandono imposto pela percepção da acção corrosiva
do tempo: a ascensão destes valores afectivos integra o monumento histórico no novo
culto da arte […].” 7
Ramalho Ortigão, apesar de desolado pela situação patrimonial portuguesa,
apresentava as suas soluções, apoiado na consciência de que “em toda a parte, ainda
nos mais abandonados recantos da província, há sempre, onde existe um monumento,
um homem pelo menos que o ama, que o estuda, que o comprehende.”8
4 IDEM, ibid., p. 96. 5 O Panorama, 16 de Fevereiro de 1839, p. 51. 6 Ibidem. 7 CHOAY, Françoise, Op. Cit., p. 117. 8 Ramalho Ortigão, O culto da arte em Portugal, Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1896, p. 161.
4
Muito haveria a fazer, sobretudo porque “é inútil tentar apresentar uma lista
dos nossos monumentos históricos. Não a temos. Nunca se fez.”9 É neste ponto que
Ramalho, já nos finais do século, ainda se batia. A falta de um inventário sistemático
dos monumentos portugueses, que seria a base para qualquer outra intervenção
patrimonial. Sem se saber o que se tem, não se pode saber o que se faz.
Neste contexto, surge uma nova técnica que vai revolucionar a forma como
percepcionamos a arte, a ciência, a tecnologia e, enfim, o mundo em geral. A fotografia.
Essa maravilha da tecnologia oitocentista apresentava a rara habilidade de
providenciar imagens reais, tais quais apareciam aos olhos do observador. Foi esta
habilidade que fez dela um instrumento valioso aplicável em vários campos, desde o
científico ao artístico, e passando pelo que aqui se analisa, o patrimonial. Tomemos
atenção às palavras de Osório de Vasconcellos: “Pondo de banda os innumeros serviços
que a photografia prestou já, é necessário relembrar um dos mais importantes e que
escapa à analyse superficial. A photografia evidenciou mais uma vez que entre a arte e
a sciencia, mantendo sempre o seu caracter positivo e deductivo, aliou-se à arte, que
por seu turno, obedeceu ao influxo scientifico e trilhou ousadamente a vereda do
realismo, que é a observação substituída á simples contemplação.”10
Desde o anúncio público do processo do daguerreótipo por Arago, em Paris, em
1839, que a fotografia ganhou terreno ao desenho e à pintura no campo científico e
académico, pois apreciava-se grandemente o rigor e a clareza que a fotografia
proporcionava. A nova técnica introduz, por consequência, uma revolução na forma de
olhar e também na do saber. Para além disso, cai no domínio público, acessível a todos
que queiram e possam desenvolvê-la, embora este facto não seja imune a críticas, uma
vez que os direitos de autor sobre o resultado muitas vezes eram discutidos e postos em
causa. A revista portuguesa dedicada à fotografia A Arte Photographica, tendo como
activo participante e figura charneira Carlos Relvas, dedica um capítulo à questão
autoral, referindo que “quando o estado recompensou com uma pensão a descoberta de
Daguerre, pondo-a em paralello com os serviços prestados ao paiz pelo soldado no
campo de batalha e pelo magistrado na sua cadeira, fez cahir no domínio publico os
processos daguerreannos e mais nada.”11
O turismo em massa é também fruto das inovações, da tecnologia e engenharia
oitocentista. Os caminhos-de-ferro permitiam deslocações mais longínquas e por menos
9 Marquês de Sousa Holstein, Observações sobre o actual estado do ensino das artes em Portugal, Lisboa: Imprensa Nacional, 1875, p. 41. 10 A Osório de Vasconcellos, cit. In SENA, António, Uma história de fotografia, 1991, p. 24. 11 A Arte Photographica, nº 20, Agosto 1885, p. 236.
5
tempo. As grandes exposições universais nas capitais mais importantes da Europa12
fomentavam este desejo de viagem.
As explorações científicas a terras desconhecidas, exóticas, para conhecer os
seus povos, os seus monumentos, os seus costumes, assim como civilizações
desaparecidas, foram, também, consequência da curiosidade que espoletou neste século.
Portugal estava atento a este movimento de exploradores e, acerca de Desiré
Charnay, na sua expedição ao México, entre os anos de 1857 e 1860, patrocinada pelo
Ministério Francês de Instrução Pública, diz-se: “Charney [sic] parte para a América,
gasta muitos annos em percorrer o México, penetra no Yucatan, vive nas tendas dos
indios, e tira, com o daguerreotypo, a vista das Ruínas de Palanque, dos palácios de
Tulna, dos templos de Nasma, de todos esses monumentos cyclopicos erguidos pelos
Astéques e pelas gerações esquecidas dos Pholteques, que denotam uma arte estranha,
uma civilisação adiantada, um poderoso estado social, mas completamente differente
do dos povos da velha Europa, da África e das Índias orientais.”13
Outros aventureiros, sobretudo ingleses e franceses, cujo território colonial
começava a ser descoberto científica e culturalmente, fazem-se carregar do material
fotográfico para registarem todas as estranhezas do mundo actual e desaparecido, como:
Maxime du Camp, em 1849, dedica-se às terras mágicas do Egipto, assim como Francis
Frith, em 1857; Linnaeus Tripe, em 1855, em Burma; J. McCartney, em 1858,
fotografou as escavações no Mausoléu de Halicarnasso (Turquia moderna); James
McDonald, em 1864, em Jerusalém; Henry James edita a obra Plans and photographs
of Stonehenge and of Turusachan in the Island of Lewis no ano de 1867; Alexandrine
Pieternella Françoise Tinne explorou o continente africano e publica Gerhard Rohlfs
Afrika-Reise 1869, no ano seguinte, em Berlim; ainda na década de 1860, profícua para
a fotografia de exploração e de viagem, Adolphe Braun notabilizou a Suíça, Charles
Clifford encantou-se com a Espanha, Henry Moulton parte para o Peru, John Thomson
para o Camboja e Wilhelm Burger regista as belas paisagens e costumes do país do sol
nascente, o Japão; Thomas Mitchell escolhe as terras geladas da Gronelândia em 1875;
na década de 1880, os irmãos Alinari (Giuseppe, Leopoldo, Romualdo e Vittorio)
deixam para a posteridade uma série de vistas de Itália.14
Portugal também tinha colónias que haviam de receber os seus
exploradores/fotógrafos. Em África, Paiva de Andrade, a partir de 1887, explora a 12 A primeira delas, em Londres, em 1851, recebeu massas de visitantes resultantes, também, de uma campanha de redução das tarifas dos comboios especialmente para a Exposição. Vide catálogo : Photography & the printed page in the nineteenth century, Bodleian Library, University of Oxford, 2001. 13 A Arte Photographica, nº 20, Agosto 1885, p. 235. 14 Vide http://www.bl.uk/onlinegallery/features/photographicproject/exploration.html; http://www.bl.uk/onlinegallery/features/photographicproject/worldinfocus.html.
6
chamada África zambeziana, sendo o resultado destas suas explorações a criação da
Companhia de Moçambique, em 1891. Mas o maior nome da fotografia colonial
portuguesa é, sem dúvida, José Augusto da Cunha Moraes, em Angola, editando África
Occidental, Álbum Fotográfico e Descriptivo, entre 1885 e 1888.
A fotografia de terreno, que depreendia sair do atelier e levar consigo o
equipamento, é um testemunho da perseverança e do gosto de quem a fazia, uma vez
que estas eram feitas debaixo das condições mais adversas, como a imensidão de
equipamento que era necessário transportar, as soluções químicas evaporavam-se, o
material partia-se, etc. Ouçamos o testemunho de Ildefonso Correia, sobre o fotógrafo
que utiliza a técnica do colódio húmido, uns bons anos passados desde a invenção do
daguerreótipo – mas mantendo-se as dificuldades - quando decide partir para o terreno:
“Geralmente o photographo é de habitos simples e o collodio húmido impurtava-lhe
uma bagagem, senão tão selecta como a d´um príncipe, ao menos tão pesada e tão
espectaculosa.”15 Em tom jocoso, acrescenta que “quando Deus disse: trabalharás com
o suor do teu rosto! é claro que tencionava, fazer de Adão um photographo – a
collodio.”16
As primeiras tentativas de documentação fotográfica por meio do processo da
daguerreotipia não tiveram um nível de sucesso nem de expansão como se desejaria,
obviamente pela dificuldade do processo, a sua fragilidade e o facto de apenas permitir
uma prova positiva, única, sem capacidade de reprodução. No entanto, as
potencialidades comerciais deste novo método, havendo uma crescente necessidade, por
parte dos viajantes, dos “livros de viagens”, foram imediatamente percepcionadas.
Nicolas-Marie Lerebours, em França, inaugura este género com a obra Excursions
daguerriennes. Vues et Monuments des plus Remarquables du Globe (1840-44) que
continha cento e catorze gravuras em cobre levantadas a partir de daguerreótipos. Em
Portugal, o livreiro Jean-Jacques Plantier mostraria este trabalho, demonstrando que, ao
contrário do que se poderia pensar, Portugal estava bem atento ao que se passava lá fora
e acompanhava, a par e passo, todos os últimos desenvolvimentos no campo da arte e da
ciência.
Só com a introdução de papel e vidro de melhor qualidade e mais adequados ao
processo, e da técnica do calótipo, inventada por Fox Talbot, é que, a partir de finais dos
anos 1850, o processo fotográfico se estabelece no campo patrimonial. O calótipo era
conseguido a partir de uma imagem negativa e esta permitia um sem número de
15 Ibidem, nº 14, Fevereiro 1885, pp. 33-34. 16 Ibidem, p. 34.
7
viragens a positivo, facilitando o processo de edição em gravura, litografia, ou mesmo o
próprio cliché.
As fotografias de património só funcionavam como activos instrumentos de
preservação e consciencialização patrimonial quando eram publicadas. Com o
crescimento da fotografia em suporte papel, várias cópias de uma só imagem podiam ser
produzidas com facilidade, encorajando a publicação de livros fotograficamente
ilustrados com as impressões originais.
O primeiro livro a ser editado ilustrado com fotografias17 foi The Pencil of
Nature, da autoria de W. Henry Fox Talbot, datado de 1844. Para além de merecer
destaque por ser pioneiro neste campo, o livro de Talbot tinha como objectivo
demonstrar as várias utilizações possíveis que a fotografia apresentava.
Outros casos se seguiram em Inglaterra, como, ainda na década de 1850,
Photographic delineations of the Scenery Architecture and Antiquities of Great Britain
and Ireland de Russell Sedgfield e, na década seguinte, Ruined Abbeys and Castles of
Great Britain, seguido de Ruined Abbeys and Castles of Great Britain and Ireland de
William Howitt.
Desde cedo que se percebeu que a fotografia seria um instrumento de extrema
importância para não só quem se dedicava ao estudo e exploração do património, como
para o público em geral. Para isso era necessário publicar-se mais e melhor, e a um
preço acessível, como nos diz Manuel M. Rodrigues: “É sabido que as photografias de
uma certa ordem de monumentos são um valioso auxiliar para os que se entregam a
investigações de arte e de archeologia. Ora custando cada um dos cartões 500 e 600
reis, uma colecção d´esses monumentos difficilmente póde ser alcançada, sobretudo
pelos escriptores, por via da regra pouco abastados. Um grande serviço que os
photografos nos prestariam, a nós, os que estudamos um pouco, seria pois o facilitar a
aquisição das photographias de monumentos e de obras de arte, reproduzindo-as por
meio de algum dos processos que mais embaratecessem esses trabalhos.” 18
Havia uma série de preocupações que tinham de ser tidas em conta pelo
fotógrafo quando fotografava património, como explicam José Pessoa e Sofia Torrado,
“[…] relativamente aos monumentos, a selecção da luz e das sombras assumia-se como
vital para a fotografia de uma obra, em relação à qual também não bastaria reproduzir
os detalhes, mas sobretudo respeitar as proporções, pelo que a distância e o ângulo
17 Calótipos impressos através da técnica dos sais de prata. 18 Manuel M. Rodrigues, in O Occidente, 1 de Junho de 1886.
8
tinham uma importância capital. Gerindo estes factores, o fotógrafo tinha o poder para
exaltar ou amesquinhar uma obra.”19
Reportando-nos de novo às letras de Ramalho Ortigão, percebemos que dá à
fotografia uma importância fundamental para a constituição dos inventários e para a
edição, a baixo custo, das colecções artísticas. A estas edições, confere-se-lhes um
aspecto pedagógico em várias vertentes, pois tanto podiam usar as fotografias nelas
contidas fazendo-as corresponder com os verbetes descritivos das obras de arte, método
que poderia ser usado nas escolas de arte, à giza de exercício, como servindo de forma
democrática de acesso à arte e ao património, uma vez que seria suposto fazer-se os
catálogos a preços acessíveis a todos. Ramalho fala até da constituição, a partir das
fotografias, de um “museu de reproducções.”20 Esta tarefa, segundo o próprio, não seria
difícil, dado que já haveria em Portugal quem se dedicava a fotografar património: “Da
valiosa collecção photografica, para a qual principalmente contribuíram Carlos
Relvas, Pardal, Rochini, Biel & Companhia, bem como dos catálogos dos museus e das
exposições celebradas, se poderia extrahir desde já um esboço de inventário, que não
seria difficil aperfeiçoar e prehencher, emprehendendo novas exposições e
systematizando completamente as investigações e os outros correlativos.”21 Acrescenta
ainda que a Comissão dos Monumentos Nacionais, criada em 1894, devia ter na
fotografia uma aliada indispensável: “Conseguidas as condições de consistência
technica, de auctoridade e de expediente, que no estado presente lhe falecem e
innutilisam, cabe á commissão arrolar definitivamente, pela fotografia e pela escripta,
os monumentos confiados à sua guarda bem como as obras d´arte que o paiz possue
[…].” 22
Portanto, a utilização da fotografia de monumento funcionaria numa lógica
alargada de organização, inventariação, registo, estudo e divulgação dos objectos
artísticos e do património monumental. Com a sua característica única de reprodução do
real, a fotografia funcionaria como documento da memória do passado e, muitas vezes,
testemunho único para o futuro.
França, a pátria de Niépce e Daguerre, a quem recai o epíteto de inventores da
fotografia, foi também pioneira na utilização da fotografia como instrumento de registo
do património monumental. A Comissão dos Monumentos Históricos francesa foi
criada em 1837, sob a tutela do Ministério do Interior e animada por Prosper Mérimeé.
19 PESSOA, José; TORRADO, Sofia, “Carlos Relvas e a Casa da Fotografia”, in Catálogo Carlos Relvas e a Casa da Fotografia, Museu Nacional de Arte Antiga, 2003, p. 42. 20 Ramalho Ortigão, Op. Cit., p. 164. 21 IDEM, ibid., p. 158. 22 IDEM, ibid., p. 165.
9
A sua missão era a conservação e o restauro dos edifícios que ameaçavam ruína.
Através desta comissão, organizou-se uma missão em 1851 destinada a fazer registo por
meio fotográfico dos monumentos mais belos, que ameaçassem ruína e/ou que
exigissem reparação urgente.23 A preocupação com o estado de degradação patrimonial
era, de facto, grande em França. Os vandalismos perpetrados após a Revolução
Francesa, o próprio passar do tempo e a incúria e negligência humana, ameaçavam
fortemente a persistência física dos monumentos. A tomada de consciência de que teria
de se fazer algo, depressa e bem, para não perder os monumentos mais emblemáticos da
França medieval explica a missão confiada aos cinco fotógrafos escolhidos, todos
membros da Sociedade Heliográfica. A fotografia é, assim, tomada como um
instrumento importante para o inventário e para o registo do estado actual dos
monumentos, embora o resultado prático da missão heliográfica, como foi
posteriormente denominada pelos historiadores24, não tenha sido significativo, uma vez
que a Comissão dos Monumentos Históricos não organizou a publicação das
fotografias, caindo no esquecimento e perdendo-se informações preciosas. No entanto,
entendemos que esta missão fotográfica terá sido um marco a nível europeu na questão
preservacionista, uma vez que despertou consciências e impulsionou outras missões
semelhantes. Fruto da sua época, a missão espelhava a redescoberta da Idade Média, o
desenvolvimento oitocentista da noção de património monumental e a consequente
criação de sociedades, academias e comissões de protecção e valorização patrimonial.
Embora não tenha tido repercussão decisiva no campo da publicação, não há dúvidas de
que a Mission foi o início cabal da história da fotografia aliada ao património.
A utilidade polivalente que a fotografia oferecia foi, desde o primeiro momento,
notada. Se atendermos às primeiras notícias sobre o anúncio da invenção do
daguerreótipo, sob o título auspicioso de “revolução nas artes do desenho”, verificamos
que, no campo do registo dos monumentos e obras de arte, era um processo com muito
boas perspectivas: “D´ora avante porém, sem palheta, nem lápis, sem preceitos
artísticos nem dispêndio de horas e dias, que digo, sem mover a mão, sem abrir os
olhos e até dormitando, poderá o viajante enriquecer a sua pasta com todos os
23 Na revista La Lumière, datada de 29 de Junho de 1851, órgão da Sociedade Heliográfica, é feito o comunicado desta expedição: “Cinq membres de la Société héliographique, MM. Bayard, Le Secq, Mestral, Le Gray et Baldus, viennent de recevoir, du Comité des monuments historiques, diverses missions importantes dans l´intérieur de la France. Il s´agit de reproduire photographiquement nos plus beaux monuments, ceux surtout qui menacent ruine et qui exigent des réparations urgentes. L´on ne sait pas assez que la France possède à elle seule plus de cathédrales gothiques que tout le reste de L´Europe. Les lettres d´avis ayant pour titre Missions photographiques sont une nouveauté, et une preuve que la direction des Beaux-Arts ne néglige rien de ce qui a rapport à l´art et à ses progrès. ” 24 Anne de Mondenard refere que a missão não tinha uma designação oficial, tanto era referida como mission photographique, como apenas mission. Vide MONDENARD, Anne de – La mission héliographique. Cinq photographes parcourent la France em 1851. Paris: Éditions du Patrimoine, 2002.
10
monumentos, edifícios e paizagens de longes terras […].”25 No fundo, era fruto de uma
extraordinária capacidade onde “a natureza aparece retratando-se a si mesma […].” 26
Se os literatos como Alexandre Herculano ou Ramalho Ortigão, como referimos,
são incontornáveis no alertar das consciências e na apresentação de propostas para a
gestão do património para o futuro, outras figuras com maior relevo político
demonstraram ser a peça chave para que Portugal entrasse na corrida da salvaguarda
patrimonial a nível internacional.
Referimo-nos, concretamente, ao papel desempenhado por D. Fernando de
Saxe-Coburgo Gotha, rei consorte de D. Maria II, e ao seu braço direito nas questões
culturais, o Marquês de Sousa-Holstein, vice inspector da Academia de Belas Artes,
encarregado da administração de todos os assuntos ligados às belas artes em Portugal.
Regina Anacleto explica que “quando D. Fernando II veio viver para Portugal,
o estado de abandono em que se encontrava todo o nosso património artístico, e não só
o arquitectónico, tinha de, em virtude da sua formação, impressionar o monarca. Foi
ele quem, directa ou indirectamente, esteva na base da sua salvaguarda.”27
D. Fernando foi o responsável pela presença em Portugal de Wenceslau Cifka28
que, em 1847, se estabeleceu em Lisboa com um estúdio de daguerreotipia, onde
também ensinava.
A Academia de Belas Artes revelou-se a instituição com mais peso nas decisões
culturais. Directamente ligados à Academia de Belas Artes de Lisboa, estava o Marquês
de Sousa-Holstein, como figura charneira no enclave diplomático entre a casa real, e o
rei D. Fernando em particular, a Academia e as instituições europeias.
Para melhor compreendermos o papel decisivo destes agentes culturais,
reportamo-nos ao caso muito particular do projecto ibérico gizado pelo Museu de South
Kensington (actual Victoria & Albert), em Londres, Reino Unido. Com efeito, esta
instituição, em inícios da década de 1860, decidiu investir em missões de
reconhecimento de arte existente em Portugal e Espanha, numa lógica de aquisição de
obras para o museu, mas também de uma inventariação fotográfica dos monumentos
mais importantes destes dois países. Para ter sucesso na empreitada, os seus
intervenientes sabiam que tinham de procurar junto dos mais influentes em cada um dos
países a aprovação do projecto, pois só assim poderiam livremente passear pelos dois
países ibéricos sem entraves diplomáticos.
25 O Panorama, 16 de Fevereiro de 1839, p. 54. 26 Ibidem. 27 ANACLETO, Regina, “Arte. Panorama do início de oitocentos”, in História de Portugal, dir. José Mattoso, vol. 5, Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p. 680. 28 Como veremos, é possível que Cifka tenha sido professor de Carlos Relvas.
11
Compreender o trabalho fotográfico de Charles Thurston Thompson, o
fotógrafo enviado pelo museu londrino à Península Ibérica, é importante tanto pelo seu
contributo na definição de uma fotografia museística a nível internacional, como pela
definição de um trabalho específico que liga a fotografia ao património.
Charles Thurston Thompson tinha já um curriculum significativo como
fotógrafo, o que terá ditado a sua escolha por John Charles Robinson. Robinson, para
além de ter o cargo de superintendente das colecções de arte, presentes e futuras, do
museu de South Kensington, posto que ocupou durante dezassete anos, era também
membro das mais prestigiadas Academias de Belas Artes europeias como Madrid,
Lisboa, Florença, São Lucas (Roma), Bolonha, etc., o que lhe permitia um certo à
vontade nas esferas da arte, permitindo adquirir, a baixo custo, muitas obras de arte
importantes para o museu que servia. Thompson já havia auxiliado Henry Cole, que se
destacou pelo seu importante papel nas exposições londrinas mais importantes, nos
aspectos fotográficos da Grande Exposição de Kensington em 1851 e, em 1855, na
Exposição Universal de Paris, onde também fotografou os objectos artísticos do Museu
do Louvre.
John Charles Robinson estava convicto que a fotografia era a promessa de uma
difusão da arte utilitarista a educativa.
Foi então Robinson quem preparou a vinda do fotógrafo Charles Thurston
Thompson a terras peninsulares. Com efeito, deslocou-se por três vezes à Península
Ibérica, não tendo estado nem em Portugal (porque fora informado que não havia
grande coisa que encontrar em Portugal…) nem na Galiza na sua primeira visita. A
dezasseis de Outubro de 1865, Robinson escreveu para Londres referindo que o rei
consorte, D. Fernando, permitira que fotografassem os objectos artísticos presentes na
sua colecção privada, e esta era uma oportunidade única para o Museu de South
Kensington. No entanto, por vários motivos, incluindo casos de cólera que, tendo o
surto começado em Madrid, já haviam atingido algum território português, adiaram a
entrada imediata de Thurston Thompson em Portugal.
Duas outras personalidades foram importantes no processo de vinda de
Thompson: o cônsul britânico em Lisboa, Edward Robert Bulwer Lytton, e o Marquês
de Sousa Holstein, com quem o cônsul privava socialmente. Além disso, sabendo-se de
antemão que o Marquês, filho do Duque de Palmela, obtinha grande prestígio e
influência junto das elites culturais e da realeza, cedo se percebeu que a sua “mão
amiga” seria decisiva a abrir portas para Thompson.
Lee Fontanella explica-nos que “by November 14, 1865, the Marquês informed
Robinson that « any and every work of art in Portugal is entirely at our disposition for
12
reproduction in any matter. » In preparation for Thompson´s visit, Robinson set about
making sketches of certain items that he wanted reproduced, and he « noted down
nearly everything of importance in this respect » in the public and private collections of
Portugal.”29
Robinson entrou nas esferas reais e o rei D. Fernando facultou-lhe o acesso a
várias obras de arte na posse da coroa portuguesa, mostrando-se ansioso para que o
museu londrino lhe enviasse um fotógrafo, a quem garantiria total acesso. Na verdade,
se atentarmos à força dos movimentos nacionalistas e à anciã rivalidade que opunha
ingleses a franceses, como refere Lee Fontanella, “Britain seemed eager to find in
Ibéria supreme esthetic and historical elements that would put na end once and for all
to the potential supremacy of any French monument.”30
Em Setembro de 1866, Thompson estava em Portugal. No entanto, decidiu
suspender os seus trabalhos em solo português e dirigir-se para Santiago de Compostela,
onde também estava incumbido de fotografar, e só no seu regresso é que se dedicaria
então a fotografar várias localidades portuguesas, como Lisboa, Coimbra, Porto e
Batalha. Fotografou o Palácio das Necessidades, o Palácio da Ajuda, o Mosteiro dos
Jerónimos, o Convento de Tomar, o Palácio da Pena, o Mosteiro de Santa Maria da
Vitória, na Batalha e o Convento de Santa Cruz, a Universidade e a Sé Catedral, em
Coimbra.
Quanto ao norte de Portugal (Guimarães31, Braga, Porto) infere-se, pelas
missivas de Robison, que Thompson ainda não houvera estabelecido relações
suficientemente fortes com o Marquês de Sousa-Holstein, não obtendo, dessa forma,
autorização para fotografar nessa zona, explicando-se o porquê de não ter aqui
fotografado. No entanto, sabe-se que Robinson desconsiderava o norte português e a
Galiza, considerando os povos que aqui habitavam como bárbaros e terá influenciado
Thompson a declinar o trabalho nestes locais. Independentemente das razões, para além
de não haver provas fotográficas de Thompson no norte de Portugal, também não há
notícia da sua presença em Viseu e Évora, cidades importantes em termos de património
português.
Uma das questões/problemas mais importantes que surgiram com a prática da
fotografia de património foi os interiores. Se os exteriores eram relativamente fáceis de
29 FONTANELLA, Lee, Charles Thruston Thompson and the Iberian Photographic Project. A Coruña : Centro Galego de Artes da Imaxe, 1996. 30 IDEM, Ibid. 31 Há uma fotografia da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira em Guimarães sobre a qual se discute a autoria, não havendo certezas plenas de que se trata de um cliché de Charles Thurston Thompson. Vide nota 13 em FONTANELLA, Lee, Charles Thruston Thompson and the Iberian Photographic Project. A Coruña : Centro Galego de Artes da Imaxe, 1996.
13
fotografar, desde que o fotógrafo soubesse controlar a luz, as sombras e o tempo de
exposição, os interiores ofereciam um grande desafio, sobretudo nas igrejas e mosteiros
medievais cujos interiores eram escuros e com poucas entradas de luz natural. Aqui
residia o principal desafio e prioridade, uma vez que, com um crescente número de
fotógrafos amadores e profissionais a dedicarem-se a fotografar o património
monumental, havia já muita gente a fazer clichés fora dos monumentos e muito poucos
a fazê-lo dentro dos mesmos. Robinson demonstra esta preocupação em carta, datada de
18 de Dezembro de 1866: “[…] I could furnish an exact list of the photographs and
points of view required to be taken there – but nearly all would be interior views; in the
Cathedral, churches, convents and of the city – all this edifaces, however, are so dark,
that I apprehend photos could only be taken by the aid of artificial light.”32
O legado fotográfico de Charles Thurston Thompson foi colocado em uso de
várias maneiras, sendo uma das mais importantes servir de ponto de referência para
futuros trabalhos. As fotografias de património feitas por profissionais com uma missão
concreta, como as de Thompson, como refere Lee Fontanella, “are not photographic
objects to be aprreciated as photographs; rather they are photographs to be seen
through, directly to the object that is beeing photographed. Lack of contextuality assists
in the achievement of that goal, and so does the fact that often Thompson was working
as a functionary with a prescriptive assignment.” 33
Segundo o Museu de South Kensington, o departamento de fotografia tinha a
obrigação de alargar o seu público ao produzir fotografias mais acessíveis, com um
propósito claramente educativo que, no entanto, denunciava também um objectivo
comercial associado. No fundo, subjazia uma democratização das imagens que foi tida
como paradigma em várias outras instituições culturais.
A parceria eficaz entre Londres, através do Museu de South Kensington, e
Portugal e Espanha, resultou, em 1881, numa exposição de arte ornamental portuguesa e
espanhola nesta instituição, tendo recebido os mais altos louvores e agraciada com
grande sucesso. Este facto permitiu aos restantes países entender as especificidades da
arte ibérica, no geral, e dos dois países, em particular. Esta exposição foi
importantíssima para o panorama cultural português, não só pela divulgação da nossa
arte no estrangeiro, mas porque se implicou uma grande preparação na recolha das
peças emprestadas, no seu registo e inventariação, estudo e divulgação, tal como
Ramalho afirmava que era necessário fazer. Para além disso, um ano após esta
exposição em Londres, e inspirados pelo seu sucesso, replica-se a mesma em solo
32 IDEM, ibid. 33 IDEM, ibid.
14
português, onde entra Carlos Relvas como fotógrafo das obras de arte, como iremos
verificar mais à frente neste texto. Esta exposição está na génese do Museu de Bellas-
Artes e Archeologia, hoje Museu de Arte Antiga.
Pela mesma altura em que a missão de Thompson decorria em Portugal e
Espanha, um português de extrema importância no campo da fotografia patrimonial,
aqui em análise, marcou indelevelmente a sua influência a nível arquitectónico e
arqueológico: Joaquim Narciso da Silva Possidónio.
Desde 1861 que Possidónio da Silva se dedicava a fotografar monumentos, com
a sua “bagagem de príncipe” a fazer tornar cabeças por onde passava. Foi o responsável
pela Revista Pittoresca e Descriptiva de Portugal com Vistas Photográphicas, por si
dirigida em 1862. A importância desta revista no campo da fotografia patrimonial foi
determinante, sendo o seu título desse facto revelador. A tónica era colocada,
exactamente, na reprodução fotográfica e na divulgação da história, arqueologia e
património português. O pioneirismo, a entrega e o desejo de salvaguarda patrimonial
de Possidónio da Silva e do trabalho colectivo da Real Associação é um marco na
história da fotografia de património, como explica Maria do Carmo Serén: “foi,
aparentemente, a primeira missão fotográfica cá efectuada por nacionais, com nítidos
objectivos de inventariação e orientada para usufruto da Sociedade dos Arquitectos de
que Possidónio seria fundador e director. Poucos anos depois, em 1865, surgem dois
álbuns fotográficos de Augusto Xavier Moreira, Álbum Lisbonense e Monumentos
Nacionais.”34
Possidónio da Silva giza, desde os primeiros anos da década de 1860, a criação
da Real Associação dos Architectos Civis e Archeologos Portugueses, efectivada em
1872. Desta, segundo Ramalho Ortigão, esperava-se uma tarefa de inventariação dos
monumentos, não tendo, contudo, tido o sucesso pretendido: “A louvavel diligencia
empregada a convite do governo pela Real Associação dos Architectos Civis e
Archeologos Portugueses, para o fim de lançar em 1880 as bases de uma inventariação
systematica dos monumentos nacionaes, não foi, assim como o zeloso trabalho da
comissão de 1875, seguida de resultados praticos.”35
Outros nomes se impõem citar neste contexto histórico sobre a utilização da
fotografia como instrumento de registo e de estudo do património no século XIX.
Emílio Biel, alemão radicado em Portugal, profissional com estabelecimento
comercial sediado no Porto, fez o levantamento fotográfico no campo da engenharia e
34 SERÉN, Maria do Carmo, “A fotografia em Portugal”, in Arte Portuguesa da Pré-história aos nossos dias, vol. 17, 2009, pp. 18-19. 35 Ramalho Ortigão, Op. Cit., p. 157.
15
da arquitectura. Francisco Rochini, outro estrangeiro a viver em terras lusas, também se
distinguiu neste campo: “Em Lisboa, é Francisco Rochini quem tem uma conhecida
obra editorial, com os álbuns fotográficos (Vistas de Lisboa), talvez de 1873, e
utilizando também imagens de Fillon, diversos catálogos de vistas de património.”36
Prosseguindo com os estrangeiros em Portugal, no Porto, Frederick William Flower foi
dos primeiros, ainda na década de 1840, a fotografar monumentos.
A arte e a técnica da fotografia não eram algo a que qualquer pessoa se podia
dedicar. Os aparelhos, os suportes, os químicos eram bastante caros, alguns até
perigosos, necessitando da parte de quem os manuseava um conhecimento sólido que
apenas podia ser conseguido através da literatura técnica, na sua grande maioria
disponível apenas no estrangeiro. Como um fotógrafo oitocentista não era apenas aquele
que destapava a objectiva, mas também aquele que revelava a prova, dependia de um
espaço próprio para o tratamento fotográfico. Portanto, não é difícil de aceitar que
apenas os muito endinheirados se dedicassem à mesma, sendo amadores, ou que dela
retirassem lucro, sendo profissionais.
36 SERÉN, Maria do Carmo, Op. Cit., p. 22.
16
2. O caso específico de Carlos Relvas
Carlos Augusto de Mascarenhas Relvas nasceu em 1838 na Golegã onde haveria
de mandar construir o seu famosíssimo atelier fotográfico, único no mundo pelas suas
especificidades artísticas e monumentais, onde cada recanto foi pormenorizadamente
pensado para ser lido como um verdadeiro templo consagrado à fotografia. Dificilmente
encontramos outro amador37, como orgulhosamente se fazia conhecer, com tanto amor à
arte e à técnica fotográfica, que tenha investido tanto de si e do seu pecúlio para a
desenvolver, transmitir e partilhar.
Carlos Relvas destacou-se em todos os géneros, desde o retrato do mais simples
mendigo a personagens da realeza, da paisagem ribatejana às ruas movimentadas de
Paris, da lua às obras de arte e ao património monumental. É precisamente neste último
ponto que nos iremos debruçar.
Firmin Didot, aquando a Exposição da União Central das Artes Decorativas, em
Paris (1882), afirmou sobre Carlos Relvas: “M. Relvas, cuja obra é toda portugueza e
cuja escolha atraiçoa logo o archeologo, é um cavalheiro cujos trabalhos teem o
caracter d´uma monographia toda escrita em honra do seu paiz. […] As riquezas
decorativas que encerram as capellas não acabadas da Batalha formariam, ellas só, a
mais soberba monographia.”38 Por esta citação, ficamos a saber que Carlos Relvas
detinha uma cultura artística e um interesse na história a um nível elevado.
Tendo iniciado a sua actividade fotográfica no início da década de 1860 com
Wenceslau Cifka, em Lisboa39, já os processos fotográficos tinham passado por mais de
vinte anos de transformações. Não tendo sido um pioneiro, foi, com toda a certeza, um
marco incontornável na história da fotografia em Portugal e, até, do mundo, uma vez
que encontramos referências sobre Carlos Relvas em vários periódicos franceses e
ingleses.
Era um homem internacional, perfeito exemplo do seu tempo à frente do tempo.
Entusiasmado com esta invenção prodigiosa onde a luz era protagonista, depressa
Carlos Relvas fez desta a sua prioridade, dentro dos múltiplos interesses e actividades a
que se dedicava. Ao longo dos mais de trinta anos de actividade como fotógrafo amador
37 Sendo um abastado lavrador e casado com a filha dos condes de Podentes, pôde dedicar-se á fotografia sem objectivos económicos. O facto de se intitular amador munia-o de um prestígio que os profissionais não tinham, por retirarem da fotografia o seu sustento. 38 VICENTE, António Pedro, Carlos Relvas fotógrafo, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 65-66. 39 O pai de Carlos Relvas, José Farinha de Relvas e Campo, tinha uma casa no Bairro Alto, na Rua da Atalaia, conhecida na época, precisamente, por Casa ou Palácio Relvas (à semelhança da residência na Golegã, o Palácio do Outeiro). Seria nesta casa que Carlos Relvas ficava quando se deslocava à capital.
17
adquiriu as melhores máquinas, montou uma importante biblioteca especializada,
inventou a multiplying camera, aperfeiçoou processos, como o colódio seco
desenvolvido por Russel Gordon40, deu a Portugal a fototipia, construiu três estúdios
fotográficos – sendo o ex-libris a Casa-Estúdio que hoje se conserva como museu –
tudo isto a partir da sua terra natal, Golegã, e daqui, para o resto do mundo.
Consciente do processo de degradação do património monumental português, e,
à semelhança das vagas conservacionistas europeias, também Carlos Relvas sentiu que
os seus talentos como fotógrafo podiam auxiliar no processo de registo do estado real
dos nossos monumentos mais identitários. Aliando uma visão estética a uma percepção
realística, os clichés de Relvas revelam uma excelência técnica, onde a nitidez é uma
imagem de marca.
Para este trabalho, analisámos as provas fotográficas editadas no catálogo da
exposição efectuada no Museu de Arte Antiga, em 2003, intitulado Carlos Relvas e a
Casa da Fotografia, e, apesar de ser apenas uma pequena amostra das centenas de
fotografias de património que nos legou41, é demonstrativa das suas escolhas (ditadas
pela importância do monumento mas também por razões familiares e afectivas) e das
datas escolhidas, que, se contextualizarmos com os acontecimentos gerais, fornecerão
preciosas pistas para entendermos o percurso da fotografia patrimonial portuguesa.
Um dos monumentos mais fotografados por Relvas, à semelhança de muitos
outros fotógrafos amadores e profissionais, foi o Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na
Batalha. Com efeito, Paulo Oliveira Martins explica o porquê da insistência neste
monumento, referindo que “numa Europa onde se afirmavam as nacionalidades e se
procuravam monumentos que as simbolizassem, em Portugal o mosteiro da Batalha
assumiu uma especial importância, uma vez que representava o esforço e o triunfo das
aspirações independentistas nacionais, aspecto de relevo no último quartel do século
XIX, aquando do renascimento de algumas correntes iberistas. Efectivamente, em
vários aspectos é perceptível a influência do mosteiro batalhino, fotografado por
Relvas pouco tempo antes de dar início ao projecto da casa-estúdio.” 42
Portanto, sendo que a sua casa-estúdio43 começou a erguer-se em 1872, antes
dessa data, ainda na década de 1860 (coincidente com a “época de ouro” das
40 Uma das salas de trabalho da sua casa-estúdio é dedicada a Russel Gordon, mais um dos estrangeiros que também escolheu Portugal. 41 O espólio foi todo digitalizado e está, neste momento, em fase de catalogação na Golegã, sob a supervisão do museu Casa-Estúdio Carlos Relvas. 42 OLIVEIRA, Paulo Martins, O significado da Casa-Estúdio de Carlos Relvas. Bases para uma reflexão. Disponível em http://paleociencia.com/main/page_casaestudio.html. 43 A designação casa-estúdio só é correcta a partir de 1885, quando Carlos Relvas modifica a estrutura interna do atelier fotográfico para que ele próprio pudesse passar o seu muito tempo lá dispendido com
18
explorações, das viagens e da fotografia de património, como vimos anteriormente),
Carlos Relvas começou a interessar-se pelo desafio que era fotografar património. Na
verdade, relativamente pelas mesmas datas, Charles Thurston Tompson estava em
Portugal incumbido de levantar fotograficamente uma série de monumentos
portugueses. Não se sabe se esta presença terá despertado, particularmente, em Relvas a
vontade de dedicar-se à fotografia de património. No entanto, empiricamente, tem toda
a lógica aceitar que Carlos Relvas se terá dedicado a este tipo de fotografia uma vez que
o contexto internacional lhe era familiar e conhecido e, eclético como poucos, a
experimentação de vários géneros faria parte da sua natureza. Segundo Paulo Oliveira
Martins, “Relvas demonstrou um interesse muito especial por várias das referências do
património histórico português. Ao mesmo tempo, crescia a indignação de alguns
eruditos nacionais pelo estado de abandono a que se achavam votados os monumentos,
levando mesmo a que a tarefa da sua inventariação fotográfica fosse proposta e
começasse a ser efectivada por especialistas britânicos. Neste contexto, era com
especial agrado que se verificava como também um português dava igual atenção ao
caso, para mais investindo do seu próprio capital.”44
Seria interessante contrapor o trabalho, por exemplo, de Charles Thurston
Thompson, um profissional contratado por um museu com uma missão muito bem
estabelecida e com objectivos muito claros a cumprir nosso território, e o contributo de
Carlos Relvas, um amador abastado (o fotógrafo amador português, por excelência,
como veremos) que, sensivelmente pela mesma altura, percorreram certas zonas do país
fotografando os mais emblemáticos monumentos. Carlos Relvas fê-lo por gosto, porque
podia e queria, apenas sujeito à sua própria criatividade e aos seus conhecimentos
técnicos. Thompson sofreu as pressões condicionantes de encomendas, de
especificações, de negações e diplomacias, cujo objectivo almejava também o retorno
económico, constantemente condicionado pelas ordens que recebia e pela missão a que
se propunha cumprir.
No fim, ambos deram o seu inegável contributo para a salvaguarda patrimonial e
para a consciência de que era urgente, importante e incontornável dar mais importância
aos legados do passado, apesar dos floreados, ângulos escolhidos, ou qualidade na
revelação.
Esta distinção entre fotógrafos amadores e profissionais será mais importante do
que à partida se poderá supor, senão tomemos em conta esta citação: “A sciencia maior comodidade. Efectivamente, estas transformações vão levar a que adapte o atelier a habitação permanente em 1888, quando Relvas casa pela segunda vez. 44 OLIVEIRA, Paulo Martins, Carlos Relvas e a sua Casa-Estúdio, Câmara Municipal da Golegã, pp. 39-40.
19
photographica divide-se em muitas especialidades, das quais umas exigem
conhecimentos estheticos e outras dispensam-nos. […] Tomemos como exemplo um
photographo de profissão e um amador em presença d´umas bellas ruínas encastoadas
numas paizagem romântica. Quasi sempre a preocupação dominante do primeiro será:
nitidez das pedras, perpendicularidade das linhas etc.; a paizagem é posta de parte ou
quasi de parte, não a photographava se não como um acessório incommodo que,
apezar de todo o seu desejo, não póde affastar. O amador pelo contrario servir-se-há
d´essas ruínas como d´um primeiro plano. Combinal-as-há com a paizagem ambiente e
quase sempre produzirá pela disposição dos planos uma imagem harmoniosa que nos
captiva, a nós que fôramos feridos pela outra imagem tão nítida e tão correcta.” 45
Aqui percebemos que a diferença entre alguém que se dedicava à fotografia
como hobby e quem o fazia por profissão é alarmante, até ao nível do registo do
património. Na citação, dá-se a entender que o trabalho do amador será mais completo
porque imbuído de opções estéticas e não apenas com a realidade nua e crua que até
chega a “ferir” as susceptibilidades artísticas do homem oitocentista. Não deixa de ser
uma posição interessante para compreendermos melhor o espírito romântico que
prevaleceu durante praticamente todo o século XIX e as opções estéticas tomadas numa
lógica de provar que a fotografia não era apenas técnica, mas também arte, possível de
rivalizar com a pintura e o desenho. Este debate entre arte e técnica foi, aliás, dominante
desde a sua invenção.
Munido das melhores máquinas e materiais, instruído na técnica e nos truques,
verificamos o nível de excelência dos seus chichés, não hesitando o fotógrafo Relvas em
enviar certas vistas monumentais para as grandes exposições onde participou: “Nas
colecções que Relvas enviava para as grandes exposições internacionais, não hesitava
em incluir […] monumentos históricos e seculares, como a Batalha ou os Jerónimos.” 46
A sua mestria na fotografia patrimonial era elogiada por onde passava, como,
por exemplo, em França: “ses nombreuses photographies dês monuments du Portugal
avaient puissamment aidé à faire connaître l´architecture de ce pays.”47
Para além das exposições nacionais e internacionais, Carlos Relvas não
descurava as publicações periódicas que, entretanto, pululavam nas tipografias, como
refere Paulo Oliveira Martins: “[…] remetia imagens para a pequena revista O
Panorama Photographico de Portugal. Por exemplo, no seu caderno, agendara o envio
para essa publicação de uma fotografia relativa às «torres novas dos Jerónimos com as 45 A Arte Photographica, nº 4, Abril de 1884, p. 107. 46 OLIVEIRA, Paulo Martins, Carlos Relvas e a sua Casa-Estúdio, Câmara Municipal da Golegã, p. 76. 47 Aide-Mémoire de photographie pour 1895. Paris: Société Photographique de Toulouse, Ano 20, 12ª série, Tomo X, p. 77.
20
nuvens».”48Relvas também colaborou várias vezes com a famosa revista O Occidente,
aproveitando a sua grande tiragem para, também aqui, divulgar o património: “A esta
publicação Relvas enviava as suas imagens, frequentemente de edifícios históricos
como, por exemplo, o do Convento de Leça do Bailio, que fez capa do número editado
em 1 de Agosto de 1879.”49
Ao fazer conhecer as suas fotografias de património, não era apenas o seu
talento que divulgava, mas também os monumentos e o seu estado, numa clara atitude
democrática e pedagógica.
No entanto, outra faceta de Carlos Relvas se assumia, o de benfeitor e protector
dos pobres. Com efeito, juntamente com a sua esposa, Relvas preocupava-se em
arranjar fundos, no caso da Golegã, para a Misericórdia e Montepio Popular desta
localidade, assim como para outros pontos do país, quando necessário. Assim, quando
Relvas editava as suas fotografias, em vez de fazer edições baratas, disponíveis a um
maior número de pessoas possível, decidia-se por publicações luxuosas, cujas vendas
reverteriam a favor dos mais necessitados, como verificaremos. Algumas críticas se
levantaram, como as de Joaquim de Vasconcellos e sua esposa Carolina Michaëllis, dois
grandes vultos da cultura portuguesa do século XIX. Estes defendiam a democratização
das publicações baseadas em fotografias, para o máximo de pessoas as pudessem
adquirir. Assim, “tratavam-se de duas formas distintas de colocar a arte ao serviço da
sociedade, formas essas que, neste caso, não eram conciliáveis.”50
Este interesse de Relvas pela fotografia de património garantiu-lhe a entrada,
“em Fevereiro de 1880, como membro da Sociedade Francesa dos Arquivos
Fotográficos Históricos e Monumentais.”51 De igual forma, tornou-se membro
honorário da Academia de Belas-Artes de Lisboa, que, como verificámos anteriormente,
era uma atribuição que granjearia de grande prestígio os seus membros junto das esferas
mais selectas.
Em 1869, Carlos Relvas enviou fotografias que retratavam o Castelo de
Almourol, o corochéu das cegonhas na Batalha, o Mosteiro de Santa Maria da Vitória
na Batalha, o Convento de Tomar e de Condeixa para a VIII Exposition de la Sociétè de
Photographie.
Em 1873, na Exposição Universal de Viena, Relvas apresentou mais fotografias
de monumentos.
48 OLIVEIRA, Paulo Martins, Op. Cit., p. 67. 49 IDEM, Op. Cit., p. 83. 50 IDEM – O Catálogo Carlos Relvas e a Casa da Fotografia. Análise de um contributo decisivo, pp. 17-18 [Em linha]. Disponível em http://paleociencia.com/attachments/CRelvas.pdf. 51 IDEM, Carlos Relvas e a sua Casa-Estúdio, Câmara Municipal da Golegã, p. 84.
21
Na Exposição Universal de 1878, em Paris, Carlos Relvas destacou-se uma vez
mais: “[…] et un photographe amateur de Gollega, M. Carlos Relvas, nous met sus les
yeux une superbe collection de vues d´une execution irréprochable.”52
Sobre a prestação deste fotógrafo na Exposição da União Central das Artes
Decorativas de 1882, novamente na capital francesa, escreveu-se: “M. Carlos Relvas, le
photographe amateur si distingue, ainsi que Mlle. Marguerite Relvas, nous ont procure
á nouveau l´agrément d´admirer leus belles épreuves, qui sont, comme chacun sait, de
véritables oeuvres d´art.”53 De notar que a sua filha mais nova, Margarida, já
acompanhava o pai, distinguindo-se também por mérito próprio na arte da fotografia.
Como já referimos anteriormente, no seguimento da Exposição de Arte
Ornamental portuguesa e espanhola no Museu de South Kensington, em 1881, replicou-
se em Portugal a mesma no Palácio Alvor (ou das Janelas Verdes). Carlos Relvas, um
amador, e não um profissional, foi o escolhido para a tarefa de fotografar todas as peças
integrantes da exposição. Sendo membro da Academia de Belas-Artes, fidalgo da Casa
Real e de fama internacional no âmbito fotográfico, não admira esta escolha.
A sua diligência e sacrifício pessoal foram notados pela organização e por quem
passava pelo jardim do Palácio das Janelas Verdes, onde decorreu a exposição. Por
ocasião da Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portuguesa e Hespanhola,
celebrada em 1882, elaborou-se, pela primeira vez em Portugal, um catálogo54 com as
obras fotografadas. Este facto revelou-se importante no registo e controlo das obras de
arte presentes na exposição, o que ajudou na sua integração posterior no museu.
Ramalho Ortigão, já aqui citado, referiu que “[…] teem sido modernamente do mais
importante auxilio para o conhecimento dos nossos valores artísticos a Exposição
Retrospectiva de Arte Ornamental, celebrada em Lisboa em 1882.”55
Revelou-se, nesta exposição, um grande trabalho preparatório em que se
estipulou a criação de uma comissão central directora dos trabalhos, cujos objectivos
eram: "organizar os necessarios programmas, regular a fórma de admissão e entrega
dos objectos, fazer a selecção dos que devam ser expostos, superintender na sua
conveniente installação, coordenar o catalogo respectivo, e propor ao governo tudo
52 L´Exposition Universelle de 1878 illustrée, Paris, Setembro de 1878, p. 807. 53 Revue Photographique, ano 5, nº 11, Dezembro de 1882, p. 142. 54 Na realidade, forma dois os catálogos editados: um, generalista, editado sob a chancela da Imprensa Nacional, com gravuras de baixa qualidade; outro editado por Carlos Relvas, com as fotografias originais e encadernação de luxo, em tiragem limitada. 55 Ramalho Ortigão, Op. Cit., pp. 157-158.
22
quanto julgar necessario para que a exposição se realize nos termos desenvolvidos e
com a máxima vantagem para o paiz."56
O catálogo, editado a expensas de Carlos Relvas, luxuoso e visualmente
impactante, foi vendido a preço alto, com o intuito de, como já referimos, reverter o
lucro para obras de caridade.
Carlos Relvas privava com os melhores fotógrafos a nível mundial, confiando-
lhe provas fotográficas da sua autoria, trocando experiências, ensinando e aconselhando,
sempre numa lógica de partilha de conhecimento, sem temer concorrências. No seu
estúdio ensinava-se quem queria aprender. Adquiriu o processo de fototipia a Carl
Jacoby e colocou-o no domínio público em Portugal, sem querer nada em troca, tendo
dispendido muito dinheiro no processo. O tema da fototipia era, de facto, bastante caro a
Relvas. Para a revista A Arte Photographica escreveu vários artigos sobre o método e
mostrava-se sempre disponível para ensiná-lo. Em artigo assinado por Ildefonso Costa
na revista A Arte Photographica, refere-se que “[…] Carlos Relvas não adquiria
simplesmente conhecimentos a pezo de dinheiro para única satisfação do seu
apuradíssimo bom gosto artístico. Não nos faltava nunca, socorrendo-nos com as suas
sabias observações de experimentador consciencioso e com a sua extrema habilidade.
[…] Não aprendeu então phototypia quem não quis. Porque ele não se limitava
benevolamente a ensinar – facultava tudo!”57
O processo da fototipia revolucionou as artes editoriais em Portugal, facilitando
a inclusão de fotografias nas publicações, tendo sido, sem dúvida, um importante legado
deixado por Carlos Relvas.
Pela análise das fotografias de património que neste trabalho divulgamos,
percebemos que as décadas de 60 e 70 coincidem com a fase mais activa em termos de
fotografia de património. Dos locais fotografados, não é de espantar que Carlos Relvas
se tenha dedicado mais à zona centro, pela proximidade da sua terra natal, mas também
por motivos familiares, uma vez que as propriedades dos seus sogros, os condes de
Podentes, se encontravam em Condeixa-a-Nova. A zona de Lisboa e vale do Tejo é
altamente contemplada, sendo onde se encontram monumentos charneira para a
identidade portuguesa como o Mosteiro dos Jerónimos, ou aqueles marcantes de uma
época romântica de cunho internacional, como o Palácio da Pena, em Sintra,
relembrando o rei D. Fernando e o seu contributo e influência para as artes e cultura em
56 Catálogo illustrado da Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola, Lisboa: Imprensa Nacional, 1882, p. VIII. 57 A Arte Photographica, nº 4, Abril de 1884, p. 103.
23
Portugal. A tendência para fotografar monumentos da Idade Média é notória, como o
incontornável Mosteiro da Batalha.
É inegável o trabalho charneira de Carlos Relvas no campo do património e o
seu envolvimento no movimento europeu em torno da salvaguarda patrimonial. Podia
ter passado a sua existência a gozar da fortuna e a gerir as suas propriedades, que
chegou a negligenciar, mas o amor à grande invenção do seu século falou mais forte.
No auge da tecnologia fotográfica, Carlos Relvas sucumbe a um ferimento
causado por uma queda de cavalo, em Janeiro de 1894. Apaga-se, assim, a luz da
Golegã.
24
3. Em jeito de conclusão: fotografia como património
A fotografia de património, quer na sua vertente monumental, quer de
património móvel, é o expoente máximo da reprodução documental. Françoise Choay é
muito explícita quando infere a união da fotografia com a nossa própria noção de
identidade pessoal e colectiva: “[…] a fotografia é uma forma de monumento da
sociedade privada, que permite a cada um obter em segredo o regresso dos mortos,
privados ou públicos, que fundam a sua identidade.”58
O registo fotográfico do mundo oitocentista sobrevive como uma fonte histórica
de características e valor únicos, a nível documental e artístico. A revista parisiense
L´Univers Iluustré dá-nos uma preciosa citação sobre o papel da fotografia e dos
fotógrafos no contexto desolador da destruição patrimonial: “ses photographies seront
d´une réalité perpétuelle. Avec elles, l´histoire ne tournera jamais à la légende. La
verité dans toute son horreur se reproduira sans cesse pour flétrir les crimes de la
commune et les excès de l´étranger.”59
A mentalidade preservacionista e a memória colectiva estão interligadas com a
fotografia arquitectural e com o próprio trabalho de restauro, noções caras ao mundo
oitocentista, que herdou guerras, revoluções e mudanças radicais, mas que soube
adaptar os frutos das suas invenções dando-lhe tarefas que ajudaram a preservar o seu
espírito para além da passagem do tempo.
A fotografia é um bem que assenta no visual e no real e constitui-se de um
momento, um instantâneo congelado no tempo, que nos permite olhar para o passado
com os olhos de quem primeiro as viu. Esta dupla importância, o testemunho e a prova,
é capaz de travar o vandalismo, de alertar consciências, despertando correntes de
mudança. Terminamos com as palavras de Eduardo Nobre: “O negativo, inédito ou não,
vale por si, pelo que representa, passado a positivo, de coisa real e de antanho,
constituindo-se «testemunha visual» duma parcela de tempo que constrói um dado para
a História.”60
A fotografia representa, assim, uma imagem congelada do tempo que a
produziu, sendo, por isso, de valor patrimonial incalculável.
58 CHOAY, Françoise, Op. Cit., p. 19. 59 L´Univers Illustré, Paris, nº 953, 28 Junho 1873, p. 411. 60 NOBRE, Eduardo, “A fotografia como “Património” e testemunho de “Património””, in Revista do ACMP, 1980, p. 28
25
4. Fotografia de Património por Carlos Relvas61
ALENTEJO
c.1880: Ruínas fingidas no Passeio Público de Évora,
concebidas por José Cinatti.
c.1880: Ruínas fingidas no Passeio Público de Évora,
concebidas por José Cinatti.
c.1880: Ermida de São Brás
em Évora.
61 Todas estas provas fotográficas encontram-se editadas no catálogo Carlos Relvas e a Casa da Fotografia, Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, 2003, pp. 208-234. As datações são as apresentadas no catálogo.
26
RIBATEJO
c.1868: Castelo de Almourol.
c.1880: Igreja de Nossa Senhora da
Conceição. Golegã.
c.1868-1871: Igreja dos Templários.
Tomar.
27
c.1868-1871: Janela da Sala do Capítulo
do Convento de Cristo. Tomar.
ESTREMADURA
c.1880: Castelo dos
mouros. Sintra.
c.1880: Castelo dos Mouros.
Sintra.
28
c.1870-1875: Palácio da Pena. Sintra.
c.1870-1875: Palácio de Monserrate. Sintra.
c.1870-1875: Entrada e escadaria do Palácio de
Monserrate. Sintra.
29
c.1868-1870: Mosteiro dos Jerónimos. Lisboa.
c.1868-1870: Portal do Mosteiro dos Jerónimos.
c.1868-1870: Claustro do Mosteiro dos
Jerónimos.
30
c.1868-1870: Claustro do Mosteiro
dos Jerónimos.
c.1868-1871: Igreja de São Quintino. Batalha.
c.1868-1871: Portal da Igreja Matriz da
Batalha..
31
c.1868-1871: Capela do Fundador,
túmulo de D. João I e de D. Filipa de
Lencastre. Mosteiro de Santa Maria da
Vitória. Batalha.
c.1868-1871: Claustro do Mosteiro de
Santa Maria da Vitória. Batalha.
c.1868-1871: Pórtico das Capelas
Imperfeitas do Mosteiro de Santa Maria da
Vitória.
32
c.1880: Mosteiro de Santa Maria da
Vitória. Batalha.
CENTRO
c.1880: Sé Velha de Coimbra.
33
c.1880: Mosteiro de Santa Cruz. Coimbra.
c.1880: Rua e Palácio de Sub-ripas. Coimbra.
c.1880: Túmulo de Gonçalo Gomes da Silva no
Convento de São Marcos. Tentúgal.
34
c.1880: Órgão da Igreja do Mosteiro de Santa
Maria do Lorvão.
NORTE
c.1880: Mosteiro de Leça do Bailio.
c.1880: Chafariz e Casa da Misericórdia. Viana
do Castelo.
35
Bibliografia
AAVV – Carlos Relvas e a Casa da Fotografia. Lisboa: Museu Nacional de
Arte Antiga, 2003.
ANACLETO, Regina – “Arte. Panorama do início de oitocentos”, in História de
Portugal, dir. José Mattoso, vol. 5, Lisboa: Círculo de Leitores, 1993.
Catálogo illustrado da Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portugueza
e Hespanhola, Lisboa: Imprensa Nacional, 1882.
FALCONER, John; HIDE, Louise – Points of view. Capturing the 19th century
in photographs. London: The British Library, 2009.
FONSECA, Cátia Antunes dos Santos Salvado – Uma família de fotógrafos:
Carlos e Margarida Relvas. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2008. Dissertação de
Mestrado.
MARQUÊS DE SOUSA HOLSTEIN – Observações sobre o actual estado do
ensino das artes em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1875.
MONDENARD, Anne – La Mission Héliographique : Cinq photographes
parcourent la France en 1851. Paris: Éditions du Patrimoine, 2002.
NOBRE, Eduardo – “A Fotografia como “Património” e testemunho de
“Património””. In Revista do ACMP, Dezembro 1980, pp. 20-34.
OLIVEIRA, Paulo Martins – Carlos Relvas e sua Casa-Estúdio. Golegã:
Câmara Municipal, 2006.
ORTIGÃO, Ramalho – O culto da Arte em Portugal. Lisboa: Typographia da
Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1896.
Photography & the printed page in the nineteenth century, Bodleian Library,
University of Oxford, 2001.
36
RAMIRES, Alexandre – Revelar Coimbra. Os inícios da imagem fotográfica em
Coimbra 1842-1900. Coimbra : Museu Nacional Machado de Castro, 2001.
ROBINSON, John Charles – Catalogue of the special loan exhibition of spanish
and portuguese ornamental art, South Kensington Museum, 1881, London, Chapman &
Hall, 1881.
SENA, António – Uma História de Fotografia. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1991.
SERÉN, Maria do Carmo – “A Fotografia em Portugal”. In Arte Portuguesa. Da
pré-história ao século XX, vol. 17, Lisboa: Fubu Editores, 2009.
SCHWATRZ, Joan e RYAN, James (eds.) – Picturing place: photography and
the geographical imagination. Londres: I. B. Tauris, 2003.
VICENTE, António Pedro – Carlos Relvas fotógrafo (1838-1894): contribuição
para a história da fotografia em Portugal no século XIX. Lisboa: Imprensa Nacional
Casa da Moeda, 1984.
Periódicos
A ARTE PHOTOGRAPHICA. Revista Mensal dos Progressos da Photographia
e Artes Correlativas. Porto: Photographia Moderna Editora, 1884-1885.
AIDE-MÉMOIRE DE PHOTOGRAPHIE POUR 1895. Paris: Société
Photographique de Toulouse, Ano 20, 12ª série, Tomo X.
L´UNIVERS ILLUSTRÉ. Paris, nº 953, 28 de Junho de 1873.
LA LUMIÈRE, 29 de Junho de 1851.
O OCCIDENTE, 1 de Junho de 1886.
37
O PANORAMA. Jornal literário e instructivo da Sociedade Propagadora dos
Conhecimentos Úteis, 16 de Fevereiro de 1839.
REVUE PHOTOGRAPHIQUE, ano 5, nº 11, Dezembro de 1882.
Documentos electrónicos
OLIVEIRA, Paulo Martins - O significado da Casa-Estúdio de Carlos Relvas.
Bases para uma reflexão [Em linha]. [Consult. 5 Maio 2010]. Disponível em
http://paleociencia.com/main/page_casaestudio.html
IDEM – O Catálogo Carlos Relvas e a Casa da Fotografia. Análise de um
contributo decisivo [Em linha]. [Consult. 5 Maio 2010]. Disponível em
http://paleociencia.com/attachments/CRelvas.pdf.